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MITOLOGIASURIDICASDA MODERNIDADE ~ “0 “discurso oficial” proferido na ocasiao em que foi entre gue o Prémio Internacional Duque de Amalfi, cujo titulo inspirou essa obra; - Aconferéncia de conclusio proferida em um congresso em Florenca, sobre a codificagio; > aconferéncia ministrada em Rimini, no “Meeting per Vamicizia tra i popoli”, por ocasiao do Encontro que tinha Por tema Se ti distrai, I'Europa ® giacobina. I 16 foi JUSTICA COMO LEI OU Desses, somente 0 discurso em Amalfi foi transcrito no LEI COMO JUSTICA? seu texto original. Os demais foram modificados para serem adaptados & presente coletanea. : Observacées de um historiador do direito* Em todos esses ensaios, o martelo bate sobre o mesmo pro- fundo e penetrantissimo prego, e é natural que existam tam- bém, ao longo da obra, repetigtes e insisténcias. Valem para indicar ao leitor os pontos que o autor considerou essenciais ©, portanto, relevantes e centrais 4 sua atencio. * Conferéncia proferida em Pisa, em 23 de novembro de 1998, no ambito do Semindrio promovido pela Faculdade de Dirsito dx Universidade de Pisa, no ano académico 1998-1998, coordenado pelo Prof. Eugenio Ripepe, sobve © tema "interrogagies sobre o direito justo": Uma vereSo proviséria fo! publicada pelo Atenew pata a utiizagio exclusiva dos estudantes (Pisn, Servigo editor AI Universitrio, 2000). 1. Direitoe lei entre medieval e moderno, —2. A ordem juridica na pers- pectiva medieval. — 3. Os sinais do “modemno”: estatalidade do dircito e transfiguragio da lei. ~ 4. Um itinetério “modemo": do direito & lel 1. Direito e lei entre medieval e moderno Uma circunstancia que sempre me alarmou profunda- mente, a0 menos desde o periodo em que era estudante na faculdade de direito, é a teimosa desconfianga que o ho- mem do povo, o homem comum, tem no que diz, respeito ao direito. Uma desconfianga que nasce da conviegao de que 0 direito é alguma coisa bem diferente da justica, enquanto se confundé com a lei (talvez possa-se especificar: justo por- que se confunde com a lei). © hemem do povo, portador do bom senso do homem comum, néo esté errado. O direito mostra-se para ele so- mente como Ici, ¢ lei é 0 comando autoritario que cai do alto sobre a indefesa comunidade dos cidadaos sem levar em conta os fermentos que circulam na consciéncia coletiva, indiferente A diversidade das situagdes que pretende regu- lar. De fato, é correntemente ensinado que sao virtudes co- mums da lei: os aspectos abstrato e geral, ou seja, a sua indi- ferenca perante casos e motivos particulares; a rigidez, ou seja, a sua insensibilidade as possiveis diferentes exigéncias dos seus destinatérios; a autoritariedade, ou seja, a in- discutibilidade do seu contetido. a MITOLOGIASURIDICASDA MODERNIDADE que o Fstado modemo assegura aos cidadaos é somente ‘um complexo de garantias formai omente 0 ato que provém de determinados érgios (normalmente o Parlamen- to) e segundo um procedimento detalhadamente especifica- do. 0 problema do seu contetido, ou seja, da justiga da lei, da é lei correspondéncia ao que a consciéncia comum reputa justo, ¢ substancialmente estranho a essa vi io. Obviamente, a justi- ca permanece como objetivo do ordenamento juridico, mas € um objetivo exter 1; os cidados podem somente ter a espe- ranga de que os produtores de leis — que so, pois, os detento- zes do poder politico ~ ajustern-se a essa, mas devem de qual quer modo prestar obediéncia também a lei injusia. Recordo sempre com horror 0 que escrevia, em um condendvel paro- xismo legalista, o meu mestre de direito processual civil, Piero Calamandrei, sobre a suprema necessidade de obediéncia até ‘mesmo ao preceito legislativo que gera horror ao cidadao co- mum’. E, no século XX, nao faltaram leis que horrorizaram a nossa consciéncia moral: posso indicar ao menos os provimen- tos ilalianos pela tutela da raca, de 1938, aberrantes e repug- nantes no seu perverso racismo, que ainda hoje sentimos pe- sar como vergonha sobre a civilizagio juridica italiana’. yao de desconfi- O homem do povo tem, deste modo, ra: se 0 dircito 6 lei, e se lei é somente um comando abstra~ | 1) CALAMANDREL, Pero, La certezza del diritto ele responsabilita dete dotting {1932}, atualmante em Opere giuriche. volume 1. Napol: Morano, 1985. > Tata's das normes emanadas durante 2 ditadura fascsta de Benito Mussolini, Catomente irspiadas nas leis raciis em vigor a parr de 155 no Estado nacional: ocilsia alamo (Nota do trator). USnIga COMOLEIOULEICOMORSTICA 6 to com conteridos indiscuttveis, pensado e desejaco no lon- ginquo Olimpo dos palacios do poder, 2 sua identificacao sm um raio que cei sobre a cabega dos desavisados nao pois tio peregrina. CO historiador do direito pode, porém, mostrar um horizon- te mais razodvel para o homem do pov: situagdo de hoje, em aque comesam a florescer novos fermentos, 80 possui raizes, vem distantes, nem profundas; nascent agora RA Poucoy ‘mesmo paganda sui e persuasive pretence fazer com se uma pro} ’ ssentasse a0s nossos olltos como unica ¢ otimizada essa se apres “ solucie. O hstoriador do direto que, por seu deve? profissio- hal, ama estender o sew olhar a tempos longings, isto 6, fazer conexses e comparacbes, pode alertar para ducio do direito lei, ea sua conseqtente identi DeaGi0 um toritério, éfruto de uma escolha politica que es! ids, «queues Cxperitclas historicas wiveram ‘aparelho aut proxima de ve um modo diferente a sua dimensio juridica, como Por exer plo, acontecea coma medieval ‘A visio histérica consola porque retira o carder absolu- i to das certezas de hoje, telativiza-as pondo-as °= fricgB0 wm cortezas diferentes ou opostas experimentadas 10 pas] gado, desmitifica 0 presente, garante que ests sejam analit liberando os fermentos atuais da s- gente e estimulando o caminho para sadas de mode critico, tética daquilo que € vi a construgéo do futuro. por isso qute me colocarei em um abservatorio especial- a fc ieval € mente comparativo, entre 2 civilizagso juridica medieval 26 MTOLOGIAS JURID:CASDA MODERNIDADE a civilizagao juridica modema, com o objetivo de analisar como a relagio entre direito, lei e justica tenha sido vivida em ambas. Acredito que através dessa comparagéo a nossa anilise possa tomar-se mais encorpada do ponto de vista critico, j4 que, perante a formalista solugio modema de uma lei como justica, ganharé consisténcia a substancial