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Q tren een e suas fontes fee eae aaa nT Regina de Luca Ano Luiza Martins * Antonio Celso Ferreira * Caroline Silveira Bauer Purval de Albuquerque Jénior * Elias Thomé Saliba « Flavio Galli Tatsch Junia Ferreira Furtado + Keila Grinberg * Leandro Karnal ia eae ket ee a eae Lima * Teresa Malatian * Vania Carneiro de Carvalho Cole anno LITERATURA A fonte fecunda ‘Antonio Colo Fereira ‘Afirmar que a literatura integra o repert6rio das fontes hist6ricas ndo provoca hoje qualquer polémica, mas nem sempre foi assim. Mais do que isso, nas diltimas décadas os textos literérios passaram a ser vistos pelos his~ toriadores como materiais propicios a miitiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiéncias subjetivas de homens e mulheres no tempo. Dessa perspectiva resultaram numerosos trabalhos histéricos que abrangem tanto os estudos aplicados quanto as analises tedrico-metodol6gicas sobre a exploragao desse tipo de fonte. ‘final, como o historiador concebe a fonte literdria e a distingue das ou- tras? Como a literatura interage nos contextos sociais e culturais e que papéis Ihe foram atribuidos historicamente? Como se constituiram e se modificam suas formas? De que maneira se relaciona com outras linguagens? Quais S20 ‘as metodologias apropriadas a tal modalidade de pesquisa e interpretagao? ‘Acssas questdes acrescente-se outra, de maior alcance, que envolve o conhe- cimento das semelhancas, diferengas e relagdes entre a narrativa hist6rica ea narrativa literdria: o que é Hist6ria e 0 que ¢ literatura? (© histo fot As Tespostas a essas perguntas, embora ndo sejam consensuais, podem ‘er uscadas em ensaiosfilosSficos,socioldgics ehumanisticos em geval; mas, Principalmente,em duas reas correlatas: de um lado, na Histéria da Literatieg éna Teoria Literdria ede outro, na Histria do proprio conhecimento historiee, isto 6 a Historiografia, ena Teoria da Historia Sem pretender responder em toda a amplitude atais questies ou estender slemasiadamente a reflex teria sobre o assunto, que abrange wma vasta bibliografia,s vezes carregada de jargSes obscuros, neste capitulo busco fe. recor ao leitoralgumas orientacées basicas para o tratamento da fonteliterria ‘na Pesquisa hist6rica. A atengio principal serd dada aos textos em prosa, uma Wer due a abordagem da poesia, por sua especificidade, demanda um esforco adicional para além dos limites destas paginas A fonte literaria na historiografia Para introduziro tema énecessério conhecer as virias acepedes da palavra {nle © espeificamente, como a fone litera figura nesse rol. Dente squclas indicadasnos dicionsrios, sobressaem dois sentidos distntos, nio exatarnente opostos, mas nem por isso complementares: “a) gua viva que sai da terra, hascente, principio, origem: b) a causa priméria de um fato,a sua verdadcing origem, autoridade competente”! © Primeiro remonta a 6pocas imemoriais e remete tanto a imagem do fiuir da agua como elemento de origem, fecundidade e renovacdo da vida, quanto ’s nebulosas e impalpéveis narraivas mitolégicas sobre o principe docosmo edos homens. Emborano decorrer dos séculos tenha se deciobraie em diversas otras metéforas, esse sentido aberto e fluido da palavrafonte ainda hoje guarda alguns dos seus atributos origindrios. O segundo sentido SorPorficouse na historia das cvilizacdes em intima relagio com as ligbes, dia Teologia e do Diteito, uma vez que alude as nogoes de fato, verdad ¢ we veremos no decorrer do capitulo, a nocéo de fonte litertria aproxima-se, muite mais, do primeiro sentido, Encontra-se, na historiografia, o emprego da palavra fonte em ambos os sentidos, algumas vezes de maneira ambfgua. No entanto, desde 2 segunda 62 metade do século x termo passou a ser eexpressao de autor das ciéncias natural no interior das Hum AEscola Metédica dolégicos orientada, de assegurar a autel assado “numacorm, circunstancias que a} status de documento tudo, com oencadean Nessa perspectiva, og eram considerados d) A ampliagao dg Proprio conceito dee dahistoriografianos, Fepercusses em vari sia indiscutivel ness @’Histoire Economique) Bloch.’ Contrapondoy eles colocaram em pa sio da complexidadey Passaram a dar énfas} seguintes, também ao} exigit uma postura int de conhecimento vizit Psicologia. Outra decd novas fontes de pesqu espécies naturais, daq tecnologias, do comény circunscritas aos docu A Hist6ria das My vestigacao dos textos demonstrou grande se) A one eine metade do século x1x, quando a Hist6ria tomou-se disciplina académiea, 0 fermo passou a ser usado predominantemente como sindnimo de documento Sexpressto de autoridade e verdade. Numa época de enorme avancoe prestigio. dos ciéncias naturals, a Histéria, como parte de uma tendéncia mais ampla ‘no interior das Humanidades, também buscou alcancar o estatuto cientifiva AFscola Met6dlica francesa encarregou-se de estabelecer os parimetros meto. Sologicos orientadores da critica interna e externa das fontes com o objetivo ste assegurar a autenticidade documental para reconstituir objetivamente o Passado “numa correlacao explicativa de causas e consequéncias” *Foi neseas circunstancias que as fontes escritas, preferencialmente oficiais, ganharam o Stalus de documentos verdadeiros para uma historiografia preocupada, sobre. tudo, como encadeamento cronolégico dos acontecimentos politicos nacionsis, Nessa perspectiva, os texts literdris, assim como outras fonts artisticas nao eram considerados documentos fidedignos para atestar a verdade histévica A ampliacio do repertorio das fontes histéricas e a metamorfose do réprio conceito de fonteinseriramse no crescente movimento de renovacio da historiografia no século xx, ocorrido primordialmente na Franga, mas com ‘epercussdes em varios outros paises, incluindo o Brasil. Tiveram importan, cia indiscutivel nessa empreitada os historiadores ligados a revista Armales 4 Histoire Economique et Sociale, fandada em 1929 por Lucien Febvre ¢ March Bloch. Contrapondo-se a historiografia politico-factual da Escola Metédica, cles colocaram em pauta uma Histiria-problema,orientada para a compreen, sto da complexidate eda totalidade das experiéncias humanas {assim que Passaram a dar énfase 20s processos sociais e econdmicos, e, nas décadas Sesuintes, também aos aspectos mentais das civlizagbes, Tamanha ambigao @xigiu uma postura interdisciplinar, que os levou a se aproximarem das reas de conhecimento vizinhas, como a Geografia, a Sociologia, a Economia « « Psicologia. Oulra decorréncia desse horizonte intelectual foi a uilzagio de novas fontes de pesquisa -necessérias a0 conhecimento do clima, do solo, das spécies naturais, da agricultura, do artesanato, das formas de trabalho, das fecnologias, do comércio, das crencas ideologias etc. -, portanto, ndo mais " Na atualidade, entretanto, uma das tendéncias marcantes entre os es- Pecialisias€a rejeigdo das definicGes universalstas acerea das mais variadas imanifestagOesculturais (Literatura, Arte, Filosofia, Historia, Ciénciy ),atitude Ais tanto pode desaguar num relativismo radical e estéril, come suscitar Formulaces mais abertas e férteis. Um bom exemplo das dificuldades de de ernie em nossa tempo se encontra no livro sobre literatura e leitura, de Marcia Abreu escrito para os jovens do ensino médioe os ingressantes na Universidade, no qual a autora afirma: Jiganceito de Literature foi naturalizado |]. Apresenta-se a {itertture como algo universal, como se sempre ¢ om wale {err fivesse havido literatura, como se ela fosse propria ae Sejana india ou na Grécia da arabes, seja nas metrépoles¢ ® artes sempre constituiram 20 trdgico, ao sublime nobres, burgueses o formas de arte na sellers e na inginid, telas, mas isso nai ou populares. Talve; aldeia global de ¢ lade 8 compreensao dos ida, particularizada em Telagio, ida, lida, compartilhada ou 1848 épocas e A outras ex. apropriada pelos Sociedades. E,sobretudo, para 20 longo tempo, ela desempentr na, tivas, Clasicos, po, Muito se debateu, e ainda se linguistico da literatura, Mee complexidade de uma dad, como 0 fez Ba Pulares ou maldit Siebate, acerca do valor estt ‘Se pela capacidade d a Sociedade num dete zac (1799-1850), 6 ras cenas d pela renovac: ico, social ow le transpor para a fice erminado mom "™ sua monumental A 1 vida privada e burguesa d 0 nos modas de eames Joyce 1882-1941) exp ©Popeia de Homero, a e obras, tornando-as clisscns, mrt 0? Por que alguns livros cons Ser lidos hoje e ainda conseguem Sedluziro leitor embora tenharm side em tempos remotos? nento histérico, Comedia human Revolucao? Ou, eS, obra mode: Mas, como a mitacdo da O que consagra algumas escritos nista em, a diversas for “rita teatral eo monélogo? 68 ‘Aone ein (hirer motes As respostas a tais questdes sto numerosas e contém uma imensa varie: dade de argumentos. Em Por que lr os clésscos, alo Calvino (1923-85) arrisca uma delas, que pocle nao ser definitiva, mas é bastante convincente: “Os * Na atualidade, tais proposigdes tendem a arrefecer no mesmo ritmo em que 0 relativismo e a desconstrucio, caracteristicos do horizonte intelectual no fim do século xx, perdem intensidade. Segundo as ponderagdes de alguns historiadores a respeito das relacdes entre a narrativa historica e a narrativa literéria, embora se deva reconhecer a presenca de tracos literdrios na pri- meira,* nao se pode deixar de lado as operades especificas que a tipificam como disciplina: construgao e tratamento dos dados, producdo de hipsteses, titica e verificagdo de resultados, validagdo da adequacio entre 0 discurso do conhecimento e seu objeto. Essa lembranga é essencial para o pesquisador que trabalha com textos li- terdrios, sobretudo os de ficcio historica. £ certo que o carster polifénico destes, pelo dilogo que estabelecem entre as diferentes vozes das personagens, além da voz donarrador, possibilita a investigagao da complexidade do imagindrio hist6rico, da diversidade das ideologias e dos modos como os diferentes in- dividuos ou grupos sociais se inserem dentro dele em determinadas épocas. Contudo, tais representacdes constituem sempre um universo ficcional, por ‘mais verossimil que seja. O papel do historiador é confronté-las com outras fontes, ou seja, outros registros que permitam a contextualizacao da obra para assim se aproximar dos miiltiplos significados da realidade hist6rica. Literatura ¢ outras linguagens Desde suas origens, 0 romance constr6i suas formas e contetidos no intercambio com outras linguagens escritas, visuais e sonoras.” Os teri cos designam essa condicio literdria de intertextualidade, assunto que tem 7 (© bidet enon motivado numerosos estudos acerca da interagdo entre ele e diferentes estruturas narrativas. Dentre os diversos intercmbios, destaca-se sua relagdo com as artes plase ticas até meados do século xx, cobrindo um vasto leque de manifestacdes que: vao da pintura cléssica a arte fragmentada das vanguardas, e do romantismo: a0 modernismo literério. A literatura romantica, especialmente, é repleta de recursos pict6ricos. Um exemplo disso foi estudado por Stephen Bann em set ensaio sobre os experimentos plasticos e literarios de Victor Hugo (1802-85). Ao investigar alguns “borrdes de tinta” do consagrado autor de Os miserivelsy ele notou a migragao de temas e formas de uma arte para outra. A presenga obsessiva de castelos medievais envoltos em brumas, tanto nos