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ed.

16
DIREITO, TECNOLOGIA E
SOCIEDADE: UMA CONVERSA
INDISCIPLINAR

Hardware Livre e Movimento Maker


uma Nova Revolução Industrial

Cosmopolitismo Digital
promessa não cumprida da internet
como aldeia global

Tempos Conectados
direito à privacidade X
liberdade de expressão
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  3
4 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  5
6 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Centro de Memória Documentação e Referência


Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural - N. 16


( jan./jun. 2014). - São Paulo : Itaú
Cultural, 2007-.
Semestral
ISSN 1981-125X
1. Tecnologia. 2. Direitos autorais. 3. Mídias
digitais. 4. Marco civil.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  7

expediente
Editor EQUIPE ITAÚ Produção
Ronaldo Lemos CULTURAL Deise Costa
Ediana Borges Lima
Coordenação editorial Presidente Marcel Fracassi
Luciana Modé Milú Villela Rafael Figueiredo
Marcel Fracassi
Rafael Figueiredo Diretor NÚCLEO DE
Eduardo Saron COMUNICAÇÃO E
Projeto gráfico RELACIONAMENTO
Marina Chevrand | Superintendente
SERIFARIA administrativo Gerência
Sérgio Miyazaki Ana de Fátima Sousa
Design
SERIFARIA NÚCLEO DE Produção editorial
INOVAÇÃO/ Raphaella B. Rodrigues
Produção gráfica OBSERVATÓRIO
Lilia Góes Direção de arte
Gerência Jader Rosa
Ensaio Fotográfico Marcos Cuzziol
Leo Miranda
Coordenação do
Ilustração Observatório
André Toma Luciana Modé

Revisão
Tatiane Reghini Mattos

Tradução
João Barata
8 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A REVISTA OBSERVATÓRIO CHEGA AO SEU SÉTIMO ANO COM CARA NOVA!

Apresentamos, em primeira mão, o novo logotipo do Observatório Itaú Cultural. Por


meio de uma “janela”, o novo logo ressalta a abreviação OBS, muito usada na linguagem
informal como “lembrar, “observar”, “ver”, “não esquecer”. O logo, por si só, é um convite
ao leitor para atravessar essa janela de conhecimento que o Observatório oferece: obser-
var, analisar, refletir, formar e aprender.
Esta edição da Revista traz também um novo projeto gráfico. Ouvimos nossos lei-
tores, analisamos suas opiniões e, com base nelas, fizemos algumas mudanças gráficas
importantes. Seguindo a mesma linha editorial, com artigos e ensaios que abordam rele-
vantes reflexões contemporâneas no campo da cultura, aprimoramos o design e a forma
como apresentamos esse conteúdo. Buscamos valorizar o produto impresso, priorizando
o conforto na leitura dos textos - esse cuidado vai desde a escolha do novo papel, passan-
do pelo uso de uma tipografia fluida e agradável, até o novo formato, menor, mais fácil
de ler e carregar.
Valorizar o impresso não significa que esquecemos que estamos na era das publica-
ções digitais. Aproveitamos a oportunidade para entrar de vez nessa era, e disponibiliza-
remos gratuitamente todas as edições da Revista Observatório já publicadas em e-book,
tornando sua abrangência muito maior.  Reafirmamos, assim, o papel do Observatório
que, para cumprir adequadamente as suas funções, considera tão importante como a
qualidade de suas reflexões, ter uma politica de difusão ampla e plural.
A Revista passa a ter uma seção de entrevista com um convidado especial que dialo-
gará transversalmente com os temas abordados na edição.
Para trazermos mais leveza à leitura e um pouco de arte à publicação, apresentare-
mos também o trabalho de um artista visual, seja um ensaio fotográfico ou uma série de
pinturas ou ilustrações.
Nesta edição, publicamos o ensaio Formas de Luz, do fotógrafo Leo Miranda, reali-
zado no Rio de Janeiro e São Paulo ao longo dos anos de 2009 e 2010. O trabalho revela
imagens cotidianas observadas através dos desenhos formados por luzes e sombras. A
sensibilidade do olhar do fotógrafo desconstruiu e construiu uma série de imagens em
branco e preto de alto contraste e criatividade.
Esperamos aprimorar sempre nossos instrumentos de comunicação para satisfazer
as expectativas legítimas dos nossos leitores de receber ideias, informações e reflexões
de qualidade sobre o campo cultural.
aos leitores
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDA- Os ensaios aqui reunidos consistem
DE: UMA REVISTA INDISCIPLINAR em análises importantes sobre esses te-
mas. Nada aqui é exaustivo. São textos que
Você tem nas mãos uma revista que di- indicam caminhos, questões em debate,
ficilmente seria publicada no território aca- sintetizam disputas, apontam tendência
dêmico do nosso país. A razão é que esta é ou geram reflexões. Muitos dos autores são
uma revista que não é nem multidisciplinar, juristas, cujo diferencial é estarem acostu-
nem transdisciplinar, mas indisciplinar. Ela mados a transgredir os limites do direito
mistura autores provenientes de campos para analisar com maior riqueza questões
diversos do conhecimento para tratar de te- sociais. Isso é importante. Grande parte
mas que se tornam cada vez mais centrais das disputas atuais desaguam no campo
nestes nossos agitados tempos. do direito. É nele que se travam algumas
Uma empreitada que navega com gos- das principais batalhas do nosso tempo:
to na ideia de inbetweeness, o meio do cami- privacidade, direitos autorais, liberdade de
nho que existe entre as disciplinas acadê- expressão, limites e possibilidades do “faça
micas – e de onde frequentemente surgem você mesmo”, conflitos envolvendo mídias
as ideias mais interessantes (e influentes). sociais e tradicionais, os sucessos e falhas
Nosso centro de gravidade para os textos da promessa da aldeia global. São temas que
aqui reunidos é a ideia de “direito, tecnolo- estão hoje no centro do palco e despertam
gia e sociedade” e suas complicadas e mu- ao mesmo tempo esperança e preocupação.
tantes relações. Para enfrentá-los, temos aqui dois
Como sabemos, vivemos um momen- cientistas (um físico e um cientista da com-
to em que as ruas e as redes se misturam. O putação), um advogado especializado em
real e o virtual se fundem. A esfera pública liberdade de expressão, um filósofo-etno-
brasileira transforma-se de forma constan- musicólogo-professor do MIT e um seleto
te, junto com a evolução da internet. Além grupo de juristas brasileiros que se debru-
disso, presenciamos o atrito entre diversos çaram sobre assuntos urgentes e complexos.
segmentos sociais que precisam redefi- Nossa revista se abre com o texto do
nir fronteiras e negociar espaços (público, cientista da computação Manoel Lemos,
privado, real, virtual). Isso libera enor- uma aula sobre o que vem sendo chamado
mes quantidades de energia, transformado- de “a nova revolução industrial”. Trata-se
ras ou diruptivas. do importante fenômeno econômico da de-
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mocratização da manufatura e da inovação meiro capítulo do livro de Ethan, chamado


no campo do hardware. Nos últimos anos, Rewire: Digital Cosmopolitans in the Age of
presenciamos o potencial da democratiza- Connection (Reconectar: Cosmopolitas Di-
ção na área de software. Grandes empresas gitais na Era da Conexão). Ethan trata dos
multibilionárias, como o Facebook, surgem problemas e promessas, cumpridas e, so-
a partir de um esforço individual origina- bretudo, não cumpridas, da aldeia global.
do de um dormitório universitário. Agora, Muita gente acreditava que a internet pro-
o mesmo padrão de inovação chega tam- piciaria um globalismo ilimitado. Acordarí-
bém ao campo da manufatura. Se antes a amos em contato com pessoas e mídias dos
inovação dependia de plantas industriais, mais diversos cantos do mundo. A verdade
organizadas na maioria dos casos em for- é bem diferente. No mundo da supercone-
mato corporativo, o que desponta agora é a xão,  acabamos nos isolando no nosso pró-
ascensão de uma infinidade de microfabri- prio mundinho. Jornais do mundo inteiro
cantes, que  nos seus “dormitórios”, testam estão disponíveis online, mas continua-
e produzem boas ideias de novos tipos de mos a ler os mesmos de sempre (isso quan-
hardware. Muitas delas vão florescer e ge- do lemos jornal, cada vez mais trocados ou
rar empresas multibilionárias, como o que mediados por redes sociais). Ethan foi um
aconteceu com Facebook. dos fundadores do site Global Voices (Vo-
Por isso, é essencial que o Brasil par- zes Globais), que tenta bravamente nadar
ticipe dessa onda desde o início. O texto do contra a corrente e promover visões mais
Manoel é um verdadeiro guia sobre como descentralizadas do mundo. Tendo vivido
essa revolução se configura e as oportuni- em Gana e  se formado tanto em filosofia
dades que ela traz. Esperamos que possa ser quanto etnomusicologia e percussão, ele é
lido por olhares atentos, nos setores priva- um bom interlocutor para apresentar esse
dos e públicos. E, sobretudo, que seja lido intrigante problema.
por jovens espertos e curiosos, que enten- A seguir apresentamos uma instigan-
dam o potencial que se desenvolve no co- te entrevista com o físico nascido no Cea-
meço dessa importante tendência. rá, Claudio Lenz. Cláudio vive entre pelo
A seguir temos a contribuição de menos dois mundos: seu laboratório na
Ethan Zuckerman. Ethan é professor do UFRJ no Rio de Janeiro e o CERN na Su-
MIT Media Lab, onde dirige o Centro de íça, onde trabalha com o maior acelerador
Mídia Cívica (Center for Civic Media). de partículas do planeta. Ele é especialista
Dentre várias outras tarefas, seu Centro se em “antimatéria”, campo em que se encon-
debruça sobre como renovar a democracia e tram algumas das questões científicas mais
criar novas formas de participação pública. difíceis da física, que dizem respeito, nada
Aqui na nossa coletânea, publicamos pela mais, nada menos, que à origem do univer-
primeira vez no Brasil a tradução do pri- so. A partir de visão singular, Claudio fala
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  11

sobre como vê a pesquisa dentro e fora do dade Direito da FGV, em São Paulo. Môni-
Brasil. Fala também sobre a relação entre ca fala sobre uma das fronteiras do campo
juventude e ciência. E desenvolve uma co- jurídico, a relação entre moda e proprieda-
nexão crucial entre fazer ciência e a cultura de intelectual. Neste mundo em que a ló-
do faça você mesmo. Cientistas como ele gica da moda toma conta de cada vez mais
têm vida dura: para descobrir o que ainda campos econômicos (inclusive a produção
não foi descoberto, é preciso inventar seus de gadgets), Mônica discute as vantagens
próprios equipamentos e por a mão na mas- e desvantagens de se aplicar uma prote-
sa. A partir da conversa com ele é possível ção intelectual “forte” sobre as criações de
ter boas ideias sobre como pensar a educa- moda. Como a criatividade na moda envol-
ção e a inserção do país no campo de desen- ve arranjos que vão desde a alta costura, ao
volvimento científico e tecnológico. fast fashion, passando por inúmeros criado-
Apresento a seguir o meu próprio tex- res de pequeno porte - movidos muito mais
to sobre o Marco Civil da Internet. Indepen- por paixão do que por razões econômicas,
dente do seu resultado final no Congresso, o no melhor espírito do “faça você mesmo” -
texto mostra como o projeto do Marco Civil a discussão permite entender que o dilema
representa um anseio por uma democracia entre proteger ou incentivar a criação é um
ampliada, bem como por participação do dos centrais dos nos nossos tempos.
país no ciclo de inovação global. A trajetória Seguindo na mesma trilha, o profes-
do Marco Civil demonstrou que é possível sor Sérgio Branco, um dos mais respeita-
construir um texto de lei – ainda que com- dos autores de direitos autorais do Brasil,
plexo e envolvendo vários problemas técni- apresenta o projeto Creative Commons. Ao
cos – colaborativamente, valendo-se para longo dos últimos anos, o Creative Com-
isso da própria internet e das tecnologias mons tornou-se uma importante ferramen-
de informação. Além disso, analiso o debate ta de ampliação do acesso ao conhecimento
sobre o Marco Civil por tantos anos, perce- e para o estímulo de novas formas de cria-
be-se claramente o desejo de que o Brasil ção. Sites como a Wikipédia só existem
possa ser não apenas consumidor de tecno- porque utilizam uma licença jurídica como
logia, mas também produtor e desenvolve- o Creative Commons. Sérgio conta um pou-
dor de soluções e serviços globais. Entender co da história do projeto no Brasil e sua for-
o projeto do Marco Civil é vislumbrar como ma de funcionamento.
não podemos deixar que questões de curto A seguir passamos a tratar a questão da
prazo obliterem temas de longo prazo para privacidade, com dois textos que demarcam
o país, sem os quais ficaremos à deriva nos posições. De um lado, Danilo Doneda, advo-
próximos muitos anos. gado, professor e um dos maiores especia-
Seguimos então para o artigo de Mô- listas do país sobre o assunto. Em seu texto,
nica Guise, professora de direito da Facul- Danilo apresenta como o Brasil não possui
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leis específicas sobre privacidade. E fala dos ro de arrecadação e distribuição de direi-


diferentes modelos legais para se proteger. tos autorais. O Ecad é objeto de inúmeras
Esse tema se tornou um dos assuntos mais controversas, dentre elas o fato de ter sido
importantes para a esfera pública global investigado por CPIs (tendo sido encon-
desde as revelações do caso Snowden. Vale tradas irregularidades em todas elas). As
lembrar que até mesmo nossos vizinhos la- disputas entre o órgão, artistas, criadores,
tino-americanos, da Argentina a Honduras, compositores e usuários de direitos auto-
passando pelo Chile e pela Colômbia, pos- rais culminaram em sua condenação pelo
suem leis que de alguma forma tratam da CADE (Conselho Administrativo de Defesa
proteção aos dados pessoais. Enquanto isso, Econômica) por formação de cartel e práti-
nosso país permanece na indecisão sobre o cas não competitivas. E também na aprova-
tema, mesmo depois do escândalo de espio- ção da Lei 12.853, de 2013. Bruno Lewicki
nagem dos Estados Unidos. descreve o processo de aprovação dessa lei,
De outro lado, Dave Heller, advogado suas características e como ela representa a
especialista em liberdade de expressão do busca por transparência e empoderamento
Media Law Resource Center, apresenta para os criadores no país.
os riscos do excesso de privacidade para a Por fim, a revista se encerra com o
liberdade de expressão. Heller apresenta jurista Denis Borges Barbosa, que discor-
uma série de casos e discorre sobre como re sobre um tema que perpassa várias das
uma proteção não balizada à privacidade discussões aqui presentes, da nova revolu-
pode empobrecer a esfera pública e impedir ção industrial constante do primeiro texto,
o escrutínio e a transparência sobre casos à criação na moda, à prática da ciência no
que são claramente de interesse público. Na país e também ao nosso desenvolvimento
contraposição de visões sobre a privacidade científico e tecnológico. Denis descreve de
de Danilo Doneda e Dave Heller, é possível forma técnica, analítica e precisa o que está
reconhecer a complexidade do tema e vis- em jogo na reforma da lei de patentes no
lumbrar caminhos para que nosso país pos- Brasil, enfrentando os detalhes desse tema
sa sair da deriva em que se encontra até hoje igualmente complexo e importante.
com relação a ele. Como dito, espera-se que as análises
Temos então o artigo de Bruno Lewi- aqui reunidas sejam começos de novas con-
cki, outro renomado especialista em direito versas. Elas vislumbram o nascimento de
autoral, representante de uma nova geração um novo horizonte de estudos, que se torna
de autores que vem renovando o estudo da cada vez mais visível por meio da expressão
disciplina no país. Bruno sintetiza em seu “tecnologia e sociedade”. É um campo in-
artigo uma das disputas mais interessan- domável, que cresce nas fendas entre dife-
tes dos últimos anos. Aquela que levou à rentes disciplinas e instituições. E é melhor
regulamentação do Ecad, o órgão brasilei- que continue assim.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  13

sumário
3. Aos Leitores. 118. Afinal, o que é Creative commons?
Ronaldo Lemos Sérgio Branco

20. De volta aos átomos: Movimento 136. A proteção da privacidade e de


Maker, Hardware Livre e o surgimento de dados pessoais no Brasil
uma nova revolução industrial. Danilo Doneda

146. A expansão e o abuso do direito


Manoel Lemos

38. Cosmopolitas Digitais: a à privacidade ameaçam a liberdade de


promessa cumprida e não cumprida da expressão
internet como aldeia global Dave Heller

166.
Ethan Zuckerman

74. Entrevista
Revolução de Veludo na gestão
coletiva de direitos autorais
Claudio Lenz Bruno Lewicki

92. A Sociedade Contra-Ataca: o 184. A Reforma da Lei de Patentes


Marco Civil como símbolo do desejo por no Brasil e seu impacto para a inovação.
inovação no Brasil. Dênis Borges Barbosa
Ronaldo Lemos

106. Fashion Law é a nova moda


do direito.
Mônica Guise
Nesta edição, apresentamos o
ensaio fotográfico Formas de Luz do
fotógrafo Leo Miranda, realizado no
Rio de Janeiro e São Paulo ao longo
dos anos de 2009 e 2010.
Nascido em Uberaba-MG, formado em Administração de Empresas, L3ocho sempre
teve a arte como atividade paralela. Após anos trabalhando em grandes empresas, o namo-
ro com a arte ficou mais sério primeiramente através da música. Tempos depois de traba-
lhar como DJ e experimentar viagens de imagem e vídeo, percebeu na imagem seu meio de
expressão ideal. Em 2007, iniciou a graduação em Artes Visuais na Escola de Belas Artes
da UFRJ, com a qual aprendeu conceitos aplicáveis na fotografia. Hoje, concentra-se no
desenvolvimento da linguagem de forma artística, sempre em busca de novos aprendiza-
dos e maneiras de retratar o assunto escolhido. O percurso não linear e o olhar inquieto
revelam-se em suas imagens.

20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

DE VOLTA AOS ÁTOMOS:


Movimento Maker, Hardware Livre e o surgimento de
uma nova revolução industrial

Manoel Lemos

A popularização dos computadores e da Internet tornou a vida mais digital e está trans-
formando de maneira brutal todos os negócios. Partimos das coisas físicas e levamos todas
para o mundo dos bits. Agora, votamos aos átomos onde as tecnologias digitais mudarão a
maneira como criamos e produzimos coisas do mundo físico. Essas tecnologias trazem mu-
danças em como as coisas são produzidas e em quem as produz. Entusiastas do mundo todo se
organizam através da web em torno de ideias como o Hardware Livre e o Movimento Maker e
são pioneiros desta Nova Revolução Industrial.

É
inegável que, nos últimos 30 anos afetar o lado mais sólido da economia, a in-
com a popularização dos computa- dústria. Assumindo que a economia digital
dores e o crescimento da Internet, ainda representa menos de 14% da econo-
a vida se tornou mais digital e os impactos mia global1 e que uma parte significativa do
da digitalização transformaram de manei- restante é associada aos mundos das coisas
ra brutal e profunda todos os negócios que físicas, podemos esperar que a chegada dos
foram tocados por essa onda. Partimos das efeitos da digitalização e da web na indús-
coisas físicas, dos átomos, e chegamos ra- tria traga uma transformação de propor-
pidamente ao mundo dos bits onde quase ções ainda maiores do que a que vimos até
tudo foi digitalizado. Menos falado, mas tal- agora. É nesse contexto que ideias que nas-
vez até mais significativo, tivemos em algu- cem ou crescem alimentadas pela filosofia
mas indústrias algo ainda mais impactante da Internet, como o Movimento Maker, o
do que a simples digitalização das coisas. O Hardware Livre e a Internet das Coisas, são
que vimos foi uma completa mudança na peças fundamentais de uma incrível nova
maneira de se pensar e produzir as coisas. revolução industrial.
Porém, se até há pouco tempo, esses efei-
tos ficaram restritos a alguns segmentos E chega o Hardware Livre
(notadamente a mídia, as comunicações e Há 15 anos, Richard Stallman, fundador
o entretenimento), agora eles começam a e presidente da Free Software Foundation, 
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 21

criador do projeto GNU e um dos pais De fato, se pararmos para pensar, é


e  principais ativistas do Movimento Sof- simples entender que hardware apresen-
tware Livre, escreveu um artigo no Linux ta uma complexidade bem maior para ser
Today sobre uma ideia emergente que era apropriado pelas pessoas de modo que elas
o hardware livre2. Antes de seguirmos em consigam copiá-lo (ou construí-lo para ser
frente, é importante lembrarmos que o mais exato) e modificá-lo. Quando falamos
conceito de “livre” associado ao software de software, basicamente tudo o que ne-
é referente à liberdade de utilizar, copiar e cessitamos é de um computador e de mais
modificar o software em questão. Em sua software (compiladores, bibliotecas, fer-
argumentação, Stallman dizia que “não via ramentas de desenvolvimento etc.). Prati-
vital importância social para designs de camente tudo acontece no mundo dos bits.
hardware livre como ele via para softwa- Porém, quando falamos de hardware temos
re livre”. A razão era bem simples e válida. que lidar com outros aspectos como, por
Software era bastante fácil de ser copiado e exemplo, o diagrama elétrico de um proje-
qualquer usuário de computar podia fazê- to, sua lista de componentes, o diagrama da
-lo. Porém, o mesmo não acontecia com o placa de circuito impresso, seu software (e
hardware e por isso a urgência para designs também firmware) e ainda todas as ques-
livres de hardware não era a mesma já que tões mecânicas do mesmo. Ou seja, não
seu impacto seria bastante limitado. podemos lidar com hardware apenas no
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mundo dos bits e temos que fazer uso dos das ideias para os bits, precisamos fazer o
átomos. É no mundo dos átomos e das coi- caminho de volta aos átomos. Precisamos
sas físicas que o hardware existe. Se lidar transformar o design digital num objeto do
com as entranhas de um software já é algo mundo físico. E é para isso que uma série de
que exige algum conhecimento específico, tecnologias de fabricação digital está sendo
lidar com circuitos eletrônicos e projetos desenvolvida. A mais recente delas é a im-
mecânicos é algo ainda mais complexo e, pressão 3D, na qual um modelo tridimen-
consequentemente, menos acessível. Há sional de um objeto é construído camada a
ainda a questão dos custos, enquanto para camada com algum material como plástico,
copiar um programa de computador os cus- resina ou metal. Esse tipo de técnica é co-
tos são praticamente inexistentes, cons- nhecido como construção aditiva, através
truir um gadget, por mais simples que seja, do qual o modelo 3D é transformado em
exige algum gasto com peças e materiais. pequenas fatias que são construídas uma a
Nos últimos anos, no entanto, essas di- uma até comporem o objeto desejado. Ou-
ficuldades vêm sendo superadas com uma tras técnicas, já mais antigas e bastante pre-
crescente digitalização dos processos de sentes na indústria, como as máquinas con-
desenho e de fabricação de objetos. A di- trole numérico computadorizado, ou CNC,
gitalização do design é fundamentalmen- também permitem que modelos digitais se
te transformadora, pois permite que todo transformem rapidamente e de maneira au-
o projeto seja construído no mundo mais tomatizada em objetos físicos. A diferença
flexível e dinâmico dos bits. Isso facilita de é que, nesse caso, a técnica é de remoção de
maneira brutal a disseminação dos proje- material ao invés da adição como no caso
tos e a colaboração através da web. Se não da impressão 3D. Entretanto, para que isso
é possível simplesmente enviar através da tenha impacto na vida de pessoas comuns é
rede um sistema de automação residen- preciso que essas máquinas, antes restritas
cial, por exemplo, é perfeitamente possível à indústria, venham para as mesas e ofici-
enviar o design do mesmo através de um nas caseiras dos aficionados pelo hardware
e-mail ou outra ferramenta de colabora- livre. É exatamente o que está acontecendo
ção. Muitos destes programas de desenho neste momento com uma onda de projetos
assistido por computador, os CADs, come- e produtos de fabricação digital desktop. Já
çam a ser distribuídos gratuitamente pela há alguns anos, o mundo do hardware livre
web. Seja para projetar um circuito elétrico, conta com um projeto pioneiro de impres-
projetar um modelo 3D de uma peça de um são 3D, a RepRap, a “primeira máquina de
carro ou criar as peças de um brinquedo de manufatura auto replicável do mundo”3. A
madeira, tudo pode ser criado digitalmente RepRap é um projeto de design aberto que
com ferramentas livres e compartilhado na pode ser utilizado por qualquer pessoa para
rede utilizando formatos de arquivos facil- criar uma impressora 3D desktop e que é o
mente manipuláveis. ancestral de uma série de outros produtos
Agora que já percorremos o caminho livres e comerciais que começam a chegar
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 23

às casas de pessoas como você e eu. Na CES Cauda Longa e Makers - A Nova Revolução
- Consumer Electronics Show - deste ano Industrial, resumiu isso e a história de duas
em Las Vegas, a maior feira de equipamen- décadas de inovação em duas frases: “Os
tos eletrônicos do mundo, já existia uma últimos dez anos tem sido sobre a desco-
área dedicada a expositores de tecnologia berta de novas maneiras de criar, inventar
de impressão 3D para uso pessoal. Essa e colaborar na web. Os próximos dez anos
área contava com mais de 30 expositores e serão sobre como aplicar essas lições no
dezenas de produtos4 com preços que co- mundo real”6.
meçavam na faixa de 1200 reais. Com isso, Um dos efeitos mais comentados sobre
a fabricação digital fica bem mais acessível, as tecnologias digitais é o da desmateriali-
chega até as oficinas dos fazedores e supera zação das coisas. Listas telefônicas foram
mais um desafio para a viabilização de pro- substituídas pelo Google, enciclopédias
jetos de hardware aberto. pela Wikipédia, revistas e jornais por sites,
Resumindo: o que antes era pouco re- blogs e edições eletrônicas rodando em ta-
levante por ser muito complexo e pouco blets e smartphones, DVDs deram espaço
acessível, hoje é uma realidade. Sim, esta- para serviços como o Netflix e lojas físicas
mos apenas na infância desse movimento, lutam para resistir aos encantos do e-Com-
mas se olharmos para seus primos mais ve- merce. Os impactos da digitalização de pro-
lhos do mundo dos bits e das impressoras de dutos e serviços e também de grande parte
papel, podemos extrapolar e imaginar para dos canais e interfaces que utilizamos para
onde isso vai e os impactos em nossa vida. interagirmos com eles foi brutal e viabiliza-
A Internet e a web são dois fenômenos que ram o surgimento de modelos de negócios
só são o que são por serem fundamental- inovadores que não eram possíveis antes.
mente baseados e suportados por padrões No entanto, outro tipo de mudança
abertos e software livre. E as impressoras ainda mais profunda e transformadora
a jato de tinta e laser, quando nasceram, aconteceu com a chegada da web e ela às
custavam mais de 1000 dólares e hoje estão vezes acaba passando por despercebida já
presentes em quase todas as casas, escolas que acontece atrás das cortinas. Estamos
e escritórios5. É questão de tempo para a fa- falando de uma mudança no como as coi-
bricação digital chegar a nossas casas, esco- sas são feitas e por quem elas são feitas.
las e escritórios. A relevância dos blogs não está apenas em
seu formato inovador que trouxe um diário
Uma nova Revolução Industrial eletrônico para web, mas sim na incrível
Mais importante do que o fato de har- democratização dos canais de comunicação
dware livre ser algo viável é o que está acon- que eles implicaram. Qualquer pessoa pode,
tecendo com a popularização e expansão de um dia para outro, sem precisar de gran-
desse conceito quando ele é combinado des orçamentos, começar a editar e publicar
com a filosofia da web. Chris Anderson, ex- um blog sobre qualquer assunto de seu inte-
-editor da Wired e autor dos best-sellers A resse. Uma vez publicado, ele fica acessível
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26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

para qualquer outro usuário da Internet em de grandes empresas e outras instituições


qualquer lugar do mundo a qualquer hora, mais estruturadas. Agora, com a digitali-
tal qual um grande portal de uma mega- zação dos métodos de design e produção de
empresa de comunicações. A Wikipédia é coisas do mundo físico, veremos mudanças
hoje a maior fonte de referências do mundo semelhantes acontecendo e causando um
e não para de crescer vivendo puramente impacto talvez até maior do que o que a web
de colaborações de pessoas e instituições, já causou até aqui. Afinal, o mundo físico
e da doação de milhares de horas de traba- é muito maior que o virtual e até há pouco
lho de uma multidão de editores. Talvez o tempo a capacidade de se produzir coisas fí-
exemplo mais poderoso de todos seja o da sicas estava restrita a grandes manufaturas
comunidade de software livre. Milhares de e empresas. É hora de mudar o modo como
programadores no mundo todo dedicaram a indústria funciona e quem pode produzir
horas de seus dias a desenvolver software coisas do mundo físico.
livre que pudesse ser amplamente e irres- Um exemplo pessoal pode ajudar a
tritamente copiado, modificado e utilizado entender o que está acontecendo. Desde
no desenvolvimento de outros softwares. que minha segunda filha nasceu e que nos
Nasceram, a partir de então, desde um dos mudamos para um novo apartamento, te-
sistemas operacionais mais populares do nho me preocupado em ser um pouco mais
mundo, o GNU/Linux e todas suas varia- consciente com relação ao consumo de
ções, até as ferramentas que são o coração energia. Também tenho pensado em como
da web como conhecemos hoje. Veja que em ajudá-las a criar essa consciência de ma-
nenhum desses casos temos uma megacor- neira mais tranquila e natural do que rece-
poração controlando, financiando e desen- ber as constantes broncas de minha esposa
volvendo os projetos. Tudo acontece dentro por esquecer alguma lâmpada acesa. Tive
da filosofia de abertura e colaboração da então a ideia de criar um brinquedo, uma
web, pela qual qualquer um, com as habili- bonequinha, que ficasse triste ou feliz de
dades necessárias e com tempo disponível, acordo com o consumo de energia elétrica
pode colaborar. do apartamento. Dessa forma, com a boneca
Instituições como o Instituto de Tec- em mãos elas poderiam, os poucos, perceber
nologia de Massachusetts, o MIT, e a Uni- que quando desligam algumas lâmpadas e
versidade de Harvard estão digitalizando e outros eletrodomésticos a boneca que an-
compartilhando na rede todos os seus cur- tes estava triste fica feliz, e assim associar a
sos e com isso milhares de estudantes do boneca feliz com uma casa mais saudável e
mundo todo passaram a ter acesso a uma econômica em termos energéticos. Até hoje
educação de primeiro nível. Se alguém tem a boneca ainda não passou de vários rabis-
a ideia de vender algum produto, ele pode, cos e um protótipo, mas ela me levou a uma
em poucas horas, construir uma loja virtual aventura bem interessante pelo mundo do
e começar a operar. A dinâmica é comple- hardware livre e das coisas conectadas.
tamente diferente das que vemos dentro Na realidade minha aventura com
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 27

hardware aberto começou há alguns anos LED começou a piscar exatamente como o
quando resolvi voltar a brincar com ele- programa instruía. Choquei-me. Em 1993
trônica. Lá pelos meus oito anos de idade, no laboratório de circuitos digitais da UNI-
mais de 30 anos atrás, lá em Araguari, eu já CAMP aquilo levaria algumas aulas para
comprava algumas revistas de eletrônica e acontecer e seu processo teria sido bem
tentava, na maioria das vezes sem sucesso, mais árduo. De fato, era bem simples escre-
montar algum circuito interessante. Depois, ver um programa para que a pequena placa
na UNICAMP, na Faculdade de Engenharia fizesse o que eu queria. Logo depois percebi
da Computação, tive que fazer várias disci- a dimensão e o poder daquele projeto.
plinas e laboratórios de eletrônica e acabei Vale lembrar que o Arduino é um pro-
construindo projetos mais complexos. No jeto de hardware livre. Todo o design das
entanto, a eletrônica ficou relativamente placas está disponibilizado no site do proje-
esquecida quando me enveredei pelo mun- to com licenças que permitem que ele seja
do da web construindo algumas startups utilizado por terceiros para a fabricação de
e, depois, trabalhando profissionalmente suas próprias placas, de variações das mes-
com ela. Como na web tudo software, você mas e, até mesmo, que esses projetos possam
realmente trabalha no mundo dos bits. Na ser comercializados. Todo o software, seja
eletrônica não, todavia já era hora de meu ele o embarcado nas placas ou o ambiente
passado com a eletrônica voltar com for- de desenvolvimento, está disponível com
ça total. No final de 2009 descobri, não me licenças igualmente abertas. Ao procurar
lembro como, um projeto chamado Ardui- por ideias de projetos para fazer com meu
no7 que se tratava de uma plataforma aberta Arduino, deparei-me com uma gigantesca e
para prototipagem de projetos eletrônicos. ativa comunidade na web. Centenas de pro-
Uma mistura de hardware e software que jetos dos mais simples até os mais comple-
permite que qualquer pessoa com poucos xos estavam disponíveis na rede com todos
conhecimentos técnicos desenvolva proje- os detalhes necessários para quem tivesse
tos de hardware dos mais variados. Não tive o interesse de implementá-los. Além disso,
dúvidas, tão logo surgiu uma viagem para o várias lojas de componentes eletrônicos
exterior, encomendei um kit para iniciantes traziam versões modificadas do Arduino e
e um monte de peças. A primeira surpresa também módulos de expansão que adicio-
foi quando pluguei a pequena plaquinha de navam as mais variadas funcionalidades ao
circuito impresso - que era um Arduino - mesmo. Módulos de comunicação sem fio,
em meu Mac. Fiz o download do ambiente interfaces de rede, displays e uma infinida-
de desenvolvimento no site do projeto, abri de de sensores, tudo disponível, com pro-
o código exemplo de um programa que de- jetos abertos, instruções detalhadas e uma
veria fazer um LED piscar na placa e pedi grande comunidade de aficionados gerando
para que o ambiente de desenvolvimento conteúdo interessante sobre o assunto.
compilasse o programa e enviasse para o Voltemos à ideia de criar uma boneca
Arduino. Segundos depois um pequeno que tenha consciência do consumo de ener-
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

gia de meu apartamento. A primeira coisa decidi entrar no fórum de discussões. En-
que eu precisava encontrar era uma manei- contrei uma discussão que parecia ser se-
ra de medir o consumo de energia elétrica melhante ao problema que eu tinha, postei
da casa. Fui para a web e procurei por “Ar- uma pergunta com os detalhes do meu caso
duino based energy meter” ou “medidor de e aguardei. Para minha surpresa, em me-
energia baseado em Arduino”. O primeiro nos de uma hora recebi a primeira resposta
resultado era de um projeto chamado Open com várias informações relevantes e outras
Energy Monitor8 ou Monitor de Energia explicações. A partir daí, o fórum passou a
Aberto. Ao clicar nele, deparei-me com o ser minha principal fonte de informações
site do projeto que se descrevia como “um sobre o projeto e lá consegui a ajuda mais
projeto para desenvolver ferramentas de rápida e eficiente que pude encontrar. Era
monitoramento de energia de fonte aberto a web funcionando em sua melhor forma.
para ajudar a nos relacionarmos com nosso Nem mesmo os sites dos fabricantes de al-
uso de energia, nossos sistemas energéticos guns dos componentes necessários para
e o desafio da energia sustentável”. Rapida- o projeto eram tão rápidos ou precisos
mente encontrei uma seção do site chama- quanto a comunidade do projeto. Tal como
da “building blocks” ou “peças básicas”, que vimos  acontecer com o software livre, a
continha exatamente tudo o que eu procu- filosofia da abertura e da colaboração de
rava: um circuito básico de como montar projetos, como o Arduino e o Open Energy
um medidor não invasivo de corrente elé- Monitor, cria ecossistemas inteiros em tor-
trica utilizando um Arduino e algumas ou- no dos projetos.
tras poucas peças. O site contava com uma Esses são apenas dois dos milhares de
detalhada documentação de como o circui- projetos de hardware aberto em atividade
to funcionava e disponibilizava uma biblio- hoje na Internet. Não estamos falando ape-
teca de software para Arduino que realizava nas de projetos de eletrônica ou mais pró-
todas as medições e cálculos mais comple- ximos do mundo do software livre, e sim de
xos. Portanto, ao conseguir as peças neces- projetos em todas as áreas do conhecimen-
sárias, não precisei de mais do que cerca de to, relacionados a todas as indústrias que
duas horas para ter meu primeiro medidor conhecemos, graças ao que aprendemos
de energia funcionando. com a web e ao poder de transformar que
Na medida em que fui incrementando a rede tem. Dois bons exemplos de projetos
meu projeto e tentando torná-lo mais preci- em outras áreas são o Global Village Cons-
so, deparei-me com algumas dúvidas técni- truction Set9 e o DIYBio10. O Global Village
cas de como o projeto original funcionava. Construction Set tem o objetivo de criar
Depois de procurar exaustivamente pelo projetos de hardware aberto de 50 equipa-
site e não encontrar uma resposta exata mentos industriais necessários para se criar
para minhas dúvidas, relacionadas a como uma pequena civilização com confortos
localizar o projeto originalmente desenha- modernos. A iniciativa conta com uma rede
do para funcionar no Reino Unido no Brasil, de voluntários que estão criando projetos
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 29

de equipamentos como caminhões, trato- a acontecer de maneira automática atra-


res, escavadeiras, motores, geradores, tri- vés de máquinas inteligentes e robôs, ficou
turadores, serrarias e até mesmo um carro. mais fácil produzir um design em larga es-
Tudo com a documentação necessária para cala utilizando a capacidade de produção de
que qualquer pessoa possa construí-los por terceiros. Na realidade, é possível trabalhar
uma fração dos custos de um equivalen- com a produção em praticamente qualquer
te industrial. Já o DIYBio tem o objetivo escala. Se seu projeto é um gadget eletrôni-
de criar as condições para que a biologia co e você precisa produzir algumas placas
e a biotecnologia estejam mais acessíveis de circuito impresso de um protótipo basta
para a população em geral. Sua missão é procurar na web por esse tipo de serviço.
aumentar o conhecimento sobre o assunto Rapidamente você encontrará algumas em-
e democratizar acesso a esse tipo de tecno- presas que estão prontas para receber seu
logia. Um dos problemas atacados por eles design em um dos formatos digitais mais
é o fato de que esse tipo de comuns, montar um orça-
“De fato, a manufatura parece
pesquisa exige laboratórios estar acessível para todos. mento em tempo real e dis-
cheios de equipamentos E isto é uma revolução.” parar a produção logo que
caros e inacessíveis. Para você autorizar o pagamen-
superar a dificuldade, eles começaram por to de poucas dezenas de dólares com seu
criar projetos abertos dos equipamentos cartão de crédito. Alguns dias depois você
básicos necessários para as pesquisas na receberá as placas prontas para construir
área, desde centrífugas de laboratório até seu gadget. Em alguns casos os prestadores
microscópios e equipamentos para a mani- de serviço podem até popular as placas para
pulação de células. você. Se sua necessidade são milhares de
Esse é o pano de fundo para o que es- placas, o processo é basicamente o mesmo
tamos chamando de uma nova revolução e o que muda são os prazos e os preços. O
industrial. Ela é resultante da mistura da mesmo se aplica para a impressão de obje-
digitalização dos métodos de design e pro- tos em 3D, para o corte de peças em acríli-
dução de coisas com a filosofia de abertura co, madeira ou metal. De fato, a manufatura
e mobilização da web, que muda o como parece estar acessível para todos. E isto é
e por quem as coisas são produzidas. A uma revolução.
produção de coisas físicas, antes restrita
às grandes fábricas, pode agora ser feita O Movimento Maker
por  praticamente qualquer pessoa. Obvia- Há pouco mais de um século, por volta
mente, a fabricação digital desktop não é de 1900, florescia na Inglaterra um movi-
adequada para grandes volumes, mas esse mento contra a industrialização da arte e do
problema também é atacado pela digitaliza- artesanato. O movimento Arts & Crafts11
ção da fabricação, a web e, é claro, a globali- ou Arte & Ofício valorizava a criação arte-
zação. Uma vez que os desenhos passaram sanal mais tradicional com formas simples
a existir digitalmente e a produção passou e métodos mais criativos e lutava contra
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

uma produção artística mais mecânica e de madeira desenhados com equações ma-
também a produção em massa de peças de temáticas e fabricados com equipamentos
arte. Mais tarde, nos anos 1940, nos Estados de corte a laser; de robôs caseiros a drones
Unidos, começa a surgir outro movimento autônomos para aplicações diversas utili-
cultural que buscava uma conexão maior zando micro controladores como o Ardui-
das pessoas com as coisas que elas usavam, no; de consoles de videogame retrô a reló-
a cultura do DIY - Do It Yourself12 ou Faça gios inteligentes que se comunicam com
Você Mesmo. Tudo claramente conectado seu smartphone; de peças de decoração
com uma busca por economias e um desejo construídas em impressoras 3D a subma-
de apropriação das coisas pelas pessoas e rinos pessoais que podem fazer expedições
em oposição à massificação da produção e a de verdade.
obsolescência programada das coisas. Muitas dessas invenções acabam se
Como toda subcultura desse tipo, fa- tornando superpopulares e evoluem para
zia parte da gama de participantes desde seus próprios ecossistemas, criando cate-
os mais politizados ativistas até os mais gorias próprias, como é o caso do Arduino,
puristas, que se preocupavam basicamen- dos drones, dos projetos de computação
te com a arte e a técnica por trás de tudo. vestível, dos projetos de móveis livres e dos
Nesse movimento, pessoas buscavam projetos de coisas conectadas. Mas isso não
construir seus próprios móveis e roupas, é novidade. Se olharmos para o começo da
consertar seus equipamentos estragados, história da computação pessoal no começo
publicar suas próprias revistas, produzir dos anos 1970, encontraremos um ponto
seus próprios alimentos e fazer sozinhas comum a todos os projetos que definiram a
as melhorias em suas casas. No entanto, categoria, transformaram a indústria e in-
quase tudo ainda era desconectado de prá- vadiram nossas casas. O exemplo que mais
ticas mais modernas e tecnológicas e do gosto é o do Homebrew Computer Club
uso de computadores no processo. Mais ou Clube do Computador Caseiro, um
tarde, a cultura DIY acabou, como parece grupo de hobistas e aficionados por tecno-
acontecer com tudo, sendo contaminada logia que se encontravam no Vale do Silício
pela tecnologia e, mais recentemente, pela para trocar informações e experiências so-
própria Internet. Esta extensão tecnoló- bre como construir seus próprios computa-
gica da cultura DIY ficou conhecida como dores. O primeiro encontro aconteceu em
Maker Movement ou Movimento dos março de 1975 e inspirou toda uma geração
Fazedores (ou construtores, inventores, de pioneiros da indústria, como Steve Wo-
realizadores). Os participantes desse mo- zniak, o pai-engenheiro do Apple I. No ano
vimento estão abraçando a possibilidade seguinte, Wozniak e Steve Jobs criaram
de construir com suas próprias mãos e o Apple I e fundaram a Apple Computer
de maneira profundamente colaborativa, Inc. Mais tarde, em 1997, a Apple lançou o
graças à web, todos os tipos de coisas. De Apple II e o restante é uma história que co-
instrumentos musicais digitais a móveis nhecemos bem.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 31

Tal qual na época do Homebrew Com- andamento ou simplesmente utilizar al-


puter  Club, o Movimento Maker tem em guns dos equipamentos disponibilizados.
sua filosofia o desejo de aprender, criar e Na mesma linha temos, em São Paulo, o
construir de maneira colaborativa. Os en- Garoa Hacker Clube14, o primeiro hackers-
contros de makers para a troca de expe- pace do Brasil. Se você está em busca de um
riências também são igualmente comuns primeiro contato com a cultura maker (e
e agora contam com a força da web para hacker), o Garoa é um destino obrigatório.
comunicar os eventos e agregar grupos de Na linha dos espaços pagos, o grande
interessado que variam entre poucos e mi- destaque é a rede de oficinas TechShop que
lhares de participantes. Ao mesmo tempo está presente em oito cidades dos Estados
em que o Movimento Maker começava a Unidos e que tem planos agressivos de ex-
ganhar força, também surgiram espaços pansão nacional e internacional. Lá, você
chamados de Hackerspaces, Makerspaces encontra de tudo para transformar seu pro-
ou FabLabs, onde makers e hackers se en- jeto em realidade. Equipamentos pesados
contravam para a troca de experiências e para trabalhar com metais, impressoras 3D
para trabalharem em projetos de maneira industriais, máquinas de corte a laser e uma
conjunta. Tais espaços são como laborató- equipe de consultores para ajudar em seu
rios abertos que oferecem a infraestrutura projeto. Tudo disponível para os membros
necessária para que seus frequentadores que pagam uma mensalidade para a utili-
trabalhem em seus projetos. Embora cada zação dos equipamentos e que arcam com
tipo de espaço tenha suas características os custos de materiais. Esse tipo de espaço
próprias, a ideia é quase sempre a mesma: também começa a chegar ao Brasil, como é
um espaço onde conhecimentos são com- o caso do Garagem Fab Lab15, em São Paulo.
partilhados e projetos são construídos. Al- E o Movimento Maker vem crescendo
guns são mantidos por suas comunidades não apenas como uma resposta ao nosso
de frequentadores e não tem o objetivo de desejo de nos apropriarmos das coisas e
lucrar com a atividade, outros são construí- construirmos tudo por nós mesmos, mas
dos com o objetivo de se tornarem negócios, também como uma importante ativida-
na forma de uma oficina utilizada sob de- de comercial e industrial. O que começa
manda. Esses espaços crescem de maneira como um projeto de interesse puramente
absurda nos Estados Unidos, na Europa e pessoal, pode evoluir para a criação de uma
na China e também começam a aparecer nova empresa e atingir bastante sucesso
aqui no Brasil. comercial. É, portanto, nesse sentido que o
Entre os representantes dos hackers- Movimento Maker se encaixa no contexto
paces abertos e sem fins lucrativos temos o da Nova Revolução Industrial que falamos
Noise Bridge13 em San Francisco, no qual a anteriormente. Um bom exemplo é história
qualquer hora você pode aparecer, encon- da Maker Bot Industries, os fabricantes
trar pessoas trabalhando nos mais variados das mais populares impressoras 3D do mo-
projetos, participar de algum workshop em mento. Em 2009, três amigos, empreende-
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

dores e ligado à cena hacker/maker de Nova com outros interessados pelo assunto. Aos
Iorque, Bre Pettis, Adam Mayer e Zach poucos, começou a construir e comerciali-
“Hoeken” Smith fundaram a empresa para zar kits para seus designs, o que deu origem
construir e comercializar kits de impresso- a 3DRobotics que, hoje, desenha e comer-
ras 3D que qualquer pessoa poderia montar. cializa projetos de drones, tem mais de uma
Seus projetos eram baseados nos progres- planta física para a construção dos robôs,
sos conseguidos com a RepRap, a primeira cresce a incríveis taxas de dois dígitos e, em
impressora 3D de hardware aberto. A ideia 2012, mirava passar os 5 milhões de dóla-
foi um sucesso e eles venderam mais de três res em receitas18. A Maker Bot Industries e
mil unidades nos primeiros momentos de a 3DRobotics são apenas dois exemplos de
existência da Maker Bot. Quando criaram milhares de pequenas indústrias que estão
a empresa eles também criaram um espaço nascendo das mãos de makers ao redor do
colaborativo na web chamado Thingiverse, mundo, propulsionadas pela fabricação di-
onde usuários de impressoras 3D podiam gital, o hardware aberto e o incrível poder
compartilhar seus designs. Mais tarde, em de transformação da web. É a nova revolu-
meio a uma polêmica por decidirem fechar ção industrial acontecendo aqui e agora.
parte de seus designs, a Maker Bot criou
seu maior sucesso comercial, a Maker Bot E no Brasil?
Replicar: uma impressora 3D desktop bem Uma das grandes proezas da Internet
produzida, amigável e com seu custo em foi a de espalhar as boas ideias pelo planeta
torno dos 2 mil dólares. Recentemente, em todo na velocidade da luz, o que fez com que
2013, a Maker Bot foi adquirida pela Stra- qualquer tipo de movimento interessante
tasys, uma das pioneiras da impressão 3D que nascesse em qualquer parte do mundo
industrial, pelo valor em ações da Stratasys tivesse seus efeitos sentidos aqui no Brasil.
equivalente a 403 milhões de dólares na Além disso, o Brasil sempre foi muito ativo
época da compra. nas comunidades de software livre, sendo
Outro exemplo interessante é Chris um dos países que mais luta pela adoção e
Anderson, ex-Editor-Chefe da Wired e disseminação do software livre em todas as
fundador de uma empresa chamada 3DRo- camadas sociais e, principalmente, no go-
botics, que fabrica drones dos mais diver- verno. Para completar, a natureza de aber-
sos tipos. Segundo Chris, a 3DRobotics16 tura e agregação da web são bem comuns
nasceu de uma aventura sua pelo univer- ao brasileiro, o que reflete em nossos índi-
so maker quando resolveu construir um ces de utilização de plataformas sociais de
pequeno drone com Legos para sua filha. todos os tipos. Tais fatos fizeram com que
Devido às dificuldades encontradas, An- o brasileiro entendesse rapidamente a di-
derson resolveu criar uma rede social cha- nâmica do hardware livre e do Movimento
mada DIYDrones17, ou Faça-Você-Mesmo Maker. A ponto de nosso primeiro hacke-
Drones, através da qual ele trocaria ideias rspace, o Garoa Hacker Clube, ter suas ori-
e buscaria soluções para seus problemas gens por volta de 2009, não muito depois de
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 33

nascerem o NoiseBridge, em San Francis- dessa revolução está disponível em inglês


co, e o NYC Resistor, em Nova Iorque, entre e, por isso, inacessível para  nossos  futu-
2007 e2008. Infelizmente, entretanto, te- ros fazedores.
mos muitos desafios para o desenvolvimen- Por fim, o ecossistema maker ainda é
to desses movimentos por aqui. incipiente no Brasil. Temos alguns espaços
Os desafios não são muito diferentes com os hackerspaces e fablabs começando
dos quais encontrariam a indústria do sof- a aparecer em algumas das grandes cida-
tware livre ou as startups de quaisquer ti- des, mas eles são inexistentes no restante
pos. Eles vão desde a falta de um ecossiste- do país. O próprio sucateamento de nossa
ma adequado para suportar o nascimento e indústria, que veio crescendo basicamente
o amadurecimento de projetos e empresas, pelo aumento da mão de obra disponível e
até o complexo arcabouço regulatório que não pela busca por eficiência tecnológica,
dificulta a vida de quem se aventurar a criar não está permitindo a criação de capaci-
algo novo. No caso de projetos de hardware, dade produtiva para ser usada por futuros
sua natureza deixa algumas coisas ainda makers que venham a buscar formas de es-
mais difíceis. Uma delas é o acesso aos equi- calar suas produções. Ou seja, quem tiver
pamentos e componentes necessários para uma ideia pronta para ir para o mercado,
a implementação do projeto  que, ou não terá grandes dificuldades em fazer isso.
estão disponíveis ou têm custos absurdos Não podemos esquecer outro aspecto
no Brasil. Isso acaba inviabilizando alguns que atinge todo e qualquer tipo de empre-
projetos ou criando para eles uma situação endedorismo no Brasil: a falta de capital
bem desfavorável no cenário competitivo. de risco para os empreendedores. Apesar
Outro problema enfrentado é a falta desse quadro ter mudado bastante nos últi-
de exemplos nacionais de sucesso para mos anos com o amadurecimento do ecos-
inspirar novos fazedores. Se olharmos sistema de investidores no Brasil e com a
para o mundo das startups de Internet, são chegada de alguns investidores de risco in-
escassos os casos de saídas de sucesso, e ternacionais, a situação ainda está longe do
no mundo do hardware elas praticamente ideal, configurando-se como um dos prin-
não existem. Ainda na formação de novos cipais atravancadores no país. Some-se a
makers, a relação de nossa academia com a isso a complexidade de nosso sistema legal
indústria é muito mal resolvida e não cria em torno do tema e os constantes casos de
os incentivos necessários para que mais over-regulação para temas emergentes.
pessoas se interessem pelo assunto. Neste Mas não é hora de abrir mão do sonho
contexto, acredito que exista ainda um de- de um ecossistema ativo e transformador
safio mais básico que é a educação e dispo- em torno do Movimento Maker no Brasil.
nibilização de conteúdo de qualidade em Vejo cada vez mais gente falando do assun-
português para formar uma nova geração to, algumas startups nascendo com bases
de makers. A maioria absoluta do conteú- sólidas e muita gente disposta a ajudar. É
do necessário para quem quer fazer parte hora de botar para fazer!
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Manoel Lemos
Mestre em engenharia da computação pela UNICAMP, consultor de diversas em-
presas e do governo em temas relacionados à tecnologia da Web, criador da PageMe,
uma das primeiras no Brasil voltada para o universo mobile e Chefe Digital Office da
Abril Comunicações.

Fazedores.Com
O Fazedores nasceu em meio a minha recente aventura pelo universo maker.
A ideia é criar um ponto de encontro para comunidade maker do Brasil de modo a
disseminar o Movimento Maker no país. O projeto nasceu como um blog escrito por
mim e por outros makers com muito conteúdo básico e educativo para futuros makers.
Aos poucos, o projeto evoluirá para uma comunidade completa em torno do universo
maker e dará especial atenção para a formação de novos fazedores.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 35

1 Disponível em: http://migre.me/j0rBV. Acesso em: 10 abr. 2014.

2 Disponível em: http://migre.me/j0rDa. Acesso em: 10 abr. 2014.

3 Disponível em: http://migre.me/j0rDE. Acesso em: 20 abr. 2014.

4 Disponível em: http://migre.me/j0rEi. Acesso em: 10 abr. 2014.

5 Disponível em: http://migre.me/j0rF4. Acesso em: 10 abr. 2014.

6 Disponível em: http://migre.me/j0rFC. Acesso em: 10 abr. 2014.

7 Disponível em: http://arduino.cc. Acesso em: 10 abr. 2014.

8 Disponível em: http://openenergymonitor.org/. Acesso em: 10 abr. 2014.

9 Disponível em: http://opensourceecology.org/gvcs.php. Acesso em: 10 abr. 2014.

10 Disponível em: http://diybio.org/hardware/. Acesso em: 10 abr. 2014.

11 Disponível em: http://migre.me/j0rJe. Acesso em: 10 abr. 2014.

12 Disponível em: http://migre.me/j0rJJ. Acesso em: 10 abr. 2014.

13 Disponível em: https://noisebridge.net/. Acesso em: 10 abr. 2014.

14 Disponível em: https://garoa.net.br/. Acesso em: 10 abr. 2014.

15 Disponível em: http://www.garagemfablab.com/. Acesso em: 10 abr. 2014.

16 Disponível em: http://3drobotics.com/. Acesso em: 10 abr. 2014.

17 Disponível em: http://diydrones.com/. Acesso em: 10 abr. 2014.

18 Disponível em: Do livro: Makers: The New Industrial Revolution.


Acesso em: 10 abr. 2014.
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Manoel Lemos 37
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COSMOPOLITAS DIGITAIS:
A promessa cumprida e não cumprida da internet
como aldeia global

Ethan Zuckerman

Tecnologias globalizantes como a logística de containers, as viagens aéreas internacio-


nais e a internet nos trazem a promessa de um mundo cosmopolita, no qual a interação com
as pessoas e os objetos ao redor do mundo é complementada pelo conhecimento, pela consci-
ência e pelo interesse em outras pessoas e culturas. O comportamento humano, no entanto,
tende a não concretizar essa esperança cosmopolita. Se, por um lado, a informação sobre o
mundo lá fora é mais acessível por meio das tecnologias digitais, por outro o nosso uso de tais
tecnologias é constrito aos nossos interesses e a nossa parcialidade. Isso nos leva a ser po-
tencialmente entendidos sobre os cantos mais distantes do mundo, mas, em termos práticos,
somos menos informados sobre o globo do que éramos antes da era digital.