solugao medieval da justiga como lei. “Medieval” e “Moderno”; dois planetas interligados por uma continuidade cronolégica, mas marcados por uma efe- tiva descontinuidade, que é efetiva justo porque a profunda diversidade nas solucées adotadas tem origem em fundamen- tos antropolégicos radicalmente diferentes. Colocar-se, por tanto, em um ideal de fronteira diviséria, acentuars a tipicida- de que ha pouco se acenava, assim como vird a exaltar a peculiaridade da modemnidade juridica. Ags olhos do jurista, civilizagdo medieval e civilizagao moderna,parecem coincidir somente em um ponto: ambas so civilizagdes juridicas, significando, de modo elementar, que ambas tém muita consideragio pelo direito, consideran- do-o como estrutura fundamentadora em seus seios. Mas a coincidéncia formal e aparente é questiondvel: aprofundando a analise, mesmo sob esse aspecto, as escolhas se fazem dife- rentes, para nao dizer opostas. verdade: a presenca do di- reito é intensa em uma e em outra, mas se tratam de presen- cas ~ por assim dizer ~ inversas: ao tolal e inegavel respeito com o qual a di nensdo juridica circula constantemente nas veias do organismo medieval, contrasta a atitude de comple- JUSTIA COMOLEIOULEECOMOFUSTICA a” ta instrumentalizagao que domina no_modemo; enquanto 6 pana — para primeiro ~ entre os fins supremos da soci- edade civil, torna-se ~ para o segundo — um instrumento, seja mesmo relevante, nas maos do poder politico contingente. 2. A ordem juridica na perspectiva medieval O universo medieval caracteriza-se, aos olhos atentos do historiador, por exprimir no seu sei aquilo que, em outra olitico néo consumado* ocasidio, apontei como wm poder entendo por ndo consumado nao a falta de efetividade (que fregtientemente existe e que &s vezes pode se agravar, trans- sstagées tirdnicas), mas sim. formando-se até mesmo em mani a auséncia de um projeto totalizante, onicompreensivo. Em outros termos, 0 poder politico nao pretende controlar a integralidade do fendmeno social, ou melhor, distingue-se por uma indiferenca substancial em relagdo aquelas zonas ~ am- plas, ou mesmo amplissimas ~ do social que nao interferem diretamente no governo da coisa publica. Com esse fendmeno, tem-se uma primeira conseqiién cia\de grande relevancia: 9 social, fundamentalmente au- ténomo, sem obrigagdes vinculantes, vive plenamente a sua his:6ria em todas as possiveis riquezas expressivas; deixa- do livre, dd livre curso a sua criatividade através de mi- Ihares possiveis combinac6es, ligagées, sedimentacGes,, do plano politico ao econdmico, do estamental ao profissio- 37'Na avallagdo sintéica que tentames fazer na obra Ordine ghvriico medion. Baris Laterza, 1995. 28 MITOLOCIASURIDICASDA MODERNIDADE nal, do religioso ao familiar, ao cla, as estirpes nobres, nos propondo uma paisagem com infinitas figuras corporativas, que s30 a marca do vulto medieval e, por inércia histsrica, também pés-medieval, Se vem acrescentada uma psicologia coletiva percorri- da por insegurangas gerais e marcada pela humildade sin- cera dos individuos, nasce uma civilizagio que possui dois protagonistas essenciais: no fundo, incumbente e condicio- nante, a(fatureza cosmica com os seus fatos primordiais, vista como alvéolo protetor e garantia benéfica de sobrevi- véncia, mas também na sua indomvel imensiclao; dentro ia cotidiana, afcomunida- das tramas do tecido de exi de Jnicho indispensavel para o desenvolvimento individu- al nas muiltiplas manifestages que exprimem toda a com- plexidade da vida comum. E um mundo de formagies sociais que se delineia perante 0s nossos olhos, inacreditavelmente articulado e rebuscado, certamente pleno devido ao incessante gerar-se, integrar-se, estratificar-se das mais diferentes dimensoes comunitérias, onde o individwo € uma abstragio, jé que pode ser concebido somente no interior da consolidada rede de relacées ofereci- das por aquela dimensao. E daqui que brota e é aqui que se coloca o direito. Nao como o fruto da vontade desse ou daquele poder politico contingente, desse ou daquele Principe, mas como uma rea~ lidade historicamente e logicamente antecedente, que nas- ce nas vastas espirais do social, com esse se mistura, desse JUSTIGACOMOLEOULEICOMORISTICN ra se incorpora. O direito é um fendmeno primordial ¢ radi da sociedade; para subsistir, no espera os codgulos histéri- 0s ligados ao desenvolvimento humano e representados pe- las diferentes formas de regulamentagio piiblica. Ao con- Indio, para ele € terreno necessatio € suficiente as flexiveis o:ganizagées comunitirias em que 0 social se ordena e que ainda nao se fundamentam na polis, mas sim no sangue, na {6 religiosa, na profissio, na solidariedade cooperativa, na colaboracao econémica. Resumindo: artes existia 0 direito; o poder politico vem depois. Tentando com essa afirmagao, aparentemente sur- preendente, salientar que, na cidade medieval, o direito re- pousa nos estratos profundos e duradouros da sociedadle como se fosse uma ossada secreta, estrutura escondida dessa. ima begunda consequiéncialemerge, relevante: 0 dircito nao 6a voz do poder, nao leva a sua marca, nao sofre os seus inevitaveis empobrecimentos, os inevitéveis particularismos. ‘Com uma imprescindivel especificagao: certo, existe também aqui uma parte do juridico que € ligada e coligada a quem detém 0 governo da coisa publica e € 0 que hoje freqiiente- mente qualificamos como direito constitucional, adminisira- tivo, penal, mas o direito por exceléncia, a razdo civil chama- da a regulamentar a vida cotidiana dos homens, toma a sua forma direta e imediatamente pelo social e sobre as suas for~ geneticamente, um denso_ gas se desenha. Seus canais sa florescer de costumes, em medida prevalente a respeito das poucas intervencdes autoritirias dos Principes; sistematica- MITOLOGIAS JURIDIC AS Da MODERNIDADE mente, um rico ordenamento operado, mais do que por legis: adores, por mestres teorizadores, juizes, tabelides ow sim- ples mercadores imersos na pritica dos negécios e intérpre- tes das exigéncias que essa impoe. Para a civilizagio juridica medieval, pode-se corretamen- te falar de autonomia do juridico, relativa, mas autonomia, do mesmo modo que se falou anteriormente de autonomia do social. Indubitavelmente, 0 direito nunca flutua na histé- ria, a0 contrario, tende sempre a encarnar-se nela ¢ a compe- netrar-se em si mesmo; porém, existe aqui uma grande pluralidade de forcas