romances. quanto nas pinturas, revelaria a tentativa do escritor de criar tm passado mitico. Para si mesmo e para stia nag&o num periodo de grandes turbuléncias desde a derrocada do Antigo Regime e seus ideais aristocraticos. Cem anos depois, ‘mas jé entio imersos no imaginério desencantado do mundo tecnolégico, escritores como Alain Robbe-Grillet (1922-2008), expoentes do noveate romatt francés buscariam recriar as formas literdrias inspirando-se na pintura cubista (eno método da associacao livre da psicanélise), como meio de representagio: da fragmentada sociedade contemporanea.” O intercimbio entre literatura e cinema é também bastante conhecido. Desde a origem da sétima arte sao incontaveis os enredos romanescos trans Postos para as telas. Além disso, por longo tempo a cinematografia seguiu de pertoa narrativa literdria: recursos tais como plano/contra-plano, plano-sequéncia, close-up e flashback sao correlatos as formas textuais de descrigao da paisagem, do cendrio e do contexto; de caracterizacao dos personagens; de composica0. do fluxo de consciéncia e recordagao do passado. A esses recursos devem ser somadas as técnicas de suspense nos filmes, que derivaram do romance= folhetim. Mas o inverso também nao deve ser desprezado, pois a literatura tem-se embebido de cinema, seja na forma seja no contexido. Exemplos disso se encontram nas obras de John dos Passos, ja citado, ou de Oswald de Andrade (1890-1954), dentre muitissimos outros. Além da pintura, da fotografia e do cinema, as novas linguagens visuais~ como a televisio ea internet ~ também tém suscitado intensas trocas com a literatura. As maneiras de comunicagdo coloquial recentes e as técnicas cada vez mais sofisticadas de lidar com o ritmo veloz de nosso tempo, tipicos des- 78 ‘Afore ecinde ses meios virtuais, jf sio exploradas nos textos literdrios, o que certamente redundaré na formacio de um campo fértil de estudos. Outra drea de analise envolve a relacao entre a literatura ¢ os demais tex tos impressos gerados no ambiente téenico modemo. No livro Cinematdgrafo das letras, Flora Sussekind tratou desse assunto ao investigar as mudangas na ia de escritores e jornalistas brasileiros, em fins do século x1X, de equipamentos como a maquina de escrever € dos técnica liter? fem decorréncia do u: impactos provocados pelo cinema." “Merecem atenco, igualmente, os lagos entre a literatura e as linguagens de natureza diversa: cientifica, eligiosa, juridica ou politica. Abre-se aqui um tenorme leque de possibilidades de estudo. Em 0 Brasil nao élonge daqui:o narra, dor, a viagem, a mesma autora investiga a formagio da prosa de fiegao brasileira Ssequindo os rastros narrativos dos naturalistas e etndgrafos que descreveram Brosso pais no inicio do século xx." Sabe-se,enfim, como os romances realistas © Spaturalistas daquele século estdo impregnados de discursos cienificos originé- ios do saber médico, assunto meticulosamente estudado pelos criticos. A ficgo Sientifica, genero igualmente fértil a época, também instiga a pesquisa sobreas Krocas entre literatura e ciéncia. Os romances sobre crimes poderiam,& sua ve2, Ser compreendidos na interface com a emergeéncia dos estuclos sociologicos © Juridicos sobre as multid&es urbanas.