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A personalidade somdtica de nosso tempo No presente, se tornou um lugar comum afirmar que o indi- viduo vive em uma crise de valores. Os erfticos da modetnidade sustentam que 0 processo de globalizagSo econémica enfraqueceu as tradicionais instincias doadoras de identidade, como a familia, a religito, o trabalho, a idéia de Bem comum etc. O individuo, liberado da pressio normativa destas insttuig6es, viu-se levado a bbasear o sentimento de identidade em dois principais suportes, 0 narcisismo eo hedonism. ===~=SOSO*~S~S«*S Basear a identidade no narcisismo significa dizer que 0 sujei- to € 0 ponto de partida e chegada do cuidado de si! Ou seja, 0 “que se é” © o “que se pretende ser” devem caber no espago da preocupagio consigo. Familia, pétria, Deus, sociedade, futuras sgeragoes 66 interessam ao narcsista como instrumentos de auo- realizago, em geral entendida como sucesso gio social ou bem-estar fisico ¢ emocional. © hedo mndmico, presti- _ gio social o1 por sua vex, é um efeito desta dindmica identitéria, O narcisista cuida apenas de si, porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sind- mente insenevel 4 compeo- rmissos com ideas de conduta coletvamene oretadoe, Este uso da palaven fo de ciéncias humanss, pore considera que ela descreve stisfntor- 185 4, sonaaoin nei cosa TY ima de stiff sensorial, Assim, o sujeito da moral hodierna se tornado indiferente a compromissos com 6s outros ~ faceta ~ © 8 projetos pessoais duradouros — faceta hedonista. ( sentido da vida deixou de ser pensado como um processo com finalidades em longo prazo e objetivos extrapessoais, Essa leitura é plausvel e corresponde, em certa medida;’a0 que podemos observar. Mas simplifica questbes tortuosas. Em pri- ‘meiro lugas, podemos perguntar se, de fato, abdicamos a todos os valores tradicionais; em segundo lugar, se nao abdicamos a eles, como tais valores foram reconfigurados no estado atual da cultura Para faciltar a discussio dos dois t6picos, considerarei a opi- nilio de Gilles Lipovetsky (Lipovetsky, 1997), um pensador que se ‘p6e & maioria dos crticos da cultura contemporinea. Lipovetsky pensa que a matria imagindria da cultura de hoje seja o fendmeno dda “moda” ou a “forma moda’. A moda — que ele chama de “impé- tio do efémero” ~ nfo deve ser vista como sinal de decadéncia do espfrito civico-moral. Sua versatilidade e inconstincia mostram, a0 contritio, que “o velho dispositive religioso da submissfo humana fem relacio a um principio superior fora de aleance” foi pelo individualismo democritico (1997: 247). No texto abaixo, 0 cerne do pensamento do autor & sinteti- zado de maneira clara: A cdesafeisao pelas odissiasideolbgicas e seu correlato, 0 advento do sentido “leve", sio menos o produto de uma tomada de consciéncia coletiva do inferno do Gulag edo totalitarismo da revolugso comunista do que das mudangas ocorridas no préprio interior do mundo ocidental ‘entregue a processo da moda consumada, Foi o estilo de vida idico- «stético-hedonista-psicologista-posmidiftico que minow aut iondria, que desqualificou os discursoslouvando a sociedade sem clas- ses €o futuro reconciliado, O sistema final da moda estimula 0 culto da salvagio individual eda vida imediata, sactaliza a felicidade privada das 186° OVEsTIGiO EA AURA pessoas eo pragmatismo das atitudes, compe as solidariedades e cons grande ideologias que, nfo levando em conta nem oindividuo singular, ‘nem aexsténcia de via live hie et nung viram-s no conteitio exato das aspiragéesindividuaistas contemporiness (1997: 249). ‘A atmosfera moral do narcisismo, continua 0 autor, no é incompativel com a tradigio, apenas dispensa aquilo que nela envelheceu: “A moda consumada néo tem sentido sendo na era democritica em que feinam um consenso ¢-um apego forte, ge- ral, durivel, relacionado aos valores fundadores da ideologia mo- derna: a igualdade, a liberdade, os