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Artigo de Revisão

História clínica centrada no sujeito:


estratégia para um melhor
cuidado em saúde
Subject focused clinical history: strategy for a better health care
Bernardino Geraldo Alves Souto1, Sissi Marília dos Santos Forghieri Pereira1

Resumo
O privilégio do mercado e da tecnologia para consumo que caracterizou o modelo de desenvolvimento social e econômico do século XX desumanizou
uma série de práticas. Entre elas, a do cuidado à saúde. A ideia, agora, é redirecionar o progresso tecnológico e científico à pessoa como forma de
garantir que tal desenvolvimento gere bem-estar e sirva à vida. Nessa direção, têm surgido propostas alternativas às vigentes para a abordagem de
necessidades individuais de saúde. Uma delas sugere que as histórias clínicas destinadas à identificação dessas necessidades tenham como foco o
sujeito em sua existência, de modo a compreender e abordar o adoecimento como um fenômeno existencial; uma visão muito além da doença como
um evento. Objetivando contribuir para a humanização do cuidado à saúde das pessoas, este texto reflete sobre a questão posta acima e sugere uma
sistemática para a construção de histórias clínicas centradas no sujeito, como alternativa à anamnese tradicional, em contribuição ao método clínico
centrado na pessoa.

Palavras-chave: registros médicos; humanização da assistência; assistência centrada no paciente.

Abstract
The market privilege and consumption technology that characterized the social and economic development model of the twentieth century resulted
in various inhuman practices. Among them, the health care. The idea now is to redirect the technological and scientific progress to the person as a
way of ensuring that such development generates well-being and serve for life. In this direction, alternatives have emerged to the current approach of
individual health needs. One suggests that the clinical histories for the identification of these needs should focus on the subject in his existence, in order
to understand and address the illness as an existential phenomenon, a vision far beyond the illness as an event. Aiming to contribute to the humanization
of health care, this text reflects on the question posed above and suggests a systematic approach to the construction of clinical histories focused on the
subject, as an alternative to traditional history, in contribution to people-centered clinical method.

Keywords: medical records; humanization of assistance; patient-centered care.

Recebido em: 20/06/2011


Aprovado em: 01/11/2011

Trabalho realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – São Carlos (SP), Brasil.
1
Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – São Carlos (SP), Brasil.
Endereço para correspondência: Bernardino Geraldo Alves Souto – Rodovia Washington Luís, km 235 – Caixa Postal 676 – CEP: 13565-905 –
São Carlos (SP), Brasil – E-mail: bernardino@ufscar.br; sissi@ufscar.br
Fonte de financiamento: nenhuma.
Conflito de interesse: nada a declarar.