® Literatura ereligido ou mesmo literatura fepedagogia educacional s4o, ainda, assuntos que trariam grandes bene! para a compreensio historica do século xIx e meados do século seguinte Fssas sugesties no esgotam as pistas que se abrem aos pesquisadores IConvém lembrar a eles, todavia, que diferentemente dos criticos e te6ricos da steratura, cujo foco de preocupagio maior é a anilise dos aspectos narrativos ropriados de outras linguagens e intemalizados na composicao das obras nescas, cabe ao historiador compreender e explicar como tais permutas rem em determinados contextos sociais e culturais. Nestes se incluem 05 Jos de produgio e difusao da cultura e do saber, bem como suas instituigoes saladoras, e que devem ser concebidos em permanente mudanca Método, bom senso e sensibilidade comumo iniiantena pesquisa histérica questionar quais sto os méto= Geos expecticos da dsciplina para a abordagem da fonteliterria, Na verdad 79 (Ober foes a historiografia ndo dispde de metodologia,teoria e conceit tos particulares para tal, ainda que jé tena acumulado experiencia raroavel longe deser puramente empirico,consiste exatamente ‘numa maneira de testar Esubmeter a criticaas teorias eos concetos criados por outras disciplinas, pela xPlictagio da diferenca edohheterogéneo,aspectos descobertos nos processos. rho de senPovalmente localizados.“ Portanto, as sugestoes a Seguir expostas, ‘nko devem ser vistas como receitas ou modelos prontos, 'm sobre Machado de Assis, mas jé houve Guimaraes Rosa, Lima Barreto ou Clarice isfat6ria, quando muito se a literéria mais recente. Noutras Palavras, nem sempre a escolha de fontes literériae decorre de questie: his- esquisacior depende da pro- tir de perguntas elementares lecionados para a pesquisa, como se ‘elacionavam entre 0 letrados ¢com outros segmentos sociais da sua época? Que paptis a literatura e as artes ento desempenhavanr Em que realidade Social, econ6mica, politica e cultural eles viviam, comoe Por que se lancaram 8 criacio ficcional? Dentre as disponiveis em seu tempo, construcao narrativa recorreram e por tais como: quem eram os escritores § ‘Alone ends Mas a formulacio do problema nao nasce no vazio, ao contrério, emerge no horizonte cultural e intelectual em que vive o proprio pesquisador, o que também deve ser objeto de reflexdo: por que quero estudar historia com fontes, Iiterdrias, como concebo a literatura, como minha sociedade a vé? Além disso, 0 projeto de pesquisa deve ser definidoa partir do conhecimento daquilo queh foi dito ouescrito sobre o assunto, nas diversas éreas de saber e, principalmente, na historiografia. Acima de tudo, seré imprescindivel conhecer a receped0 cr tica dos autores escolhidos e a bibliografia sobre a historia do periodo focado. Diferentemente dos pesquisadores de Letras, que muitas vezes se limitam ‘aestudar a estrutura interna das obras literérias, ja que existe certa tradigio para isso em seus cursos 0s historiadores, ainda que também possam clege-1as Tomo centro de atencao, devem compreendé-las em seus contextos hist6ricos ¢ sociais, 0 que requer a consulta a outras fontes da época. Toda fonte pode ser legitima na medida em que contribua para o entendimento do objeto saperifico de estudo e se tenha em conta sua natureza: politic, econdmica, ‘Gientifica,religiosa,artistica, técnica ou outra. preciso, contudo, estar atento Jos ambientes socioculturais do periodo analisado para se evitar otratamento snacrénico da fonte. Indagagées bésicas server para comecar esse trabalho: como um texto antigo, medieval ou mais recente era produzido? Como se ddifundia e a que fins se destinava? Quais as suas convencBes? ‘Como também hé aqueles em diivida se devem ou nao utilizar métodos ‘eteorias da Linguistica, da Semidtica ou da Hermenéutica ~ dependencio das ‘scilagoes académicas ~, além do que jé foi dito sobre as teorias em geral, € preciso argumentar que, na maioria das vezes tai recursos so artificials uma pesquisa histérica, Embora ndo se deva ignori-los,o fato é que eles pouco erescentam a investigacdo, a ndo ser quando indispensaveis para responder GquestBes pontuais. Na interpretagio do conteico dos romances e de suas formas narrativas é essencial, porém, conhecer e testar alguns conceitos da ‘Teoria Literdria acerca de aspectos como foco narrativo, linguagem metaférica, composigio de personagens, tempo e espaco na narrativa, efeitos de werossi- smilhanga, entre outros. A Hist6ria Cultural, que mantém didlogo estreito com, diversas éreas, dentre elas a Historia da Literatura e da Arte, oferece também, lgumas possbilidades de etrabalhar com textos literdrios.