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Notas sobre o efeito da forma

Vinicius M. Netto

Em vão pretenderás ter conhecido a natureza dos corpos a partir de tua experiência passada. Sua natureza
oculta e, por conseguinte, todos os seus efeitos e toda sua ação podem mudar, sem que haja qualquer
modificação em suas qualidades sensíveis. Certamente, isto ocorre algumas vezes, e com relação a alguns
objetos. Por que não poderia ocorrer sempre, e com relação a todos os objetos? Qual lógica, qual processo de
raciocínio te assegura contra esta conjectura?
1
David Hume

Confirmando a evidência de nossos olhos, as superfícies de nossos corpos encostam-se no mundo


incessantemente, sem jamais encontrar nele uma quebra – apenas uma sucessão ininterrupta de diferença,
passagem e permanência, uma extensão durável
“na qual tudo muda, e ainda permanece o mesmo.”
2
Bliss Cua Lim

Abstract. Por que diferentes sociedades urbanas inventaram o quarteirão? O texto traz reflexões sobre o papel
do quarteirão para cidades, o porquê de sua invenção, seu processo de gênese, e os impactos de sua morfologia
sobre o potencial de interação social em uma trajetória histórica de crescente divisão do trabalho. Ainda lança
uma nova hipótese de "convergência dos desempenhos urbanos" para tipologias do quarteirão em diferentes
aspectos: sociais, econômicos e ambientais.

                                                        
1
Do original: “In vain do you pretend to have learned the nature of bodies from past experience. Their secret nature, and
consequently all their effects and influence may change, without any change in their sensible qualities. This happens sometimes,
and with regard to some objects. Why may it not happen always and with regard to all objects? What logic, what process of
argument secures you against this supposition?” (Hume, 1993:24).
2
“Confirming the evidence of our eyes, the surfaces of our bodies brush up against the world incessantly without ever finding a
break in it, only an uninterrutpted succession of difference, passing and permanence, a durative extensity ‘in which everything
changes and yet remains” (Lim, 2009:154). Lim menciona palavras de Henri Bergson. Todas as traduções neste capítulo feitas
pelo autor.
Título, imagem, citações: este ensaio inicia evocando três referências para definir seu tema.
Começando pelo fim, as frases de Hume e Lim contrastam duas visões do efeito da forma. Hume,
filósofo do século XVIII, é precursor de uma teoria dos efeitos da forma sensível dos fenômeno e
rejeita causalidades, como sua frase sugere. Lim, teórica pós-colonial, descreve a “fricção última”
entre corpo e tudo o que o cerca. Este capítulo trata dessas duas coisas: a possibilidade de efeitos da
forma sobre os modos como vivemos no espaço e nos apropriamos corporalmente dele, via nossos
gestos e ações com outros. Discordarei de Hume ao trazer evidências de que sua posição
filosoficamente cuidadosa não resiste à observação científica de consistências nas relações entre
fenômenos: no caso, entre forma espacial, arquitetônica, urbana e nossos modos de uso do espaço e
de interagir dentro dela e a partir dela – afinal, Hume ainda não tinha a sua disposição uma teoria
estatística para amparar seu interesse em probabilidades. E veremos que essas relações entre a
forma espacial dos objetos arquitetônicos e urbanos e nossas condições de interagir dentro dela (a
3
"vida entre os edifícios", na bela e precisa expressão de Jan Gehl) envolvem exatamente essa
instância última da relação entre corpo e diferenças do espaço. Diferenças que vão moldar nossa
apropriação e nossos potenciais de movimento, copresença, conexão momentânea, interatividade.
4
Agora, a imagem: os diagramas de Fresnel e de Martin. Costuma-se dizer que “uma imagem
vale por mil palavras”. Nunca acreditei muito nessa frase – afinal, o contrário também é perfeitamente
possível. A imagem não tem primazia sobre a palavra – e, creio, nem o contrário. Mas nesse caso, a
imagem já nos sugere uma variação de formas e duas formas arquetípicas, e nos faz pensar nas
diferenças entre elas.
O título do capítulo, “Notas sobre o efeito da forma”, por sua vez, sugere um desdobramento
das diferenças da forma. É uma referência a Notes on the Synthesis of Form, livro de Christopher
Alexander sobre o processo de criação. Gostaria de oferecer aqui notas sobre a síntese e as
implicações sociais e materiais da forma. Entretanto, o exame dessas implicações demanda o que
podemos chamar de uma "arqueologia" ou talvez uma "genealogia" – mais formal que histórica – da
forma urbana, de modo a identificarmos quais aspectos elementares podem ser responsáveis por
seus efeitos sobre nossas interações. Veremos essencialmente que, para entendermos os efeitos da
forma urbana sobre nossas interações, teremos de entender a forma urbana como efeito de
interações, e portanto, entender o processo da emergência de certos caminhos morfológicos que
definiram as espacialidades que hoje reconhecemos como urbanas. Explorarei princípios de gênese
da forma urbana a partir de requerimentos da interatividade: a moldagem de uma espacialidade ativa
já em seus componentes elementares, na produção da arquitetura e da sua agregação como um
modo de generalizar a proximidade entre atores, com o efeito de intensificar a copresença e a própria
interatividade.