O
Aiatolá Ruhollah Khomeini de Alguns iranianos – não mais do que
setenta e cinco anos estava exila- 1.200 por mês – tinham a visita ao Iraque
do do Irã há catorze anos. As suas permitida para adorar o santuário, e alguns
implacáveis críticas ao Xá Reza Pahvlavi, o deles voltavam para casa com uma lembran-
líder autocrático iraniano, levaram à expul- ça incomum: uma fita com os sermões do
são do Aiatolá, mas não o silenciaram. Em Aiatolá gravados. As fitas eram copiadas e
1977, ele vivia no Iraque, onde encontrou distribuídas livremente nas ruas de Teerã e
uma nova maneira de compartilhar sua outras cidades iranianas. Pressionado pelo
mensagem. Tarde da noite, normalmente Presidente dos Estados Unidos, Jimmy Car-
por volta das dez horas, depois de as mas- ter, para cumprir suas promessas de refor-
sas de peregrinos que vinham para visitar mas, o Xá instruiu a sua polícia secreta, a SA-
o santuário de Imam Ali tinham deixado o VAK, a não recolher nem destruir tais cópias.
local, o Aiatolá discursava longamente para As fitas eram marcadas como “Sokhanrain
quem quisesse lhe ouvir. Os discursos eram Mazhabi” – sermões religiosos – e vendidas
longas diatribes anti-Xá, cheios de teorias próximas às fitas de cantores populares da
conspiratórias que tentavam vincular as re- época. Parviz Sabeti, o chefe da unidade “an-
formas pró-ocidente do xá aos “judeus e aos tisubversão” da SAVAK, estimou que mais
adoradores da Cruz” que buscavam subju- de cem mil fitas de sermões foram vendidas
gar e humilhar o Irã. em 19782, e que milhões de iranianos podem
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 39

ter ouvido os discursos do Xá. Janeiro de 1978, quatro mil estudantes fo-
Amir Taheri era o editor do jornal pró- ram às ruas e exigiram que o autor do artigo
-Xá Kahyan quando as fitas se tornaram se retratasse. O poderoso exército iraniano
populares. Dois de seus repórteres lhe trou- rapidamente sufocou o protesto, matan-
xeram uma gravação que compraram no do  diversos estudantes e ferindo outros
mercado, e os três a ouviram juntos. Eles ra- nesse processo4.
pidamente concluíram que a voz na fita era A morte de estudantes abriu um ciclo
a de um ator, contratado pela SAVAK para de protestos e reações desproporcionais ao
imitar Khomeini e assim lhe desmerecer. governo, que rapidamente desestabilizou
Afinal, Khomeini era um acadêmico res- o país. Os costumes xiitas exigem cerimô-
peitável e, se muito, um radical político. Por nias, chamadas Arbaeen, quarenta dias de-
que ele se inclinaria em direção às teorias pois da morte. Os protestos acompanhavam
da conspiração, dizendo aos seus ouvintes as cerimonias dos estudantes mortos, e as
que o Xá tinha patrocinado uma pintura do tropas do Xá atiravam em de seus partici-
líder Xiita Imam Ali de cabelos loiros e com pantes. Isso desencadeou mais cerimonias,
olhos azuis, manifestando as esperanças mais protestos, e, eventualmente, greves
do Xá de que os cristãos americanos domi- gerais. Acadêmicos estimam que até 11% da
nassem o Irã? Se isso não fosse uma piada, população iraniana tenha participado des-
então seria uma tentativa de incriminar e ses protestos, um número superior ao dos
desmerecer o clérigo3. participantes das revoluções populares da
Alguns meses depois, o ministro Rússia ou da França5. Em janeiro de 1979,
iraniano de informações, Daryoush Ho- o Xá foi exilado e Khomeini, triunfante, re-
mayoun, publicou um editorial no Ettela´at, tornou ao Irã, onde foi recebido por mais
o jornal mais antigo do país, intitulado “Im- de três milhões de iranianos que tomaram
perialismo Negro e Vermelho.” O artigo, que as ruas.6 Quatro meses depois, um referen-
se trata de um amplo ataque difamatório ao do com amplo apoio popular declarou o Irã
Aiatolá, acusou Khomeini de conluio com uma república islâmica.
os soviéticos (o “vermelho” para o conser- A rápida ascensão de Khomeini sur-
vadorismo islâmico “negro”), de ser um preendeu os apoiadores do Xá, que enxerga-
espião britânico e de ser um homossexual. vam o Irã se distanciando do Islã e seguindo
Mas Homayoun tinha subestimado a po- em direção a se tornar um Estado seculari-
pularidade do acadêmico exilado. Em 9 de zado, no qual as mulheres poderiam votar;
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

o Irã teria laços fortes com o Ocidente. No que eram escondidos de um governo pelo
entanto, a subsequente e brutal consolida- outro. No entanto, na época do colapso da
ção do poder de Khomeini surpreendeu os União Soviética, em 1991, como observado
estudantes que o apoiavam que, levando a por Bruce Berkowitz e Allan Goodman em
sério suas promessas de liberdade e de de- Best Truth: Intelligence in the Information
mocracia anti-imperialista, acabaram por Age, os funcionários de inteligência tinham
assistir centenas de opositores políticos do um novo papel: decifrar mistérios10.
Aiatolá executados sumariamente7. Além A especialista em segurança de siste-
dos estudantes, certamente foram surpre- mas de computação, Susan Landay, iden-
endidos também os políticos iranianos exi- tifica a revolução islâmica de 1979 no Irã
lados que tinham ido de Paris à Teerã com como um dos primeiros sinais de que os
Khomeinio, pois dois anos depois muitos profissionais de inteligência precisavam
estavam mortos ou mais uma vez exilados8. mudar o seu foco, dos segredos para os mis-
Todavia, talvez o mais surpreendido térios11. Aparentemente, o Irã era um alia-
tenha sido Jimmy Carter. Na véspera do ano do forte e estável dos EUA, em uma região
novo de 1978, dias antes de estudantes to- dominada pelos conflitos. A rápida expul-
marem as ruas de Qom, ele tinha brindado o são do Xá e o referendo que transformou a
Xá, dizendo que: “o Irã, por causa da grande Monarquia em Teocracia sob o comando
liderança do Xá, é uma ilha de estabilidade de Khomeini deixou os governos do mundo
em uma parte turbulenta do mundo.” A aná- chocados e perplexos.
lise de Carter ecoou na CIA, que rejeitou os A revolução de 1979 surpreendeu as
protestos de agosto de 1978, afirmando que agências de inteligência porque ela nasceu
“o Irã não está em uma situação revolucio- nos lares e nas mesquitas, não em palácios
nária ou mesmo ‘pré-revolucionária’”9. e quarteis. Mesmo que a CIA estivesse vi-
Como o serviço de inteligência da nação giando o Irã de perto, ela estava prestan-
mais poderosa do mundo produziu uma lei- do mais atenção à força das tropas e suas
tura da revolução iraniana tão equivocada? armas do que a fitas cassete vendidas nos
Nos anos finais da Guerra Fria, o tra- mercados. Os analistas não perceberam
balho de inteligência dos analistas ame- uma mudança sutil na sociedade iraniana:
ricanos começou a mudar, tornando-se a nação estava se tornando cada vez mais
cada vez mais complicado. Nas primeiras conectada, tanto interna quanto externa-
décadas, os analistas sabiam quem eram mente, por meio do surgimento de novas
os principais adversários da nação e quais tecnologias de comunicação.
informações eles precisavam adquirir: por No livro que analisa os eventos de
exemplo, o número de misseis SS-9 que 1979, Small Media, Big Revolution, Anna-
Moscou poderia movimentar, ou o número belle Sreberny e Ali Mohammadi, ambos
de ogivas nucleares que cada míssil poderia participantes da revolução iraniana, enfa-
carregar. Eles estavam concentrados em tizam o papel de dois tipos de tecnologia:
descobrir segredos, fatos que existiam, mas ferramentas que permitiram às pessoas
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 41

acessar informações de fora do Irã, e ferra- muito que discutir, pois nossas economias
mentas que permitiram às pessoas difun- estão cada vez mais entrelaçadas e nossas
dir e compartilhar informações em escala ações, enquanto indivíduos e nações, afe-
local. Conexões com o mundo exterior (li- tam o clima, a saúde e a riqueza alheias.
nhas telefônicas diretas e de longa distân- Conforme aumentam essas conexões, não
cia, cassetes com sermões enviados pelo deve ser surpresa sentiremos também um
correio, transmissões por via do serviço aumento concomitante dos mistérios.
mundial da BBC) e ferramentas que ampli- Os mistérios que são trazidos à luz na
ficavam essas conexões (gravadores de cas- era da conectividade se estendem para além
sete domésticos, máquinas fotocopiadoras) do campo do poder político. Empréstimos
ajudaram a construir um movimento mais de altíssimo risco nos EUA desencadeiam
potente do  que os governos e exércitos  ti- o colapso de um banco de investimentos, o
nham  previsto12. que reduz o fluxo de empréstimo entre os
A derrubada das autocracias da Tu- bancos, o que força a economia islandesa,
nísia, Egito e Líbia nos protestos da Pri- significativamente influenciada, também a
mavera Árabe de 2011 reabriram o diálogo um colapso, que resultou em consumidores
sobre o papel da tecnologia de possibilitar britânicos enfurecidos com o desapareci-
a mudança social. Os gravadores de cassete mento de suas poupanças altamente rentá-
derrubaram o Xá? Nada mais do que o Fa- veis nos bancos islandeses. Um casamento
cebook derrubou Mubarak. Mas, em ambos em Hong Kong faz a Organização Mundial
os casos, a estrutura tecnológica, política e de Saúde buscar a origem de uma epide-
social havia mudado, e as antigas maneiras mia mortal de Toronto a Manila, dado que
de antecipar que mudanças ocorreriam não a doença se espalhava tão rápido quanto os
eram mais aplicáveis. Buscando por esses indivíduos conseguem viajar. Mas nem to-
segredos – a informação que falta nos siste- dos os mistérios são tragédias. Revoluções
mas que conhecemos – podemos facilmente políticas, transmitidas ao vivo da Tunísia,
deslizar por sobre os mistérios, os eventos fazem os estudantes do Gabão irem às ruas
que apenas fazem sentido quando entende- para exigir menores mensalidades, e ins-
mos o quanto os sistemas mudaram. piram ativistas no Winsconsin a tomar a
À medida que entramos em uma era de capital estadual. Um cantor de K-Pop tiran-
cada vez maior conectividade global, per- do sarro do materialismo de um bairro de
cebemos grandes e ao mesmo tempo sutis Seul, o Gangnam Style, de Psy, torna-se um
mudanças no modo como as pessoas se co- hit mundial, exemplificando uma conexão
municam, organizam-se e tomam decisões. inesperada e intrincada.
Nós temos novas oportunidades de parti- A descoberta de segredos pode exigir
cipar de conversas locais e globais, através contar os silos de mísseis em imagens de
das quais podemos discutir, persuadir e ser- satélite ou interrogar agentes duplos. Mas
mos persuadidos por pessoas distantes de precisamos de outras habilidades de modo
nossas fronteiras nacionais. E de fato temos que possamos entender um colapso bancá-
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

rio ou combater a SARS13. Landau distantes. Nossas ferramentas de


sugere que “resolver os mistérios mídia, dos nossos jornais às redes
exige um pensamento profundo e sociais, corporificam essas tendên-
constantemente não convencional, e cias; eles nos ajudam a encontrar o
uma visão global acerca do mistério”. que queremos, mas nem sempre o
A aceitação popular da internet que precisamos.
significa que temos uma variedade O que precisamos para enten-
de novas maneiras de saber o que der um mundo complexo e interco-
acontece em outras partes do mun- nectado? Essa não é uma pergunta
do. É tão fácil acessar a primeira apenas para os agentes de inteligên-
página de um jornal de outro conti- cia. Epidemiologistas e presidentes
nente quanto ler o jornal da cidade de empresas, ambientalistas e ban-
vizinha. Na verdade, por vezes é até queiros, líderes políticos e ativistas
mais fácil. Uma enciclopédia online estão todos ten-
gratuita oferece o pano de fundo e o tando abordar os “O que queremos saber é
contexto dos eventos que seriam di- desafios em esca- moldado por o que e quem
fíceis de obter há dez anos sem que la global. Todos pensamos ser importantes.”
alguém visitasse uma boa bibliote- nós precisamos
ca. O Google promete organizar as de maneiras para acessar as pers-
informações do mundo e torna-las pectivas de outras partes do mundo,
universalmente acessíveis, e nos para escutar opiniões que divirjam
acostumamos a solicitar a essa e a das nossas próprias preconcepções e
outras ferramentas de busca que para dar atenção ao que é desconhe-
descubram segredos: basta digitar cido e inesperado.
“quantos mísseis SS-9 a URSS tem” Deslocamo-nos para desvendar
e clicar em “estou com sorte”. segredos e resolver mistérios não
Essas ferramentas nos ajudam apenas por nossa própria vontade. O
a descobrir o que queremos saber, nosso entendimento do mundo nos é
mas elas não são tão boas a ponto de dado através das ferramentas que uti-
nos ajudar a descobrir o que talvez lizamos para aprender sobre o mundo
precisemos saber. O que queremos que nos cerca. Algumas dessas ferra-
saber é moldado por o que e quem mentas têm centenas de anos, en-
pensamos ser importantes. Nós quanto outras foram inventadas na
acompanhamos as notícias em nos- última década, e todas elas podem ser
sas cidades mais do que acompanha- alteradas para melhor nos ajudar a
mos as notícias do outro lado do oce- entender e explorar o mundo.
ano, bem como acompanhamos as Podemos construir novas ferra-
vidas de nossos amigos com mais mentas que nos ajudem a entender
detalhes do que as dos que nos são quais vozes estamos ouvindo e quais
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 43

vozes ignoramos. Podemos tornar mais fá- primeiro a revelar o potencial que a doença
cil o entendimento de diálogos em outras tinha de se espalhar rapidamente por gran-
línguas e a colaboração com as pessoas de des distâncias; ela matou 916 pessoas no
outras nações. Podemos tomar medidas mundo todo durante uma epidemia global
para a construção da boa fortuna, recolhen- que tinha o potencial de infectar bilhões16.
do opiniões inesperadas e prestativas. Com Enquanto estava isolado no hospital,
uma fração do intelecto que foi usado para Dr. Liu já tinha infectado doze pacientes
a construção da internet tal qual a conhe- que estavam no nono andar do Metrópole.
cemos, poderemos construir uma rede que Os pacientes infectados eram de Singapura,
nos ajude a descobrir, entender e aceitar um Austrália, Filipinas, Canadá, bem como de
mundo mais amplo. Hong Kong e da China17. Um dos azarados
Nós podemos e devemos reconectar. pacientes do nono andar era Johnny Chan,
O Dr. Liu Jianlun não estava se sen- um homem de negócios americano que vi-
tindo bem quando adentrou o quarto 911 via em Shanghai. Ele deixou o Metrópole
do Hotel Metrópole de Hong Kong. Em 21 dois dias antes do Dr. Liu dar entrada no
de fevereiro de 2003, o professor de me- hospital e partiu para Hanoi. Alguns dias
dicina de 64 anos chegou a Hong Kong depois, ficou doente e foi internado no Hos-
para um casamento em sua família, mas pital Franco-Vietnamita.
se sentia exausto e nada festivo. Nas três Quando os médicos vietnamitas não
semanas anteriores, ele estava trabalhan- conseguiram diagnosticar a sua doença,
do por muitas horas no Hospital Memorial eles procuraram por Carlo Urbani, diretor
de Sun Yat-sem em Guangzhou, onde uma de doenças infecciosas da região do pacífi-
pneumonia atípica tinha adoentado cente- co ocidental pela Organização Mundial da
nas de pacientes14. Saúde (OMS). Dr. Urbani, um especialista
Dr. Liu foi visitar as atrações da cidade em diagnósticos, rapidamente constatou
com o seu cunhado, mas retornou ao hotel que o que estava matando Chan era alta-
cedo. Na manhã seguinte, ele caminhou mente contagioso. Então, ele se encontrou
pela Waterloo Road até o Hospital Kwong imediatamente com as autoridades viet-
Wah, de Hong Kong, onde foi internado. namitas para assegurar que os hospitais do
Arfando para respirar, alertou os médi- país tomassem precauções estrênuas. No
cos e enfermeiras que estava contamina- entanto, quando o Dr. Urbani foi chamado,
do por  uma doença altamente infecciosa e Chan já tinha infectado oito pacientes, bem
que  precisava ser tratado em uma  câma- como trabalhadores do hospital.
ra pressurizada15. Em 11 de março, o governo vietnami-
Dez dias depois, o Dr. Liu morreu ta fez uma quarentena no hospital. Urbani
de Síndrome Respiratória Aguda Grave estava em um voo entre Hanoi e Bangkok
(SARS). Seu cunhado morreu pouco depois. para uma conferência médica. Durante o
Embora Dr. Liu não tenha sido a primeira voo, teve febre alta que era um dos sinto-
pessoa a morrer de SARS, o seu caso foi o mas iniciais da doença. Depois de descer
45
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

do avião, Urbani se isolou e chamou um exageradas. A SARS é terrível. Nenhum


colega de um dos Centros para Controle e contato físico é necessário para a transmis-
Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, são da doença, é necessário apenas que se
o Dr. Scott Dowell, que o encontrou no ae- compartilhe algum espaço com uma pes-
roporto de Bangkok. Eles falaram por quase soa infectada por um período de tempo. As
duas horas, sentados a quase três metros de pessoas podem incubar a doença por até
distância, antes que as autoridades tailan- dez dias sem mostrar qualquer sintoma re-
desas pudessem equipar uma ambulância e conhecível, o que significa que eles podem
seus funcionários com material de proteção espalhar a infecção por vastas distâncias
suficiente para levar Urbani a um hospital18. enquanto viajam, e uma única pessoa pode
Os médicos acreditavam que, enquanto Ur- infectar dezenas ou centenas de pessoas.
bani estava bem de saúde, ficou exposto ao Para ao menos uma em cada dez pessoas in-
vírus dezenas de vezes através dos pacien- fectadas, a SARS foi fatal.
tes que ele estava tratando, enchendo o seu Durante a epidemia de 2002 a 2003, a
sistema imunológico com uma carga viral doença se espalhou com tal velocidade que
massiva. Urbani morreu em 29 de março. teorias da conspiração se formaram. Uma
Se você estivesse nos Estados Unidos ideia proposta por um obscuro cientista
ou na Europa quando a SARS foi descober- russo se tornou popular em algumas salas
ta, você teria vagas memórias das restrições de bate-papo chinesas: qualquer doença tão
de viagens e a súbita aparição de máscaras virulenta e com tão rápida capacidade de
hospitalares nos viajantes estrangeiros. se espalhar só poderia ter sido feita por hu-
Apenas vinte e sete pessoas que residam manos20. A verdade é ainda mais estranha
nos Estados Unidos foram infectadas com a e, possivelmente, mais perturbadora. Em
SARS, enquanto que mais de sete mil chine- abril de 2003, cientistas da OMS tinham
ses contraíram a doença. Em outras partes descoberto que a SARS era um vírus nativo
do mundo, o impacto psicológico da SARS de um animal asiático (Paguma larvata), um
foi mais evidente. O pesquisador da área de felino carnívoro muito comum no sudeste
saúde global Laurie Garrett observou: da Ásia. Da mesma maneira que o Ebola, o
Anthrax e o Hantavírus, a SARS é zoonóti-
Embora a maioria dos Estados ca; ela se espalha através dos animais, que
Unidos rapidamente tenha esquecido podem portar a doença sem sofrer com ela,
a SARS, para muitos asiáticos e cana- para os humanos. A SARS provavelmente
denses o período de novembro de 2002 cruzou a fronteira das espécies por meio
a junho de 2003 permanece na memória do sangue desses felinos, que tiveram sua
tão fortemente quanto o 11 de setembro carne vendida nos mercados da China me-
permanece na memória dos residentes ridional e então transmitida de humanos
de Washington e Nova York.19 para humanos, como os Drs. Lui e Urbani,
a partir daqueles que consumiram o felino.
As preocupações, entretanto, não eram Com o seu longo período de incubação
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 47

e sua facilidade de transmissão, a SARS pa- lhões morreram23. Comparadas em termos


recia feita sob medida para um mundo in- relativos, a Gripe Espanhola foi menos
terconectado. “Grandes vetores” como o Dr. mortal que a SARS. Quase 2,5% dos casos
Liu e Johnny Chan, profissionais itineran- de Gripe Espanhola foram fatais, embora
tes que viajavam por avião entre grandes muitas pessoas a tenham contraído mais de
cidades, portavam a doença. Em um único uma vez. A SARS matou 9,6% daqueles in-
voo – da China Airways de Hong Kong para fectados por ela, sendo especialmente mor-
Beijing, em 15 de março, um único passagei- tal para os mais velhos, entre os quais uma
ro infectou 22 das 126 pessoas a bordo21. Na taxa de mortalidade atingiu mais de 50%.
medida em que o medo se espalhou, as pes- A Gripe Espanhola, como a SARS, era mó-
soas se tornaram mais receosas dos perigos vel; surtos ocorreram em ilhas remotas do
dos aviões, do transporte público e de ou- Oceano Pacífico e acima do círculo Ártico.
tros espaços compartilhados das megacida- Mas as vítimas da Gripe Espanhola que le-
des. A presença compartilhada com outros varam a doença para esses cantos distantes
milhares – uma experiência rotineira na do mundo viajaram de navio e trem, não em
vida urbana moderna – de repente pareceu um avião transoceânico. Por que a SARS,
despropositadamente arriscada. Da mesma uma doença tão fatal e com tanta possibili-
maneira que a borboleta de Edward Lorenz, dade de se espalhar globalmente, matou tão
cujo bater de asas no Brasil desencadeia poucas pessoas?
furacões no Kansas, o jantar de uma dada Uma parte considerável da resposta é
pessoa na China passou a ter o potencial de a internet. A cooperação global e a comuni-
causar internações no Canadá. cação pararam a SARS, e a habilidade dos
A SARS, por fim, atingiu trinta e dois médicos ao redor do mundo de se conecta-
países e todos os continentes exceto a An- rem e fazerem colaborações online colocou
tártica, mas apenas 8.422 pessoas ficaram a internet na linha de frente para a conten-
doentes. E embora ela tenha se espalhado ção da doença.
entre novembro de 2002 e março de 2003, Quando o Dr. Urbani, o médico italia-
em julho de 2003 a OMS podia declarar, no, colocou o governo vietnamita em alerta
com segurança, que a epidemia havia sido em março de 2003, ele desencadeou um es-
contida22. No final, a coisa mais interessan- forço global por parte da OMS para identifi-
te sobre a epidemia de SARS não foi o quão car, diagnosticar e conter a SARS. Seis dias
rápido a doença se espalhou, mas o quão ra- depois de Urbani chegar à Bangkok, a OMS
pidamente ela foi contida. lançou um website seguro que hospedava
Compare os números da SARS com videoconferências para coordenar os es-
uma epidemia anterior, a da Gripe Espa- forços dos pesquisadores nos laboratórios
nhola. Entre 1918 e 1920, um terço da po- pelo mundo. Eles compartilhavam chapas
pulação mundial, aproximadamente meio de raio-X de pacientes infectados para de-
bilhão de pessoas, contraiu uma forma senvolver um protocolo de diagnóstico, que
mortal de influenza e estima-se que 50 mi- então eram transmitidos aos hospitais do
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mundo, junto com instruções sobre como semanas depois da Time publicar uma re-
isolar os pacientes infectados. Os alertas portagem de capa sobre a SARS em Beijing,
se provaram notavelmente eficazes – 90% o ministro da saúde da China e o prefeito de
de todos os casos de SARS ocorreram antes Beijing foram demitidos. O novo prefeito fe-
das consultivas da OMS serem publicadas. chou escolas, discotecas e teatros, seguindo
Para identificar surtos novos e prolongados instruções da OMS. A atenção e o escrutínio
de SARS, a OMS usou a Rede Pública Glo- internacional rapidamente trouxeram a Chi-
bal de Inteligência em Saúde (do original na para o time de combate à SARS.
em inglês, Global Public Health Intelligen- A habilidade em compartilhar in-
ce Network [GPHIN]), uma ferramenta de formações sem compartilhar o mesmo ar
software desenvolvida pelo Ministério da ajudou a minimizar as perturbações que a
Saúde canadense que rastreia as agências SARS e suas quarentenas causaram. Sin-
de notícias e as fontes da internet buscando gapura, uma das primeiras nações afetadas
por menções a potenciais surtos de SARS pela SARS, isolou os pacientes em uma úni-
ou outros eventos de saúde ainda inexpli- ca ala, e depois do tratamento os liberava
cáveis. Os mais de um terço dos rumores para uma quarentena doméstica, monitora-
encontrados pelo GPHIN levaram a OMS a da pelo governo – por meio de unidades de
identificar e isolar os casos da SARS24. videoconferência instaladas. Em uma vira-
A OMS monitorou jornais e mídias da verdadeiramente inventiva, o governo de
sociais parcialmente, porque nem todos os Singapura também desencorajou a popula-
governos nacionais publicaram relatos pre- ção local chinesa a celebrar o Ching Ming,
cisos sobre a difusão da doença. A China foi um feriado nacional cujos adeptos se reú-
profundamente afetada pela SARS e, não por nem em cemitérios e limpam as sepultu-
coincidência, foi também o país que mais ras de seus ancestrais. Preocupado em não
relutou em compartilhar informações sobre estimular que multidões se amontoassem
a infecção. Mais de duas semanas depois do nos cemitérios da cidade, o governo encora-
alerta mundial da OMS, os altos funcionários jou os residentes a comprar oferendas por
chineses alegavam publicamente que Beijing meio de um serviço online, que contratava
tinha tido apenas doze casos de SARS. No um atendente uniformizado para limpar a
entanto, Dr. Jiang Yanyong, um médico ha- sepultura e fazer a oferenda em seu nome26.
bitante de Beijing tinha tratado, ele próprio, Ao escrever sobre o sucesso da OMS
cinquenta pacientes de SARS e sabia que em conter a SARS, o Dr. Shigeru Omi, di-
aqueles números eram baixos artificialmen- retor regional do Pacífico Ocidental pela
te. Enviou, então, e-mails para estações de OMS, especulou que a SARS não teria se
televisão em Beijing e Hong Kong com suas expandido para além de um surto regional
preocupações. O seu e-mail foi repassado aos não fossem as viagens internacionais, e que
repórteres do Wall Street Journal e da Re- a OMS não teria conseguido combatê-la
vista Time, que trouxeram a atenção inter- com tanto sucesso sem a internet como alia-
nacional às suas alegações25. Menos de duas da. Se as conexões internacionais por meio
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 49

das viagens aéreas ajudaram a espalhar a Se você perguntasse a um grupo de


infecção, as conexões digitais – locais e in- especialistas em Oriente Médio, em 2010,
ternacionais - ajudaram a propagar as ideias que mudanças eles julgavam que provavel-
necessárias para combatê-la. Quer seja por mente ocorreriam no ano seguinte, quase
meio dos médicos em diferentes continen- nenhum deles teria previsto o movimento
tes examinando raios-x em conjunto, ou por da Primavera Árabe. Certamente, nenhum
funcionários em Toronto e Singapura discu- deles teria escolhido a Tunísia como o pon-
tindo estratégias de quarentena, a conexão to inicial dos eventos que seguiriam. Zine
pôde inspirar colaborações cruciais tanto el-Abidine Ben Ali tinha regido a nação
quanto pôde ajudar a espalhar a infecção. norte-africana virtualmente sem oposito-
Epidemias se desdobram como misté- res desde 1987 e tinha cooptado, prendido
rios. Não sabemos em que lugar no mundo ou exilado qualquer um que estivesse incli-
elas irão emergir e quais práticas, a prin- nado a desafiar sua autoridade. Quando o
cípio inofensivas e comuns, as espalharão comerciante Mohamed Bouazizi ateou fogo
pelo mundo em um único dia. Para diag- ao próprio corpo em dezembro de 2010, não
nosticar e conter as epidemias, cientistas havia motivo para esperar que os protestos
como o Dr. Omi precisam seguir pistas local de sua família contra a corrupção gover-
e globalmente. Uma visão mais ampla do namental fossem além da cidade de Sidi
mundo é essencial se eles quiserem iden- Bouzid27. Afinal, a combinação de cordões
tificar as potenciais ameaças e adotar solu- militares, violência contra os manifestan-
ções criativas. A rede da GPHIN que ajudou tes, uma imprensa doméstica aduladora e
os pesquisadores da OMS a reunir dicas e as restrições à imprensa internacional ti-
rumores de jornais e das mídias online foi nham, no passado, assegurado que a dissi-
poderosa precisamente por buscar a SARS dência permanecesse local.
não só na China e em Hong Kong, mas em Mas não dessa vez. Vídeos de protestos
todos os cantos do mundo. em Sidi Bouzid feitos em telefones celula-
A SARS oferece um exemplo dos desa- res e carregados no Facebook alcançaram
fios em escala global que enfrentamos hoje. os dissidentes tunisianos na Europa. Eles
Existem muitos outros, incluindo uma rápi- indexaram e traduziram as imagens e as
da alteração no clima, sistemas financeiros enviaram para a distribuição em redes de
cambaleantes e competição por terras ará- televisão simpatizantes, como a Al Jazeera.
veis e outros recursos naturais escassos. O Esse canal televisivo, amplamente assis-
otimismo nos permite imaginar uma onda tida na Tunísia, alertou os cidadãos sobre
de redes como a GPHIN, buscando no ho- os protestos que estavam acontecendo em
rizonte as ameaças, oportunidades e po- outros cantos de seu país. As transmissões
tenciais respostas ágeis, mas um mistério também atuaram como um convite à par-
ainda não totalmente desdobrado sugere ticipação. Ben Ali tomou as ondas do rádio,
que a visão dos horizontes que precisamos ora implorando aos manifestantes para que
permanece obscura. se dispersassem, ora os ameaçando caso as-
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sim não fizessem. À medida que seu regime mais simples e sem conspirações: a maioria
ruía e desmoronava, imagens dos manifes- dos americanos e dos europeus perdeu a re-
tantes se espalharam pela região, inspi- volução na Tunísia porque eles não estavam
rando outras expansões similares em mais prestando atenção. Os protestos ganharam
de uma dezena de países e a consequente um ímpeto real durante a semana entre o
derrubada de Hosni Mubarak e Muammar Natal e o Ano Novo, uma época em que mui-
Gadaffi, na Líbia. tas pessoas focam suas atenções em suas
Embora o impacto da revolução na Tu- famílias e amigos, ao invés de nas notícias
nísia seja agora reconhecido, na época em do mundo. A imprensa dominada pelo go-
que ocorreram, os protestos que levaram à verno da Tunísia não reportou os protestos,
derrubada de Ben Ali eram invisíveis para e os sites de mídia independente que rastre-
maior parte do mundo. O New York Times avam os eventos eram amplamente desco-
foi quem primeiro mencionou Mohamed nhecidos fora da diáspora tunisiana.
Bouazizi e Sidi Bouzid no jornal em 15 de Por fim, o círculo da inteligência dos
janeiro, dia seguinte à fuga de Ben Ali do EUA também não estava atento. O Presi-
país28. A jornalista libanesa-americana Oc- dente Obama depois confrontou o Diretor
tavia Nasr tinha acompanhado a história Nacional de Inteligência, James Clapper,
desde o início e expressou sua frustração e afirmou que estava “decepcionado com o
em uma entrevista para a PBS: “por quatro círculo de inteligência”, por seu fracasso em
semanas, a Tunísia foi ignorada em nos- promover alertas adequados sobre a derru-
sos meios de comunicação. Eles não pres- bada dos governos de Mubarak e Ben Ali.
taram  atenção à história até que ela fosse A senadora Dianne Feinstein, que é líder
tão grande e auto evidente que eles não da Comunidade de Inteligência do Senado
mais a podiam ignorar”29. Americano, se perguntava por que os pro-
Alguns observadores sugeriram que o testos que tinham se espalhado em grande
silêncio dos meios de comunicação euro- medida por causa das mídias sociais tinham
peus e americanos refletia o apoio governa- escapado do escrutínio da inteligência mi-
mental à Ben Ali: enquanto os EUA consi- litar: “alguém estava prestando atenção ao
derassem Ben Ali um aliado útil, os meios que estava acontecendo na internet?”30
de comunicação não estariam inclinados a Quer estejamos preocupados com
relatar a história. Reflexivamente irônico, combater epidemias como a SARS ou re-
esse cenário não explica porque o movi- agindo a mudanças geopolíticas como a
mento que derrubou Mubarak, um aliado Primavera Árabe, precisamos de uma visão
próximo e central aos interesses america- global mais ampla, para que possamos an-
nos na região, recebeu tão ampla cobertu- tecipar as ameaças, aproveitar as oportu-
ra dos meios de comunicação americanos, nidades e fazer conexões. A existência de
enquanto a revolução na Tunísia foi apenas telefones celulares, televisão via satélite e
registrada quando já tinha acabado. a internet, sugerem que a informação deve
Aqui apontamos para uma explicação estar disponível por todo o mundo em um
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 51

volume nunca antes visto. Ainda assim, um nossas vidas são afetadas pelos fenômenos
paradoxo central dessa era hiperconecta- que estão geograficamente distantes de nós.
da é que se por um lado é mais fácil do que Ele aponta que “o fato de algo parecer dis-
nunca compartilhar informações e pers- tante, e acontecer em uma língua que não
pectivas de diferentes partes do mundo, nós possamos compreender, não o torna irrele-
podemos frequentemente encontrar uma vante. Entender isso mal é entender mal a
visão mais limitada do mundo do que em primeira lição da era interconectada: nós to-
tempos menos conectados do que o atual. dos podemos ter os nossos próprios fardos,
Há quatro décadas, durante a Guerra mas gostemos disso ou não, nós também de-
do Vietnã, relatar experiências de guerra vemos aguentar os fardos uns dos outros”33.
das linhas de frente envolvia transportar Essa tarefa de carregar os fardos uns
filmes do sudeste asiático por ar, para en- dos outros nos força a reconsiderar o que
tão revelá-los e editá-los nos EUA antes aprendemos sobre o resto do mundo, como
de transmiti-los dias depois. Em nossa era, planejamos as estratégias e tomamos as de-
uma crise, seja um desastre natural ou um cisões, como construímos nossos negócios,
súbito golpe militar, pode ser relatada em como governamos as nossas nações e como
tempo real, via satélite. Mesmo assim, a des- educamos os nossos jovens. Nenhuma des-
peito das barreiras menores, os noticiários sas mudanças é simples, mas tudo começa
da televisão americana hoje possuem  me- de uma simples premissa. Nós devemos co-
nos da metade das histórias internacionais meçar a nos entender não só como cidadãos
que eram transmitidas na década de 197031. de um Estado ou nação, mas também como
Com mais de dois bilhões de pesso- cidadãos do mundo. Obviamente, essa não
as conectadas à internet e seis bilhões de é uma ideia nova. Uma de suas primeiras
pessoas com acesso a telefones celulares32, expressões dela pode ser encontrada na
previsões do tempo sobre o interior de Mali vida de um homem grego nascido no século
ou relatos sobre a política local no Bihar IV antes de Cristo.
são mais facilmente obtidas hoje do que
em qualquer momento do passado. O nosso Cosmopolitismo
desafio não é o acesso à informação e sim Para alguém que podia viajar apenas a
estar atento. Esse desafio é tornado dificul- pé ou de navio, Diógenes conseguiu conhe-
tado pela nossa tendência profundamente cer uma grande parte do mundo naquele
enraizada de dar atenção desproporcional tempo. Exilado de Sínope, sua cidade natal
a fenômenos que se desdobram perto de (localizada na costa do Mar Negro da atual
nós  e que nos afetam diretamente, nossos Turquia)34, Diógenes se vivia sem dinheiro
amigos e famílias. pelas ruas de Atenas e depois em Corinto.
No livro Six Degrees, no qual explora Seguindo os ensinamentos do pupilo de
fenômenos inter-relacionados como epide- Sócrates, Antístenes, Diógenes se tornou
mias, modismos e crises financeiras, o ma- um asceta, que era provavelmente um bom
temático Duncan Watts argumenta que as passo em termos de carreira, dado que ele
53

Ainda assim, um
paradoxo central dessa
era hiperconectada
é que se por um lado
é mais fácil do que
nunca compartilhar
informações e
perspectivas de
diferentes partes do
mundo, nós podemos
frequentemente
encontrar uma visão
mais limitada do mundo
do que em tempos
menos conectados do
que o atual.”
54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

já tinha gasto uma parte relevante de sua tando o maior identificador social de sua
fortuna. Relatos de sua vida são esparsos e época: o local de origem de um homem.
se assemelham tanto à lenda quanto à his- Por mais desafiadora que a afirmação
tória, mas muitos classicistas concordam de Diógenes tenha sido a seus contemporâ-
que Diógenes não tinha uma casa e dormia neos, sempre foi mais fácil se declarar cos-
em uma banheira de madeira sob a cobertu- mopolita do que de fato viver em um mun-
ra dos templos atenienses. Em seu livro Vi- do mais amplo.
das e Opiniões dos Eminentes Filósofos35, Estamos a mais de 2.500 anos de dis-
Diógenes aparece como um cruzamento tância de Diógenes, mas a oportunidade, da
entre Woody Allen e o humorista Ol’ Dirty maioria, de interagir com pessoas de dife-
Bastard, por fazer gracejos memoráveis e rentes partes do mundo ocorreu recente-
se comportar de modo inapropriado. Ao ser mente. Em 1800, aproximadamente 97% da
pego se masturbando na ágora, Diógenes população mundial vivia em áreas rurais36.
não se desculpou por seu comportamento, Se por um lado algumas pessoas podem ter
apenas observou que gostaria de aliviar fa- tido contato com as diferentes culturas pela
cilmente sua fome coçando sua barriga. No- visita de mercadores ou outros viajantes, a
meado “o cão” por alguns contemporâneos maioria não havia encontrado alguém que
(a palavra grega para cão, κύων, é a raiz do falasse outra língua ou que adorasse um
termo “cínico”), Diógenes reagiu como um deus diferente. Os 3% que moravam em ci-
cão a quem joga restos de comida de um ban- dades como Atenas antes de 1800 tinham
quete: urinou em seus benfeitores. Enquanto a rara oportunidade de conversar, fazer co-
muitos historiadores o veem como um filóso- mércio, e cultuar com pessoas de diferen-
fo inovador e um importante crítico de Pla- tes origens, linguagens e deuses. Embora
tão, outros o veem como um maluco. essas primeiras cidades representassem
Por todo seu comportamento ultra- os primeiros espaços onde o cosmopolitis-
jante, Diógenes é mais conhecido por sua mo era de fato possível, provavelmente nós
recusa em se identificar como um homem superestimamos o grau de mistura cultural
de Atenas ou de Sínope. Ao invés disso, ele que ocorria nelas.
declarava ser um cidadão do universo, um A historiadora Margaret Jacob estu-
cosmopolita (κόσμος, universo, πόλις, cida- dou, recentemente, as descrições da bolsa
de). A declaração de Diógenes sobre o cos- de valores das cidades europeias mais cos-
mopolitismo era pouco representativa do mopolitas do século XVIII. Jacob observou
pensamento clássico grego corrente. Pelo que, embora tenham participado dos re-
contrário, era uma afirmação radical. Virtu- latos contemporâneos viajantes da Euro-
almente todos no universo de Diógenes es- pa e de outros lugares, as divisões entre os
tavam intimamente identificados com a Ci- grupos eram definidas: um manuscrito de
dade-Estado na qual nasceram e residiam. 1780 da planta do piso da bolsa de valores
Diógenes certamente não estava adotando de Londres, feita por um engenheiro fran-
uma identidade global tanto quanto rejei- cês visitante, sugere que, na época, as iden-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 55

tidades nacionais competiam tanto com as soas que vivem em contextos etnicamen-
identidades profissionais quanto com as re- te diversificados aparentemente ‘acomo-
ligiosas. A planta do piso mostra os agrupa- dam-se’”38. Eles possuem, com relação aos
mentos familiares – place hollandaise, place americanos, uma chance menor de votar,
des Indes Orientales, place Française – mas de trabalhar em projetos comunitários, de
também alguns novos: o local dos Quakers, doar dinheiro à caridade ou de serem vo-
o local dos Judeus. luntários em diferentes cidades. Têm me-
Os comerciantes podem ter sido lon- nos confiança na habilidade do governo
drinos que trabalhavam no maior mer- em resolver problemas, possuem menos
cado  mundial da época, mas suas origens amigos e  percebem sua qualidade de vida
e  diferentes fés formavam a sua identida- como sendo inferior.
de primária. Teorias sociais anteriores sugeriram
Como descrito, o mercado de valores de que o contato entre grupos étnicos levou ou
Londres no século XVIII curiosamente soa à melhoria das relações sociais ou ao confli-
como as cidades multiculturais contempo- to entre os diferentes grupos – a “teoria do
râneas. Considere Nova York, onde os resi- contato” contra a “teoria do conflito.” Put-
dentes sabem que a praia de Brighton é o lar nam acredita que os dados de pesquisa das
de milhares de falantes do russo, Flushing cidades americanas apontam para uma ter-
Meadows é lar de uma grande comunida- ceira possibilidade: a “teoria da constrição”,
de chinesa, o Parque Borough é a casa de uma tendência de se afastar do contato
judeus ortodoxos e hassídicos. A promessa quando diante da diversidade39. Se a teoria
de nossas cidades contemporâneas é que é da constrição de Putnam estiver certa, e se
possível encontrar diferentes comidas, há- ela também pauta o nosso comportamento
bitos e ideias por meio de encontros aciden- online, ela então levanta questões indiges-
tais com vizinhos ou por meio da decisão tas sobre o potencial e as realidades abertas
consciente de ir de metrô a um canto dife- pela internet. Conectar-se com pessoas de
rente da cidade. Mas com que frequência outras origens é difícil, mesmo quando elas
isso acontece? “O cosmopolitismo vivido”, são nossas vizinhas ou vivem na mesma ci-
Jacob nota, sempre foi muito mais difícil dade; dar atenção aos problemas e às preo-
que apenas construir espaços onde as pes- cupações das pessoas do resto do mundo é
soas de diferentes origens se encontram37. ainda mais difícil.
Em 2006, o celebrado teórico social O filósofo ganês-americano Kwame
Robert Putnam compartilhou resultados Anthony Appiah teve de pensar por meio
de sua Pesquisa de Referência de Capital das possibilidades e desafios inerentes ao
Social, que sugere que os americanos con- cosmopolitismo. Criado entre Kumasi e
temporâneos tem um longo caminho a per- Londres, filho de uma historiadora da arte
correr antes de conseguir aceitar comple- britânica e um político ganês, Appiah expli-
tamente a promessa de uma cidade como cou as complexidades do sistema de crença
Nova York. No estudo de Putnam, “as pes- Ashanti para os filósofos ocidentais e sua
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

identidade como homem homossexual aos mopolita. Appiah reserva esse rótulo para
seus parentes em Kumasi. O cosmopolitis- aqueles que levam a sério, e que presumi-
mo, Appiah argumenta, está muito mais re- velmente agem de acordo com suas obriga-
lacionado a aprender a tolerar aqueles que ções, o povo e as pessoas responsáveis pela
têm valores e crenças diferentes dos nossos. comida e pela música. O cosmopolitismo
Até podemos tolerar práticas que nos ofen- também não consiste em um simples amor
dam ignorando ou nos afastando delas, mas universal da humanidade, especialmente
tolerar outras práticas poderia nos levar à quando expresso enquanto desejo de “sal-
resistência sobre a qual Putnam nos adver- var” os outros por meio do Cristianismo, do
te, através da qual o encontro com a dife- Islã, da Democracia, ou qualquer fé proseli-
rença faz com que constrinjamos os nossos tista. Somos desafiados a levar a sério a ideia
encontros com o mundo. Ao invés disso, de que outras possibilidades são dignas de
Appiah celebra o cosmopolitismo que, pelo nosso tempo e de nossa consideração, e não
contrário, desafia-nos a abraçar o que é rico, merecem nossa imediata oposição ou rejei-
produtivo e criativo sobre essa diferença. ção41. Quando consideramos isso, o efeito
Para Appiah, os cosmopolitas têm pode ser desconfortável e desconcertante.
duas qualidades essenciais. Eles se interes- Ao mesmo tempo, pode também se tratar de
sam nas crenças e nas práticas dos outros, uma força poderosa para aqueles que bus-
procurando entender, senão aceitar ou ado- cam inspiração ou discernimento.
tar outros modos de vida. Em suas palavras,
“pelo fato de haver tantas possibilidades Como conhecemos o mundo
humanas dignas de exploração, nós não Na primavera de 1907, Pablo Picasso es-
podemos esperar nem desejar que todas as tava visitando Gertrude Stein em seu apar-
pessoas ou todas as sociedades devessem tamento em Paris. Henri Matisse passou por
convergir em um único modelo de vida”40. lá para mostrar uma escultura africana que
Os cosmopolitas também levam a sério a tinha comprado de um marchand parisien-
noção de que eles devem ter obrigações se chamado Emile Heymenn, uma másca-
para com as pessoas que não são seus simi- ra feita pelo povo Dan do oeste da Costa do
lares, mesmo para com as pessoas que tem Marfim42. Picasso ficou fascinado pela peça,
crenças radicalmente diferentes. Temos a e pouco depois levou o seu amigo André De-
obrigação de testemunhar e documentar os rain ao Museu de Etnologia do Trocadero, o
danos que causam sofrimento aos outros, de primeiro museu de Paris dedicado à antropo-
prestar assistência quando pudermos e de logia. Inicialmente, Picasso ficou dissuadido:
prover tratamento às pessoas que encontra- “um cheiro de mofo e negligencia me pegou
mos, não importa o quão diferente  elas se- pela garganta. Eu estava tão deprimido que
jam, como parte de uma família estendida. eu teria preferido sair de lá imediatamen-
Essa definição significa que o meu gos- te.”43 Três décadas depois, Picasso se descre-
to por sushi e meu apreço por Afropop não veu como estando assombrado pela visão e
são suficientes para fazer de mim um cos- pelo cheiro “daquele terrível museu”44.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 57

Felizmente para o futuro da pintura, Pi- bem como o seu apoio à independência afri-
casso superou a sua aversão inicial. Ele contou: cana, com um poema dedicado ao pintor,
Masque nègre, em sua primeira coleção de
Eu me forcei a ficar, a examinar es- poemas, Chants d´ombre48.
sas máscaras, todos aqueles objetos que Picasso encontrou sua conexão com as
as pessoas tinham criado com um propó- influências africanas a princípio pela dis-
sito sagrado e mágico, para servir como tância, mediado por um museu na França.
intermediários entre eles e o desconhe- Só depois de lutar contra suas reações à mí-
cido, com forças hostis que as cercavam, dia africana ele estabeleceu um diálogo com
tentando, dessa maneira, superar os seus africanos como Senghor.
medos ao lhes dar cores e formas. E en- É tentador imaginar Matisse, proje-
tão eu entendi o que a pintura realmente tado no presente, compartilhando fotos da
significava.45 máscara de Dan que ele acabou de comprar
no Facebook e levando Picasso a procurar
Sua visita ao Trocadero marcou o co- freneticamente no Google por imagens re-
meço do que Picasso chamou de seu “perí- lacionadas. É pouco provável que encon-
odo negro” – o seu período africano. Depois, tremos as nossas conexões com o que não
no mesmo ano, ele produziu uma de suas nos é familiar – o infeccioso e o que inspira
obras primas Les Demoiselles d´Avignon, – no  mundo físico. Nós provavelmente as
um admirável retrato de cinco mulheres encontraremos na tela.
nuas, duas com rostos que se assemelham Os pesquisadores da Universidade da
bastante a máscaras do oeste da África. Califórnia em San Diego, Roger Bohn e Ja-
Picasso se tornou um colecionador de arte mes Short calculam que os americanos re-
africana, preenchendo as paredes de seu cebem informações por 11,8 horas por dia,
estúdio com máscaras e manequins, e ele uma vez que consideremos informações
incluiu temas africanos em pinturas como recebidas por transmissões televisivas, ví-
Músico com Guitarra (1972)46, produzido deo, impressos, telefone, computador, jo-
pouco antes de sua morte. Os especialistas gos eletrônicos e música gravada49. Uma
rastrearam a técnica de Picasso de rever- pequena fração do tempo é gasta na busca
ter linhas côncavas e convexas nos rostos, por notícias50. Nós gastamos uma porcen-
e a transformação de superfícies lisas em tagem cada vez maior de nosso tempo em
sólidos geométricos – as bases do cubis- redes sociais, mantendo-nos atualizados
mo – para suas inspirações africanas47. A sobre a linha do tempo das vidas de nossos
apreciação de Picasso pela arte africana o amigos e dos movimentos das vidas de nos-
levou a dialogar com alguns dos principais sos familiares. Só o Facebook, em média,
intelectuais africanos, incluindo Léopold toma  13 minutos por dia de um usuário.
Senghor, o primeiro presidente do Senegal As horas  restantes são gastas com entre-
pós-colonial. Senghor reconheceu a de- tenimento, com música, televisão e vídeos
monstração de Picasso de temas africanos, de gatos no Youtube.
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Os nossos encontros com esses três insurgente. A internet não irá magicamente
tipos de mídia – notícias, redes sociais e mí- nos tornar cosmopolitas digitais: se quiser-
dia cultural – dão forma ao que conhecemos mos maximizar os benefícios e minimizar
e valorizamos. Se continuarmos ouvindo os danos da conexão, devemos assumir a
sobre uma pessoa, local ou evento, registra- responsabilidade de dar forma às ferramen-
mos que o que aprendemos é importante, e tas que usamos para conhecer o mundo.
estaremos pré-dispostos a prestar atenção
nisso. E se por um lado uma das grandes Deveria ser tão fácil
promessas da internet é que podemos en- Em 1993, Howard Rheingold publicou
contrar tudo online, na prática muito do The Virtual Community, algumas reflexões
que encontramos vem de não muito longe sobre o tempo que ele tinha passado nos
de nossos lares. primeiros fóruns eletrônicos, incluindo o
Nós construímos ferramentas de in- Internet Relay Chat (IRC), um sistema de
formação que corporificam a nossa parcia- bate-papo em texto, em tempo real, cria-
lidade para com eventos que afetam os que do em 1988, mas ainda muito popular nos
estão mais próximos de nós. Os nossos jor- círculos tecnológicos atuais. Com títulos
nais e emissoras dão mais atenção a ques- de capítulos como Tribos em tempo real e O
tões locais e globais do que as internacio- Japão e a Net, o livro oferecia a esperança de
nais. Tendemos a ver televisão e filmes em que os diálogos online seriam mais justos,
nossas línguas nativas, bem como tendemos mais inclusivos e mais globais do que o que
a manter contato com amigos do colégio no conhecíamos antes:
Facebook, ao invés de usar as redes sociais
para fazer amizades com estranhos. Muito Milhares de pessoas na Alema-
embora os filmes nigerianos e as notícias nha, Austrália, Áustria, Canadá, Coreia,
da Indonésia estejam disponíveis por meio Dinamarca, Espanha, EUA, Finlândia,
de poderosos mecanismos de busca como o França, Holanda, Israel, Itália, Japão,
Google, essas ferramentas apresentam ou- México, Nova Zelândia, Noruega, Sué-
tro viés: elas nos dão a informação que que- cia, Suíça e no Reino Unido estão juntas
remos, não necessariamente a informação nesse momento em um apanhado inter-
que talvez precisamos. cultural de conversações escritas conhe-
O que significa, de modo cumulati- cidas como Internet Relay Chat (IRC).”
vo, que devemos trabalhar duro para ter os
nossos momentos de Picasso, os momentos Rheingold se questiona: que tipos de
em que um encontro inesperado com o que cultura emergem quando você remove do
não é familiar direcione para a inspiração. E discurso humano todos os artefatos cultu-
devemos trabalhar da mesma maneira para rais exceto as palavras escritas?51 Ele não
construir ferramentas que nos alertem dos foi o primeiro a esperar que a tecnologia
perigos da conexão, seja uma epidemia in- emergente transformasse as maneiras pe-
cipiente, uma crise financeira ou um vídeo las quais estranhos podem contar um com
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 59

o outro. Em seu livro The Victorian Inter- Como o gênio condiz ao homem, al-
net, Tom Standage, o editor de tecnologia guns elementos da visão de Tesla de 1926
da The Economist, oferece um compêndio foram surpreendentemente precisos:
de previsões otimistas para o telégrafo, ou
“a estrada do pensamento,” como um con- Por meio da televisão e da telefonia,
temporâneo o chamou. Em um dos muitos nós poderemos ver e ouvir uns aos outros
exemplos dados por Standage, a conclusão como se estivéssemos face a face, a des-
de um cabo submarino que ligava os EUA ao peito da distância de milhares de milhas;
Reino Unido levou os historiadores Charles e os instrumentos por meio dos quais nós
Briggs e Augustus Maverick a afirmar, “é poderemos fazer isso serão incrivelmen-
impossível que velhos preconceitos e hosti- te simples comparados com o nosso atu-
lidades ainda existam, enquanto tal instru- al telefone. Um homem conseguirá levar
mento foi criado para o intercâmbio de pen- um desses no bolso de seu colete.55
samento entre todas as nações da Terra.”52
O advento do avião inspirou uma re- Essas e outras observações soarão
tórica similar. Ao comentar sobre a traves- familiares a qualquer um que tenha tes-
sia do Canal da Inglaterra feita por Louis temunhado o advento da Internet. Como
Blériot em 1909, o jornal Independent de sugerido pelo historiador e pesquisador da
Londres sugeriu que a viagem aérea levaria tecnologia Langdon Winner, “a chegada de
à paz porque o avião “cria proximidade e a uma nova tecnologia, que possua um poder
proximidade gera amor ao invés do ódio”. significativo e um potencial prático, sempre
Uma lógica similar levou Philander Knox, traz consigo uma onda de entusiasmo vi-
o Secretário de Estado americano do presi- sionário que antecipa o surgimento de uma
dente Howard Taft, a prever que os aviões ordem social utópica.”56 As tecnologias que
“aproximariam muito mais as nações e des- conectam indivíduos uns aos outros – como
se modo eliminariam as guerras”53. o avião, o telégrafo e o rádio – aparentam
Entrevistado em 1912, o pioneiro do ser particularmente poderosas para nos
rádio Guglielmo Marconi declarou: “a vin- ajudar a imaginar um mundo menor e mais
da da era sem fios vai tornar a guerra im- conectado. Visto por essa perspectiva, a ar-
possível, pois a tornará ridícula”54. Mesmo quitetura subjacente da internet – ela não é
depois, quando a Grande Guerra já havia mais nem menos do que uma rede que co-
tornado o pronunciamento de Marconi um necta redes – e a totalidade escrita sobre ela
absurdo, o inventor Nikola Tesla viu um na última década garantiu que a rede seria
futuro ainda maior para o rádio: “quan- colocada no centro das visões por um mun-
do a tecnologia sem fio for perfeitamente do melhor feito por meio da conexão. Essas
aplicada, o planeta inteiro será convertido visões são tão abundantes que até geraram
em um grande cérebro. Poderemos nos co- um neologismo: “ciberutopianismo”.
municar  instantaneamente, independen- O termo “ciberutópico” tende a ser
te da distância.” usado apenas no contexto de crítica. Cha-
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mar alguém de ciberutópico significa dizer égides utópicas, elas também podem fa-
que ele ou ela uma noção inocente ou irreal zer um movimento em direção à abolição
e exagerada do que a tecnologia torna pos- da escravatura.57
sível e uma compreensão insuficiente das
forças que governam as sociedades. Curio- Os comentários de Rheingold nos lem-
samente, o termo mais comumente usado bram de não deixar os nossos oponentes
para uma posição oposta a essa, a crença pautarem o debate. O “ciberutopianismo”
de que as tecnologias da internet estão tor- é um rótulo desconfortável porque coloca
nando a sociedade mais fraca o discurso duas ideias que devem ser relevantes em
mais grosseiro e acelerando os conflitos, é um pacote único e indefensável. A cren-
menos pesado: “ciberceticismo.” Quer esses ça de que conectar as pessoas por meio da
termos nos sirvam adequadamente nesse internet leva inexoravelmente à compre-
debate ou não, devemos considerar o apelo ensão global e à paz mundial é uma cren-
do ciberutopianismo e seus méritos. ça que não vale a pena ser defendida. Mas
Em uma conversa por Skype com acreditar que as tecnologias influenciam o
Howard Rheingold, mencionei que plane- que conhecemos e com quem nos importa-
java incluir alguns de seus pensamentos na mos é uma ideia mais complexa, que vale a
discussão desse livro sobre o ciberutopia- nossa consideração. Como no caso do con-
nismo. Rheingold ficou perturbado ao ser ceito de Appiah de cosmopolitismo, não é o
vinculado ao termo, e eu cheguei a pensar suficiente ser um entusiasta da possibilida-
que desligaria o telefone. Ao invés disso, ele de de conexão entre as diferentes culturas,
fez uma pequena pausa, recompôs-se e ofe- por meios digitais ou quaisquer outros. O
receu a observação de que “os abolicionis- cosmopolitismo digital, enquanto distinto
tas é que eram os utópicos.” Em um e-mail do ciberutopianismo, exige de nós que assu-
posterior ele desenvolveu seu argumento: mamos a responsabilidade de tornar essas
potenciais conexões, reais.
Eu sou um entusiasta do potencial Se rejeitarmos a noção de que a tec-
das ferramentas que podem catalisar a nologia torna certas mudanças inevitáveis,
ação coletiva, mas como eu afirmei na mas aceitarmos que as aspirações dos “ci-
primeira página de Smart Mobs [seu li- berutópicos” são válidas, então nos é dei-
vro sobre a tecnologia e a ação coletiva xado um desafio: como reconectar as ferra-
de 2002], os humanos fazem coisas be- mentas que construímos para maximizar o
néficas e destruidoras ao mesmo tem- nosso impacto em um mundo interconec-
po, e ambos os tipos de ações coletivas tado? Aceitar as fraquezas dos sistemas
são amplificadas... Então, embora eu que construímos enquanto inevitáveis e
reconheça que o Comunismo e o Fas- imutáveis é um sinal de apatia. Como Ben-
cismo foram vendidos como utopias, jamin Disraeli observou em Vivian Grey:
eu gosto de reverter minha lógica – não “o homem não é a criatura das circunstân-
só as pessoas fazem coisas terríveis sob cias, as circunstâncias são as criaturas dos
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 61

homens. Nós somos independentes, e o ho- intitulado Innocence of Muslims, no Youtu-


mem é mais poderoso que a matéria”58. E, be. Assistir o trailer deixa claro porque o di-
como sugerido por Rheingold, acreditar que retor não estava preocupado com a atuação
as pessoas podem utilizar tecnologia para dos atores: o filme era obviamente dublado,
construir um mundo mais justo e inclusivo e os atores que agora diziam suas falas so-
não é meramente defensável. Trata-se de bre o profeta Maomé, retratando o profeta
um imperativo moral. como um obcecado por sexo e um pedófilo
violento. O filme não conseguiu atrair uma
Construindo para um futuro mais grande audiência no Youtube, acumulando
amplo apenas alguns milhares de espectadores,
O Ciberutopismo nos oferece o confor- mas atraiu a atenção de dois notórios oposi-
to de que as inovações tecnológicas levarão tores do islã, o Pastor Terry Jones e o ativis-
ao progresso social, às conexões positivas ta cóptico Morris Sadek.
entre pessoas com diferentes percepções e Tanto Jones quanto Sadek têm longas
crenças. Mas o caso da SARS sugere que a fichas de provocação anti-islâmica. Jones
conexão é uma faca de dois gumes, abrin- é mais bem conhecido por lançar o “dia in-
do diante de nós tanto o perigo da infecção ternacional de queimar o Alcorão” no nono
quanto o potencial para novas soluções. Um aniversário dos ataques de 11 de setembro.
vídeo recente do Youtube ajuda a demons- Seus planos para queimar o livro sagrado
trar o quão duro teremos de trabalhar de do islã levaram a protestos nos Estados
modo a fazer do encontro entre as culturas Unidos e no estrangeiro, além de uma am-
uma força positiva que o cosmopolitismo pla cobertura midiática e encontros entre
digital sugere que possa ser. Jones e altos oficiais americanos, que o per-
No verão de 2011, o cineasta Sam Baci- suadiram a não consumar suas ameaças60.
le recrutou atores para um filme intitulado Jones promoveu o filme de Bacile entre os
Desert Warriors. Vestindo turbantes, robes seus seguidores como parte do seu “Dia
esvoaçantes e sandálias, os atores encena- Internacional de julgar Maomé,” em 11 de
ram diante de uma tela verde, em um espa- setembro de 2012, uma sequência de seus
ço industrial em Monróvia, na Califórnia, planos anteriores para queimar o Alcorão.
longe dos estúdios de Hollywood. A intrin- Sadek, conhecido pela comunidade cóptica
cada trama envolveu batalhas entre tribos por seus constantes e-mails denegrindo o
em guerra, provocada pela chegada de um islã, postou, por sua vez, o vídeo de Bacile,
cometa. O roteiro era tão mal escrito que os com legendas em árabe, no site de seu gru-
atores faziam graça dele entre as tomadas, e po, a Assembleia Nacional Cóptica Ame-
o diretor não parecia se importar se os ato- ricana. Ele também mandou centenas de
res erravam suas falas, deslocando rapida- e-mails promovendo o vídeo entre os seus
mente uma cena para outra59. colegas no Egito61.
Em 1 de julho de 2012, Bacile postou O filme Innocence of Muslims even-
um trailer de 14 minutos do seu filme, agora tualmente teve a atenção do apresentador
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de televisão egípcio Sheikh Khaled xador Christopher Stevens e outros