* Nenhuma delas sezviré, entretanto, como modelo a ser reproduzido. O método sera sempre onstruido pelo pesquisador no contato com seu objeto. Em face do cipoal de teorias hoje existentes, o que deve prevalecer 6 0 bom senso. 81 Uma diivida que frequentemente atormenta o historiador dedicado ao cestudo de fontes literdrias diz respeito a opgao pela anclise textual (interna) ou ppela contextual (externa). Trata-se de um falso dilema, embora, dependendo da problematica construida, dar-se-4 maior ou menor énfase a cada uma, Mas, na verdade, 0 que caracteriza a operacao historiogratica ¢ a interpretagio das fontes em determinadas circunstancias sociais, isto é, nos contextos, que s6 podem ser reconstrusidos, ainda que de modo parcial, lacunar ou aproximado, pela mediagio de outros textos. De acordo com essa concepgio, texto e contexto nao configuram polos incomunicaveis, ao contrério, é possivel leras marcas da sociedade e da cultura no interior dos escritos, e de outro lado, compreender significado deles na sociedade. Um trabalho exemplar nessa perspectiva foi realizado no ensaio “Hist6rias que os camponeses contam: o significado de ma- ‘mae ganso”, em que Robert Darnton analisa alguns contos populares narrados entre os camponeses da Franca no século xvi articulando-0s ao mundo social cultural da época.!” Conclui-se, dessa maneira, que a andlise interna das obras & permitida ao historiador, mas seu objetivo nao deve ser o mesmo da critica literdria eda teoria estética, que muitas vezes se restringem a l6gica dos textos, ‘Sendo assim, éimprescindivel criar estratégias para estabelecer 0 didlogo entre textos e o mundo circundante. Isso leva aos modos de interacao entre as varias dimensdes culturais numa determinada sociedade (oral, letrada, popu- lat, erudita, religiosa,cientifica, politica, juridica ou de género, caso se queira), problema que tem sido abordaco com muita pertinéncia pela historiografia contemporanea. Nas tiltimas décadas, desde os trabalhos precursores de Carlo Ginzburg,* as pesquisas em Historia Cultural tém apontado que tais dimen- ses ndo se fecham em si mesmas. Diferentemente disso, se aceita hoje a nogo de circularidade cultural, ou seja, de que hé um intenso intercambio de ideias, imagens e formas de expressio entre grupos dominantes e subalternos, entrea cultura letrada e a cultura oral e mesmo entre estas e as demais segmentagoes citadas. Mas essas trocas nao podem ser interpretadas de maneira uniforme, como indicativas da imposigéo de umas sobreas outras, ou da assimilagao dos padres culturais hegeménicos pelas culturas subalternas, jé que pode haver relagdes de apropriacao ou de confronto entre elas. Ahistoriografia contemporanea abriu espago para uma grande quantida~ de de temas e problemas que demandam o auxilio da literatura. Alguns deles abrangema investigagao dos diferentes papéis desempenhados por ela através do tempo, seus agentes e vinculos com os modos de producao e circulagio da 82 ura. Ressaltam-se nessa linha os estudos sobre a formagao das instituigdes iterérias: academias e outros circulos letrados, sua sociabilidade interna e seut envolvimento com asinstancias do poder;* os trabalhos a respeito das formas difusio dos textos e das praticas de leitura na sociedade,® dos suportes ateriais de difusio dos escritos (manuscritos, impressos, textos digitais)* investigagSes a respeito das empresas ¢ instituigdes responsaveis pela produgio, difusio ou apropriagao da literatura (graficas, editoras, livrarias, conglomerados