direitos do homem” (1997: 240). Em resumo, a moda, no fundo, preserva 0 que as democra- cias tém de m: "amadurecendo-as, tornando-as mais importante, estiveis ¢ miais impermedveis &s guerras santas, menos ameagadas do interior, menos vulneriveis aos delirios hstéricos da mobilizagdo total” (1997: 275-77). Além de respeitar os valores mais significativos da re publica, © império da moda respeita igualmente os valores privados da liberdade ¢ da autonomia individuais, Falar de “uniformizagio” das consciéncias pela moda é um engano: ‘Acera da moda consumada significa tudo menos uniformizasio das con- smentos, Por urn lado, ela certamente homogeneizou lacional, mas, por um outro lado, desencadeou um processo al de fragmentagdo dos extilos de vida, (..) Nao estamos mais ‘numa sociedade da divisiosangrenta.Também nfo estamos numa soci- ‘dade climatiaada e homogeneizads, 60 modelo da moda que rege nosso 187 \ JuRANOIR FREIRE COSTA O ponto de vista de Lipovetsky tem a vantagem de deflacionar (8 perigos imagindrios que cercam’os novos acontecimentos cultu- zis. Ao mostrar que 0 individuo modemo nfo se tornou um mons- tro moral, ele relembra que podemos nos tomar vitimas de hébitos de interpretagio caducos. Afinal, o mundo que antecedeu a nossa cra estava longe de ser 0 melhor dos mundos, No entanto, mesmo levando em conta que o autor se ditige 20 Ieitor do rico Atlintico Norte, podemos perguntar se o seu entusi Ihe a fungio de reformatar os valores tradicionais. O que significa, por exemplo, dizer que os individuos continuam atentos aos gran- des princ{pios democriticos da igualdade, liberdade e direitos do homem? Em qual pals ou sociedade Lipovetsky conseguiu detectar indicios de adesto viva Aqueles p acreditar que os individuos, pela 6H dos fanatismos ideoldgi 0s, pela decomposigfo das tradigées e pela paxto da informagéo' se mostram “cada vex mais capazes de exercet um livre exame, de tolerar menos os discursos coletivos, de setvir-se do proprio enten- dimento, de ‘pensar por si mesmos,, 0 que néo significa auséncia de ‘qualquer influéncia’? (1997: 262). De quais argumentos Lipovetsky dispde para nos persuadir de que os individuos, he exiticos do que ontem? O autor tem saxo a0 dizer que as pessoas ‘nfo eram mais livres quando estavam submetidas aos dogmas das religides © das “ideologias messidnicas” (1997: 262). Mas a cetera de que o antes nio era bom nio ¢ razdo para a afirmagéo de que 0 agora é melhor. Ele proprio admite que a “indivi consciéncias conduz também a apatia e a0 vazio electual, 20 ensamento-spor, A salada mental, is adesGes mais desarrazoadas, a novas formas de supestigGes, 20 ‘qualquer coisa’ (1997: 264). Pen-_ $2, entlo, que a tese da reconfiguragio dos valores tradicionais pelo 188 OVESTIGIO EA AURA império da moda nfo ¢ convincente como parece, No presente ‘como no pasado, os prnelpios de justia e dectneia da Repablica € da Democracia permanecem invengées frigeis, ciadas pelos esp- livres. E, como ideais que so, continuam longe de espelhar as condutas das massas na era da efemeridade. De acorto com Lipovetsy, nfo creio que os indviduos dessti- ram de agir moralmente para se tomar bolhas naretsicas. Continua- ‘mos, como quaisquerseres humanos, avalorar nosses ages, ou seja, a classficare a hierarquizar 0 que fizemos em termos de Bem e Mal A questio, porém, é saber qual valor estd no alto da hierarquia ¢ a ‘qual parte da tradigao ele se vincula, Enunciada de outra maneira, a pergunta é a seguinte: sc nao delegamos mais & religifo, ao trabalho, 4 politica ou & familia 0 papel de dar. sentido A vida, o que funciona mscenclente aos meros propésitos de auto-ralizagio? Minha hipétese &@ de que essas instincias nfo perderam toda a orga normativa que tinham. Simplesmente, como mostrou Luckman, foram “privatizadas” (Luckman, 1996: 72-87). Ou seja, deixaram de agir “institucionalmente”, por meio de regras impes- soais ¢ universais, para serem ativadas