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AFAPESP nor bue CAP{TULO 8 ACAO E REPRESENTACAO NAS ARTES PERFORMATIVAS eae “ago” tem ocupado um lugar central nos discursos fe diversos artistas modernos ¢ contemporancos. Referén- ‘cas fundamentais na 4rea da performance € do teatro, como Joseph Beuys ¢ Jerzy Grotowski” entre outros, denominavam suas atividades artisticas de “aces”. O termo € utilizado quase sempre em contraposigio ao significado que a “aso” ganha num campo teatral mais tradicional. A acao performatica nao se apresenta como uma forma de atuacao mimética, ligada a tum cosmos ficcional, referenciada num texto dramaturgico ou em algum outro tipo de matriz narrativa que representa vida. Fla pretende, quase sempre, articular-se como um dispositivo de comunicacio e interferéncia direta na realidade, um acon- tecimento que eclode da transgressio programada de conven- Ges estéticas € sociais, apostando na eficacia transformadora (politica, estética, existencial, etc.) de suas estratégias. Neste sentido, é frequente que performers clejam a atitude teatral vonvencional como uma espécie de inimigo, um obsticulo a 10 Refirorme 3 altima fase da trajetéria de Grotowski, da “arte como veiculo", em que artista assume o termo “performance” “aco” no seu trabalho. ser superado!. A acio performatica seria distinta ¢ até oposta & atuagao teatral porque nao se construiria como representacao: nao simula, nao “estd no lugar de” outra coisa, mas é capaz de produzir um acontecimento singular, sem um referente pre- ciso. Certamente, é necessdria uma reflexio mais cuidadosa so- bre o pretenso sentido no representacional da ago perfor- mitica, se néo quisermos nos manter num registro demasiado ingénuo. O conceito de “tepresentagao” é bastante comple- xo, ultrapassando o campo da arte teatral propriamente dita. Ele aparece em diferentes reas de conhecimento — ciéncias sociais, psicologia, psicanilise, semidtica, filosofia, etc.—, refe- rindo-se a fenémenos sociais ¢ mentais. Por exemplo, a vida coletiva em geral pode ser descrita em termos de “papéis”, “cenarios”, “atores” que o ser humano “representa” segundo certas convengées € acordos tdcitos, para que 0 “jogo social” se dé de determinadas formas. Muitos estudos sociolégicos € antropolégicos se utilizam da metdfora da agao teatral para descrever ¢ analisar a multiplicidade de estratégias utilizadas, mais ou menos conscientemente, nas interagdes cotidianas. Tais correntes tedricas retomam a antiga metdfora do theatrum mundi, origindria da Antiguidade com forte presenga no pe- riodo barroco ¢ mesmo no teatro de Shakespeare, que sugere que entendamos 0 mundo como um grande palco, no qual os homens representam seus papéis sem tercm exatamente os escolhido’, A sociologia moderna trabalha com uma versio se- 1. A performer Marina Abramovic assim se refere ao teatro numa entrevista por ocasiao da apresentagaio de seu trabalho "7 easy peaces": “Ob Yes. ln the beginning, you have to hate theatre. That was a main thing, because you have to reject all the artificiality ofthe theatre, the rehearsal siowation, in which everything is predictable, the time structure aud the predetermi- ned ending” (Abramovic, 2007, p. 18). 2. Autores como Goffman (1975), realizaram andlises minuciosas das miliplas formas de representagio do eu na vida coridiana. 3. Uim interessante estudo sobre 0 declinio dessa metifora no mundo moderno pode ser encontrado em Sennett (1989), 108 cularizada dessa ideia, eliminando o criador divino que estaria por trés do grande espetéculo do mundo, para tentar desven- dar a dinamica das forgas sociais que produzem os “cendrios” em que vivemos. Pode-se dizer também que boa parte do chamado teatro naturalista parte da recriag4o mimética de cenas representadas no cotidiano, para desenvolver uma abordagem dos conflitos e da condicio humana. A mimesis teatral que recria 0 jogo social poderia nos conduzir a uma maior apreensao das repre- sentagées que operam no nosso dia a dia de forma mais ou menos inconsciente. Nesse sentido, o ato teatral revela 0 teatro social em que estamos, na maior parte das vezes, submersos. Ao representar ¢ recriar uma “fatia da vida no palco” (como di- ziam os naturalistas), o ator deveria, hipoteticamente, expres- sar uma consciéncia ampliada das situagées cotidianas. Nesse sentido, na sociedade somos “maus atores”, desempenhando nossos papéis de modo mais ou menos automatico*. Seguindo ainda a mesma linha de raciocinio, podemos dizer que 0 performer, quando diz “nao representar’, esta se opondo & representagao teatral mais convencional, mas ainda