que, circulando livremente na socieda- de, orientam-no, forcas espirituais, culturais, econémicas, todas as forcas que livremente cizculam no social. O social ¢ 0 jutidico tendem a se fundir, e 6 impensavel uma dimens4o ica vista como mundo de formas piitas ou de simples comandos separados por uma substincia social. E uumdlterceira conseqtienel} emerge, igualmente relevan- te, e 6 ja sumariamente delineada na ultima afirmacdo. O direito, emanagio da sociedade civil na sua globalidade, 6 aqui realidade radical, ou seja, de raizes, das mais profundas ¢ imaginaveis raizes; € realidade que fandamenta tody o edi- ficio de civilizacio, e, como tal, intimamente ligado com os grandes fatos primordiais que fundamentaram aquele edifi- cio; fatos fisicos e sociais de um tempo, pertencentes & natu- reza césmica, mas absorvides como fundamento tiltimo e pri- ‘meiro de toda a construgao social. JUSTICA COMO LEIOULETCOMOTUSTIGA at Visto do nosso angulo de observagio, 0 resultado que se manifesta em toda a sua tipicidade historica é um direito que tlio esté nos projetos de um Principe, que ndo sai da sua}, cabeca, que nao explicita as suas vontades benéficas ou ma- | Iéficas, mas de qualquer modo potestativas, que nao é con- i trolado om Se Fosse ‘uma marionete, que ndo € manobrado | para beneficiar o Principe. Esse dircito tem uma sua onticidade, pertence a uma ordem objetiva, esta no interior da natureza das coisas onde pode-se e deve-se descobri-lo e leo. Intima sabedoria do direito: escrito nas coisas por uma suprema sa- piéncia e a qual decifragao e tradugdo em regras podem ser confiadas somente a uma classe de sébios, os tinicos capazes de fazé-lo com prudéncia. ‘Torna-se consegiiencial 0 fato de o direito ser aqui con- cebido sobretudo como interpretagao, ou seja, de consistir principalmente na intensa atividade de uma comunidade de juristas (mestres, juizes, tabelides) que, tendo por base textos respeitdveis (romanos ¢ canénicos), 1é 0s sinais dos tempose constrdi um direito autenticamente medieval, mes- mo tendo como custo a possibilidade de ir além ou contra 06 textos que freqiientemente assumem 0 reduzido papel momentaneo da validade formal. Ninguém mais do que Tom: que no final do século XIII agregou os estudos e promoveu a antropologia @ a ciéncia politica medievais, traduziut com tanta nitidez uma certeza similar em uma definicdo essencial, cuja substancia circula e é amplamente recebida mesmo junto aos juristas 22 MITOLOGIASTURIDICAS DA NODERNIDATE profissionais. E a definicdo de lex, justamente celebrada, que ‘convém analisar com atengao porque, muito freqiientemen- te, 0 seu vigoroso contetido de pensamento politico-jurictico {oi banalizado, deixando-se monopolizar pela também rele- vante referéncia ao bem comum como finalidade da norma. Leiamos-na por nossa conta no centro da qurestio 90 da “prima Secundae” da “Suma Teoldgica”, dedicada & “essentia legis”: “um ordenamento da razao voltado ao bem comum, procla- ‘mado por aquile que pssui o governo de una comunidade”. Nela, um elemento se salienta: a dimensio subjetiva cede lugar A dimensio objetiva; em outras palavras, 0 sujeito emanador nao ¢ tao relevante quanto o seu contetido objeti- vo: que 6 duplamente especificado; consiste em um ordenamento, ordenamento exctusivamente demandado pela razio. Ordinatio 6 a palavra que desloca o eixo da definicao do sujeito ao objeto, porque insiste ndo sobre a sua liberdade, mas sobre limites & sua liberdade; ordenar é, efetivamente, ‘uma atividade vinculada, jé que significa tomar consciéncia \de uma ordem objetiva preexistente e nao eludivel dentro do (qual deve ser inserido 0 conterido da lex. B justo por isso que a razdo ver identificada coma.o.ins- trumento do ordenar, ott seja, em uma atividade psicoldgica prevalentemente cognitiva: porque o conhecimento ¢ 0 mai- + Summme Theolegicae, Pena Securelae, g- 90, a 4 JUSTICA COMO LEIOULEICOMOJUSTIGA 33 or ato de humildade que um sujeito pode realizar em relacio } ‘ao cosmos ¢ a sociedade, porque © conhecimento € a proje- ‘cho do sujeito além da prépria individualidade para desco- | rir na realidade externa a ele as verdades que essa contém, para descobrir a ordem projetada e realizada pela Divindar de. E verdadeiramente essencial a razoabilidade da ex, ou seja, a determinada e rigidissima correspondéncia do seu contevido a um modelo que nem o Principe, nem o povo, nem a classe dos juristas criam, mas sao chamados simplesmente ‘a descobrit na ontologia da ctiagao. Neste contexto, a lex, que possui uma dimensao cognitiva seguramente prevalente sobre a volitiva, nao pode ser somente forma comando; é, antes de tudo, um contetido substancial determinado por- que 6, antes de mais nada, leitura da realidade. Retornando as muitas e criativas etimologias que encon- tram Iugar na cultura medieval, viria a vontade de dizer: ex mais lendo do que ligando; e por isso que se prope ‘Como indispensdvel a ratio, a azo, por ser indispensavel & capacidade de leitura ¢ de medida do real. O que ¢ proprio da razio, tanto que & possivel afirmar que a lei consiste 80- mente na razao”. Perante esse apelo obcecado a razoabilidade, facilmente vem ao jarista italiano de hoje uma desoladora considera ‘qo: porque —na nossa tradigao de direito piiblico ~ foi posst- vel chegar a falar de “razoabilidade da Jei”, idéia considera- 5 Summa Thet logicae, Prima Secundae, «90, eat 1 34 MITOLOCIASTURIDICAS DA MODERNIDADE da intimamente desconsagrante por uma mentalidade tenaz~ monte legalista. Tivemos que esperar as recentissimas aber- turas da Corte Constitucional; mas isso aconteceu somente ha pouco tempo, 3. Os sinais do “moderno”: estatalidade do direito e trans- figuragao da lei Recolhemos 0s principais pontos do discurso desenvolvi- do até agora: a ordem juridica na civilizagao medieval é, exce- tuando algumas zonas delicadas conexas ao governo da poli uma realidade éntica, ou seja, presente na natureza das coi sas, realidade particularmente radical por ser exuberante as rafzes de uma sociedade e por isso identificada com 0 costu- me, com 0s fatos caracterizantes que dao o vulto peculiar a uma civilizagéo historica; certamente, por isso, apresente-se sempre sob a égide da complexidade; realidade que nasce, vive, prospera, transforma-se, fora das espirais do poder priblico, 0 qual, gragis ao fato de ser inconsumada, no tem pretensbes excessivas, respeita o pluralismo