                                                        
3
Gehl (2011).
4
Veja Martin (2000).

  2
Este texto busca oferecer elementos para uma teoria a respeito das razões para tais relações
estarem ativas, e deriva suporte para tanto em evidências encontradas em estudos empíricos
recentes no Brasil. Esse seria o início de uma “teoria da relação ato-espaço”. É na verdade um
problema frequentemente tratado, mas de modo mais implícito, assumido, não problematizado – e que
merece mais atenção teórica, considerando que temos teorias de aspectos da forma urbana ativos
socialmente, economicamente e ambientalmente em outras escalas, tais como padrões densidades e
de localização. Entrar nesse tema significa entrar no debate sobre a condição material do nosso viver,
e perguntar se o meio material à nossa volta teria mesmo qualquer implicação sobre nossos atos, ou
se nossos atos aconteceriam de qualquer maneira, ou de uma mesma maneira em qualquer lugar. Em
um extremo, temos visões deterministas de que a forma do lugar tem peso sobre os atos; de outro,
uma visão de que diferenças no mundo físico não fazem diferença na realização dos nossos atos e
interações. Veremos que nenhuma dessas posições é correta: veremos que a forma importa (isto é,
há uma improbabilidade de interações ocorrerem exatamente da mesma forma em lugares distintos),
mas não poderia sozinha determinar o curso das interações.
Neste ensaio, proponho (1) uma breve antecipação das implicações entre diferenças na forma
e diferenças nas possibilidades de interação abrigadas pela forma, a partir de alguns clássicos sobre
o tema. (2) O exame de como a forma poderia ter esses efeitos nos levará a uma série de hipóteses
sobre como a espacialidade urbana emerge, iniciando pelos requerimentos da interatividade ativos na
sua gênese, e nos porquês a espacialidade urbana toma a forma que toma: os caminhos
morfogenéticos que assume, entre tantos caminhos possíveis, em direções aparentemente
arquetípicas, algumas consagradas ao longo dos milhares de anos de existência das cidades, e outra,
fruto da rebeldia do século XX à história. (3) A leitura da forma como efeito da interatividade e a
investigação dos caminhos em direção a espacialidades urbanas arquetípicas nos permitirá entender
melhor os efeitos da forma sobre a interatividade, os quais gostaria de situar no único lugar onde
poderiam estar ativos: as relações entre nossos corpos, atos e espaços. (4) A busca de evidências
empíricas sobre a relação entre diferenças da forma arquitetônica e urbana e diferenças na
distribuição de corpos e atividades sociais nesses espaços e o que elas têm a nos sugerir nos levará
mais perto de uma teoria da relação entre interatividade e espaço arquitetônico-urbano. Finalmente,
(5) veremos que os efeitos da forma não se limitam à interatividade social: lançarei a hipótese radical
de uma convergência de efeitos – políticos, econômicos e ambientais – alinhados a partir das
diferentes morfologias do edifício e da cidade.

  3
1. A ideia dos “efeitos sociais” da forma arquitetônica e urbana

Em geral, nas tentativas de descrever os aspectos “sociais” da arquitetura, a linguagem tem decepcionado.
O ponto forte da linguagem – a criação de diferenças – tem tido valor limitado nesse campo; e a tarefa de tornar
evidente o relacionamento entre fenômenos tão claramente díspares como a prática social e o espaço físico tem
estado amplamente além da capacidade da linguagem
(Forty, 2000:117).

O reconhecimento do “social” em arquitetura e urbanismo como algo distinto da ideia de “uso”,


“função” ou de uma categoria estética enfrentou dificuldades. Ainda hoje a dimensão social encontra
reduções funcionalistas severas na teoria arquitetônica, à despeito da ideia sofisticada, mas bastante
teleológica, de Paul Frank de que a “arquitetura forma a arena fixa para ações de duração específica,
e provê o caminho para uma sequência definida de eventos” em 1915, e dos avanços em Bernard
Tschumi nos anos 1980. Essas dificuldades só começaram a ser superadas na teoria urbana dos
anos 1960. Lewis Mumford chegou a empregar um senso de efeito social em seu uso do termo
“urbanidade” em 1953, ao falar que a abertura das largas ruas das novas cidades inglesas “não
5
apenas reduzem a urbanidade, mas também reduzem a atratividade social”. Referências à relação
entre arquitetura, forma urbana e “vitalidade da comunidade” aparecem no discurso do arquiteto inglês
6
Peter Smithson em 1957. Mas só em 1961 essas referências ganham hipóteses articulando forma
urbana (o tamanho do quarteirão, a diversidade da idade de edifícios e de usos, a concentração) e
aspectos de vitalidade social das ruas em Jane Jacobs. Jacobs ainda associa padrões da forma
produzidos na urbanização modernista envolvendo grandes afastamentos e controle de atividades à
7
ausência de vitalidade, fazendo o elogio da forma urbana tradicional. Um esforço sistemático em
encontrar as propriedades fundamentais da forma e seu lugar na dinâmica urbana que se seguiu foi o
de Leslie Martin e Lionel March na segunda metade dos anos 1960, ao examinar diferentes formas e
seus arranjos, e nos oferece as primeiras evidências (de natureza matemática) de diferenças nas
condições de como o espaço pode amparar nossas práticas. Martin demonstrou o comportamento
superior de certos tipos de formas sobre outros quanto à absorção de densidade e atividades – “um
8
importante princípio em relação ao qual edifícios são posicionados no solo” (figura 1).

                                                        
5
“Such openness nor merely reduces urbanity, but it also reduces social amenity” (Mumford in Forty, 2000).
6
Veja Forty (2000).
7
Jacobs (2000).
8
Martin (2000:19).

  4
Fig. 1 – O diagrama de Fresnel (topo) mostra todas as molduras com a mesma área; a moldura e o quadrado em
preto têm a mesma área no estudo de Martin. No esquema seguinte, temos a replicação tridimensional dessa
propriedade. Abaixo, Manhattan e quarteirões em anel têm a mesma densidade, mas Manhattan tem 3 vezes
mais altura e ocupação quase total do solo.