assim tem de lidar, em alguma medida, com as referéncias € representagoes sociais em que esté inserido. Quase sempre ha uma percep¢io por parte dos participantes envolvidos num evento performatico de que se esta “diante de uma perfor- mance”, de que aquele artista é um “performer”, ¢ assim por diante. A arte da performance j4 tem uma historia ¢ um lugar no imagindrio social, mesmo que em grupos restritos, criando uma espécie de expectativa no publico em relagéo ao que po- der encontrar num evento desse tipo. ‘Ao mesmo tempo, 0 performer sempre enfrenta este a priori a sua ago: as representacées sociais do que séo a performance e 4, Aalta poténcia do naruraismo aparece em algumas obras de artistas como Tehecov ou Strindberg, que conseguiem colocar 0 “jogo social"contra um pano de fundo incerto.¢ mis- terioso, que ultrapassa 0 préprio homem, evocando assim a fragilidade da nossa condigio. 109 o performer, construfdas € reconstrufdas pela prépria atuacao dos artistas e tudo que gira em torno dela (discursos tedricos, informagoes mididticas, etc.). O performer nao atua teatral- mente, mas representa, em certa medida, o papel social do performer. Ele nao se livra to facilmente desse tipo de repre- sentacdo, mesmo que possa subverté-la em certo grau, através de suas proprias ag6es artisticas. E certo que a arte da performance tem se afirmado, desde © principio, como estratégia de critica € desestabilizagio dos lugares predefinidos da arte do artista, e seu confinamento nos campos previstos de produgio cultural. O questionamen- to dos géneros artisticos ¢ da propria fronteira que separa a arte da vida, tema recorrente ja nas vanguardas histéricas, pa~ rece apontar para o redirecionamento das poténcias criativas do homem e para a reinvengao das proprias relagées inter- subjetivas em certos contextos. No entanto, € inegavel que a performance tem se tornado uma nova rea, com seus circui- tos prprios de circulacao dos eventos, suas articulagées com instituigdes (museus, universidades, etc.), seus campos de pro- ducio tedrica, pedagdgica, etc. Sea luta contra os processos de ctistalizagio ¢ de domesticacao da arte parece estar no cerne das preocupagées da performance, € inegavel que um certo grau de estabilidade sempre se faz necessdrio para a propria continuidade da atividade. Os discursos artisticos € tedricos que tentam negar simplesmente esse tipo de inser¢4o da per- formance no mercado artistico € no imagindrio social conten poriineo correm 0 risco de mistificacao ‘Ainda desse ponto de vista, poder-se-ia levantar a hipdtese de que o crescimento da performance como arte nas socieda- ties vontemporiineas esté relacionado também a prépria fui- dez das subjetividades na nossa época, que nao se enquadram inais tio tigidamente em “papéis” ¢ “fungées”. As convengdes do teatro dramatico ¢ seu cortejo de personagens, situagées, conflitos, parecem, muitas vezes, inoperantes para apreender as dinamicas do mundo atual. Neste sentido, a performance 110 estaria mais sintonizada com processos de subjetivagio do ca- pitalismo contemporineo que nao se ajustam a identidades ¢ referencias estaveis, celebrando as possibilidades de recria~ Gio de um sujeito que se quer sempre em fluxo. Tal sintonia pode se expressar no sentido de uma critica aos novos modelos vigentes, mas pode traduzir-se também como mero sintoma de uma época volitil ¢ “liquida’. O aprofundamento dessa hipétese exigiria a andlise de situaoes especificas, 0 que nao caberia aqui. Desenvolvendo ainda a complexidade do conceito de re- presentagao, é necessdrio examiné-lo também a partir da pers- pectiva da percep¢ao, do pensamento ¢ da linguagem. De modo genérico, digamos que boa parte da atividade mental dos seres humanos acontece como producio de represen- tagdes. O processo comega mesmo antes da elaboragao de pensamentos complexos que se desenvolvem através de uma linguagem claborada. Mesmo na simples percepcao de um fensmeno momentineo, como uma sensagao, hd o rapidissi- mo processo de reconhecimento da experiéncia em relagao a outras semelhantes registradas na meméria, € a rotulagao do fendmeno com um nome que 0 representa. Reconhego € no- meio mentalmente um fendmeno como “dot”, “azul”, ¢ assim por diante. A operacao de representagao de uma sensacao se apoia na nossa meméria € repertério cultural. A experiéncia perceptiva é filtrada, recortada, formatada segundo as referén- cias daquele que a nomeia. Nesse sentido, pode-se afirmar que a acio de representar os fendmenos é anterior & construcio de estruturas narrativas ¢ discursivas complexas, de que se vale, por exemplo, a