juridico, respeita o concurso de forcas que a provocam. Dimensio historica autenticamen- te medieval, esta da relativa indiferonga do Principe em rela- ‘cao ao diteito, mas que, por inércia, que freqiientemente € ele- mento primério dos teatros histéricos, chega ~ mesmo se dis- cutida, contestada, corroida - até aos grandes movimentos politicos e juridicos do final do século XVI ‘Temos dito: itinerdtio que desembocard na nova perspectiva de relaggo discutida, contestada, corrofda; e é assim. O JUSTICA COMO LEU LEICOMOJUSTIGA 35 entre poder politico e ordem juridica que, na sua perfeita in- versio a respeito das solugbes medievais, constituir arquétipo modemo, é uma estrada longa e acidentada, longa quase cinco séculos, onde novidades arrogantes misturam-se com as conspfcuas resisténcias de uma ordem que tinha con- seguido se fundir com 0s nervos mais profundos da sociedade. no Lentamente, mas incessantemente, emerge uma nova fi- | gura de Principe, e também uma conexao totalmente nova entre ele ¢ 0 direito. O novo Principe é, politicamente, 0 fru- to de um grande processo histérico totalmente voliado a libertar o individuo dos lacos em que a civilizagao prece- dente o tinha inserido. Quanto mais o pessimismo medieval) tentou inserir o individuo no tecido protetor, porém condicio- nante da natureza césmica ¢ da sociedade, tanto mais 0| planeta modemo ~ em mazcha sempre mais decidida a par tir do século XIV ~ esforcava-se para liberar o individuo, | cada individuo, de todas as incrustagées sedimentares que se encontravam sobre ele Tal fendmeno acontece, antes de tudo, em nivel geral an- tropoldgico: estamos na génese do individualismo modemo, Taso acontece também na ciéneia politica, que aqui nos inte- ressa, Também o Principe, esse individuo modelo e modelo de todo individuo, softe um processo de liberacao similar, libertando-se das velhas limitagdes medievais. Liberagdo, para ele, significa 0 desenho de um novo projeto politico, munido de uma couraga que tome possivel a absoluta solidao, que enconize somente em si mesmo justificacées, motivos, final 36 MITOLOGIAS JURIDICAS DA MODERNIDADE dades;e 0 poder que vem colocado nas suas maos perde aque- le contesido delimitado por esse fundir-se na velha ordem| feudal, e aproxima-se sempre mais da “poténcia absoluta ¢ perpétua” teorizada no final do século XVI na “République” de Bodin’. O novo Principe é um sujeito que nao ama morti- ficacdes provenientes da realidade desse mundo, que nao esté ‘em didlogo com a natureza e com a sociedade, que no tole- ra humilhar-se como simples cabeca de uma relagao. Ele ~ individuo de absoluta insulariedade ~ tendera a projetar para | 0 exterior uma vontade perfeitamente definida, que encon- \ trou jé nele toda e qualquer possibilidade de justificagao. Interessa-nos, em particular, a nova conexdo entre esse Principe e a dimensio juridica: lentamente, mas incessante- mente, a velha psicologia de indiferenga em relagio a gran- des zonas do juridico é substitufda por uma psicologia extre- nvolyimento mamente atenta, uma, sempre maior na producio do direito. Tudo isso, bem inseri- dono interior de uma visio de poder politico como potestade onicompreensiva, potestade sempre mais consumada. Inicia- se uma longa estrada que vera o Principe sobre uma trinchei- xa de batalha contra toda ¢ yualquer forma de pluralismo | social e juridico. 5° java © centnts politico francs Joan Bodin, que escrevew na segunda SoS SeNOSVESE a tienes do ovo, tas tmbem de algunas lina do velho,presentes na Feange no final do mesmo século, Nos sous Six toes de la Répattigue o centisia pollico pereebe com lucider 0 novo modelo Ge Principe e do seu poder sobereno, enquanto que o juriata (como seré posnivel vee postariormente) sinda cantempie as persistinciat da Fadicadesima praxis foridsea mediova JUSHIGA COMO LEOULEICOMOJUSTICA ar £ um proceso desacobertadamente tangivel no reino da Franca, que é, para o cientista politico e para o jurista, 0 ex: traordindrio laboratorio histérico onde o “moderno” por pri- meiro toma o seu vulto mais determinado, incrementando cada vex mais os seus tragos. A histéria da monarquia fran- cosa do sécutlo XI ao século XVII é a historia de uma cada ‘vez mais intensa tomada de consciéncia por parte do Princi-| pe, da sua cada vez mais precisa percepsio da essenciali-| dade do direito no ambito do projeto estatal, da exigtncia| sempre maior de propor-se como legistador. Melhor, de con- cebet na produgdo de normas autoritérias o emblema ¢ 0 vir gor da realeza e da soberania, em oposigso ao ideal medie~ } val, que via 0 Principe, sobretudo, como juiz,juiz supremo, 0 grande justiceiro do seu povo ‘A linha de desenvolvimento corte nitida nos séculos tar do-medievais © protomodermos: ganharé sempre mais espa- co a normatizagao direta realizada pelo Principe, adentrando sempre mais etn zonas que antes eram consideradas prosDi- das; finaknente ~ e estamos ja no final do século XVIII ~ os atos de esparsa normatizagio transformaram-se em um teck ‘do normative bem programado, regido por uma abordagem orginica a0 disciplinar setores relevantes da experiéacia ju / ridica, que jé tende a substituir-se monocraticamente a0 ve, / ho pluralismo de fontes’. 7” Recordamos as grandes Ordonnances Laie XV. promulgadas ro final do séeulo XVI por 38 NaTOLOGIASJURIDICAS DA MODERNIDADE Ganha espaco 0 protagonismo da lei, nao mais entendida na vaga acepcao da lex de Santo Tomés, essa tiltima incline da a dissipar-se-no ius, mas sim no significado estzeito da loy, lei em sentido modero, voligio autoritéria do detentor da ['nova soberania e caracierizada pelos atributos da gene- ‘alidade e da tigidez. Mas um outro elemento discriminante salienta-se entre a ex dos medievais e a loy dos moderos: quanto a primeira, era marcada por contetidos e finalidades bem estabelecidos ~ a ‘razoabitidade, 0 bem comumy-, tanto j4 a segunda propée-se ‘como realidade que nao encontra em um contetido ou em um objetivo nem o seu significado e nem a sua legitimagéo social. Talvez ninguém melhor do que Michel de Montaigne, impiedoso, mas agudissimo observador de si e do mundo, na segunda metade do século XVI, soube expressar essa verda- de elementar: » | “as leis possuem crédito néo porque so justas, mas porque {sdo leis. £ ofundamento mistico da autoridade delas: no | tem outro fundamento, ¢é bastante. Freqiientemente sa0 fei- | |e \ \ A dose vem recarregada algumas