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Souto BGA, Pereira SMSF

Ou seja, a entrevista médica precisa ultrapassar o perímetro de


Introdução e contexto
uma anamnese; um instrumento sistemático que não alcança o fenôme-
É mencionada na literatura a observação de que a clínica no século no do adoecimento por se limitar à descrição de fatos pouco contextua-
XX foi influenciada a incorporar uma prática de certo modo objetivo- lizados, e que, ainda, pode verticalizar o médico sobre o paciente7-8. Seu
materialista, desenvolvida a partir da racionalidade biomédica centrada objetivo é a queixa principal. Seleciona, assim, o problema que pretende
no orgânico, por meio da qual a doença é reconhecida, principalmente, abordar a partir de uma visão organicista que prioriza o lado corporal
a partir da afetação anatômica, bioquímica ou fisiológica de uma célula da pessoa, muitas vezes desconectando-a do seu lado existencial, dando
ou conjunto de células em seu ambiente histológico . 1-5
margem a uma relação assimétrica entre o médico e o paciente favorá-
Em certa medida, esse fenômeno estimulou o uso de tecnologias vel ao primeiro. Desse modo, perde a oportunidade de considerar que
que valorizaram o consumo, às vezes abusivo, de equipamentos e insu- os sintomas relatados por uma pessoa se apresentam impregnados por
mos destinados à abordagem biomédica das doenças, frequentemente subjetividades relacionadas à experiência com a doença e com a própria
subtraindo o aproveitamento das possibilidades de cuidado relaciona- comunicação com o médico. Isto é, as queixas do sujeito não traduzem
das à promoção e à produção de qualidade de vida, saúde e equidade4. somente sua sintomatologia física, mas, também, sentimentos e per-
Em muitos casos, esse caminho levou a uma cisão entre o sujeito cepções que não encontram espaço adequado ou específico na estru-
e a vida, dicotomizando um em relação ao outro ao longo do proces- tura formal da anamnese que se aprende nos currículos de graduação
so de cuidado à saúde, permitindo, em várias oportunidades, reduzir médica3,6.
a abordagem das necessidades clínicas de muitas pessoas aos limites A queixa ou o problema escolhido pela anamnese é somente o
do próprio corpo . Nesse sentido, tornou-se comum a ocorrência de
6
principal. Ainda assim, em até 50% das vezes, médicos e pacientes che-
dificuldades na hora de lidar com fenômenos subjetivos no indivíduo que gam a discordar sobre esse problema principal por desconexão entre
demanda por cuidado . 5,6
suas percepções de prioridade sobre o agravo de saúde em apelo, como
Esse fato suscitou um movimento de retorno da clínica ao sujeito, óbvia consequência da assimetria da relação entre ambos7.
no sentido de devolver a vida ao vivo e o ser à pessoa, por meio de uma Por outro lado, se houver mais de uma queixa, talvez tenha de se
prática que propõe o estabelecimento de um diagnóstico que vá além do fazer outra anamnese especificamente para esta, se considerarmos com
âmbito biomédico e da prescrição de um tratamento objetivo; de uma rigidez a forma estruturada como esse instrumento é proposto. É difícil
prática capaz de alcançar o espaço da existência, além da vida e da mor- fazer uma anamnese partindo de mais de um problema. É fácil relatar a