caso a caso, ponto por pon- to? Em contraps lo incontestével, pas- sou a ser ocupado pelo mito cientificista. A mitologia cientifica, ¢ 2 Como exemplo, tomemos o ctso da religifo, A seligito nio desaparceen do wnivetso uibano no a moda, vem substituindo as instituig6es tradicionais, na tare fa de propor recomendagées morais de teor universal Entre os fabricantes de opinigo, em especial a midia, o mito cientifico encampou 0 direito intelectual de falar do lugar da Verdade, provocando uma reviravolta no terreno dos valores. As formas de vida, antes referendadas por valores religiosos, ‘ou politicos, passaram a se legitimar no plano do debate co. O que era medido por critérios pertencentes a esfera dos ide- ais morais passou a ser avaliado por métodos de controle e valida- «gio experimentais. A virtude moral deixou de ser 0 tinico pad:so da vida vera e justa. Agora, 0 bom ou o Bem também sio defini- dos pela distincia ou proximidade da “qualidade de vida’, que fem como referentes privilegiados o corpo e'a espécie. A renaturalizagio das condutas humanas, todavia, nfo tenta descartar os antigos valores, ¢ sim retraduzi-los no triunfalismo ta. O euidado de si, antes voltado para 0 desenvolvi- mento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, diti- ge-se agora para a longevidade, a saide, a beleza ¢ a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bioidentidade, e tuma nova forma de preocupagio consigo, a bioatcese, nos quais a | fitness & suprema virtude. Ser jovem, saudével, longevo e atento a forma fisica tornou-se a regra cientifica que aprova ou condena ‘outras aspiragbes & fei Crengas religiosas, polftcas, psicolégicas, sociais ¢ outras si admitidas desde que se afinem com os cAnones da qualidade de 3 nogées de biidentidae e bioaeese, vec Ortega, Francitea "Da ascese 4 bionscete 0x do corpo submetida & submissto ao corpo” af uoindasneepione. ge. Rag, Ms Orla Rio, DP&A. 2002: 920; *Blopolitieas da saide ~ reflex Focal, Agnes Hel ut ins Reta Tt ~ Comunis, Ssd is. Bm. 14, fov/2004 139-173, 190 ovesticio # Aun vida. A boa religiéo é aquela conforme o ideal da boa sade; a boa politica € a que respeita o cuidado com o ambiente fisico da espé- cie natural. A nogio de mundo politico perdeu a sua primazia absoluta ¢ passou a concorrer com a de mundo ecoldgico, A idéia da sociedade como teatro da ago humana descomprometida com eto € 0 que se adapta ao programa da vida bem- “sucedida, do ponto de vista biol6gico. No entanto, ao contrério do que parece & primeira vista, a construgio das bioidentidades ¢ 0 cuidado com a espécie nfo sio condutas meramente pass bioascese exige uma ‘ou poluidores, entre os quais esto o legado iico-cristio. Nesta tradigéo, deviamos olhar as coisas ¢ seres do universo como instrumentos a servigo da vontade bres, predatér cultural greco-j humana, cuja silkima meta era a salvagio da alma. © homem era a finalidade da criagdo e tudo mais estava submetido a suas neces- sidades. Hoje, estamos sendo levados a:rever tais crengas. Néo nos sentimos mais autorizados a dizer salve-se 0 homem e perega 0 mundo, pois o mundo nem é mais a cidade politica greco-romana nem a cidade terrena cristd, &a cidade ambiental A bioética, ¢ nao a ética politico-religiosa, se tornou correlato moral do ideal natural da qualidade de vida. O sentido da existéncia, a origem das.obrigagbes éticas, as escolhas dos esti- los de viver, todos est jcados na busca da felicidade foram agregado 20 rol de perguntas que a ciéncia, cedo ou tarde, istas tolerantes, rados ¢ complacentes com a8 pequenas trans- itens vai responder. Tornamo-nos, dessa forma, sexualment gresées morais, desde que nada disto desequilibre as taxas de 191 JuRANIR FREIRE COSTA A inflexio no eixo valor das condutas criou, por conse- guinte, novas concepg6es mo is de “normalidade” ¢ “desvio”. Vejamos quais os elementos da metamorfose. A ideologia cientificista confere a0 corpo e a espécie 0 