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Quase Liquido, pensar um tempo cambiante Nos metos-termos nao se reconhecem méritos conceitualmente apropriados para que sirvam de elementos explicativos capazes de traduzir a realidade. Basta, para efeito, que nos centremos rio que é “um quase’; é algo que nem é, nem deixa de ser. Mas quase iquido ¢ uma expresséo sumamente feliz como enunciado do tempo em transito que nos tocou viver, em que o elemento Gue se nos revela mais estavel éa prépria mudanca, Diante de tal processo de aceleracdo, marca indelével da modernidade, fomos induzidos a pensar que era despropositado indagar quanto ainda se conserva daquilo que se vai dissipando. 0 degelo social a que estamos submetidos & de tal dem que parece que s6 nos rsta ponderd- lo desde um processo absoluto de "liquidficacao’, nessa interpretagéo excessiva que multos fazem da metéfora evanescente que nos propée o sociélogo polonés Zygmunt Bauman. O que queremos & pensar desde os contributos tedrcos da “modernidade lquida" até o conjunto de Jlementos que esta postula como forma de estabelecer a sua caracterizacso mals genérica, Para depos tentando ir mais além da explicacdo holistica que se resume recorrentemente no chavao ‘das nossas sociedades complexas", ponderar a especificidade da percepcao de um espaco- tempo que nio cessa de se alterar. [Assumimos, primeiramente, que a prépria modernidade vai produzindo em seu devir histérico Geterminadas transformacées especicas que geram um espirito para esta época. Em que Seus referentes solidos e mais estéveis, que eram marca das sociedades tradiclonais, esto se Gebilitando, pols foram desassossegados pela crenca (positivsta) de uma inapelével idela de progresso herdada dos séculos XVlle XIX. Em que o“exuberante espirito moderno mencionava dima sociedade que se encontrava demasiado estancada para seu gosto e demasiado resistente 3s transformagdes ambicionadas, jé que todas as suas pautas estavam congeladas”.” ‘Assim, e seguindo ainda Bauman, a modernidade sélida querendo responder voz do progresso.e na nsia de conseguir aperfeicoar seus referentes mals estavels oi gradualmente descongelando- 05. Procedendo a uma purificagao em que tentou que os s6lidos ficassem ainda mais séidos mas, como sabemos, submeter de novo & congelacéo o que fora previamente descongelado é nio ter em conta as regras bésicas da conservacao. O que levou esses sélidos aficar paulatinamente mals frégels e sem consisténcia, Diante desse processo falhado, esse mundo que aspirava ser melhor feriu de morte sua quimera (como antes houvera feito a seta de Belerofonte na mitologia grega). © que nos conduziu @ um desencantamento, materializado no fim: das utopias, das ideologias, dos grandes relatos, Fazendo esses elementos, que eram uma espécie de cola social que nos mantinha unidos, perder fungio gregaria de outra hora Descentralizamos esses pontos de referencia, abdicamos das grandes e pesadas cargas tradicionalistas do passado. Ficamos mais auténomos, mais leves, porque nos libertamos de amarras © compromissos, mas ao mesmo tempo ficamos & mercé de relativismos varios; do individualismo, da secularizaco, das identidades incertas. Por isso cada vez nos cremos mais: Individuos, sumamente diferenciados, mas cada vez mais somos sujeitos ambivalentes, De tal forma que parece que jé ndo somos nés quem nos adaptamos as sociedades, mas as sociedades ue tém de se adaptar aquilo que queremos delas. Nao é de estranhar que renovadas configuracdes de sociabilidade foram sendo tecidas: as novas Conjugalidades, os novos ricos (e outras formas de reciclagem de status), os renovados estilos de vida, as identidades fundadas em tradicdes inventadas, as novas tecnologias que nos apresentam outros processos de intercdmbio de informacao e de comunicacéo. A nova e renovada era high ‘tech em que vivemos propicia uma “Sociedade intensamente comunicada, mas escassamente reunida'* o que produz a sensagao de estarmos mais perto uns dos outros quando na realidade estamos menos. A tecnologia formata, assim, uma"simultaneidade despacializada’” criadora de nexos de relacdes cada vez mais no presenciais. Uma espécie de sociedade em tempo real (sincrénica), mediada pela forte digitalizagdo em que os meios de comunicagao, numa légica interativa, aceleram o tempo e encurtam 0 espaco. A possibilidade que nos dao de experimentar novas sensacées sem termos de sair do lugar, aumentando nosso repertério, faz com que outras formas de vida se nos apresentem como possiveis, desregulando nossa pertenca ao citcunscrto universo fisico a que estamos confinados. Somos cada vez menos de algum lado e cada vez mais de nés mesmos. Por isso, circulamos de forma vertiginosa pelos ‘ndo lugares"! esses espacos de passagem donde nao conseguimos estabelecer relagdes socials duradouras. Somos fugazes, de instantes, de momentos, por isso abdicamos do s6lido que considerado rigido e, como tal, impoe um peso ue no nos deixaflurlivemente, Cada vez mais nossa vida se consome e nos consome em sitios de néo permanéncia. 