dramaturgia mais convencional do teatro. Ha representagéo mesmo no simples ato de reconhecermos os ob- jetos e as sensagées que experimentamos todo o tempo. Deve-se reconhecer também a importincia dos processos primarios de representagao no sentido da criag4o de uma esta~ bilidade mental minima, que permita a elaborac4o de leituras das situacdes em que estamos envolvidos, facilitando também i a propria interagao social. Mesmo diante de uma obra artistica enigmética ¢ hermética, sempre fazemos uma série de inter- pretacdes dos acontecimentos que nos situam minimamente nas circunstancias. Sem isso, ficariamos completamente per- didos e confusos. Mas, assim como as interpretagées de um sonho nunca dao conta do seu centro enigmatico (0 “umbigo do sonho”, segundo Freud), as leituras de uma obra nao esgo- tam a experiéncia artistica na sua totalidade, mas fazem parte dela e podem enriquecé-la. Quando a intensidade da experiéncia ultrapassa comple- tamente a capacidade de representi-la, vive-se uma situacao muito desestabilizadora, que poderia ser chamada de “trau- mitica”. Ao descrever a pequenez do individuo diante das cir- cunstancias avassaladoras de uma guerra, Benjamin constatava 6 emudecimento daqueles que voltavam do campo de batalha e nio conseguiam digerir os acontecimentos vividos. Diante da extrema violéncia — fisica, sensorial, emocional — 0 psiquis- mo nio é capaz de representar 0 que viveu ¢ transformar a experiencia através da linguagem. A auséncia de alguma forma de representagio, neste caso, pode significar o enclausuramen- to do individuo na intensidade das memérias e sensacées, que ganham expressées involuntérias no corpo, tais como tiques, sintomas, etc. Parece-nos necessdria uma linguagem especial para se estabelecer conexao com o intoleravel destas situagées, uma linguagem que trabalhe justamente com os limites do diaivel, ¢ que circunscreva, de algum modo, uma experiéncia préxima do irrepresentavel. ‘A arte da performance, muitas vezes, pretende se aproxi- mar desse tipo de linguagem, trabalhando com situacées que colocam o performer numa zona de risco, porém circunscrita, como uma espécie de jogo ou ritual. Quando Joseph Beuys permanece fechado com um coiote numa jaula, na agio “like América, América likes me”, convivendo com 0 animal durante um bom tempo, a tdnica da aio nao recai no seu sentido representativo. E certo que todo os elementos ¢ gestos sim- 12 bélicos mobilizados — a mitologia do coiote entre os indios americanos, 0 fato do performer nao pisar o solo da América quando chega no aeroporto, a leitura que faz dos jornais na jaula, os materiais de feltro ¢ 0 cajado de que se utiliza ~ sio as- pectos fundamentais da construgao da acéo. No entanto, eles circunscrevem justamente 0 imponderavel: o comportamento do coiote, o risco, 0 tipo de comunicagao que se estabelece entre o performer € 0 animal. O sentido estabilizador da re- presentacio é tensionado pela imprevisibilidade da situagio. Tal estratégia expressa uma postura critica diante de nossa cultura, que tenderia a confundir conhecimento com a pro- ducao de um excesso de sistemas de representagao. Quando Artaud, no texto introdutério de O Teatro e sew Duplo, afirma que a cultura curopeia esta doente porque produziu uma in- finidade de formas de pensamento que sao impotentes para orientar a vida, para “nomear e dirigir as sombras”, intuiu ali, ao mesmo tempo, todo um programa de trabalho que foi de- senvolvido posteriormente por numerosos artistas performati- cos. Trata-se, em primeiro lugar, de reconhecer os limites dos processos de producéo de sentido, abrindo-se espago para a relagdo com “presengas”, antes mesmo que elas possam ser no- meadas ¢ representadas?. Para tanto, é necessdrio desenvolver habilidades que nos permitam sondar e investigar experiéncias fugidias, de uma intensidade nao apenas traumitica ou ter~ rivel como no caso da guerra, mas pertencentes também ao campo do sublime®, Somente a partir dai poder-se-ia comegar a reconstruir uma “verdadeira cultura’, uma “cultura da agao” nas palavras de Artaud, que saberia “reget” a vida. ‘A palavra “acdo” ganha um lugar privilegiado neste tipo de programa. Tanto é assim que diversos performers a elegem 5. Usilizo-me aqui da contraposigao entre efeitos de presenga efeitos de sentido investigada por Gumbrecht (2010) 6. Oconceito de “sublime” aponta ja para as experiéncias que transcendem de algum modo {(grandera, intensidade) a ordem da forma e da representacio. como designagao mais precisa de suas atividades. Ela manifes- ta, em primeiro lugar, uma atitude diante da arte e do mundo, uma