da midia, jornais, revistas, escolas, Ministérios da Cultura e Eclucagio); as andlises acerca da censura ou do estimulo governamental & steratura e do seu uso para fins militantes em partidos, associagoes étnicas, stas ou cle orientagao sexual alternativa. Em todos esses casos, geralmen- se nota uma menor preocupagio coma andlise interna dos textos literarios, vez que o enfoque se assemelha ao da Sociologia da Literatura, exceto ‘maior importincia dada ao material empirico e pela recusa aos modelos Jvamente abstratos, aspectos que caracterizam o método historiografico uta linha de estudos pode envolver as relagdes entre literatura, cine- pintura, jomalismo, cultura de massa, televisao, internet, da manera jé wentada anteriormente. ‘Uma vertente que também é abundante busca analisar como sio criadas os textos as representagies sociais, nacionais, regionais, morais, ideolégicas, A respeto da génesee do funcionamento do campo sia da iteratura, ver Pierre Bourdieu, AE regis da ate: geese estat do campo iter, So Paulo, Companhia das Letras, 1986. % Obra magnificamente imerpretada por Sarre. Ver Jean-Paul Sate, Saint Genet: ator e mtr, Petrspolis, Vozes, 202 Ch, Massoud Moisés, op. cit, pp. 24-50. Sabre o surgimento do romance, suas caaeteristieas ‘como género e dferengas em relaio as formas tadicionais, lr lan Watt asconsdo do romance, ‘Sto Paulo, Companhia das Letras, 1990; Mikhail Bakhtin, op. ct. 89 *® er Frédéric Barbier, Histri dol, Sto Paulo, Paulista, 2008. * Cf Mikhail Bakhtin op. cit, p. 407 ® Donaldo Schuler, Teri do romance So Paul, Atica, 1989, p6 * EM. Foster, Aspctos do ramanc, 2d, S80 Pau, Globo, 1986, pp. 27-61. Conjunto de ensaios Publicado pela primeira vez em 1827. wadugio do lo do livro de Emily Bronte ¢O mor dos Roger Charter, hstria ova letura do tempo, Belo Horizonte, Auténtica 209, p25. * Stover Connor, Cultura ps-modera:intraduoas tris do contemporine, Sto Palo, Layols, 1992 106.0 trecho parafaseia uma dasprincipaslinhasteias desta erent teria Linda Hutcheon, ‘A Poetics of Pstmadernism: History, Thery, Fc, Nova York/Londses, Routledge Pres, 1958 CE. Antonio Celso Ferreira, "Histvae iteratura:Frnteras miveise desis disipinaes” em Ps istra revista degrada em Hist, Unesp, Asi, 4, 1996, pp. 23-44 rate nest artigo, do polémica Sobre a areata istics coma correspondent nara ies, nog que passe a ver ‘demanira mais uancada ano depois Deir os autores esenhads no texto, destacase Lawrence ‘Stone, "O ressurgimento da nareativa:refenses sobre uma vlha histra”, em Revise de Hist, ‘Campinas, 1991, n-23, pp. 1337; Roland Barthes, O rumor da leg, S80 Palo, Brasiiense, 1988 ¢ Paul Veyne, Como se sce historia Foucnutrecluciona a hstir, Bras, Editora da Un, 1982. % Hayden White, Pps do dicurse:ensis sobre critica da cultura, Sto Palo, Edusp, 1994.98. Ver também, do mesmo autor, Meta Histnuca inginago histrca do sul x, 80 Palo, Edu, 1992. ® Sobre oassunto, consular Peter Gay, O estilo na hs, So Paulo, Companhia das Letras, 1990 & Peter Burke, “Ahistria dos acontecimentos eo renascimento da nareativa”em A seria da str roo erspectons, Sto Paulo, Fada Unesp, 1981, pp. 327-34 * Ck Roger Chartier, “A histra hoe: dvds, cesaios,propestas", em Estados hiss, Rio de Jairo 1984 1.7, pp. 97-13. Nao se prope neste capitulo o tratamento da relagdo entre trata ¢linguagem sonora, 0 qe «xigira um texto a parte em razor da sua complenidade como também da sua presen mais St no romance. * Stephen Bann, “Os bores detnta de Victor Hugo indeterminasioedentfcagona representa do passa" em Asrenges da histria ens sobre a representa do psa, So Paul, Ea Unesp, 199, pp. 108-25. Apropésito do romancee suas relagSes com a experiéncias da vanguard liters, consular Anatol Rosenfeld, “Reflexdes sobre o romance moderno", em Tetoconente, Se Paul, Perspect, 