Abdullah. Abdullah aparece na rede funcionários presos dentro do pré-
de televisão Al-Nas, um canal de sa- dio. Stevens e outros quatro morre-
télite localizado no Cairo, conhecido ram pela inalação de fumaça. A des-
por suas posições islâmicas conser- peito de veementes condenações do
vadoras. Por motivos religiosos, a Al- vídeo por parte do Presidente Oba-
-Nas não possui apresentadoras mu- ma, bem como medidas enérgicas
lheres, e quando Abdullah colocou o por todo o Oriente Médio, protestos
vídeo no ar, em 8 de setembro, con- contra o filme surgiram na Somália,
denando-o como um ataque ameri- Paquistão,  Sudão e em localidades
cano ao islã, as faces das mulheres como a Bélgica e a Austrália63.
no vídeo foram borradas. O vídeo ha- Os protestos violentos eram,
via sido dublado para o árabe, o que claramente, o que o cineasta queria.
tornou impossível saber se o áudio Acredita-se que “Sam Bacile” seja
em inglês tinha sido editado, e Ab- Nakoula Basseley Nakoula, um cris-
dullah e outros comentaristas deixa- tão-cóptico egípcio-americano com
ram implícito que o filme tinha sido um passado criminoso. O alvo inicial
patrocinado, ou que tinha recebido de Nakoula para o filme eram os mu-
apoio do governo dos EUA, e que ti- çulmanos habitantes de Los Angeles.
nha sido apresentado na “televisão Ele exibiu o filme em um teatro em
estatal” do país62. Hollywood em 23 de junho de 2012,
A Al-Nas é assistida por todo o como The Innocence of Bin Laden
mundo árabe, e os telespectadores e tentou atrair a atenção dos espec-
no Egito e na Líbia responderam à tadores ao exibir um comercial, em
transmissão protestando diante das árabe, em um jornal local, esperando
embaixadas americanas no Cairo que aqueles que estivessem inclina-
e em Benghazi, em 11 de setembro dos a  acreditar na inocência de Bin
de 2012. No Cairo, os manifestan- Laden apareceriam64.
tes romperam a muralha externa da Nakoula não conseguiu pro-
embaixada, destruíram uma ban- vocar uma reação dos muçulmanos
deira americana e hastearam ban- locais, porque poucos comparece-
deiras negras declarando, “não há ram à exibição. Mas Jones e Sadek
um Deus  que não seja Deus e Alá é trabalharam para assegurar que
o seu Profeta”. uma ampla audiência veria o filme
O dano em Benghazi foi muito e aceitasse a ofensa. E dado que Jo-
mais sério. Enraivecidos pelo vídeo, nes e Sadek argumentam que o islã
a milícia islâmica Ansar al-Shariah é uma religião perigosa, o  incêndio
atacou o consulado americano e do consulado em Benghazi repre-
ateou fogo nele, deixando o embai- senta uma vitória, uma prova final
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 63

para a sua equação que diz que o islã uma infecção feita para explorar
é igual à violência. as predisposições de nossos siste-
Em linguagem da Web, Nakou- mas de mídia.
la, Sadek e Jones são trolls, pessoas Ao mesmo tempo em que al-
que tentam desviar uma discussão guns atores da mídia no Oriente
com conteúdo de assédio ou provo- Médio estão procurando ativamente
cação, esperando conseguir infla- evidências de que os EUA estão per-
mar uma resposta. A estudiosa da seguindo muçulmanos, a mídia ame-
internet Judith Donath nota que “o ricana, desde o 11 de setembro, tem
troll tenta se passar por um legíti- dando uma atenção desproporcional
mo participante, dividindo os inte- à violência cometida por muçulma-
resses e as preocupações comuns nos. Os protestos funcionaram para
do grupo”, mas a sua intenção final uma narrativa existente nos meios
não é ocupar-se do discurso, mas de comunicação americanos, nar-
sim incitá-lo65. Pelo fato de os trolls rativa essa bem ilustrada pela capa
precisarem se disfarçar, é necessária da Newsweek de 24 de setembro de
alguma habilidade para trollar uma 2013, que apresenta a imagem de um
discussão com êxito. Postar insultos homem barbudo com um turbante
imediatos acaba com uma conversa gritando, sob a seguinte manchete:
rapidamente, enquanto a transfor- “fúria muçulmana”.
mação de um comentarista em um Os trolls por trás de Innocence
provocador gera a fúria que o troll of Muslims exploram ambas narra-
busca. Com o tempo, os usuários da tivas. Propõe aos muçulmanos do
internet desenvolveram alguma re- Oriente Médio algumas evidências
sistência aos trolls. “Não alimente de que os americanos tanto não
os trolls” é um conhecido conselho compreendem quanto desrespeitam
– em outras palavras, se alguém es- o islã, uma vez que centenas de pes-
tiver tentando provocar, nem res- soas estavam dispostas a se juntar e
ponda. Entretanto, o ambiente mais fazer um filme que insulta o Profeta.
amplo ainda tem que desenvolver E os protestos que se seguiram a isso
defesas melhores contra os trolls. serviram ao foco da mídia americana
Pode ser óbvio a um observa- naquilo que é súbito e violento, em
dor ocidental que o único propósito detrimento de processos que podem
de Innocence of Muslims é provocar, ser mais importantes, mas que tem
mas isso é menos óbvio quando du- difícil concepção visual: a autoria de
blado para o árabe e apresentado uma constituição líbia ou eleições
como um novo filme que foi feito pacíficas no Egito.
para o grande público americano. A capa da Newsweek nos convi-
Nós podemos pensar no filme como da a ver o protesto líbio do jeito que
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Nakoula e o Pastor Jones os veem, enquanto homens carregando o embaixador Stevens,


evidência de que o islã é imprevisível e vio- que está inconsciente pela inalação de fu-
lento. A visão de Appiah do cosmopolitismo maça, de dentro do consulado em chamas
sugere que olhemos mais profundamente para um carro, e levando-o ao hospital.
para ver se a situação é mais complexa do Quando eles descobrem que Stevens ainda
que parece à primeira vista. Com um pou- está vivo, eles cantam “Deus é grande”68.
co de trabalho e uma cisão mais ampla, uma Enquanto dezenas de milhares de ha-
narrativa muito diferente emerge. bitantes de Benghazi marchavam contra
Marc Lynch, um estudioso de mídia uma manifestação de “fúria muçulmana,”
árabe, sustenta que os protestos, ainda que muçulmanos americanos reagiram à capa
por vezes violentos, eram, de fato, pequenos da Newsweek de modo mais sutil e irri-
– muito inferiores em tamanho e em inclu- tante. Para acompanhar a sua história, a
são popular comparados aos levantes ára- Newsweek convidava as pessoas a compar-
bes do ano passado, e mesmo pequenos em tilhar seus pensamentos online, usando a
comparação aos contínuos protestos pró- hashtag do Twitter #muslimrage. Cente-
-democracia ou outros protestos políticos, nas de muçulmanos nos Estados Unidos
ocorridos semanalmente em muitos países e em outros lugares assim o fizeram, pos-
árabes. Um protesto que não foi amplamen- tando fotos próprias com uma feição per-
te coberto ocorreu em 21 de setembro, dez turbada, com legendas que mostravam sua
dias depois de o consulado americano na #furiamuculmana diante das frustrações
Líbia ter sido incendiado, “onde dezenas da rotina. Uma coleção dessas imagens,
de milhares foram às ruas em Benghazi em disponível em http://muslimrage.tumblr
um protesto inspirador contra as milícias .com/, contém legendas como: “A minha se-
e contra os ataques ao consulado america- ção ‘favoritos’ não pode ser mais encontra-
no”66. Um dia depois, protestos similares da, e agora eu terei de procurar sozinho para
expulsaram a milícia Ansar al-Sharia, que encontrar meu lugar #MuslimRage”; Ke-
se acreditava ter sido responsável pelo in- babs queimando! Porque o meu timer não
cêndio do consulado americano, a partir de apitou? #MuslimRage; Uma palestra de 3
sua base próxima à cidade67. horas amanhã a partir das 8h da manhã. Por
Lynch nota que enquanto dezenas de quê? #MuslimRage.
leitores pegaram suas canetas para opinar Os tweets #muslimrage apontam para
sobre a fúria muçulmana, poucos se inspi- uma verdade óbvia: os protestos violentos
raram para escrever sobre esses maciços representam uma fração extremamente
protestos em apoio aos EUA. Os escritores- pequeno comparado aos quase dois bilhões
-leitores que Lynch está esperando podem de muçulmanos espalhados pelo mundo69.
encontrar inspiração em um vídeo do You- A maioria dos muçulmanos não se pare-
tube que oferece uma janela muito diferen- ce com o homem assustador da capa da
te dos protestos líbios. Feito pelo ativista Newsweek; ao contrário, eles se parecem
Fahd al-Bakoush, ele mostra uma dúzia de com amigos, vizinhos, colegas e compa-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 65

nheiros e, as frustrações, em sua maioria, ximando primeiro as explicações de misté-


são as mesmas, insignificantes e corriquei- rio com ceticismo, buscando uma imagem
ras, que todos compartilhamos. mais completa. Nós precisamos encontrar
Com protestos em Benghazi e os twe- guias que nos ajudem a traduzir e contextu-
ets nos EUA, os muçulmanos estão tentan- alizar o que estamos vendo, para que possa-
do lutar contra uma narrativa simplista que mos entender o que de fato está acontecen-
obscurece a transformação “maior” que do no mundo.
está ocorrendo no Oriente Médio – um mo- Um futuro de conexões através das
vimento a partir de um mundo de autocra- linhas de linguagem, cultura e nação foi
tas opressivos e movimentos religiosos su- tornado “mais” possível pela ascensão da
primidos por governos representativos que internet. O nosso sucesso econômico e cria-
tentam equilibrar o islã moderado e a de- tivo depende de nós nos tornarmos mais
mocracia eleitoral. A nossa inabilidade em digitalmente cosmopolitas, abraçando ins-
ver a sorridente e sarcástica #furiamucul- pirações e oportunidades de todas as partes
mana, porque fomos cegados pela violenta do mundo. Para construir as ferramentas
e exagerada “fúria muçulmana”, sugere que que precisaremos para prosperar nesse
estamos vendo uma imagem distorcida do mundo emergente, teremos que entender
mundo. Essa visão limitada, afinada com como estamos conectados e desconectados.
algumas narrativas e não com outras, torna Precisamos nos deslocar em direção
difícil antecipar e entender grandes mu- a uma física da conexão, a um entendi-
danças como a Primavera Árabe. mento do que é necessário para construir
Não podemos escapar de um mundo conexões reais e duradouras no espaço
conectado. Governos bloquearam o aces- digital. O nosso primeiro passo para atin-
so ao Youtube no lançamento do trailer de gir essa meta é estabelecer um melhor en-
Innocence of Muslims, da mesma maneira tendimento do que de fato fazemos e não
que não deixaram aviões decolarem duran- fazemos, a quem escutamos e não escuta-
te o surto da SARS. Mas as ideias, tanto as mos quando usamos a internet. Nós temos
feias quanto as que inspiram, espalham-se que olhar com cuidado o quão conectados
para além das fronteiras. nós  estamos e não só o quão conectados
Para obter sucesso em um mundo imaginamos estar.
conectado, para lutar contra a infecção e
adotar a inspiração, precisamos de uma
visão mais ampla. Precisamos encontrar
influências inesperadas, como as másca-
ras que moldaram a carreira de Picasso.
Precisamos colocar eventos como o ataque
em Benghazi em proporção, e precisamos
descobrir o que está faltando. Precisamos
dar uma olhada longa e mais ampla, apro-
66 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ethan Zuckerman
Diretor do Centro para Mídias Cívicas do Laboratório de Mídias MIT (Center for
Civil Media at the MIT Media Lab).
Translated from Rewire: Digital Cosmopolitans in the Age of Connection
by EthanZuckerman. Copyright © 2013 by Ethan Zuckerman. With permission of the
publisher, W. W. Norton & Company, Inc.

1 Este texto é a primeira tradução para o português do capítulo inicial do


livro “Rewire: Digital Cosmopolitans In the Age of Connection” (Reconectar:
Cosmopolitas Digitais na Era da Conexão), de Ethan Zuckerman, diretor do Centro
para Mídias Cívicas do Laboratório de Mídias MIT (Center for Civil Media at the MIT
Media Lab).

2 TAHERI, A. The Spirit of Allah: Khomeini and the Islamic Revolution. Bethesda,
Maryland: Adler and Adler, 1986, p. 17–18, 213.

3 Ibid., p. 18

4 O número de mortes nos protestos de Qom é contestável, com fontes que


relatavam entre dois e setenta mortos. Ver KURZMAN, C.. The Unthinkable
Revolution in Iran. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 37; e
ABRAHAMIAN, E., A History of Modern Iran. Cambridge: Cambridge University
Press, 2008, p. 158.

5 MILANI, A.. Iran’s Islamic Revolution: Three Paradoxes. openDemocracy, 9 de fev.


2009. Disponível em: http://migre.me/iVBs6. Acesso em: 12 abr. 2014.

6 Abrahamian, op. cit., p. 161.

7 REMEMBERGIN Iran’s 1979 Islamic Revolution. NPR, 17 ago. 2009. Disponível em:
http://migre.me/iVBsO. Acesso em: 12 abr. 2014.

8 Taheri, op. cit., cap. 1.

9 De um relatório da CIA de agosto de 1978, citado por Gary Sick, um dos principais
conselheiros da Casa Branca sobre o Irã durante a revolução, em seu livro All Fall
Down: America’s Tragic Encounter with Iran. New York: Random House, 1985, p. 92.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 67

10 BERKOWITZ, B. D., e GOODMAN, A. E.. Best Truth: Intelligence in the Information


Age. New Haven: Yale University Press, 2002.

11 LANDAU, S. Surveillance or Security: The Risks Posed by New Wiretapping


Technologies. Cambridge: MIT Press, 2010, seção. 9.6.

12 SREBERNY-MOHAMMADI, A.; MOHAMMADI, A.. Small Media, Big Revolution:


Communication, Culture, and the Iranian Revolution. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1994.

13 LANDAU, Surveillance, p. 216.

14 TAYLOR, C., The Chinese Plague. World Press Review, v. 50, n. 7, jul. 2003.
Disponível em: http://migre.me/iVBue. Acesso em: 12 abr. 2014.

15 SPANTON, T. World’s Deadliest Cough,. Sun, 28 jul. 2007. Disponível em:


http://migre.me/iVBvH. Acesso em: 12 abr. 2014.

16 SARS FAQ. The Disaster Center. Disponível em: http://migre.me/j47V6. Acesso


em: 12 abr. 2014.

17 MORE, S.. Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS). In: Workshop EADGENE,
fev. 2010, Edinburgh, Escócia: 2010, PowerPoint.

18 MACNEIL JR, D. J. Disease’s Pioneer Is Mourned as a Victim. New York Times, Nova
York, 8 abr. 2003. Disponível em: http://migre.me/j0q1M. Acesso em: 12 abr. 2014.

19 GARRETT, L. Outbreak. Review of China Syndrome: The True Story of the 21st
Century’s First Great Epidemic, by Karl Taro Greenfeld. Washington Post, 9 abr.
2006. Disponível em: http://migre.me/iVBy8. Acesso em: 12 abr. 2014.

20 BATALIN, A. SARS Pneumonia Virus, Synthetic Manmade, according to Russian


Scientist. Global Research, 10 nov. 2003. Disponível em: http://migre.me/iVByU.
Acesso em: 12 abr. 2014.

21 Organização Mundial da Saúde, SARS: How a Global Epidemic Was Stopped.


Geneva: WHO Press, 2006, cap. 15.

22 SUMMARY Table of SARS Cases by Country, 1 November 2002–7 August 2003.


World Health Organization, 15 AGO. 2003. Disponível em: http://migre.me/j47Oe.
Acesso em: 10 abr. 2014.

23 TAUBENBERGER, J. e MORENS, D.. 1918 Influenza: The Mother of All Pandemics.


Emerging Infectious Diseases, v. 12, n. 1, jan. 2006. Disponível em:
http://migre.me/iVBAx. Acesso em: 12 abr. 2014.
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

24 Organização Mundial da Saúde, SARS, introdução.

25 SARS Whistle-blower Breathing a Sigh of Relief.” China News Daily, 21 maio 2003.
Disponível em: http://migre.me/iVBEp. Acesso em: 12 abr. 2014.

26 DOURISH, P. e BELL, G.. Divining a Digital Future: Mess and Mythology in


Ubiquitous Computing. Cambridge: MIT Press, 2011, p. 33.

27 ABOUZEID, R.. Bouazizi: The Man Who Set Himself and Tunisia on Fire. Time,
Estados Unidos, 21 jan. 2011. Disponível em: http://migre.me/iVBGa. Acesso em:
12 abr. 2014.

28 KIRKPATRICK, D. Tunisia Leader Flees and Prime Minister Claims Power. New
York Times, Nova York, 14 nov. 2011. Disponível em: http://migre.me/j487L; Blog
de Robert Mackey, The Lede (blog), faz referência a Bouazizi dois dias antes em:
Tunisians Document Protests Online. New York Times, Nova York, 12 jan. 2011.
Disponível em: http://migre.me/iVBHJ. Acesso em: 12 abr. 2014.

29 GENTILE, S. Octavia Nasr: US Media Missed ‘the Anatomy’ of Tunisia’s Revolution.


PBS Need to Know, 21 jan. 2011. Disponível em: http://migre.me/iVBJ3. Acesso em:
12 abr. 2014.

30 DOZIER, K., Intelligence Community under Fire for Egypt Surprise. Associated
Press. Disponível em: http://migre.me/iVBKe. Acesso em: 12 abr. 2014.

31 Pippa Norris resume a pesquisa sobre os noticiários internacionais do final da


década de 1960 e 1970, encontrando estimativas de noticiários internacionais e
estrangeiros entre 25 e 40% do total das notícias transmitidas, em The Restless
Searchlight: Network News Framing of the Post Cold-War World Disponível
em: http://migre.me/j48oC. Alisa Miller, citando um trabalho do Projeto para a
Excelência do Jornalismo, vê 10% de cobertura estrangeira e internacional em
transmissões de televisão recentes, em Media Makeover: Improving the News One
Click at a Time. TED Books, 2011, Kindle ed.

32 MOBILE Phone Access Reaches Three Quarters of Planet’s Population.World Bank


press release, 17 jul. 2012. Disponível em: http://migre.me/j48u1. Acesso em:
12 abr. 2014.

33 WATTS, D. J.. Six Degrees: The Science of a Connected Age. New York: W. W.
Norton, 2004, p. 283.

34 Os motivos para o exílio de Diógenes são questões ainda historicamente


disputadas. Um relato de seu exílio afirma que ele foi banido por “desfigurar
a moeda.” Historiadores ainda estão tentando descobrir precisamente o que
isso significa, pois ainda não é claro se Diógenes e seu pai, que pode ter sido o
tesoureiro de Sínope, estavam roubando dinheiro, ou se Diógenes desfigurou a
moeda enquanto ato filosófico de rebeldia.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 69

35 LÄERTIUS, D.. Lives and Opinions of Eminent Philosophers. Trans. C. D. Bonge.


Londres: Henry Bohn, 1852.

36 THE World Goes to Town. Economist, 3 maio 2007. Disponível em:


http://migre.me/j48Iy. Acesso em: 12 abr. 2014.

37 JACOB, M. C.. The Cosmopolitan as a Lived Category. Daedalus, v. 137, nº 3, Verão


2008, p. 18–25.

38 PUTNAM, R. D., E Pluribus Unum: Diversity and Community in the Twenty-First


Century: A palestra do prêmio Johan Skytte de 2006 Scandinavian Political
Studies, n. 30, 2007, p.. 137–74.

39 Ibid.

40 APPIAH, K. A. Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers. New York: W. W.


Norton, 2007, p. xv.

41 Se por um lado isso faz Appiah soar como um relativista moral, ele se defende
de tal acusação argumentando em favor dos valores universais que são
compartilhados através das culturas, como os que são obscurecidos pelos ‘tabus’
que são locais em termos de escopo e aplicação.

42 Picasso’s African-Influenced Period: 1907 to 1909, PabloPicasso.org. Disponível em:


http://migre.me/iVBOx. Acesso em: 12 abr. 2014.

43 MELDRUM, A. Stealing Beauty: How Much Did Picasso’s Paintings Borrow from
African Art? The Guardian, 14 abr. 2006. Disponível em: http://migre.me/iVBZu.
Acesso em: 12 abr. 2014.

44 LOTZ, C. em Apollo: The International Magazine for Collectors, Dez. 2007, p. 122,
Disponível em: http://migre.me/j4e7l. Acesso em: 12 abr. 2014.

45 Meldrum, op. cit.

46 Ibid.

47 MADELINE, L. e MARTIN, M.. (eds.). Picasso and Africa. Johannesburgo: Standard


Bank Gallery, 2006. Catálogo de uma exibição na galeria do Standard Bank em
Johannesburgo, 10/2 a 19/3/2006, e na Iziko South African National Gallery,
Cidade do Cabo, entre 13/4 a 21/5/2006.

48 SENGHOR, L. S.. Masque nègre. In Chants d’ombre 1945. Disponível em:


http://migre.me/iVC4o. Acesso em: 20 abr. 2014.
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

49 BOHN, R. E., e SHORT, J. E.. How Much Information? 2009 Report on American
Consumers. Global Information Industry Center of the University of California, San
Diego, jan. de 2010, Disponível em: http://migre.me/iVC58. Acesso em:
12 abr. 2014.

50 Setenta minutos diários, segundo o Centro de Pesquisa Pew. Americans Spending


More Time Following the News. 12 set. 2010.. Disponível em:
http://migre.me/iVC82. Acesso em: 12 abr. 2014.

51 RHEINGOLD, H. The Virtual Community: Homesteading on the Electronic Frontier.


Cambridge: MIT Press, 2000, p. 181

52 STANDAGE, T. The Victorian Internet: The Remarkable Story of the Telegraph and
the Nineteenth Century’s On-line Pioneers. New York: Berkley Books, 1999, p. 83.

53 CORN, J. J., The Winged Gospel: America’s Romance with Aviation. Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 2002, p. 37.

54 NARDODNY, I. Marconi’s Plans for the World. Technical World Magazine, n. 18,
1912, p.145–50.

55 De uma entrevista de 1926 da Colliers, In: Marshall McLuhan Foresees the Global
Village. Disponível em: http://migre.me/iVC9u. Acesso em: 12 abr. 2014.

56 WINNER, L. Sow’s Ears from Silk Purses: The Strange Alchemy of Technological
Visionaries. In: Marita Sturken et al. (Ed.) Technological Visions: The Hopes and
Fears That Shape New Technologies. Philadelphia: Temple University Press,
2004, p. 3

57 Correspondência pessoal com Howard Rheingold.

58 DISRAELI, B. Vivian Grey. London: Henry Colburn, 1826. v. 6, cap. 7.

59 GOULD, J. E. The Making of the Innocence of Muslims: One Actor’s Story. Time, 13
set. 2011. Disponível em: http://migre.me/iVCaB. Acesso em: 12 abr. 2014.

60 Jones prosseguiu e queimou cópias do Alcorão, embora suas ações tenham


atraído menos atenção do que a sua ameaça, feita em 2010. Ver Kevin Sieff .
Florida Pastor Terry Jones’s Koran Burning Has Far-reaching Effect. Washington
Post, 2 abr. 2012. Disponível em: http://migre.me/iVCca. Acesso em: 12 abr. 2014.

61 CONSTABLE, P. Egyptian Christian Activist in Virginia Promoted Video That


Sparked Furor. Washington Post, 13 set. 2012. Disponível em:
http://migre.me/j4a3c. Acesso em: 12 abr. 2014.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ethan Zuckerman 71

62 MACKEY, R. e STACK, L. Obscure Film Mocking Muslim Prophet Sparks Anti-


U.S. Protests in Egypt and Libya. New York Times, The Lede (blog), 11 set. 2012.
Disponível em: http://migre.me/iVChZ. Acesso em: 12 abr. 2014. HUDSON, J. The
Egyptian Outrage Peddler Who Sent Anti-Islam YouTube Clip Viral. Atlantic Wire,
Set. 13, 2012, Disponível em: http://migre.me/iVCmE. Acesso em: 12 abr. 2014.

63 BASHAN, Y. Arrests Made after Police Officers Injured at Anti-Islamic Film Protest
in Sydney CBD. Daily Telegraph, 16 set. 2012. Disponível em:
http://migre.me/iVCkA. Acesso em: 12 abr. 2014. Belgian Police Detain 230
Protesting Anti-Islam Film. Hürriyet Daily News, 16 set. 2012. Disponível em:
http://migre.me/iVCjB. Acesso em: 12 abr. 2014.

64 SHADIA, M. e RYAN, H. California Muslims Hold Vigil for Slain Ambassador. Los
Angeles Times, 15 set. 2012. Disponível em: http://migre.me/iVCiY. Acesso em:
12 abr. 2014.

65 DONATH, J. S.. Identity and Deception in the Virtual Community. In: SMITH, Marc
A. ; kollock, Peter (Ed.) Communities in Cyberspace. London: Routledge,
1999, p. 27–58.

66 LYNCH, M. The Failure of #MuslimRage,. Foreign Policy, 21 set. 2012. Disponível em:
http://migre.me/iVCp3. Acesso em: 12 abr. 2014.

67 STEPHEN, C. Bodies of Six Militiamen Found in Benghazi after Attacks on Bases.


The Guardian, 22 set. 2012. Disponível em: http://migre.me/iVCpy. Acesso em:
12 abr. 2014.

68 PEOPLE of Benghazi Trying to Save Chris Stevens Life before His Death. YouTube.
com, 17 set. 2012. Disponível em: http://migre.me/iVCpK, e http://migre.me/iVCqw.
Acesso em: 12 abr. 2014.

69 MAPPING the Global Muslim Population, Forum Pew sobre Religião e a Vida
Pública, 7 out. 2009. Disponível em: http://migre.me/iVCrP. Acesso em:
12 abr. 2014.
73
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Claudio Lenz é cientista especia-


lizado em antimatéria, assunto que
trata de traduzir e desenvolver conexão
crucial entre o fazer científico e a cul-
tura do faça você mesmo. Claudio nos
fala, a partir de sua experiência, como
enxerga a pesquisa no Brasil e fora do
país. Fala também sobre a relação entre
juventude e ciência, o que permite ter
boas ideias sobre como pensar a educa-
ção e a inserção do país no campo de de-
senvolvimento científico e tecnológico.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 75

A cultura do faça você mesmo e


os desafios da ciência no Brasil

VOCÊ É UM DOS CIENTISTAS COM MAIOR TRÂNSITO INTERNACIONAL


NA ÁREA DE FÍSICA, ESPECIALIZADO EM ANTIMATÉRIA. PODERIA CON-
TAR UM POUCO DO SEU TRABALHO E CAMPO DE PESQUISA?
Antimatéria é a matéria com a carga trocada e envolvida num dos maio-
res mistérios da física atual. Assim como existe na natureza o elétron, partí-
cula fundamental e leve de carga negativa (-e), existe a antipartícula do elé-
tron, o “elétron positivo”, ou “pósitron”, com carga positiva (+e). Nos núcleos
atômicos existem prótons, partículas compostas (de quarks) e com carga
positiva (+e). Similarmente, existem os antiprótons, partículas com massa
e outras propriedades idênticas ao do próton, mas com carga negativa (-e). E
cada partícula na natureza tem a sua “anti”. O nome “anti” é justificado por-
que a partícula se aniquila, numa micro explosão, com sua antipartícula. As-
sim, aqui na Terra, não se encontraria antimatéria, pois imediatamente teria
aniquilado matéria com igual quantidade.
Na aniquilação elétron-pósitron, o resultado é pura energia (fótons de
raios gama), que inclusive é usado no exame médico de Tomografia por emis-
são de pósitrons. Já na aniquilação próton-antipróton, outras partículas e
antipartíulas são geradas. O reverso da aniquilação também é possível: ener-
gia virar massa, em pares de partícula e antipartícula.
No universo, surge antimatéria como resultado dessa conversão ener-
gia-massa, por exemplo, numa explosão de supernova; ou até mesmo em
raios de tempestades na parte superior das nuvens, no caso de pósitrons.
Mas todas as medidas apontam para a inexistência de antimatéria primor-
dial: estrelas e galáxias feitas de antimatéria. No entanto, as leis da física pre-
veem que, no início do Universo, deve ter sido criada quase tanta antimatéria
quanto matéria. O que aconteceu com a antimatéria? Um dos grandes misté-
rios da física atual, junto com matéria e energia escuras, é explicar a compo-
sição e essa assimetria entre matéria e antimatéria no Universo.
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Uma das possibilidades, e a Num momento feliz para a ci-


mais provável, é que as leis da física ência, no CERN (Centro Europeu de
com essa simetria entre matéria e Física de Partículas), há uma máqui-
antimatéria estejam erradas em cer- na dedicada à produção de antipró-
to limite. Outra possibilidade, mais tons a velocidades moderadas. Os
exótica e improvável pelos dados desenvolvimentos de armadilhas, ou
indiretos que temos, seria a antigra- “garrafas”, magnéticas para átomos
vidade na interação entre matéria e de hidrogênio e sua medida com um
antimatéria, ou seja, uma repulsão laser preciso, que fizeram parte do
gravitacional, o que violaria o princí- meu trabalho de doutorado no MIT
pio de equivalência de Einstein. Essa em 1995, permitiam vislumbrar um
hipótese radical – ainda no nível da experimento para aprisionar o an-
mera especulação – poderia sugerir ti-hidrogênio e testar com laser de
a existência de todo um “mundo” de alta precisão se esse antiátomo tem
antimatéria muito longe do nosso. a mesma estrutura que o átomo, con-
A melhor coisa a fazer em ciência forme prevê a teoria. E, além disso,
diante de um problema assim, quan- com essa antimatéria neutra (carga
do possível, é realizar experimentos nula), experimentos diretos sobre
no laboratório, estudando o objeto o efeito gravitacional poderiam ser
de pesquisa em condições altamente feitos. O único problema: ninguém
controladas e precisas, ou seja, pro- jamais tinha feito um antiátomo que,
var a natureza até os limites da téc- ao que tudo indica, jamais existiu no
nica e da ciência. A natureza, então, Universo, e muito menos o aprisio-
nos dirá se nosso modelo (teoria) nado. Para formar esses antiátomos
está bom ou precisa ser reformado. a baixas energias e aprisiona-los,
precisaríamos desenvolver técnicas
e equipamentos. Nos últimos 17 anos,
primeiro na colaboração ATHENA e
depois na ALPHA, ambas no CERN,
conseguimos esses dois feitos (con-
siderados por revistas especializadas
um dos maiores feitos mundiais da
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 77

física nos anos de 2002 e 2010). Estamos QUAL A DIFERENÇA ENTRE TRABALHAR
agora preparando o sistema para ter a pri- EM UMA INSTITUIÇÃO BRASILEIRA (UFRJ)
meira interação de um laser com um antiá- E EM UM DOS LABORATÓRIOS DE FÍSICAS
tomo, mas já começamos a realizar medidas MAIS IMPORTANTES DO MUNDO, O CERN
gravitacionais, embora em precisão ainda NA SUÍÇA? E COM O PRINCIPAL ACELERA-
irrisória. É um período de grandes expecta- DOR DE PARTÍCULAS DO PLANETA?
tivas nas questões a serem respondidas, em Há diferenças e similaridades entre o
alta precisão, ao longo dos próximos anos: ambiente da UFRJ e do CERN, ou MIT. Te-
Será que o antiátomo tem a mos um corpo docente qualificado na UFRJ.
mesma estrutura do átomo como Alguns de nossos colegas poderiam ser pro-
prevê a teoria atual? fessores nas melhores instituições do mundo.
Será que o efeito gravitacional Nossos alunos não fazem ideia do privilégio
de matéria sobre antimatéria é o mes- que é ter aulas com professores pesquisado-
mo que o de matéria sobre matéria? res doutores, para os quais o ensino é vivo, ou
Se ambas as reposta forem “sim”, seja, quase tudo é assunto de pesquisa e essa
ainda temos problemas com nosso perspectiva é passada ao aluno!
modelo ou observação do Universo. No entanto, quando falamos em ter-
Se forem “não”, eureka! Muitas possi- mos de estrutura, cultura e organização, um
bilidades novas poderiam surgir. fosso gigante separa a UFRJ (e quase todas
as federais brasileiras) do CERN ou das
universidades no mundo desenvolvido. No
Brasil, além de professores e pesquisado-
res, somos também secretários, office-boys
e despachantes. Falta energia elétrica, es-
trutura física e apoio técnico e administra-
tivo. A governança da universidade pública
brasileira é péssima, a começar seus vícios
pelo sistema de eleição do reitor, por alunos,
funcionários e professores. Contraste-se
isto num exemplo de uma boa universida-
de estrangeira: um comitê de uma dezena
de professores titulares notáveis analisa
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

as candidaturas a reitor, num longo te uma questão cultural, desde a


processo, com entrevistas, e por fim nossa educação básica e nosso his-
recomenda até três nomes ao con- tórico, que demanda um tempo para
selho superior. Uma vez escolhido o ser vencida. Digo que a universidade
reitor, esse escolhe o restante da hie- brasileira hoje é pobre  de cultura, e
rarquia até o chefe de departamen- não necessariamente de recursos.
to, o qual tem orçamento, incluindo Finalmente, o Brasil é excessi-
salário dos professores, secretários e vamente burocrático, principalmen-
reformas de salas, bem como algum te para a pesquisa, em que as coisas
recurso para pesquisa. mudam muito rapidamente. Par-
Nossa eleição para reitor gera tindo do pressuposto de que todos
um tremendo corporativismo, prin- são corruptos, cria-se um sistema
cipalmente associado ao fato de completamente engessado, no qual
nossos funcionários públicos terem pessoas que querem fazer um tra-
estabilidade sem um sistema míni- balho sério ficam sobrecarregadas.
mo de avaliação; ainda temos alunos Precisamos de uma reforma urgente
repetentes “eternos”, difíceis de se- nessa questão que afeta toda nos-
rem jubilados, enquanto seu estudo sa produtividade. Os exemplos são
(caro) é completamente custeado muitos e o tema longo demais para
pela sociedade. A universidade não esse espaço.
tem e não quer ter uma autonomia Enquanto isso, no CERN, e nas
de fato, através da qual ela teria que boas universidades mundo afora,
decidir seu orçamento finito entre tudo é voltado para ser eficiente. Há
a contratação de um professor, um autonomia “acadêmica” e financei-
funcionário ou a reforma da infra- ra (o que às vezes requer cortes, até
estrutura. O sistema universitário de pessoal ou salários) e há também
brasileiro é algo importantíssimo acompanhamento e cobrança pelos
para a sociedade, mas precisa migrar conselhos superiores dessas insti-
para uma maior eficiência e autono- tuições, que não são endógenos. As-
mia atrelada a uma séria avaliação e sim, a estrutura de apoio à pesquisa
acompanhamento por um conselho funciona: da manutenção dos pré-
externo à instituição. Há obviamen- dios, aos funcionários, às oficinas
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 79

O cientista não pode


ficar limitado pelo
que há disponível
comercialmente.
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

(algumas pagas pelos projetos de COMO VOCÊ VÊ A QUESTÃO DA


pesquisa individuais), aos processos CULTURA DO “FAÇA VOCÊ MESMO”
de compras e importações. O CERN, NA CIÊNCIA? CIENTISTAS TÊM
como as universidades brasileiras, é DE COLOCAR A MÃO NA MASSA OU
isento de impostos nas importações, BASTAM BOAS IDEIAS?
mas diferentemente daqui, essa im- Na minha experiência em físi-
portação é ágil na fronteira, com ca experimental de fronteira, o cien-
uma auditoria a posteriori e o ins- tista não pode ficar limitado pelo
tituto tomando todo o cuidado para que há disponível comercialmen-
evitar qualquer deslize que venha a te. Nos grupos em que trabalhei no
comprometer sua imagem ou status. MIT, assim como no CERN, sempre
A origem do CERN é interessante: desenvolvemos equipamentos, sof-
foi um laboratório criado por suges- twares e técnicas, bem como inte-
tão de I. Rabi – um americano lau- ragimos com as empresas buscando
reado Nobel de física e representan- empurrar os limites da tecnologia.
te na UNESCO – para reconstruir Há coisas que a indústria domina
a ciência europeia do pós-guerra, bem e só precisa de uma sugestão
numa filosofia de cooperação entre de como fazer algo um pouco dife-
os países que estiveram em guer- rente para testarmos. No entanto,
ra e numa situação financeira difí- há outras coisas que fazemos mui-
cil. Como instituição internacional to melhor e mais barato no labora-
multigovernamental, o CERN, por tório: são aplicações muito espe-
congregar, em sua maioria, pessoas cíficas sem grande volume para a
inteligentes e competentes, é talvez indústria, ou que não há know-how
o melhor exemplo de sucesso. na indústria. Há poucos grupos que
usam quase exclusivamente siste-
mas comerciais, nos quais os alu-
nos passam a ser mais “operadores”,
o que não é bom para a formação.
Estive ao lado de vários grupos dos
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 81

quais saíram prêmios Nobel em fí- VOCÊ É FÍSICO, MAS JÁ TRABA-


sica e minha experiência aponta LHOU COM ARTISTAS. CONTE UM
que os melhores grupos são exata- POUCO SOBRE A SUA RELAÇÃO
mente aqueles que desenvolvem PESSOAL ENTRE CIÊNCIA E ARTE
bastante instrumentação própria, o E COMO VOCÊ VÊ ESSES DOIS CAM-
“faça você mesmo”. E, para ser efe- POS DIALOGANDO.
tiva, essa cultura do “faça você mes- Tive artistas como alunos e co-
mo” deve começar já na educação laboradores, como o músico e físico
básica e secundária. Um subprodu- Moreno Veloso, como a diretora de
to dessa filosofia de trabalho é que arte e física Maria Borba (filha da
indústrias novas  nascem dos labo- Bia Lessa), por exemplo. Há mui-
ratórios, o que é altamente benéfico tos artistas interessados em ciên-
ao País e à sociedade. cia e grande parte dos cientistas
Muitos cientistas são extre- interessada em artes. Sou assíduo e
mamente criativos dentro das pos- apaixonado por teatro, acho música
sibilidades dos equipamentos para “espiritual” (transcendental), adoro
os quais obtiveram verbas, mas não boa literatura e leitura, emociono-
conseguem vislumbrar além disso. -me com algumas pinturas, além de
Fazem o que estão acostumados, o achar extraordinário o filme: você é
que já se sabe “possível”, em sua zona levado a “viver” em resumo a expe-
de conforto, resultando no que pode- riência da vida do personagem ou a
mos chamar de “ciência previsível”. experimentar uma ficção. Já a arte
O ideal é que haja muitos grupos com para chocar não me agrada. O prin-
um verdadeiro objetivo científico: cípio do aumento da entropia (caos)
vai-se à busca dessas respostas, não no universo já me choca o suficiente:
importando se isso requer o aprendi- é fácil destruir, ou gerar caos, pois
zado de novas técnicas ou a invenção
de novos equipamentos.
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

é o caminho natural no universo. O ço – tanto em educação quanto em


desafio bacana é construir, é fazer dedicação – enquanto em algumas
algo  belo, útil, cultivar carinhosa- artes, como em música popular e
mente a vida. artes plásticas, ainda há aquele “ra-
Pessoalmente, já pensei em bisco do gênio”, rápido. Em ciência,
musicar o movimento dos meus como na música erudita e no ballet,
átomos na armadilha, matematica- o “gênio” é 10% inspiração e 90%
mente, com o movimento sendo um transpiração. Além disso, o nível de
tom modulado pelo campo magné- julgamento do que é boa ciência ou
tico como são os níveis de energia boa arte pode ser também muito di-
do átomo, diferentes instrumentos ferente. Há muita coisa banal, nos
para diferentes níveis atômicos, e a museus de arte moderna no mundo
aniquilação e colisões soando como e na música “comercial”, tomado
tímpanos! Esse é um projeto futuro como válido e uma experimentação
– quando eu tiver mais tempo livre – do artista, que não me agrada pela
pois tenho curiosidade de ver como pobreza de conteúdo. Em ciência, o
essa sinfonia iria soar! julgamento é muito mais rigoroso, e
Não deixa de ser intrigante e somos cerceados pela resposta que
instigante essa relação ciência e arte. extraímos da natureza: ou está de
Ambas as atividades requerem in- acordo com ela ou não serve àquele
ventividade e em ambas o papel dos propósito. Não há relativização e te-
tutores (basta ler a nota biográfica mos que tomar muito cuidado, pois
de um violinista, ou uma bailarina) a má ciência causa grande dano. Por
tem alta relevância. No entanto, o ní- exemplo, para publicar o primeiro
vel necessário de perseverança pode aprisionamento de antiátomos, pas-
ser muito diferente. Não se consegue samos mais de ano fazendo testes
fazer ciência boa sem um alto esfor- para ver se não estaríamos sendo en-
ganados por um sinal de antiprótons,
ao invés de antiátomos.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 83

COMO VOCÊ VÊ O PAPEL DOS JO- criativo, quando a mente é muito ágil:
VENS NO PAPEL DA CONSTRUÇÃO dizem que matemáticos e físicos teó-
DA CIÊNCIA NO PAÍS? ricos só conseguem fazer teorias re-
Fundamental. A maior parte da volucionárias até antes dos 30 anos
ciência no mundo é feita pelos jo- de idade. Apesar de não termos uma
vens alunos de pós-graduação orien- educação básica e secundária de boa
tados por seus professores. Nesse qualidade, com experimentação e
processo de treinamento dos pesqui- observação científica, temos no país
sadores, é importante o processo de um excelente programa institucional
amadurecimento do jovem para que de Iniciação Científica e uma sólida
ele assuma aquela responsabilidade, pós-graduação. Precisamos fechar
e o pensar daquele problema como esse “buraco negro” na formação dos
seu. Digo que, quando ele começa a nossos jovens, com observação e ex-
sonhar (literalmente) com o proble- perimentação científica e “mão-na-
ma, é que ele começa realmente a dar -massa”, para não desperdiçarmos
uma contribuição sua, que não seja esse tremendo potencial.
somente o seguir os passos que lhe
são ditados. Como a nossa educação
desde cedo é muito paternalista e
não privilegia essa independência, a
responsabilidade, o pensar e questio-
nar (cientificamente falando), os jo-
vens brasileiros demoram mais nes-
se processo. Desperdiçamos assim
parte desse período especialmente
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  85

Nosso ensino é muito


ruim e desestimulante,
principalmente para o
jovem do ensino médio,
que é bombardeado por
outros estímulos. Temos
abstração, ideologia,
e teoria demais e
praticamente nenhuma
experimentação ou
observação do mundo real.”
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

VOCÊ ACHA QUE A INTERNET AUMEN- O QUE ACHA DE PROGRAMAS COMO O


TOU OU VAI AUMENTAR O INTERESSE CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS, NO SEU COM-
POR FAZER CIÊNCIA? PONENTE DE INTERCÂMBIO DE ALU-
A internet é uma ferramenta espetacu- NOS BRASILEIROS COM UNIVERSIDADES
lar que coloca em nosso alcance uma quan- NO EXTERIOR?
tidade enorme de informação. Para a ciên- O Brasil tem há muito tempo um pro-
cia, hoje, ela é fundamental. Aliás, o WWW grama de envio de estudantes de pós-gradu-
foi criado no CERN, para os físicos de altas ação ao exterior, eu mesmo fui beneficiário
energias compartilharem a enorme quanti- de uma bolsa do CNPq no MIT. Com as difi-
dade de dados gerados nos seus experimen- culdades financeiras que passamos depois,
tos. Certamente a divulgação da ciência che- criou-se o “doutorado sanduíche, através do
ga muito mais rápido e a mais pessoas hoje, qual o aluno faz os cursos e a maior parte do
o que aumenta a oportunidade e responsa- seu trabalho no país, mas tem a possibilida-
bilidade dos que a divulgam. Mas temo que a de de passar um período no exterior com um
prática do uso da internet pela população em grupo de pesquisa previamente contatado e
geral seja mais por buscar e propagar infor- a custo muito baixo ao Brasil, pois não inclui
mações rasas. Talvez um interessante curso o pagamento da universidade estrangeira
de internet devesse dedicar semanas a en- (tuition). Esse programa é de grande suces-
contrar e investigar os chamados “mitos ur- so, pois tanto não esvazia nossas pós-gra-
banos” e a “má ciência”. Assim aprendería- duações de bons alunos, quanto fomenta
mos que não basta acreditar na “manchete” a interação dos grupos brasileiros com os
ou no spam que nos enviaram e repassamos grupos estrangeiros. A FAPERJ (agência
ou usamos como argumento sem checar um do Rio de Janeiro), inteligentemente, criou
pouco mais a fundo sua validade. recentemente um programa de “sanduíche
reverso”, ou seja, que prevê uma bolsa para
aluno de doutorado do exterior passar um
tempo num laboratório/grupo no Rio de
Janeiro. Em se tratando de aluno de dou-
torado, ou até mesmo de mestrado, quan-
do já se tem um pesquisador em formação,
esses programas são não só importantes,
como fundamentais.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 87

Já o programa Ciência Sem Frontei- O QUE VOCÊ ACHA QUE PRECISA MU-
ras (CSF) no nível da graduação, para mim, DAR NO ENSINO MÉDIO E FUNDAMEN-
é um grande desperdício de recursos. Co- TAL PARA DESPERTAR O INTERESSE
nheci alunos do CSF no exterior fazendo EM CIÊNCIAS?
cursos em universidades medianas, com Desculpem-me os pais e professores,
corpo docente com formação inferior aos mas nosso ensino é muito ruim e desesti-
nossos, mas numa estrutura (física e de or- mulante, principalmente para o jovem do
ganização) muito melhor que a nossa. Os ensino médio, que é bombardeado por ou-
alunos adoram, obviamente, e certamente tros estímulos. Temos abstração, ideologia,
isso vai trazer algum retorno pontual aqui e teoria demais e praticamente nenhuma
ou acolá, mas a um custo injustificado para experimentação ou observação do mundo
o nosso país de hoje. Avançaremos muito real. O que aprendemos em física: decorar o
mais se investirmos na infraestrutura das enunciado das leis de Newton, a equação do
nossas universidades (com uma mudança movimento retilíneo uniformemente acele-
na sua governança, obviamente), se co- rado (temos até uma sigla pra isso: MRUA),
brarmos um bom ensino dessas univer- somar vetores e “desprezar o atrito”. Será
sidades e garantirmos um bom programa que alguém consegue andar sem atrito?
sanduíche para todos os alunos de pós- Será que alguém faz experiências com gelo?
-graduação. Na pós-graduação, a maior Será que alguém faz experiências do dia-a-
motivação do aluno já é o grupo de pesqui- -dia com skates, bolas, bicicletas, em sala de
sa muito bom, com o qual ele espera apren- aula? Será que ligamos lâmpadas e instru-
der muito e colher bons frutos científicos. mentos? Em biologia, será que há escolas
No CSF, a motivação maior, como vi com que tenham laboratórios com microscópios
vários alunos que me procuraram, era a para observar colônias de bactérias ou ob-
ida ao exterior per si, o “surf ” na Austrália
(resposta autêntica  de um dos meus alu-
nos) ou o aprendizado da língua.
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

servar células em divisão, ou será genheiro. No ensino básico e médio


que ficamos só a aprender a classifi- estamos promovendo uma educação
cação dos seres vivos e a decorar – de mais geral e, com exceção de mate-
ouvir – os processos celulares? Será mática e a língua, ninguém deve ser
que em química vemos (ouvimos e considerado disfuncional por não
cheiramos) reações fantásticas e co- saber algum detalhe em física, histó-
loridas ocorrerem em nossas salas ria ou geografia. Assim, precisamos
de aula ou somente ouvimos falar urgente de uma revolução no ensino
delas e temos que decorar os nomes básico e médio: mais observação da
dos compostos orgânicos? Sequer natureza, mais experimentação com
experimentamos com as mãos a re- coisas do dia-a-dia, mais discussão
ação simples de água com álcool ou estimulante, e menor cobrança com
medimos com um termômetro a pe- as contas (de física) e listas de “de-
rigosa (para a pele) reação de gelo corebas” (pois serão esquecidas no
com sal. Em suma: nosso ensino é ano seguinte e, portanto, pouco ser-
todo abstrato. Não temos oficinas vem à vida). Todo(a) garoto(a) de 6 a
de marcenaria ou eletrônica, ou ro- 12 anos é fascinado(a) pela natureza
bótica ou mecânica. E pior ainda no e faz perguntas sobre o Universo,
caso da física: os professores do en- do micro ao macro, do buraco negro
sino médio copiam o rigor de seus à antimatéria, ao sol, à bactéria, ao
mestres universitários, o que acaba funcionamento do corpo humano...
por gerar ojeriza à ciência em vários Onde os perdemos?
alunos. Na universidade é preciso
bastante rigor no conteúdo e avalia-
ção, pois estamos dando um diploma
especializado, a um médico, a um en-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 89

E O QUE PRECISA MUDAR NAS UNI- nossas universidades. A universida-


VERSIDADES PARA DECOLARMOS de pública é paga pela sociedade e
NO CAMPO DA INOVAÇÃO E DA deve servir a ela e não aos interesses
CIÊNCIA? internos dos seus funcionários pú-
Apesar da inegável importân- blicos, que ganham o mesmo salário
cia das universidades para o país, ao final do mês quer trabalhem mui-
é óbvio que o sistema está longe do to, quer trabalhem pouco.
ideal quando não temos sequer uma Seria interessante resgatar uma
universidade brasileira na lista das ideia que surgiu e desapareceu nessa
100 melhores no mundo, apesar do administração, que é de chamar por
Brasil figurar entre os dez primeiros edital algumas universidades brasi-
em importância econômica, de terri- leiras rumo à lista das 100 melhores
tório e população. Temos um corpo (a exemplo do que feito com o “Reu-
docente de bom nível, formado com ni”, que teve adesão voluntária das
doutorado no País e no exterior, e universidades por maiores verbas
temos um programa bem estabele- e autonomia em troca de ampliar
cido de pós-graduação. Certamen- a formação de alunos). Para isso, o
te, o gargalo maior está no modelo governo daria real autonomia jun-
de governança e gestão das nossas to a uma séria e contínua avaliação;
universidades. O modelo de eleição enquanto as universidades propo-
do reitor por alunos, funcionários e riam inclusive um novo modelo de
professores é falido. É hora de refor- governança e gestão, a começar pela
má-lo, a despeito das dificuldades escolha do reitor. A avaliação desse
políticas com o sindicalismo e cor- edital seria feita por uma comissão
porativismo reacionário que domina de notáveis do país e do exterior. A
questão da infraestrutura e do pes-
soal técnico e administrativo de
apoio à pesquisa se resolveria bem
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mais facilmente nesse cenário. Um PARA TERMINAR, TEM ALGUM


dos exemplos recentes dessa possi- FUNDAMENTO A AFIRMAÇÃO DE
bilidade está no IMPA (Instituto Na- QUE EXISTE CHANCE DO ACELE-
cional de Matemática Pura e Aplica- RADOR DE PARTÍCULAS DO CERN
da), que virou uma OS (organização GERAR UM BURACO NEGRO E EN-
social) e tem uma projeção interna- GOLIR TODO O PLANETA? 
cional respeitável. (Risos). Falou-se disso por uma
Nosso segundo gargalo é o ex- década antes do grande acelerador
cesso de burocracia e a questão das (LHC) ser ligado no CERN. Houve
importações, o que chamo de au- até cientistas nos EUA que entra-
toboicote. O Brasil é hoje mestre em ram na justiça americana para ten-
autoboicote. São tantos órgãos, tan- tar barrar a verba americana para o
tas declarações, previstas por lei ou CERN (quando os EUA fecharam
não, que tudo conspira contra o pes- seu projeto de grande acelerador, o
quisador e o inovador, áreas parti- SSC investiu parte dos recursos no
cularmente afetadas, pois requerem CERN). O fato é que há partículas
flexibilidade e rapidez. de raios cósmicos muitas vezes mais
energéticas do que pode sonhar o
maior dos aceleradores humanos.
E, no entanto, não vemos nenhum
desastre cósmico ocorrendo a nossa
volta. Mas o assunto era sensível e o
CERN instaurou uma comissão de
especialistas e laureados Nobel para
visitar essa questão. A comissão
concluiu que não havia evidências
para esse medo e recomendou ligar
o LHC. Por sua natureza, a atividade
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE ENTREVISTA: CLAUDIO LENZ 91

científica se aventura no desconhe- a Terra, ao ressurgimento de pragas


cido e, às vezes, há riscos: Benjamin bacterianas ou virais (como na Ida-
Franklin parece ter tomado cuidado de Média quando foram dizimadas
para não morrer eletrocutado quan- vilas e cidades), aos problemas já
do soltava pipas com fios metálicos causados pelo aquecimento global.
evitando tempestades, mas outros Assim, continuemos em nossa busca
morreram pela falta desse cuidado; de aprender como funciona essa in-
pessoas ligadas ao estudo de radioa- trigante natureza e no uso responsá-
tividade, e ao projeto Manhattan, vel desse conhecimento para tornar
morreram de câncer em decorrência a vida melhor e mais rica!
dessa exposição; na primeira reação
nuclear controlada por Enrico Fer-
mi, em Chicago, havia um risco, pois
seu sistema de controle de emergên-
cia era bastante primitivo, embora
ele tivesse calculado e estivesse mo-
nitorando tudo com cuidado. Assim,
é importante que as instituições, a Claudio Lenz Cesar
exemplo do que fez o CERN, tenham Cearense, teve formação “mão-
a responsabilidade de olhar com -na-massa” em casa com o pai - físico e
cuidado e racionalidade para essas seu professor em metade dos cursos de
questões de segurança. Obviamen- graduação na Universidade Federal do
te, o risco de não fazer ciência, para Ceará - e na Escola Técnica Federal do
a sociedade, é enorme. Ninguém em Ceará (atual IFCE). É mestre pela Uni-
sã consciência quer voltar a viver a versidade Federal de Pernambuco, com
terrível vida do homem das caver- uma breve passagem pela UNICAMP, e
nas, caçando e sendo caçado. Além doutor pelo MIT (Massachusetts Institute
das questões filosóficas e sociológi- of Technology). É professor titular do
cas, sempre temos ameaças nos ron- Instituto de Física da UFRJ, pesquisador
dando para as quais precisaremos de do CNPq e FAPERJ, e faz pesquisas com
ciência e tecnologia: da possível que- antimatéria no CERN (Centro Europeu de
da de um meteoro devastador sobre Física de Partículas).
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A SOCIEDADE CONTRA-ATACA:
O marco civil como símbolo do desejo por inovação no brasil

Ronaldo Lemos

O Marco Civil representa uma busca de integração do Brasil com o ecossistema de ino-
vação global. Hoje temos várias questões ainda sem resposta: qual papel queremos ter com
relação à internet? Queremos ser apenas consumidores ou também participar ativamente no
desenvolvimento e oferta de serviços globais? Essas questões precisam ser respondidas insti-
tucionalmente. E a lei é um dos caminhos para se fazer isso. Além disso, o processo que foi de-
senvolvido para a construção Marco Civil representa o potencial de renovação da democracia
pela tecnologia. Hoje não tem mais desculpa: as mesmas ferramentas sociais de comunicação
da internet podem ser integradas ao processo democrático, permitindo enriquecê-lo.