linhas depois: “quem as obedece por serem justas, nao da a obediéneia | devidaaelas”. JUSTICA COMO LEIOU LETCOMOTUSTIGA 39 Eo faz desencalhando, de um modo que pode parecer im- prudente a um moralista, o dever de obediéncia do cidadio a qualquer tipo de pretexto conexo a0 contetido da norma! |A visio pessimista - que Montaigne, especialista no direi- to, contempla com os seus olhos eivados de wm corrosive ce- ticismo ~ traduz-se em um diagndstico preciso do que tinha se transformado a Joy na Franca na segunda metade do sé culo XVI: uma norma que se autolegitima como lei como voligio de wit siete sabEFANG. O organismo politico, jé ordenado em tia TobUsta Sempre mais robusta ~ estru- ura autenticamente estatal, precisa de um instrumento normative capaz de conter 0 fendmeno juridico e de vinculé- Jo intimamente ao detentor do poder, instrumento indiscuti- vel e incontrolivel, que finalmente permita livrar-se das ve- thas salvaguardas que falavam, com tima linguagem cada vyex menos receptivel pela Monarquia, de aceite por parte do povo ou dos organismos judiciérios e corporativos. i, ou seja, ‘A lei tomna-se uma forma pura, ou seja, um ato sem con- tevido, um ato ao qual nunca seré um determinado contetido adarocrisma da legalidade, mas sempre e somente a prove- nigncia do tinico sujeito soberano. © qual se identifica cada vez mais em um legislador, em um legislador embaragante, unindo intimamente a qualidade da sua criatura normativa 2 propria pessoa e a sua supremacia 3 Gaus nae Il cap. XIN De Formagto justice, ete gentithnue ds Proce aa re Cobos a figura do novo intelectual humanista,observador I= ¢ fom preconcelios da sociedad ercunstante 0 NATOLOGIASIURIDICAS A MODERNIDADE E, desse modo, nasce a mistica da lei, essa pesada hipo- teca da civilizagao juridica moderna; a mistica da lei en- quanto Jei, uma heranga do absolutismo régio que a Revo- Lucio do final do século XVIII acothera sem piscar, intensi- ficando-a e tomando-a cada vez mais rigida em relacdo as aberturas subsistentes do Antigo Regime, sob 0 acober- tamento de simulacros democraticos. E, em clima de con- quista ¢ ostentada mente injusta, assim como serd sacra a lei redigida e pro- secularizagio, serd sacra a lei intrinseca- mulgada por um soberano idiota, fazendo nosso 0 exemplo dado por Montaigne. A antiga sobreposi mes, opiniGes doutzinais, sentencas, praxis ~cede lugar & fonte 0.¢ integragio de fontes - leis, costu- tinica, que se confunde com a vontade do Principe, o tinico [personagem acima das paixdes e dos partidarismos, o tinico |capaz de ler o livro da natureza e traduzi-lo em normas, 0 nico ~ acrescento ~ que tem condigdes— como sujeito forte ~ le liberar-se com uma sacudida do emaranhado inextricdvel, ‘mas freqiientemente também irracional, de uso e costumes, © velho phuralismo vai sendo substituido por um rigido monismo: a ligagdo entre direito e sociedade, entze direlto € fatos econémico-sociais emergentes, & ressecada, enquanto se realiza uma espécie de canalizacao obrigada. O canal ob- viamente escorre entre 0s fatos, mas escorre no meio de duas margens altas e impenetréveis: politizagao (em sentido estri- to) e formalizagao da dimensao juridica sio 0 resultado mais impressionante, mas também 0 mais corpulento. JUSTICA COMO LELOULEICONO JUSTIA a O diteito ja se contraiu na lei: um sistema de regras auto- titérias, de comandos que foram pensados e desejados como abstratos ¢ sem elasticidade, insindicdveis no seu contetido, jA que ndo € da qualidade desse, mas da qualidade do sujeito Tegislador que tiram a propria autoridade. Em pouco tempo, no dima pré-revolucionério e revolucionério, a let receberia ‘um ulterior reforgo, 0 democratico, gracas a afirmada (mes- mo se néo demonstrada) coincidéncia entre vontade legislativa e vontade geral. Em pleno secularismo, 0 resulta~ do paradoxal é 0 perfeito cumprimento da mistica da lei, perebida de modo tio agudo por Montaigne. Se muitos al- tares eclesifsticos serdo cuidadosamente desconsagrados, ou- tros tantos — profanos ~ sero erigidos e consagrados ao culto da kei, juntamente com a teorizagio de uma verdadeira mi- tologia juridica (mitologia devido ao-fato de ser muito freqiientemente regida por um aceite substancialmente acritico, ou, 0 que dé no mesmo, ideologicamente motivado). Para nos mantermos na Franca, laboratério histérico con- cebido por nés como paradigma, estamos jé nas vésperas da codificagao geral, que seré iniciada a partir da zona tradicio- nalmente reservada de mado acirrado aos privados, ow Seja, pelas relacdes civis. Kfetivamente, o primeizo Cédigo que Napoledo 1 quis, em 1804, foi o Cédigo Civil Uni itinerdrio “moderno”: do diteito 3 lei O historiador atento ndo pode deixar de constatar a lent IDENT, Ceorgen Le Déclin ds adroit Etudes sur eisatonconteporsine Pans LG.DJ, 1949, preticie, p. Vi 6 MITOLOGIAS JURIDICAS DA MODERNIOADE em uma grande linha histérica que nasce no pasado, que no é destinada & exaustao no hoje, mas, ao contrério, proje- ta-se no futuro. Deste modo, o historiador paradoxalmente transforma-se na garantia do futuro para quem constante- mente se dedica ao direito positivo, submetido ao ris um imobilismo inatural. 0 ALEM DAS MITOLOGIAS JURIDICAS DA MODERNIDADE* * Ume generoae iniciativa do Municipio de Amalfi foi a insttuigSo em 1999 do Premio Internacional Duque de Amalfi, um des pouguissimos prémics reserva~ dos a um jurista, que teve como vencedor da sus primeira edicao o grande jrista italiano Pietro Rescigno. Em 2000, 0 promio fot dado a0 autor dos esc tos que seguem, as quais representam o texto da sia “conferéncla oficial”, contecida em 1° de setembro de 2000, na Sala do Conselho do Municipio de ‘Amalfi, segundo o programa do Comité organizador. Tratandose de um dis- ‘curso voltado a um pili heterogénco, conslituido sobretudo por nfo juris las, deverv ser consideradas como juslificadas algumas referéncias elements res, Na redagao foram omitidas as palavras que as cireunstincias petiam, pronunciadas no exon ABSOLUTISMO JURIDICO (ou: da riqueza e da liberdade do historiador do direito) 1. Absolutismo juridico: um substantivo e um adjetivo comuns, mas uma conjun¢ao nada comum. De fato falou- se e fala-se freqientemente de absolutismo unindo a quali- Ficagio de politico, religioso, cultural, mas nunca — que eu saiba — de juridico. A conjunco aparece nao apenas inco- mum mas também singular e pouco compreenstvel, se