0 cotidiano invadido pelas tangéncias em que nossos corpos incomunicévels se toleram no atropelo da “grande cidade, como em Cloe, essa urbe que parece nos fazer invisiveis como nos relata Italo Calvino.’ Como paradigma acabado da contradicéo em termos que representam nossas “sociedades de individuos'" A vida liquida fluina rapidez dos extenuantes deslocamentos dirios, nas deambulacdes permanentes feitas aos aglomerados comercias que tudo congregam pars ue ndo nos facam perder tempo, Mas 0 constante rodopio nao acaba em terra, ada vez mals Mos parecemos com Viktor, personagem encamado por Tom Hanks no filme O Terminal, de Spielberg (2004). Em que os aeroportos se convertem em constantes espacos de permanéncia {ransitéria. Ora empurrados pelos apelos low cost que se empenham em fazer de nés “cidadaos do mundo’, ora empurrados pela precariedade de nossos locais afetivos, que nos expulsam na Impossibiidade de gerar as condicées para que possamos viver neles condignamente. Somos assim colocados entre a vontade e a necessidade de ter de nos deslocar num processa crescente de desarraigamento. Nao deixamos de saber de onde somos, mas cada vez mais nos custa saber 0 que somos ara onde vamos. Sofremos, por isso, de um progressivo “makestar’ causa e consequéncia a Pagar pela vida que levamos, como alertou Freud, a julgar pelo numero de antidepressivos que tomamos e pelo nmero de vezes que nos deitamos no diva’ Porque “existe mudanca, sempre mudanca, sempre uma renovada mudanca, mas ndohé destino, um ponto-final, nem uma misso Por cumprir. Cada momento vivido esta concebido simultaneamente com 0 novo e com o fim. ‘utrora inimigos jurados, agora sao gémeos siameses!” Assim, nada € feito para durar, estamos sob o signo de uma constante ¢ renovada morte anunciada em que 0 novo substitui o novo, obcecados por conseguirmos sempre mais e melhor. Por isso, agora, como no principio da modernidade, acreditamos que o sOlido s6 voltaré a ser sélido, aspirando ao progresso, se conseguir constantemente liquidifcar-se, Bruno Reis *Sociélago, Atvalment ¢bolsista-nvestigador ds Fundagso para a Cigncia «a Tecnologia de Portugal eesté em rocesso de conclusdo de sua tese de doutoramento em ciéncias socials pela Pontificia Universidade Catdice de Séo Paulo e comunicagse politica pela Universidade Re Juan Carles. Notas 1.0 préprio autor reconhece, em resposta direta a uma questéo levantada por um leitor num passatempo promovido pela sua editora no Brasil, a Jorge Zahar, que é excessivo pensar em termos de liquidicacéo absoluta: A liquidez absoluta é o elemento natural de nossos peixes, mas nao € apropriado para nés, humanos. O elemento humano sempre fol, permanece e, provavelmente, sempre seré um lugar de interaco entre sdlidoe liquido, estabilidade e mudanca, Continuagao e descontinuidade” [consultado no dia 10 de abril de 2008 em www.zahar.com.br/ promo. bauman_resultado.asp |, Para uma perspectiva mais esclarecedora acerca do conceito de liquidez na obra de Bauman, desmultiplicado de forma bastante recorrente o que gera ‘muitas vezes reiteracdes um tanto desnecessérias, é recomendvel a leitura das sequintes obras: ‘Modemidade iquida Jorge Zahar, 2001); Amor liquido — sobre a fragilidade dos lagos humanos Uorge Zahar, 2004); Arte, liquido? (Ediciones Sequitur, 2007); Tempos iquidos (Jorge Zahar, 2007); Vida liquida (Jorge Zaher, 2007);e Medo liquide Uorge Zahar, 2008), 2. BAUMAN, Zygmunt, Modernidad liquida, p. 9. 3. HOBSBAWN, Eric J; RANGER, Terence (org). Ainvencdo das tradicbes. Séo Paulo: Paz e Terra, 1984, 4, BRETON, P.Liutopie de la comunicacion, Le mythe du village planétaire, p.12. 5. THOMPSON, John B.A midia ea modernicade: uma teoria social da midia. Petropolis: Vozes, 2001. 6. AUGE, M, Non-lieux. Introduction a une anthropologie de la surmodernité.Seuil, 1992. 7. CALVINO, Italo. cidadesinvisveis. So Paulo: Companhia das Letras,190. 8.ELIAS, Norbert. A sociedade dos individuos. ao Paulo: Jorge Zahar, 1994. 9. A organiza¢ao mundial de satide estima que pelo menos 10% da populag3o mundial esté sujelta ao longo de sua vida a pelo menos um episédio de depressio, que é a doenca que mais tem crescido nos ultimos 50 anos. 10. BAUMAN, Zygmunt. Arte, iquido? Madri: Ediciones Sequitur, 2007. p. 88.

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