Introdução há quase dois anos1. Foi curioso notar que


Quando o escândalo provocado pelas o rol de reações propostas foi criativo. Ele
revelações de Edward Snowden repercutiu incluía propostas como a criação de um
no Brasil, o tema tornou-se rapidamente serviço de e-mail brasileiro, criptografado,
uma questão de governo. Era preciso rea- que seria oferecido pelos correios. Pouco
gir – e rápido – à grave constatação de que tempo depois, a proposta desapareceu, não
o governo brasileiro havia sido espionado. tendo  retornado até a data de elaboração
A quebra de privacidade atingia não apenas do presente artigo.
organizações, como foi o caso da Petrobras, Dentre todas as propostas consideradas
mas atingia pessoalmente a presidente Dil- como reação ao caso Snowden, a mais com-
ma Rousseff, que teve suas comunicações pleta, séria, viável e necessária foi, sem mar-
indevidamente bisbilhotadas pelo governo gem para dúvidas, a retomada do debate so-
norte-americano. bre a aprovação do Marco Civil da Internet. O
Naquele momento, a proposta mais mais curioso é que o Marco Civil não foi uma
séria e completa de reação do Estado brasi- proposta de governo, mas sim uma proposta
leiro consistia no Marco Civil da Internet, da sociedade. Sua concepção surgiu muitos
projeto de lei que se encontrava então pen- anos antes do escândalo Snowden, quando
dente de análise – para não dizer meramen- se debatia na esfera pública como seria feita
te engavetado - na Câmara dos Deputados a regulação da internet em nosso país.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ronaldo Lemos 93

Mais precisamente, o Marco Civil sur- Vários estudos acadêmicos passaram a


giu como alternativa à chamada “Lei Azere- apontar seus problemas. Posteriormen-
do”, projeto de lei que propunha o estabele- te, uma petição online conseguiu alcançar
cimento de uma ampla legislação criminal rapidamente mais de 150 mil assinaturas.
para a internet, e assim batizada por conta O barulho da mobilização foi ouvido pelo
do seu relator e mais assíduo defensor, o Congresso e pelo governo. Graças a ele, a Lei
deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Azeredo teve seu trâmite temporariamen-
A percepção de um amplo espectro da so- te suspenso. A questão passou a ser então
ciedade brasileira é que a Lei Azeredo, se qual o tipo de regulação da internet deveria
aprovada, provocaria um grande retrocesso ser feita no país. Se a Lei Azeredo não era a
no ambiente regulatório da internet no país. melhor alternativa - já que faria com que a
Com uma redação ampla demais, ela primeira lei abrangente sobre a internet no
transformava em crimes condutas comuns Brasil fosse uma lei criminal – como deve-
na rede, praticadas por milhões de pessoas. ria então ser tratada a regulação da rede?
Por exemplo, criminalizava práticas como
transferir as músicas de um iPod de volta O Marco Civil Como Experiência de
para o computador, ou ainda criminalizava Democracia Ampliada
práticas como desbloquear um celular para Foi então que decolou a ideia do Marco
ser usado por operadoras diferentes. Am- Civil da Internet2. Em vez de tratar da re-
bas seriam punidas com até quatro anos de gulação da internet criminalmente, o passo
reclusão. E esses são apenas dois exemplos natural, seguido por diversos outros países,
pontuais. Se aprovada como proposta, a lei seria primeiro a construção dos direitos ci-
significaria um engessamento da possibili- vis na internet. Em vez de repressão e pu-
dade de inovação no país. Seria uma lei que nição, a criação de uma moldura de direitos
nos engessaria para sempre como consu- e liberdades civis, que traduzisse os princí-
midores de produtos tecnológicos. Crimi- pios fundamentais da Constituição Federal
nalizando diversas etapas necessárias para para o território da internet.
a pesquisa, inovação e produção de novos A ideia ressoou então no âmbito gover-
serviços tecnológicos. namental. Com a Lei Azeredo paralisada, o
Como resposta à Lei Azeredo, que ca- Ministério da Justiça ficou incumbido3 de
minhava a passos expeditos para a aprova- construir uma alternativa legislativa. Um
ção, houve uma grande mobilização social. time de professores da Fundação Getulio
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Vargas (vale informar, liderados pelo autor mente aprender com o que havia dado certo
deste texto), foi procurado para que cons- ou errado em outros países, cuidando para
truir o caminho para o Marco Civil. Nas pri- que o texto do Marco Civil fosse informado
meiras reuniões, logo ficou claro: como se por essas experiências.
tratava de uma lei para a internet, por que E assim foi feito. O texto legal foi cons-
não utilizar o potencial da própria rede para truído e colocado uma vez mais na platafor-
se construir o texto da possível lei? ma para debate público, entre abril e maio
Construiu-se, então, a plataforma co- de 2010. Vale ressaltar que o Marco Civil
laborativa para debate e redação do Marco funcionou como uma iniciativa pioneira
Civil (www.culturadigital.org/marcocivil), na ideia de uma democracia expandida. Ele
uma iniciativa pioneira que contava com promoveu um amplo debate racional en-
uma chamada pública realizada para a ela- tre os diversos atores que participaram de
boração de um projeto de lei importante e sua elaboração. No processo de consulta,
complexo. O processo de construção foi di- foram considerados não apenas os comen-
vidido em duas fases. A primeira, um deba- tários formalmente feitos por meio da pla-
te de princípios. Qual seria o norteamento taforma oficial, mas também todos aqueles
para a regulação da internet? Logo emergi- mapeados por meio de redes sociais (como
ram vários pontos-chave a partir da partici- o Twitter), posts em blogs e qualquer ou-
pação aberta. O Marco Civil deveria promo- tra forma  de contribuição que pudesse ser
ver a liberdade de expressão, a privacidade, identificada online.
a neutralidade da rede, o direito de acesso A razão era a constatação de que a
à internet, os limites à responsabilidade maior parte das iniciativas de consulta
dos intermediários e a defesa da abertura pela internet falham justamente por espe-
(openness) da rede, crucial para a inovação. rar que os usuários saiam dos seus hábitos
Uma vez estabelecidos esses princí- cotidianos de uso da rede para participar
pios, foi então construído o texto legal que uma atividade “cívica”. No plano da realida-
dava concretude a eles. Cada princípio ga- de, isso raramente acontece. É difícil para
nhou um capítulo ou, ao menos, artigos es- qualquer iniciativa de democracia amplia-
pecíficos no Marco Civil. Nesse momento da competir em atenção com sites como o
foi crucial a comparação com a legislação Facebook, Twitter, serviços como Google,
de outros países, que já haviam lidado com smartphones , tablets e assim por diante. A
questões similares. Afinal, tratava-se do solução encontrada foi mapear e assimilar
ano de 2009 e a maioria dos países desen- as contribuições feitas espontaneamente
volvidos (e muitos outros em desenvol- sobre o Marco Civil no “habitat natural”
vimento) legislava sobre essas questões da internet, ao invés de contar apenas com
desde 1998. Em outras palavras, o Brasil visitas à plataforma. Desse modo, qualquer
contava com um atraso de mais de 10 anos comentário ou contribuição, ainda que ca-
na regulamentação de vários desses pontos. sual sobre o projeto, também foi assimilada
A única vantagem desse atraso era justa- e considerada.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ronaldo Lemos 95

Outro aspecto importante do passou a correr o bom risco de apro-


processo do Marco Civil foi a trans- var uma das leis mais avançadas
parência. Durante a consulta públi- para a internet4.
ca, os participantes podiam ver em Uma vez concluída a redação
tempo real a contribuição de todos final, pelo Ministério da Justiça e
os outros participantes. Dessa for- pelo time de professores da Funda-
ma, criou-se um modelo propício ção Getulio Vargas, com base nos
ao embate racional de ideias. Consi- comentários públicos recebidos, o
derando-se que os participantes do texto foi então analisado no âmbito
processo de consulta do Marco Civil governamental mais amplo. Outros
eram indivíduos, usuários, biblio- quatro Ministérios debruçaram-se
tecários, tradutores, empresas de sobre ele. As modificações feitas na-
tecnologia, provedores de serviços quele momento foram mínimas. Em
de internet, empresas de telecomu- outras palavras, o texto construído
nicações, radiodifusores, associa- por meio da contribuição da socieda-
ções de classe etc., construiu-se um de sobreviveu o escrutínio dos anéis
verdadeiro fórum híbrido, no qual burocráticos governamentais.
todos tinham igualdade de vozes. A Com isso, foi finalmente enca-
empresa de telecomunicações con- minhado ao Congresso no dia 24 de
tribuía de forma aberta e lado a lado agosto de 2011, com a assinatura da
de usuários individuais da rede. Os presidente Dilma Rousseff e de ou-
argumentos de um e de outro com- tros quatro ministros (da Cultura, da
petiam por sua fundamentação, não Ciência e Tecnologia, das Comuni-
por sua origem ou autoridade. Além cações e, naturalmente, da Justiça).
disso, a possibilidade de se enxergar A partir daí, o projeto teve designado
as posições públicas de cada partici- como seu relator o deputado Ales-
pante serviu para ampliar e  qualifi- sandro Molon (PT-RJ) que, por sua
car o debate. vez, abriu novos ciclos de debate so-
Com isso, o resultado final do bre o projeto e novas de modalidades
Marco Civil foi uma lei tecnicamen- de consulta pública.
te sólida, abrangente e ambiciosa. Por tudo isso, é possível afirmar
Mais do que isso, seu texto foi sauda- que o Marco Civil tenha sido um dos
do por especialistas de vários países projetos de lei mais amplamente de-
como um dos mais avançados e “pró- batidos no país em múltiplas mídias,
-inovação” que se poderia conceber tendo inaugurado uma nova meto-
naquele momento. Com isso, o Mar- dologia de construção legislativa que
co Civil despertou grande interesse pode informar em grande medida os
internacional. E grande expectativa caminhos da democracia em uma
com relação ao Brasil: nosso país sociedade cada vez mais digital.
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Por que o Marco Civil é impor- Snowden era o seu compromisso


tante? com as liberdades civis. Em outras
O Marco Civil é importante não palavras, uma das críticas feitas aos
apenas por seu processo original de Estados Unidos pelo escândalo de
construção aberta e colaborativa, espionagem é justamente a contra-
mas também por lidar com questões dição entre os princípios democrá-
cruciais para as próximas muitas dé- ticos constitucionais daquele país
cadas do país. Vale notar que apesar com as atividades postas em prática
do esforço do seu relator, o projeto pela NSA. A esse respeito, vale no-
de lei ficou praticamente “engaveta- tar que a então Secretária de Estado
do” na Câmara dos Deputados até o Hillary Clinton, meses antes das re-
advento do caso Snowden. velações de Snowden, havia rodado o
Foi então que o governo, asso- mundo reafirmando o papel crucial
lado por duras revelações de espio- que a internet tem para
nagem, percebeu que o instrumento a democracia e para a “(...) o Marco Civil traz um
legislativo mais sofisticado disponí- liberdade. Quando o es- importante rol de princípios
capazes de proteger
vel como resposta às várias práticas cândalo foi deflagrado,
usuários, empreendedores
da National Security Agency (NSA) o discurso norte-ameri-
e a própria característica
era o Marco Civil. Vários fatores cano foi profundamente de abertura da internet.”
mostravam como o projeto de lei era abalado. Emergiu, assim,
perfeito para uma resposta política uma contradição de difícil resolução,
e técnica com relação ao escândalo. uma democracia histórica como a
O primeiro deles era o respeito in- norte-americana passou a poder ser
ternacional angariado pelo Marco comparada com países autocráticos,
Civil no plano internacional. Diver- como a China ou a  Rússia, no que
sos trabalhos acadêmicos, veículos tange à sua relação com a internet.
de imprensa e organizações inter- Não por acaso, a presidente Dil-
nacionais já vinham se debruçando ma logo se pôs a defender um “Marco
há anos sobre o Marco Civil e apon- Civil Internacional” para a internet
tando o projeto como um farol para mundial. A presidente assimilou to-
quaisquer iniciativas de regulação dos os princípios reunidos no Mar-
da rede. Países que vão do Chile à co Civil e propôs transformá-los em
Jordânia seguiram vários passos do princípios globais, da seguinte forma
Marco Civil brasileiro, transforman- nas suas próprias palavras:
do em leis internas dispositivos do
projeto concebido no Brasil. Defendemos uma internet
O segundo aspecto marcan- aberta, democrática, participa-
te que tornava o Marco Civil ide- tiva e neutra, sem restrições. A
al como resposta política ao caso maioria dos países democráticos
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ronaldo Lemos 97

vai querer participar desse pro- mencionado acima, o Marco Civil é


cesso. Isso (o marco civil) daria essencialmente uma lei “pró-inova-
proteção aos dados que circulam ção” e “pró-direitos”. Na sua redação
pela internet para proteger cida- original (e aqui é importante fazer
dãos e empresas.5 essa qualificação, já que ele sofreu
diversas modificações no âmbito do
Desse modo, o Marco Civil é Congresso que descaracterizaram
uma resposta politicamente sólida vários de seus dispositivos na forma
para uma democracia constitucio- como foram concebidos original-
nal, como é o caso do Brasil, às prá- mente pela sociedade) o Marco Civil
ticas de espionagem reveladas nos traz um importante rol de princípios
Estados Unidos. Também por isso, capazes de proteger usuários, em-
a presidente, valendo-se da prerro- preendedores e a própria caracterís-
gativa do artigo 64 da Constituição, tica de abertura da internet.
requereu urgência constitucional Um exemplo são seus dispositi-
para a apreciação do Marco Civil em vos sobre a questão da privacidade.
11 de setembro de 2011. Assim, todas Hoje no Brasil, o acesso a dados e
as atividades legislativas da Câmara condutas dos usuários na internet é
foram suspensas até que houves- praticamente desregulado. Isso abre
se aprovação do Marco Civil. Além espaço para vários tipos de abuso.
disso, o Brasil conseguiu aprovar, no Por exemplo, muitas vezes dados si-
âmbito das Nações Unidas, uma re- gilosos dos usuários, tanto no que diz
solução proposta em conjunto com respeito às informações sobre quais
a Alemanha, logo após a revelação sites ele acessou, por quanto tempo,
do escândalo de espionagem (que e em que momento, quanto o conteú-
também afetou significativamente do de suas comunicações (tais como
a Alemanha e sua chanceler Angela o texto de um e-mail), são solicitados
Merkel), contendo disposições co- por autoridades públicas sem a aná-
nexas ao Marco Civil da Internet, lise prévia de um juiz. Essa é uma
tal como o dispositivo que prevê que prática que arrepia o Estado Demo-
“os  mesmos direitos que as pessoas crático de Direito. Por esse motivo, o
possuem offline deve também ser Marco Civil tem uma regra universal
protegidos online, incluindo o direi- que estabelece que nenhum dado
to à privacidade”. do usuário pode ser acessado sem
Para além de sua repercus- ordem judicial prévia que autorize
são no plano internacional, o Mar- esse acesso. Além disso, estabelece
co Civil também é fundamental do quais são os critérios para que juízes
ponto de vista do desenvolvimento possam autorizar ou não o acesso a
futuro do país. Nesse sentido, como esses dados.
99
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

De outra forma, com o acesso contra o intermediário.


desregulado aos dados de usuários No Brasil, essa questão se mate-
como acontece hoje, caminhamos no rializa sobremaneira durante o perí-
limiar de praticar, no âmbito local, as odo eleitoral. É comum, nessa época,
mesmas atividades condenadas no a imposição de medidas coercitivas
escândalo Snowden. pelos tribunais eleitorais brasileiros,
Outro princípio defendido pelo tais como a retirada de conteúdos
Marco Civil é a questão da liberda- supostamente lesivos. No entanto,
de de expressão na internet, que se vivemos um momento em que ocor-
relaciona intrinsecamente com a re um avanço progressivo de novos
questão da responsabilidade dos in- tipos de mídia, que passam a compor
termediários da informação. Nesse também a esfera pública. Notada-
sentido, quem deve ser responsabili- mente, a esfera pública passa a ser
zado por calúnias, difamações e ou- formada não apenas pelas mídias di-
tros ilícitos praticados na internet? tas “tradicionais”, mas também pela
O agente da ofensa ou o intermedi- internet e pelas diversas formas de
ário que transmite a informação? mídias sociais que surgem a partir
Dependendo da resposta a essa per- dela, sujeitas a regras e regulações
gunta, a liberdade de expressão pode distintas, até por sua também distin-
ser seriamente abalada. Por esse ta configuração técnica.
motivo, há, de um lado, os que defen- Nesse sentido, vale brevemente
dem uma isenção total por parte dos mencionar os movimentos de defe-
intermediários, alegando que seria sa à liberdade de expressão que têm
como se os correios ou a companhia surgido na sociedade brasileira, com
telefônica pudessem ser responsabi- propostas que ampliam a possibili-
lizados pelo conteúdo das cartas ou dade de manifestação de indivíduos
das ligações. Essa posição de isenção e partidos pela internet, especial-
de responsabilidade com relação a mente durante o período eleitoral.
práticas como ofensas, calúnias e di- A título de exemplo, vale citar a pro-
famações foi adotada, por exemplo, posta de projeto de lei de iniciativa
nos Estados Unidos. No ordenamen- popular apresentada pelo movimen-
to norte-americano, salvo por exce- to “Eleições Limpas”6, encabeçado
ções específicas, os intermediários pelo Movimento de Combate à Cor-
da internet (sejam eles provedores rupção Eleitoral, em parceria com
de acesso ou de conteúdo) não são diversas entidades da sociedade ci-
responsáveis pelo conteúdo por eles vil, cujo objetivo é: (a) resguardar a
trafegado. Os casos de reparação de liberdade de expressão (arts. 36, §1º;
danos devem ser propostos contra o e 36-C); (b) restringir a vedação à
agente  que proferiu a ofensa e não veiculação de propaganda eleitoral
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ronaldo Lemos 101

na internet aos sítios com controle editorial dedor brasileiro que ofereça um novo servi-
(art. 57-C, alínea “a”); e (c) limitar a res- ço online saberá de antemão que só pode ser
ponsabilidade de provedores de conteúdos responsabilizado por conteúdos postados
e de serviços multimídia, que não adotem no seu sistema caso ignore ordem judicial
as providências para tornar indisponível oficialmente recebida para fins de remoção
conteúdo supostamente ofensivo, aos casos do conteúdo considerado problemático.
de veiculação de propaganda eleitoral one- Vale notar que a regra de limitação da
rosa (art. 57-F). responsabilidade dos intermediários co-
A ofensa, como sabido, é um juízo de locada em prática em países da Europa e
valor subjetivo, cuja tutela jurisdicional nos Estados Unidos permitiu um impulso
estatal deverá ser a reparação pecuniária extraordinário na inovação dos últimos
(pela violação ao direito 15 anos. Graças a essa
substancial) ou a conde- “A esfera pública passa a ser regra, surgiram sites
formada não apenas pelas mídias
nação criminal (pela in- e serviços com o You-
ditas ‘tradicionais’, mas também
cidência do tipo penal). tube, Tumblr, Twitter
pela internet e pelas diversas
Em democracias conso- formas de mídias sociais que e o próprio Facebook.
lidadas, como na Alema- surgem a partir dela, sujeitas a Se as regras sobre as
nha, o direito de respos- regras e regulações distintas.” responsabilidades dos
ta está regulamentado intermediários fossem
em lei infraconstitucional, cuja causa de incertas, jamais teria sido possível para
pedir está relacionada tão somente a ques- um serviço como o Youtube se estabelecer
tões de fato (erros, imprecisões) apresenta- e prosperar, dado o tamanho da inseguran-
das no contexto jornalístico. ça jurídica envolvida.
O Marco Civil não resolve inteira- Dessa forma, ao dar um passo no sen-
mente essa questão. No entanto, tal como tido de regulamentar essa questão, o Marco
no caso sobre a privacidade mencionado Civil atende a dois princípios importantes.
acima, ele estabelece um princípio basilar. Em primeiro lugar, fortalece o princípio da
Nenhum intermediário poderá ser respon- liberdade de expressão, protegendo em al-
sabilizado diretamente por um conteúdo guma medida os intermediários da infor-
supostamente ofensivo postado em seus mação. Em segundo, impulsiona a inovação
sistemas, exceto se desrespeitar uma ordem local, na medida em que permite a jovens
judicial que demande a remoção daquele empreendedores brasileiros saberem de
conteúdo. Com isso, as questões de remo- antemão os limites da sua responsabilida-
ção de conteúdos que ocorrem no período de, gerando previsibilidade e alavancando o
eleitoral ainda continuarão sem resposta surgimento de novos serviços no país.
legislativa. No entanto, fora do período elei-
toral, o princípio do Marco Civil estabelece Conclusão
uma regra que aumenta significativamente Por sua própria trajetória, o Marco
a segurança jurídica. Um jovem empreen- Civil é um projeto de grande importância
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

para o país. De forma clara, ele simboliza o preendedorismo e a própria ideia de de-
desejo do Brasil em participar dos proces- senvolvimento passarão cada vez mais pela
sos de inovação globais. O primeiro passo internet. Por essa razão, a proteção de prin-
é termos a infraestrutura necessária para cípios como a neutralidade da rede7, bem
tanto. Infraestrutura essa que é não ape- como a tradução dos princípios da Consti-
nas técnica, como melhores backbones e tuição Federal para a realidade da rede faz-
redes  de  fibra  óptica cruzando o país, mas -se cada vez mais essencial.
também jurídica. E é sintomático que o Marco Civil te-
A situação pré-Marco Civil é de com- nha surgido como um projeto de lei con-
pleta ausência de regulamentação civil da cebido pela sociedade brasileira. Ele não
internet no país. Ao contrário do que alguns apenas demonstra um anseio por inovação
entusiastas libertários podem achar, essa técnica, mas também por inovação política
ausência não representa a vitória da liber- e por uma expansão dos canais da democra-
dade e do laissez-faire, mas sim a falta de cia. Desejo de que a participação pública
uma legislação que trate das questões civis de cada cidadão possa ampliar-se no meio
da rede, o que leva a uma grande inseguran- digital e que a democracia possa se renovar
ça jurídica. Uma das razões é que juízes e para enfrentar os desafios cada vez mais
tribunais, sem um padrão legal para a to- complexos que teremos pela frente.
mada de decisões sobre a rede, acabam de- O Marco Civil demonstrou, na prática,
cidindo de acordo com regras muitas vezes que é possível criar novas formas de parti-
criadas ad hoc, ou de acordo com suas pró- cipação aberta e democrática valendo-se
prias convicções. da rede, inclusive no que diz respeito a li-
O resultado disso são inúmeras deci- dar com projetos tecnicamente complexos,
sões judiciais contraditórias. Juízes de uma como a regulação da internet. Esse exemplo
mesma cidade, de um mesmo tribunal, que já tem valor em si. Um valor quase circular,
trabalham juntos, ao julgarem casos seme- em que o esforço de criar uma legislação
lhantes envolvendo a internet tomam deci- para a rede serve de exemplo para como a
sões absolutamente distintas e contraditó- rede pode aperfeiçoar o processo legislativo
rias. Dessa forma, é comum ouvir o apelo como um todo, levando-o para novos pata-
de juízes dos tribunais superiores, como da mares de participação e legitimidade.
Excelentíssima Ministra Nancy Andrighi
do Superior Tribunal de Justiça, para que o
Congresso Nacional faça a sua parte. Criar
uma legislação civil estabelecendo padrões
para a decisão de conflitos envolvendo a in-
ternet no Brasil.
Como a nossa vida torna-se cada vez
mais digital, temas como a privacidade, a
liberdade de expressão, a inovação, o em-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Ronaldo Lemos 103

Ronaldo Lemos
Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) e sócio do
escritório Pereira Neto Macedo Advogados, na área de mídia e propriedade intelectu-
al. Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Pesquisador visitante e representante
do MIT Media Lab para o Brasil. Graduado em direito pela Universidade de São Paulo,
mestre em direito pela Universidade de Harvard, doutor em direito pela Universidade
de São Paulo. Foi Professor visitante da Universidade de Princeton, afiliado ao Center
for Information Technology Policy. Diretor do projeto Creative Commons no Brasil.
Co-fundador do Overmundo (www.overmundo.com.br), vencedor do Golden Nica na
categoria Digital Communities do Prix Ars Electronica 2007. Membro do Conselho de
Comunicação Social com sede no Senado Federal e do Conselho Municipal de Cultura
do Rio de Janeiro. Membro do board da Mozilla. Publicou vários livros e estudos no
Brasil e no exterior. Apresenta o programa Navegador na Globonews e escreve sema-
nalmente para a Folha de São Paulo, dentre outras publicações. É um dos curadores da
Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. 

1 Projeto de Lei 2.160/2011.

2 Cf. LEMOS, Ronaldo. Internet Brasileira Precisa de Marco Regulatório Civil. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 25 maio 2007. Disponível em: http://migre.me/iVB9s, Maio
2007. Acesso em: 12 abr. 2014.

3 Da parte do Ministério da Justiça, tiveram uma atuação fundamental na gestação


do projeto advogados como Pedro Abramovay, Guilherme de Almeida e Felipe de
Paula, dentre outros, no âmbito da Secretaria de Assuntos Legislativos.

4 Vale notar que a experiência bem sucedida do Marco Civil influenciou a criação
de várias outras iniciativas de consultas participativas pela internet, moldadas
a partir da metodologia do Marco Civil. Dentre elas, encontra-se a consulta
pública para a Reforma da Lei de Direitos Autorais, a consulta para a reforma do
sistema de classificação indicativa, a consulta para a redação da Lei de Proteção
aos Dados Pessoais, entre outras. Além disso, o portal E-Democracia da Câmara
dos Deputados acabou sendo construído valendo-se de diversas das experiências
do Marco Civil.

5 Cf. FAGUNDES, Ezequiel. Dilma Defende Marco Civil Internacional Para Internet
e propõe um fórum global em abril. O Globo, Rio de Janeiro, 24 out. 2010.
Disponível em: http://migre.me/iVBda. Acesso em: 12 abr. 2014.
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

6 Disponível em: http://migre.me/iVBjC. Acesso em: 12 abr. 2014.

7 No presente artigo, não desenvolvo o conceito de neutralidade da rede, mas para


maiores informações vale consultar PEREIRA DE SOUZA, Carlos Affonso et. al.
Neutralidade da Rede, Filtragem de Conteúdo e o Interesse Público, Biblioteca
Digital Fundação Getulio Vargas. Disponível em: http://migre.me/iVBlQ. Acesso
em: 12 abr. 2014.
105
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

FASHION LAW É A
NOVA MODA DO DIREITO
Mônica Steffen Guise Rosina

Assim como as novas tecnologias pedem que o direito se reinvente para acompanhar os
desafios jurídicos que se colocam na sociedade contemporânea, existe espaço para um novo
olhar a áreas empresariais tradicionalmente negligenciadas pelo ensino e estudo do direito.
Este artigo busca apresentar ao leitor curioso algumas das principais articulações na tenta-
tiva de aproximar o direito da moda. A edição de janeiro da revista Vogue (2014, p. 140-169)
traz - em um belíssimo ensaio fotográfico com a modelo sul-africana Candice Swanepoel - o
que há de mais in para o alto verão: biquínis que remetem aos anos 70, muito crochê e bor-
dados, peças básicas em tons pastel e jeans. As marcas? Dolce & Gabbana, Hermès, Cartier,
Emilio Pucci, Calvin Klein, Louis Vuitton e Tommy Hilfiger misturam-se às brasileiras Cia.
Marítima, Forum, Blue Man, Iódice, entre outras.

V
ersões muito similares às peças exi- encontrar roupas, sapatos e acessórios em
bidas no ensaio - e até mesmo có- praticamente todas as regiões do globo que
pias - já se encontram disponíveis permitam com que qualquer um se vista de
em lojas Brasil afora. Uma visita rápida ao acordo com determinados padrões - ainda
Shopping Paulista, por exemplo, permitiu que que subjetivos e variando de acordo com di-
eu encontrasse looks bastante semelhantes ferentes referenciais - de moda e beleza. E
aos estampados nas páginas da Vogue. Com isso é uma realidade relativamente moderna.
um pouco mais de paciência e disposição, eu Ao fazer uma leitura minuciosa dos
poderia ter direcionando minha visita às ruas estudiosos da história da moda, Svendsen
da região do Bom Retiro ou do Brás paulista- (2010) aponta para a segunda metade do
no caso quisesse gastar um pouco menos. E séc. XIX como um marco para que as dife-
se estivesse fora do país, também não teria renças entre roupas de classes sociais di-
dificuldades (feitas, é claro, as devidas res- versas começassem a ser atenuadas, mas a
salvas em termos de hemisférios e estações) verdadeira popularização da moda é mais
em montar composições que me permitis- recente ainda. Nas palavras de Lipovetsky
sem estar igualmente “na moda”1. (2009) o “pluralismo democrático das eti-
O fato é que, seja desembolsando cen- quetas” superou o sistema “monopolista e
tenas de milhares de reais ou gastando aristocrático da alta costura”, tornando a
muito pouco, hoje é perfeitamente possível moda acessível a todos.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 107

É nesse contexto contemporâneo, no não é capricho nem brincadeira de crian-


qual as tecnologias da informação permi- ça: (I) estima-se que o faturamento anual
tem acesso imediato às mais novas tendên- da indústria da moda global seja de 1,3 tri-
cias nacionais e internacionais (9,3 milhões lhões de dólares3; (II) apenas o faturamento
de pessoas assistiram ao vivo, via streaming, do grupo LVMH Louis Vuitton S.A. foi, em
o último desfile da Victoria’s Secret), e no 2012, de aproximadamente 37 bilhões de
qual a moda ocupa espaço cada vez mais dólares4; (III) no Brasil, o IBOPE apontou
relevante, seja economicamente (o fatura- para uma movimentação de 130 bilhões de
mento da mesma Victoria’s Secret foi, em reais em 2013 apenas no setor de vestuário5.
seu último ano fiscal, de 6,6 bilhões de dó- Não é sem razão que o direito rein-
lares), seja no universo imaginário do dese- venta-se pelas mãos de advogados e pes-
jo (o soutien e cinto Royal Fantasy, usados quisadores mais ousados e passa a lançar
pela modelo Candice Swanepoel no último um olhar especial para a moda. É o direito
desfile da grife, foram avaliados em 10 mi- da moda. Ou Fashion Law, para os que gos-
lhões de dólares)2, que algumas questões ju- tam da expressão anglo-saxônica. Fala-se,
rídicas extremamente instigantes aparecem. ainda, em Apparel Law, termos diferen-
Mas antes de falar em direito, frisemos tes, mas que se referem à mesma coisa: o
alguns números, em especial para aqueles conjunto de cuidados e remédios jurídicos
que ainda não se convenceram de que moda necessário para uma linha de roupas, uma
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

joia ou um sapato, desde sua con- delas seja a propriedade intelectu-


cepção até sua chegada ao consu- al: o “guarda-chuva” jurídico que
midor final (e se pensarmos em ví- abarca, entre outros institutos, a
cios de produtos e responsabilidade marca, a patente, o desenho indus-
civil, até muito além da venda), in- trial, as regras de repressão à con-
cluindo o local, a forma e a estraté- corrência desleal9 e o direito auto-
gia de venda da empresa. ral10. Se moda é sinônimo de arte,
As relações que se estabelecem se a moda precisa de sinais que re-
entre direito e moda são incontá- metam os consumidores à origem
veis. Algumas delas, para citar, são de seus produtos, se existe ativida-
questões tributárias6, societárias, de de inventiva, novidade e possibili-
consumidor7, trabalhistas8, contra- dade de aplicação industrial, então
tuais, de comércio internacional. O é no direito da propriedade intelec-
advogado que se diz especialista em tual que residem soluções jurídicas
Fashion Law deve saber navegar por àqueles que buscam algum tipo de
essas águas. Grandes escritórios de exclusividade.
advocacia já começam a fazer uso Comecemos pelo direito au-
do termo, identificando-se como ca- toral. Tradicionalmente, exclui-se
pazes de suprir as demandas - nas do escopo de proteção desse direito
mais diversas frentes - dos clientes tudo aquilo que é utilitário e prote-
que atuam nesse business. Também ge-se a arte, ou as “criações do espí-
surge um mercado de especialização rito”, nas palavras da lei brasileira.
profissional: a Fordham Law School, Concretamente, isso significa que
em Nova York, foi pioneira ao ofertar uma camisa, por ser um objeto fun-
um curso de Fashion Law, e no Bra- cional, não pode ser protegida por
sil escolas inovadoras também se direito autoral, mas a estampa do
abrem à oportunidade. A Escola de tecido utilizado para fazer a camisa
Direito de São Paulo da FGV passou sim. Importa, aqui, o conceito de “se-
a oferecer a disciplina como optativa parabilidade”: se a obra de arte so-
em sua grade curricular da gradua- brevive ainda que separada da fun-
ção em 2013. Na Fundação Armando cionalidade do objeto, ela é passível
Alvares Penteado, a especialização de proteção; caso contrário, não11. O
em Gestão do Luxo tem lista de es- exemplo clássico que, nos Estados
pera. E fala-se, entre os que já atuam Unidos da América, deu origem a
na área, na abertura de novos cursos esse conceito como requisito para a
no Rio e em São Paulo. proteção foi a decisão de 1954 da Su-
Entre todas as áreas que per- prema Corte no caso Mazer v. Stein,
passam a relação entre o direito e que entendeu serem protegidas por
a  moda, talvez a mais instigante direito autoral estátuas balinesas
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 109

que serviam como base de abajures. entretanto, pode servir como deses-


Cox e Jenkins (2005, p. 8) trazem, tímulo à opção por ela: no Brasil, o
ainda, outros exemplos concretos a prazo médio de análise pelo Insti-
partir da jurisprudência das cortes tuto Nacional da Propriedade In-
estadunidenses: fivelas de cintos dustrial é de  5,4  anos14 e este é um
registradas como esculturas e dese- mercado que caminha e se reinventa
nhos originais e peças de vestuário a passos rápidos.
cuja funcionalidade é impossível de Por outro lado, altamente utili-
ser alcançada (e. g. um maiô rechea- zada pela indústria, está o desenho
do de pedras é entendido como obra industrial, que protege a inovação es-
de arte e não como peça funcional, tética, novas formas e desenhos de ob-
uma vez que se utilizado faria com jetos já existentes. Nas palavras da lei:
que a pessoa afundasse na água). Considera-se desenho indus-
No Brasil, recente disputa en- trial a forma plástica ornamental
volvendo as empresas Village 284 de  um objeto ou o conjunto orna-
e Hermès12 trouxe contornos in- mental de linhas e cores que possa
teressantes a essa questão, mos- ser aplicado a um produto, propor-
trando a dificuldade do judiciário cionando resultado visual novo e
em compreender as nuances dos original na sua configuração externa
produtos da moda. Em decisão pro- e que possa servir de tipo de fabrica-
ferida em primeira instância pela ção industrial.15
24ª Vara  Cível de São Paulo, o juiz Os tênis usados por Michael J.
entendeu caber proteção autoral às Fox no icônico “De Volta Para o Fu-
bolsas Birkin, em que pese a fun- turo” serviram de inspiração para
cionalidade do objeto. Via de regra, a Nike: em 2009 ela pediu ao U.S.
no  entanto, com exceção das es- Patent and Trademark Office a pa-
tampas, é bastante difícil conseguir tente16 de um “tênis que se amarra
proteção de direito autoral a peças sozinho”, sendo objeto da proteção
de vestuário. por patente a tecnologia em si. A for-
Outro instituto da propriedade ma ornamental do calçado, todavia, é
intelectual passível de ser utilizado é passível de proteção por desenho in-
a patente13. Os requisitos para a sua dustrial. E como o mercado da moda
concessão são: novidade, ativida- gira muito mais em torno da estética
de inventiva e aplicação industrial. do que da tecnologia per se, é fácil
Um tecido, por exemplo, desenvol- perceber o desenho industrial como
vido  com tecnologia de ponta que opção mais recorrente.
regule a temperatura corporal, pode As marcas, por sua vez, acabam
ser objeto de proteção por patente. se tornando a escolha mais óbvia de
O tempo requerido para patente, proteção, sendo altamente relevante
Uma camisa,
por ser um objeto
funcional, não pode
ser protegida por
direito autoral, mas
a estampa do tecido
utilizado para fazer
a camisa sim.”
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 111
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

à indústria para fazer valer direitos de uso camente estampado com a logomarca da
exclusivo – além, é claro, de representarem empresa (veja as famosas Louis Vuitton).
ativos por si só17. Genericamente falando, Por um lado, isso facilita ações de repressão
marcas são sinais que identificam a origem a produtos falsificados e/ou contrabandea-
de um produto, mas existem inúmeras di- dos com base em infração marcária; por ou-
ferenças entre o que pode ou não ser aceito tro a empresa deve ponderar a estratégia de
como marca. Há países que, como a França, superexposição de seu logotipo, em especial
concedem proteção marcária a cores, ou- quando se trata de uma marca que deseja
tros a cheiros18 (são as marcas olfativas) e transmitir a seu público a sensação de ex-
sons19 (marcas sonoras). clusividade. Por fim, a proteção por marcas
No Brasil, a lei limita a possibilidade de acaba sendo uma grande aliada das empre-
proteção a sinais visualmente perceptíveis, sas no combate à pirataria. Em conversa re-
o que exclui as marcas olfativas e sonoras, cente com o diretor jurídico de uma famosa
e  ainda coloca outras limitações, como a camisaria brasileira, surpreendi-me com os
disposta no art. 124 da Lei de Propriedade números, estratégias e escala do esquema:
Industrial: “Não são registráveis como mar- em poucos meses são centenas de milhares
ca: (...) VIII - cores e suas denominações, de camisas “piratas” apreendidas nos por-
salvo se dispostas ou combinadas de modo tos, a maior parte oriunda da China, sendo
peculiar e distintivo”. que a própria empresa produz em apenas
Isso significa que a Arezzo não poderia cinco localidades no Brasil. Por dia, a em-
ser acionada por violação à marca Loubotin presa notifica dezenas de sites que comer-
caso decidisse comercializar, no Brasil, sa- cializam as versões não autorizadas de seus
patos com solado vermelho. Igualmente, a produtos, além, é claro, das calçadas: são
H. Stern não poderia ser réu em uma ação milhares de “réplicas idênticas” na região
de violação de marca proposta pela Tiffany da 25 de março.
& Co. caso optasse por embalar suas alian- Contra a pirataria, as estratégias em-
ças em caixas de joia na cor azul20, uma vez presariais variam. Algumas empresas op-
que cores não são passíveis de proteção por tam por medidas mais agressivas, de locali-
marca no Brasil, embora o sejam em outros zação, apreensão e destruição dos produtos
territórios21. Bastou, contudo, que a Carmen em pontos de venda; ao passo que outras
Steffens passasse a vender seus sapatos de preferem focar seus esforços nas fronteiras,
sola vermelha em Paris para que fosse no- treinando, por exemplo, oficiais de alfânde-
tificada pela Loubotin22 naquela jurisdição ga na identificação para denúncia de produ-
por infração à marca. tos falsificados.
Uma forma de garantir remédios jurí- Esta pirataria – a venda de produtos
dicos a produtos não passíveis de proteção falsificados e/ou contrabandeados que por-
autoral por sua funcionalidade é ampliar ao tam marca alheia sem autorização de seu
máximo o alcance visual da marca. É o caso titular - dilui o valor da marca e gera preju-
de bolsas, por exemplo, cujo couro é prati- ízos para a empresa e para o país. Mas onde
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 113

deve ser traçada a linha que coloca limites de estilistas do escalão de Diane Von Fus-
entre a cópia e a inspiração? tenberg e juristas como Susan Scafidi (pio-
Para a sociedade - e, por que não, para neira na introdução de Fashion Law como
o mercado - é bom ou ruim que o vestido disciplina no curso da Fordham). Um dos
que estampa o editorial de verão da Vogue principais argumentos dos que defendem
tenha suas diversas versões mais baratas a proposta? Mais proteção gera mais ino-
disponíveis para consumo de um grupo vação: ao invés de copiar um vestido, os
imenso de mulheres que nunca irá pagar 30 concorrentes teriam que criar versões sig-
mil reais por um Dior? nificativamente diferentes do mesmo, e o
Há quem argumente que a força pro- consumidor teria à sua disposição um nú-
pulsora por trás dos ciclos da moda seja o mero infinitamente maior de opções24.
desejo das classes sociais mais baixas de se Em 2012 tive a feliz oportunidade de
vestirem como as classes sociais mais altas; conversar com um grande estilista brasilei-
e há quem acredite que o motor desse siste- ro sobre sua preocupação com copiar e ser
ma seja o desejo das classes mais altas de se copiado. Sua resposta sincera confirmou
diferenciarem das demais23. Eu acredito na - nesse caso concreto - minha hipótese:
complementaridade desses dois cenários, “Deus me livre ter um time de advogados
em especial no que tange à rotatividade atrapalhando meu processo criativo e me
e (relativa) novidade apresentada a cada dizendo o que eu posso ou não posso fazer”.
coleção. Queremos, como consumidores, E quando questionado sobre como se sentia
vestir um terno Chanel, mas não podemos. quando tinha seus produtos copiados: “Fe-
As redes de Fast Fashion se encarregam de liz! Coisa boa ser fonte de inspiração”.
trazer os detalhes e as cores da nova coleção
para suas linhas, mais acessíveis ao público
da vida real, reforçando a marca (Chanel)
como criadora de tendências. Mas ao passo
em que o que era exclusivo passa a figurar
nas araras de milhares de redes como H&M
e Zara mundo afora, a Chanel se reinventa
para manter seu público - esse sim exclu-
sivo - contente. E assim giram os ciclos da
moda. E em alguma medida, gosto de pen-
sar que também disso vive o mercado.
Nem todo mundo concorda. Nos Es-
tados Unidos, um projeto de lei que prevê
proteção mais eficaz aos produtos da moda
tramita no Congresso. É o Innovative De-
sign Protection And Piracy Prevention Act
(IDPPPA), proposta que conta com o apoio
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Mônica Guise
Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (DI-
REITO GV), onde ministra as disciplinas Propriedade Intelectual e Fashion Law, entre
outras. É doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referências bibliográficas

COX, Christine; JENKINS, Jennifer. Between the seams, a fertile commons: an overview
of the relationship between fashion and intellectual property. Los Angeles: The
Norman Lear Center, 2005.

LIPOVESTKI, Gilles. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades


modernas. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

NOTE. The devil wears trademark: how the fashion industry has expanded trademark
doctrine to its detriment. Harvard Law Review, Cambridge, n. 127, p. 95-106, 2014.
Disponível em: http://www.harvardlawreview.org/media/pdf/vol127_trademark_
doctrine.pdf. Acesso em: 29 jan. 2013.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 115

1 O norueguês Lars Svendsen alerta para a dificuldade de conceituar,


filosoficamente, o que seja a moda. Para um diálogo mais intenso com esse
debate, veja sua obra Moda: uma filosofia, 2010.

2 Números disponíveis em: http://migre.me/iVACq. Acesso em: 26 jan. 2014.

3 Disponível em: http://migre.me/iVAxM. Acesso em: 30 jan. 2014.

4 Disponível em: http://migre.me/iVAPz. Acesso em: 30 jan. 2014.

5 Disponível em: http://migre.me/iVAKv. Acesso em: 30 jan. 2014.

6 Veja as recentes acusações de evasão de tributos imputadas a marcas de alto


luxo. Disponível em: http://migre.me/j7ycE. Acesso em: 27 jan. 2014.

7 Como deve se dar, por exemplo, a adequação de empresas de alto luxo que
comercializam produtos personalizados às novas regras de ecommerce?

8 Quem não se lembra das acusações de trabalho escravo que assombraram a vida
corporativa de diversas marcas em 2012?

9 Reguladas estas pela Lei n. 9.279 de 1996 (Lei de Propriedade Industrial).

10 Lei n. 9.610 de 1998 (Lei de Direito Autoral).

11 A antiga Lei de Direitos Autorais trazia a seguinte redação, deixando claro o


princípio da separabilidade: “(...) desde que seu valor artístico possa dissociar-se
do caráter industrial do objeto a que estiverem sobrepostas”.

12 Em 2010, a Village 284 deu início à fabricação e comercialização de versões em


malha das famosas bolsas “Birkin” como parte de uma linha chamada “I’m Not
Original”. As partes ainda estão em disputa judicial, uma vez que houve recurso da
sentença de primeira instância.

13 Nos Estados Unidos, existe a figura da “patente de design”. Entretanto, ela


também acaba sendo pouco utilizada dada a dificuldade de comprovação do
requisito da novidade, uma vez que a vasta maioria dos artigos da moda são
constantemente reinventados. Para um maior aprofundamento sobre esse e
outros temas inerentes à realidade estadunidense, em especial as marcas, ver:
Harvard Law Review (2014).

14 Números disponíveis em: http://migre.me/iVAO1 Acesso em: 29 jan. 2014.


116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

15 BRASIL. Decreto-Lei nº9279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações


relativos à propriedade industrial. Brasília, 14 maio 1996. Seção 1, cap. 2. Disponível
em: http://migre.me/iVARy. Acesso em: 7 abr. 2014.

16 US Patent Application n. 0272013 A1.

17 A lista Forbes das marcas mais valiosas do planeta traz nomes como Louis
Vuitton, Nike e H&M. Disponível em: http://migre.me/iVASz. Acesso em: 30 jan.
2014.

18 Estados Unidos, Inglaterra, Argentina. Austrália e França.

19 Estados Unidos, Austrália e Argentina.

20 O famoso “azul da Tiffany” é produzido pela Pantone como uma cor privada, feita
sob medida para a empresa e identificada pelo número 1837, o ano da fundação
da joalheria. Por ser uma cor de marca registrada, ela não está disponível ao
público nem é impressa no livro Pantone Matching System. Disponível em: http://
migre.me/iVATu. Acesso em: 30 jan. 2014.

21 A estratégia seria, nesses casos, de construir a argumentação com base nas regras
de repressão à concorrência desleal.

22 Nos EUA, A Loubotin acaba de ganhar ação contra a Yves Saint-Laurent, também
pelo uso do solado vermelho em sapatos.

23 Nesse sentido, ver a interessante contraposição de argumentos trazidos por


Veblen, Bordieu e outros na obra de Svendsen (2010).

24 Susan Scafidi em entrevista à Bloomberg Law.


Disponível em: http://migre.me/iVAX7. Acesso em: 12 jan. 2014.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Mônica Steffen Guise Rosina 117
118 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AFINAL, O QUE É O
CREATIVE COMMONS?
Sérgio Branco

O Creative Commons tem por objetivo facilitar a circulação de obras culturais no mun-
do. Como as leis de direitos autorais são muitas vezes restritivas, proibindo até mesmo a có-
pia privada na íntegra de textos, músicas e filmes, há cerca de dez anos foi desenvolvido esse
modelo de autorização para permitir acesso, distribuição e remix das obras licenciadas. Nes-
te artigo, serão apresentadas as licenças Creative Commons, que colaboram para tornar o
mundo das artes ainda mais criativo.

O
Introdução presidente Luiz Inácio Lula da Silva aca-
projeto Creative Commons existe bara de ser eleito e havia indicado como
no Brasil desde 2003, sendo tra- Ministro da Cultura Gilberto Gil, conhe-
zido ao Brasil por Ronaldo Lemos cido por seu interesse e reflexão a respeito
e tendo contado com o auxílio de diver- da  cultura digital. Com isso, já em 2003,
sos  professores e pesquisadores, inclusive o Creative Commons no Brasil passou a
o autor do presente texto. Seguem abaixo contar com o apoio pessoal e institucional
algumas breves recapitulações históricas de Gilberto Gil.
sobre projeto, bem como um relato de suas Gil apoiou o Creative Commons tan-
principais características e modo de fun- to como artista - licenciando obras de sua
cionamento. autoria para o projeto - como institucional-
O Brasil foi o terceiro país do mundo mente, como Ministro da Cultura, levan-
a se juntar ao projeto Creative Commons, tando a discussão sobre a questão da pro-
logo após o Japão e a Finlândia, ainda no priedade intelectual e dos direitos autorais
ano de 2003. Curiosamente, dois fatos im- em um mundo conectado digitalmente pela
portantes ocorriam naquele momento. Pri- internet. O evento de lançamento, hoje visto
meiramente, tratava-se do período em que por muitos como uma marco histórico para
o projeto Creative Commons havia apenas o debate sobre tecnologia, direito autoral e
sido criado nos EUA. Em segundo lugar, o cultura no Brasil, aconteceu no 5º Fórum
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 119

Internacional do Software Livre, em Por- Presidência da República no Brasil foi tam-


to Alegre, em junho de 2004, e contou com bém licenciado através do Creative Com-
a presença, além de Gil, de Lawrence Les- mons2. Vale mencionar ainda a importante
sig, Ronaldo Lemos, William Fisher, John adoção das licenças do Creative Commons
Maddog Hall, Luis Nassif, Marcelo Tas e por parte do projeto Scielo3 (Scientific Elec-
Cláudio Prado, entre outros. O lançamento tronic Library), uma das mais importantes
foi retratado através de um documentário1, plataformas de “open publishing” (publica-
disponível na internet, realizado pelo dire- ção aberta) no âmbito Latino Americano,
tor Danny Passman, que mostra um pouco que abrange diversas revistas e periódicos
do clima que marcou o evento brasileiro. acadêmicos do Brasil e da América Latina.
Desde então, a evolução do projeto Creative O projeto Creative Commons também
Commons no país é constante e crescente, foi utilizado em iniciativas como a criação
abrangendo as mais diversas áreas. do Overmundo4, portal pioneiro da web
Inicialmente o projeto foi adotado colaborativa no Brasil, fundado pelo antro-
com entusiasmo pela comunidade musi- pólogo Hermano Vianna e outros colabo-
cal, incentivada pelo exemplo do Ministro radores. O site criou um importante banco
Gilberto Gil. Diversos artistas foram adep- de dados colaborativo da cultura brasilei-
tos pioneiros das licenças, como o rapper ra  e foi vencedor do Golden Nica, conce-
Bnegão e a banda Mombojó, e há, hoje, dido  pelo Prix Ars Electronica em 2007,
uma extensa lista de músicos que utiliza- na categoria Digital Communities, um dos
ram licenças Creative Commons em seu principais prêmios de cultura e tecnolo-
trabalho, desde Lucas Santanna até artis- gia do planeta.
tas como o DJ Dolores ou o Projeto Axial, Em São Paulo, em 2010, ocorreu a or-
para citar alguns exemplos. Além disso, o ganização do lançamento das licenças 3.0
projeto Creative Commons obteve cres- no âmbito do evento Campus Party. Nes-
cente utilização no âmbito governamental, sa ocasião, em visita ao Brasil, o profes-
na medida em que se mostrou como opção sor  Lawrence Lessig se encontrou com as
importante para incentivar o acesso à cul- então candidatas à presidência da Repúbli-
tura, à educação e à ampla disseminação de ca, Dilma Rousseff e Marina Silva. Esse en-
informações públicas. contro foi amplamente documentado pela
Nesse sentido, o uso das licenças am- imprensa local5.
pliou-se de tal modo que o blog oficial da As licenças Creative Commons vão
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

demonstrando na prática sua impor- Parte I


tante aplicação para os mais diver- Concebidas nos Estados Uni-
sos fins, como por exemplo, o acesso dos, as licenças Creative Commons
aos recursos educacionais abertos fornecem instrumentos legais pa-
(REAs), um dos movimentos que dronizados para facilitar a circula-
mais crescem no mundo (e no Brasil). ção e o acesso de obras intelectuais,
Trata-se da utilização das licenças tanto na internet quanto fora dela.
Creative Commons para disponibili- O propósito das licenças Creative
zar amplamente materiais didáticos Commons é resolver um problema
em todos os níveis educacionais e, prático. O sistema internacional de
especialmente, aqueles que tenham direitos autorais foi criado a partir
sido financiados com recursos pú- do final do século XIX e determina
blicos. Os REAs foram inclusive que cada país signatário dos tratados
reconhecidos e recomendados pela internacionais (na prática, quase to-
UNESCO, em 2012, como uma das dos os países) deverá legislar sobre
estratégias mais importantes para direitos autorais da maneira que
a inovação e ampliação da abran- julgar mais conveniente, desde que
gência do sistema educacional. Vale sejam respeitados alguns princípios
mencionar que o Creative Commons comuns. Assim, prazos mínimos de
é hoje desenvolvido no país pelo Ins- proteção, por exemplo, são impostos,
tituto de Tecnologia e Sociedade do impedindo que prazos mais curtos
Rio de Janeiro (ITS), organização de sejam previstos nas leis
pesquisa e ensino independente (da nacionais. Hoje, tem-se “Em um mundo integrado
qual sou um dos diretores) e que tem como regra a proteção pela tecnologia, a disparidade
por finalidade, entre outras coisas, internacional que se de previsões legais pode levar
pesquisar o futuro do acesso ao co- estende, pelo menos, a alguns inconvenientes.”
nhecimento. Assim, o Creative Com- por toda a vida do au-
mons continua a apontar caminhos tor da obra e por 50 anos adicionais
de vital importância para se pensar (no caso do Brasil são 70), contados
questões que tocam a forma como a a partir de sua morte.
sociedade se organiza em tempos de No entanto, países tratam de
tecnologia digital, bem como outras modo distinto temas bastante cor-
que possuem impacto direto no mo- riqueiros, como a possibilidade de
delo e aspirações de desenvolvimen- reprodução de obras protegidas
to do país. O uso das licenças Creati- (mesmo para uso privado), o uso de
ve Commons é voluntário, como esse trechos de determinada obra pre-
texto busca ressaltar, o que significa existente em outra obra mais nova
que todos são convidados a utilizar e (para se fazer remixagem ou obra
experimentar tais licenças. derivada, por exemplo) ou, ainda, a
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 121

autorização para se reproduzir obras condições) deseja permitir o acesso,


protegidas para fins educacionais ou a distribuição e o uso de suas obras
de conservação do original. Em um por parte de terceiros.
mundo integrado pela tecnologia, a Essa realidade também funcio-
disparidade de previsões legais pode na para os usuários. Quem deseja
levar a alguns inconvenientes, como copiar uma foto, uma música ou um
a insegurança jurídica para se usar a texto para uso privado, ou para uso
obra de um país em outro. em outra obra, poderá ficar na dúvi-
Na verdade, mesmo dentro do da sobre quais os limites que a lei de-
Brasil a insegurança existe. Como termina para o uso de obras alheias
nossa lei de direi- (os especialistas
“Dessa forma, o projeto Creative
tos autorais (Lei Commons aproxima os autores em direitos auto-
9.610/98, a partir dos usuários das obras.” rais também têm
de agora “LDA”) dúvidas sobre o
muitas vezes não é clara e os apli- tema). Assim, ao se valer de uma
cadores da lei não estão de acordo obra licenciada em Creative Com-
quanto à melhor interpretação a lhe mons, certamente terá maior segu-
ser dada, o surgimento de iniciati- rança quanto ao uso permitido pelo
vas populares pode ser bastante útil autor. Se precisar usar uma canção
na solução de conflitos cotidianos. em um vídeo ou em uma peça de te-
Vejamos um exemplo simples. Se atro, poderá recorrer a alguma das
um músico deseja que sua obra seja milhões de músicas licenciadas, que
copiada pelos seus fãs, não basta que já contam com a prévia e expressa
coloque a música para ser baixada autorização do autor – requisito es-
de sua página pessoal na internet. É sencial de nossa lei.
necessário que o músico manifeste Dessa forma, o projeto Creative
expressamente sua vontade em per- Commons aproxima os autores dos
mitir a cópia de sua criação intelec- usuários das obras. Se hoje qualquer
tual. Ele pode fazer isso da maneira pessoa pode produzir em casa e dis-
que quiser, mas talvez encontre di- tribuir pela internet suas próprias
ficuldades em redigir uma licença músicas, seus vídeos, suas fotos e
própria, com termos juridicamente seus textos, sem a necessidade de
válidos, que seja compreensível por produtoras, gravadoras e editoras,
todos e que opere em diversos países as licenças Creative Commons fun-
simultaneamente (se for essa sua cionam como uma fonte de instru-
intenção). Com as licenças Creative mentos jurídicos para aqueles que
Commons, ele terá à sua disposição desejam abrir mão de alguns de seus
textos padronizados para informar direitos em favor da coletividade e
ao mundo de que modo (em quais em prol da difusão de obras culturais.
Parte II objetivo é disponibilizar vídeos licencia-
Em junho de 2011, a Secretaria Muni- dos em Creative Commons a partir de uma
cipal de Educação de São Paulo decidiu li- curadoria, o que o torna diferente de outros
cenciar seu material didático valendo-se de sites, como Vimeo ou Youtube, plataformas
uma licença Creative Commons. A partir de em que o usuário pode fazer upload do vídeo
então, tornou-se possível copiar, modificar sem que haja qualquer seleção.
e distribuir, desde que sem fins lucrativos, São os próprios idealizadores da
publicações elaboradas pela Secretaria e plataforma  que justificam a escolha pelo
disponíveis em seu portal (portalsme.pre- licenciamento:
feitura.sp.gov.br), incluindo livros e apos-
tilas com material de classe e de apoio. Ao O CUBO - Canal Cultural Aber-
fazer a opção pelo licenciamento, Alexan- to é uma TV 2.0, um canal de conteúdo
dre Schneider, secretário de educação de audiovisual que fomenta a produção in-
São Paulo, afirmou que a decisão se devia dependente brasileira. Nossa principal
ao fato de que a Prefeitura vinha recebendo ferramenta é a internet, que em seu ca-
diversas solicitações de outras cidades do ráter livre e democrático, é um potencial
país para o uso do material por eles desen- disseminador do acesso à informação e
volvido. Disse ainda que como não tinham cultura em nosso país e no mundo.
uma forma adequada de licenciar o conteú-
do, optaram por uma licença que permitis- Alinhado a este propósito, todos
se a qualquer pessoa a utilização e adapta- os vídeos e programas divulgados pelo
ção  dos materiais pelos quais o governo já canal são de conteúdo aberto, e obri-
havia pagado6. gatoriamente licenciados via Creative
Iniciativas como esta têm se tornado Commons, que flexibilizam os direitos
cada vez mais comum em todo o mundo. autorais, permitindo que nossos teles-
Sites governamentais de países como Aus- pectadores divulguem e até mesmo reu-
trália, Chile, Coreia do Sul, Grécia, Itália, tilizem o conteúdo vinculado no canal, de
México, Nova Zelândia, Portugal, Rússia e acordo com o tipo de licença escolhida.
Estados Unidos, entre muitos outros, são
licenciados em Creative Commons. Dessa Com uma grade de programação
forma, é possível – no mínimo – reprodu- selecionada e um plano de comunicação
zir e divulgar seu conteúdo sem o risco de consistente na rede, o canal O CUBO
violar direitos autorais alheios. O próprio oferece a produtores independentes,
governo autoriza, previamente, o uso do uma saída para o maior gargalo na rede
material disponível, determinando também de produção audiovisual - a distribuição.
em quais condições esse uso deverá se dar.
Em 2013, foi lançado o site de vídeos O Acreditamos na distribuição co-
Cubo (http://www.canalocubo.com/), que laborativa, e através das redes dos te-
pretende ser um canal de conteúdo 2.0. O lespectadores, colaboradores,  e produ-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 123

tores  audiovisuais, esperamos montar de serem remunerados pela reprodução e


a primeira plataforma brasileira de distribuição de suas obras. Por quê?
conteúdo audiovisual  licenciado via O sistema de direitos autorais foi
Creative Commons.  construído nos últimos trezentos anos ten-
do por base a ideia de escassez. O número
Periodicamente, através de cha- de cópias de determinada obra disponível
mada pública, os vídeos em diferentes no mercado era definido pela indústria. O
categorias serão recebidos, e após  um fim das cópias significava o fim do acesso
processo de curadoria, serão organiza- à obra. O advento da tecnologia digital, en-
dos para publicação no canal cultural. tretanto, permitiu que as cópias (se é que se
pode falar, nesse caso, adequadamente em
Como podemos perceber a partir dos cópia) sejam feitas rapidamente, a custo
dois exemplos acima mencionados, muito bastante reduzido e com a mesma quali-
pouco há que os una. O primeiro trata de dade do original, sem a perda deste. Se tal
um projeto educacional promovido pelo cenário dificultou imensamente o controle
governo da maior cidade do Brasil, cujo ob- dos titulares de direito, também, por outro
jetivo principal é democratizar o acesso a lado, permitiu a difusão das obras intelec-
conteúdos educativos. A fim de se atingir tal tuais. Ao colocar à disposição do público (e
objetivo, autoriza a cópia e a adaptação de da administração de outras municipalida-
material didático desenvolvido pela secre- des) o material didático elaborado por sua
taria municipal de educação. Por se tratar Secretaria de Educação, a Prefeitura de São
de um ato governamental, é compreensível Paulo está cumprindo com alguns ditames
que não haja interesse econômico envol- constitucionais. Afinal, prevê o art. 23, V, da
vido. Afinal, o contribuinte já pagou pela Constituição Federal, que é competência
elaboração daquele conteúdo. E como bem comum da União, dos Estados, do Distri-
observou Alexandre Schneider, vários são to Federal e dos Municípios proporcionar
os municípios que não podem pagar para os meios de acesso à cultura, à educação e
desenvolver seu próprio material didático. à ciência. É, por isso mesmo, plenamente
Nada mais justo, portanto, do que autorizar justificável a decisão de licenciar o material
que seja reproduzido por terceiros. didático e de apoio.
Já quanto ao site O Cubo, seu objetivo Já o licenciamento dos vídeos no ca-
é distribuir gratuitamente obras artísticas, nal O Cubo não cumpre com uma obrigação
que poderiam ser exploradas economica- imposta pelo Estado. Muito pelo contrário,
mente por seus titulares, o que, no entanto, trata-se apenas do exercício de um direito.
não é o caso. E aqui constatamos o ponto de Na qualidade de titulares de direitos auto-
interseção entre os dois projetos: tanto a rais sobre as obras audiovisuais disponí-
Prefeitura de São Paulo quanto os titulares veis no canal, seus diretores e produtores
de direitos autorais sobre os vídeos disponí- podem exercer o monopólio de exploração
veis no site O Cubo optaram por abrir mão econômica que a lei de direitos autorais
125
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

lhes garante. Sendo assim, podem como plataforma democrática que


proibir qualquer uso da obra que não permite a qualquer artista exibir sua
tenha sido prévia e expressamen- criação. Mas para isso não bastaria
te autorizado. Podem, entre outras apenas colocar a obra na internet?
hipóteses, impedir que suas obras Isso já não daria a visibilidade de-
sejam copiadas ou compartilhadas sejada? Sim, mas não da manei-
na internet. Em geral, essa foi a op- ra mais adequada.
ção de praticamente toda a indústria Vivemos em um mundo jurí-
cultural durante o século XX. Mas dico, no qual nem todas as normas
seus titulares decidiram fazer justa- socialmente aceitas se ajustam às
mente o oposto. Por que, nesse caso, regras legais. Pode parecer bastante
agir de modo diferente? razoável que se o autor de uma obra a
O controle de uso de obras na colocou espontaneamente na inter-
internet tem se mostrado um dos net é porque deseja dar acesso a ela e,
principais desafios para os tempos eventualmente, permitir sua cópia.
atuais. Em razão da imaterialidade No entanto, a LDA veda essa inter-
de textos, músicas, fotos e vídeos, pretação ao determinar que depende
todo esse conteúdo fica muito mais de “prévia e expressa” autorização
suscetível ao uso não autorizado do do titular de direitos autorais o uso
que as mesmas obras quando inseri- de sua obra, por quaisquer modali-
das em suportes físicos. Entretanto, dades, inclusive a sua reprodução (é,
os mecanismos de criação artificial na verdade, a primeira hipótese que
de escassez desenvolvidos pela in- a LDA menciona quando impõe a
dústria (como a autorização prévia
“O controle de uso de obras
inclusão de travas e expressa). Des-
na internet tem se mostrado
anticópia) se pro- um dos principais desafios sa forma, somente
varam tão caros para os tempos atuais.” com a anuência da
quanto ineficien- Prefeitura de São
tes. Assim, a internet passou a ser Paulo ou dos titulares de direitos so-
um campo no qual só tenta construir bre as obras disponíveis no canal O
uma cerca ao redor de um produto Cubo é que poderíamos fazer cópia,
quem espera realmente fazer di- na íntegra, quer do material didático,
nheiro com ele. quer das obras audiovisuais.
É sabido que boa parte da pro- A possibilidade existe – bem se
dução audiovisual não costuma ren- vê. No entanto, quanto maior o su-
der muito dinheiro a seus realizado- cesso da obra (e sabemos que esse
res e sua distribuição pelos meios é o desejo de todo realizador), maio-
tradicionais é bastante limitada. res seriam seus esforços no senti-
Dessa forma, a internet se apresenta do de  autorizar, individualmente,
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 127

que  cópias da obra fossem feitas. É portante uma ressalva geral desde
assim que surgem as ideias de “licen- logo: quando a lei afirma que “depen-
ças públicas gerais”. Por meio desses de de autorização prévia e expressa
documentos, o titular dos direitos do autor a utilização da obra, por
“Depende de autorização prévia e autorais informa, quaisquer modalidades”, na verdade
expressa do autor a utilização da ”prévia e expressa- determina que “depende de autori-
obra, por quaisquer modalidades.” mente”, que usos zação prévia e expressa do titular dos
permite que sejam direitos autorais”. Afinal, o titular
dados à sua obra. Assim, aquele que dos direitos autorais poderá ser ter-
tem acesso à obra sabe exatamente ceiro a quem o autor tenha transferi-
em que limite poderá dela se valer. do seus direitos patrimoniais. A bem
Esses limites incluem as possibili- da verdade, a LDA é bastante econô-
dades de reproduzir, de modificar ou mica quando se trata de regulamen-
de explorar a obra economicamente tar os contratos  envolvendo  obras
– segundo convencionado pelo titu- protegidas por direitos autorais.
lar dos direitos autorais e conforme As relações contratuais estão
veremos adiante. dispostas a partir do art. 49 da LDA.
Esse artigo prevê, inicialmente, que
Parte III os direitos de autor poderão ser to-
Se a obra intelectual (I) puder tal ou parcialmente transferidos a
ser protegida por direitos autorais terceiros, por ele ou por seus suces-
(lembrando que algumas obras estão sores, a título universal ou singular,
expressamente excluídas dessa pro- pessoalmente ou por meio de repre-
teção) e (II) ainda não tiver entrado sentantes com poderes especiais,
em domínio público, competirá ao por meio de licenciamento, conces-
autor permitir – ou não – que sua são, cessão ou por outros meios ad-
obra seja utilizada para qualquer mitidos em Direito, obedecidas as li-
finalidade, exceto para aquelas que mitações posteriormente apontadas.
já se encontram legalmente previs- Como se percebe, a LDA prevê três
tas, como as limitações aos direitos modalidades específicas de contrato
autorais. Essa é a interpretação que - cessão, licença ou concessão7, sem
se faz a partir da leitura do art. 29 que sejam proibidas outras formas
da LDA, que determina que “depen- contratuais juridicamente possíveis.
de de autorização prévia e expressa Uma vez que a LDA não define qual-
do autor a utilização da obra, por quer uma das modalidades, a tarefa
quaisquer modalidades, tais como”, foi delegada aos intérpretes da lei.
seguindo-se a esse texto as hipóteses A cessão se caracteriza pela
de direito patrimonial do autor. transferência, a título oneroso ou
A propósito, faz-se muito im- não, a terceiro, de um ou mais direi-
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

tos patrimoniais sobre a sua criação inte- nem mesmo o autor (ou seu titular, caso o
lectual8. João Henrique da Rocha Fragoso autor tenha cedido seus direitos) pode usar
afirma que “o que caracteriza a cessão de a obra em concorrência com o licenciado.
direitos é o aspecto de sua definitividade Ao final do prazo combinado, volta o autor a
(como na propriedade industrial) e de ex- deter integralmente os direitos sobre a obra.
clusividade. Transmitem-se (cedem-se) os
direitos patrimoniais de autor, com todos Parte IV
os atributos ínsitos à propriedade, ou seja, As licenças, já vimos, são uma autori-
o de fruir, utilizar e dispor, com as limita- zação de uso que o titular do direito autoral
ções de uso previstas na lei (art. 46) ou no confere a alguém. Não existe, nas licenças,
contrato. (...) Se não houver a definitividade qualquer transferência de titularidade.
e a exclusividade será outro negócio jurídi- Com a celebração de um contrato de li-
co, não cessão (...)”9. cença, portanto, o titular do direito autoral
Comungando essa opinião, Eduardo patrimonial (porque somente quanto aos
Vieira Manso esclarece que a cessão “[é] direitos autorais patrimoniais podem ser
o ato com o qual o titular de direitos patri- conferidas licenças) continuará a sê-lo. En-
moniais do autor transfere, total ou par- tretanto, estará o titular, ao assinar uma li-
cialmente, porém sempre em definitivo, cença, limitando seus direitos sobre a obra.
tais direitos, em geral tendo em vista uma De que maneira?
subsequente utilização pública da obra ge- Um romancista, por exemplo, poderá
radora desses mesmos direitos”10. Imagine, conferir direito a outro autor para que este
por  exemplo, que o autor de uma canção faça uma versão teatral de sua obra. Essa
contrata a cessão de seus direitos com a permissão poderá ser realizada por meio
gravadora. Feito isso, ele deixará de ser o de cessão ou de licença. Se a modalidade
titular dos direitos patrimoniais contratos de cessão for escolhida, o autor do romance
(que podem ser todos ou apenas alguns), estará transferindo, de modo definitivo ao
embora não possa jamais deixar de ser au- terceiro, o direito de transpor seu roman-
tor (em razão dos direitos morais previstos ce para o teatro. Assim, mesmo depois de
no art. 24 da LDA). montada a versão teatral, se mais alguém
A licença, por outro lado, é simples au- desejar transpor a história do romance para
torização de uso. Não opera, dessa forma, os palcos, deverá pedir permissão àquele a
transferência de titularidade. Nas palavras quem o direito foi transferido – o autor da
de João Henrique da Rocha Fragoso, “o licen- peça, no exemplo dado.
ciamento é temporário e raramente exclusi- Tratando-se, no entanto, de licença,
vo”11. A propósito, a licença exclusiva é aque- uma vez autorizado o uso por parte do titu-
la que confere ao licenciado (quem recebe a lar, aquele a quem a autorização foi confe-
licença) o direito, com exclusividade, de usar rida deverá dela se valer no prazo estipula-
a obra nos termos do contrato. Se a celebra- do (e não havendo prazo estipulado, a LDA
ção da licença se dá nesses termos, então determina que o prazo seja de cinco anos).
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 129