se atenta que com cla eu pretendi ¢ pretendo sublinhar um { fruto tipico da era burguesa, da era do liberalismo econd- mico, cuja baixa retérica dos lugares comuns da cultura | corrente assinala unicamente o vulto de um mundode con- ‘quistas libertarias, era de liberdades, era de direitos. { Ninguém quer desmentir este vulto, que permanece | relevante na hist6ria da civilizacio moderna. Com aquela conjungao € com a modesta e elementar reflexdo que lhe é conexa se quer apenas assinalar que ndo se deve ser ofusca- do e conquistado por aquele vulto gerboso, vistoso ¢ sem diivida nenhuma convincente, mas que existemn outros la dos mais escondidos — geralmente ignorados ou deixados 123 a parte — que convém iluminar para que se atinja 0 resul- tado de uma plena historicizagio e nao de um retrato lau- datério do mestno modo como, no pasado, os pintores cor- tesios muito freqtientemente faziam em seus pouco gra- ciosos soberanos. Aalguém, amante de artificialidades e habituado a tra- zer ofertas sobre os altares consolidados, poder parecer uma dessacralizacao. Sers, 20 contrério, unicamente a aqui- sigdo de uma visio mais complexa, mais autenticamente critica, 2. Esté exatamente aqui, a meu ver, o papel e a tarefa do historiador do direito, como tive ocasiio de apontar re- centemente em mais de uma ocasiao; ¢ o tema-problema do absolutismo juridico, evocado por nenhum outro que ndo o historiador do dircito, disso oferece demonstragao espléndida. Ble, se 0 é realmente, ou seja se tem realmente © privilégio de reunir em si o historiador e o jurista, 6 per- sonagem pela sua natureza dotado de extraordindria Tique- za e de extraordinéria liberdade com relacio 20 cultor do | direito positivo; e nao deve ter dentro de si, egoisticamente fechado, um tal diplice privilégio, mas exercité-lo num co- Isquid vive com quem é, por um lado, mais pobre, e por outro, menos livre que ele Riqueza muito singular! Que esté toda no seu manipu- lar com desenvoltura a vida e 2 morte: a vida na sua extensa plenitude, no seu balanco inteiramente realizado e ja con- cluido; ¢ a morte néo como vazio nao preenchido, mas como nexo vital, como relacdo entre um antes ¢ um depoi Singular riqueza mas também riqueza grande, que se apro- pria da totalidade do exprimit-se vital, que nao se limita 2s singulares vicissitudes individuais destacadas umas das ou- tras mas que € capaz de alcancar o fio que une a todos, que 124 co olho nfo vé mas que a todos sustenta quase como o fio de um colar, E liberdade singular! Que ¢ liberdade do enredamento do presente e do pesado vinculo do vigente. Se quisermos, 6 uma pobreza absoluta aquela do historiador, pobreza to- talmente parecida aquela do monge, sem sedugdes, sem satisfagdes sensiveis, mas também purificada da grosseira atides que vem dos lacos do cotidiano; uma pobreza que é para ele pureza do olhar liberado da paisagem tangivel, le- vera do seu ser todo projetado em uma dimensio supra- senstvel, ¢ por isso também plenitude espiritual. Esse personagem rico ¢ livre gracas 8 sua pobreza, tem,| exatamente por isso, 0 privilégio de assumir uma fungao| estimuladora, eminentemente critica, Outros disseram que € encarregado de um muito amplo cuidado de almas; cu me limitarei a sublinhar 0 papel da consciéncia critica ao | lado de um cultor de um direito positivo, do sujeito que ¢ | chamado 3 incdmoda fungi de colocar em crise as certezas no discutidas deste tiltimo, abalando as suas iméveis bases sélidas e desordenando a perfeita paisagem na qual ele tem | prazer em se inserir. ; \ ‘Uma grande desordem nessa paisagem perfeita é, justa- mente, 0 chamado desagradével mas, a meu ver, salutar, que é feito pelo tema do absolutismo juridico. 3. Fei em 1985, instigado por uma providente iniciativa de Giorgio Berti! voltada a refletir problematicamente so- 1A iniciativa foi o congresso, projetado e idealizado por Berti, sobre “autorita, consenso e prassi nella creazione e nella attuazione delle nor- ime giuidiche”, que se deu em Miao nos dias 26 e 27 de outubro de 1984 e cujos ‘anais’ foram publicados em Jus, XXXII (1985). No con- 13:0, 0 qual tha sido afetuosamente convidado, nio pude pastcipar Procurei atenuar 0 lamento do amigo orgenizador, decepcionadissimo 125 +0 sistema das fontes do direito, que eu cheguei pela primeira vez — numa completa solidio — a apreender a plenitude do direito moderno como absolutismo juridico, mas foi em 1988, quando estavamos em toda a Europa por sermos submersos pelo grande auge das celebragses do bi- centenirio da revolucio ¢ da ‘Déclaration des droits’, que se fez explicito 0 discurso, com uma voz tanto fora de tom com relacao ao coro geral quanto no escutada e solene- mente ignorada, Nio me importando do muito escasso su- cesso do meu chamado, a0 contrério continuei teimosa- mente a reforgar e sublinhar, nos tiltimos quinze anos, aquilo que me parece um grande problema cultural, ou seja um problema que diz. respeito de modo central a cultura jurfdica moderna, * Absolutismo jurfdico é um esquema interpretative que, na minha visdo, tendia a esclarecer também as induvidosas — mas quase sempre ignoradas — conseqiiéncias negativas das concepgées juridicas burguesas. O grito da Marselhesa [ € 0s foguetérios disparados para as cartas dos direitos im- pediram muitas vezes de advertir quao limitador e inatural tinha sido o grande processo de panlegiferacao e de codifi- | cago nos séculos XVIII e XIX. O terceiro estado no poder tem 0 mérito nfo secundé. \ tia de haver intuico — dlferentemente do Principe do an- Ntigo regime — que todo o direito interessa ao detentor do poder politico e que esté no monopélio da produgio jurfdi- ca a garantia primeira e mais valida para aquele poder. Diante de um direito jé todo identificado na vontade estatal contentou-se com fontes certas ¢ claras, Iimpidas na com minha auséncia, prometendo fazer a recenso dos ‘anais’ assim que fossem publicados, © que foi feito nos Quademni Fiorentini (17, ano 1988) com um amplo ‘a propésito de: "Epicedia per Vassolutismo gi. Tidico (dieto gli ‘atu’ di wn convegno milanesee alld ricerca di segni)” 126 linguagem, robustamente pensadas (por exemplo 0 Code Civil), fundadas sobre um admiravel saber técnico, e nio se refleti o suficiente sobre duas conseqiiéncias gravissi- mas: o direito se identificava a esta altura s6 com o dircito oficial, e, como tal, tendia sempre mais a formalizar-se, en- quanto