valor, anteriormente, concedido as virtudes piiblicas privadas. © corpo deixou de set tum meio de agir sobre © mundo ou de enobrecer sentimentos para voltrse para as finlidades de sua propria autoconservagio ¢ reprodugao. Na tradi¢ao polftico-religiosa — chamemos assim 0 pano de fundo moral dos iltimos trés ou quatro séculos de 14 ocidental -, controlamos 0 corpo de modo a fazé-lo servir & causa das boas obras © dos bons sentimentos, A realidade corporal foi tomada em sua nudez material como algo di rentais ou outras. Nunca, entretanto, haviam ue a forma corporal pudesse ser garant O advento da cultura somdtica de admiragio moral. ‘ou de ponta-cabega esse imagindtio, O desempenho corporal foi posto no mesmo pata- mar do aperfeigoamento sentimental ou das finalidades elvicas, A alteragio nos costumes, & primeira vista, é minima. Olhada de erto, porém, impressions, O interesse pelo corpo exacerbou a atengéo dos individuos para com a sensor: lade, © a superexploragio dessa faceta da experiéncia corporal vem sendo scompanhada de efeitos fsicos, mentais ¢ socioculturais inusita- dos. abertura sensorial para os estimulos do ambiente, miltipla ¢ maleivel. Podemos desenvolvé-la de virias formas e em varias di- regbes, segundo os habitos fisicos ou culturais. Assim, podemos ‘nos tornar mais ou menos sensiveis a certas experiéncias fisicas, 192 OVESTICIO BAAUEA dependendo da mancira como avaliamos a relevncia delas para 0 ‘nosso ideal de desempenho corporal, moral, sentimental ou cfvi- a, por exemplo, é pouco afetada pelo gozo sen- co. A.agio p sotial, pois o seu objetivo ¢ a transformagio da realidade externa | ‘com vistas aos interesses do Bem comum. No agit voltado para a cesfora piiblica, a intensidade e a qualidade das sensag6es privadas so remetidas ao segundo plano da atengio consciente. O que conta é, sobretudo, a convergéncia das experinci ue visam aos aspectos do mundo que concemem a todos. © altivo dos senti 46es privadas como meio de refinar a satisfagio que podemos ter com a meméria das interagées emocionais vividas com 0 outro intos, de forms préximo. O romantismo amoroso & um exemplar t{pico desta ordem de satisfagio. A realizago romantica tem no gozo das sen- sagbes um trampolim para o reforgo dos sentimentos de apego, ternura, preocupagio, devogio ou deleite com a posse ou © mo- iro. No amor romintico, a nopélio do desejo erdtico do par sensasio fisica permanece subordinada a algo que lhe ¢ exterior. A satisfagio sensual é um instante que abrevia a histéria da relagio (08, cujo maior objetivo é a fruigzo do sentimento a jeitos a competéncia para distinguir entre a “pura satisfa- ” ea “satisfagio com a rememoragio da satisfagéo sen- sual ¢ sentimental que se pode ter com 0 outro” + ‘A educasdo clvico-sentimental, portanto, sempre manteve 0 valor moral das sensajSesno banc de reserva, Apens a consi duso dos sentidos. Os melhores, os mais nas como escada para chegar a0 topo da moraidade piiblica ou §. da privacidade 5 = tos individuos, deseével € 0 que pode ser sensorilmente ex- Perimentado como agradével, prazeroso ou extiticos indesejvel & o que pede tempo paras relzar on que 20s elias, no (ou trax 0 gozo sensorial esperado, O Outeo, como observou Bauman, atrai nfo por ser uma “chance para a agio”, mas por ser tuma “promessa de sensagéo” (1998: 123). No entanto, como qualquer ideal, o ideal da felicidade sensorial sempre tem uma face recalcada. Apesar da inclinagéo para o descompromisso com obrigagées morais, a personalidade somdtica se deixa adestrar com a mesma doci {duo sentimental aprenden a renunciar & sensualidade em proveito das emoges romantica- mente sublimadas. Toda norma moral cexige um dizimo em gozo, © truque da moral das sensagées ¢ fazer exer & mai le com que ia que a obeditncia & nova disciplina do corpo sempre traz vantagens ¢ jamais atribulag6es. Como procuraremos mostrar, no entanto, «se ideal de prazer tropesa © tempo todo em