Após esse prazo, essa limitação consenti- zação pública e geral pode se dar por meio de
da pelo titular do direito autoral se esgota licenças (já que estas não conferem trans-
e este volta a ter a totalidade de seu direito ferência do direito a terceiros, mas apenas
reconhecida. Assim, se outra pessoa tiver uma autorização de uso) públicas (porque
interesse em fazer uma segunda montagem não existe um contrato particular) e gerais
teatral do romance, deverá solicitar a au- (porque o direito é conferido a qualquer
torização ao titular original, e não àquele a pessoa interessada, não apenas a um indi-
quem a licença (que a essa altura já termi- víduo específico). O Creative Commons tal-
nou) foi concedida. vez seja o exemplo mais conhecido de tais
No entanto, a LDA contém previsão licenças, ao lado das licenças de software
que exige que toda e qualquer utilização da livre que lhe serviram de inspiração.
obra, que não caiba dentro das limitações O uso da licença Creative Commons
previstas entre os artigos 46 e 48 da LDA, funciona da seguinte maneira: o titular dos
seja prévia e expressamente autorizada direitos autorais que quer licenciar a obra
pelo titular (ainda que a LDA mencione, vai ao site do Creative Commons no Brasil:
equivocadamente, o autor). Pode ser, entre- http://www.creativecommons.org.br/. No
tanto, que o autor queira – “prévia e expres- site, na seção “publique”, deverá responder
samente” – autorizar qualquer pessoa a dar a duas perguntas: (a) Permitir uso comer-
a sua obra determinados usos. Mas em que cial de seu trabalho? (b) Permitir transfor-
circunstâncias poderia isso ocorrer? mações de seu trabalho?
Imaginemos de novo um músico que A primeira pergunta comporta duas
compôs e gravou uma canção e deseja que opções de resposta: sim ou não. Ou seja, o ti-
qualquer interessado possa fazer um down- tular está autorizando, ou não, que terceiro
load, na íntegra, do arquivo. Sabemos que use sua obra com finalidade econômica. No
nessas circunstâncias tem o músico os di- caso da música, por hipótese, se a autoriza-
reitos morais e patrimoniais sobre a obra, ção se der permitindo o uso econômico, o
o que o autorizam a exigir, de quem quiser usuário poderá incluí-la em filmes comer-
fazer cópia integral da música, autorização ciais, novelas de televisão ou CDs que serão
prévia e expressa. Afinal, em uma leitura ri- vendidos no mercado. Do contrário, tais
gorosa e conservadora do art. 46, II, da LDA, condutas serão vedadas. Poderá, entretan-
apenas pequenos trechos poderão ser co- to, distribuir a música de graça ou incluí-la
piados dispensando-se a prévia e expressa na trilha sonora de um filme distribuído
autorização a qual a lei se refere. gratuitamente.
Pois bem. O músico de nosso exemplo A segunda pergunta se desdobra em
(pode ser também o autor de um texto, um três possibilidades de resposta: sim, não
ilustrador, um diretor de filmes, um fotógra- e depende. As duas primeiras são triviais:
fo etc.) pode querer colocar sua música de ou se permite - ou se veda - modificação da
graça na internet, autorizando, ainda, que obra original. Mas cabe aqui uma terceira
qualquer interessado a copie. Essa autori- opção. Nesta, o titular permite que terceiro
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PERMITIR USO PERMITIR OBRAS


COMERCIAL? DERIVADAS?
ATRIBUIÇÃO

√ √ (by)
SIM SIM

√ √ ATRIBUIÇÃO
COMPARTILHAMENTO
SIM SIM,
DESDE QUE DA MESMA
OS OUTROS
COMPARTILHEM (by-sa)

√ √ ATRIBUIÇÃO
NÃO A OBRAS
SIM NÃO DERIVADAS

(by-nd)

√ √ ATRIBUIÇÃO
USO NÃO COMERCIAL
NÃO SIM
(by-nc)

√ √ ATRIBUIÇÃO
USO NÃO COMERCIAL -
NÃO SIM,
DESDE QUE COMPARTILHAMENTO
OS OUTROS DA MESMA LICENÇA
COMPARTILHEM
(by-nc-sa)

√ √ ATRIBUIÇÃO
USO NÃO COMERCIAL -
SIM SIM,
DESDE QUE NÃO A OBRAS DERIVADAS
OS OUTROS
COMPARTILHEM (by-nc-nd)
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 131

LICENÇA GERADA
Esta licença permite que outros distribuam, remixem, adaptem ou criem obras de-
rivadas, mesmo que para uso com fins comerciais, contanto que seja dado crédito
pela criação original. Esta é a licença menos restritiva de todas as oferecidas, em
termos de quais usos outras pessoas podem fazer de sua obra.

Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem obras derivadas ainda
que para fins comerciais, contanto que o crédito seja atribuído ao autor e que
essas obras sejam licenciadas sob os mesmos termos. Esta licença é geralmente
comparada a licenças de software livre. Todas as obras derivadas devem ser li-
cenciadas sob os mesmos termos desta. Dessa forma, as obras derivadas também
poderão ser usadas para fins comerciais.

Esta licença permite a redistribuição e o uso para fins comerciais e não comer-
ciais, contanto que a obra seja redistribuída sem modificações e completa, e que
os créditos sejam atribuídos ao autor.

Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem obras derivadas sobre
a obra licenciada, sendo vedado o uso com fins comerciais. As novas obras devem
conter menção ao autor nos créditos e também não podem ser usadas com fins
comerciais, porém as obras derivadas não precisam ser licenciadas sob os mes-
mos termos desta licença.

Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem obras derivadas sobre
a obra original, desde que com fins não comerciais e contanto que atribuam
crédito ao autor e licenciem as novas criações sob os mesmos parâmetros.
Outros podem fazer o download ou redistribuir a obra da mesma forma que na
licença anterior, mas eles também podem traduzir, fazer remixes e elaborar novas
histórias com base na obra original. Toda nova obra feita a partir desta deverá
ser licenciada com a mesma licença, de modo que qualquer obra derivada, por
natureza, não poderá ser usada para fins comerciais.

Esta licença é a mais restritiva dentre as nossas seis licenças principais, permitin-
do redistribuição. Ela é comumente chamada “propaganda grátis” pois permite
que outros façam download das obras licenciadas e as compartilhem, contanto
que mencionem o autor, mas sem poder modificar a obra de nenhuma forma,
nem utilizá-la para fins comerciais.
132 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

realize modificação desde que, divulgan- tantes do site. Todas as três contam com o
do-se a obra modificada, o resultado final mesmo conteúdo, distinguindo-se apenas
seja, também ele, licenciado sob a mesma pelo seu destinatário, conforme segue: (a)
licença da obra original. Impõe-se, aqui, código-fonte cuja finalidade é inserir o
uma condição ao usuário com o objetivo de símbolo da licença em sites cujo conteúdo
se manter a cadeia de criatividade aberta a esteja licenciado. Exemplo dessa aplicação
novas possibilidades. pode ser encontrado aqui: http://blog.pla-
As respostas às duas perguntas, nalto.gov.br/; (b) licença simplificada, de
quando combinadas, geram seis possí- uma página, com a indicação dos direitos e
veis licenças, conforme segue12: obrigações do usuário; (c) versão integral,
A respeito das licenças, três observa- escrita em termos jurídicos e, por isso, mais
ções são extremamente relevantes e de- complexa.
vem ser feitas desde logo: A terceira observação é bastante sim-
Em primeiro lugar, o site do projeto ples. Lembramos, desde logo, que a licença
Creative Commons não exerce a função de Creative Commons é atribuída pelo próprio
repositório de obras. Assim, quando alguém autor da obra (ou do titular dos direitos pa-
responde às duas perguntas acima men- trimoniais) de modo a atender sua vontade
cionadas e recebe como resultado uma das enquanto autor (ou titular de direitos). Se
seis licenças a que nos referimos, não existe existe alguma restrição a seus direitos, essa
nenhuma vinculação imediata da licença restrição é voluntária – o que é absoluta-
à obra que se pretende licenciar. Afinal, a mente corriqueiro quando se trata de di-
informação de dados, como nome da obra reitos patrimoniais, que são, de modo geral,
e do autor, é facultativa, e não há qualquer disponíveis. Ninguém é obrigado a licenciar
base de dados gerida pelo projeto Creative obras em Creative Commons, e se o faz é
Commons indicando que obras estão licen- porque assim deseja.
ciadas por qual licença. Algumas das críticas dirigidas ao pro-
Em função dessa peculiaridade, caberá jeto Creative Commons é a impossibilidade
ao titular dos direitos patrimoniais da obra de se voltar atrás uma vez que a obra tenha
dar ao mundo conhecimento de que deter- sido licenciada. Isso se dá por questões prá-
minada obra se encontra licenciada. Caso ticas e não é apenas aqui que esses efeitos
se trate de uma obra em suporte físico (um se produzem. Sempre que um artista cede
CD, um DVD, um livro), convém indicar o (transfere) seus direitos a terceiros, tam-
símbolo da licença (de acordo com as seis bém não pode, em condições normais, re-
possibilidades a que nos referimos) em en- verter a mudança de titularidade. Se o faz, é
cartes, na capa ou de alguma outra maneira para sempre. E se a lei autoriza que o artis-
inequívoca. ta transfira integralmente seu direito a um
A segunda observação é que três (e terceiro, com exclusividade, por que não se
não apenas uma) são as licenças geradas poderia apenas limitar seus próprios direi-
quando da resposta às duas perguntas cons- tos em prol da coletividade?
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 133

Parte V é a modificação nos capítulos de limitações


Recentemente, o Brasil tem vivido um aos direitos autorais. Esperamos que nos
momento muito importante com o proces- próximos anos a legislação autoral brasilei-
so de revisão da LDA. Não faltam motivos ra encontre o equilíbrio adequado entre
para se promover a reforma legal. as novas tecnologias, as práticas sociais
Se os direitos autorais diziam respeito e a merecida proteção dos autores. É im-
a um grupo restrito de pessoas até o final portante lembrar que o direito autoral não
do século XX (apenas àqueles que viviam pode ser encarado como um direito absolu-
da produção de obras culturais), hoje di- to e precisa ser conjugado com uma série de
zem respeito a todos. Com o acesso à rede princípios constitucionais (como a liberda-
mundial de computadores, a elaboração e de de expressão e o acesso ao conhecimen-
a divulgação de obras culturais (mesmo as to), fundamentais para o desenvolvimento
mais sofisticadas, como as audiovisuais) cultural e social de qualquer país.
se tornaram eventos cotidianos, que de- Nos últimos anos, a LDA vem
safiam  o modo como os direitos autorais sendo sistematicamente apontada como
foram  estruturados, ao longo dos últimos uma das piores leis de direitos autorais do
dois séculos. mundo. É preciso, portanto, adequá-la para
Todas essas transformações são res- o tempo presente, de modo a fomentar a
ponsáveis pelo grande número de revisões educação, a cultura e os novos modelos de
legislativas pelos quais vem passando o negócio necessários a um mundo cada vez
mundo, em matéria de direitos autorais. De mais criativo.
acordo com o site da UNESCO13, Alemanha,
Áustria, Canadá, Dinamarca, Espanha, Ho-
landa, Israel, Itália, México, Noruega, Por-
tugal, Suécia e Uruguai são apenas alguns
dos países que promoveram mudanças em
sua legislação autoral nos últimos anos.
Em consonância com a tendência
mundial, o Ministério da Cultura brasileiro
tem se dedicado a debater publicamente o
assunto, a fim de também propor alterações
na atual lei de direitos autorais do Brasil,
intencionando ajustá-la às demandas con-
temporâneas. Espera-se que nos próximos
meses uma proposta para reforma do tex-
to legal seja encaminhada pelo governo ao
Congresso Nacional.
Um dos principais temas que vem
orientando os debates da reforma da LDA
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Sérgio Branco
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
- UERJ. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Professor da
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas Ibmec. Ex-professor de direito civil e de pro-
priedade intelectual da graduação e da pós-graduação da FGV Direito Rio. Ex-Coorde-
nador de desenvolvimento acadêmico do programa de pós-graduação da FGV Direito
Rio. Autor dos livros Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias, O Domínio
Público no Direito Autoral Brasileiro - Uma Obra em Domínio Público; e O que é Creati-
ve Commons - Novos Modelos de Direito Autoral em um Mundo Mais Criativo. Especia-
lista em propriedade intelectual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
PUC-Rio. Pós-graduado em cinema documentário pela FGV. Graduado em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. Advogado no Rio de Janeiro.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Sérgio Branco 135

1 Disponível em: http://migre.me/j0r6p. Acesso em: 12 abr. 2014.

2 Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/. Acesso em: 12 abr. 2014.

3 Disponível em: http://www.scielo.br/. Acesso em: 12 abr. 2014.

4 Disponível em: http://www.overmundo.com.br. Acesso em: 12 abr. 2014.

5 Disponível em: http://migre.me/j0r8h, http://migre.me/j0rcO.

6 Disponível em: http://migre.me/j0rdB.

7 A modalidade não é comum e a doutrina silencia a seu respeito. Por isso, faremos
menção apenas às duas outras modalidades contratuais: licença e cessão.

8 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 4ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense
Universitária, 2004, p. 96.

9 FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito Autoral – Da Antiguidade à


Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 350.

10 MANSO, Eduardo Vieira. Contratos de Direito Autoral. São Paulo: Editora


Revista dos Tribunais, 1989, p. 21.

11 FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito Autoral – Da Antiguidade à


Internet. Cit., p. 361.

12 Disponível em: http://migre.me/jbtnl.

13 Disponível em http://migre.me/iVCyC.
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE
E DE DADOS PESSOAIS NO BRASIL
Danilo Doneda

O desenvolvimento de leis que procuram proteger a privacidade na Sociedade da Infor-


mação não se exaure com o Marco Civil da Internet. Ao contrário, cresce a demanda por uma
abordagem geral das garantias do cidadão a respeito de seus próprios dados pessoais, dentro
e fora da rede. Leis a esse respeito existem há mais de quatro décadas em vários outros países
e, hoje, justifica-se mais do que nunca a incorporação desse gênero de normativa em nosso
direito como forma de potencializar as liberdades pessoais do brasileiro diante da utilização
cada vez maior de seus dados pessoais.

1. P
 rivacidade e o Marco Civil da construídas em torno dessas tecnologias

A
Internet cobram a sua fatura. A percepção do bra-
s recentes revelações sobre o sileiro sobre a sua privacidade passa por
monitoramento realizado em um amadurecimento - ainda que forçado.
grande parte das informações Como reflexo imediato dessa situação,
que transitam pela internet tocou parti- observam-se as iniciativas de modular a
cularmente o Brasil. Em parte, isso se deu proposta normativa do PL 2126/2012 - co-
pelo fato de que o país foi explicitamen- nhecida como o “Marco Civil da Internet”
te mencionado como um dos alvos desse - que, após movimentada tramitação na
monitoramento, chegando mesmo a mo- Câmara dos Deputados, foi aprovado por
tivar que autoridades demonstrassem essa casa legislativa no mês de março para
preocupação a respeito. que passasse a incorporar previsões que
Por outro lado, é possível perceber restrinjam a coleta de dados e o monitora-
uma mudança de paradigma na forma com mento de cidadãos que utilizam a rede. O
que a privacidade passa a ser tratada no Marco Civil da Internet foi originalmen-
país. Após anos recebendo e abraçando te concebido para estabelecer uma série
entusiasticamente novas tecnologias, uma de direitos e garantias básicas aos usuá-
fase de encantamento chega ao fim no mo- rios da rede internet, como o livre acesso
mento em que as novas relações de poder à rede, a isonomia de tratamento entre
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 137

usuários, a livre circulação do conteúdo e, a ponto de seu texto mencionar que ela deva
entre outros, o direito à privacidade, con- ser feita “na forma da lei”, em clara referên-
siderada esta como uma condição funda- cia a uma outra normativa específica so-
mental para que o cidadão usufrua plena- bre o tema.
mente do potencial da rede. Após ter sido
confrontado com a realidade dos sistemas 2. U
 ma lacuna a ser preenchida: a
passivos de vigilância, trazida à luz após as Proteção dos Dados Pessoais
revelações do ex-funcionário da Agência O Anteprojeto de Lei sobre Proteção
Nacional de Segurança norte-americana de Dados Pessoais é justamente essa ou-
(NSA), Edward Snowden, o PL 2126/2012 tra normativa, cujo início de elaboração
passou a incorporar dispositivos especí- remonta a 2010. O fato de que a tecnologia
ficos relacionados à tutela da privacidade e o tratamento automatizado de informa-
na internet. Assim, passou a contar com ções pessoais tinham o potencial de mudar
dispositivos que procuram tanto especifi- a equação de poder entre Estado, corpora-
car um maior rol de garantias individuais ções e indivíduos em relação à privacidade
a respeito da privacidade (mencionando, foi percebido já em meados do século pas-
por exemplo, especificamente o direito ao sado por Vance Packard1, Jacques Ellul2,
esquecimento) como, por outro lado, com Arthur Miller3 e outros. Em diversos países,
outros que procuram operar modificações a essa constatação se seguiram iniciativas
em aspectos técnicos do funcionamento para o estabelecimento de normas especí-
da rede, com o objetivo de abordar deman- ficas a respeito da utilização de informa-
das relacionadas à privacidade e ao moni- ções pessoais e da privacidade. A partir de
toramento de comunicações. 1970, essa tendência consolidou-se com o
O Marco Civil da Internet, no entanto, amadurecimento, em diversos países, de
desde o início de sua elaboração nunca se normativas que vieram a tratar especifi-
pretendeu como uma normativa completa cadamente da proteção de dados pessoais;
e exaustiva a respeito da proteção de da- normativas essas que comungavam dos
dos, e isso não se deu pelo tema não ter sido mesmos princípios e técnicas desde a sua
considerado com a devida atenção - muito gênese e que, a despeito das diversas par-
pelo contrário, a proteção de dados sempre ticularidades regionais a serem considera-
foi vista como um assunto que demandava das, possuem até hoje certa uniformidade.
uma regulamentação própria e específica, A presença de alguns princípios centrais de
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

proteção de dados pessoais é uma tendên- tarefa é das mais árduas e exige uma leitura
cia que é confirmada, hoje, por uma série atenta ao objeto último que se pretende re-
de instrumentos normativos transacionais gular - a informação.
que tratam da matéria4.
Essa tendência, no entanto, não gerou 3. Direito à informação e proteção de
ressonância perceptível no ordenamento dados pessoais
jurídico brasileiro até há pouco tempo. Na A informação já foi referida como
verdade, os países que tiveram primazia uma destacada “matéria-prima” dos novos
em adotar tais normativas eram países nos processos econômicos e sociais da Socie-
quais a economia da informação já assumia dade da Informação5. A informação pes-
um papel de destaque e relevância há déca- soal, em particular, desponta como uma
das. Dessa forma, houve uma clara tendên- verdadeira commodity em torno da qual
cia entre os países desenvolvidos de adota- surgem novos modelos de negócio que, de
rem tais normativas antes dos demais. uma forma ou de outra, procuram extrair
O fato de economias industrializadas valor e utilidade do intenso fluxo de infor-
necessitarem de diversas formas de nor- mações pessoais proporcionado pelas mo-
malização do uso da informação deve-se à dernas tecnologias da informação. Nesse
posição central que a informação vem assu- cenário, é natural que a informação assu-
mindo nos processos produtivos e na pró- ma grande destaque e passe a ser consi-
pria sociedade. A necessidade de regular ju- derada tanto como um bem jurídico como
ridicamente a informação deriva, portanto, econômico. A (feliz) figura de linguagem
do seu novo papel, derivado, por sua vez, do utilizada em 2009 pela Comissária Euro-
desenvolvimento acelerado das tecnologias peia para os Consumidores, Meglena Ku-
da informação. neva, de que “os dados pessoais são o novo
Como ocorre em situações nas quais combustível da internet e a nova moeda da
o direito é chamado a regular um cenário economia digital”, hoje é evocada em inú-
moldado por tecnologias de ponta, cujos meras ocasiões em que se torna necessário
contornos e efeitos ainda não se encontram fazer referência à nova economia baseada
bem definidos e assimilados pela socieda- na informação.
de, a própria compreensão do cenário, bem A contemplação desses processos
como a avaliação dos métodos regulatórios apresenta algumas dificuldades quase crô-
de maior eficácia, costumam ser tormento- nicas. A dificuldade em determinar as ca-
sos. Assim, torna-se necessário, igualmen- racterísticas da informação e, consequente-
te, que o ordenamento jurídico facilite e ga- mente, de enquadrar seus eventuais efeitos
ranta a utilização das novas tecnologias da jurídicos, demonstrou-se patente na medi-
informação, ao mesmo tempo em que esta- da em que tal informação se desprendia dos
beleça meios de garantia e proteção contra meios físicos que lhe garantiam uma forma
utilizações dessas mesmas tecnologias que concreta. Tome-se, como exemplo, um livro:
venham a ser consideradas como nocivas. A o livro é, hoje, tanto um objeto como uma
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 139

metáfora de um objeto; tanto um produto é claramente visível em uma abordagem


com existência concreta em papel como sistemática de uma teoria jurídica da in-
uma espécie de container para um conjunto formação, tal como a propôs Pierre Catala,
de informações organizadas,  mantidas ou que a classificou em quatro modalidades:
transmitidas em meio eletrônico. (i) as informações relativas às pessoas e
Norbert Wiener notou essa peculiar seus patrimônios; (ii) as opiniões subjeti-
característica da informação quando men- vas das pessoas; (iii) as obras do espírito;
cionou, em um de seus livros que “a infor- e finalmente (iv) as informações que, fora
mação é informação, não é matéria nem das modalidades anteriores, referem-se a
energia”6 - ressaltando uma eventual es- “descrições de fenômenos, coisas, eventos”.
traneidade da informação em relação aos Assim, verificamos que o termo “informa-
elementos do mundo físico, à matéria e à ção” pode se prestar a sintetizar, em de-
energia. O que é relevante é que a informa- terminados contextos, a própria liberdade
ção passou a ser percebida como uma nova de informação como fundamento de uma
força motriz, capaz tanto de influenciar no- imprensa livre, bem como o próprio direi-
vos processos econômicos e sociais como to à informação. O direito à informação se
mudar a feição de atividades tradicionais. constitui, de fato, na primeira manifestação
O homem pode ser considerado, sob concreta do interesse do ordenamento ju-
certo ângulo, como um processador de rídico pelo tema. Sua posição como direito
informações, tal como o é de alimentos e fundamental hoje é bastante sólida, como o
energia. Delimitando seu universo a par- atesta o artigo XIX da Declaração Universal
tir das informações que recebe, suas ações dos Direitos Humanos:
podem ser determinadas pelas informações
que obtém, bem como pelo uso que faz de- Toda pessoa tem direito à liberda-
las. Por outro lado, o homem também é pro- de  de opinião e expressão; este direito
dutor de informações que podem igualmen- inclui a liberdade de, sem interferên-
te influenciar outros homens, modelando a cia, ter opiniões e de procurar, receber e
impressão e a concepção que outras pesso- transmitir informações e idéias por
as tenham sobre cada um de nós. Como uma quaisquer  meios e independentemente
série crescente de ações humanas e, conse- de fronteiras.
quentemente, de relações jurídicas, passam
pelo filtro da informação, a garantia de flui- O direito à informação reflete dire-
dez e de ausência de distorções no fluxo de tamente uma concepção de liberdade que
informações que são recebidas e que tam- permite, em suma, proporcionar meios
bém provém de uma pessoa se constitui em para que o homem interprete de forma au-
um dos mais relevantes problemas jurídi- tônoma o mundo que lhe cerca, bem como
cos do nosso tempo. para dele participar de forma ativa. Outro
Há, a bem verdade, certa polissemia perfil da informação que apresenta imensa
do próprio conceito de informação, o que importância para a sua relação com a li-
140 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

berdade contemporânea está ligado fato de sua autoria o seja).


ao que nos interessa diretamente, o A sistematização de grandes
regime a ser aplicado ao tratamento volumes de informação pessoal
de informações pessoais. A infor- tornou-se possível com o advento
mação pessoal é de- do processamento
“O tratamento de dados
finida comumente automatizado de in-
pessoais, em particular por
como a informação formações, por meio
processos automatizados,
referente a uma pes- é uma atividade de risco.” de bancos de dados
soa determinada ou automatizados. O
determinável 7
,  apresentando uma aumento no volume de tratamen-
ligação concreta com  essa pessoa. to de informações pessoais assim
Ela é capaz, portanto, de revelar algo possibilitado não foi, porém, mera-
concreto sobre uma pessoa. mente quantitativo, pois resultou
Assim, a informação pessoal na viabilização de várias práticas
refere-se a uma série de atributos de coleta, tratamento e utilização
que podem ser ligados a uma pes- de informações pessoais que antes,
soa, desde características ou ações com arquivos manuseados manu-
que lhe são atribuídas em confor- almente, eram impossíveis ou sem
midade com a lei, caso do nome ci- justificativas. Em síntese, aumen-
vil ou do domicílio, como também tando-se a capacidade de armaze-
informações provenientes de seus namento e comunicação de infor-
atos, tais quais os dados referentes mação, cresce também a variedade
ao seu consumo, informações re- de formas pelas quais ela pode ser
ferentes às suas manifestações, às apropriada ou utilizada. Quanto
opiniões que manifesta, além de ca- maior sua maleabilidade e utilida-
racterísticas pessoais e tantas ou- de, mais ela se torna elemento fun-
tras. É importante estabelecer esse damental de um crescente número
vínculo concreto e direto, pois ele de relações e aumenta sua possibi-
afasta outras categorias de infor- lidade de influir em nosso cotidia-
mações que, embora também pos- no, em um crescente que tem como
sam ter alguma relação com uma pano de fundo a evolução tecnológi-
pessoa, não seriam propriamente ca e, especificamente, a utilização
informações pessoais: as opini- de computadores para o tratamento
ões alheias sobre uma pessoa, por de dados pessoais, conforme notou
exemplo, não possuem o vínculo Stefano Rodotà ainda em 1973: “(...)
concreto e direto; do mesmo modo a novidade fundamental introduzi-
que a produção intelectual de uma da pelos computadores é a transfor-
pessoa, em si considerada, não é per mação  de informação dispersa em
se informação pessoal (embora o informação organizada”8.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 141

4. T écnicas regulatórias para o por definição, representam atributos


problema dos dados pessoais de uma pessoa identificada ou iden-
O tratamento de dados pessoais, tificável e, portanto, mantém uma
em particular por processos auto- ligação concreta e viva com a pessoa
matizados, é uma atividade de risco. que é titular de tais dados.
Risco que se concretiza na possibili- Os dados pessoais são indisso-
dade de exposição e utilização inde- ciáveis da pessoa e, portanto, como
vida ou abusiva de dados pessoais; na tal devem ser tratados, justificando
eventualidade dos dados não serem o recurso a instrumentos jurídicos
corretos e representarem erronea- fortes para a tutela da personalidade
mente seu titular; em sua utilização e afastando a utilização de um re-
por terceiros sem o conhecimento gime de livre apropriação, cessão e
de seu titular, somente para citar al- disposição contratual de dados que
gumas hipóteses concretas. Surge, não leve em conta sua caráter per-
assim, a necessidade de mecanis- sonalíssimo. Não é por outro motivo,
mos que proporcionem ao cidadão aliás, que diversos ordenamentos ju-
efetivo conhecimento e controle so- rídicos hoje consideram a proteção
bre seus próprios dados, que são ex- de dados pessoais como um direito
pressão direta de sua própria perso- fundamental - indispensável para
nalidade. Por esse motivo, a proteção efetivar a liberdade da pessoa nos
de dados pessoais é tida em diversos meandros da Sociedade da Informa-
ordenamentos jurídicos como um ção. A proteção de dados pessoais
instrumento essencial para a prote- apresenta-se como modalidade de
ção da pessoa humana e  é conside- regulação da utilização da informa-
rada  como um direi- ção pessoal durante o
“Os dados pessoais são
to fundamental. seu tratamento, isto é,
indissociáveis da pessoa
A proteção de da- e, portanto, como tal nas várias operações
dos pessoais é, a bem devem ser tratados.” às quais ela pode ser
da verdade, uma ma- submetida após ter
neira indireta de atingir um objetivo sido colhida por uma forma qual-
último, que é a proteção da pessoa. quer. Perdido o vínculo que poderí-
Ao estabelecer um regime de obri- amos descrever como “físico” com
gações para os responsáveis pelo seu titular, portanto, a informação
tratamento de dados pessoais, bem pessoal continua ligada a ele atra-
como de direitos para os titulares vés  de um vínculo jurídico, deter-
desses, não se está meramente regu- minado pelas normas de proteção
lando algo externo à pessoa, porém a de dados pessoais e justificado pela
representação direta da sua própria identidade da informação com a pró-
personalidade. Os dados pessoais, pria pessoa.
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Com esse pano de fundo desenvol- dos centros de processamento de dados que
veram-se, nas últimas quatro décadas, di- inviabilizaram o controle baseado em um
versas normativas destinadas a regular a regime de autorizações. A segunda geração
utilização de dados  pessoais, que ficaram de leis sobre a matéria surgiu no final da dé-
conhecidas como normas sobre prote- cada de 1970, já com a consciência da “diás-
ção de dados pessoais, conforme examina- pora” dos bancos de dados informatizados.
remos a seguir. Pode-se dizer que o seu primeiro grande
exemplo foi a lei francesa de proteção de
5. Desenvolvimento e evolução da dados pessoais de 1978, que tratava especi-
legislação de proteção de dados ficamente de Informatique et Libertées.
O tratamento autônomo da proteção A diferença básica dessas leis das an-
de dados pessoais é uma tendência hoje teriores é que sua estrutura não está mais
fortemente enraizada em diversos ordena- fixada em torno do fenômeno computacio-
mentos jurídicos, desde há cerca de qua- nal em si, mas se baseia na consideração da
tro décadas. A mudança do enfoque dado à privacidade e na proteção dos dados pes-
proteção de dados nesse período pode ser soais como uma liberdade negativa, a ser
entrevisto na classificação evolutiva das exercida pelo próprio cidadão. Uma terceira
leis de proteção de dados pessoais realizada geração de leis, na década de 1980, procurou
por Viktor Mayer-Scönberger9, que vislum- sofisticar a tutela dos dados pessoais, que
bra diferentes gerações de leis que partem continuou centrada no cidadão, porém pas-
desde um enfoque mais técnico e restrito sou a abranger mais do que a liberdade de
até a abertura a técnicas  mais específicas, fornecer ou não os próprios dados pessoais,
aplicáveis às tecnologias adotadas para o preocupando-se também em garantir a efe-
tratamento de dados. tividade dessa liberdade. A proteção de da-
A primeira dessas gerações de leis di- dos é vista, por tais leis, como um processo
rigia-se para um cenário no qual centros de mais complexo, que envolve a participação
processamento de dados, de grande porte, do indivíduo na sociedade e leva em consi-
concentrariam a coleta e gestão dos dados deração o contexto no qual lhe é solicitado
pessoais. Essas leis giravam em torno da que revele seus dados, estabelecendo meios
concessão de autorizações para a criação de de proteção para as ocasiões em que sua li-
bancos de dados e do seu controle posterior berdade de decidir livremente é cerceada
por órgãos públicos. Também enfatizavam por eventuais condicionantes – proporcio-
o controle do uso de informações pessoais nando o efetivo exercício da autodetermi-
pelo Estado e pelas suas estruturas admi- nação informativa.
nistrativas, que eram o destinatário princi- A autodeterminação informativa sur-
pal (quando não o único) dessas normas. giu basicamente como uma extensão das
As leis de proteção de dados de primei- liberdades presentes nas leis de segunda
ra geração não demoraram muito a se torna- geração, e são várias as mudanças especí-
rem ultrapassadas, diante da multiplicação ficas, nesse sentido, que podem ser iden-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 143

tificadas na estrutura dessas novas leis. O soluções legislativas sobre a matéria em


tratamento dos dados pessoais era visto diversos países. O núcleo básico dos princí-
como um processo que não se encerrava na pios de proteção de dados que até hoje são
simples permissão ou não da pessoa à uti- utilizados tem a sua origem nas discussões
lização de seus dados pessoais, procurando que, na década de 1960, originaram-se, por
incluí-la em fases sucessivas do processo sua vez, da tentativa do estabelecimento
de tratamento e utilização de sua própria do National Data Center, um gigantesco e
informação por terceiros, além de com- jamais realizado banco de dados sobre os
preender algumas garantias, como o dever cidadãos norte-americanos para uso da
de informação. administração federal. No início da década
Entre suas características está a disse- de 1970, a Secretary for Health, Education
minação do modelo das autoridades inde- and Welfare (HEW) reuniu uma comissão
pendentes para a tutela dos dados pessoais de  especialistas que divulgou, em 1973,
– tanto mais necessárias com a diminuição estudo que concluiu pela necessidade de
do poder de “barganha” com o indivíduo relação direta entre a privacidade e os tra-
para a autorização ao processamento de tamentos de dados pessoais, além de esta-
seus dados, e também o surgimento de nor- belecer a regra do controle sobre as pró-
mativas conexas na forma, por exemplo, prias informações:
de normas específicas para alguns setores A privacidade pessoal de um indivíduo
de processamento de dados (para o setor é afetada diretamente pelo tipo de divul-
de saúde ou de crédito ao consumo). Hoje, gação e utilização que é feita das informa-
pode-se afirmar que tal modelo de prote- ções registradas a seu respeito. Tal registro,
ção de dados pessoais é representado pelos contendo informações sobre um indivíduo
países europeus que transcreveram para identificável deve, portanto, ser adminis-
seus ordenamentos as Diretivas europeias trado com procedimentos que permitam a
em  matéria de proteção de dados, em es- este indivíduo ter o direito de participar na
pecial a já  mencionada Diretiva 95/46/CE sua decisão sobre qual deve ser o conteúdo
e a Diretiva 2000/58/CE (conhecida como deste registro e qual a divulgação e utili-
Diretiva sobre privacidade e as comunica- zação a ser feita das informações pessoais
ções eletrônicas). nele contida. Qualquer registro, divulgação
e utilização das informações pessoais fora
6. P rincípios de proteção de dados destes procedimentos não devem ser per-
pessoais mitidas, por consistirem em uma prática
É possível agrupar os objetivos e con- desleal, a não ser que tal registro, utilização
tornos das principais leis de proteção  de ou divulgação sejam autorizados por lei.10
dados pessoais em torno de alguns prin- Uma concepção como essa requer
cípios comuns, presentes em vários orde- que sejam estabelecidos meios de garantia
namentos, através dos quais podemos ve- para  o cidadão, que efetivamente vieram
rificar uma interessante convergência das descritos como:
Uma legislação
específica no Brasil
viria a suprir esta
lacuna regulatória, ao
mesmo tempo em que
aproximaria o marco
legislativo brasileiro de
uma tendência seguida,
em dados de 2013, por
outros 101 países que
possuem suas próprias
leis de proteção de
dados pessoais.”
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

- Não deve existir um sistema de ar- É possível elaborar uma síntese desses
mazenamento de informações pessoais princípios:
cuja existência seja mantida em segredo. 1. Princípio da transparência, pelo
- Deve existir um meio para um qual o tratamento de dados pessoais não
indivíduo descobrir quais informações pode ser realizado sem o conhecimento
a seu respeito estão contidas em um re- do titular dos dados, que deve ser informado
gistro e de qual forma elas são utilizadas. especificamente sobre todas as informações
- Deve existir um meio para um relevantes concernentes a esse tratamento.
indivíduo evitar que a informação a 2. Princípio da qualidade, pelo qual
seu  respeito colhida para um determi- os dados armazenados devem ser fieis à
nado fim seja utilizada ou disponibili- realidade, atualizados, completos e rele-
zada  para outros propósitos sem o seu vantes, o que compreende a necessidade de
conhecimento. que sua coleta e seu tratamento sejam fei-
- Deve existir um meio para um in- tos com cuidado e correção, e que sejam re-
divíduo corrigir ou retificar um registro alizadas  atualizações periódicas conforme
de informações a seu respeito. a necessidade.
- Toda organização que estrutu- 3. Princípio da finalidade, pelo qual
re,  mantenha, utilize ou divulgue regis- qualquer utilização dos dados pessoais deve
tros  com dados pessoais deve garantir obedecer à finalidade comunicada ao inte-
a confiabilidade desses dados para os ressado antes da coleta dos mesmos. Esse
fins  pretendidos e deve tomar as devi- princípio possui grande relevância prática:
das  precauções para evitar o mau uso com base nele fundamenta-se a restrição da
desses dados11. transferência de dados pessoais a terceiros,
além disso, torna-se possível, a partir dele,
Tais regras apresentaram um conjunto estruturar um critério para valorar a razo-
de medidas que passou a ser encontrado em abilidade da utilização de determinados
várias normativas sobre proteção de dados dados para certa finalidade (fora da qual ha-
pessoais, referidas, a partir de então, como veria abusividade).
Fair Information Principles, uma espécie de 4. Princípio do livre acesso, pelo qual
“núcleo comum” entre diversas normativas o indivíduo deve ter acesso às suas informa-
sobre proteção de dados. Sua influência foi ções armazenadas em um banco de dados,
marcante, por exemplo, nos documentos podendo obter cópias desses registros; após
normativos mais influentes sobre a maté- esse acesso, e de acordo com o princípio da
ria da década de 1980, como a Convenção qualidade, as informações incorretas pode-
n.108 do Conselho da Europa (Convenção rão ser corrigidas, aquelas registradas inde-
de Strasbourg) e as Linhas-Guia da OCDE, vidamente poderão ser canceladas e aque-
ambas apresentadas no início da década de las obsoletas ou impertinentes poderão ser
oitenta (e atualmente em processo de revi- suprimidas, o mesmo pode se proceder a
são e atualização). eventuais acréscimos.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 147

5. Princípio da segurança física e uso de dados pessoais por empresas e pelo


lógica, pelo qual os dados devem ser prote- Estado é percebida como necessária para
gidos por meios técnicos e administrativos a manutenção das liberdades pessoais, ao
adequados contra os riscos de seu extravio, mesmo tempo em que confirma que essas
destruição, modificação, transmissão ou mudanças podem coexistir - e mesmo in-
acesso não autorizado. centivar - a utilização de dados pessoais
Há diversas modificações e adaptações para atividades e fins lícitos e tidos como
desses princípios, quase sempre geradas a úteis pela sociedade. O estabelecimento de
partir do mesmo núcleo comum. Assim, por regras para o tratamento de dados pessoais
exemplo, leis como a alemã tratam de um resultará, certamente, em  uma limitação
princípio da necessidade, que vincularia o das possibilidades de utilização de dados
tratamento de dados pessoais quando es- pessoais por empresas e Estado. Eventu-
tes forem estritamente necessários para se almente, a adaptação de práticas e proces-
atingir a um determinado objetivo legítimo, sos já existentes e em operação pode refletir
princípio esse aparentado com o princípio em custos de adaptação. Por outro lado, a
da proporcionalidade. mera existência de regras  apresenta tam-
bém vantagens  para as atividades ligadas
7. A Proteção de Dados Pessoais no aos dados pessoais.
Brasil Em primeiro lugar, ganha-se em segu-
Conforme observado, os desafios hoje rança jurídica para atividades que tratam
lançados pela farta utilização de dados pes- dados pessoais de forma não lesiva aos in-
soais na Sociedade da Informação trazem teresses dos cidadãos e em conformidade
à tona a discussão sobre a necessidade da à lei, ao mesmo tempo em que o recurso a
sua regulação, de forma a garantir o equi- práticas mais responsáveis de tratamen-
líbrio dos interessem em jogo e a primazia to de dados pessoais pode funcionar como
dos direitos individuais em situações nas um instrumento para aumentar a confiança
quais o cidadão pode ser francamente pre- na  relação entre o cidadão e empresas ou
judicado por perder o controle sobre seus mesmo o Estado.
próprios dados pessoais. Nesse sentido, Há, ainda, a vantagem de que uma
uma legislação específica no Brasil viria a normativa de proteção de dados que
suprir esta lacuna regulatória, ao mesmo seja compatível com normas estrangei-
tempo em que aproximaria o marco legis- ras sobre o tema possa favorecer o fluxo
lativo brasileiro de uma tendência seguida, de informações pessoais entre o Brasil e
em dados de 2013, por outros 101 países que outros países. Isso se dá pelo fato de di-
possuem  suas próprias leis de proteção de versas normativas estabelecerem limites
dados pessoais12. e proibições para o envio de dados pes-
O fato de tais legislações serem cada soais de cidadãos de seus países para pa-
vez mais comuns confirma que a necessi- íses que não possuam normas de prote-
dade de mudanças de práticas de coleta e ção de dados consideradas compatíveis.
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Essa medida, que visa proteger ci- pessoais é, mais do que um mero as-
dadãos de que seus dados pessoais pecto do exercício da autonomia pri-
sejam tratados de maneira diferente vada, condição fundamental para o
em países nos quais há menos direi- exercício de toda uma série de liber-
tos e garantias em relação a isso, aca- dades individuais, desde a sua pri-
ba funcionando também como uma vacidade até outros aspectos essen-
limitação a transações comerciais ciais de suas liberdades individuais.
internacionais que envolvam o envio A confirmação do cidadão
de dados pessoais. como o único sujeito que pode, legi-
Esse é um exemplo de como a timamente, tomar decisões sobre as
harmonização da legislação brasilei- modalidades de tratamento de seus
ra com padrões internacionais esta- próprios dados pessoais, juntamente
belecidos de proteção de dados pes- com a instituição de instrumentos
soais é tanto um instrumento capaz de monitoramento e de tutela capa-
de adequar a tutela da privacidade zes de coibir, efetivamente, os trata-
e de liberdades individuais do ci- mentos abusivos de dados pessoais,
dadão brasileiro aos novos desafios consolida as bases para que o direito
da Sociedade da Informação, como à privacidade e a proteção de dados
tem papel de estrema relevância en- pessoais seja percebida como um
quanto instrumento capacitado em aspecto essencial da liberdade con-
fortalecer o setor privado brasilei- temporânea.
ro na busca de uma legislação mais A elaboração de outras ins-
adaptada aos atuais padrões inter- tâncias de controle sobre o fluxo de
nacionais. dados pessoais, que vêm sendo pro-
postas como medidas que visam a
Conclusão garantir a soberania nacional sobre a
A proteção de dados pessoais é segurança e sigilo das comunicações
um elemento fundamental no atual na internet frente ao seu monitora-
debate que procura estabelecer as mento, deve se coadunar com uma
salvaguardas necessárias para que perspectiva geral da matéria, na qual
as prerrogativas de liberdade e au- sejam endereçados tanto os proble-
tonomia privada sejam mantidas na mas referentes à privacidade de ca-
Sociedade da Informação, na qual as ráter individual - fortalecendo sua
relações de poder passam cada vez percepção pela Sociedade como um
mais pelo conhecimento e contro- direito fundamental - assim como
le do fluxo de dados pessoais. Nela, por medidas que favoreçam técni-
para o cidadão, manter a autono- ca e juridicamente um ambiente no
mia  de realizar as decisões funda- qual o monitoramento e a vigilância
mentais  sobre seus próprios dados não sejam a regra.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 149

Danilo Doneda
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor na
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador-Ge-
ral de Estudos e Monitoramento de Mercado da Secretaria Nacional do Consumidor
do Ministério da Justiça. Autor de livros e artigos sobre proteção de dados pessoais,
direito à privacidade e direito civil. 

1 PACKARD, Vance. The naked society. New York: McKay, 1964.

2 ELLUL, Jacques. La technique ou l’enjeu du siècle. Paris: Armand Colin, 1954; ____.
Le bluff technologique. Paris: Hachette, 1988.

3 MILLER, Arthur Miller. Assault on privacy. Ann Arbor: University of Michigan, 1971.

4 Como, por exemplo, na Convenção n. 108 do Conselho da Europa.

5 Conforme a célebre menção feita pela comissária da União Europeia para os


Consumidores, Meglena Kuneva: “Personal data is the new oil of the internet and
the new currency of the digital world”. Disponível em: <http://migre.me/iVp89>.
Acesso em: 6 abr. 2014.

6 “information is information not matter or energy”. Norbert Wiener. Cybernetics.


Cambridge: MIT Press, 1961.

7 Essa é a base da definição presente tanto no Art. 2 da Convenção n. 108 do


Conselho da Europa para a proteção dos indivíduos em relação ao processamento
automatizado de dados pessoais, como no Art. 1 das Linhas-Guia da OCDE sobre
preteção da privacidade e fluxos transfronteiriços de dados pessoais (“personal
data” means any information relating to an identified or identifiable individual
(‘data subject’)“). Essa base foi assimilada pela Diretiva Europeia 95/46/CE em
seu Art. 2º, que define como “‘Dados pessoais” “qualquer informação relativa
a uma pessoa singular identificada ou identificável («pessoa em causa»); (…)”.
Tal disposição encontra-se incorporada nas várias normativas europeias sobre
o tema, por exemplo no Art. 3º da Lei da Proteção de dados (Lei nº 67/98) de
Portugal ou no § 3 (1) da Lei Federal de Proteção de Dados da Alemanha.
150 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

8 Stefano Rodotà. Elaboratori elettronici e controllo sociale. Bologna: Il Mulino, 1973,


p. 14.

9 Viktor Mayer-Scönberger. General development of data protection in Europe. In:


Technology and privacy: The new landscape. Phillip Agre, Marc Rotenberg (Org.).
Cambridge: MIT Press, 1997, p. 219-242.

10 E.U.A., Records, computers and the rights of citizens. Report of the Secretary’s
Advisory Committee on Automated Personal Data Systems, 1973. Disponível em:
http://migre.me/iZRi7. Acesso em: 20 abr. 2014. Tradução nossa.

11 idem.

12 Graham Greenleaf. Sheherezade and the 101 Data Privacy Laws: Origins,
Significance and Global Trajectories. In: Journal of Law, Information & Science,
2013. Disponível em: <http://migre.me/iVphv>. Acesso em: 6 abr. 2014.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Danilo Doneda 151
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A EXPANSÃO E O ABUSO DO DIREITO


À PRIVACIDADE AMEAÇAM A
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Dave Heller

Bastante atenção foi dada a perda de privacidade devido à Internet e outras tecnologias.
Mas no que se refere aos jornalistas e autores, há uma narrativa separada na qual a privaci-
dade está ainda longe de morrer. Ao contrário disso, as leis de privacidade se tornaram uma
teoria legal incômoda e crescente, utilizadas para atormentar e desencorajar a liberdade de
expressão pelo mundo. Essas leis de privacidade criaram uma armadilha a ser desfeita por
aqueles que procuram falar e informar o público. Ao invés de recuar, essas leis parecem estar
se expandindo e suas incertas aplicações são um convite à autocensura.