escolha por tentar interferir mais diretamente nas rela- ¢6es sociais, no campo politico, nas dinamicas existenciais dos envolvidos, recusando a segmentagao em Areas (politica, eco- nomia, estética, ciéncia, religido, etc.) que caracteriza a cultura ocidental moderna, desde 0 processo de “desencantamento” e “racionalizacéo” que a inaugura’. A performance nao quer ser entretenimento, arte, militincia politica, ou religiao, pelo menos nos sentidos convencionais desses termos. Ela aspira a convocar as préprias poténcias criativas do humano, antes mesmo da sua configurag4o em formas e géneros, comprome- tida que est4 com a reinvengao da cultura e dos modos de vida. Mas, por vezes, 0 que move os performers € uma espécie de ambicao desmesurada, uma /ybris, que parece responder as expectativas de uma cultura que tende a idealizar 0 poder humano de invengao, refletindo pouco sobre as fragilidades da nossa condigdo de criaturas. Quando nao ha o cultivo da interrogagao em profundidade sobre a prépria época e os pa- péis sociais que nela se representa, o artista corre 0 risco de mimetizar tragos marcantes da nossa sociedade, como o culto da tecnologia e da capacidade “faustica” do homem em repro- gramar completamente a si mesmo ¢ a natureza*, Nesses casos, a performance, que se quer a¢ao criadora de novas realidades, pode tornar-se mera expressio sintomética de nosso tempo. A meu ver, os artistas que nao sucumbem a tais armadilhas so aqueles que se interessam por horizontes culturais distin- tos, se deixam atravessar por outras temporalidades (arcaicas, 7. Dai alguns ce6ricos da performance como Fischer-Lichte (2008) vislumbrarem nessa arte tum impubo de “reencantamento do mundo’ 8, Sobre a tecnologia “promet (2002), O Homem pas-orginico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais,F. discutido 0 impulso “gnéstico” subjacente a muitos empreendimentos cientificos e tecnolégicos re ver o excelente trabalho de: sti * earecnologia 14 nfo histéricas), mantendo-se, de certa forma, “extemporane- os” em relacio a sua época?. Estes se abrem ao didlogo com outros modos de compreender ¢ viver o humano, estrangeiros gue sio aos modismos hegemdnicos de se pensar e agir, inclu- sive na arte. Nesta direcao, a nogao de “ag4o” pode ser redimensionada, por exemplo, a partir de um didlogo com © pensamento da Antiguidade. Como nos mostra Arendt (1993), vita activa e vita contemplativa formam o par indissociével que define as esferas de experiéncia humana ¢ os tipos de vida no mundo antigo. A vida ativa compreendia nao somente a manutencao da vida biolégica (0 labor) e 0 trabalho, como também a par- ticipacio na vida publica, a que se denominava propriamente de “acio”. A acio possuia um sentido bastante especifico, dis- tinguindo-se do mero comportamento. Comportar-se signifi- ca atuar de modo previsivel, correspondendo a uma fungao ea um papel predeterminados. A ago expressaria um outro tipo de poténcia, capaz de inaugurar ou fazer nascer algo novo no mundo. Agir, nesse sentido, identifica-se mais propriamente com 0 campo da politica, onde os gestos as palavras podem ca- nalizar as energias coletivas em certas diregées. A performan- ce almeja justamente esse tipo de eficécia, tentando recriar a relacdo entre os homens no espaco piblico, mesmo que em situagées ritualizadas ¢ circunscritas. ‘Ao mesmo tempo, a vida ativa na Antiguidade se encon- trava de algum modo subordinada 4 vida contemplativa. O agir eficaz ¢ reto somente poderia estar apoiado na faculda- de humana de “ver”, que nao se confunde exatamente com © processo de pensar através de representagées. O sentido da contemplagio tornou-se, no entanto, estranho ao mundo contemporaneo. Na medida em que a vida do espirito passou 9, Para o desenvolvimento das nogées de “contemporanco” ¢ “extemporineo”, ver 0 capi- tulo 1 deste livro, 5 se identificar, sobretudo, com o pensamento, o exercicio do contemplar caiu no esquecimento e atrofiou-se. O interesse de alguns artistas performativos por tradigées contemplativas parece-me extremamente relevante nesse sentido (Abramovic, Cage, Bill Viola, Meredith Monk). Eles irto procurat, geral- mente no Oriente, a sabedoria pritica que apoia o desenvol- vimento de faculdades como a atengio, a concentracio, a consciéncia silenciosa (nao representacional), sem as quais 0 agir perderia a eficécia e a profundidade. Uma pesquisa ¢ um didlogo que a meu ver esti apenas no comeso, mas que pode ter uma importincia vital no reposicionamento das artes em relacéo aos graves dilemas do mundo atual. 116

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