Os estudos de Martin e March, lembrando o de Ildefonso de em 1867 sobre o tamanho do lote, a


forma do edifício e movimento, mostram como o desempenho da forma pode ser contraintuitivo:
implantações de borda têm com grande eficiência para absorver densidade, com as vantagens da
menor altura e de liberar o espaço aberto do interior do quarteirão para uso, ventilação e iluminação.
De modo oposto, quarteirões cujos edifícios apresentam espaçamentos entre si, sem continuidade de
fachadas, terminam por reduzir o potencial de densidade. Precisam então verticalizar-se muito para

  5
ganhar densidade. Propriedades espaciais fundamentais moldam o desempenho da forma quanto ao
potencial de densidade, influenciando, segundo Martin, “o uso efetivo do solo” e “a futura elaboração
de padrões de vida urbana”.
Esse tema de pesquisa segue ativo em diferentes áreas. Mais recentemente, o papel das
densidades e da forma urbana foi associado à interatividade e inovação na economia por Edward
Glaeser, e por Gordon e Ikeda – estes últimos, encontrando evidências de que as “densidades
Jacobs”, horizontalizadas, mostram-se como cenários aparentemente mais capazes de suportar a
interação e inovação. No Brasil, a atenção a essa problemática aparece nas observações etnográficas
de Carlos Nelson dos Santos e colegas sobre a relação entre ocasiões de contato face-a-face e a
distância entre casa e rua. Holanda aborda a constituição de acessos na interface edifício-rua em sua
definição de “urbanidade”. Júlio Vargas trata da forma do quarteirão e ruas de alta centralidade como
fatores de vitalidade; e o papel do tipo arquitetônico e seus efeitos sociais no seu entorno urbano são
9
conceituados explicitamente em nosso trabalho.
Entretanto, como esses efeitos são criados? Se eles existem, porque a forma urbana, ao
longo da sua história, se encarregou de gerá-los? O que esses efeitos teriam a ver com o próprio
processo de geração e transformação históricas da forma urbana? Ou seriam mera coincidência?
Para que entendamos os efeitos da forma, precisamos antes de uma teoria das razões para que
esses efeitos estejam em jogo. Argumentarei que esses efeitos só existiriam com qualquer implicação
causal se estivessem ativos antes mesmo da forma estar construída: eles teriam de fazer parte da
gênese da forma, ou ser razões para a própria produção da forma urbana e dos caminhos
morfogenéticos que esta toma. Em suma, precisamos de uma descrição da gênese da cidade – uma
teoria das razões sociais e materiais para a cidade ter surgido com suas espacialidades específicas.
Uma teoria dos efeitos da forma sobre a interação se assenta em uma teoria da forma como efeito da
interação. Precisamos ir do "efeito da forma" à “forma como efeito” – para então retornar ao primeiro
problema.

2. Uma genealogia da relação forma urbana ! interatividade social

... porque as cidades ainda são amplamente observadas como se estivessem em equilíbrio, o avanço em produzir
10
ideias sobre como as diferentes morfologias evoluem e se transformam tem sido lento.
Mike Batty, The New Science of Cities

O impulso à vida coletiva na cidade já era reconhecido por Aristóteles em Política, sob o termo
“synoikismos”. Essa ideia, resgatada recentemente pelo geógrafo Edward Soja, ao falar do impulso à
                                                        
9
Glaeser (2010); Gordon e Ikeda (2011); Santos et al (1985); Vargas (2003); Netto (2006); Netto, Vargas e Saboya (2012).
10
“...because cities are still largely observed as if they are in equilibrium, progress has been slow in building ideas about how
various urban morphologies evolve and change” (Batty, 2013:245).

  6
urbanização e sua espacialidade particular, também foi tocada por Jacobs em The Economy of Cities.
O tema não é estranho à economia. Desde Von Thünen no começo do século XIX, a economia
espacial localiza a origem das cidades na aglomeração gerada por forças centrípetas e as
11
externalidades dos processos da produção e da troca em uma divisão do trabalho complexa. Mas o
objetivo deste texto é ir além da espacialidade genérica da aglomeração urbana reconhecida pela
economia espacial. Gostaria de me aproximar dos componentes que geram a forma urbana,
geralmente fora da análise econômica e geográfica, e localizar já na associação destes componentes
elementares as forças sociais e materiais que geram a forma urbana e a cola entre prática e espaço.
Também gostaria de ir além das tramas da prática econômica para reconhecer a gênese da forma
urbana como parte da emergência das tramas da prática social como um todo.
Encontramos um reconhecimento mais rico da dimensão social – não da espacial – no
trabalho recente do físico Luis Bettencourt sobre a origem das relações em sistemas complexos e
interdependências das dimensões urbanas social, espacial e infraestrutural – e como cidades se
transformam a partir de princípios básicos locais, nos oferecendo considerações avançadas sobre as
relações entre morfologia e interatividade social. A dinâmica e organização interna das cidades (como
redes sociais de pessoas e instituições) permitem a troca de bens, serviços e informações. Seguindo
um espírito da teoria econômica, Bettencourt vê cidades atravessadas por uma tensão entre
interatividade, custos de movimentação e padrões espaciais. São um balanço delicado entre
densidade, mobilidade e conectividade social. Elas se formarão se o balanço das interações for
positivo, considerando os custos de dispersão, promovendo maior mobilidade e densidade, de modo a
atingir contatos sociais mais intensos e benéficos. Cidades podem não realizar seu potencial social
total, ou se o fizerem de modo que leve a custos muito altos de mobilidade. Envolvem a aceleração
temporal das interações – em uma progressão que varia mais que proporcionalmente em relação ao
tamanho da cidade. A dinâmica de sua rede social permite que o crescimento das cidades siga em
aberto: a adaptação contínua é a regra, e não o equilíbrio. Entretanto, a teoria de Bettencourt – como
ele mesmo admite – fica ainda distante das espacialidades mais detalhadas das densidades e
centralidades, as diferenças internas na forma da cidade.
Mike Batty chega mais próximo desses formações. O que é curioso no novo trabalho de Batty
é seu reconhecimento tardio de que a localização e padrões urbanos são importantes “apenas como
lugares que ancoram interações [...] padrões de localização como padrões de interações [atuando]
12
como a cola que mantém populações juntas através de fluxos de materiais, pessoas e informação” –
redes sociais [que] serão críticas para esta “nova ciência”: a cidade como “conjuntos de ações,
13
interações e transações”, padrões de fluxos e de redes de relações. Batty enfatiza a importância da