te como objetos, a partir de uma estratégia que busca identificar neces- história da moléstia atual, mas é complicado relatar de maneira correla-
sidades de saúde e propor um plano de cuidados ampliado e integral6. cionada, as histórias dos adoecimentos de modo a contextualizar tudo
Essa cristalização de um modelo de clínica adaptado ao modelo no sujeito em sua existência. Afinal, na anamnese comenta-se muito so-
social hegemônico, conferiu às práticas médicas sob essa influência uma bre a doença, mas, falta foco na existencialidade para dar sustentação ao
medida de reconhecimento, valorização e ajuste à sociedade suficiente conjunto que o sujeito representa e traz consigo enquanto ser existente
para garantir a elas certa segurança e um poder típicos de quem repro- que, por assim ser, enfrenta o fenômeno do adoecimento segundo sua
duz o padrão estético objetivo. Neutralizou, desse modo, seu potencial cultura e personalidade1.
transformador da existência por evitar a ampliação dos sentidos . 3,6
Considerando, pois, que o corpo é o equipamento por meio do
Não obstante, o adoecimento não se resume, enquanto fenômeno qual produzimos e consumimos bens e serviços, e que a alma não serve
existencial, a uma lesão ou disfunção celular objetivamente detectável tanto quanto a esse objetivo, as questões extracorporais que envolvem
por tecnologias materiais, não é função de consumo, não se adapta a o processo de saúde e adoecimento encontram pouca oportunidade de
regras de mercado e é intensamente impregnado de subjetividades. Sua abordagem em uma anamnese convencional; aquém, portanto, da real
compreensão e abordagem demandam, cada vez mais, recursos que necessidade do cuidado. Apoiada por um exame físico voltado exclusi-
vão além do biomédico e de suas respectivas tecnologias. Requer, por vamente à lesão, funcionamento e estética do corpo, que não reconhece
exemplo, grande participação das ciências humanas e sociais, ainda pro- significados e representações corporais e tem dificuldade em relacionar
porcionalmente pouco valorizadas na formação médica tradicional2,5. determinados sinais com os sentimentos do sujeito2, a consulta médica
Entre os instrumentos disponíveis à prática médica, capazes de ajudá- deságua no diagnóstico de uma doença e na prescrição de um bem de
la a se refazer no âmbito da abordagem ampliada da pessoa em seu ado- consumo: um exame complementar ou um medicamento. Contudo, isso
ecimento, focalizou-se um que é bem simples e operacional: a técnica de é só um subconjunto mínimo do cuidado, que nem sempre é o mais
obtenção de histórias clínicas. Ainda é frequente o encontro de histórias importante.
médicas que reduzem o sujeito a paciente e estreitam o campo visual da clí- Se pensarmos que no tempo em que a vida era muito curta bas-
nica à doença. Dessa forma, podem contribuir para afirmar o papel de con- tava cuidar da sobrevivência física imediata das pessoas, pode ser que
sumidor de quem procura por cuidado, ainda que não explicitamente, e não essa abordagem tenha algum sentido histórico. O objetivo do cuidado
atender às reais necessidades de saúde do indivíduo ou da coletividade1-3,6. em saúde restringia-se a socorrer a vida para que não encurtasse mais