uma fronteira compacta se erguia entre o territério do direito e 0 dos fatos; a sociedade civil continuava a ser depositéria da producdo juridica somente na fabula-ficgdo da democracia indireta proclamada pela obsessionante apologia filo-parlamentar, mas na realidade dela (produgio juridica) restava clamorosamente expropriada. O direito era desenraizado da complexa riqueza do social para li se a uma s6 cultura, empobrecer-se ¢ identificar-se desa- gradavelmente na expressio do poder e da classe dele de- tentora. Absolutismo juridico significa tudo isso, mas para o hi toriador significa sobretudo ressecamento: o rigido monis~ mo ditado por imperiosos principios de ordem piblica im- pede uma visto pluriordenamental ¢, conseqiientemente, pluricultucal, concebendo um s6 canal histérico de escoa- mento munido de barreiras tao altas a ponto de evitar introduces e misturas vindas do exterior. A regra, a nor- ma, gera-se somente naquele curso; o regular, © normal, a partir dele se mede. Todo 0 resto tem duas pesadas condenagées: 9 ilfcito, ou, na melhor das hipéteses, 0 irre- levante. A minha modesta voz tinha uma finalidade modestissi- ma, mas que me parecia sacrossanla: chant a atengao também para a outra face daquela cabeca bifronte que é a codificacao do direito privado (manifestagio primeira ¢ su- prema do moderno direito burgués) e a geral panlegifera- ao; sem tolos e ingénuos quixotismos, assinalar a comple- xidade do grande fenémeno ‘codificagao’, 0 maior da hist6- ria jurfdica dos pafses de civil law; assinalar, livres da insu- 127 ortavel retérica pés-revolucionaria, as suas muh iplas implicagées inclusive negativas para a historia do dircito moderno justamente gracas ao seu carster fundamental de. monopolizacio por parte do Estado do mecanismo de pro- ducdo do direito, até mesmo do direito privado, que wine tradicao antiga e nunca desmentida tinha quase inteira. mente deixado na érbita dos privados 4. Pela ordem juridica burguesa o direito privado toma « fato um valor que, antes, absolutamente no dispunha: alor constitucional, absolutamente fundante daquela on, lem, Propriedade ¢ contrato, tornados j4 fundamentos yf também politicos do novo regime, nao podiam ser remeti, dlos a1um rico e descontrolado proliferar de usos que dou. tores ¢ jufzes se empenhavam em reduzir em amplos es- quemas categoriais; deviam, alias, ser rigorosamente con trolados inclusive para garantir a0 novo cidadao aquele es. aco livre pretendido pela ordem burguesa com relacio a0 poder politico, que é bem marcado no pacto secrete gera- dor do novo Estado. A garantia mais s6lida consistia na estatalizacdo do di- feito privado, em vinculi-lo a voz.do Estado, & sua voz mais direta: a lei. E comegou-se a aviar 4 construgdo do mito da lei como norma de qualidade superior, hierarquicamente Primaria: a expresso autoritéria c centralista da soberania dlo Estado vem taxada como a tnica expressio possivel da vontacle geral; e foi conseqiéncia natural que, diante desta, | ispersassem-se as fontes plurais sobre as quis se erguew 4 [velba ordem, usos, opinides dos doutores, sentengas dos lulzes, invencdes dos notérios; e o direito franziu-se em lei \ No lugar do vetho pluralismo juridico se substitu: m ‘: | monismo tigidissimos tanto mais rigido porque dotado de valor constitucional, tanto mais rigido porque este valor Constitucional vinha deliberadamente enrobustecide por 128 { precisasnervuras éticas gracas & imersio no ventre do direi- } to natural, O jusnaturalismo, com as suas fabulas aparente- mente ing@nuas e graciosas mas que, na substéncia, imobi- lizavamo diceito em um modelo férreo, foi chamado a fun- dar 0 nove direito do novo Estado dando: vida Aquela ant nomia que esté na base da histéria do direito moderno e ue poderia ser apanhada na passagem totalmente liquida ¢ plana, mas com premissas muito bem definidas, a solucdes, perfeitanente opostas, ou seja na passagem do jusnatura- lismo ao juspositivismo, nas fundagées jusnaturalistas do moderno juspositivismo. Fundagdes que duraram muito e que, em boa medida, duraram até hoje: somos ainda adeptos do jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII, hoje inconscientemente, mas 0 somos, gragas 2 sua forga constringente que incidiu profun- clamente, quer se queira ou nao; também quem € orgulhoso em refutar a imagem de um direito natural, também quem relega aquela ida & categoria das fabulas indignas da nossa maturidade cultural, 6 dele um portador inconsciente, Com este esclarecimento: no territério do direito pri- vado foram muitas as conseqiiéncias fundamentais, que brotaram em seu tempo de premissas jusnaturalistas, a do- minar-nos e impregnar-nos. Alguns cafram, ainda que lenta € penosamente, como o sujeito de direito civil como enti- dade abstrata e, enquanto abstrata, unitéria porque sujeito de direito natural, ou a idéia de um direito civil articulado em relagies juridicas abstratas. Alguns ficaram e, a meu ver, inclelevelmente ficam, como o primado da lei ¢ 0 pan- legalismo do qual se falava mais acima, aquele que chamo polemiccmente de absolutismo juridico. \ Repita-se: ninguém quer colocar em dtivida o impor- tante papel da lei na imensamente complexa ordem mo- derna, ¢, conseqiientemente, o valor do princfpio da legal | dade. Pretende-se, porém — isto sim! — sublinhar com 129 énfase a grande falta de senso critico com que nos fizeram portadores daquele papel e com o qual se sustentou o seu valor. Legislador, lei e legalidade pertencem aquela restrita | categoria de fdolos — venerados e niio discutidos — que } | \ dominam soberanos na mitologia do secularismo moderna; fdolos que, exatamente pelo seu pertencimento a tima civi- lizagio secularizada, devem impor-se com um seu proprio carater de absolutismo c indiscutibitidade, ¢ exigem uma aceitacao passiva como toda mitologia que se respeite, in- clusive a mais intramundana, Aceitacio geral que houve, ¢ ) foi passiva, e permaneceu passiva até hoje. | Euma tal passividade que me parece hoje culturalmen- te inadmisstvel para o jurista; devemos dertubar o ‘legisla- dor’ de um Olimpo muitas vezes néo merecido e analisé-lo impiedosamente nas suas misérias; devemos sobretudo li- berar-nos da idéia nefasta do valor taumattirgico da lei, ou seja de uma juridicidade pensada e resolvida como legali- dade. | Repitamos: quando falo de absolutismo juridico, ndo | pretendo gerar desconfiancas ou, ainda