                                                        
11
Veja Soja (2003), Jacobs (1969), Fujita e Thisse (2009).
12
Batty (2013:8).
13
Uma série de estudos vem explorando há anos exatamente esse conceito de cidades como fenômenos socioespaciais. Veja,
por exemplo, Netto e Krafta (1999; 2001); Netto (2007).

  7
contiguidade física e da adjacência nos processos de formação da cidade. "Cidades se desenvolvem
ao preencher o espaço disponível para elas de modos diferentes, em diferentes densidades, e usando
diferentes padrões para levar a energia em termos de pessoas e materiais que permite suas partes
constituintes funcionarem". Entretanto, Batty não conecta o estudo da formação urbana por agregação
celular à estrutura de anéis que diferencia a espacialidade urbana de outras espacialidades. O
crescimento via agregação por “difusão limitada”, como chama Batty, não gera quarteirões e redes de
ruas – apenas redes de células cuja estrutura dendrítica, como a forma de uma árvore, não se
aproxima da grande invenção urbana da rede de canais de acesso conectando quarteirões. E, como
14
diria Alexander, “cidades não são árvores”. A gênese da forma urbana não é um processo
totalmente difuso, como modelou Batty, e a agregação não obedece apenas o principio de
justaposição de uma célula na seguinte. Há uma demanda de permeabilidade e mobilidade em
qualquer direção capazes de alimentar a interatividade dos atores. Precisamos, portanto, de outra
descrição da gênese da forma urbana em direção a provavelmente seu achado morfológico mais
marcante: a forma de agregar as célula em quarteirões.

2.1. A invenção do quarteirão


Por que sociedades urbanas inventaram o quarteirão? Por que ele se tornou um item definidor da
estrutura urbana? Antes de apresentar o quarteirão como uma solução inovadora a demandas sociais
e urbanas, é necessário analisá-lo em confronto com outras formas básicas de agregação em
15
assentamentos. Este confronto só será introduzido neste texto. Este confronto inicial, entretanto,
levará à discussão do quarteirão como o acontecimento mais extraordinário na afirmação da cidade
como espacialidade. Ainda que formações urbanas sem o quarteirão encontrem registro arqueológico,
em arranjos menos ou mais dispersos sem o contorno de canais de acesso ou sem a demarcação dos
alinhamentos da edificação, ele será provavelmente o elemento mais constante no desdobramento e
estabilização histórica da espacialidade reconhecida como “urbana”. Precisamos antes de tudo definir
espacialmente o que é o quarteirão. Temos duas definições iniciais: (a) uma agregação de edifícios
em qualquer posição em uma área convexa definida por canais de espaço livre contínuo especializado
para o movimento e acesso àqueles edifícios, independente da forma geométrica desses canais e da
posição dos edifícios; e (b) uma agregação de edifícios definida pela sua posição como células
próximas ou contíguas entre si, dispostas como um anel, mesmo que independente da forma
geométrica – um anel definido simultaneamente com os canais de espaços livres, justaposto a outros
anéis. Em ambas definições, a área ou o anel convexo será repetido, formando sistemas de
quarteirões e sistemas de caminhos. Minha breve genealogia especulará a respeito de ambas as
definições de quarteirão, mas apontará sobretudo as razões para a segunda parecer historicamente

                                                        
14
Alexander (1966).
15
Atribuo esta observação ao arqueólogo Benjamin Vis, em comunicação pessoal.

  8
dominante; a primeira sendo o caso em momentos e culturas espaciais específicas. Para todos os
efeitos, em qualquer dessas definições, o quarteirão moldará fundamentalmente a cidade, ao
diferenciá-la inteiramente das espacialidades que o precederam. Veremos que essa inovação
espacial, independente da sua origem ou da forma exata que toma, permitiu níveis sem precedentes
de ocupação, densidade, mobilidade, copresença e interatividade. Revisitando aspectos espaciais e
práticos da emergência do quarteirão entre morfologias urbanas existentes ou entre morfologias
possíveis, o ponto crucial que pretendo explorar é a razão de sua consolidação em sociedades
urbanas que atingiram essa espacialidade em diferentes regiões e culturas sem contato entre si e
separadas, as vezes, por séculos.
É importante deixar claro que, ao falar de processos genéticos, não estou evocando a biologia
como modelo, mas usando termos bem conhecidos para endereçar, em outro contexto, o processo de
criação da forma. Dois teóricos se aproximam desse processo, ao analisar a gênese da forma
construída como “restrições em um processo randômico”. Hillier e Hanson veem a morfologia urbana
como um sistema de transformações com uma origem social, contendo regras subjacentes – os
“genótipos” – ativas na geração das relações entre componentes da forma urbana (edifício, acesso),
tidas como necessárias mais que contingentes. Eles investigam a origem de assentamentos nascidos
de um processo acumulativo e não do desenho intencional ou consciente. A estrutura global desses
assentamentos é formada a partir de regras locais cuja agregação prevê células de espaço construído
– edifícios, incluindo desde casas a prédios de vários andares – mantendo ao menos uma de suas
faces livre, e células de espaço livre igualmente contínuas entre si (figura 2). Hillier e Hanson
acreditam que a agregação “emerge da dinâmica independente de um processo que é distribuído
entre uma coleção de indivíduos [...] embora a estrutura global do objeto tenha emergido através da
agência daqueles que constroem o objeto, a forma que o objeto toma não é o produto daquela
16
agência, mas de leis espaciais que são bastante independentes”. O processo não é puramente
randômico – do contrário, teríamos células construídas sem acessos e células de espaços livres
desconectadas entre si. E aqui Hillier e Hanson perguntam “qual [seria] a natureza dessas restrições,
17
o que elas são, e como elas se relacionam?”