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ainda. Contudo, com o aumento da sua duração, surgiu a demanda por pessoa possa, em sua plenitude, bem interagir consigo mesma, com os
sua qualidade, o que nem sempre está ao alcance da abordagem exclu- outros e com o ambiente.
sivamente biomédica. Ou seja, antes cuidávamos da vida, mas, hoje Na assistência a uma pessoa, tendo como objetivo esse bem-estar,
cuidamos da existência; algo, portanto, muito maior. Precisamos, pois, precisamos fazer mais do que um diagnóstico e uma prescrição. É ne-
atualizar nossos equipamentos e ampliar a compreensão sobre nosso cessário identificar necessidades de saúde e construir um plano de cui-
objeto de trabalho, que já não é mais o mesmo . 3
dados. Para isso, há que se entender, também, necessidades de saúde
Não negamos a importância nem a utilidade da anamnese conven- como um conjunto formado por elementos que demandam aplicação
cional, tampouco achamos que deva ser desprezada, mas, defendemos para que a pessoa ganhe qualidade de vida (necessidade de tratamento
que se trata de uma ferramenta que precisa ser qualificada e atualizada e reabilitação) tanto na esfera biológica quanto psicológica e social, e
às necessidades existenciais do nosso tempo que implicam no cuidado por elementos que demandam aplicação para que a pessoa não perca
em saúde3. qualidade de vida (necessidade de promoção e prevenção) nas mesmas
A repressão dessa demanda, entre outros fatores, compromete a esferas; e plano de cuidados como um projeto negociado com o su-
eficiência da prática médica, transformando-a em algo economicamen- jeito para encaminhamento dessas demandas que contemple ações de
te dispendioso e de questionável resolubilidade em termos de atendi- cuidado individual, cuidado coletivo, gestão da assistência e educação
mento às expectativas e às necessidades de quem dela precisa3. permanente do profissional e o do paciente. Essa negociação, por seu
Para resgatar a clínica sequestrada pela política de consumo e turno, deverá articular os desejos, as possibilidades e as necessidades
trazê-la de volta ao cuidado, precisamos ampliá-la no âmbito do sujeito, que envolvem cada uma das necessidades de saúde identificadas.
conduzindo-a para além da doença . O paciente é, apenas, uma parte
2-4
Nessa trajetória, o médico constrói uma percepção ampliada da
do sujeito assim como a vida é somente uma parte da existência e a ana- doença, de modo que esta deixa de ser um fato para se tornar um fe-
mnese uma parte da história da pessoa3,4. A clínica precisa ser ampliada nômeno no qual a disfunção não se restringe ao orgânico, mas, alcança
para cuidar da pessoa como um ser integral e assumir como objetivo a também o ambiente psicológico, o cultural e o social da pessoa. Nesse
qualidade de vida do indivíduo, na compreensão existencial do próprio sentido, é importante considerarmos que os sinais vistos no exame físi-
sujeito. Ou seja, precisa penetrar na subjetividade das pessoas onde se co não complementam somente nossa compreensão sobre os sintomas
localizam os desejos e o projeto existencial de cada uma delas, cuja re- relatados pela pessoa. Muitos desses sinais são produzidos pelos senti-
pressão sustentada pela estética social frequentemente induz a escapes mentos do sujeito e mediados por sua cultura. Entretanto, não é comum
psicossomáticos, o que, aliás, tem sido muito comum atualmente 1-3,6
.A que estejamos atentos aos sinais físicos da subjetividade, os quais tra-
anamnese tradicional não tem alcance para uma penetração dessa pro- duzem as correspondentes abstrações presentes no relatório sintomato-
fundidade. De acordo com as ideias de Sanders, isso se dá porque a lógico que, da mesma forma, escapam à nossa observação quando nos
anamnese estruturada e o exame físico sistemático como se tem apren- prendemos à estrutura formal de uma anamnese2,3.
dido nos cursos de medicina concentram-se respectivamente numa A esse respeito, McWhinney e Freeman, do Departamento de Me-
narrativa e numa citação de fatos relacionados a sintomas e a sinais dicina de Família da University of Western Ontário, consideram que a
físicos. Subvalorizando, assim, a contextualização do adoecimento na experiência com o cuidado é um fator importante para a habilidade do
história existencial do sujeito por meio da qual torna-se possível com- médico em desenvolver essa percepção ampliada e incorporá-la à histó-
preender não só a doença em sua fisiopatologia orgânica, mas, também, ria clínica2. Nesse sentido, e consoante às ideias de Sanders, Lopes re-
o porquê e como a doença entrou na vida da pessoa . Ou seja, os sin-
8
conhece que há médicos que adquirem essa desenvoltura, porém, muito
tomas e os sinais precisam ser comunicados, entendidos, interpretados mais por uma característica pessoal do que pela incorporação de uma
e compartilhados; e não apenas decodificados à luz de um raciocínio tecnologia derivada de uma oportunidade formal de aprendizagem1,8.
fluxográfico2. No contexto dessa capacidade, nossa comunicação com aquele
Precisamos, pois, transformar a consulta médica num encontro que cuidamos é estratégica ao entendimento do fenômeno que deter-
(forma horizontal de reconhecimento mútuo destinado a uma troca in- mina as necessidades de saúde deste, tanto quanto à eficácia e à efici-
terpessoal) por meio do qual é possível corporificar uma história clínica ência do plano de cuidados, independentemente de qualquer precisão
capaz de decifrar o sujeito e, dentro dele, em sua existência, identificar diagnóstica2.
suas necessidades de saúde . Apoiada por um exame físico que, além
6
Ao mesmo tempo, a qualidade dessa comunicação é função do
da visão biológica do corpo, compreenda também seus significados e seu alcance. A comunicação precisa, pois, contemplar o espaço socio-
representações na percepção da pessoa examinada, essa entrevista per- cultural daquele que cuidamos para que seja eficiente em identificar as
mitirá a providência de um cuidado que servirá prioritariamente ao necessidades de saúde desse sujeito e eficaz em colocar em prática um
bem-estar existencial do sujeito. respectivo plano de cuidados2.
Há que se entender, pois, bem-estar existencial como sendo uma Sendo assim, para que a abordagem clínica seja capaz de servir
qualidade de vida biológica, psicológica e social suficiente para que a ao bem-estar existencial, Perestrello propõe que, ao nos comunicarmos