N
os últimos anos, muita tinta foi legal incômoda e crescente, utilizadas para
gasta na discussão sobre a morte atormentar e desencorajar a liberdade de
da privacidade nas mãos da In- expressão pelo mundo.
ternet e de outras novas tecnologias1. Além Imagine as seguintes situações.
da habitual queda de braço, os legisladores 1. Uma ONG dedicada ao avanço dos
estão buscando maneiras para aumentar a direitos humanos e dos processos demo-
proteção da privacidade, principalmente cráticos gastou meses fazendo entrevistas e
a Comissão Europeia, que propôs um “di- reunindo informações para expor um gran-
reito de ser esquecido,” como parte de uma de esquema de corrupção em uma nação
abrangente atualização das leis de prote- africana. A prova da corrupção existe na
ção de dados da Europa.2 Além disso, o es- forma de recibos de transações de cartão de
cândalo da NSA e os temores de vigilância crédito e contratos. Pouco antes da publica-
excessiva do governo e a ansiedade estão ção, o alvo de tal investigação inicia um pro-
crescendo sobre um Estado de segurança cesso para que a publicação não ocorra. Por
nacional de modo geral. Entretanto, no que quê? Porque o alvo da investigação, um alto
se refere aos jornalistas e autores, há uma funcionário de uma empresa petrolífera es-
narrativa separada na qual a privacidade tatal, alega que a ONG violou sua privacida-
está ainda longe de morrer. Ao contrário, as de ao obter acesso e ao revelar os dados das
leis de privacidade se tornaram uma teoria transações de seu cartão decrédito.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 153

2. Um autor passa anos pesquisan- cionados no artigo processa a publicação


do e escrevendo sobre a vida de um músico por danos morais. Por quê? Ele alega que as
contemporâneo popular. Depois de o livro afirmações sobre o seu finado pai afetam o
ser publicado o músico o processa, com a seu próprio direito à privacidade, que é as-
finalidade de retirar os livros das pratelei- segurado pela Convenção Europeia de Di-
ras. Por quê? O músico alega que uma bio- reitos Humanos.
grafia verídica, mas não autorizada, viola a 5. Um criador de jogos de videoga-
sua privacidade. me cria um jogo esportivo ficcional e inte-
3. Uma mulher escreve uma biogra- rativo, no qual há referências sobre atletas
fia verídica sobre sua relação com um alto reais. Vários atletas o processam por danos
funcionário do governo. Ela é acusada de in- morais. Por quê? Eles alegam que o jogo
vasão de privacidade e o livro é retirado de viola  suas privacidades ao apresentar se-
circulação. Por quê? O livro viola o  direito melhanças físicas e utilizar suas informa-
do funcionário de ter uma vida privada. ções estatísticas.
4. Uma revista publica uma história 6. Empreendedores da web criam
sobre a celebração de um evento históri- uma plataforma online para compartilha-
co da Segunda Guerra Mundial e sobre as mento de vídeos. Executivos da empresa
atividades de vários homens que não estão são acusados do crime de invasão de priva-
mais vivos. O filho de um dos falecidos men- cidade. Por quê? Sem o conhecimento deles,
154 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

um terceiro carregou um vídeo ofen- foi processada por funcionários da


sivo de alguma natureza. Embora a BSG Resources Ltd., uma das maio-
empresa  tenha atuado rapidamente res mineradoras de diamantes do
para apagar o vídeo, ela foi processa- mundo. Os funcionários da minera-
da como se o tivesse criado. dora alegam que o relatório violou
Todas essas situações, claro, a privacidade, tendo em vista o Ato
não são imaginárias, tratam-se de de Proteção de Dados do Reino Uni-
exemplos de alegações reais contra do, e buscam reaver os documentos
ONGs, jornalistas, autores, direto- originais, bem como saber a iden-
res de entretenimento e provedo- tidade das fontes confidenciais da
res de serviços de internet em nome Global Witness4.
da “privacidade. Bancos e outras empresas de
A fundamentação do primeiro serviços financeiros devem tratar
exemplo é o litígio de 2007 entre a os dados financeiros com cuidado.
Global Witness e Denis Christel Sas- Mas o que acontece quando tais in-
shou-Nguesso, filho do presidente da formações oferecem jornalismo de
República do Congo. O Congo é um interesse público? Deveria a editora
dos países mais pobres do mundo, e ser punida? Deveria a fonte do vaza-
os documentos revelados pela Glo- mento da informação ser punida e
bal Witness mostraram que Sassou- eliminada da empresa? Se as fontes
-Nguesso estava gastando centenas podem ser identificadas e punidas,
de milhares de dólares fazendo com- o fluxo de informação ao público
pras na Europa, presumivelmente certamente diminuirá em nome da
com dinheiro sacado da empresa de privacidade. À medida que a Comis-
petróleo estatal na qual ele trabalha- são Europeia avança com novas leis
va. Sassou-Nguesso de privacidade, o
“Entretanto, no que se refere
processou a Global desafio consiste em
aos jornalistas e autores, há
Witness, em Lon- escrever as regras
uma narrativa separada na
dres. Por fim, o caso qual privacidade está ainda para que estejam de
foi arquivado, mas longe de morrer.” acordo com a meta
não sem o desper- de proteger infor-
dício de esforços, tempo e honorá- mações confidenciais sem sufocar a
rios advocatícios3. divulgação de informações de inte-
Esse tipo de processo contra a resse público.
Global Witness é uma cena recor- A fundamentação do segun-
rente. Em 2013, depois de publicar do exemplo é bastante conhecida
um relatório sobre os contratos dos brasileiros – a bem sucedida ba-
irregulares de mineração de dia- talha legal iniciada por Roberto
mantes na Guiné, a Global Witness Carlos para conseguir retirar das
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 155

prateleiras as cópias de sua biogra- experiências da autora, o direito à


fia não autorizada Roberto Carlos em privacidade do Primeiro-Ministro
detalhes. A lei brasileira não permite superou o direito da ex-namorada
a publicação de biografias não auto- de contar a sua história. A decisão
rizadas, não apenas pela informação foi levada à Corte Europeia de Direi-
que revelam, mas também devido tos Humanos, que julgou o resultado
ao fato de entender-se que terceiros um balanço aceitável entre o direito
não deveriam lucrar com biografias à privacidade do Primeiro-Ministro
que não tenham a participação di- contra o direito de livre expressão de
reta do sujeito de narrativa. Mesmo sua ex-namorada6.
hoje, músicos brasileiros famosos Não é tão óbvio que esses dois
estão fazendo campanha para man- interesses devam ser equilibrados. A
ter as restrições das leis de privaci- vida privada de um alto funcionário
dade contra as biografias nessa visão público não é só relevante para a exe-
ampla da privacidade. Além disso, cução de suas atividades, mas tam-
essa lei possui dimensões interna- bém para o direito dos eleitores de
cionais: uma biografia publicada nos submeter seus líderes a um escrutí-
Estados Unidos sobre a socialite bi- nio completo. Isso se daria depois da
lionária Lily Safra foi banida no Bra- clássica função de cão-de-guarda da
sil por violar seus direitos à privaci- imprensa: o julgamento da Comissão
dade e os de seu irmão, morto antes Europeia de Direitos Humanos não
da publicação do livro5. Revendedo- repete qualquer detalhe ofensivo do
res online como a Amazon estão cor- livro, mas aparentemente inclui um
rendo certo risco, caso os brasileiros elogio do Primeiro-Ministro ao bei-
comprem livros dos Estados Unidos. jo de sua ex-namorada como tendo o
O terceiro exemplo é baseado sabor “melhor do que de batatas as-
no processo movido contra Susan sadas.” O público finlandês pareceu
Ruusunen, por escrever o livro A considerar essa notícia a partir de
Noiva do Primeiro Ministro, que re- seu valor, e a reputação do Primei-
trata a sua relação de dez meses com ro-Ministro de fato cresceu depois
o então Primeiro-Ministro da Fin- dessa revelação7. Entretanto, o re-
lândia. A Suprema-Corte finlandesa sultado legal apontou que os jorna-
reconheceu que os funcionários de- listas deveriam se furtar a discutir a
vem tolerar uma quantidade maior vida privada dos altos funcionários
de escrutínio público. Entretanto, do governo, ou assumirem o risco de
a corte julgou que o livro foi longe cruzarem essa barreira.
demais ao recontar detalhes do re- A imprensa francesa está atu-
lacionamento e da vida íntima do almente forçando as fronteiras da
casal. Embora essas também fossem lei para informar ao público sobre
157
158 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

a vida de seu Primeiro-Ministro, mas o credenciais oficiais, mas que, no entanto,


custo  por isso pode ter de ser pago mais compartilham informações valiosas com o
tarde  em honorários legais por danos mo- público. Aqui, os tribunais julgaram que a
rais advindos de processos com base na lei lei de privacidade lhes permitia atuar como
de privacidade8. editor e apagar seções de livros escritos por
O caso Ruusunen é também similar a escritores novatos.
um caso existente na Inglaterra. Em 2006, O quarto exemplo é baseado em um
as cortes inglesas efetivamente baniram a caso ucraniano recentemente ouvido pela
publicação das memórias de Niema Ash, Corte Europeia de Direitos Humanos. O
que descreviam sua amizade com a famo- pleiteante alegou ter sido ofendido por um
sa cantora Lorena McKennitt. As duas artigo de uma revista, na ocasião do 60º
mulheres foram amigas por muitos anos, aniversário de um infame jogo de futebol
desde que a cantora era uma musicista que da época da 2ª Guerra Mundial, entre o Dy-
vagava pelas ruas de Londres até se desen- namo de Kiev e as tropas alemãs que ocu-
tenderem. Os tribunais consideraram que pavam o país. Nesse chamado “jogo da mor-
o livro violou o direito da famosa cantora à te,” os jogadores do Dynamo ganharam dos
privacidade, ao revelar informações sobre a alemães, mas muitos foram assassinados
sua vida e os seus relacionamentos. Era, por posteriormente em retaliação. O artigo su-
exemplo, proibido revelar como a senhora geriu que alguns dos jogadores ucranianos
McKennitt escolheu decorar uma casa de colaboraram com os alemães e o pai do plei-
veraneio na Irlanda com beliches; foi tam- teante havia jogado a partida. Os tribunais
bém proibido discutir a reação da cantora à ucranianos rejeitaram o caso, julgando, de
morte de seu noivo, embora tal morte tenha modo sensato, que o pleiteante não havia
sido relatada na imprensa9. sido diretamente afetado pela publicação.
Ambos os tribunais, dos casos Ruusu- A Corte Europeia decidiu, de modo surpre-
nen e McKennitt, julgaram significante que endente, ouvir o apelo. A Corte Europeia
as figuras públicas as quais os livros se re- de Direitos Humanos rejeitou as alegações
feriam controlavam suas imagens públicas. do pleiteante sobre os fatos do caso. Mas o
O interesse em controlar a imagem pública tribunal aceitou que as afirmações sobre
foi o fundamento para dar maior proteção eventos históricos e os mortos podem violar
à privacidade – um resultado problemá- os direitos à privacidade dos vivos.
tico para uma perspectiva de expressão O tribunal aceitou “que a reputação de
livre. E os tribunais pouco consideraram um falecido membro da família de alguém
o direito dos autores de contar ao mundo pode, sob certas circunstâncias, afetar a
suas próprias histórias de vida – especial- identidade e a vida privada de uma pessoa
mente por eles terem uma posição pública e, por isso, poderia ser enquadrado no 8º
inferior a das personagens que retratavam. Artigo”10. Em outras palavras, a obrigação
Essa é uma notícia preocupante para os do Estado de proteger a vida privada dos
jornalistas autônomos que não possuem vivos  pode agora incluir evitar afirmações
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 159

difamatórias sobre os mortos. Sob essa re- poderia igualmente se aplicar a afirmações
gra, os jornalistas e os autores, quando dis- sobre religião, etnicidade ou sexualidade,
cutirem eventos históricos agora, devem caso qualquer vaga interferência à “vida
estar atentos à possibilidade de ofenderem privada” seja a pedra de toque da privacida-
os descendentes vivos das figuras históri- de. Essa seria a próxima fronteira da lei de
cas. Como isso poderia ser aplicado à prá- privacidade europeia? Em caso positivo, a
tica? Será que os obituários deveriam ser livre expressão, como a conhecemos agora,
verificados minuciosamente a fim de eli- estaria ainda mais limitada.
minar informações que possam ser vergo- A Convenção Europeia foi adotada à
nhosas para os membros vivos da família? sombra da 2ª Guerra Mundial e a proteção
Será que as biografias de figuras históricas dada à vida privada pelo artigo 8º foi conce-
deveriam ser editadas para evitar ofender bido para proteger os indivíduos da vigilân-
os descendentes? O direito à reputação é cia estatal e de suas buscas. Como escrito
geralmente considerado um direito pessoal pelo juiz Sedley: “era 1950 e eles estavam
que não sobrevive à morte, o que abre bre- pensando no informante que estava na casa
cha para a discussão de eventos históricos. ao lado, a polícia secreta, no bater na porta
E evita o problema de uma memória hesi- durante a noite”11. Os seus produtores cer-
tante e os problemas relacionados à produ- tamente achariam irônico que em uma era
ção de provas. de ansiedade com relação à vigilância esta-
Imagine, então, o estranhamento cau- tal, o artigo 8º viesse a ser mais conhecido
sado por uma determinação judicial desse pela extensão da proteção da privacidade à
processo de difamação/privacidade. O tri- bem asseada imagem de figuras públicas e
bunal teria que, primeiro, fazer um julga- talvez até mesmo à memória dos mortos.
mento de difamação da reputação do morto. O quinto exemplo é baseado em casos
Será que as afirmações sobre o morto te- recentes nos Estados Unidos. Em 2013, dois
riam de ser presumidas como sendo falsas tribunais federais decidiram que os “direi-
como é o caso em muitas leis sobre difa- tos de publicidade” de atletas universitários
mação? E dada a passagem do tempo, seria tinham sido violados quando suas imagens
possível para um réu reunir fatos e teste- e informações estatísticas foram incluídas
munhas para construir sua defesa? Após em um jogo esportivo ficcional e interati-
isso, o tribunal teria de decidir se a difama- vo12. Os direitos de publicidade são um sub-
ção interferiu na vida privada do parente conjunto de direitos de privacidade sob a lei
sobrevivente. Se o direito à vida privada dos Estados Unidos. Embora os videogames
inclui o direito de ser protegido de afirma- não sejam vistos como arte, eles estão pro-
ções difamatórias sobre relacionamentos tegidos pela primeira emenda da consti-
anteriores, existe alguma razão de prin- tuição local enquanto obras de expressão.
cípio para parar diante das fronteiras das Mas os tribunais sustentaram que eles não
conexões familiares? Parece que a teoria de deveriam ter usado os atributos dos atletas
proteção da privacidade da Corte Europeia em sua narrativa. O resultado levanta ques-
160 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

tões sobre a proteção dada às figuras da natureza ofensiva de seu conteú-


reais em obras expressivas – uma do, e os réus não terem tido conhe-
característica comum de documen- cimento da existência do vídeo, o
tários e dramas-documentais. Será julgamento do tribunal decidiu que
que as figuras históricas poderiam os executivos teriam violado leis de
ser usadas em filmes e livros? Ou tal proteção da privacidade da Itália.
uso constitui uma invasão de priva- Eles foram multados e condenados a
cidade? Como colocado por um juiz penas alternativas de
discordante em tom de brincadeira: seis meses. “As leis de privacidade
pelo mundo criaram
“Sem o uso de filmagens reais, o fil- Em 2013, no
uma armadilha a ser
me Forrest Gump poderia ter sido entanto, uma corte
desfeita por aqueles
apenas uma caixa de chocolates.” de apelações rever- que procuram falar e
Talvez tivesse sido mais justo se os teu tal decisão, ao informar o público.”
atletas universitários tivessem uma entender que o tri-
parte dos lucros dos videogames, bunal tinha compreendido a lei de
mas a utilização da lei de privacida- privacidade erroneamente. O Goo-
de para alcançar tal fim inevitavel- gle argumentou, com sucesso, que
mente compromete a livre expres- a responsabilidade só poderia lhe
são. O entretenimento e as notícias ser atribuída se tivesse ignorado o
podem ser criados com a finalidade pedido da polícia de retirar o vídeo.
do lucro, mas isso é pouco relevante, Se esse princípio for retirado e sites
e tampouco pode ser um motivo para como o Blogger, Youtube, e todas as
limitar o direito do público de rece- redes sociais e todo mural comu-
ber informações. nitário, tornarem-se responsáveis
O último exemplo é baseado no por vetar todo o conteúdo que é co-
processo de Vivi Down contra o Goo- locado neles – todos os textos, fotos,
gle, na Itália, um caso que envolveu arquivos e vídeos – a web como co-
questões fundamentais da liberdade nhecemos deixará de existir, e muito
na internet. Em fevereiro de 2010, dos benefícios econômicos, sociais e
um tribunal italiano condenou três políticos trazidos por ela poderiam
executivos do Google por violação desaparecer14.
às leis de proteção da privacidade Entretanto, a vitória do Google
dos dados, porque o Google Vídeo não significa o fim do debate. Max
hospedou um vídeo ofensivo de Mosley, o ex-dirigente da Fórmula
um garoto autista em idade escolar 1, agora está processando o Goo-
sendo maltratado por seus colegas gle, na França e na Alemanha, a fim
de classe13. Embora o Google tenha de remover links do mecanismo de
removido o vídeo algumas horas de- busca que apresentem fotos e víde-
pois de ser informado pela polícia os constrangedores dele que ainda
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 161

estão na internet. Em 2008, Mosley Alemanha a apagar os resultados de


ganhou um processo sobre privaci- busca que levem a essas imagens16.
dade na Inglaterra contra o agora fe- Da mesma maneira, teorias sobre
chado tabloide News of The World15. a responsabilidade do mecanismo
O jornal e seus leitores julgaram se de busca foram litigadas na Amé-
tratar de um grande entretenimen- rica Latina por celebridades infeli-
to e tiveram interesse em saber que zes com os websites que aparecem
Mosley se vestiu com um uniforme em mecanismos de busca17. Mas, de
militar alemão para sessões sexuais modo mais agressivo, Max Mosley
de sadomasoquismo com prostitu- quer que o tribunal ordene ao Google
tas, dado que o pai de Mosley era o que construa um filtro automático
notório Oswald Mosley, um fascista que detectaria e bloquearia páginas
britânico e apoiador de Hitler du- com as imagens sem que tenha que
rante a Segunda Guerra Mundial. ser especificamente notificado por
O artigo, que explorava esse drama Mosley. Será que isso deve ser exigi-
psicológico incomum, intitulava-se do para proteger a privacidade? Isso
“Chefe da Fórmula 1 faz uma orgia dependeria de como os valores con-
nazista doentia com 5 prostitutas” correntes de privacidade e liberdade
e incluía fotos e vídeos que tinham de expressão na internet são vistos –
sido feitos secretamente durante as e como a privacidade é definida.
sessões. O tribunal inglês determi- Que lições podemos aprender
nou que Mosley iria receber 60 mil dessa jornada mundial ao redor do
libras esterlinas pelos danos advin- mundo com a lei de privacidade?
dos da violação de sua privacidade. Para começar, a dita morte da  pri-
O tribunal julgou que vacidade parece  ser
as sessões de sado- “(...) essas leis parecem grandemente exage-
masoquismo tinham estar se expandindo e suas rada. As leis de  pri-
um tema de campo incertas aplicações são um vacidade pelo mundo
prisional, mas não ti- convite à autocensura.” criariam uma arma-
nham explicitamente dilha a ser desfeita
uma temática nazista, como afirma- por aqueles que procuram falar e in-
do no artigo. Sob essa circunstância, formar o público – e colocaram bar-
não havia interesse público na reve- reiras econômicas e legais diante
lação de seu fetiche. das empresas que estão construin-
Mas o que deve ser feito agora, do a estrutura para a comunicação
com relação às vergonhosas fotos e em rede. Ao invés de recuar, essas
vídeos que permanecem acessíveis leis parecem estar se expandindo e
na web? Até agora, Mosley conseguiu suas aplicações incertas são um con-
condenar o Google na França e na vite à autocensura.
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ademais, quando falamos sobre priva- que celebrou Edward Snowden, não obs-
cidade, estamos falando de uma multiplici- tante o seu próprio histórico de desrespeito
dade de interesses, de identidade, dignida- à livre expressão e aos direitos humanos19.
de e solitude a preocupações sociais sobre o O escândalo do acesso a escutas telefônicas
uso de informações pessoais. O conceito de ilegais na Inglaterra acumulou uma quan-
privacidade assumiu significados e conota- tidade enorme de atenção, incluindo uma
ções tão diferentes em diferentes contex- longa investigação legal e pedidos para uma
tos legais e sociais que, em grande medida, varrição das novas regulamentações de im-
deixou de expressar qualquer conceito co- prensa feitas pelos governos20. Mas, ironi-
erente18. Esses interesses são informados camente, novas leis não foram necessárias
por meio da unicidade da história, cultura para tornar crime o que tinha ocorrido. Os
e valores de um dado país. Em um mundo editores e os jornalistas estão atualmente
globalmente conectado com publicações de sendo julgados na Inglaterra por escutas
além das fronteiras, os interesses de priva- ilegais, e numerosos policiais foram pre-
cidade e as leis das nações inevitavelmente sos por vender informações privadas para
colidem, criando profundas incertezas com tabloides. Esses espólios são puníveis sem
relação à lei que deve ser aplicada. necessidade de qualquer audiência do
Com o crescente desarranjo sobre o tipo  “verdade e reconciliação” para repre-
significado e o impacto das leis de privaci- ender a imprensa.
dade, os legisladores e os juízes devem agir Em uma declaração feita no dia de
com cautela. O “direito a ser esquecido” da Natal, Edward Snowden alertou que “uma
União Europeia não deve ser apenas limi- criança nascida hoje vai crescer sem qual-
tado como exigência do jornalismo, mas quer conceito de privacidade. Eles nunca
também pelas realidades econômicas do saberão o que significa ter um momento
e-commerce e das cambiantes atitudes cul- privado, um pensamento que não foi ana-
turais com relação ao compartilhamento de lisado. E isso é um problema, porque a pri-
informações. As regras de proteção de dados vacidade é importante, privacidade é o que
não deveriam ser escritas para que sejam nos permite determinar quem somos e
cinicamente usadas contra o jornalismo in- quem queremos ser”21.
vestigativo ou as investigações sobre o inte- A privacidade é importante. Mas se
resse público, feitas pelas ONGs. E os altos fracassarmos em entender devidamente, e
funcionários públicos e as celebridades não legislarmos com base no pânico, a privaci-
deveriam poder controlar suas imagens ao dade vai esmagar a liberdade de expressão e
custo da verdade e do interesse público. nós, inadvertidamente, estaremos criando
Estragos legítimos à privacidade não o nosso próprio 1984.
devem ser despudoradamente explorados
para restringir a imprensa e a livre expres-
são. O escândalo da NSA foi cinicamente
manipulado por países como o Equador,
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 163

Dave Heller
Advogado do Media Law Resource Center, em Nova York, onde escreve e dá
consultoria sobre variadas questões sobre as políticas e as leis de mídia.

1 Ver, por exemplo, ANDREWS, Lori. “I know who you are and I saw what you did:
Social Networks and the death of privacy, Free Press 2012; The end of privacy,
série especial da NPR (“Is privacy still possible? For a lot of people, the answer is
no.” Disponível em: http://migre.me/iVqet. Acesso em: 12 abr. 2014.

2 Ver o Relatório de 22 de Novembro de 2013 sobre a proposta para uma legislação


do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a proteção de indivíduos com
relação ao processamento de dados pessoais, e sobre o livre fluxo de tais dados
(Legislação Geral de Proteção de Dados). Disponível em: http://migre.me/iVqnS.
Acesso em: 12 abr. 2014.

3 Ver Denis Christel Sassou-Nguesso v. Global Witness Limited, Bailii, 2007.


Disponível em: http://migre.me/iVqzb. Acesso em: 12 abr. 2014. Ver também:
Congo: Is President´s son paying for designer shopping sprees with country´s oil
money?. Global Witness. Disponível em: http://migre.me/iVqEn. Acesso em: 12
abr. 2014.

4 Ver Global Witness fights misuse of data laws that threatens journalistic freedom.
Global Witness, Londres, 30 jan. 2014. Disponível em: http://migre.me/iVqHb.
Acesso em: 12 abr. 2014.

5 Ver VINCENT, Isabel. “Brazil´s biography laws smack of censorship” 26 out. 2013.
Disponível em: http://migre.me/iVqJe. Acesso em: 12 abr. 2014.

6 Ruusunen v. Finland, (Application no. 73579/10). Bailii. Disponível em: http://


migre.me/iVqMc. Acesso em: 12 abr. 2014.

7 Ver CONOLLY, Kate. Primeiro-Ministro finlandês melhora suas possibilidades com


um hábil manuseio de uma batata quente. The Guardian, Londres, 16 mar. 2007.
Disponível em: http://migre.me/iVqOf. Acesso em: 12 abr. 2014.

8 Ver HENRY, Samuel. Francois Hollande ‘mistress’ to sue French magazine for
invasion of privacy. The Telegraph, Londres, 15 jan. 2014. Disponível em: http://
migre.me/iVqQR. Acesso em: 12 abr. 2014.
164 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

9 Ver ENGLAND and Wales Court of Appeal (Civil Division) Decisions. Bailii.
Dispónível em: http://migre.me/iVqT0. Acesso em: 12 abr. 2014.

10 Ver Case of Putistin v. Ukraine. Bailii. Disponível em: http://migre.me/iVqVT.


Acesso em: 12 abr. 2014. Ver também “See Judge Dean Spielmann and Leto
Cariolou, The Right to Protection of Reputation Under the European Convention of
Human Rights, in Law in the Changing Europe (2008) em 422.

11 Ver The Law of Privacy and the Media (Oxford Univ. Press 2002) em vii.

12 Ver Hart v. Electronic Arts, Inc., 2013 WL 2161317 (21/5/2013) e Re NCAA Student
Athlete Name & Likeness, 724 F. 3d 1268.

13 Ver, por exemplo: APA, Ernesto. e POLLICINO, Oreste. Modeling the Liability of
Internet Service Providers: Google vs. Vivi Down. Itália: Egea, 2013.

14 Serious threat to the web in Italy. Google Blog, 24 fev. 2010. Disponível em: http://
migre.me/iVqYa. Acesso em: 12 abr. 2014.

15 Ver MOSLEY v News Group Newspapers Limiter [2008] EWHC 1777. Bailli.
Disponível em: http://migre.me/iVr4x. Acesso em: 12 abr. 2014.

16 Ver, por exemplo, KELLER, Daphne. Fightinf against a censorship machine. Google
Blog, 4 set. 2013. Disponível em: http://migre.me/iVr6p. Acesso em: 12 abr. 2014.

17 Ver BERTONI, E. Emerging Patterns in Internet Freedom of Expression:


Comparative Research Findings in Argentina and Abroad. Argentina, 19 out. 2010.
Disponível em: http://migre.me/iVr7W. Acesso em: 12 abr. 2014.

18 MCCARTHY. The Rights of Publicity and Privacy. Nova York: Clark Boardman
Callaghan, 1994. Ver também SOLOVE, Daniel. Understanding Privacy. Cambridge:
Harvard University Press, 2008. (“Currently, privacy is a sweeping concept,
encompassing (among other things) freedom of thought, control over one´s
body, solitude in one´s home, control over personal information, freedom from
surveillance, protection of one’s reputation, and protection from searches and
interrogations. Philosophers, legal theorists, and jurists have frequently lamented
the great difficulty in reaching a satisfying conception of privacy.”)

19 Relatório do comitê de proteção aos jornalistas do Equador. Disponível em: http://


migre.me/iVr9Q. Acesso em: 12 abr. 2014.

20 LEVESON INQUIRY: CULTURE, PRACTICE AND ETHICS OF THE PRESS, . 29 nov.


2012. Disponível em: http://migre.me/iVrcy. Acesso em: 12 abr. 2014

21 PITAS, Costas. Snowden warns of loss of privacy in Christmas message. Reuters,


25 dez. 2013. Disponível em: http://migre.me/iVreS. Acesso em: 12 abr. 2014.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Dave Heller 165
166 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

REVOLUÇÃO DE VELUDO
NA GESTÃO COLETIVA
DE DIREITOS AUTORAIS 1
Bruno Lewicki

A nova Lei da Gestão Coletiva, aprovada em 2013, é fruto de uma crise histórica e de
um longo processo de maturação. O ensaio defende que seu texto não leva a uma ruptura ins-
titucional, como acusa o status quo do Ecad. A lei apenas fornece as ferramentas para que
os criadores brasileiros possam retomar o controle de um sistema criado para atender seus
anseios, mas do qual eles acabaram alienados.

“Up from a dream of nightmarish proportions


Down to a size neither regal nor calm”
(Growing Up In Public, Lou Reed)

1. A Revolução de Veludo como analogia


Todos nos acostumamos ao sistema totalitário e os aceitamos como um fato incontorná-
vel, e assim o ajudamos a perpetuar-se. Em outras palavras, nós somos todos – ainda que, na-
turalmente, em medidas diversas – responsáveis pelo funcionamento da máquina totalitária.
Nenhum de nós foi apenas sua vítima. Nós também fomos seus coautores.2 (HAVEL, 1990)

E
ssas foram as duras e inesperadas palavras com que o dramaturgo Václav Havel,
primeiro presidente da Tchecoslováquia após a queda do Muro de Berlim, brin-
dou seus compatriotas no discurso de ano novo do primeiro dia de 1990. A oca-
sião era mais do que especial. Acabara de chegar a Praga o efeito dominó que, em curto
espaço de tempo e encarando graus variáveis de resistência, detonou os regimes em quase
todos os países que compunham a antiga Cortina de Ferro. A reviravolta tchecoslovaca foi
particularmente pacífica e, por isso – e sobretudo pela paixão de Havel e de seus amigos
pela banda Velvet Underground, capitaneada por Lou Reed – viria a ser conhecida como a
“Revolução de Veludo”.
Não convém confundir o chamamento de Havel em seu discurso com uma proposi-
ção de anistia ou absolvição dos líderes do regime substituído. O presidente queria apenas
lembrar ao povo que as pequenas inações de todos foram fundamentais para a longevida-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 167

de do regime, e que a “Revolução Gentil”, Ecad – Escritório Central de Arrecadação e


como   também ficou conhecida, não era Distribuição de Direitos Autorais.
um  presente divino que resolveria os pro- Com todos os limites próprios às ana-
blemas da sociedade da noite para o dia. logias, essa imagem é especialmente sedu-
Somente a ação e a dedicação de cada tche- tora por dois motivos. Em primeiro lugar
coslovaco  poderia levar a um novo  estado está a sutileza das mudanças propostas. Por
das coisas: mais que os dirigentes do sistema vigen-
te gritem contra as mudanças – chegando,
Seria muito despropositado enten- como veremos, ao paroxismo de questionar
der a triste herança dos últimos quaren- sua constitucionalidade junto ao Supremo
ta anos como algo alienígena, que algum Tribunal Federal – a verdade é que a nova
parente distante nos legou. Ao contrá- Lei não destruiu nem desconstruiu o siste-
rio, temos que aceitar esse legado como ma (como a maioria de seus opositores cla-
um pecado que nós cometemos con- mava em dada altura). Nada mudou como
tra  nós mesmos. Se o aceitarmos dessa em um passe de mágica, por mais ambicio-
forma, entenderemos que cabe a todos sos que sejam os seus desígnios e as mudan-
nós, e apenas a nós, fazer algo a esse res- ças que podem ser proporcionadas por eles.
peito.3 (HAVEL, 1990) Foi, nesse sentido, também ela uma “Revo-
lução Gentil”.
Por tudo isso, a Revolução de Veludo é O segundo motivo, que não deixa de
uma analogia irresistível à promulgação, no ser corolário do primeiro, é a serventia que
Brasil, da Lei 12.853/2013 – a Lei da Gestão a exortação de Havel tem para os autores
Coletiva. Parte dessa nova Lei, como vere- e intérpretes brasileiros. Não adianta so-
mos, é visivelmente prospectiva e procura nhar com uma mudança que destitua os
criar alicerces para a gestão coletiva de di- dirigentes atuais e coloque em seu lugar
reitos autorais em suas várias manifesta- um demiurgo perfeito, que de seu lugar nas
ções. Mas é certo que ela tem como objeti- nuvens colocará ordem na casa. A nova Lei
vo mais imediato o enfrentamento de uma traz as ferramentas necessárias para uma
histórica crise na gestão coletiva dos direi- mudança real e profunda, mas são os pró-
tos autorais de execução pública, ligados ao prios titulares de direitos autorais que terão
setor da música e cujo emblema máximo é o que operar esses instrumentos.
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

2. O Conceito de Gestão Coletiva dades de gestão coletiva. O primeiro


Nada mais natural que dele- passo é o seu  estabelecimento e es-
gar aos titulares o poder de efetivar, clarece-nos Gervais que esse, às ve-
com as próprias mãos, as reformas zes, depende de autorização de uma
estruturais relevantes (desde que, entidade governamental, mesmo que
claro, eles tenham as condições ins- tais entidades sejam, em sua maioria,
titucionais para tanto). Ainda mais de natureza jurídica privada5.
se pensarmos, como disse Otávio Além disso, ensina Gervais, tais
Afonso (referência maior do Poder entidades precisam obter (por lei ou
Executivo brasileiro no campo dos contrato) o poder de representar um
direitos autorais por longo período, grupo de titulares de direitos auto-
especialmente nos anos 1990 e no rais ou conexos para o licenciamen-
início dos anos 2000), na “motivação to de suas respectivas obras ou inter-
pela qual se busca o sistema de gestão pretações. Sobre esse ponto observa
coletiva de direitos”: o professor canadense que é de se
notar que a maioria dessas entidades
(...) é que, na maioria das – assim como ocorre
“(...) em sua essência, a
vezes, o direito de autor e os di- com o Ecad brasi-
atuação das entidades de
reitos conexos não podem ser leiro, no que tange à gestão coletiva deveria
exercidos individualmente, visto execução pública – limitar-se a isso: ser um
que as obras de que se tratam são operam sozinhas no facilitador das operações”
utilizadas por um número muito seu território, “o que
grande de usuários. Os autores, significa que elas são um monopólio
em geral, não têm meios para de fato (e às vezes de direito), e, como
fiscalizar todas essas utiliza- tal, estão sujeitas ao escrutínio do di-
ções, negociar com os usuários reito concorrencial ou a uma forma
e arrecadar as remunerações de supervisão governamental mais
devidas, uma vez que essas uti- específica”6.
lizações se dão em locais distin- Dotadas do poder de represen-
tos e simultaneamente, o que tar esses repertórios, elas precisam
torna impraticável um acompa- licenciá-los “na base de tarifas acor-
nhamento  pessoal destes atos.4 dadas ou, caso o acordo com o usuá-
(AFONSO, 2011, p. 90) rio não seja possível, por preços esta-
belecidos por um terceiro”, que pode
No capítulo que abre a mais ser um tribunal, um conselho ou um
completa obra sobre a gestão coletiva órgão administrativo. Como diz Ger-
no mundo, Daniel Gervais tenta sin- vais, “basicamente, cada jurisdição
tetizar o que ele chama de modus ope- decide que tipo de intervenção estatal
randi razoavelmente linear das enti- será justificável em cada contexto”7.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 169

As licenças em benefício dos sionada pelo silêncio da maioria,


usuários geram pagamentos às en- subverta seu funcionamento. A essa
tidades, o que, conforme Gervais, le- conclusão chegou o Senado brasilei-
va-nos ao próximo passo: distribuir ro, numa das muitas Comissões Par-
os fundos arrecadados para seus ge- lamentares de Inquérito promovidas
“(...) não é incomum que nuínos titulares,  com para investigar a atuação do Ecad:
uma minoria eternize-se na base nas informações
direção de tais entidades e que as entidades pro- [E]m seus 40 anos de exis-
subverta seu funcionamento.” cessam. É preciso en- tência, o Ecad se degenerou. De
tender quais obras fo- órgão meramente executivo de
ram usadas, por quem e ligar essas arrecadação e distribuição, tor-
informações à identificação de seus nou-se uma instituição pode-
titulares8. Isso feito, aplica-se uma rosa, que está a desafiar alguns
série de critérios que tornam pos- princípios elementares do Esta-
sível determinar  quanto deverá ser do Democrático de Direito. De
distribuído e para quem. instituição, que deveria ser um
Por isso, conclui Gervais, “de meio  pelo qual os titulares de
um ponto de vista operacional, as direitos autorais perceberiam o
entidades de gestão coletiva são es- que lhe é devido, o Ecad tornou-
sencialmente organizações que co- -se um fim em si mesmo. Volta-
letam e processam dados”9. É muito do para seu próprio umbigo – e
comum, ainda, uma (algo simplória, para os interesses de seus con-
mas bem intencionada) compara- troladores e dirigentes – o Ecad
ção das entidades de gestão coletiva transmudou-se em cartel, per-
com um “posto pagador”. Claro que nicioso para a ordem econômica
sua atividade envolve cálculos e uma brasileira, e muito distante do
logística razoavelmente complexos, que  reivindica a classe artísti-
mas, em sua essência, a atuação das ca, protagonizando toda sorte
entidades de gestão coletiva deveria de desvios e ilícitos10.
limitar-se a isso: ser um facilitador
das operações, um entreposto que O que alenta quem espera pelas
diminua os custos de transação e mudanças “reais e profundas” a que
aproxime usuários e titulares, via- fiz referência é que o primeiro passo
bilizando os usos das obras. Apesar foi dado. Não restrinjo meu foco aqui
dessa simplicidade de propósitos, e à própria Lei promulgada em 2013,
de forma tantas vezes vistas na ex- mas chamo a atenção principalmen-
periência humana, não é incomum te para o caminho que levou a ela,
que uma minoria eternize-se na marcado por uma inédita mobili-
direção de tais entidades e, impul- zação dos principais arrecadadores
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de direitos do Brasil contra o atual estado toral)  que,  sem a força estatal, não atingiu
das coisas. Mas para entender melhor esse seu  intento. Foi então que, como observou
quadro, precisamos dar alguns passos atrás Otávio Afonso:
e delinear aquilo que chamei, há pouco, de
“crise histórica” na gestão coletiva de direi- [a] partir de 1970, em plena dita-
tos autorais no Brasil. dura militar, um grupo de autores e in-
térpretes musicais – que se denominou
3. A “Crise Histórica” na Gestão Sombrás – realizou intensas mobiliza-
Coletiva Brasileira ções no sentido da aprovação de uma
O desenvolvimento da gestão coleti- lei sobre direitos de autor e conexos que
va de direitos autorais no Brasil do século adotasse especialmente um regime de
XX foi caracterizado por aquilo que nossa gestão coletiva centralizado13.
maior especialista no assunto, Vanisa San-
tiago, chamou de “uma exagerada prolife- Finalmente, no ano de 1973, é aprova-
ração de sociedades de autores”, o que, para da a Lei 5.988 que, além de consolidar todas
ela, traduziu “uma soberba demonstração as demais normas brasileiras sobre direitos
de capacidade inventiva para criar siglas e autorais, marca a grande virada institucio-
justificativas para a existência de entidades nal no campo da gestão coletiva, que não
economicamente inviáveis”.11Naquele mo- pode ser corretamente entendida senão por
mento – anterior à primeira consolidação duas frentes (idealmente) indissociáveis.
brasileira de normas autorais: A lei criava o Conselho Nacional de Direi-
to Autoral (CNDA), “órgão de fiscalização,
A preocupação com a questão do consulta e assistência” quanto aos direitos
paralelismo das sociedades, gerando si- autorais e conexos, ao mesmo tempo em
multaneamente a incerteza do usuário que determinava às associações de titulares
que necessitava obter as autorizações que organizassem um Escritório Central de
para utilizar as obras e o descontenta- Arrecadação e Distribuição “consoante às
mento dos próprios autores e compo- normas estabelecidas pelo Conselho Na-
sitores com um sistema do qual eram, cional de Direitos Autorais”, a quem com-
ao mesmo tempo, artífices e cúmplices, petiria, entre outras atribuições, aprovar o
estava a exigir um novo ordenamento ju- estatuto do Ecad.
rídico que regulamentasse a gestão cole- Assim foi feito e as duas entidades con-
tiva12. (SANTIAGO, 1997, p. 135) viveram durante anos – ou, melhor dizendo,
uma foi supervisionada pela outra durante
Esses clamores foram se tornando anos. Cristalizou-se aquilo que Vanisa San-
paulatinamente mais organizados, pas- tiago chamou de “modelo brasileiro”, um
sando inclusive por uma primeira tenta- desenho bastante heterodoxo de gestão co-
tiva  de centralização (a experiência do letiva. Nele, além da contínua proliferação
SDDA – Serviço de Defesa do Direito Au- de sociedades que se abrigam no Ecad, ge-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 171

rando assim uma curiosa estrutura de “dois primeira delas, no Mato Grosso do Sul, em
andares” (com um inchado “andar” infe- 2005, foi que o Ecad “faz o que bem entende,
rior), observa-se ainda “a administração cobra o que quer, distribui o que tem vontade,
dos direitos de autor e dos direitos conexos impõe condições ao seu bel prazer, estabele-
concentrada em uma mesma organização”, o ce critérios incompreensíveis e age com uma
que levou a um quadro no qual “praticamen- volúpia arrecadadora, motivando os recla-
te todas as sociedades brasileiras se conver- mos da população e dos detentores de direi-
teram em sociedades mistas”14. tos autorais”.
Este confuso cenário levou a muitas A CPI realizada em São Paulo, pela
crises, mas não houve nenhum terremoto ALESP, em 2009, também aponta para a
de maiores proporções. Com as críticas que necessidade de “criar um ambiente de se-
se possa fazer à atuação do CNDA (como gurança e clareza [...] perante as ameaças
alguns que viveram a experiência efetiva- e o poderio econômico dos que se encastela-
mente fizeram), a existência de uma ins- ram em estruturas ineficazes e corruptas”.
tância de fiscalização certamente dificul- Houve ainda uma CPI promovida pela
tou a degeneração de desvios pontuais em Assembleia Legislativa do Estado do Rio
patologias incuráveis. O quadro de relativo de Janeiro em 2011, mesmo ano em que
equilíbrio foi rompido, no entanto, a partir se  instalou no Senado Federal a última
“da reformulação administrativa que trans- CPI a funcionar sobre esse assunto, men-
formou o Ministério da Cultura em Secre- cionada anteriormente.
taria”, quando “o governo Collor extinguiu Há quem credite a força com que o Se-
os diversos conselhos subordinados a esse nado decidiu investigar as irregularidades
ministério, omitindo-se de definir a situa- na gestão coletiva à denúncia, pela impren-
ção jurídica do CNDA, que não foi extinto sa, de escândalos como o “Caso Coitinho”,
formalmente”15. Com a saída de cena do que envolveu um desavisado motorista
CNDA, não demorou para que as acusações de caminhão gaúcho a quem se atribuíam
contra a atuação do Ecad se avolumassem, insólitas parcerias musicais e de quem se
indicando que a situação saíra do controle. utilizaram dados pessoais para o desvio de
O relatório final de uma primeira CPI, na recursos arrecadados pelo sistema. É certo
Câmara dos Deputados, denunciava já em que bizarrices como essa colaboraram, e
1996 a “a ocorrência dos crimes de falsida- muito, para a instalação da CPI. Mas a sua
de ideológica, sonegação fiscal, apropriação raiz mais profunda é dupla, e tem a ver tan-
indébita, enriquecimento ilícito, formação to com a falta de consequência prática das
de quadrilha, formação de cartel e abuso do investigações anteriores quanto com uma
poder econômico”16. necessária reação do Poder Legislativo à
A década seguinte assistiria ao agra- guinada no protagonismo do Poder Execu-
vamento desse quadro, dando origem às tivo nessa matéria, que vinha se verificando
novas Comissões Parlamentares de Inqué- desde a gestão de Gilberto Gil à frente do
rito, de alcance estadual. A conclusão da Ministério da Cultura.
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

4. As Origens da Lei 12.853/2013 das pela sociedade civil durante a I


A nomeação de Gilberto Gil Conferência Nacional de Cultura,
para o Ministério da Cultura, no em 2005, jogaram luzes sobre a ne-
primeiro governo Lula, foi o ponto cessidade de se repensar o direito
de virada para que o direito autoral autoral brasileiro, o que incluía a
novamente fosse trazido para a pau- criação de um novo marco legisla-
ta pública. É verdade que durante o tivo, intensificou-se o trabalho da
governo Fernando Henrique apro- equipe de Gil, dando origem, em
vou-se uma nova Lei dos Direitos 2007, ao Fórum Nacional de Direito
Autorais, a Lei 9.610/1998, mas ela Autoral. Essa série de conferências,
em larga medida apenas repetiu os oficinas e audiências públicas agita-
dispositivos da sua antecessora, com ram o setor durante anos e levaram
pontuais concessões à indústria cul- à colocação de um anteprojeto de
tural e, sobretudo, à fonográfica. No nova Lei dos Direitos Autorais para
campo da gestão coletiva, a “nova” consulta pública em 2010, já sob a
LDA basicamente reproduziu os gestão do Ministro Juca Ferreira,
dispositivos que tratavam do Ecad que foi Secretário Executivo de Gil
– mas perenizou o silêncio sobre o e o sucedeu quan-
CNDA, que não foi recriado. do ele, após anos de “A nomeação de Gilberto Gil
para o Ministério da Cultura foi
Mas é mesmo a partir de Gil que dedicação ao MinC,
o ponto de virada para que o
o debate seria, de fato, aceso nova- decidiu retomar sua
direito autoral novamente fosse
mente. Desde o início de sua gestão, carreira musical. trazido para a pauta pública.”
o ministro-músico, que já se decla- A consulta re-
rara publicamente um “hacker em cebeu milhares de comentários e
espírito e vontade”, lançou provoca- uma forte oposição do setor da ges-
ções sobre as transformações que tão coletiva, que passou a utilizar um
a internet trazia para as práticas de discurso muito duro contra o gover-
criação e consumo culturais, e como no, o Ministério e qualquer tentativa
elas inevitavelmente teriam que ser de debater a supervisão estatal do
tratadas pelo dado normativo. Além funcionamento do Ecad e das asso-
disso, Gil resgatou da deriva a então ciações de titulares, como se o limbo
CGDA (Coordenação Geral de Direi- fiscalizatório fosse a situação natu-
tos Autorais) – a qual, como Vanisa ral, e, mais, a única possível.
Santiago apontava em meados dos Uma nova versão do antepro-
anos 1990, ficara “sem funções de or- jeto, muito burilada, seria entregue
dem prática muito definidas”17, hoje à Casa Civil em dezembro de 2010,
convertida em DDI (Diretoria de Di- mas uma mudança na titularidade
reitos Intelectuais) do MinC. do MinC – a pasta passou às mãos de
Quando as demandas trazi- Ana de Hollanda – levou ao desmon-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 173

te quase completo do trabalho que esta CPI apontam para uma di-


havia sido feito até então. Não só as reção única: é preciso promover
pessoas que vinham trabalhando no uma profunda reforma no siste-
anteprojeto foram afastadas de suas ma de gestão coletiva de direitos
funções, como vários acenos públi- autorais. [...]
cos às teses defendidas pelo Ecad
apontaram novos tempos, e o re- É preciso democratizar
sultado prático foi que quando (sob o Ecad e submetê-lo à lei e,
pressão) uma nova versão daquele sobretudo, à Constituição. Há
texto veio a público, várias altera- traços de autoritarismo nas
ções haviam sido feitas no capítulo práticas do órgão que não po-
da gestão coletiva. dem mais ser toleradas.19
É nesse intermezzo que ocorre
uma verdadeira “passagem do bas- Entre várias recomendações,
tão” para o Poder Legislativo, com de indiciamento criminal inclusive,
a instalação de uma nova CPI pelo o relatório final da CPI do Senado
Senado Federal, a qual, após “um ano entendeu ser preciso mudar o sis-
de trabalho e depois de reunir mi- tema de gestão coletiva de  direitos
lhares de páginas de documentos e autorais. Por isso, foi apresentado
depoimentos de titulares de direitos naquela mesma ocasião um projeto
autorais, de usuários e de autorida- de lei, cujo texto era “fruto de virtu-
des públicas”18, não foi econômica osa parceria com o Centro de Tec-
em suas conclusões: nologia e Sociedade da Escola de
Direito da Fundação Getúlio Vargas
[...] em qualquer órgão (CTS/FGV)”, então “dirigido pelo
público ou privado, a falta de jovem e brilhante professor Ronal-
transparência degenera para a do Lemos”20. Esse texto, que toma-
corrupção ou para o totalitaris- va por base os trabalhos do MinC,
mo, além de gerar desconfiança mas trazia várias inovações, viria a
de tudo em todos. As instituições se tornar o Projeto de Lei do Sena-
que lidam com interesse público do 129/2012, que no final daquele
não podem se ocultar. O Ecad, mesmo ano quase chegou a ser vo-
todavia, tornou-se uma enti- tado, mas que, no entanto, sofreu
dade alheia à transparência de contramarchas que o estaciona-
suas ações e ao controle social ram. O vento, porém, mudou nova-
de seus associados. mente:  a Cultura, naquele final de
2012,  ganhava uma nova Ministra,
[...] Todas as denúncias Marta  Suplicy, e, com ela, as espe-
contra o Ecad apuradas por ranças se renovavam.
É nesse intermezzo
que ocorre uma verdadeira
‘passagem do bastão’ para
o Poder Legislativo, com a
instalação de uma nova CPI.”
176 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

5. A aprovação do projeto e a sanção (Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música),


presidencial composto por nomes como Tim Rescala,
Como ato contínuo à sua posse, Marta Leoni, Ivan Lins, Fernanda Abreu, Ser-
Suplicy trouxe de volta para o MinC Mar- gio Ricardo, Dudu Falcão e Frejat, entre
cos Souza, Diretor de Direitos Intelectuais muitos outros. Com uma década de vida e
até a  saída de Juca Ferreira. Com Marcos convívio com advogados e parlamentares
retornariam pessoas fundamentais para em um histórico de outras causas como a
o trabalho da DDI e, sobretudo, a sensação luta pela educação musical e pela chama-
de  que era possível dar novo impulso ao da “PEC da Música” (que viria a estender
anteprojeto de reforma da Lei dos Direi- para a música vantagens fiscais semelhan-
tos  Autorais. Em meio a esse difícil traba- tes àquelas usufruídas pelo setor do livro),
lho de reconstrução, no entanto, uma nova o GAP chegou ao debate em 2013 com uma
bomba: o Conselho Administrativo de De- bagagem inigualável.
fesa Econômica, CADE, profere em março É fato que o GAP vinha, historicamen-
de 2013 a condenação extremamente dura te, polarizando o debate com artistas que,
do Ecad e das associações que o compõem em sua quase totalidade, pertenciam às
por prática de cartel e diversas outras infra- diretorias das associações que compõem o
ções concorrenciais. Ecad. E, entre esses polos, um vasto deserto
O status quo da gestão coletiva recor- de opiniões favorecia a inércia. Mas a che-
reu à tática usual de coletar assinaturas gada daquele novo grupo a que se referiu
para acusar o governo de conspiração e di- Jandira – capitaneado por ninguém menos
zer que aquela condenação seria o “fim do que Caetano Veloso, Chico Buarque, Rober-
mundo”. Um grupo de importantes autores to Carlos, Erasmo Carlos, Djavan e Milton
e intérpretes, no entanto, ficou incomoda- Nascimento, além do próprio Gilberto Gil
do com aquele assédio. Como sintetizaria – mudaria completamente o panorama. O
poucos meses depois a Deputada Federal ingresso de estrelas de tamanha intensi-
Jandira Feghali, “a reação destas entidades dade (provocado a partir de diálogos entre
ao julgamento, buscando a adesão irrefletida a Ministra Marta, o Senador Randolfe Ro-
dos artistas contra a decisão do órgão técni- drigues, que presidira a CPI do Senado, e
co, gerou efeito contrário: muitos dos mais a produtora cultural Paula Lavigne) foi a
consagrados autores e intérpretes da nossa “cereja do bolo” de uma inédita correlação
música, agrupados na Associação Procu- de forças que permitiu a aprovação do PLS
re  Saber, julgaram que era chegado o mo- 129/2012 e do seu sucedâneo na Câmara, o
mento de uma participação mais efetiva em PL 5901/2013. São muitos os fatores a se-
prol dos seus direitos”21. rem considerados, mas numa enumeração
Outros artistas já haviam chegado à rápida pode-se mencionar a indignação da
mesma conclusão há bastante tempo. O sociedade civil com as denúncias divulga-
principal coletivo a clamar por mudanças das pela imprensa; o convencimento pelo
na gestão coletiva, àquela época, era o GAP Senado, sede da CPI, de que era preciso
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 177

fazer algo; o surgimento da Comissão de Jean Michel Jarre (tecladista francês fa-
Cultura da Câmara dos Deputados, presi- moso nos anos 1980), chegou a enviar uma
dida por Jandira Feghali, familiarizada ao alarmista carta à Presidenta Dilma, atacan-
assunto desde as mudanças de 1998; a dura do a lei “no interesse dos criadores artísti-
condenação do CADE; e, claro, a sensibili- cos do mundo”23. Uma resposta assinada em
dade da Ministra da Cultura, ao trazer de conjunto por GAP e Procure Saber dizia ser
volta para o MinC os gestores que tanto se “no mínimo curioso” que Jarre consideras-
dedicaram ao exame da matéria. se que sua opinião sobre o estado das coisas
Mas um dos fatores mais importantes no Brasil pudesse se sobrepor ao entendi-
foi a compreensão do Senador Humberto mento de todos aqueles já citados e ainda de
Costa, que relatava o PLS 129/2012, no sen- tantos outros que participaram dos debates
tido de que era preciso gerar um Substituti- ou foram ao Congresso Nacional pedir a
vo de consenso àquele projeto, congregando aprovação da nova Lei, como Lenine, Gaby
todos os participantes mencionados. Assim Amarantos, Carlinhos Brown, Nando Reis,
foi feito, e, após semanas de discussão, o Otto, Alexandre Pires, Emicida, Tiaguinho,
novo texto foi apresentado e aprovado, por Fafá de Belém, Rogério Flausino, Jorge Ver-
unanimidade, nas duas casas do Congres- cillo e Pretinho da Serrinha24.
so, não sem antes receber novas emendas A Presidenta Dilma Rousseff acabaria
(muitas delas do bloco de oposição ao go- sancionando integralmente o texto apro-
verno) no Senado, após saudáveis debates. vado pelo Congresso, que se tornaria a Lei
Como constou do parecer da Deputada Jan- 12.853, em vigor desde dezembro de 2013.
dira Feghali, que relatou o projeto à Câmara
dos Deputados, 6. O futuro nas mãos do Supremo – e
dos Autores
A redação final trazida à Câmara Enquanto, no início de 2014, o Poder
dos Deputados espelha assim, o ama- Executivo trabalha para regulamentar a Lei
durecimento de um processo profundo da Gestão Coletiva, promovendo reuniões
e inclusivo, que envolveu todos os inte- de um grupo de trabalho que congrega auto-
ressados. Pode ser que nem todos mani- res, associações de titulares, usuários e so-
festem concordância com seus termos, ciedade civil, o status quo da gestão coletiva
como é comum em assunto que toca trabalha para derrubar a nova Lei no Supre-
tantos interesses, estabelecidos há tanto mo Tribunal Federal. Surpreendentemente
tempo. Mas é inegável que ele reflete o (ou não), o Ecad e suas associações que-
espírito do seu tempo[...].22 rem que seja declarada a inconstituciona-
lidade de praticamente todo o texto da Lei
Faltava a sanção da Presidência da Re- 12.853/2013. Todas as suas inovações, para
pública. Nesse meio tempo, o Presidente da esses diretores de entidades, devem ser ti-
CISAC (Confederação Internacional das das como inconstitucionais. Não apenas
Sociedades de Autores e Compositores), “indesejáveis”, mas totalmente inconstitu-
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

cionais – a mais grave doença que que se arrecada, dando-se prazo de


pode acometer uma norma jurídica. quatro anos para atingimento deste
Os dispositivos atacados pelo novo patamar. Também são criadas
Ecad pretendem induzir mudanças novas regras no campo da gover-
no universo da gestão coletiva em nança, restringindo-se o direito de
três campos principais: o da trans- votar, ser votado e assumir cargos de
parência, o da eficiência e o da go- direção, nas associações, aos titula-
vernança. Começando pela transpa- res originários de direitos filiados
rência, a nova lei determina que se dê diretamente às associações nacio-
publicidade total ao que é arrecadado nais (e, no caso dos cargos de dire-
e distribuído, preservando-se apenas ção, desde que tenham domicílio no
os valores distribuídos a cada titular, Brasil). Estabelece-se ainda o voto
individualmente. Também deve se unitário na assembleia do Ecad,
dar publicidade a todos os atos, esta- eliminando-se a regra que atribuía
tutos, regulamen- peso político dis-
“Os dispositivos atacados
tos e atas, com es- tinto às asso-
pelo Ecad pretendem induzir
pecial atenção aos mudanças em três campos ciações, criando
créditos “retidos”, principais: o da transparência, o grave concentra-
ou seja, aqueles da eficiência e o da governança.” ção de poder. Por
eventualmente fim, limita-se o
arrecadados e não distribuídos por mandato dos diretores de associa-
problemas de identificação. Ainda ções a três anos, permitindo-se uma
no campo da transparência, veda-se recondução e devendo tais líderes
a assinatura de contratos confiden- atuar diretamente na gestão, por
ciais que impeçam os titulares de sa- voto pessoal.
berem quanto está sendo arrecadado, Estas e outras inovações se-
e também se obriga a dar publicidade guem a linha de outros movimen-
aos planos de salários, bonificações e tos internacionais, e são encimadas
cargos, além de se facilitar a realiza- pela obrigação de que as entidades
ção de auditorias. que queiram participar desse ver-
No campo da eficiência, duas dadeiro regime de monopólio legal
medidas se sobressaem. Em pri- habilitem-se junto ao Ministério
meiro lugar, as entidades terão que da Cultura. Ao analisar todos esses
comprovar que as taxas de adminis- dispositivos, a Procuradoria Geral
tração que cobram são proporcio- da República, cumprindo o dever de
nais aos custos de cobrança e distri- se manifestar nos autos das ações de
buição. Não obstante, estabelece-se inconstitucionalidade, foi extrema-
ainda que não se poderá distribuir mente incisiva: “As requerentes [...]
aos titulares menos de 85% daquilo naturalmente pretendem manter a
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 179

normatização atual, pois lhes é con- Mas mesmo que seja mantida
veniente”. Sem embargo: a Lei 12.853/2013, isso nos reme-
A Lei 12.853/2013 buscou apri- te à situação que descrevi no início
morar o sistema de arrecadação e deste ensaio: não haverá transfor-
distribuição dos direitos autorais, mação automática e radical do pre-
a fim de prevenir sente, mas sim o estabelecimento
“Gil suavemente lembrava a um
as numerosas dis- das condições para que os titulares
autor mais jovem que o trabalho
não terminaria com a possível torções históricas tomem, sem medo, as rédeas de seus
aprovação daquele texto.” que o sistema de destinos. Em uma das inesquecíveis
gestão coletiva de reuniões em que se discutia a neces-
direitos autorais tem enfrentado. sidade de mudar o sistema de gestão
Ao fazê-lo, orientou-se pelos prin- coletiva no Brasil, às vésperas da vo-
cípios da transparência, da eficiên- tação da nova Lei, Gilberto Gil sua-
cia, da idoneidade, da isonomia, da vemente lembrava a um autor mais
segurança e da prestação de contas. jovem que o trabalho não terminaria
Os titulares dos direitos autorais com a possível aprovação daquele
passaram a ser o cerne da pro- texto; ao contrário, o verdadeiro tra-
teção legal, como desde sempre balho começaria justamente ali, e
deveria ocorrer. Diversamente do não acabaria mais.
que as autoras procuram fazer crer, E no primeiro dia de 1991, Vá-
o regime dessa gestão coletiva não clav Havel saudava novamente seus
é, em absoluto, puramente priva- compatriotas. Antes de encerrar seu
do, e isso justifica certo grau de in- pronunciamento, ele lembrou o fim
terferência do poder público. Não do seu primeiro discurso como pre-
há  ofensa à Constituição da Re- sidente, um ano antes. Respeitando
pública na lei.25. – à sua maneira – a tradição dos lí-
É difícil prever o resultado de deres do seu país de citar em ocasi-
julgamentos do STF. Mas é, também, ões especiais o educador Jan Amos
difícil imaginar que nossa maior Komenský, ele havia parafraseado
Corte venha se insurgir contra uma aquele educador para concluir, di-
lei que traduz o consenso costurado zendo: “Povo, o seu governo retornou
por anos a fio entre gestores públi- a vocês”. Mas agora, um ano depois,
cos, acadêmicos e titulares de di- ele acrescentou: “Cabe a vocês, povo,
reitos, referendados pela unanimi- mostrar que o retorno do governo às
dade  do Congresso Nacional e pela suas mãos não foi em vão”26.
sanção  integral da Presidência da
República, bem como pela irretocá-
vel manifestação do Procurador Ge-
ral da República.
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Bruno Lewicki
Doutor e Mestre em Direito pela UERJ e Assessor Técnico da Comissão de Cultura
da Câmara dos Deputados. Diretor de Comunicação da Associação Brasileira de Ensino
do Direito (ABEDI), é membro e foi Vice-Presidente da Comissão de Direito Autoral,
Direito Imateriais e Entretenimento da OAB-RJ. Foi sócio de BM&A Advogados e coor-
denou o curso de Direito do Ibmec(RJ).

1 Este artigo é dedicado à equipe 2013 da Comissão de Cultura da Câmara dos


Deputados, primeira a desbravar o território desse novo colegiado, estratégico
para o Legislativo e para a cultura do Brasil.

2 Disponível em: http://migre.me/iVpAY. Acesso em: 18 fev. 2014.

3 Idem.

4 AFONSO, Otávio. Direito autoral: conceitos essenciais. São Paulo: Manole, 2009, p.
90.

5 GERVAIS, Daniel (Coord.). Collective Management of Copyright and Related


Rights. 2. ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2010, p. 6.

6 GERVAIS, Daniel. Op. cit., p. 6.

7 GERVAIS, Daniel. Op. cit., p. 6-7.

8 GERVAIS, Daniel. Op. cit., p. 8.

9 GERVAIS, Daniel. Op. cit., p. 8.

10 Relatório Final da CPI do ECAD do Senado Federal, p. 1023, grifo meu. Disponível
em: http://migre.me/iVpQM. Acesso em: 18 fev. 2014

11 SANTIAGO, Vanisa. A administração coletiva de direitos autorais no Brasil. In:


Reflexões sobre direito autoral. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997,
p. 133.

12 SANTIAGO, Vanisa. Op. cit., p. 135.


DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 181

13 AFONSO, Otávio. Op. cit., p. 99

14 SANTIAGO, Vanisa. Op. cit., pp. 138-9

15 SANTIAGO, Vanisa. Op. cit., p. 138.

16 A referência às conclusões dessa CPI, bem como à da ALESP, são retiradas do


Relatório Final da CPI do Senado, p. 1024.

17 SANTIAGO, Vanisa. Op. cit., p. 138.

18 Relatório Final da CPI do ECAD do Senado Federal, p. 1022.

19 Relatório Final da CPI do ECAD do Senado Federal, p. 1030-1, grifo meu.

20 Relatório Final da CPI do ECAD do Senado Federal, p. 1035.

21 Parecer de plenário da Deputada Jandira Feghali ao PL 5901/2013, p. 4.


Disponível em: http://migre.me/jaI9v. Acesso em: 18 fev. 2014.

22 Parecer de plenário da Deputada Jandira Feghali ao PL 5901/2013, p. 5, grifei.

23 Disponível em: http://migre.me/iVpVe. Acesso em: 18 fev. 2014.

24 Disponível em: http://migre.me/jaIoo. Acesso em: 18 fev. 2014..

25 Disponível em: http://migre.me/iVq0l. Acesso em: 18.02.14. Grifo meu.

26 Disponível em: http://migre.me/iVq2o. Acesso em: 18 fev. 2014.


182 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Bruno Lewicki 183
184 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A REFORMA DA LEI DE PATENTES


NO BRASIL E SEU IMPACTO PARA A
INOVAÇÃO
Denis Borges Barbosa

Quais as reformas de que necessita a norma brasileira de patentes para se chegar a


uma melhor utilização do sistema legal brasileiro, ao abrigo do direito internacional per-
tinente, com vistas a realizar os propósitos que a Constituição Brasileira prescreve a esse
mesmo sistema?