suas incongruénci- as, A melhor prova é a produgio cultural dos novos desvianter, No século XVIII, as grandes quest6es sobre a normalidade Psfquica tinham como centro nevedlgico a Razfo. A loucura era ‘arcsiea” como uma esp antetiormente, Keren Horney bi sonaldade near e contspatida via denominado de 194 t i OvEsTIGIO BA AURA ‘uma figura da destazo, No séeulo XIX, passamos da patologia Os desviantes oitocentistas eram os perversos; os que exibiam uma degeneracio instintiva responstvel pelas abominagées do desejo. Hoje, a figura do desvio é estulthcia Criamos um cécligo axiolégico no qual os “normals” séo os que dio mostras da vontade forte. No pélo oposto, esto os fracos, os piores, os estultos. Estulticia & a inépcia, a incompeténcia para exercer a vontade no dominio do corpo e da mente, segundo os preceitos da qualidade de vida, O louco de outrora ameagava a cultura por ser um contra-exemplo vivo da idéia do homem como da razio para a do ins srados, excessivos, regredidos to ameaga pelo mau exemplo da fiaquena de vontade, Em oposisfo & personalidade neurética de Karen Horney ou a personalidade narcisica de Lasch, a personalidade somatica tem = de extulto comesam, por isso, @ identidade aprovada. A estultcia & a contrapartida desviante da personalidade somética de nosso tempo. SOs estultos so, entéo, tipificados segundo o grau ou a na- dependentes ou adictos, isto é, 0s que néo tureza do desvio {que nao podem moderar o ritmo ou a intensidade das caréncias fisicas (bulfmicos, anoréxicos) ou mentais (portadores de sindromes de pnico, fobias sociais); <) inibides, isto é 08 que se intimidam com 0 mundo e néo expandem a forga de vontade, 195, SURANDIR FREIRE COSTA como os distimicos, os apdticos, os nio assettivos, os “no assu- midos"; d) estressados, isto é, 08 que nao sabem priorizat os in- vestimentos afetivos ¢ desperdigam energia, tornando-se perdu- lirios da vontade: ¢) deformados, isto &, 0s que ficam para tris na maratona da fitness: obesos; manchados de pele; sedentétios; envelhecidos precocemente; tabagistas; nfo siliconados; nfo lipoaspirados etc. O mais importante, contudo, na formaséo das bioidentidades, so as antinomias psicol6gicas produzidas pelas regras draconianas da bioascese. A primeira delas consiste em definir a vontade como mestra do corpo, mas atribuir seus malogros a causas orginicas ‘do intencionais. Os sujeitos sio, a0 mesino tempo, instados a se reprovar emocionalmente pelo desvio de estulticia e a se isentar moralmente pelos insucessos do autocontrole, que sfo sempre imputados a causas fisicas. A teia cultural que anima a contradigfo se bascia no jogo da tutela ¢ da culpabilizagio, O individuo deve creditar o sucesso de seus esforgos & sua vontade, Mas, em caso de fiacasso, deve sesentip Sficamente doente e, por isso mesmo, nao contestar o valor ¢ 0 sentido dos ideais corporais dominantes. O anscio por indepen- déncia, ao falas, deve ser visto como uma anomalia biolégica © ‘no como deniincia da estreiteza da norma social em face da di- versidade expressiva da vida humana, O sujeito vé-se, simultane- amente, como onjpotente — a0 acreditar que pode eriat o eu moral € psicolégico a partir da pura expetiéncia sensual do corpo ~— ¢ como impotente ~ ao ser forgado a cret que o sentido do soffi- mento humano est{ insctito nos genes ou nos citeuitos neuro- hormonais. A segunda contradisao tem a ver com a relacio 20 outro. Em muitos casos, o cuidado de si, centrado na forma corpérea ¢ 196 5 mos acusa, nem el CO VESTIGIO BA AURA ‘no goro das sensagbes, vem desgastando a importincia emocio- nal do outro humano, Todavia, continuamos a precisar do reco- nhecimento do outro para estarmos seguros do valor de nossos ideais de eu. Chegamos, entfo, a um beco sem safda: menos- prezamos 0 outro préximo, em seu papel de avalista do que somos, ¢ idealizamos 0 outro andnimo, cuja preocupagio emo- cional conosco é igual a zero. Aqueles que, de