                                                        
16
Hillier e Hanson (1984:36).
17
Hillier e Hanson (1984:11).

  9
Fig. 2 – A gênese de uma cidade: agregação de células em experimento e no assentamento Le Petit Clements
18
em 1968, França.

O processo de gênese histórica da forma urbana – antes do projeto urbano que fixou essa solução,
com frequência sem refletir demasiadamente sobre suas razões – é aleatório, mas opera com
condições e restrições – sobretudo de acesso. Esse processo pode ser mais ou menos controlado
racionalmente, levando de soluções espaciais visivelmente ordenadas, como aquelas ortogonalizadas,
até aquelas orgânicas, aparentemente mais complexas (ainda que sobretudo na aparência, no
"fenótipo", mais que em sua topologia ou "genótipo", sua estrutura profunda). Hillier e Hanson ainda
reconhecem esse processo morfogenético como moldado por (1) demandas incontornáveis da prática
humana e coletiva (o acesso corporal, o movimento, a ocupação); (2) investimentos de racionalidade e
ordem/desordem na própria produção do espaço, em níveis diferentes para culturas espaciais
19
diferentes; (3) uma dimensão social, na forma de códigos da interação a partir do controle menor ou
maior do encontro, usando Durkheim e suas solidariedades orgânica (baseada na interação funcional
entre os diferentes) e mecânica (baseada na interação simbólica entre semelhantes) associadas a
graus de acessibilidade ou de segregação tanto latentes quanto gerados pela própria configuração
20
espacial de seus contextos. Essas forças moldando a forma espacial tem como fundamento o "anel
de fragmentos" [beady ring] e a emergência do contínuo de espaços livres (figura 3). A configuração
linear desses espaços livres, junto com o reconhecimento da centralidade do movimento e de padrões
de encontro para sociedades, levou Hillier e Hanson a investirem na representação axial da cidade.

                                                        
18
Imagem: Hillier e Hanson (1984).
19
"O grau de ordem investido no espaço por sociedades pode ser traduzido em termos do grau em que é necessário restringir
um processo randômico até chegar a uma forma" (Hillier e Hanson, 1984:12).
20
"Por que esses padrões seriam diferentes em sociedades diferentes?" [...] "o nível mais profundo no qual sociedades geram
forma espacial" (Hillier e Hanson (1984:18).

  10
Fig. 3 – Variações elementares na agregação celular de Hillier e Hanson: do inteiramente randômico e incapaz de
gerar permeabilidades (alto à esquerda) a agregações permeáveis em “ilhas” (esquerda, abaixo) e agregações
lineares de células em arranjo poligonal (centro e à direita).

Gostaria de propor alguns princípios da gênese do quarteirão como componente da espacialidade


urbana. Quero situar esse processo como expressão do que chamo “generalização da proximidade”,
que proporei como uma condição material profunda (inconsciente ou não) para nossas interações e
associações. Mesmo que minha ênfase seja formal, vamos precisar recorrer à história da
transformação dos assentamentos em diferentes regiões, em dois casos prototípicos de quarteirão
nas linhas das definições acima. O registro arqueológico mostra formações já reconhecidas como
urbanas nessas duas possibilidades: (a) edificações relativamente dispersas ou (b) em agregações
lineares de borda. No primeiro caso, a tradição urbana Maia, que se manteve por 2.500 anos na
América Central, produziu cidades como Chunchucmil, na Península do Yucatán, México, cujos
caminhos irradiam do core monumental em direção à área residencial e circunscrevem, de modo
irregular, agregados arquitetônicos com unidades voltadas para um pátio em comum. Mesmo sem a
densidade encontrada em outras cidades Maias, como Mayapan,21 essa organização é um possível
indício do princípio de formação de quase-quarteirões (figuras 4a e 4b).
Não encontramos o mesmo sistema de circunscrição no exemplo do segundo caso, em Ur,
cidade sumariana fundada cerca de 3.800 anos A.C., atingindo sua plenitude em torno de 2.000 A.C.,
na antiga Mesopotâmia (hoje, Iraque). A trama de caminhos em Ur é, no entanto, mais claramente
definida, em função das bordas contínuas das agregações bastante compactas de edificações. Em
ambos os casos, os caminhos são espaços especializados para o movimento. Diferentemente de
outras cidades Maias, Chunchucmil apresenta espaços livres diferenciados funcionalmente (para
movimento e para uso doméstico, separados por um muros baixos), ao passo que Ur apresenta

                                                        
21
Como aponta Vis, Mayapan apresenta uma divisão do trabalho (identificados como lugares de produção) bastante clara,
sendo também uma das mais densas cidades Maia. Ela é em torno de 600 anos mais recente que Chunchucmil, um período no
qual a sociedade Maia se tornara mais ligada à atividades de comércio. Derivo ainda informações sobre Chunchumil de Hutson
et al (2004; 2006) e Vlcek et al (1978).