O
título do artigo parece indicar que o que, no entender deste subscritor, mere-
há uma reforma em curso da nor- ceria reforma para promover a inovação1.
ma brasileira de patentes. Na ver-
dade, há: desde que introduzida no nosso Uma lei em reforma há 205 anos
sistema jurídico, a lei brasileira já foi objeto A lei de patentes de 23 de abril de 1809
de sete modificações substantivas, o que foi sendo reformada nos últimos 205 anos,
dá uma média (com toda a imprecisão das se não incessante, pelo menos reiterada-
médias não ponderadas) de trinta anos de mente. Em certos momentos, como na re-
duração cada lei. forma de 1882, houve intensa discussão
Neste momento, há provavelmente 45 política no Congresso, bem documentada,
projetos em curso no Congresso para alte- com todos os interesses em jogo à mostra,
rar a nossa lei de patentes, nenhum deles de e um resultado duradouro2. O mesmo se
origem do Executivo. Em mais de duas cen- deu durante as amplas discussões de 1971,
tenas de nãos de legislação sobre o assunto, resultando no Código de então, e no espa-
nunca houve uma hipótese de que um pro- ço  de  1992 a 1996, na votação da lei deste
jeto de origem real do Poder Legislativo ou último ano.
de fonte popular entrasse em vigor. Mas vamos à situação inicial3.
Assim, ainda que mereçam referência No primeiro ato do Príncipe Regente –
as alterações propostas, tentemos precisar a Abertura dos Portos -, tão festejado pelos
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 185

livros de História escolar, abolem-se as da Abertura dos Portos e, principalmen-


vedações absolutas de acesso ao mercado te, da legislação complementar de 1810,
brasileiro, características do regime colo- foi não só quanto ao fluxo internacional de
nial, impondo-se uma tarifa geral de 24% às comércio, mas também quanto ao investi-
mercadorias estrangeiras. mento direto:
As medidas de incentivo à indústria Tendo-se feito em público em In-
nacional que se seguiram procuravam ajus- glaterra o liberal sistema político (...)
tar-se ao contexto de cessação do privilégio logo aqueles ativos e industriosos insula-
manufatureiro português e da parcial libe- res não perderam um só momento de se
ralização dos fluxos de comércio. Assim, aproveitarem de tão grande, e inespera-
o famoso Alvará de 28 de janeiro de 1809, do benefício: muitos dos mais respeitá-
criou, a par do primeiro sistema de patentes veis negociantes ingleses fizeram entre
de invenção - só para indústrias estabeleci- si uma sociedade, para se interessarem
das no país - preferências nas compras do nas remessas de mercadoria (...). Nes-
Estado, subvenção direta ao setor têxtil e ta feliz época da vinda de S. Alteza Real
isenção de tarifa para bens importados para data o estabelecimento de muitas casas
produção industrial local. de negociantes, especialmente ingleses,
O estímulo à indústria nacional, que nesta Corte, na Bahia, em Pernambuco,
incluiu o estabelecimento de siderúrgicas Maranhão, e Pará, como principais em-
estatais em Minas e São Paulo, assim como pórios do Brasil.5
de entidades de desenvolvimento regional
(inclusive a Companhia Vale do Rio Doce) Num contexto em que se tinham redu-
foi, no entanto, atalhado pela progressiva zido enormemente as tarifas alfandegárias,
redução da tarifa, em especial após o Tra- porém, o estabelecimento de estrangeiros
tado com o Reino Unido, de 1810. Após tal não configurava investimento multinacio-
data, a tarifa passou a 15% para os ingleses, nal - investimento produtivo. A função dos
enquanto que para os próprios portugueses negociantes era de importador de produtos
estava fixada em um ponto a mais. Sem pro- estrangeiros, de simples atacadistas6. O
teção aduaneira, não havia hipótese de im- capital de risco, semeado na terra e na pro-
plantação de indústria nacional4. dução de bens e serviços, iria esperar ainda
Como se poderia antecipar, o efeito algum tempo.
186 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Nesse contexto, temos uma lei de pa- Sendo muito conveniente que os in-
tentes desde 28 de abril de 1809, um Alva- ventores e introdutores de alguma nova
rá de D. João VI aplicável somente ao  Es- máquina e invenção nas artes gozem do
tado do Brasil, o que nos coloca como uma privilégio exclusivo, além do direito que
das quatro primeiras nações, no mundo, possam ter ao favor pecuniário, que sou
a ter uma legislação sobre o tema7. Tal servido estabelecer em benefício da indús-
Alvará Régio foi possivelmente também tria e das artes, ordeno que todas as pesso-
o nosso primeiro Plano de Desenvolvimen- as que estiverem neste caso apresentem o
to Econômico8. plano de seu novo invento à Real Junta do
Com a chegada da Corte, estávamos Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a
num momento em que se teria de fazer a re- verdade e fundamento dele, lhes conceda
forma patrimonial do Estado. Os privilégios o privilégio exclusivo por quatorze anos,
que então havia, monopólios de exploração ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para
de indústrias tradicionais, tinham de ser que, no fim desse prazo, toda a Nação goze
reformados, de forma a fazê-los trabalhar do fruto dessa invenção. Ordeno, outros-
por um objetivo determinado: o desenvol- sim, que se faça uma exata revisão dos que
vimento econômico, em particular o desen- se acham atualmente concedidos, fazen-
volvimento industrial9. do-se público na forma acima determina-
O Plano utilizou-se de três instru- da e revogando-se todas as que por falsa
mentos principais: o primeiro foi a cria- alegação ou sem bem fundadas razões ob-
ção do drawback, ou seja, a eliminação dos tiveram semelhantes concessões.
impostos incidentes sobre a importação Assim, na esteira do que já havia acon-
de determinados insumos, quando se tor- tecido no sistema inglês de patentes a par-
nassem esses insumo necessários para tir do sec. XVI10, e do sistema francês dois
viabilizar o aumento de exportações ou séculos depois11, a nossa primeira forma de
de abastecimento do mercado interno dos propriedade intelectual tinha um cunho de
setores  primordiais. O segundo ponto era ato inaugural de fonte estatal, de cunho na-
o controle das compras estatais, basica- cional e desenvolvimentista. Só após 1850,
mente do Exército, direcionando a compra como veremos, concretizou-se uma ten-
de seu fardamento para as indústrias têx- dência internacionalizante.
teis nacionais. Na série de leis que se sucederam a de
Em terceiro lugar, criava-se o sistema 1809, é especialmente importante subli-
de incentivos ao desenvolvimento da tec- nhar a relação entre a inventiva nacional e o
nologia, através de patentes industriais de capital estrangeiro. Sob a lei de 28 de agosto
concessão prevista em lei, em substituição de 1830, na prática só ao inventor nacional
ao sistema de privilégios individualizados, era deferida a patente; se ficasse provado
anteriormente existentes, visando trazer que o inventor havia obtido, pelo mesmo in-
para o Brasil novas indústrias. Assim dis- vento, patente no exterior, a concessão bra-
punha o Alvará: sileira ficaria nula12.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 187

Para os “introdutores de indústria es- Votados, pela geografia, ao subdesen-


trangeira”, ou seja, quem se estabelecesse volvimento, só uma legislação liberal que
no Brasil com tecnologias novas para o país, protegesse os monopólios de importação
a lei previa um subsídio, não um monopó- poderia assim nos fornecer objetos novos
lio; mas nunca foi votada verba necessária, da tecnologia mundial.
o que levou os ministros da área a passa- Uma série de leis extravagantes18 regu-
rem a conceder patentes a estrangeiros, ad lou a matéria de marcas, patentes e, eventu-
referendum do poder legislativo13. Assim, almente, de concorrência desleal, do fim do
apesar da proibição, em 1878, foi concedida séc. XIX até 194519, quando tivemos o nosso
uma patente a Thomaz Edison para “uma primeiro Código de Propriedade Industrial,
máchina denominada phonógrapho”. o Decreto-Lei 7.903/45. Essa excelente
O Brasil teve um papel relevante na peça legislativa, cuja elaboração demonstra
fase final da Convenção de Paris, como do- sofisticação técnica infinitamente maior do
cumentam os relatórios do delegado brasi- que toda legislação anterior, subsistiu - em
leiro às negociações, Visconde de Villeneu- seus aspectos penais - por mais de meio sé-
ve14. Quando terminaram as negociações da culo, até o início de vigência do novo Códi-
Convenção de Paris, em 1882, já havia uma go de 1996. O código de 1945 efetivamente
nova lei, tão afeiçoada aos fluxos tecnológi- cobria a quase totalidade da legislação de
cos internacionais que nenhuma adaptação Propriedade Industrial vigente à sua época,
se precisou fazer após a assinatura do trata- inclusive expressões e sinais de propagan-
do15. O resultado foi imediato: enquanto nos da, nomes comerciais, títulos de estabeleci-
oito anos finais da lei de 1830 foram conce- mento, recompensas industriais etc.20.
didos 434 privilégios (33% de estrangeiros, Ao contrário dos seus antecessores
em 1882), nos oito anos da lei de 1882 o fo- de 1945, 1967 e 1969, todos decretos-lei, o
ram 1.178 (66% de estrangeiros, em 1889)16. Código de 1971 foi votado pelo Congresso
Parecia, aos olhos de então, justificado Nacional, em discussões com a indústria
o ponto de vista do Ministério da Agricultu- nacional e estrangeira e os advogados es-
ra, Comércio e Obras públicas de 1876, ao pecialistas, documentadas nos Anais então
propor a elaboração da nova lei17: publicados21. Exercício democrático, a vota-
Nação nova, dotada de grandes e ção da lei não escapou das intervenções in-
variados elementos de riqueza, ofere- formais, até mesmo folclóricas, propiciadas
cendo tantas facilidades para a aquisição pelo clima político e ideológico da época,
dos meios de subsistência, o Brasil não mas também refletia a influência técnica,
pode contar tão cedo, para o progresso de especialmente alemã, propiciada  pelo iní-
sua indústria, com o espírito de invenção cio do programa de assistência da Organi-
que, como é sabido, somente na luta da zação Mundial da Propriedade Industrial.
necessidade contra os elementos e con- A origem do processo de mudança da
tra condições de vida e estímulos para lei de propriedade industrial na sua ver-
seu desenvolvimento. são vigente é, indubitavelmente, a pressão
188 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

exercida pelo Governo dos Estados Unidos, apresentado ao Congresso no início de 1991,
a partir de 1987, com sanções unilaterais com o fito de preceder regimentalmente o
impostas sob a Seção 301 do Trade Act. Não projeto do Governo26.
obstante aplicadas no Governo Sarney, ape- O propósito do trabalho, assim como
nas no mandato seguinte se iniciaram as seu resultado, estava, aliás, prefigurado no
tratativas oficiais com vistas à elaboração texto da Portaria Interministerial e nas Di-
de um projeto de lei22. retrizes de Política Industrial e de Comér-
Consentânea com tal momento his- cio Exterior, expedidas na mesma ocasião.
tórico, a política do Governo Collor23 para A revisão tinha por finalidade dar patente
com o setor tecnológico, embora ressoando às invenções químicas, farmacêuticas e
as propostas da Nova Política Industrial do alimentares; e isso, obviamente, é o que re-
Governo anterior, não levadas à prática des- sulta do Projeto. Coube à Comissão Inter-
de sua formulação em 1988, importou em ministerial instituída pela Portaria Inter-
contenção dos meios públicos aplicados no ministerial n. 346 de julho de 1990 a tarefa
desenvolvimento tecnológico e em redução de elaborar o projeto de lei. Em suas várias
dos mecanismos de proteção ao mercado in- subcomissões, o grupo reuniu representan-
terno, em especial no setor de informática. tes do Ministério da Justiça, da Economia,
Dessa postura, derivam as propos- das Relações Exteriores, da Saúde e da Se-
tas de reforma do Código da Propriedade cretaria de Ciência e Tecnologia, além dos
Industrial, da Lei de Software, da Lei de técnicos do INPI e de consultores exter-
Informática, da Lei do Plano Nacional de nos - inclusive, por certo tempo, o autor27.
Informática e Automação (PLANIN), a ela- Em várias ocasiões, a Comissão ouviu as
boração de um anteprojeto sobre topografia associações, empresas e entidades gover-
de semicondutores e a extinção de pratica- namentais interessadas, inclusive a Asso-
mente todos incentivos fiscais ao desenvol- ciação Brasileira da Propriedade Indus-
vimento tecnológico (esses posteriormente trial e a Associação Brasileira dos Agentes
ressuscitados). da Propriedade Industrial. Em suas várias
Nesse contexto político, constitucio- versões, o texto levava em conta, ainda que
nal e internacional, proliferaram os proje- não incorporasse, as diversas correntes de
tos de reforma da legislação. Nem todos os opinião existentes sobre os temas regula-
projetos em curso tiveram sua origem no dos; vale dizer, não era uma proposta radi-
Poder Executivo: notam-se, por exemplo, cal nem subjetiva, ainda que tenha as claras
a iniciativa do Deputado Luiz Henrique de motivações acima indicadas.
reestruturação da Lei de Software24 e a do Pelo menos no que se refere ao Título I,
Deputado José Carlos Coutinho de modifi- que trata das patentes, o projeto do Executivo
cação da legislação de patentes25. Também foi, em linhas gerais, bem concebido e redigi-
do Deputado Luiz Henrique foi o Projeto de do, com diretrizes técnicas bastante claras,
Código da Propriedade Industrial, calcado ainda que discutíveis quanto à constitucio-
em boa parte no texto então vigente, que foi nalidade, conveniência e oportunidade. Além
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 189

da diretriz política que se impôs à revisão da A Reforma continua


legislação então em vigor, desde início, as se- Em fevereiro de 2013, a Associação
guintes condicionantes também desempe- Brasileira da Propriedade Intelectual31 dava
nharam claro papel na elaboração do texto: notícia de que 147 diferentes projetos de
a) o aperfeiçoamento técnico e admi- lei corriam no Congresso nacional sobre
nistrativo que se impunha após quase 20 Propriedade Intelectual, dos quais 44 se
anos de experiência com o Código anterior; referiam a patentes. Com importante proje-
b) as modificações do contexto tecno- ção internacional, e cuidado maior em seu
lógico e econômico brasileiro; lançamento, foi lançado em 9 de outubro de
c) os exercícios de padronização, ditos 2013 o estudo “A Revisão da Lei de Paten-
de “harmonização”, dos sistemas nacionais tes - Inovação em Prol da Competitividade
de patentes e marcas realizados na OMPI; Nacional”32. Num longo estudo coordena-
d) o estágio das negociações do GATT do por Pedro Paranaguá, em benefício de
no momento da conclusão da redação28. Projeto anteriormente apresentado pelo
e) a necessidade, percebida pelos téc- Deputado Newton Lima, a obra represen-
nicos do INPI, de melhorar sua interface tava uma publicação oficial da Câmara de
com o público, especialmente os inventores Deputados, o que dá particular visibilidade
nacionais, propiciando uma inter-relação à proposta.
ainda mais dialética e cooperativa entre o Transcrevendo a própria apresentação
escritório de propriedade industrial e os do texto, temos:
seus usuários . Três resultados práticos do estudo
Enviado a 2 de maio de 1991 ao Con- 1) PL 5402/2013 (dos dep. Newton
gresso, em regime de urgência, o Projeto Lima PT/SP e dr. Rosinha PT/PR), que
recebeu sérias oposições regimentais, eis propõe as seguintes alterações:
o porquê de, segundo a Carta de 1988, um a) limita em 20 anos a vigência do
Código não poder ser votado em ritmo ace- prazo das patentes – a Lei de Patentes
lerado. Foi formada Comissão Especial na em vigor autoriza a extensão para além
Câmara dos Deputados para examinar a de 20 anos quando, por exemplo, o INPI
proposta, que seguiu procedimento rápido, leva mais de 10 anos para conceder uma
mas não de urgência. Numerosos grupos de patente, o que acontece em muitas pa-
pressão atuaram junto aos congressistas, tentes farmacêuticas (Art. 40, § único,
tendo-se realizado, além disso, vários con- Lei de Patentes 9.279/96)33;
gressos e seminários, inclusive no próprio b) acrescenta objetos que não são
Congresso, para discutir o tema. considerados invenções: segundos usos
O texto enfim editado tem, marcada- e polimorfos – nos moldes da Lei de Pa-
mente, o sinal do impacto dos interesses tentes da Índia, atualizada em 2005 (art.
econômicos e políticos de sua época29. Com 10 da Lei de Patentes 9.279/96)34;
pequenas modificações introduzidas em c) aumenta o rigor do requisito da
199930, é essa a lei atualmente em vigor. atividade inventiva: promover inova-
190 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ção incremental – nos moldes da Lei de volvimento, Indústria e Comércio –


Patentes da Índia, atualizada em 2005 MDIC), para unificar a política pública
(Arts. 13 e 14, Lei de Patentes 9.279/96)35; nacional relativa aos direitos de proprie-
d) cria o mecanismo de oposição dade intelectual;
contra pedidos de patentes (Arts. 31 e 31- b) conferir mais poder ao conselho,
A, Lei de Patentes 9.279/96); tornando suas resoluções vinculantes
e) atualiza o dispositivo sobre a (as resoluções do GIPI atualmente não
anuência prévia da Anvisa para patentes são vinculantes);
na área farmacêutica (em conformidade c) democratizar a participação de
com a Resolução 21/2013 da Anvisa), outros entes do Governo junto ao novo
que estabelece o dever de a Anvisa ana- conselho, além da Presidência da Re-
lisar, previamente ao INPI, pedidos de pública: inclusão do CADE, ANVISA,
patentes envolvendo i) produtos na área CAMEX, CGEN, bem como de pessoas
farmacêutica / química que tenham sido com notório conhecimento na área (tais
previamente rejeitados pela Agência e, como acadêmicos).
portanto, apresentam riscos para a saú- 3) Recomendações ao Poder Exe-
de e ii) os compostos na área farmacêu- cutivo: utilizando-se da prerrogativa
tica / química que são de interesse para que o Legislativo possui, ao final de cada
apoiar o Sistema Único de Saúde (SUS) capítulo são feitas diversas recomenda-
e que não cumprem os requisitos de pa- ções ao Governo, incluindo ao INPI, ao
tenteabilidade estabelecidos pela Lei Cade, à ANVISA e assim por diante.
de Patentes (Art. 229-c, Lei de Patentes
9.279/96)36 Como se pode perceber, o importante
f ) esclarece que a proteção a dados estudo cobre vários aspectos particular-
de testes farmacêuticos ocorre por meio mente controversos da prática de Proprie-
da repressão à concorrência desleal – e dade Intelectual, especialmente relevantes
não por meio de exclusividade de dados ao campo das patentes farmacêuticas. As-
(Art. 195, Lei de Patentes 9.279/96)37; sim, conclamando o leitor ao exame dire-
g) institui o mecanismo do uso pú- to  desse texto (com as ponderações a seus
blico não comercial, conforme previsto temas, constantes das notas acima lista-
no Acordo TRIPS (Art. 43-A, Lei de Pa- das), vamos nos concentrar aos temas “não”
tentes 9.279/96)38. tratados nele.
2) Decreto: criação do conselho
de  direitos de Propriedade intelectual O estudo sobre o uso das flexibilidades
(CODIPI)39: do sistema de Propriedade Intelectual
a) vinculado à Casa Civil da Pre- Em estudo preparado por encomenda
sidência da República (o GIPI é atual- da Secretaria de Assuntos Estratégicos da
mente vinculado à Câmara de Comércio Presidência da República, em 201040, cou-
Exterior, que está sob o Min. do Desen- be-nos sugerir as modificações necessárias
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 191

à norma brasileira de patentes para  me- I - ficar caracterizada situação de


lhor  atender os propósitos de incenti- dependência de uma patente ou depósito,
vo à inovação. em relação à outra patente ou depósito;
A possibilidade de retroação perante II - o objeto da patente ou depósito
direito internacional pertinente dependente constituir substancial pro-
O ponto inicial de nossa perquirição é gresso técnico em relação ao anterior; e
que os textos internacionais em vigor entre III - o titular não realizar acordo
nós não impedem o uso de flexibilidades com o titular da patente ou depósito de-
ainda não aproveitadas (salvo se determi- pendente para exploração da patente ou
nadas por termo certo) e mesmo não vedam depósito anterior.
“o retorno ao padrão mínimo dos tratados § 1º. Para os fins deste artigo con-
se a lei nacional deles tenha excedido”. Co- sidera-se da patente ou depósito depen-
mentei a questão de um país, como o fez o dente aquele cuja exploração depende
Brasil, ir além do que o TRIPs impõe41 en- obrigatoriamente da utilização do objeto
tendendo que ou haveria razões domésticas de patente ou depósito anterior.
requerendo uma proteção de propriedade § 2º. Para efeito deste artigo, uma
intelectual maior ou outros motivos. E, patente ou depósito contendo reivindi-
exatamente tendo em vista o que agora se cação de processo poderá ser conside-
propõe, quais são os limites de se voltar ao rada dependente de patente ou depósito
que TRIPs impunha42. Assim, ainda que a contendo reivindicação do produto res-
retroação aos limites mínimos de TRIPs pectivo, bem como o caso inverso.
seja lícita, e não violem o TRIPs, há que se § 3º. O titular da patente ou depó-
tomarem os devidos cuidados para que não sito licenciada na forma deste artigo terá
ocorram violações relativas a demandas direito a licença compulsória cruzada da
de não violação. Um elemento importante patente ou depósito dependente.
desse cuidado é evitar que ocorra um des-
balanceamento de direitos e obrigações, e 2. Intercessão patente e cultivar
evitar que não se frustrem as expectativas Texto a alterar.
razoáveis dos demais Estados-membros ao Da Lei 9.279/96:
momento em que o TRIPs era negociado. Art. 42. A patente confere ao seu
titular o direito de impedir terceiro, sem
As propostas de flexibilização o seu consentimento, de produzir, usar,
1. Licenças de dependência colocar à venda, vender ou importar com
Texto a modificar. estes propósitos:
Lei 9.279/96: I - produto objeto de patente;
Art. 70. A licença compulsória II - processo ou produto obtido di-
será  ainda concedida quando, cumula- retamente por processo patenteado.
tivamente, se verificarem as seguintes § 1º. Ao titular da patente e asse-
hipóteses: gurado ainda o direito de impedir que
No tocante às
patentes, não só
remédio é assunto
essencial.”
194 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

terceiros contribuam para que outros Art. 43 (...)


pratiquem os atos referidos neste artigo. VIII - A venda ou outra forma de
§ 2º. Ocorrerá violação de direito comercialização de material de propa-
da patente de processo, a que se refere gação vegetal a um agricultor pelo titular
o inciso II, quando o possuidor ou pro- da patente ou com seu consentimento
prietário não comprovar, mediante de- para o uso agrícola implica a permissão
terminação judicial específica, que o seu de o agricultor utilizar o produto de sua
produto foi obtido por processo de fa- colheita nas hipóteses previstas no art.
bricação diverso daquele protegido pela 10 da lei n.º 9.456, de 25 de abril de 199743.
patente.
§ 3º - O disposto no inciso II Também, aperfeiçoando a interces-
do  caput, no tocante aos produtos dire- são nos moldes pertinentes ao exemplo da
tamente obtidos por processos paten- União Europeia, no tocante à recíproca
teados, não será aplicável às cultivares licença de dependência entre as duas mo-
suscetíveis de proteção segundo a legis- dalidades de proteção (emenda ainda à Lei
lação própria. 9.279/96):
Art. 70-A
No dispositivo acima, perfaz-se a imu- Caso o requerente ou titular dos
nidade do “campo reservado à proteção pe- direitos previstos pela lei n.º 9.456, de
los cultivares” aos efeitos das patentes de 25 de abril de 1997 não puder explo-
processo. No texto abaixo, no qual se emen- rar o respectivo cultivar sem infringir
da o disposto das limitações às patentes, uma patente anterior, ser-lhe-á faculta-
prevê-se que uma vez que se faça chegar do solicitar ao Instituto Nacional da Pro-
ao agricultor “material de propagação” (ou priedade Industrial licença compulsória,
seja, o elemento que é protegível por regis- não exclusiva, da invenção protegida
tro de cultivares) que porventura se tenha pela patente, sujeita ao pagamento da
protegido por patentes, o agricultor terá, em remuneração calculada na forma do art.
relação a tal material, exatamente as mes- 73 desta Lei.
mas faculdades que teria caso esse material Parágrafo único - Sendo tal licença
fosse protegido por registro de cultivares. concedida, o titular da patente terá  di-
Embora a neutralização dos efeitos de uma reito a uma licença cruzada em condi-
patente de processo, tratada acima, deva ções  razoáveis, para utilizar a varieda-
equalizar o tratamento das tecnologias na de protegida.
maior parte das circunstâncias, outros ti- Art. 70-B
pos de patentes para as quais possa haver Caso o titular de uma patente rela-
proteção de produto (por exemplo, os resul- tiva a uma invenção biotecnológica não
tados sobre uma planta de uma tecnologia puder explorá-la sem infringir um di-
de microrganismos transgênicos) serão co- reito de registro de cultivares, ser-lhe-á
lhidos pelo dispositivo a seguir: facultado solicitar ao órgão competente
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 195

para a emissão do respectivo certificado transformação do núcleo atômico; e


de registro uma licença obrigatória para III - o todo ou parte dos seres vivos,
a exploração não exclusiva da variedade exceto os microrganismos transgêni-
protegida por esse direito, sujeito ao pa- cos  que atendam aos três requisitos de
gamento de uma remuneração adequada. patenteabilidade - novidade, ativida-
Parágrafo único - Caso tal licença de inventiva e aplicação industrial - pre-
seja concedida, o titular do registro de vistos no art. 8º e que não sejam mera
cultivar tem direito a uma licença cruza- descoberta.
da, em condições razoáveis, para utilizar IV - técnicas e métodos operatórios
a invenção protegida. ou cirúrgicos, bem como métodos tera-
Art. 70-C pêuticos ou de diagnóstico, para aplica-
Nas hipóteses dos artigos 70-A e ção no corpo humano ou animal;
70-B desta lei, os requerentes das licen- Parágrafo único. Para os fins desta
ças deverão provar: Lei, microrganismos transgênicos são
(A) que solicitaram, sem obterem, organismos, exceto o todo ou parte de
ao titular da patente ou do registro de plantas ou de animais, que expressem,
cultivar uma licença voluntária; mediante intervenção humana direta em
(B) a variedade vegetal ou a in- sua composição genética, uma caracte-
venção representa um progresso técni- rística normalmente não alcançável pela
co importante de interesse econômico espécie em condições naturais.
considerável relativamente à invenção
reivindicada na patente ou à variedade No inciso I, coloca-se a redação em
vegetal protegida. sintonia com o trecho de TRIPs, “restrin-
gindo-se” a impatenteabilidade às hipóte-
3. Alterações aos arts. 10 e 18 da LPI ses em que a “exploração comercial deva ser
Texto a alterar. excluída”, evitando-se assim a consagração,
Na Lei 9.279/96: através dos sistemas de patentes, de cria-
Art. 18. Não são patenteáveis: ções industriais que a política pública en-
I – as criações industriais cuja ex- tenda dever excluir da exploração. Mesmo
ploração comercial deva ser excluída sendo uma exclusiva, a patente não inclui
para proteção da moral, dos bons costu- o poder de usar o invento nas hipóteses em
mes, do meio ambiente, e da segurança, que haja razões de direito que impeçam a
ordem ou saúde públicas; exploração da solução técnica na atividade
II - as substâncias, matérias, mis- econômica; mas a consagração pelo Estado,
turas, elementos ou produtos de qual- através da concessão da patente, introduz
quer espécie, bem como a modificação uma contradição no agir estatal, que TRIPs
de suas propriedades físico-químicas entende evitável44.
e os respectivos processos de obtenção A segunda alteração importa em “au-
ou modificação, quando resultantes de mentar os casos de impatenteabilidade”,
196 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

aproveitando-se da flexibilidade de TRIPs patenteamento de material encontrado na


que permite denegar patentes às hipóteses natureza é a criação de uma exclusividade
em que a exploração da criação industrial nova sobre algo já existente, assim impedin-
importasse em lesão de valores relativos ao do seus usos já conhecidos, com os efeitos
meio ambiente. Em contexto histórico, no anticompetitivos já mencionados.
qual se prestigiam as políticas de preserva- Há algum tempo tem sido apontada
ção ambiental, é talvez insustentável que se como um problema que, enquanto a patente
suprima da lei brasileira o caso de impaten- só tem de divulgar uma utilização especí-
teabilidade que consagra tais políticas, abs- fica de um gene para mostrar aplicabilida-
tendo-se de utilizar uma hipótese de flexibi- de industrial, uma vez que esse limiar seja
lidade consagrada no direito internacional satisfeito, o privilégio assegura o controle
aplicável ao Brasil. sobre “todos os usos” do gene patenteado;
Ainda à Lei 9.279/96: mesmo aqueles empregos que não tivessem
Art. 10 - Não é invenção nem mode- sido descritos ou sequer imaginados. Isso
lo de utilidade: (...) levou alguns autores a argumentarem que
VIII – (revogado); e a proteção em tais casos deve ser limitada
IX - o todo ou parte de seres vivos ao que fosse realmente revelada no pedido.
naturais e materiais biológicos encon- Apesar da óbvia importância de tal questão,
trados na natureza, ou ainda que dela a matéria só foi resolvida no âmbito euro-
isolados inclusive o genoma ou germo- peu em 6 de julho de 2010, com a decisão do
plasma de qualquer ser vivo natural e os caso Monsanto Technology LLC v Cefetra
processos biológicos naturais. (NR) BV , tendo o tribunal declarado que a norma
Parágrafo único – No caso de ele- regional impede que as legislações nacio-
mento isolado da natureza através de nais venham a garantir ao titular quaisquer
processo técnico, que lhe confira em- direitos sobre tais tecnologias além dos em-
prego ainda não conhecido, em solução pregos revelados no pedido 45.
técnica dotada de atividade inventiva e A proposta redacional acima aplica
aplicabilidade industrial, poderá ape- exatamente essa tática de proteção especí-
nas  ser reivindicada tal aplicação espe- fica, visando estimular a inovação com base
cífica,  como suficientemente descrita em produtos naturais, sem criar uma exclu-
no pedido de patente, restando todas de- sividade para o emprego do elemento em
mais em livre uso. usos conhecidos ou a se conhecer.

Reiterando-se as considerações acima, 4. Prorrogação de patentes


da necessidade de uma avaliação mais ex- Do texto legal a alterar.
tensa das políticas públicas quanto ao setor À Lei 9.279/96:
biotecnológico nacional, a sugestão cons- Art. 40. A patente de invenção vigo-
tante do parágrafo acrescido ao artigo 10 se- rará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de
gue caminho singular. Uma das objeções ao modelo de utilidade pelo prazo 15 (quin-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 197

ze) anos contados da data de depósito. nho da recusa ou nulidade da patente nas
Parágrafo único. O Instituto Na- hipóteses do art. 31 da Medida Provisória,
cional da Propriedade Industrial será mas a da adjudicação da patente. Assim,
responsável pelos danos efetivamente segue-se o caminho consagrado no nosso
causados aos titulares dos direitos em direito, de prestigiar a patente, mas assegu-
virtude do atraso nos procedimentos ad- rando-se os interesses anteriores ao pedido
ministrativos diretamente resultantes através da adjudicação do todo ou parte do
de sua inação, caso o prazo de vigência privilégio concedido46.
da patente constante da respectiva carta Com efeito, punir-se com a perda da
não atinja a metade do termo indicado patente a infração de falta de informação
neste artigo. de origem – se a patente é por outras ra-
zões válidas – privaria os interessados dos
5. F
 alta de indicação da origem dos eventuais benefícios da exclusiva, sem ter
recursos genéticos reparado as eventuais infrações das regras
Texto a alterar. de consentimento informado. Lembre-
À Lei 9.279/96 -se, aliás, que (enquanto não estabelecidas
Art. 49. No caso de inobservância normas internacionais quanto ao caso)
do disposto no art. 6º, o inventor poderá, como as regras brasileiras não impedem a
alternativamente, reivindicar, em ação concessão de patentes em outros países, a
judicial, a adjudicação da patente. perda ocorreria sem nenhuma possibilida-
Parágrafo único – No caso de vio- de de reparação.
lação das obrigações constituídas pela A adjudicação poderia constituir-se
legislação federal, no tocante ao patri- em aquisição parcial, por exemplo, na hi-
mônio genético e ao acesso ao conhe- pótese de que o recurso genético ou conhe-
cimento tradicional a ele associado, os cimento associado represente um insumo
interesses patrimoniais das pessoas ou para uma invenção mais complexa. Nes-
comunidades lesadas pela violação po- sas  hipóteses, um elemento do direito co-
derão igualmente facultar a adjudicação mum que tem de se levar em consideração
total ou proporcional da patente, na for- são as regras de divisibilidade do condomí-
ma deste artigo, não se aplicando neste nio (art. 1320 e seg. do CC); nesses casos,
caso as normas da lei civil quanto à dis- será do interesse manter a integridade da
solução do eventual condomínio, e atri- coisa comum.
buindo-se ao agente fiduciário indicado A segunda questão a ser enfrentada é
em regulamento o exercício das faculda- da titularidade da parcela condominial. To-
des de titular do titular de privilégio rela- mou-se aqui o exemplo do trust, instituto fi-
tivas ao patrimônio de beneficiários não duciário do direito pátrio (Lei n.º 8.668/93)
dotados de personalidade jurídica. no qual o agente exerce faculdades relativas
ao exercício de direitos patrimoniais em fa-
A solução sugerida não adota o  cami- vor de terceiros.
198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

6. Período de graça Art. 6º. (...) § 2º. A patente poderá ser


Texto a alterar. requerida em nome próprio, pelos herdei-
À Lei 9.279/96 ros ou sucessores do autor, pelo cessioná-
Art. 12. Não será considerada como rio ou por aquele a quem a lei ou o contra-
estado da técnica a divulgação de  in- to de trabalho ou de prestação de serviços
venção ou modelo de utilidade, quan- determinar que pertença a titularidade.
do ocorrida durante os 12 (doze) me- Lei Complementar nº 123, de 14 de
ses  que precederem a data de depósito dezembro de 2006:
ou a da prioridade do pedido de patente Art. 3º Para os efeitos desta Lei
se promovida: Complementar, consideram-se micro-
I – pelos legitimados ao pedido se- empresas ou empresas de pequeno por-
gundo o art. 6º, § 2º, se pessoa natural, te a sociedade empresária, a sociedade
microempresa ou empresa de peque- simples e o empresário a que se refere o
no porte nacional ou estrangeira, com art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janei-
tal classificável segundo o art. 3º da Lei ro de 2002, devidamente registrados no
Complementar nº 123, de 14 de dezem- Registro de Empresas Mercantis ou no
bro de 2006, assim como as pessoas de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, con-
direito público; forme o caso, desde que:
II - pelo Instituto Nacional da Pro- I - no caso das microempresas,
priedade Industrial - INPI, através de o  empresário, a pessoa jurídica, ou a
publicação oficial do pedido de patente ela  equiparada, aufira, em cada ano-ca-
depositado sem o consentimento do in- lendário, receita bruta igual ou inferior
ventor, baseado em informações deste a  R$ 240.000,00 (duzentos e quaren-
obtidas ou em decorrência de atos por ta mil reais);
ele realizados; ou II - no caso das empresas de peque-
III - por terceiros não autorizados, no porte, o empresário, a pessoa jurídica,
com base em informações obtidas direta ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-
ou indiretamente das pessoas referidas -calendário, receita bruta superior a R$
no inciso I deste artigo, ou em decorrên- 240.000,00 (duzentos e quarenta mil re-
cia de atos por estas realizados. ais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00
Parágrafo único. O INPI poderá (dois milhões e quatrocentos mil reais).
exigir do inventor declaração relativa § 1º Considera-se receita bruta,
à divulgação, acompanhada ou não de para fins do disposto no caput deste arti-
provas, nas condições estabelecidas em go, o produto da venda de bens e serviços
regulamento. nas operações de conta própria, o preço
dos serviços prestados e o resultado nas
Os textos citados são: operações em conta alheia, não incluídas
as vendas canceladas e os descontos in-
Lei 9.279/96: condicionais concedidos.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 199

§ 2º No caso de início de atividade que trata o inciso II do caput deste artigo;


no próprio ano-calendário, o limite a que V - cujo sócio ou titular seja admi-
se refere o caput deste artigo será pro- nistrador ou equiparado de outra pessoa
porcional ao número de meses em que a jurídica com fins lucrativos, desde que a
microempresa ou a empresa de pequeno receita bruta global ultrapasse o limite
porte houver exercido atividade, inclusi- de que trata o inciso II do caput deste
ve as frações de meses. artigo;
§ 3º O enquadramento do empresá- VI - constituída sob a forma de coo-
rio ou da sociedade simples ou empresá- perativas, salvo as de consumo;
ria como microempresa ou empresa de VII - que participe do capital de ou-
pequeno porte bem como o seu desen- tra pessoa jurídica;
quadramento não implicarão alteração, VIII - que exerça atividade de ban-
denúncia ou qualquer restrição em re- co comercial, de investimentos e de de-
lação a contratos por elas anteriormente senvolvimento, de caixa econômica, de
firmados. sociedade de crédito, financiamento e
§ 4º Não poderá se beneficiar do investimento ou de crédito imobiliário,
tratamento jurídico diferenciado pre- de corretora ou de distribuidora de tí-
visto nesta Lei Complementar, incluído tulos, valores mobiliários e câmbio, de
o regime de que trata o art. 12 desta Lei empresa de arrendamento mercantil, de
Complementar, para nenhum efeito le- seguros privados e de capitalização ou de
gal, a pessoa jurídica: previdência complementar;
I - de cujo capital participe outra IX - resultante ou remanescente
pessoa jurídica; de cisão ou qualquer outra forma de des-
II - que seja filial, sucursal, agência membramento de pessoa jurídica que te-
ou representação, no País, de pessoa jurí- nha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-
dica com sede no exterior; -calendário anteriores;
III - de cujo capital participe pessoa X - constituída sob a forma de so-
física que seja inscrita como empresário ciedade por ações.
ou seja sócia de outra empresa que rece- § 5º O disposto nos incisos IV e VII
ba tratamento jurídico diferenciado nos do § 4º deste artigo não se aplica à par-
termos desta Lei Complementar, desde ticipação no capital de cooperativas de
que a receita bruta global ultrapasse o crédito, bem como em centrais de com-
limite de que trata o inciso II do caput pras, bolsas de subcontratação, no con-
deste artigo; sórcio referido no art. 50 desta Lei Com-
IV - cujo titular ou sócio participe plementar e na sociedade de propósito
com mais de 10% (dez por cento) do capi- específico prevista no art. 56 desta Lei
tal de outra empresa não beneficiada por Complementar, e em associações asse-
esta Lei Complementar, desde que a re- melhadas, sociedades de interesse eco-
ceita bruta global ultrapasse o limite de nômico, sociedades de garantia solidária
200 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

e outros tipos de sociedade, que tenham (duzentos mil reais) multiplicados pelo
como objetivo social a defesa exclusiva número de meses de funcionamento
dos interesses econômicos das micro- nesse período estarão excluídas do regi-
empresas e empresas de pequeno porte. me desta Lei Complementar, com efeitos
§ 6º Na hipótese de a microempre- retroativos ao início de suas atividades.
sa ou empresa de pequeno porte incorrer § 11. Na hipótese de o Distrito Fede-
em alguma das situações previstas nos ral, os Estados e seus respectivos Muni-
incisos do § 4º deste artigo, será excluí- cípios adotarem o disposto nos incisos I
da do regime de que trata esta Lei Com- e II do caput do art. 19 e no art. 20 desta
plementar, com efeitos a partir do mês Lei Complementar, caso a receita bruta
seguinte ao que incorrida a situação im- auferida durante o ano-calendário de
peditiva. início de atividade ultrapasse o limite
§ 7º Observado o disposto no § 2º de R$ 100.000,00 (cem mil reais) ou R$
deste artigo, no caso de início de ativida- 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais),
des, a microempresa que, no ano-calen- respectivamente, multiplicados pelo nú-
dário, exceder o limite de receita bruta mero de meses de funcionamento nesse
anual previsto no inciso I do caput deste período, estará excluída do regime tribu-
artigo passa, no ano-calendário seguinte, tário previsto nesta Lei Complementar
à condição de empresa de pequeno porte. em relação ao pagamento dos tributos
§ 8º Observado o disposto no § 2º estaduais e municipais, com efeitos re-
deste artigo, no caso de início de ativida- troativos ao início de suas atividades.
des, a empresa de pequeno porte que, no § 12. A exclusão do regime desta Lei
ano-calendário, não ultrapassar o limite Complementar de que tratam os §§ 10
de receita bruta anual previsto no inciso e 11 deste artigo não retroagirá ao início
I do caput deste artigo passa, no ano-ca- das atividades se o excesso verificado em
lendário seguinte, à condição de micro- relação à receita bruta não for superior
empresa. a 20% (vinte por cento) dos respectivos
§ 9º A empresa de pequeno porte limites referidos naqueles parágrafos, hi-
que, no ano-calendário, exceder o limite póteses em que os efeitos da exclusão dar-
de receita bruta anual previsto no inci- -se-ão no ano-calendário subsequente.
so II do caput deste artigo fica excluída,
no ano-calendário seguinte, do regime Assim, torna-se claro a destinação de
diferenciado e favorecido previsto por política pública do período de graça: o in-
esta  Lei Complementar para todos os ventor individual, a micro empresa e em-
efeitos legais. presa de pequeno porte, e as pessoas de di-
§ 10. A microempresa e a empre- reito público.
sa de pequeno porte que no decurso do
ano-calendário de início de atividade 7. M
 odificação das reivindicações
ultrapassarem o limite de R$ 200.000,00 após o depósito do pedido
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 201

Texto a alterar. § 1º. Se o infrator obteve, por qual-


À Lei 9.279/96: quer meio, conhecimento do conteúdo
Art. 32. Para melhor esclarecer ou do pedido depositado, anteriormen-
definir o pedido de patente, o depositan- te à  publicação, contar-se-á o período
te poderá efetuar alterações até o reque- da  exploração indevida para efeito da
rimento do exame, desde que estas se indenização a partir da data de início
limitem à matéria inicialmente revelada da exploração.
no pedido. § 2º. Quando o objeto do pedido
Parágrafo único – Quando o deferi- de patente se referir a material bioló-
mento do pedido de patente importar em gico, depositado na forma do parágrafo
qualquer mudança do quadro reivindi- único do art. 24, o direito à indenização
catório publicado na forma do art. 30, tal será somente conferido quando o mate-
fato será consignado ao se dar publicida- rial  biológico se tiver tornado acessível
de ao respectivo ato. ao público.
Art. 212. Salvo expressa disposição § 3º. O direito de obter indenização
em contrário, das decisões de que trata por exploração indevida, inclusive com
esta Lei cabe recurso, que será interpos- relação ao período anterior à concessão
to no prazo de 60 (sessenta) dias. da patente, está limitado ao conteúdo do
§ 1º. Os recursos serão recebidos seu objeto, na forma do art. 41.
nos efeitos suspensivo e devolutivo ple- § 4º. Quando a patente for concedi-
no, aplicando-se todos os dispositivos da com mudança do quadro reivindica-
pertinentes ao exame de primeira ins- tório publicado na forma do art. 30, a in-
tância, no que couber. denização por exploração indevida com
§ 2º. Não cabe recurso da decisão relação ao período anterior à concessão
que determinar o arquivamento defini- da patente só alcançará a matéria abran-
tivo de pedido de patente ou de registro gida pelas modificações da reivindicação
e da que deferir pedido de patente ou de após a publicidade do ato exigida pelo
certificado de adição, exceto na hipótese parágrafo único do art. 32.
do parágrafo único do art. 32, ou de regis-
tro de marca. A proposta é de que, na publicação
§ 3º. Os recursos serão decididos em que se deferir o pedido de patente, de-
pelo Presidente do INPI, encerrando-se verá ser mencionado que houve alteração
a instância administrativa. de quadro reivindicatório, em face do an-
Art. 44. Ao titular da patente é as- teriormente publicado. Nessa hipótese,
segurado o direito de obter indenização caberá recurso dos eventuais prejudicados
pela exploração indevida de seu objeto, pela alteração. Assim, ainda que não caiba
inclusive em relação à exploração ocor- ampliação do escopo, a alteração poderá ser
rida entre a data da publicação do pedido objeto de defesa por parte dos terceiros in-
e a da concessão da patente. teressados. Complementarmente, a retroa-
202 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ção dos efeitos da patente não alcançará as caso se verifiquem, cumulativamente, as


modificações ainda não dadas a público. seguintes hipóteses:
I – se o requerente da licença com-
8. I nversão do ônus da prova em rei- pulsória tiver solicitado do titular da
vindicações de processo patente autorização para exploração de
Texto a alterar. seu objeto, ou parte dele, em condições
À Lei 9.279/96: comercialmente razoáveis, não obtendo
Art. 42 (...) resposta favorável nos 120 dias da soli-
§ 2º. Ocorrerá violação de direito citação;
da patente de processo, a que se refere II – o bem econômico protegido
o inciso II, quando o possuidor ou pro- pela exclusividade da patente não en-
prietário não comprovar, mediante de- contre substituto no mercado relevante,
terminação judicial específica, que o seu capaz de atender a demanda específica
produto foi obtido por processo de fa- de seu consumo.
bricação diverso daquele protegido pela § 1º. – A licença compulsória tam-
patente, quando ambos forem idênticos: bém será deferida, alternativamente ao
a) se o produto obtido pelo proces- inciso II deste artigo, caso o requerente
so patenteado for novo; pretenda usar o objeto da patente, ou
b) se existir probabilidade signi- parte dele, como insumo indispensável
ficativa de o produto idêntico ter sido de sua atividade econômica, em mercado
feito pelo processo e o titular da patente distinto daquele explorado pelo titular
não tiver sido capaz, depois de empregar da patente, sendo-lhe tal impossível pela
razoáveis esforços, de determinar o pro- exclusividade que detém o titular.
cesso efetivamente utilizado. § 2º. – Requerida a licença compul-
sória na forma do art. 73, e não aceitando
O texto em questão apenas reproduz o titular as condições propostas, o INPI
TRIPs. ouvirá a autoridade competente do Siste-
ma Brasileiro de Defesa da Concorrência
9. D
 ireito de fruição em patentes quanto às condições do inciso I do caput,
pipeline e § 1º deste artigo, considerando-se
Texto a alterar47. como preenchidos tais requisitos  legais
À Lei 9.279/96: caso inexistir pronunciamento negativo
Art. 68-A – Nos casos em que a pa- nos cento e oitenta dias da consulta.
tente tenha sido requerida no Brasil em
momento em que o respectivo objeto A proposta cria uma nova hipótese de
já se encontrasse no estado da técnica, licença compulsória, submetida a todos os
como definido no art. 11, e concedida requisitos legais aplicáveis às demais licen-
nos termos da legislação então aplicável, ças para uso privado. Será objeto de licen-
poderá ser deferida licença compulsória ça apenas a patente que, ao ser requerida,
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 203

já tiver seu objeto no estado da técnica; é o do objeto da patente, que deverá desti-


que ocorre no caso das patentes pipeline. nar-se, predominantemente, ao merca-
O fundamento primário da licença é a do interno, extinguindo-se nesse caso a
recusa em licenciar voluntariamente a pa- excepcionalidade prevista no inciso I do
tente em condições comerciais razoáveis, parágrafo anterior.
nas hipóteses em que a patente controlar § 3º. No caso de a licença compul-
o acesso ou manutenção a um mercado es- sória ser concedida em razão de abuso de
pecífico. Igualmente seria possível obter a poder econômico, ao licenciado, que pro-
licença quando a patente controla o acesso põe fabricação local, será garantido um
do requerente a mercado a jusante. Segue- prazo, limitado ao estabelecido no art.
-se assim o exemplo de outros sistemas ju- 74, para proceder à importação do objeto
rídicos, em relação aos quais não se susci- da licença, desde que tenha sido coloca-
tou colisão com os parâmetros de TRIPs48. do no mercado diretamente pelo titular
ou com o seu consentimento.
10. Exaustão de direitos de patente § 4º. No caso de importação para
Texto a alterar. exploração de patente e no caso da im-
À Lei 9.279/96: portação prevista no parágrafo anterior,
Art. 68. O titular ficará sujeito a ter será igualmente admitida a importação
a patente licenciada compulsoriamente por terceiros de produto fabricado de
se exercer os direitos dela decorrentes de acordo com patente de processo ou de
forma abusiva, ou por meio dela praticar produto, desde que tenha sido colocado
abuso de poder econômico, comprovado no mercado diretamente pelo titular ou
nos termos da lei, por decisão adminis- com o seu consentimento.
trativa ou judicial. § 5º. A licença compulsória de
§ 1º. Ensejam, igualmente, licença que trata o § 1º somente será requerida
compulsória: após decorridos 3 (três) anos da conces-
I - a não exploração do objeto da pa- são da patente.
tente no território brasileiro por falta de Art. 43. O disposto no artigo ante-
fabricação ou fabricação incompleta do rior não se aplica:
produto, ou, ainda, a falta de uso integral I - aos atos praticados por terceiros
do processo patenteado, ressalvados os não autorizados, em caráter privado e
casos de inviabilidade econômica, quan- sem finalidade comercial, desde que não
do será admitida a importação; ou acarretem prejuízo ao interesse econô-
II - a comercialização que não sa- mico do titular da patente;
tisfizer às necessidades do mercado. II - aos atos praticados por tercei-
§ 2º. A licença só poderá ser reque- ros não autorizados, com finalidade ex-
rida por pessoa com legítimo interesse e perimental, relacionados a estudos ou
que tenha capacidade técnica e econô- pesquisas científicas ou tecnológicas;
mica para realizar a exploração eficiente III - à preparação de medicamento
Para a exaustão
de patente, vamos
escolher o modelo
sul americano.”
205
206 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de acordo com prescrição médica para incluída no dispositivo que regula a licença
casos individuais, executada por profis- compulsória; tal fato tem tido um efeito di-
sional habilitado, bem como ao medica- dático negativo. Torna-se necessário ficar
mento assim preparado; claro que a exaustão internacional é uma li-
IV - a produto fabricado de acordo mitação à patente, e não o remédio heroico
com patente de processo ou de produto da licença compulsória.
que tiver sido colocado no mercado in- Além disso, a atual forma de exaustão
terno diretamente pelo titular da patente internacional é “condicional” à falta de fa-
ou com seu consentimento; bricação local e ao fato de o titular “apenas”
V - a terceiros que, no caso de pa- importar49. No sistema proposto, a falta de
tentes relacionadas com matéria viva, fabricação local continua sendo objeto da
utilizem, sem finalidade econômica, o licença compulsória pertinente, mas não
produto patenteado como fonte inicial haverá vinculação da exaustão a esse fato, o
de variação ou propagação para obter que passará também a potencialmente evi-
outros produtos; e tar a segregação do mercado e a prática de
VI - a terceiros que, no caso de pa- preços não competitivos.
tentes relacionadas com matéria viva,
utilizem, ponham em circulação ou co- 11. Cláusula geral de limitações
mercializem um produto patenteado Texto a alterar.
que haja sido introduzido licitamente no À Lei 9.279/96:
comércio pelo detentor da patente ou por Art. 43. O disposto no artigo ante-
detentor de licença, desde que o produto rior não se aplica: (...)
patenteado não seja utilizado para mul- Parágrafo único – Considerando
tiplicação ou propagação comercial da a destinação do sistema de patentes ao
matéria viva em causa. interesse social, ao desenvolvimento
VII - aos atos praticados por ter- econômico e social do País, e levando em
ceiros não autorizados, relacionados à conta especialmente as necessidades da
invenção protegida por patente, desti- saúde pública, assim como o propósito
nados exclusivamente à produção de de estimular dos investimentos na ob-
informações, dados e resultados de tes- tenção de novas tecnologias, a decisão
tes, visando à obtenção do registro de judicial poderá declarar num caso es-
comercialização, no Brasil ou em outro pecífico que o disposto no art. 42 não se
país, para a exploração e comercializa- aplica em outros casos que não os men-
ção do produto objeto da patente, após a cionados neste artigo, quando a hipótese
expiração dos prazos estipulados no art. em questão não conflite de forma não ra-
40. (Incluído pela Lei nº 10.196, de 2001). zoável a exploração normal da patente e
não prejudique de forma não razoável os
Pela atual norma, a norma de exaus- interesses legítimos de seu titular.
tão  internacional está topologicamente
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 207

12. Da licença compulsória por falta Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
de uso quando externas à atividade econômica
Texto a alterar. do titular, ou ainda quando comprovar a
Art. 68. O titular ficará sujeito a ter realização de sérios e efetivos preparati-
a patente licenciada compulsoriamente vos para uma exploração imediata.
se exercer os direitos dela decorrentes de Art. 73. Salvo nas hipóteses de li-
forma abusiva, ou por meio dela praticar cença compulsória do art. 71, o respecti-
abuso de poder econômico, comprovado vo pedido deverá ser formulado median-
nos termos da lei, por decisão adminis- te indicação das condições oferecidas ao
trativa ou judicial. titular da patente, comprovando-se:
Parágrafo único. No caso de a licen- I – que o titular, solicitado a con-
ça compulsória ser concedida em razão ceder licença voluntária, em condi-
de abuso de poder econômico, ao licen- ções  comercialmente aceitáveis, deixou
ciado, que propõe fabricação local, será de aceitar o pedido nos cento e oitenta
garantido um prazo, limitado ao estabe- dias da oferta;
lecido no art. 74, para proceder à impor- II – que o requerente é pessoa com
tação do objeto da licença. legítimo interesse e que tenha capacida-
Art. 69. Para os abusos que pode- de técnica e econômica para realizar a
riam resultar do exercício do direito ex- exploração eficiente do objeto da patente.
clusivo conferido pela patente no caso de § 1º Apresentado o pedido de licen-
falta de exploração, a licença compulsó- ça, o titular será intimado para mani-
ria será concedida na forma deste artigo. festar-se no prazo de 60 (sessenta) dias,
§ 1º Caberá licença compulsória no findo o qual, sem manifestação do titular,
caso de não exploração do objeto da pa- será considerada aceita a proposta nas
tente no território brasileiro por falta de condições oferecidas.
fabricação ou fabricação incompleta do § 2º O requerente de licença que
produto, ou, ainda, a falta de uso integral invocar abuso de direitos patentários ou
do processo patenteado, ou quando a res- abuso de poder econômico deverá juntar
pectiva comercialização não satisfizer às documentação que o comprove.
necessidades do mercado. § 3º No caso de a licença compul-
§ 2º A licença compulsória de que sória ser requerida com fundamento na
trata este artigo somente será requerida falta de exploração, caberá ao titular da
após decorridos 3 (três) anos da conces- patente comprovar a exploração.
são da patente. § 4º Havendo contestação, o INPI
§ 3º A licença compulsória não será poderá realizar as necessárias diligências,
concedida se, à data do requerimento, o bem como designar comissão, que poderá
titular justificar o desuso por obstáculo incluir especialistas não integrantes dos
de ordem legal, por umas das hipóteses quadros da autarquia, visando arbitrar a
previstas no art. 393, parágrafo único, da remuneração que será paga ao titular.
208 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

§ 5º Os órgãos e entidades da ad- pulsória por abuso de direitos de pa-


ministração pública direta ou indire- tente,  nos casos diversos do art. 69, a
ta, federal, estadual e municipal, presta- licença compulsória será determinada
rão  ao  INPI as informações solicitadas judicialmente, aplicando-se no que cou-
com o objetivo de subsidiar o arbitra- ber as  condições deste artigo, podendo
mento da remuneração. alternativamente à licença, ser reque-
§ 6º No arbitramento da remune- rido, inclusive de forma incidental, a
ração, serão consideradas as circunstân- inoponibilidade da patente nos casos
cias de cada caso, levando-se em conta, em que, segundo esta lei, seria cabível a
obrigatoriamente, o valor econômico da licença compulsória.
licença concedida, podendo-se, no caso
de licença por abuso do poder econômi- A redação funde e transforma os arti-
co, se entender o órgão competente do gos 68 e 69. O caput do art. 68 se mantém
Sistema Brasileiro de Defesa da Concor- inalterado, trazendo-se o parágrafo per-
rência que tal é necessário para impedir tinente da redação anterior como único.
a disfunção no uso da patente, deixar de O art. 69 passa a tratar apenas de uma das
se estabelecer valor monetário. modalidades de licença, a de falta de explo-
§ 7º Instruído o processo, o INPI ração, caracterizando-a na forma do art.
decidirá sobre a concessão e condições 5 da CUP como uma forma de licença por
da licença compulsória no prazo de 60 abuso de direitos; a redação do novo caput
(sessenta) dias. é essencialmente trazida da CUP para enfa-
§ 8º O recurso da decisão que con- tizar sua afiliação ao tratado internacional.
ceder a licença compulsória não terá O novo parágrafo único funde as duas
efeito suspensivo. hipóteses do § 1º do texto anterior, extrain-
§ 9º Todas as licenças concedidas do a cláusula “ressalvados os casos de invia-
na forma deste artigo deverão destinar- bilidade econômica, quando será admitida
-se, predominantemente, à satisfação do a importação”.
mercado interno ou mercado comum de Como a hipótese do anterior § 4º passa
Países vinculados por acordo de integra- para o artigo de limitações incondicionais,
ção econômica. a menção à importação perde o sentido; e a
§ 10 - Para efeitos dessa lei, serão falta de viabilidade econômica ou estará já
consideradas condições comercialmen- coberta pela nova formulação das isenções
te aceitáveis as praticadas com outros da licença (obstáculo de ordem legal, força
licenciados do mesmo titular, as cor- maior ou caso fortuito externo), ou não é ex-
rentemente praticadas por terceiros no cludente do interesse de uso local.
mercado onde o objeto da patente é ex- Com efeito, ou o terceiro que pretender
plorado, ou as que forem determinadas a licença terá a viabilidade que falta ao titu-
como tal pela autoridade competente. lar, o que importa em melhor competitivi-
§ 11 – No caso de licença com- dade da economia, ou a patente efetivamen-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 209

te não é suscetível de fabricação no país, o judicialmente, pois se tratam de casos com-


que não causará prejuízo ao patrimônio do plexos de matéria jurídica que o INPI não
titular. De qualquer maneira, a inviabilida- será hábil para determinar. Nesses casos,
de econômica que seria excludente é a obje- como ocorre internacionalmente, a matéria
tiva, e não a subjetiva. que legitima a licença compulsória também
´ O § 3º se mantêm inalterado. O art. poderá ser tratada como razões de defesa,
69 anterior, que estabelecia ou reiterava para se determinar que a exclusividade da
isenções de licença compulsória é raciona- patente não sofrerá abuso.
lizado: no que falava de “razões legítimas”,
passa-se a estabelecer as razões legais: a 13. Do modelo de utilidade
força maior e o caso fortuito externo. Fi- Texto a alterar.
nalmente, a isenção relativa a preparativos À Lei 9.279/96:
para a fabricação qualifica “imediata”. Art. 9º É patenteável como mode-
Introduziram-se alterações no art. 74, lo de utilidade o objeto de uso prático,
que trata do procedimento administrativo da ou parte deste, suscetível de aplicação
licença compulsório de interesse particular. industrial, que apresente nova forma ou
Em primeiro lugar, tornou-se claro o requi- disposição, envolvendo ato inventivo.
sito de TRIPs da necessidade de prévia so- § 1º - Não se concederá modelo de
licitação de licença voluntária. Em seguida, utilidade:
coloca-se como pressuposto de legitimidade I – Aos inventos relativos a proces-
do pedido a capacidade econômica de ex- sos, métodos e sistemas.
ploração do objeto da patente. No parágrafo II – Aos alimentos, produtos quí-
sexto, estabelece-se a flexibilidade de TRIPs, micos e farmacêuticos, seus processos
antes ignorada, segundo a qual há casos em de obtenção, aplicação ou modificação
que a licença não importará em pagamento. e seus usos, e aos inventos que incidam
Introduz-se também o requisito ge- sobre a matéria biológica.
ral nessas licenças o requisito de TRIPs, § 2º - Na avaliação de novidade do
segundo o qual a exploração do licenciado modelo de utilidade serão consideradas
deverá voltar-se predominantemente para exclusivamente as características físi-
o mercado interno, notando-se que no caso co-estruturais de forma ou disposição do
do mercado comum, é o mercado integrado objeto, independente de sua aplicação.
que preencherá tal qualificação. Art. 14. Na apuração do ato inven-
Para os casos deste artigo, como nos da tivo será pertinente a melhoria funcio-
licença sugerida para o caso das patentes nal no seu uso ou em sua fabricação, de
pipeline, estabelecem-se os parâmetros de forma que, para um técnico no assun-
condições comerciais aceitáveis. Finalmen- to,  considerando o estado da técnica e
te, precisa-se, em sintonia com o art. 68, que o problema técnico a resolver, a nova so-
as licenças por abuso de direitos, outras de lução técnica não seja irrelevante para o
abuso por falta de uso, serão determinadas setor produtivo.
210 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Parágrafo único – Na apuração independentemente de recolhimento de


do  ato inventivo será considerado o do- retribuição.
cumento mais próximo do estado da § 5º - Nas hipóteses em que a carta
técnica, levando-se em conta, no entan- patente seja expedida sem decisão de de-
to,  os  elementos de outras anteriorida- ferimento, na forma do § 3º, não se pre-
des diretamente mencionadas no dito sumirá a validade do ato administrativo.
documento. Art. 40. A patente concedida de
Art. 30. O pedido de patente de in- acordo com esta lei vigorará, contado o
venção será mantido em sigilo durante prazo da data de depósito:
dezoito meses, e o do modelo de utilidade I – se de invenção, por 20 (vin-
durante doze meses, contados em qual- te) anos.
quer caso da data de depósito ou da prio- II – se de modelo de utilidade, por
ridade mais antiga, quando houver, após 5 (cinco) anos, período esse prorrogável
o que será publicado, à exceção do caso por prazo igual, se requerido nos 180 dias
previsto no art. 75. (...) do fim do termo, e comprovado o paga-
Art. 37-A – O exame dos pedidos mento da retribuição pelas anuidades até
de patentes de modelo de utilidade será então devidas, e pelo novo quinquênio.
feito em prioridade aos de patente de in- Parágrafo único [como alterado]
venção, por corpo técnico que somente
se dedique a tal propósito. As alterações propostas para o art. 9º
§ 1º - Publicado o objeto do modelo importam na supressão de um duplo requi-
de utilidade na forma do art. 30, ou ini- sito (ato inventivo e melhoria funcional).
ciada a fase nacional de pedido provindo Como se lê no art. 14, precisa-se que a me-
de tratado internacional que a preveja, o lhoria, o “progresso técnico” dos índices
pedido será imediatamente examinado, técnicos de segundo grau da avaliação de
independente de solicitação. atividade inventiva, passe a ser o critério
§ 2º - O requerente recolherá a re- relevante; conservado o foco do “técnico na
tribuição de exame, em sessenta dias da arte”, o ponto de análise adota o perspecti-
publicação, arquivando-se definitiva- va problema/solução, e o critério “negativo”
mente o pedido na falta de pagamento. de falta de relevância, em vez do critério de
§ 3º - O exame levará em conta as que o invento não “decorra de maneira co-
anterioridades já publicadas ou de outra mum ou vulgar do estado da técnica”.
forma disponíveis nos estado da técnica. O que é relevante? A consideração já
§ 4º A decisão deferimento ou inde- não é a origem da tecnologia, mas de seu efei-
ferimento do pedido será publicada nos to. A atividade inventiva na invenção presu-
duzentos e setenta dias do início de exame. me uma análise cognoscitiva, em face ao es-
§ 4º - Não indeferido o pedido no tado da técnica, e não primariamente de seu
prazo do parágrafo anterior, será ime- efeito no espaço produtivo. A natureza de
diatamente expedida a carta patente, “forma” da noção de modelo e a concentra-
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 211

ção na melhoria funcional (deixando de lado O prazo de proteção alcança dois ter-
a alternativa funcional) colocam a questão mos de cinco anos, cuidando-se assim tanto
no plano da contribuição à indústria. Não ser da adequação da robustez do título à sua du-
irrelevante é distinto do “comum ou vulgar” ração, quanto induzindo ao lançamento em
ou do óbvio: fica evidenciada a inferioridade domínio público das tecnologias nas quais
do requisito. O que não for tão mínimo que o titular da patente não tenha interesse de
em nada contribua, será “relevante” para o manutenção.
técnico da arte, ainda que seja óbvio.
Para determinação do ato inventivo, Conclusão
levar-se-á em consideração apenas o docu- Este estudo indica quais as reformas
mento mais relevante do estado da técnica, que necessita a norma brasileira de paten-
sem efetuar as múltiplas combinações típi- tes para chegar a uma melhor utilização do
cas do exame da atividade inventiva. Abre- sistema legal brasileiro, ao abrigo do direito
via-se o prazo de sigilo (voluntário) para internacional pertinente, com vistas a rea-
doze meses, dos dezoito aplicáveis às paten- lizar os propósitos que a Constituição Bra-
tes de invenção, e determina-se que o exame sileira prescreve a esse mesmo sistema.
se fará só com as anterioridades publicadas Tendo em vista a contenção do espaço,
(sem esperar as que ainda estejam em sigilo). contingente à natureza de artigo em revis-
O art. 37-A introduz um caminho pró- ta, listamos apenas o texto das mudanças
prio para o exame de modelo de utilidade, legislativas que entendemos necessárias.
que importará em exame substantivo ime- O estudo completo de 2010, acima citado,
diatamente após a publicação ou a entrada contém extensamente o contexto de tais
na fase nacional do PCT. A decisão negativa propostas e a política pública pertinente.
será proferida em 270 dias, expedindo-se a Foram deliberadamente excluídas des-
carta patente em caso contrário. Exige-se te texto as propostas já incluídas no estudo
que o exame seja prioritário em face das publicado pelo Congresso Nacional, em
patentes e por corpo próprio de examinado- outubro de 2013. Ainda que não nos caiba
res, resolvendo, assim, o atual problema de subscrever em sua totalidade as propostas
retardo pela linha única de exame. nele inseridas, o seu próprio texto cita com
Dessa maneira, ao invés de suprimir o extensão nossa posição, e indicamos em no-
exame prévio, o que ocorre na quase tota- tas específicas os textos de nossas pondera-
lidade dos outros sistemas nacionais, ins- ções e discordâncias eventuais.
taura-se procedimento “legalmente” ace- Da mesma forma, não foi tratado neste
lerado, com concessão imediata caso uma estudo as modificações quanto ao regime de
decisão negativa não seja proferida em 270 apropriação dos inventos de empregados e
dias desde o início do exame. Expedida au- prestadores de serviços, objeto necessário
tomaticamente a patente, o eventual exame de profundas modificações para adequar o
de nulidade administrativa ou judicial não regime de inovação brasileiro a dos muitos
presumirá a validade do título. outros países desenvolvidos50.
212 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Denis Borges Barbosa


É advogado no Rio de Janeiro.