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com as pessoas motivadas por um cuidado de saúde, transitemos entre Portanto, converter a anamnese tradicional em uma história clí-
as dimensões biológicas e psicológicas, além da psicossomática, incor- nica centrada no sujeito, além de qualificar a prática médica, caracte-
porando, também, a dimensão antropológica, sem oposição ou negação riza-se como uma postura de respeito à autonomia da pessoa e demais
do que se considerava anteriormente. Esse autor afirma que a medicina direitos humanos, assim como aos ideais democráticos de cidadania no
da pessoa vê o sujeito além do organismo; em vez de procurar causas, ambiente existencial de quem precisa de cuidados de saúde; ou seja, de
busca a totalidade; em vez de focalizar o estímulo-reação, a situação- todos e de cada um de nós6.
expressão. Enfim, advoga a favor de uma postura holística e uma atitu- Essas ideias são corroboradas pelo argumento da dra. Sanders, da
de compreensiva .9
Faculdade de Medicina de Yale, assim como as de McWhinney e Stewart,
Nessa mesma direção, Campos traduz suas ideias da “Clínica do de que a abertura da ação médica ao sujeito que dela necessita dá opor-
Sujeito”, trabalhando com maior profundidade os conceitos filosóficos tunidade para que o plano de cuidados conte com a colaboração desse
sobre a pessoa e com menor profundidade os aspectos psicológicos, em interessado, potencializando a resolubilidade da própria ação médica2,3,8.
comparação com o que faz Perestrello. Entretanto, articula, da mesma Nesse sentido, a história clínica deve ser traduzida para a lingua-
forma, as dimensões biológicas, psíquicas e sociais. Para esse autor, a gem e para o contexto de vida da pessoa sob cuidado para que o médico
clínica do sujeito é ampliação e não troca – seu objeto de estudo é a consiga ajudá-la efetiva e eficientemente. Essa tradução garante que o
síntese dialética entre o sujeito e sua doença. Faz, ainda, uma leitura da autor da história clínica seja o próprio sujeito, o qual, ao retornar a esse
clínica, vista pelo olhar da saúde coletiva, em três dimensões: a oficial autor no processo do cuidado, o permite tomar consciência, compreen-
(ou hegemônica), preocupada com a doença; a degradada, que é a ofi- der e intervir sobre o fenômeno do adoecimento em torno de si8.
cial degradada por interesses econômicos ou desequilíbrios de poder; Esse movimento, que deve ser desencadeado pelo médico, tem
e a clínica ampliada ou do sujeito. Defende que o desafio é passar do início na entrevista clínica que, segundo McWhinney e Freeman, tem o
campo das certezas, de regularidades mais ou menos seguras (padrões) papel inicial de descobrir a pessoa e não só identificá-la. Não obstante,
para o campo da imprevisibilidade da vida cotidiana, reconhecendo os essa descoberta não é possível se o foco limitar-se a um conjunto de
limites de qualquer saber estruturado . Fonseca e Kirst fazem essa mes-
10 sinais e sintomas ancorados prioritariamente numa queixa principal. É
ma proposta quando o assunto é cuidado individual . 6 preciso compreender esse conjunto no contexto existencial de quem os
Campos também coloca a clínica como arte e faz o contraponto de apresenta. Portanto, a entrevista médica não pode ser transversal como
que se lidamos com vidas, devemos dar importância ao conhecimento a anamnese que conhecemos, mas precisa ampliar-se a cada encontro ao
disponível sobre os aspectos genéricos dos processos saúde-doença- longo do processo de cuidado2.
atenção. Valoriza o saber das regularidades possíveis (conhecimento
sistematizado disponível), mas relativiza a supremacia como tem sido
O foco da abordagem em uma história
colocado, inclusive na forma de protocolos. Amplia, assim, a perspecti-
va da saúde para a ação, além dos determinantes, e reforça a importância
clínica centrada no sujeito
de aprender com a variação e com o singular, saber escutar e perscrutar O encontro pressupõe um vínculo. Portanto, para se realizar uma
o singular, decidir ponderando, ouvindo, expondo incertezas e com- entrevista clínica é necessário que, antes, estabeleça-se um vínculo en-
partilhando dúvidas. Ou seja, os saberes estabelecidos são bem-vindos tre o profissional de saúde e a outra pessoa. Esse vínculo é para, no
desde que haja espaço para se duvidar deles. Desse modo, devemos mínimo, horizontalizá-los e aculturá-los como sujeitos relacionantes
agir apoiados nos protocolos, mas questionando-os10. Baseados nisso, interessados no cuidado que se pretende propor a partir do encontro e
reforçamos o argumento de que a anamnese tradicional, enquanto ins- compreender por meio da história clínica.
trumento sistematizado padrão para levantamento de história clínica, Esse processo precisa, pois, explorar a enfermidade em seu am-
precisa adequar sua forma de ser para que dê conta de abordar o sujeito biente histórico, social e cultural, compreendendo-a à luz da experi-
contido no coletivo. Apesar dela captar razoavelmente a generalidade ência e das percepções do próprio sujeito. Ao identificar necessidades
da média, é frágil em perceber aquilo que é único e individual .8
de saúde, valorizar elementos relacionados ao sofrimento, ao risco e à
Essa adequação, consoante às ideias de José Mauro Cerati Lopes, vulnerabilidade, e ao propor um plano de cuidado, fazê-lo conjunta-
especialista em Medicina de Família e Comunidade, contribui para um mente com o interessado, de maneira negociada, compreendendo este
cuidado centrado na pessoa, o qual leva em consideração a persona- como um ser existente e autônomo. Ao mesmo tempo, sustentar esse
lidade do sujeito com necessidades de saúde e o efetiva como parcei- plano no princípio bioético da não maleficência, fortalecido pelo prin-
ro no contexto do projeto terapêutico sem desprezar o conhecimento cípio ideológico da humanização e do direito. Isso pode ser feito por
sistematizado. Esse tipo de cuidado torna a clínica mais eficiente em meio de um ajuste equilibrado entre as necessidades, as possibilidades,
alcançar seus objetivos no âmbito biológico, psicológico e da relação do os desejos e as responsabilidades do profissional de saúde, do serviço
médico com a pessoa que demanda por atenção, bem como em pôr em de saúde e do próprio sujeito11. Em síntese, o encontro proporcionado
prática sua idoneidade social1. pelo vínculo permite que se faça uma história clínica reflexiva que, con-