  11
quarteirões em forma prototípica adentrados por caminhos em cul-de-sac, que não circunscrevem
“ilhas” edificadas a não ser no conjunto como um todo (figura 4c). Por sua vez, Ur, como as cidades
antigas na Europa, apresenta distinção entre espaços especializados públicos e privados separados
pela borda de edificações: espaços axiais externos, públicos e especializados no acesso, e espaços
convexos internos, privados e especializados na ocupação.

Fig. 4 – (a) e (b) A emergência de áreas de ocupação e caminhos em rede na cidade maia de Chunchucmil;
22
(c) a formação de proto-quarteirões na sumariana Ur.

Meu interesse em trazer essa breve comparação está em chegar mais perto do momento em que a
agregação de células arquitetônicas permite caminhos em seu torno, dando origem à principal
característica espacial do quarteirão. Vejamos a partir de agora um caminho possível de emergência
do quarteirão como solução encontrada apenas em culturas urbanas, e que veio a predominar
historicamente ao ponto de representar a cidade em sua morfologia, mesmo em diferentes regiões e
culturas. Minha descrição busca situar essa emergência na esfera da prática social como seu vetor.
Ilustrarei esse caminho morfogenético com exemplos, sem intenção de estabelecer uma
demonstração dos princípios ou afirmar um processo universal. Essa é uma questão empírica aberta,
e minhas notas não poderiam aspirar o status de uma definição bem-acabada. Elas descreverão,
como uma sequência de hipóteses, a gênese e seleção de formas espaciais a partir de processos
aleatórios de tentativa e erro – um processo sem contornos exclusivamente darwinianos (isto é, a
continuidade do padrão mais adequado a partir de variações aleatórias). Argumentarei adiante que se
há seleção, ela é orientada reflexivamente pelos atores urbanos a partir de seus conhecimentos a
respeito das implicações materiais do espaço sobre a prática da interação – mas sem um plano final,
uma ideia total, um processo teleológico. Quero chegar a uma descrição dos acidentes guiados pela
prática social. Talvez esses passos todos não tenham ocorrido em cada origem de cidades nas
regiões e culturas particulares, e certamente não há linearidade ou sequência fixa entre eles. O
                                                        
22
Imagens: Hutson et al (2006); Vis (em comunicação pessoal); Benevolo (2011).

  12
processo abaixo parecerá linear apenas em função da cadeia lógica da argumentação e seu caráter
retrospectivo: trata-se de uma combinação de passos, entre tantas possíveis.

(i) Dois fatores elementares da agregação urbana são o acesso pedestre (tratado por Hillier e Hanson) e
23
o acesso solar à célula arquitetônica (tratado por Steadman). Parece haver ao menos duas soluções
arquetípicas: uma na cultura urbana europeia e outra no oriente médio (figura 5a). A necessidade de que células
tenham acessos pedestre e solar implica que pelo menos uma face da célula esteja ligada a espaço livre. O
caminho morfogenético europeu oferece insolação e acesso em duas faces (frente e fundos). A célula
historicamente adotada no oriente médio, onde nasceram as cidades, separa o acesso solar do acesso pedestre,
ao incorporar uma célula de espaço livre no interior da habitação como recurso de minimização do calor e
controle de umidade.

Fig. 5 – (a) Células arquitetônicas típicas; (b) o arranjo disperso de células circulares ou semi-circulares, tipicamente não-
urbanas; (c) agregação de células por adjacência.

(ii) O arranjo disperso parece mais típico de soluções espaciais não-urbanas (figura 5b). Temos o
predomínio do espaço livre e distâncias significativas entre células. A forma circular da célula também não
permite a associação por adjacência. Na solução urbana predominante, células próximas ou contíguas entre si
invertem o predomínio do espaço livre sobre o construído tipicamente não-urbano (figura 5c). Ainda, células
adjacentes precisam de acesso ao menos em uma de suas faces. A consagração da célula aproximadamente
quadrangular atende a essas prerrogativas, contribuindo na redução geral das distâncias, sobretudo quando a
demanda por proximidade é maior, como podemos ver em centralidades urbanas. Naturalmente, em espaços
com menos potencial e demanda de interatividade, as células podem ganhar espaçamentos mais facilmente,
como é o caso de áreas urbanas menos centrais.
(iii) Arranjos inteiramente aleatórios (figura 6a) podem gerar espaços livres que não se comunicam em
canais, impedindo a continuidade do espaço livre em sistemas contínuos, o que não pode ocorrer em
espacialidades que dão suporte a uma divisão do trabalho que ganha complexidade. Células precisam acessos
pedestre e solar (i), e manter a possibilidade de continuidade do espaço livre. Ainda, células arquitetônicas

                                                        
23
Steadman (1998) trata da centralidade do acesso solar na gênese da forma (interna) do edifício.

  13
24
raramente se tocam nas quinas. Essas demandas são atendidas através de alinhamentos parciais de faces das
células (figura 6b). Naturalmente, a agregação não precisa atender o princípio ortogonal para apresentar essas
qualidades: a geração de caminhos contínuos independe da matriz geométrica do sistema de quarteirões e ruas
(figura 6c).

Fig. 6 – (a) A agregação de células é dificultada pela associação em quina e pela falha em produzir um sistema de
25
espaços livres – itens resolvidos na agregação em (b) e (c) em Ur.