1 Para a definição do que seja inovação, e de como um sistema de patentes pode


servi-la, cf. BARBOSA, Denis Borges (Org). Direito da Inovação. Rio de Janeiro:
Lumen Juris Editora, 2011. Para o contexto constitucional no qual as propostas
abaixo se inserem, cf. o nosso Tratado da Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010. 1 v., cap. 3. Para o contexto internacional no qual tais propostas
se inserem, cf. o mesmo Tratado, op. cit., e, mais recentemente, BARBOSA, Denis
Borges. Patents And The Emerging Markets of Latin America. In: Frederick M.
Abbott; Carlos M. Correa; Peter Drahos. (Org.). Emerging Markets and the World
Patent Order. 1 ed. Massachusetts: Edward Elgar, 2013, v. 1, p. 135-154. Para a
questão das invenções biotecnológicas, insuficientemente tratadas neste estudo,
cf. BARBOSA, Denis Borges ; PORTO, P. ; ZUCOLOTTO, G. ; FREITAS, R. E. ; SOUZA,
A. M. E. . Matérias Patenteáveis em Biotecnologia em Países Selecionados. In:
ZUCOLOTO, Graziela Ferrero ; FREITAS, Rogério Edivaldo. (Org.). Propriedade
Intelectual e Aspectos Regulatórios em Biotecnologia. 1 ed. Rio de Janeiro: IPEA,
2013, v. 1, p. 203-237.

2 Para a transcrição das discussões no Congresso quanto à lei de 1882, cf. BAILLY,
G.A. Protection des Inventions au Brésil, Paris, 1915, p. 274 e seg. CARVALHO DE
MENDONÇA, J.X.. Tratado de Direito Comercial Brasileiro,., Campinas: Russel,
2003, 1 t., 3 v., n. 110, 134 e 136. Para discussão dos antecedentes dessa reforma,
desde a Lei de 1809, cf. MALAVOTA, Leandro Miranda. A construção do sistema
de patentes no Brasil - Um olhar histórico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
Para o panorama em torno da própria lei de 1809, cf. Clóvis da Costa Rodrigues.
A inventiva brasileira. Brasília: INL, 1972. CARVALHO, Nuno Pires. As Origens do
Sistema Brasileiro de Patentes – O Alvará de 28 de Abril de 1809 na Confluência
de Políticas Públicas Divergentes. Revista da ABPI , ed. 91, 2007; e ed. 92, 2008.
CARVALHO, N. P. , 200 Anos do Sistema Brasileiro de Patentes: O Alvará de 28
de Abril de 1809 - Comércio, Técnica e Vida. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2009.
Vide, ainda, quanto à repercussão do Alvará de 1809, de José da Silva Lisboa,
Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no
Brasil. In: ROCHA, A. P. (org.). Visconde de Cairu. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.
(edição original de 1810).

3 Reproduzimos, em parte, o que consta do nosso Tratado. 1 v., cap. 1.

4 Raymundo Faoro. Os donos do pode. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1977, p. 255. Nota
que o insucesso da experiência siderúrgica se deveu à dificuldade de transportes,
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 213

na dispersão dos consumidores, na produção autárquica de ferro em pequenas


forjas nas unidades de produção agrária, mas principalmente na eliminação da
proteção alfandegária.

5 Padre Perereca. Memórias para servir o Reino do Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia;
USP, 1981, Tomo I, p. 198. O autor, partícipe atento de todos os eventos da
época, nota que a mudança favorável na tarifa alfandegária inglesa sucedeu
imediatamente a visita inaugural do representante da Coroa Britânica a D. João VI.

6 Maria Graham, em 1822, segundo FREYRE, Gilberto. Os Ingleses no Brasil. Rio de


Janeiro: José Olympio Editora, 1945, p. 177: “em geral, os ingleses aqui vendem
suas mercadorias em grosso aos retalhistas nativos ou franceses”.

7 Antes do Plano Econômico afirmativo, um ano e 22 dias antes do Alvará que


criou nosso sistema de patentes, ocorrera o Alvará liberatório da indústria e
do comércio. Nota João da Gama Cerqueira em seu Tratado da Propriedade
Industrial, Volume I, Introdução Evolução Histórica da Propriedade Industrial No
Brasil. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1946: “Ainda na Bahia, o Príncipe Regente,
forçado pelas circunstâncias criadas pela invasão do território metropolitano e
pelo bloqueio de seus portos, assinou a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808,
pela qual mandou abrir os portos brasileiros ao comércio e à navegação das
nações amigas. Como consequência e complemento dessa providência, outras
se lhe seguiram, destacando-se o Alvará de 1.° de abril de 1808, que revogou o de
5 de janeiro de 1785 e libertou as indústrias de todas as peias e restrições a que
até então estavam sujeitas”. O Alvará de 1/4/1808 assim rezava: “Eu, o Príncipe
Regente, faço saber aos que o presente Alvará virem: que desejando promover
e adiantar a riqueza nacional, sendo um dos mananciais dela as manufaturas, e a
indústria, que multiplicam e melhoram, e dão mais valor aos géneros, e produtos
da agricultura, e das artes, e aumentam a população, dando que fazer a muitos
braços, e fornecendo meios de subsistência a muitos de meus vassalos, que por
falta deles se entregariam aos vícios da ociosidade; e convindo remover todos os
obstáculos, que podem inutilizar, e frustrar tão vantajosos proveitos. Sou servido
abolir, e revogar toda e qualquer proibição que haja a este respeito no Estado do
Brasil, e nos meus domínios ultramarinos, e ordenar que, daqui em diante, seja
lícito a qualquer dos meus vassalos, qualquer que seja o país em que habitem,
estabelecer todo o género de manufaturas sem excetuar alguma, fazendo seus
trabalhos em pequeno, ou em grande, como entenderem, que mais lhes convém,
para o que, hei por bem derrogar o Alvará de 5 de janeiro de 1785, e quaisquer leis,
ou ordens, que o contrário decidam, como se delas fizesse expressa, e individual
menção, sem embargo da lei em contrário”. Gama Cerqueira, ainda: “O Brasil
foi o quarto país do mundo a estabelecer a proteção dos direitos do inventor. O
primeiro que os reconheceu foi a Inglaterra, pelo Statute of Monopolies, de 1623.
Nos Estados Unidos, a Constituição de 1787 atribuiu competência ao Congresso
para legislar sobre a proteção das invenções, sendo promulgada a primeira lei em
1790. Na França, a Assembleia Nacional, em 7 de janeiro de 1791, votou a primeira
lei sobre privilégios de invenção. A esses países seguiu-se o nosso”.
214 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

8 Vide Clóvis da Costa Rodrigues. Op. cit.

9 Gama Cerqueira, op. cit.. “Por este alvará verifica-se que, antes de 1809, já existiam
no Brasil privilégios e monopólios, mas concedidos por mercê do governo real,
como era comum na época, sistema que prevaleceu em Portugal até princípios
do século XIX. Não conseguimos, porém, em nossas pesquisas, nenhum
esclarecimento útil a este respeito, salvo algumas referências históricas. Entre
esses privilégios pode-se citar o que foi concedido, em 1752, a António Francisco
Marques Guimarães para “erigir hua fabrica de descascar arros no Recôncavo
da Cide. do Rio “ de Jan.° por tempo de dês anos” (in Boletim ao Ministério ao
Trabalho, Indústria e Comércio, ano III, vol. 32). Segundo ROCHA POMBO (op. cit.,
vol. 5, pág. 541), “os concessionários deviam empregar aparelhos de sua invenção;
e mais nisto é que consistia o privilégio, pois ficava livre a todos os lavradores o
uso do pilão e de outros engenhos que já se usavam”. O mesmo historiador relata
que, em 1800 ou 1801, “pedia um Ezequiel de Azevedo auxílio oficial para pôr
“em prática “um invento seu de máquina de descascar arroz”; e “ El-Rei mandava
atendê-lo, se conviesse”.

10 William Hyde Price. The English Patent of Monopoly. Cambridge: The University
Press, 1906. FLOYD L. Vaughan. The United States Patent System. Westport:
Greenwood Press, 1956. Também, para a pespectiva histórica americana, cf.
WALTERSCHEID, Edward C.. To Promote the Progress of Useful Arts: American
Patent Law and Administration 1798-1836. Littleton: Fred B. Rothman & Co., 1998.

11 Yves Plasseraud, François Savignon, L’ Etat et l’ invention, Histoire des Brevets, La


Documentation Française, 1986. Para uma perspectiva mais internacional, cf. Serge
Lapointe L’Histoire Des Brevets. Disponível em: http://migre.me/iVsAw. Acesso
em: 20 br. 2014.

12 Art. 10. Toda a patente cessa, e é nenhuma: (...) 4º. Se o descobridor, ou inventor,
obteve pela mesma descoberta, ou invenção, patente em paiz estrangeiro.
Neste caso porém terá, como introductor, direito ao premio estabelecido no
art. 3º. cf. SANTOS, J.X. de Carvalho.Tratado de Direito Comercial Brasileiro.
Campinas Russel, 2003 3 v., 1 t. p. 127. Do Relátorio do Visconde de Villeneuve
das negociações da Convenção de Paris de 1880: “O art. I do “Projecto”
adoptado implica revogação de todas as disposições Iegaes que não concedem
aos estrangeiros tratamento identico ao dos reinicolas. Assim, por exemplo,
o § IV do art. X da nossa lei de 28 de agosto de 1830, relativa aos privilegios,
declara nullo e sem effeito todo privilegio, si o inventor ou descobridor já tiver
obtido privilegio em paiz estrangeiro para a mesma Invenção ou descoberta,
embora nesse caso possa o introductor obter o premio de que trata o art. III da
mesma lei . Semelhante disposição não existe n’o projecto de lei apresentado
por V. Ex. em data de 26 de agosto no anno corrente, o qual, pelo contrario,
reconhece formalmente no seu art. II e no § III do art. IIIo principio adoptado pela
Conferencia”.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 215

13 Gama Cerqueira. loc. cit.: “Durante a vigência da lei, o prémio passou a ser
substituído por um privilégio de exploração, de duração variável, concedido pelo
Governo, ad referendum do Poder Legislativo. Tal prática parece ter sido adotada
por falta de verba orçamentária destinada aos prémios instituídos pela lei. Em
1880, por aviso de 7 de abril, o ministro da Agricultura levou ao conhecimento
dos interessados a resolução tomada de não se concederem mais patentes dessa
espécie, não só em obediência ao texto expresso da lei, como também porque
nenhum mérito havia na introdução de qualquer indústria ou invenção, dadas as
maiores facilidades de comunicação, então existentes, com os países estrangeiros
e o grau de civilização a que havia atingido o país”.

14 Sendo assessor jurídico da Delegação Brasileira junto à Conferência para


Revisão da Convenção de Paris em Genebra, 1980, muito me espantei ao ler nos
documentos originais da Convenção de 1883 o nome do Visconde, no que me
pareceu ser um titulado francês. Anos depois, tomei conhecimento da carreira do
Visconde, um brasileiro filho de franceses, então dono do Jornal do Commercio e
embaixador designado por D. Pedro à corte da Baviera. Cf. Relatório do Visconde
de Villeneuve, delegado do Brasil à Conferência de Paris de 1883. Disponível em:
http://migre.me/iVsC1. Acesso em: 12 abr. 2014. Sobre a entrada do Brasil na
CUP, cf. BARBOSA, Denis Borges.Porque o Brasil entrou na Convenção de Paris
em 1883. Disponível em: http://migre.me/iVsGk. Acesso em: 12 abr. 2014. Ou cf.
BARBOSA, Denis Borges. O Impasse em Nairóbi, Marcas, Patentes e a nova Ordem
Econômica Mundial. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de set. 1981. E CRUZ
FILHO, Murillo. A Entrada do Brasil na Convenção Internacional para a Proteção
da Propriedade Industrial. Paris, 1883, 1982. Disponível em: em http://www.
denisbarbosa.addr.com/murillo.doc. Acesso em: 12 abr. 2014.

15 Lei nº 3.129, de 14 de outubro de 1882. Para comentários a essa lei, cf. SANTOS, J.X.
de Carvalho. op. cit., p. 128 e seguintes.

16 Tais números decorrem do estudo feito por Clóvis da Costa Rodrigues, A inventiva
brasileira. Brasília: INL, 1972, 2. V. Aparentemente o cômputo feito por A. G. Bailly
em Protection des inventions au Brésil, Escriptorio de Informacoes do Brasil 1915,
Apud Gama Cerqueira possui enganos.

17 RODRIGUES, Clóvis Costa. op. cit.

18 Gama Cerqueira, loc. cit., “Com a promulgação do Decreto n.° 16.264, de


1923, pouco progresso se fez nos domínios da propriedade industrial, pois o
regulamento aprovado por aquele decreto quase que reproduzia as antigas
leis sobre patentes e marcas, com pequenas inovações. Permaneceram sem
proteção especial os desenhos e modelos industriais. O nome comercial, sem
regulamentação, continuou regido, em parte, pelo velho Decreto n.° 916. No
terreno da concorrência desleal genérica, nenhuma iniciativa, continuando a
matéria dependente do direito comum e sua repressão fundada na precária
condenação do abuso de direito, à qual sempre se mostraram hostis os nossos
216 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

tribunais. A todas essas antigas deficiências, que o legislador de 1923 não cogitou
de corrigir, somavam-se os defeitos do próprio regulamento e a insuficiência da
organização administrativa por ele instituída, tudo indicando a necessidade de
ampla reforma, que a prática da lei, com o passar dos anos, punha cada vez mais
em evidência”. (...) “os capítulos referentes aos desenhos e modelos industriais,
ao nome comercial e à concorrência desleal, os quais, com algumas modificações,
foram promulgados pelo Decreto n.° 24.507, de 29 de junho de 1934”.

19 Vide, para esse período: SANTOS, Jacinto Ribeiro. Das Marcas de Fabrica e de
Commercio. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1923; NOGUEIRA, J.L. de
Almeida; FISCHER JUNIOR, GulhermeTratado Theorico e Pratico das Marcas
Industriaes e do Nome Comercial, Hennies Irmãos, São Paulo: 1910, 2 v.; BRAGA J.,
Benjamim do Carmo. Pequeno Tratado Prático das Patentes de Invenção no Brasil.
Carmo Braga & Carmo Braga, 1941; FARIA, Antonio Bento. Das Marcas de Fabrica
e de Commercio e do Nome Comercial, Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos,
1908; MAGALHÃES, Descartes Drummond de. Marcas de Industria e Commercio
e Privilegios de Invenção. São Paulo: Livraria Zenith, 1927, 2 v.. PRIVILEGIOS
de Invenção e Marcas de Fabrica e de Commercio. São Paulo: Saraiva, 1931;
LEONARDOS, Thomas. Concurrencia Desleal. Rio de Janeiro: Livraria Academica,
1927; BIRNFELD, Campos. Da Concorrencia Desleal. s/l: Ed. Brasil Patentes, 1937.

20 Para o Código de 1945, cf. o clássico CERQUEIRA, João da Gama. op. cit. 6 e
7 v.; MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. RODRIGUES, Clóvis Costa Rodrigues,
Concorrência Desleal, S/l: Ed. Peixoto, 1945.

21 Curiosamente, a literatura jurídica sobre o Código de 1971 é escassa.


Provavelmente a melhor produção no período será a de Douglas Gabriel
Domingues: Marcas e Expressões de Propaganda. Rio de Janeiro: Forense,
1984, Direito Industrial – Patentes. Rio de Janeiro: Forense, 1980, Privilégios
de Invenção, Engenharia Genética e Biotecnologia. Rio de Janeiro: Forense,
1989. Uma história das instituições, especialmente das atividades do Instituto
Nacional da Propriedade Industrial no período, pode ser encontrada em
CRUZ, Murillo.  Breve História da Administração da Propriedade Industrial e
da Transferência de Tecnologia no Brasil Ciclos Recentes - 1950/1997. Disponível
em: http://migre.me/iVsJd. Acesso em: 20 abr. 2014. ; BARBOSA, Denis Borges.
Situacíon de la Legislacíon de Propiedad Intelectual en Brasil Revista de Derecho
Industrial, Buenos Aires, 1991; e Id. A Contratação de Tecnologia após o Governo
Collor (1996), inserido em Direito de Acesso do Capital Estrangeiro. In: Direito do
Desenvolvimento Industrial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996. 1 v.

22 CRUZ, Murillo Cruz, Op. Cit. “Já no limiar do governo Sarney, nos idos de 1986,
certas propostas legislativas circulavam em alguns Ministérios, com “pressões”
externas explícitas e lobbies importantes, com vistas à substituição da norma
maior de regulamentação da propriedade industrial no Brasil à época, a
Lei n. 5772. Será, entretanto, no governo (sic) Collor, que, formalmente, um
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 217

primeiro projeto de Lei aparecerá para discussões e uma possível aprovação.


Os interessados em conhecer um pouco mais as eoluções e os bastidore da
confecção da atual (nova) Lei de Propriedade Industrial, poderão encontrar
informações importantes no artigo-reportagem de Cesar Benjamin, Lei Pate está
entregue, Revista Atenção, s/l, no 4, ano 2, 1996, São Paulo”. Cf. TACHINARDI,
Maria Helena. A guerra das patentes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993; VARELLA,
Marcelo Dias. Propriedade Intelectual De Setores Emergentes. São Paulo: Atlas,
1996, p. 40 e seguintes; FROTA, Maria Stela Pompeu Brasil. Proteção de Patentes
de Produtos Farmacêuticos: O Caso Brasileiro. Brasília: FUNAG/IPRI, 1993, p.
43-55; OLIVEIRA, Ubirajara Mach De. A Proteção Jurídica das Invenções de
Medicamentos e de Gêneros Alimentícios. São Paulo: Síntese, 2000, p. 128-158.
Quanto à complexa política da votação da Lei 9.279/96, cf.: DI BLASI, Garcia &
Mendes. A Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 159

23 A diretriz ao setor industrial e tecnológico foi delineada pela Portaria


Interministerial no. 346 de julho de 1990.

24 Modificando a Lei nº 7.646, 18 de dezembro de 1987 - Lei do “Software”.

25 Projeto de Lei da Câmara no. 1.217 de 1991, do Deputado José Carlos Coutinho,
cuja ementa era: “Suprime dispositivos do Código da Propriedade Industrial”.

26 O projeto em questão, que na sua justificativa identificava-se como sendo da


Associação Brasileira da Indústria de Química Fina garantia a patente para
os setores de fármacos, alimentos e produtos químicos, mas com a previsão
de um prazo de 10 anos para o início da proteção de processos e quinze para
de produtos; após tal período, o prazo se estenderia, como hoje, por quinze
anos. A proposta previa que as obtenções vegetais e animais, assim como os
microrganismos continuariam sem proteção, cabendo a desapropriação não
só nas hipóteses habituais, como no abuso de poder econômico. Mantinha a
proposta as exigências de fabricação no país dos itens patenteados, em prazos
relativamente curtos. Apresentado o projeto do Governo, com pedido de urgência
- embora inconstitucional - a proposta do Deputado Luiz Henrique perdeu-se no
cipoal legislativo.

27 Para uma análise contemporânea do projeto, realizada pelo autor como advogado
da Confederação Nacional da Indústria, vide http://migre.me/iZVAx.

28 Para uma análise de qual era o campo de liberdade para a nova legislação,
em face das discussões então em curso no GATT, cf.: BARBOSA, Denis Borges
Barbosa; ARRUDA, Mauro Frenando Maria. Sobre A Propriedade Intelectual,
Trabalho Desenvolvido no projeto Desenvolvimento Tecnológico da Indústria
a Constituição de um Sistema Nacional de Inovação do Brasil. Campinas: IPT/
FECAM, 1990. Disponível em: http://migre.me/iVt9o. Acesso em: 12 abr. 2014.
218 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

29 Um alongado e profundo estudo do projeto e sua elaboração legislativa se


encontra na obra mais recente de Douglas Gabriel Domingues: Comentários À Lei
da Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: FORENSE, 2010.

30 Lei no 10.196, de 14 de fevereiro de 2001, que converte uma longa série de medidas
provisórias datando de 1996. Quanto à alongada discussão da anuência prévia da
ANVISA, mais recentemente regulada pela RDC ANVISA n. 21/2013, cf. o nosso O
papel da ANVISA na concessão de patentes. Disponível em: denisbarbosa.addr.
com/papelanvisa.pdf. Acesso em: 12 abr. 2014.

31 Disponível em: http://migre.me/iVtcC. Acesso em: 12 abr. 2014.

32 Disponível em: http://migre.me/iVteR. Acesso em: 12 abr. 2014.

33 Cf. BARBOSA, Denis Borges. A inexplicável política pública por trás do parágrafo
único do art. 40, parágrafo único do CPI/96. Revista da EMARF do TRF2, Rio de
Janeiro, v. 19 ago. 2013.Disponível em: http://migre.me/iVthI. Acesso em: 12 abr.
2014. Ou disponível em: http://migre.me/iZVMQ. Acesso em: 12 abr. 2014.

34 Cf. nossos estudos A questão do segundo uso farmacêutico. Disponível em: http://
migre.me/iVtjn. Acesso em: 12 abr. 2014; POLIMORFOS, Enantiômetros & coetera.
Uma proposta de mudança legislativa. Disponível em: http://migre.me/iZVOK.
Acesso em: 12 abr. 2014.

35 Quanto à questão, cf. BARBOSA, Denis Borges; RAMOS, C. T. ; MAIOR, R. S. . O


Contributo Mínimo na Propriedade Intelectual: Atividade Inventiva, originalidade,
Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, Cf. Prefácio.
Disponível em: http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/prefacios/prefaci4.
pdf. Acesso em: 12 abr. 2014. Cf. Atividade inventiva: objetividade do exame.
Disponível em: http://migre.me/iVtkA. Acesso em: 12 de abr. 2014. Cf. Escola da
Magistratura dao TRF2. Disponível em: http://migre.me/iZVVk. Acesso em: 12 abr.
2014. Cf. Do requisito de originalidade nos desenhos industriais: a perspectiva
brasileira. Disponível em: http://migre.me/iVtlr. Acesso em: 12 abr. 2014. No
mesmo sentido, cf., Proposta de modificações legislativas quanto a Desenhos
industriais. Disponível em: http://migre.me/iZVXZ. Acesso em: 12 abr. 2014.

36 Vide a nota anterior sobre as modificações introduzidas pela Lei no 10.196, de 14


de fevereiro de 2001.

37 Cf. BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2010. 3 v., 7 cap., p. 2089-2138. E cf. Id. Proteção das Informações
Confidenciais pela Lei 9.279 (1997). Disponível em: em http://migre.me/iVtnH.
Acesso em: 12 abr. 2014 Do sigilo dos testes para registro sanitário (2002)
(incluído em Uma Introdução à Propriedade Intelectual, 2. Ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003. Disponível em: http://migre.me/iVtpe. Acesso em: 12 abr.
2014; Exclusividade de dados sigilosos apresentados às agência regulatórias:
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 219

agroquímicos,. Disponível em: http://migre.me/iZW7h. Acesso em: 12 abr. 2014.


Sobre idêntico tema, cf. BARBOSA, P. M. N. . A Proteção dos dados de testes
sigilosos submetidos à regulação estatal. Revista da Escola de Magistratura
Regional Federal. S/l, v. 12, p. 233-283, 2009; e BARBOSA, P. M. N. . Controvérsias
sobre a proteção dos dossiês clínicos envolvendo medicamentos para uso
humano. Revista Eletrônica do IBPI, s/l, n. 8, 2013.

38 Conquanto o estudo atribua à sugestão do instituto a proposta deste autor, vide


o texto original em nosso estudo de 2010, Proposta para introduzir o uso público
não comercial das patentes no direito brasileiro. Disponível em: http://migre.
me/iVtqp. Acesso em: 12 abr. 2014. A principal distinção nesse estudo anterior é
quanto à regra constitucional de inafastabilidade de revisão judicial.

39 Cf. PORTO. Patrícia Carvalho da Rocha e BARBOSA, Denis Borges. O GIPI e a


Governança da Propriedade Intelectual. Radar: Tecnologia, Produção e Comércio
Exterior, Brasília, v. 29, p. 19-26, 2013. Disponível em http://migre.me/iVvaq.
Acesso em: 12 abr.

40 Cf. As alterações necessárias na legislação brasileira de propriedade intelectual


para completo aproveitamento das flexibilidades de TRIPS. Estudo para a
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Disponível em :
http://migre.me/iVvcr. Acesso em: 12 abr. 2014.

41 BARBOSA, D. B., Minimum standards vs. harmonization in the TRIPS context: the
nature of obligations under TRIPS and modes of implementation at the national
level in monist and dualist systems. In CORREA, C. M. (Org.) Intellectual Property
in the WTO: Research Handbook on the Interpretation and Enforcement of
Intellectual Property Under WTO Rules Edward Elgar Publishing Ltd de 1/8/2010:
“Indo para além do mínimo: sendo o contexto domestico entendido como o
mínimo, esses parâmetros podem ser excedidos pelo Estado-Membro de modo
autônomo segundo a sua ordem legal interna, dado que tal proteção adicional
não contravém o que está previsto no Acordo. Porque um país voluntariamente
excederia tal base? Duas considerações podem ser pertinentes: ou as exigências
domésticas do IP justificariam tal proteção mais extensa, ou as considerações
não pertinentes ao IP levariam o país a impor outras exigências. Como resultado
dessa regra “de empreitada única,” muitos países aceitariam os parâmetros
básicos que não possuem demanda doméstica, de modo a alcançar outras
metas no escopo mais amplo dos acordos da Rodada do Uruguai. O mesmo
motivo levaria tais países a aceitar uma proteção mais extensiva no contexto dos
acordos bilaterais ou restritivos pós-TRIP. A compatibilidade desse interesse com
os da TRIP serão analisados abaixo. Melhorias unilaterais não-permissivas. Nem
sempre é permitida uma proteção mais extensiva, dado que a clausula pertinente
exige que qualquer parâmetro melhorado não entre em contradição com o que
está previsto neste Acordo.” Por exemplo, uma proteção mais extensiva pode
contradizer as TRIPs ao entrar em conflito com seus parâmetros máximos. Um
aspecto bastante específico das TRIPs é que elas contem regras que delimitam
220 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

parâmetros máximos, e por isso não admitem uma proteção mais extensiva, não
obstante, os parâmetros para as TRIPs já existentes podem entrar em conflito
com os parâmetros para além das TRIPs em acordos bilaterais em casos nos
quais o mais antigo não só define os parâmetros mínimos como também os
máximos. Embora pareça, segundo o Artigo 1.1 das TRIPs, que tais parâmetros
máximos são inerentemente estranhos ao conceito das TRIPs, o Acordo apesar
disso proíbe uma “proteção mais intensiva” em suas medidas sobre a execução da
Parte III, ao ponto de ela fixar as medidas gerais dos procedimentos em benefício
de qualquer parte para o litígio do IP. Em alguns casos, o Acordo até mesmo
explicitamente provê para os direitos processuais do réu, como com relação ao
nível de certeza legal como exigência para medidas temporárias (Artigo 50.3 das
TRIPs) e os direitos do suposto infrator de ser informado e ouvido dentro de um
prazo razoável depois de as medidas temporárias terem sido adotadas inaudita
altera parte (Artigo 50.4 das TRIPs). Mais notoriamente, o Artigo 48 das TRIPs
fornece base para um direito de indenização ao réu em caso de um abuso dos
procedimentos de execução. Ele também pode ser incompatível com as limitações
contidas nos tratados básicos, como ressaltado por Carlos Correa: Outra situação
de uma proteção ‘mais extensiva’ que contradiz o Acordo das TRIPs pode surgir
no caso de ‘revalidação,’ ‘confirmação,’ ou patentes de ‘importação’; isso é
patentes que são dadas com base em concessões de patentes estrangeiras, sem
consideração da exigência da novidade. Esse tipo de patente foi introduzida como
um meio para facilitar a importação de tecnologia em algumas leis e tratados de
patentes do século XIX, e sobreviveram em alguns países (por exemplo, Argentina
e Chile) até recentemente. Quanto mais extensa a proteção concedida por essas
patentes entra em conflito com o Artigo 4-bis da Convenção de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial, como interpretado mais de meio século atrás
com relação ao Artigo 29 da lei francesa de 1844. A inconsistência das patentes
de revalidação com o Acordo TRIPs foi também estabelecida pela Suprema Corte
Argentina, que declarou que eles eram incompatíveis com a Convenção de Paris
e com os princípios do Acordo das TRIPs. Também incompatível com as TRIPs
seriam as proteções que, embora excedendo um parâmetro mínimo, opusessem
princípios e regras que são intrínsecas ao acordo. Por exemplo, um termo de
patente melhorado que não é estendido aos arquivamentos estrangeiros entraria
em contradição com o princípio do Tratamento Nacional. Um critério de exame de
patentes menos limitado para invenções em software infringiria a regra de não-
discriminação do Artigo 27.1.”

42 Ibid. Voltar aos parâmetros exigidos Será que a conformidade excessiva, se


reconhecida como tal, seria conveniente para os Estados-membros, de modo a
obter novamente o benefício total das TRIPs? O Artigo 65.5 apenas previne um
“retorno” aos níveis anteriores não submetidos às TRIPs durante períodos de
transição previstos nos Artigos 65 e 66: Essa é, essencialmente, uma medida que
evita que os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) “retornem”
durante o período de transição, isto é, prover um grau reduzido de proteção de
IP em suas leis domésticas. Por outro lado, essa medida também assegura que,
no caso algum país em desenvolvimento em algum acordo bilateral escolher o
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 221

“TRIPs plus,” o Acordo não os previne de retornar aos parâmetros comuns das
TRIPs. Essa questão seria regida exclusivamente pelo respectivo acordo bilateral.
Assim, depois do final do período de transição, qualquer eventual erro cometido
por Estados-Membros (por exemplo, em casos onde uma proteção acentuada não
demonstrou os efeitos benéficos que era dela esperada), poderia ser corrigido
pelo retorno de tal proteção ao nível do parâmetro mínimo pertinente, e essa
reação não violaria diretamente as TRIPs. Entretanto, alguns cuidados devem ser
tomados aqui, pois os outros Estados-Membros que demonstrarem suas razoáveis
expectativas de que a proteção do IP que for provida em excesso pelo membro
que “retornasse” não seria reajustada a parâmetros inferiores poderiam ter
motivos para tentar queixas de não-violação para prevenir a reação.”

43 Art. 10º. Não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que:
I - reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em
estabelecimento de terceiros cuja posse detenha; II - usa ou vende como alimento
ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos;
III - utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na
pesquisa científica. IV - sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes,
para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais,
no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores
rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não governamentais,
autorizados pelo Poder Público. § 1º. Não se aplicam as disposições do caput
especificamente para a cultura da cana-de-açúcar, hipótese em que serão
observadas as seguintes disposições adicionais, relativamente ao direito de
propriedade sobre a cultivar: I - para multiplicar material vegetativo, mesmo
que para uso próprio, o produtor obrigar-se-á a obter a autorização do titular
do direito sobre a cultivar; II - quando, para a concessão de autorização, for
exigido pagamento, não poderá este ferir o equilíbrio econômico-financeiro da
lavoura desenvolvida pelo produtor; III - somente se aplica o disposto no Inciso
I às lavouras conduzidas por produtores que detenham a posse ou o domínio
de propriedades rurais com área equivalente a, no mínimo, quatro módulos
fiscais, calculados de acordo com o estabelecido na Lei nº 4.504, de 30 de
novembro de 1964, quando destinadas à produção para fins de processamento
industrial; IV - as disposições deste parágrafo não se aplicam aos produtores que,
comprovadamente, tenham iniciado, antes da data da promulgação desta Lei,
processo de multiplicação, para uso próprio, de cultivar que venha a ser protegida.
§ 2º. Para os efeitos do inciso III do caput, sempre que: I - for indispensável a
utilização repetida da cultivar protegida para produção comercial de outra cultivar
ou de híbrido, fica o titular da segunda obrigado a obter a autorização do titular
do direito de proteção da primeira; II - uma cultivar venha a ser caracterizada
como essencialmente derivada de uma cultivar protegida, sua exploração
comercial estará condicionada à autorização do titular da proteção desta mesma
cultivar protegida; § 3º Considera-se pequeno produtor rural, para fins do
disposto no inciso IV do caput, aquele que, simultaneamente, atenda os seguintes
requisitos: I - explore parcela de terra na condição de proprietário, posseiro,
arrendatário ou parceiro; II - mantenha até dois empregados permanentes, sendo
222 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

admitido ainda o recurso eventual da ajuda de terceiros, quando a natureza


sazonal da atividade agropecuária o exigir; III - Não detenha a qualquer título,
área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em
vigor; IV - tenha, no mínimo, oitenta por cento de sua renda anual proveniente
da exploração agropecuária ou extrativa; e V - resida na propriedade ou em
aglomerado urbano ou rural próximo.

44 Com tal alteração volta-se ao teor normativo tradicional em nosso direito. Dizia
Gama Cerqueira, referindo à legislação de 1945: “A primeira proibição refere-se
a invenções de finalidades exclusivamente contrárias às leis, à moral, à saúde
e à segurança pública. [Melhor se diria invenções cujo fim ou cujo objeto seja
contrário, evitando-se a expressão invenções de finalidade, cujo sentido é
equívoco]. Invenções contrárias à lei são somente as excluídas da proteção legal
por disposição expressa da própria lei de patentes ou de outras leis. Consideram-
se também contrárias à lei as invenções concernentes a indústrias cuja exploração
seja proibida.”

45 BARBOSA, D. B., e GRAU-KUNTZ, K. Biotechnology In BENTLEY, L. (Org.)


Exclusions from Patentable Subject Matter and Exceptions and Limitations to the
Rights, WIPO (2010) retirado de http://migre.me/iVvhe: “o Defensor Público da
Corte de Justiça (a renomeada Corte Europeia de Justiça) publicou seu primeiro
parecer sobre o limite de proteção que as patentes europeias deveriam dar às
patentes de biotecnologia. Essa controversa opinião propõe que a totalidade da
Corte deve dar uma interpretação específica para a Diretiva de Biotecnologia, que
foi implementada para harmonizar as leis da União Europeia sobre a possibilidade
de patente de invenções biotecnológicas. Embora estejam agora implementadas
em todos os Estados-Membros existem grandes diferenças em como a Diretiva
foi implementada. Essa foi a primeira vez que a Corte de Justiça conseguiu
considerar o escopo de proteção das invenções de biotecnologia, particularmente
as patentes de sequenciamento de DNA, nos dez anos e que está em vigor.
Essa opinião é, portanto, significativa por alguns motivos: o Defensor Público
recomendou que a proteção tradicional de patentes não devia ser aplicada para
as patentes de sequenciamento de DNA. Ao invés disso, a proteção dada por
tais patentes de DNA deveria ser relacionada ao seu propósito.” NABARRO, UK:
Biotech patents – Cutting the scope of protection, encontrado em http://migre.
me/iZWG1, acessado em 14/08/10. Em suas decisões sobre o caso (Monsanto
Technology LLC contra Cefetra BV e Outros, C-428/08), a Corte aceitou o
conselho do Defensor Público, afirmando que “2. Artigo 9º da Diretiva resulta
em uma exaustiva harmonização da proteção que confere, com o resultado que
ela impede a legislação nacional de patentes de oferecer proteção absoluta para
o produto patenteado como tal, independente se ele cumpre a sua função no
material que o contem.”, ver: http://migre.me/iZWG1, acessado em 14/08/10.

46. Para as peculiaridades dos regimes, cf. BARBOSA, Denis Borges et. al..
Reivindicando a Criação Usurpada. A Adjudicação dos Interesses relativos à
Propriedade Industrial no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 223

47 BRANDELLI, Otávio, Balanço da implementação do Acordo TRIPS no Brasil.


In: SEMINÁRIO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO INSTRUMENTO DE
POLÍTICA INDUSTRIAL: LIÇÕES E DESAFIOS. 2009, Brasília. Ministério das
Relações Exteriores, Brasília, abr. 2009: “Interpretação equivocada comumente
difundida alega que a licença compulsória só poderia ser concedida em casos
de emergência ou extrema urgência. Segundo o art. 31.b do TRIPS, a emergência
ou urgência limitam-se a justificar a dispensa de negociação prévia com o titular
do patente, e de forma alguma configuram condições para o licenciamento
compulsório.”

48 A análise dessas modalidades de licença foi extensamente feita em BARBOSA,


Denis Borges. A criação de um ambiente competitivo no campo da propriedade
intelectual - o caso sul americano. Disponível em: http://migre.me/iVphv. Acesso
em: 12 abr. 2014.

49 Nota BRANDELLI, Otávio. op. cit., falando de como foi implementado o princípio
no direito brasileiro : “Artigo 6 - Exaustão de direitos - Exaustão nacional de
direitos como regra geral, admitindo-se a hipótese de importação paralela caso
o próprio titular da patente proceda à importação, por exemplo por inviabilidade
econômica da produção no Brasil. ““Ponto polêmico” na tramitação da LPI
(importação paralela) A possibilidade de importações paralelas passou a ser
vinculada ao tema da exigência de fabricação local tão-somente na fase final de
tramitação do projeto de lei, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado “.

50 Quanto à análise da questão, cf. PRADO, Elaine Ribeiro. Gestão e Justiça no


Trabalho Inovador. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
224 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Denis Borges Barbosa 225
226 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão
econômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cul-
tural, as ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida
de desenvolvimento; para os tomadores de decisões, a contribuição
da cultura para a economia do conhecimento abre oportunidades
originais de ação; para os cidadãos, trata-se de ter os meios para com-
preender e defender um setor cujo valor simbólico e o potencial de
riqueza humana e econômica não podem mais ser ignorados.

A Cultura e Seu Contrário


Teixeira Coelho
As duas últimas décadas do século XX viram ascensão da ideia de
cultura a um duplo primeiro plano: o das políticas públicas e o do
mercado, neste caso de um modo ainda mais intenso que antes. O
papel de cimento social antes exercido pela ideologia e pela religião,
corroídas em particular na chamada civilização ocidental, embora
não neutralizadas, foi sendo gradualmente assumido pela cultura,
tanto nos Estados pós-coloniais como, em seguida, nas nações sub-
desenvolvidas às voltas com os desafios da globalização e decididas
ou resignadas a encontrar, na identidade cultural, uma válvula de
escape. Do lado do mercado, o vertiginoso crescimento do audiovi-
sual (cinema, vídeo, música) colocou a cultura numa situação sem
precedentes no elenco das fontes de riqueza nacional.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  227

A Cultura pela Cidade


Org. Teixeira Coelho
Qual a relação entre a cultura e a cidade? Nesta publicação, 12 auto-
res, nacionais e estrangeiros, são convidados a refletir sobre o tema.
Os artigos abordam questões como: Agenda 21 da cultura, espaço
público e cultura, política cultural urbana, imaginários culturais,
entre outros.

Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a se ocupar mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do tu-
rismo e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral
– do que as questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é
o primeiro passo para colocar a arte em condições de atender real-
mente aos direitos culturais, que hoje são reconhecidos, como seus.

Cultura e Educação
Org. Teixeira Coelho
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e
Cultura realizada no Itaú Cultural, em setembro de 2009. Os par-
ticipantes brasileiros, latino-americanos e espanhóis comparam e
refletem práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de ini-
ciativas administrativas e curriculares e mediante ações cotidianas
em sala de aula.

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005


Teixeira Coelho
Neste livro, Teixeira Coelho faz uma seleção dos textos presentes na
coletânea Le Politique Culturelle en Debat: Anthologie, 1955-2005,
da Documentation Française, que reflete sobre a relação entre Es-
tado e cultura na França. A cultura francesa se associa intimamen-
te à identidade da nação e do Estado, e os autores, de diversas áreas,
analisam os aspectos dessa proximidade.
228 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração


de Friburgo
Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
A publicação organizada por Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
aborda a Declaração de Friburgo, que reúne e explicita os direitos
culturais reconhecidos de maneira dispersa em muitos instrumen-
tos. Levando o subtítulo “Comentário à Declaração de Friburgo”, o
livro analisa detalhadamente e comenta os considerandos e os arti-
gos da Declaração, tendo como objetivo contribuir para a discussão
e desenvolvimento do tema. Percebendo que a universalidade e a
indivisibilidade dos direitos humanos padecem sempre com a mar-
ginalização dos direitos culturais, o Grupo de Friburgo – um grupo
de trabalho internacional organizado a partir do Instituto Interdis-
ciplinar de Ética e Direitos Humanos da Universidade de Friburgo,
na Suíça – preparou um guia para a reflexão e implementação dos
direitos relacionados à cultura, previstos no Acordo Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos Matrimonium e Apocalipse de Michel Ma-
ffesoli. Neles o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade
para além do domínio das artes e analisa os fatos e efeitos pós-mo-
dernos na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona
valores como Indivíduo, Razão, Economia, Progresso — pedras
fundamentais da sociedade ocidental moderna que está em crise,
está saturada.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  229

A República dos Bons Sentimentos


Michel Maffesoli
Como observou Chateaubriand, é comum chamar de conspiração
política aquilo que na verdade é “o mal-estar de todos ou a luta da
antiga sociedade contra a nova, o combate das velhas instituições
decrépitas contra a energia das jovens gerações”. O momento atual
é um desses em que jornalistas, universitários e políticos, em suma
a intelligentsia, mostram-se em total falta de sintonia com a vitali-
dade popular. Para entender melhor em que isso consiste, é preciso
pôr em evidência a lógica do conformismo intelectual reinante. Só
quando não mais imperar o ronronar do “moralmente correto” é
que será possível prestar atenção à verdadeira “voz do mundo”.
Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser, até
mesmo, panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as
conquistas teóricas dos séculos passados que não mais servem para
entender a época contemporânea. Discutindo com o Pensamento
Oficial, Michel Maffesoli investe contra o politicamente correto, o
moralmente correto e todas as formas do bem-pensar, isto é, contra
as ideias feitas que se transmitem e se repetem acriticamente.

Leitores, Espectadores e Internautas


Nestor Canclíni
A publicação contem artigos dispostos em ordem alfabética, poden-
do o leitor transitar livremente por eles sem interferir na compre-
ensão do texto. O livro tem como tema os novos hábitos culturais
surgidos com o avanço das tecnologias de comunicação e entreteni-
mento, e nossas respostas frente a eles como leitores, espectadores e
internautas. Através de provocações, o autor nos incentiva a pensar
sobre nossos “novos hábitos culturais”, colocando mais questões a
serem respondidas do que conceitos estabelecidos, como num frag-
mento de Leitores, e questiona as campanhas de incentivo à leitura:
“Por que as campanhas de incentivo à leitura são feitas só com livros
e tantas bibliotecas incluem somente impressos em papel?” (p.56).
Abre, assim, a discussão da necessidade de reformulação das políti-
cas culturais públicas, considerando que, atualmente, somos leito-
res de revistas, quadrinhos, jornais, legendas, catazes, blogs.
230 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O Medo ao Pequeno Número


Arjun Appadurai
“Arjun Appadurai é conhecido como autor de novas formulações
notáveis que esclareceram os desenvolvimentos globais contempo-
râneos, especialmente em Modernity at Large. Neste novo livro, ele
aborda os problemas mais cruciais e intrigantes da violência coletiva
que hoje nos cerca. Um livro repleto de ideias novas e originais, ali-
mento essencial para o espírito dos especialistas e de todos os que
se preocupam com essas questões”, diz Charles Taylor, autor de Mo-
dern Social Imaginaries.
As transformações na economia mundial desde a década de 1970
produziram efeitos consideráveis nas relações entre as nações e as
pessoas. Multiplicaram-se as disputas e preocupações sobre sobe-
rania nacional, indigenismo, imigração, liberdade, mercado, demo-
cracia e direitos humanos.
Algumas ditaduras sumiram, outras permaneceram ativas e
uma ou outra insiste em afirmar-se no palco mundial, como se as
mudanças no mundo, ao longo do último meio século, não tives-
sem existido.

SÉRIE RUMOS PESQUISA


A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos
Indígenas na Indústria Cultural
Victor Lúcio Pimenta de Faria
A proteção jurídica das expressões culturais indígenas, de suas for-
mas de expressão e de seus modos de criar, fazer e viver é analisada
sob as perspectivas do direito autoral e da diversidade das expres-
sões culturais, a partir do conceito adotado pela UNESCO.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  231

Os Cardeais da Cultura Nacional:


O Conselho Federal de Cultura na Ditadura
Civil-Militar − 1967-1975
Tatyana de Amaral Maia
Tatyana de Amaral discorre, neste livro, sobre a criação e a atuação
do Conselho Federal de Cultura, órgão vinculado ao Ministério da
Educação e Cultura, no campo das políticas culturais. E analisa a
relação entre seus principais atores, relevantes intelectuais brasi-
leiros, e as questões políticas e sociais do período da ditadura, bem
como os conceitos relativos à cultura brasileira, tais como patrimô-
nio e identidade nacional.

Por uma Cultura Pública:


Organizações Sociais, Oscips e a Gestão
Pública Não Estatal na Área da Cultura
Elizabeth Ponte
A autora traz um panorama do modelo de gestão pública comparti-
lhada com o terceiro setor, por meio de organizações sociais (OSs)
e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips),
procurando analisar seu impacto em programas, corpos estáveis
e equipamentos públicos na área cultural. O estudo é baseado nas
experiências de São Paulo, que emprega a gestão por meio de OSs, e
de Minas Gerais, que possui parcerias com Oscips.

Discursos, Políticas e Ações: Processos de


Industrialização do Campo Cinematográfico Brasileiro
Lia Bahia
O tema deste livro é a inter-relação entre a cultura e a indústria no
Brasil, por meio da análise das dinâmicas do campo cinematográfi-
co brasileiro. A obra enfoca a ligação do Estado com a industrializa-
ção do cinema brasileiro nos anos 2000, discutindo as conexões e as
desconexões entre os discursos, as práticas e as políticas regulató-
rias para o audiovisual nacional.
232 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO
Revista Observatório Itaú Cultural
Nº 15 – Cultura e Formação
Esta edição destaca o Seminário Internacional de Cultura e Forma-
ção, realizado no Itaú Cultural em novembro de 2012. O seminário
é fruto de dois processos relacionados: primeiro, uma grande refle-
xão sobre os destinos da instituição, que completara, nesse mesmo
ano, 25 anos de fundação; consecutivamente, o desejo de dialogar
sobre como o terceiro setor pode contribuir para o desenvolvimento
dos processos de formação cultural, bem como qual lugar lhe cabe
nesse cenário. Para a revista, selecionamos contribuições de na-
tureza diversificadas derivadas desse encontro: discussão de con-
ceitos, debates de políticas, análise de situações ou simplesmente
narrativas de experiências, compondo, assim, um pequeno retrato
do seminário, bem como das relações entre cultura e formação na
contemporaneidade.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 14 - A Festa em Múltiplas Dimensões
Os muitos carnavais, aspectos socioeconômicos das festas, políti-
cas públicas e patrimônio cultural. Essas e outras questões a cerca
das festividades brasileiras são discutidas tendo as políticas cultu-
rais como ponto de partida.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 13 - A Arte como Objeto de Políticas Públicas
Nesta edição a Revista Observatório apresenta reflexões sobre al-
guns setores artísticos no Brasil a partir de pesquisas, informações
e percepções de pesquisadores e instituições, vislumbrando contri-
buir para que a arte seja pensada como objeto de políticas públicas.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  233

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos
Esta edição se debruça sobre as discussões da relação entre as
práticas, a produção e as políticas culturais. Refletindo sobre o
consumo cultural e o público da cultura com base na experiência
francesa, a revista põe o leitor em contato com a produção atual de
pesquisadores que têm como preocupação central as escolhas, os
motivos, os gostos e as recusas dos “públicos da cultura”.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel
Este número é dedicado aos direitos culturais em diversos âmbitos:
relata o desenvolvimento do campo, sua relação com os direitos hu-
manos, a questão dos indicadores sociais e culturais e o tratamento
jurídico dado ao assunto.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando
Políticas Públicas e Mercado
Esta edição trata das políticas para o audiovisual no Brasil e passa
por temas como distribuição, mercado, políticas públicas, direitos
autorais, gestão cultural, novas tecnologias, além de trazer texto
de Silvio Da-Rin, ex-secretário do Audiovisual. Parte dos artigos
de ganhadores do Prêmio SAV e do Programa Rumos Itaú Cultural
Pesquisa: Gestão Cultural 2007-2008.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 9 – Novos Desafios da Cultura Digital
As novas tecnologias transformaram a indústria cultural em todas
as suas fases, da produção à distribuição, assim como o acesso aos
produtos culturais. Em 12 artigos, esta edição discute as questões
que a era digital impõe à indústria cultural, os desafios que per-
meiam políticas públicas de inclusão digital, a necessidade de pen-
sar os direitos autorais e como trabalhar a cultura na era digital. E
traz também entrevista com Rosalía Lloret, da Rádio e TV Espa-
nhola, e Valério Cruz Brittos, professor e pesquisador da Unisinos,
sobre convergência das mídias e televisão digital, respectivamente.
234 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Nº 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos
Esta edição é dedicada à diversidade. Na primeira parte, são ex-
plorados vários aspectos culturais do país – aspectos que estão à
margem da vivência e do consumo usual do brasileiro – e como as
políticas de gestão cultural trabalham para a assimilação e preser-
vação deles, de modo que não causem fortes impactos na dinâmica
social. A segunda parte da revista é composta de artigos escritos por
especialistas em cultura e tem como fio condutor a discussão sobre
a sobrevivência da diversidade cultural em um mundo globalizado.

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Nº 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre o
Incentivo Fiscal para a Cultura
A Lei Rouanet é o tema do sétimo número da Revista Observatório
Itaú Cultural. Aqui os autores discutem diversos aspectos e con-
sequências dessa lei: a concentração de recursos no eixo Rio-São
Paulo, o papel das empresas estatais e privadas e o incentivo fiscal.
O ministro da Cultura, Juca Ferreira, comenta em entrevista a lei
e as falhas do atual modelo. O propósito desta edição é apresentar
ao leitor as diversas opiniões sobre o assunto para que, ao final, a
conclusão não seja categórica; o setor cultural é tecido por nuances;
há, portanto, que pensá-lo como tal.

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Nº 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para o Setor
Cultural
O gestor cultural é um profissional que, no Brasil, ainda não atingiu
seu pleno reconhecimento. A sexta Revista Observatório Itaú Cul-
tural é dedicada a expor e a debater esse tema. Neste número, há
uma extensa indicação bibliográfica em português, além de artigos
e entrevistas com professores especializados no assunto. A carên-
cia profissional nesse meio é fruto da deficiência das políticas cul-
turais brasileiras, quadro que começa a se transformar com a maior
incidência de pesquisas e cursos voltados à formação do gestor.
DIREITO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE  235

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade
A quinta Revista Observatório é resultado do seminário internacio-
nal A Cultura pela Cidade – uma Nova Gestão Cultural da Cidade,
organizado pelo Observatório Itaú Cultural. A proposta do seminário
foi promover a troca de experiências entre pesquisadores e gestores
do Brasil, da Espanha, do México, do Canadá, da Alemanha e da Es-
cócia que utilizaram a cultura como principal elemento revitalizador
de suas cidades. Nesta edição, além dos textos especialmente escritos
para o seminário, estão duas entrevistas para a reflexão sobre o uso
da cultura para o desenvolvimento social: uma com Alfons Martinell
Sempere, professor da Universidade de Girona, e outra com a profes-
sora Maria Christina Barbosa de Almeida, então diretora da bibliote-
ca da ECA/USP e atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade. A
revista número 5 inaugura a seção de crítica literária, com um artigo
sobre Henri Lefebvre e algumas indicações bibliográficas. Encerran-
do a edição, um texto sobre a implantação da Agenda 21 da Cultura.

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Nº 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais
O que é um indicador, como definir os parâmetros de uma pesquisa,
como usar o indicador em pesquisas sobre cultura? A quarta Re-
vista Observatório Itaú Cultural trata desses assuntos por meio da
exposição de vários pesquisadores e do resumo dos seminários in-
ternacionais realizados pelo Observatório no fim de 2007. No final
da edição, um texto da ONU sobre patrimônio cultural imaterial.

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 3 – Valores para uma Política Cultural
A terceira Revista Observatório Itaú Cultural discute políticas para
a cultura e relata a experiência do Programa Rumos Itaú Cultural
Pesquisa: Gestão Cultural e os seminários realizados nas regiões
Norte e Nordeste do país para a divulgação do edital do programa. A
segunda parte desta edição traz artigos que comentam casos espe-
cíficos de cidades onde a política cultural transformou a realidade
da população, do Observatório de Indústrias Culturais de Buenos
Aires e uma breve discussão sobre economia da cultura.
236 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


Nº 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural
O segundo número da revista é dividido em duas partes: a primei-
ra trata das atividades desenvolvidas pelo Observatório, como as
pesquisas no campo cultural e o Programa Rumos e traz resenha do
livro Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, de Paul
Tolila. A segunda é composta de diversos artigos sobre a área da
cultura escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros.

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Nº 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura
Esta revista inaugura as publicações do Observatório Itaú Cultu-
ral. Criado em 2006 para pensar e promover a cultura no Brasil, o
Observatório realizou diversos seminários com esse intuito. O pri-
meiro número é resultado desses encontros. Os artigos discutem o
que é um observatório cultural, qual sua função, como formular e
usar dados para a cultura, as indústrias culturais. A edição também
comenta experiências de outros observatórios.
237
Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham
sobre o papel Pólen Bold 90g/m2. O pantone 172 foi
o escolhido para esta edição. 3 mil unidades foram
impressas pela gráfica Pancrom em São Paulo, no
mês de maio do ano 2014.
Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br


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