1973, pp. 753 * Sobre a difusio do flhetim na Europa e no Brasil ler Mavlyse Meyer, Flletin: x hist, S80 Paulo, Companhia das Letras, 19. “Flora Sussekind, Cinematigrafo dos letras: literatura, teen moderniagio no Brasil, Sto Paulo: ‘Companhia das Letras, 1987 “© Pra Susseknd, © Brasil to long daquonarader, vege Sto Paulo, Companhia ds Leas, 199. © Sobre o asunto, ler Maris Stella M. Bresclan, Lond Pris no elo sv expehicul de pore, {6.ed, Sto Paulo, Brasiiense, 190, “Para o autor Histria permite uma celtic radical dos coneeitosoperatrios de véras disciplines, ‘como. Ushanitmo, a Sociologia Demografia ou a Econoeta, uma vez que pode medi os desis 90 a realidad social em rlagio a essas constragGes formais: “a Hisra milo deixou de manter 3 angio que execeu por séelos por raztes bem diferentes e que convém a cada wma das eéncias Comstitldas: ade ser uma ert”, Michel de Certeau, A escrita da Hist, 2. ed, Rio de Janene, Forense Universiti 2000, p. 90. Alem do ivrosdeD. Schuler. M. Foster citados, alguns pradidtcos da ea de tora tera povlem se tes para tal finaldade, a exemplo de: Domicio Proensa Filo, lingua terri, BPS Sto Paulo, Atca, 1987, Ligha Chiappini de Moraes Leite, fen nurativ, 3, S80 Paul, ‘ica 1967 Beth Brit personage, 3.8, Sto Paulo, Ata, 1987 e Benedito Nunes, O emp na arate, So Pao, Ata, 1988. ‘Consulta a respeito do assunto Lynn Hunt (apresentagioe orpanizagio), A Noo Histrin Cultural, ‘Sho Paulo, Marine Fontes, 199, especialmente oscaptulosesritos por Lhoya S. Kramer Roger Chastie Robert Darnton, O grande massacre de gals outros episiis da Mitra Cultural Frencse, Rio de Janeiro, Gral 1986, pp 21-102. Ver Carlo Ginzburg, O quis vermes So Paul, Compariia das Letras, 1986, Para aformulasio daconcit de crelariade cultural, Ginsburg nsptou-sena obra de Bathin sobre Rabelais Mikhail Baktin cura poplar na ade Matis no Renascimente:o conto de Fronois Rael, So Pal, Hicitec, 1987 “Entre véros outros exemplos; Joo Paulo C. de. Rodrigues, dana das cadirasiterturaeptticn tnt Academia Brera de Leta (1896-1913), Campinas, Editora da Unicom, 200 _Avertente de estado sobre histiaepriticas da etur, bem como sobre histra do livorendew inimerosrutosnaatvalidade. Deize outros autores vale embrar Roger Chater, Leiturs letiows fu France do Antigo Regine, Sko Paolo: Ea. Unesp, 2004; Roger Chartier, aventura do eo: do efor {i nangador, Sto Paul, Ed Unesp, 1988; Steven Roger Fischer, Histra de tur, So Paulo, Eitora Unesp, 2006. ‘Ver Frederic Barbier, op. cit © Sera temeréro arolar al os numerosos estudos dessa natureza, mas € possvel citar alguns tues: Raymond Willams, sobre as representagbes de campo e a cidade na itertara ingles, op. ‘Sk Juoques Leenhardt, “As ures na cidade: notes sobre uma metfora urbana em Jorge Amado", em Sandra Jatahy Pesnvento (org), sri, inguagen, objets letras de Histria Cultus, Bauru, Esp, 2004, pp. 14764 Maria Sela Bresln, “O literato, ocronista eo urbanista. Imagens de Sto Paulo ‘nos anos 1910-1920", em Sana Jatahy Pesavento, op cit, pp. 11540; Antonio Celso Ferrera, Unt ‘Cuore errant: Sd Poul fio istic de Osa de Andrade, Sto Palo, Ed Unesp, 19%; Antonio Coto Fereeiea, A epi ndeirane:Ierads, institu, doen historia (1870-1840), SGo Paulo, Feitora Unesp, 2002 Antonio Ceo Ferreira e Marcelo Lapuente Mahl (ongs) Lets identidades. ‘So Paulo no Secu capital entero, S80 Paulo, Annablume, 2008; Marcos Martine, Antonio ata, sermondrio basi, S80 Pau, Annablumme 2006; Céla Regina da Silveira, Eradiaoe ‘inci as prove de Jo Ribeiro 1845-1890, Paulo, Ed. Unesp, 2008 © Jilio Ribeiro, cone, Rio de Janeiro, Eaiour, sd, pp 29-90. Antonio Celso Ferreira, A eyopelsbandenat: eras, nsttiges ¢ inven histren (18701940), cit pp. 177202. Céla Regina da Svera, op. it

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