(iv) A agregação linear de células, entretanto, pode levar a um único caminho, uma cidade linear (figura
7a). De fato, assentamentos em seu início parecem frequentemente dispostos linearmente, ao longo de uma rota,
como entre assentamentos. Entretanto, há um número de problemas nessas formações e razões para sua
mutação em outras formas no tempo, se pensarmos nos requerimentos diários da interação: eles aumentam
distâncias, sendo incapaz de fazer a generalização da proximidade estabelecida em (ii). Isso implica que, como
espacialidade, eles não permitem alta interatividade. Um passo na morfogênese em uma cultura espacial urbana
envolveria, em algum momento, a agregação linear dobrada (figura 7b), ramificando em outros canais, como no
assentamento de Heptonstall, na Inglaterra do século XIX (figura 7c).

26
Fig. 7 – (a) Agregação linear; (b) em cruz ou árvore; (c) o assentamento de Heptonstall, Inglaterra.

Entretanto, o dobrar o caminho em ramificações, com efeitos sobre a interatividade superiores ao arranjo em uma
linha, pode facilmente levar a um sistema em forma de árvore ainda limitado em relação à (ii) generalização da

                                                        
24
Hillier e Hanson (1984).
25
Imagem Ur: Benevolo (2011).
26
Imagem Heptonstall: Hillier e Hanson (1984).

  14
proximidade necessária no estímulo à interatividade. A solução necessária envolve a geração de dobras
sucessivas na adição de novas células, curvando a linha até que o canal de acesso toque o canal ao fundo, um
arranjo dobrando-se sobre si mesmo na forma do anel (a solução típica europeia que Hillier e Hanson chamam
“beady ring”, ou “anel de contos”) ou do aglomerado de células arquitetônicas como uma “ilha” compacta (a
solução típica em cidades no oriente médio). Exatamente aqui temos a invenção do quarteirão (figura 8), com alta
capacidade para absorver atividades, como vimos em Martin e March.

27
Fig. 8 – (a) A dobra sucessiva da agregação celular no anel; (b) quarteirões incipientes em Hawes, Inglaterra.

(v) A invenção do quarteirão envolve a definição de relações internas e externas que o definem e
28
constituem sua importância para a prática e organização social. Anéis dobrados progressivamente geram um
sistema de quarteirões simultaneamente a uma rede de caminhos (figura 8). Essas tramas podem ser tanto
“orgânicas”, com geometrias mais livres, quanto ortogonais, a depender do investimento em controle a priori do
crescimento celular. As deformações do anel e das ruas pouco importa nesse sentido: a estrutura é a mesma em
sua organização topológica. Aqui temos o nascimento do sistema de quarteirões. No caso de traçados orgânicos,
quarteirões curvos “convidam” a justaposição de quarteirões com ângulos obtusos e agudos (figura 9c), de modo
a preencher espaços e atingir o predomínio dos espaços livres axiais sobre os convexos, mais especiais (que
chamamos “praças”).
(vi) Contudo, o tamanho dos quarteirões importa. Eles não podem ser grandes demais de modo a
dificultar o movimento dos pedestres pelos canais das ruas, aumentando as distâncias percorridas em raios de
movimento pedestre (figura 9a) – um insight jacobiano – nem pequenos demais de modo a gerar alta
permeabilidade mas baixa proporção da forma construída em relação ao espaço livre que constitui a rede de
ruas, baixas densidades de edificações, de pessoas e, portanto, de interações – sobretudo em lugares de
centralidade. De fato, os estudos empíricos de Siksna em 12 cidades americanas e australianas reconhecem os
efeitos benéficos de quarteirões pequenos (entre 60 e 80m) e imediatamente maiores (80-110m), que tendem a
ter lotes estreitos, sobre o movimento pedestre. Tendem ainda a permanecer, tendo respostas aparentemente
melhores à mudanças nas edificações ao longo do tempo, frequentemente não-coordenadas, ao passo que
quarteirões grandes tendem a ser consideravelmente modificados, com a adição de ruas e becos. Hillier confirma
que a centralidade opera com efeitos de acessibilidade decorrentes do tamanho do quarteirão em cidades

                                                        
27
Imagem Hawes: Hillier e Hanson (1984).
28
Em discussão com Benjamin Vis.

  15
britânicas: quarteirões menores e mais quadrangulares nos centros garantem efeitos globais de acessibilidade
mais positivos – não apenas locais, como supôs Jacobs. Quando assentamentos crescem, quarteirões nos seus
29
centros tendem a ser quebrados em quarteirões menores gerando uma rede de acessos mais intensa. Não por
acaso, parece haver tremenda consistência no tamanho dos quarteirões nas principais ruas de cidades ao longo
30
da história. Com a exceção do urbanismo das utopias (Cidade Jardim, Cidade Radiosa, New Urbanism, com
comprimentos medianos em torno de 900m, 700m e 700m, respectivamente), a cidade antiga, medieval,
renascentista e industrial têm comprimentos medianos abaixo dos 300m. Chiaradia et al, em estudos em Londres,
confirmam a proposição de Jacobs, Siksna e Hillier, mostrando que, para uma área fixa, reduzir o tamanho do
quarteirão aumenta a permeabilidade com o entorno, aumenta a superfície frontal e linear das fachadas, reduz o
31
comprimento das viagens e aumenta o potencial e capacidade de circulação.

Fig. 9 – (a) Quarteirões grandes demais prejudicam a mobilidade ao aumentar distâncias de percurso; (b) redes de ruas
fragmentadas tem efeitos análogos, adicionando ainda dificuldades de orientação; (c) sistemas de quarteirões com redes de
ruas contínuas, mesmo orgânicas, permitem grande interatividade.