fato, tém respon- sabilidade para conosco néo conseguem se sobrepor aos mode- los impessoais das celebridades ou das figuras de outdoors veicu- © corpo da publicida » no se dirige direta- mente a nenhum de nés ou considera as peculiaridades de sas histérias de v low A moda, em sua neutralidade moral e constante mudanga, nfo lade, entretanto, nfo se , 40 provocar © nosso dessjo de | apenas se apresenta como um ideal que devemos perseguis, sem consideragio pelas conseqiiéncias fisi- ‘. co-emocionais que venhamos a softer. Néo hé, por conseguinte, como saber qual 0 justo caminho da virtude bioaseétia, Tudo que resta é corter atrds, sempre em atraso e de forma angustian- te, do corpo da moda, Até, é claro, chegar a velhice e sermos convencidos a assumir uma outra bioidentidade, a da terceira ‘dade, iltima tentativa bioascética de permanecer jovem, vital, por dentro da moda. A terceira contradigio conceme & relagio da felicidade com 0 prazet. Quanto mais falamos em minimizar o softimento otimizar o prazer, mais nos privamos de prazer € mais nos ator- mentamos com os softimentos que nfo podemos evitar. Tornamo- hos seres espartanos, aneddnicos e cronicamente ansiosos diante da perspectiva de dores frustragées. A cada episédio de softi- ‘mento, reagimos como se algo extraordinério nos tivesse atingido 197 surat costa ‘e como se, de alguma mancira, o que padecemos tivesse sido cau- ._ sado por falhas no cumprimento de nossos deveres bioascéticos. “SoA quarta contradigio, por fim, é de natureza propriamente freudiana. A cultura somética, ao esvaziar a moral dos sentimen- tos em beneficio da moral do corpo ¢ das sensagdes, privilegiou a clareza da vontade ¢ da aparéncia fica, em prejutzo da obscuti dade do desejo © da profundidade emocional, Com isto, privat © sujeito de um potente mecanismo estabilizador do senti- a mento da identidade, qual se imidade do olhar do outro. © poder de ocultar da luz do piblico 0 que é sensivel ¢ deli- a capacidade de dissimular a sua cado cm nésfvorece 0 sntimento de segurang conn poses intrus6es da reaidade externa. A a tal, em especial a do romantismo, concedeu ao to quase sagrado de escolher a quem revelar a sua id ‘maneira © nas ocasi6es que julgasse mais favordvel A cultura narcfsica da exibigio publicitria, como mostrou Lasch, desferiu um duro golpe nessa moral ao explorar o hébito das confisxées pilicas de segredos sexuas © emocionai ae | te devassada rt olbar do outro andnimo, = sentimental podiam ser rebeldes ou re- calcitrantes ao apelo do Outro. © individuo, protegido pelo de- coro, podia se entregar ao deleite clandestino de impulsos, aspi- ragGes, fantasias ¢ prazeres que escondia de todos, pela fachada da * uma s6 © mesma coisa. Quanto mais a personalidade somitica se 198 OVESTIGIO EA AURA impée como norma do ideal do eu, mais revelamos a nossa alma a0 outro, sem chances da defesa pela ocultagio. Disso resultam algumas das caracteristicas marcantes do individuo atual. A primeira € a desconfianea persecutéria. Dado que a identidade ¢ exposta, de pronto, na superficie corporal, outro se tornou um observador incbmodo e invasivo de nossos \() possiveis desvios bioidentitérios e no um parceiro de ideais \ ea Seam antine beeen comuns. Se nos sentimos bem com a nossa forma fisica, teme- ‘mos que 0 outro nos inveje por nfo ter alcangado 0 que alcanga- nae € nos sentimos mal, ele é um suposto acusador, que nos — humilha pelo simples fato de encarnar a norma somética que lutamos, encarnigadamente, para corporificar. A segunda caract © século XIX co- niheceu a sensiblerie sentimental, ou seja, a predisposicéo para ica € a sensible teagit com exagero emotivo a qualquer estimulo de ordem afetiva, Na atualidade, desenvolvemos uma espécie de hipersensibilidade Nos \drados por qualquer observa- ica, pois estamos entregues, sem a qualquer problema no dom{nii da aparéncia corpor: sentimos, com freqiiéncia, m sf0 sobre a nossa aparéncia