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tida na história de vida da pessoa, amplia a compreensão médica para tempo2. Portanto, há que se ter habilidade para hierarquizar os proble-
além da doença; ou seja, para o fenômeno existencial do adoecimento. mas que afetam a qualidade e a segurança da vida da pessoa, de modo a
Uma história assim construída valoriza significados e representações da definir, junto com ela, as prioridades do cuidado.
enfermidade e do risco (compreendido como contingência) e incorpo- Durante a entrevista e o exame físico, sistematizar os problemas
ra o conceito de vulnerabilidade (autonomia do sujeito sobre o risco). encontrados de modo a organizá-los em: transversais ou longitudinais;
Consegue compreender, pois, as percepções da pessoa a respeito da do- significação para o médico e para o sujeito; inserção na história da pes-
ença e trabalhar o adoecimento e a morte como processos existenciais; soa; e abordabilidade1,2,11,12.
portanto, contextualizados ao ambiente e ao cotidiano da vida. Entendendo-se como problemas aquelas questões cuja abordagem
Para isso, é preciso conhecer a pessoa, os que estão à sua volta e o melhorará a qualidade de vida do sujeito, ou impedirá que este perca
meio em que vive, compreender a interação do sujeito consigo mesmo, qualidade de vida, tal organização facilitará a identificação das necessi-
com quem está à sua volta e com o meio em que vive, assim como os dades de saúde e a gestão do plano de cuidado.
fundamentos dessa interação. A partir daí, identificar o que pode ser Em termos práticos, substituir o roteiro da anamnese tradicio-
feito para que essa pessoa tenha um melhor bem-estar existencial e, em nal (queixa principal, história da moléstia atual, história patológica
cima disso, negociar um plano de cuidado integral. pregressa etc.) e do exame físico tradicional (exame físico geral e
específico por órgãos ou sistemas), por uma entrevista e um exame
físico semiestruturados a partir dos seguintes elementos (adaptado
Questões práticas para a realização de
de Lopes, 2007)1:
uma história clínica centrada no sujeito
Para começo de conversa, devemos evitar as seguintes perguntas, Levantamento subjetivo:

comuns em uma anamnese tradicional: • história de vida;


a) “Qual a sua queixa principal?” • história clínica, pregressa e atual, contextualizada à história de
b) “O que é que o senhor tem?” vida.
c) “Qual o seu problema?”
d) “O que é que o trouxe aqui?” Levantamento objetivo:

e) “Por que veio me procurar?” • exame físico geral e conduzido por problemas, significados e
percepções.
Sugerimos que uma boa pergunta seja:
Compreensão do fenômeno:

“O que é que o senhor gostaria de me contar a seu respeito?”. • problemas biológicos, psicológicos e sociais;
Em seguida, ficar calado, só ouvindo, detectando os sentidos e signi- • percepção do sujeito sobre sua situação e seus problemas;
ficados contidos nas palavras do entrevistado . Evitar, no início, per-
2 • percepção do médico sobre o sujeito e seus problemas;
guntas dirigidas, também comuns na anamnese, como: “Quando come- • possibilidades para a abordagem dos problemas.
çou?”; “Como começou?”; “O que é que o senhor faz para melhorar?”
etc1,2,11. Plano de cuidado:

No próximo momento, demonstrar sensibilidade e apreço ao rela- • abordagem negociada e realista dos problemas identificados, con-
to do sujeito e buscar um elo de identificação com a pessoa e sua histó- siderando os contextos biológicos, psicológicos e socioculturais
ria. A partir daí, dirigir perguntas aos sentidos e significados observa- no ambiente articulado pelos desejos, necessidades e possibilida-
dos nos planos biológico, psicológico e sóciocultural, articulando esses des, com o objetivo de reduzir sofrimento, risco e vulnerabilidade,
planos entre si no contexto existencial da pessoa, à luz das percepções garantir direitos humanos e melhorar a qualidade e a condição de
dela mesma2. vida.
Numa anamnese tradicional, essa fase da construção da história mé-
dica limita-se, apenas, a uma checagem de dados em busca de uma fisio- Repercussões de uma história clínica cen-
patogenia orgânica que leve à hipótese diagnóstica de alguma doença.
trada no sujeito sobre o plano de cuidados
Não obstante, ao ampliar o escopo da abordagem dos problemas
de uma pessoa por meio de uma história clínica centrada no sujeito, não A coleta de uma história clínica centrada no sujeito permite que
é necessário nem possível levantar e compreender tudo em curto prazo flua, automaticamente, ao final dela, um rol de necessidades de saúde.
ou simultaneamente. Vínculo, encontro, necessidades de saúde e plano Dessa forma, facilita o processo de identificação dessas necessidades,
de cuidado, contextualizados à existência, necessariamente são projetos configuradas por um conjunto de problemas que demandam aborda-
longitudinais que pressupõem continuidade e acumulação ao longo do gem a interesse da qualidade e da condição de vida da pessoa.

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Essa facilitação potencializa o plano de cuidados no sentido de processo (providência). Diferente, pois, do que estamos acostumados
gerar demandas de mobilização de equipe multiprofissional, de iden- a chamar de atendimento (meio de consumo) e mais amplo do que uma
tificação de redes de apoio e de qualificação do processo assistencial, consulta médica convencional (prestação de um serviço).
de educação permanente para o profissional ou equipe que provê o
cuidado e de ações coletivas de saúde, além do próprio cuidado do
Agradecimentos
indivíduo.
Há que se compreender, entretanto, que tudo isso é tão dinâmico À professora Roseli Ferreira da Silva, do Departamento de Medi-
e ajustável quanto a própria existência, fato que torna o cuidado um cina da Universidade Federal de São Carlos (SP), Brasil.

Referências
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