menos, desprezo | pela lei; pretendo, isso sim, dar voz.ao desconforto em vista | de um papel desmedido da lei, ocasionado pelo trabalho freqientemente incontrolado do legislador, este persona- gem ideal do nosso palco juridico, inconveniente e onipre- ente quase como o coro na antiga tragédia grega, ea cujo j absolutismo juridico garantiu por demasiado tempo, até o | passado recente, imunidade — por assim dizer — e indis- cutibilidade, 5. Ha uma outra coi apenas se acenots A forgada colocacao do direito na sombra do Estado — lente unitdrio, criatura monocritica essencialmente voca- yFionada ao controle da pluralidade social ¢ & contragio da a acrescentar, sobre a qual acima ‘20 plurelidade & unidade —provoca uma simplificagao do un verso jurfdico. Nao se pode contentar com a superficie pla~ na da validade a que 0 formalismo juridico moderno nos vinculou € condenou, mas se deve chegar a recuperar 0 ex- ‘trato até agora subterraneo da efetividade, E sera o resgate de um substancial pluralismo juridico, e serd o reencontro de uma riqueza perdida ou pelo menos esquecida “Absolutismo juridico significa uma civilizacio juridica que perde (ou diminui muito) a percepgao da complexida- de; uma cvilizagao jurfdica que se tornou uma orcem sim- ples, extremamente coerente em suas linhas essenciis, forte em uma suta légica rigorosa, mas muito pouco sensivel ao devir ¢, sobretido, a mudanga. Nos paises de civil law, © drama do século XIX, que é o momento culminante da atitude absolutista, esta todo na diferenge sempre mais marcada entre sistema jurfdico (na sua maior parte coinci- dente com o sistema legislativo) e transformacao; uma transformacdo miiltipla e frenética que toma as dimensoes mais variadas, da tecnoldgica (o realizar-se da grande ind tria, tendoa maquina como protagonista) a social (0 emer- gir do proletariado com suas reivindicagdes e as suas lutas) @ A econdmica (0 emergir ~ a0 lado da tradicional riqueza fundidria —de uma riqueza mobilidria cada vez mais prot gonista ¢ de um mundo de bens imateriais sobre os quisis a refinada organizacfo capitalista se funda). . Nio hi divida que, aos olhos atentos do historiador do direito, 2 ordem jurfdica nao aparece imvel, uma condi¢é0 que é ignota & histéria, mas igualmente nao hé diivida que se tratam de conquistas penos{ssimas, feitas contra a lei (as vezes), apesar da lei ou entre as brechas da lei (mais fre- qiientemente), certamente poucas vezes segundo a lei, a jurisprudéncia, a ciéncia ¢ a praxe. ‘Um exemplo probante: a hist6ria da jurisprudéncia e da doutrina francesa do século XIX, sob o pleno império do 131 Ciédigo Napolednico, € a hist6ria de conquistas penosas, atormentadas e atormentantes para o pobre juiz e cientista, camo nos testemtinham as piginas de dois grandes ¢ extee- mamente sensfveis juristas, Raymond Saleilles € Francois, Gény; conquistas sobre as quais sempre ameaga o risco de condenagio por heresia, desde o momento etn que a orto- doxia continua a ser depositada no sistema legislativo (nio importa se velho, decrépito, ou, o que é pior, envelhecido, inutilizavel e rejeitado pela pratica cotidiana) , __ Pense-se em como foi concebido e interpretado, ime- { diatamente depois da sua entrada em vigor, aquele art. 4° | do Code Napoléon que obriga 0 juiz.d decisio da controvér- sia que the € proposta: o que quer que tivessem querido dizer Portalis e os outros redatores (homens freqiiente- mente portadores de idéias que circulavam no antigo regi- me no qual foram educados), foi pensada e interpretada como uma norma de encerramento, quase — se diria — { encouracamento do cédigo, que vinculava o juiz a encon- trar a solugdo entre as malhas daquela rede potencialmen- te, ainda que nao formalmente, completa que € justamente 0 Codigo. E pensow-se, desde entio, na evolugao do ordenamento como tia série de preenchimentos de vazios no interior de alguma coisa que se colocava —de per si — como estrutura completa. E 0 legislador apressou-se a fixar critérios para colmar aqueles “poucos” vazios ¢ procurou, quase sempre com previsies de simples endointegracoes, controlar a in- tegridade do proceso, coma é no artigo 3° das disposig6es preliminares a0 primeiro cédigo unitério italiano de 1865.0 no asfixiante art. 12 daquelas disposig6es preliminares a0 Codigo vigente de 1942, | Ennecessério parar de pensar na ordem jurfdica como Iguma coisa compacta e, de conseqiiéncia, completa, que nostra somente algumas ‘lacunas’; € necessério desemba- 132 ragar-se da perckpgio do grave e complicado né problems- tico do continuo atualizar-se do direito como um problema de um pequeno € magro vazio que se apresenta ali e acolé no complexo de previsbes identificadas e estabelecidas por aaguele grande profeta (e, como todo profeta, infalivel) que Eo legislador. O problema do devir da ordem juridica € deformado e encolhido e torna-se — como por duzentos anos o foi — “o problema das lacunas do ordenamento juridico”, assim bem fixado naquela fiel imagem do positivismo juridico italiano do inicio do século XX que € 0 livro de Donato Donati de 1910 que porta justamente como titulo as pala- ras colocadas em aspas; sim, deformado e encalhido, por- que continua a trazer antes de tudo uma visio estatalista e fechada, surda em perceber a complexidade do universo juridico e, portanto, incapaz de ordené-la adequadamente. 6 para formular alguns exemplos correntes nestes ti- timos tempos, leasing, factoring, franchising, assim como tantas outras invencSes da prética contempordnea do co- mércio, nio sao lacunas do direito privado positivo italiano, | Finalmente preenchidas, mas sio somente um'futuro que se faz presente, como € da natureza de tado corpo vivente; um futuro — além do mais — que se faz muito répido pre- sente, como é tipico de uma ordem juridica que corre na tentativa de deixar para tras aquela praxe cotidiana — aquela atual — que supera todos 0s dias a si mesma na invengao de instrumentos eficazes a tutelar os operadores econdmicos na regulamentagao dos proprios interesses ou a seguir odesenvolvimento técnico em continuo ¢ clamoro- 80 progresso inovativo. Continuar a pensar 0 ordenamento como um invélucro fechado cue traz no seu interior algumas possiveis lacunas, mais ou menos como 0 fazia Donato Donati ha quase cem anos atrés, é ingenuo, artificioso e anti-hist6rico. O que se 133 a eR TETRIS

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