defesas, a0 escrutinio moral do out >. Qualquer comentério so- bre habitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma tagarela, bizarra e infantilizada competigfo sobre quem faz ais exercicioss quem come menos gord mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e firmacos naturais etc. Em paralelo a isto, todo consumo de comidas com alto teor calérico. é precedida de verdadeiros atos de contrigéo ¢ . Os que 8, do ponto rituais preventivos de expiagio da falta a ser com: nfo aceitam jogar 0 10 sio vistos como problema que’ se entregam, sem escriipulos, & 199 JURANDIR FREIRE CosTA OVESTICIOE A AURA autodestrugfo fisica e moral, Afinal,pensamos, sem a boa for- consigo, isto é live da invasio persecut6ria do ideal da ‘ma, no teremos oportunidade do século é o mal do corpo. a Por fim, & preciso idade sensori- A terceira caracteristica é a superficialidade e uniformidade al nfo apresenta apenas lados negativos, Em *Notas sobre a cul- Je ocasifo de ctitcar o engodo de ver sempre algo de “mau” onde néo se reconhe- shar que o ideal da compulsivas. Por no podermos ocultar o que, eventualmente, *, neste volume, gostarfamos de guardar em sigi , adotamos a estratégia da superexposigio como forma de passar despercebidos. O modo ccem os tragos familiares do que se julga ser 0 “bom”. No momen- mais eficiente de nfo se fazer notar é “ser como todo mundo”, to, chamo a atengio para o fato de que o declinio do sujeito sen- A compulsio da boa forma se tornou, assim, a titica de prote- j timental, do sujeito interior do intimismo, no deve levar a la- so da identidade pela trivializagio do semblante corpéreo. / ‘mentos tediosos em busca do mundo perdido. A subjetividade, ‘Nao se presta atengio ao que & comum, repetitivo e sem ne- como a vida, nfo tolera predicados definitivos. O tempo, disse nhuma particularidade que atraia nossa inteligéncia ou Jankélévitch, empresta, nunca dé, afetividade. Estamos em vias de destronar o império da introspecgio pelo exercicio da agio; 0 gosto por realidades psicolégicas imutiveis pela pritica de realidades transicionais. O fendmeno & promissor. A personalidade somdi ‘a se tornou uma espécie de . antipersonalidade pelos préprios mecanismos que a co! mi i Al De um lado, s6 dispée das aparéncias corpéreas para singulariz4- Podemos, a partir de agora, imaginar formas de subjetivagio me- mo romAntico, que produziu, entre ou- nos atreladas a0 tras coisas, moralismos sexuais sufocantes; culto a0 sofrimento Procura anul4-la para escapar ao sentimento persecutério da retragdo do interesse pelo Bem comum; desprezo guint idade ao olhar do outro, . fcagio dos poderes do desejo; subestimagio da SSO resultado dessa identificagio pessoal pela banalizagéo do > poténcia da versa ee tte, apuguanamncatn don Gaal de ‘eu corporal & 0 sentimento de que o gigantesco esforco despendido felicidade, progressivamente confinados a esfera do éxtase amoro- na pritica da bioascese é indtil, pois sempre passa a0 lado do Sy; so-sexual € evasio pelo consumo de drogas ¢ entretenimentos alvo. Todas as privagbes softidas em nome da boa forma, em wti- : massificados. ‘ma instincia, redundam na experiéncia de irrelevincia e futilida- A cultura somatica, queiramos ou nfo, nos empurrou para o de do eu. O sujcit lidade comum. Estamos tendo a chance de nos viver e se aficmar como bi bem-sucedida ¢ 0 desaparecimento do campo do olbar do outro. O reso do reconhecimento imagindtio ¢ a invis pela massificagio. Sem isto, 0 superficial e niforme vive em luta para sobre- espago da vi liberar da atmosfera asfixiante do sentimentalismo interior, cujo ia prescreveu. Cabe a todos, ¢ aos psicanalistas ‘estar atentos aos novos infcis, sem saudade do que tempo de vi em especi iduo jamais consegue estar caducou pela préj isttncia de se tornar imortal. 200 201 sunanbin FIRE cost Bibliografia BARROS, Maria Theresa da Costa. 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