(vii) A agregação das células arquitetônicas em quarteirões justapostos formando um sistema tem o
potencial de amplificar o número de direções de movimento, oferecendo interatividade livre de pré-programações
e controle. A associação de quarteirões permite infinitas direções de movimento, um ganho extraordinário trazido
pela rede de ruas. Assim, cidades podem generalizar a densidade, a proximidade, a acessibilidade e a
conectividade entre atores. A topologia interna dessa estrutura permite variabilidade de caminhos para ampliar a
possibilidade da troca, uma necessidade em sociedades cuja divisão do trabalho é complexa, com ampla
dependência mútua – dando suporte tanto à viabilidade da interação com menos esforço quanto a sua
estabilidade e repetição. Sociedades complexas precisam amplificar a aleatoriedade dos encontros, importantes
para gerar novas relações em sistemas sociais e eficiências em sistemas microeconômicos, ao mesmo tempo em
que precisam assegurar a recursividade das práticas e interações. Podemos dizer que a morfologia do sistema de
quarteirões e seu sistema de ruas intensifica a troca e a comunicação.
Contudo, sistemas urbanos com quarteirões variados também podem facilmente levar a uma rede de
canais fragmentada (figura 9b), com ruas interrompidas ao ponto da perda de ininteligibilidade (no caso extremo,
                                                        
29
Veja Siksna (1997); Hillier (1999); Jacobs (1961). O número de cidades analisado por Siksna é pequeno demais para suportar
conclusões de modo robusto; entretanto, estudos de efeitos da morfologia do quarteirão são bastante escassos.
30
Veja Porta et al (2014).
31
Chiaradia et al (2012).

  16
o labirinto), levando ainda ao aumento da extensão dos caminhos internos, o que iria contra o princípio (ii) da
generalização da proximidade e traria grande dificuldade de orientação aos atores, reduzindo a mobilidade e
32
portanto levando à rarefação ou mesmo controle da interação, na forma da segregação. Por isso, cidades
tendem a configurar ao menos um conjunto de canais de acessos na forma de redes (e não árvores ou labirintos)
mesmo em tramas orgânicas (figura 9c). Quanto mais esse princípio é ferido, mais esforços materiais serão
empregados para gerar interatividade, com queda no potencial combinatório do número de novas interações.

Essas são hipóteses de passos formais, não necessariamente sequenciais, da gênese do quarteirão
propostos como solução tipicamente urbana produzida como forma de generalizar a proximidade e
gerar a compressão de redes de interação comunicativa e material – uma brevíssima descrição do
processo elementar por traz da síntese da espacialidade urbana como expressão da interatividade.
Naturalmente, como Durkheim nos lembra, uma seleção de casos como a que visitei brevemente não
33
confirma uma hipótese. Essa sequência de passos pede uma imersão sistemática no registro
arqueológico, de modo a vermos como o quarteirão emergiu em culturais espaciais distintas,
possivelmente ainda sem contato entre si – algo que só pude introduzir neste ensaio. O papel
específico do quarteirão como uma possível solução recorrente à intensidade e diversidade das
interações e como uma forma de resiliência econômica precisa ser verificada empiricamente antes de
34
decidirmos que ele é de fato uma unidade urbana essencial.
Essa descrição poderá ser interpretada por alguns como teleológica, isto é, uma narrativa de
um caminho com destino certo, como se seus passos levassem necessariamente a certo fim – no
caso, à configuração particular do quarteirão a serviço da prática da interação. Esse caminho em
direção à proximidade ou à agregação de células por adjacência era inevitável? Haveria de fato uma
teleologia em direção ao quarteirão? Não é minha intenção reduzir a morfogênese urbana como parte-
chave da relação sociedade-espaço a uma teleologia, mas argumentar que o que pode ser entendido
como teleológico pode na verdade envolver processos tanto incidentais quanto causais. Há um campo
onde contingências e causalidades podem operar simultaneamente e mesmo conjuntamente, e é
esse campo que precisa ser desvendado. Ainda, mesmo que a descrição que vimos acima faça
sentido, a forma como esse processo celular levaria a formações estruturais urbanas mais amplas
também precisa ser explicada. Por exemplo, como ocorre a estabilização do princípio de agregação
como sistema de quarteirões no desenvolvimento histórico das cidades? Como seriam suas mutações
e sofisticações no tempo e em diferentes culturas espaciais? Como o processo se relaciona às forças
sociais e econômicas operando em escalas mais amplas? Para responder essas perguntas,
precisamos reconhecer os modos como atividades e interações podem emergir, e como a
configuração arquitetônica e de acessos pode ser parte do processo – i.e. como cidades podem

                                                        
32
Estas última instância da morfogênese da cidade são explicadas sobretudo por Hillier e são o principal tema da sua teoria.
33
Veja Durkheim (1995); sugestão de Renato Saboya.
34
Em discussão com Vis.

  17
expressar e dar suporte à diversidade de eventos produzidos por sociedades que crescem em
35
complexidade. Precisamos entender ainda como aleatoriedade e teleologia, contingência e
causalidade – contidas em processos históricos, capacidades cognitivas e lógicas sociais, implicações
materiais e lugares do espaço nas relações sociedade-espaço entram na morfogênese.

2.2. Os caminhos morfológicos que levaram à cidade


Quero propor um conjunto de descrições de processos possivelmente ativos na morfogênese de um
sistema estável na forma dos quarteirões – e entre caminhos e quarteirões possíveis, aqueles
formados por agregações por adjacências. Essas descrições poderão se sobrepor, como partes e
versões de uma mesma história.
(a) Aleatoriedade e adequação, tentativa e erro: Mike Batty nos diz que a construção
modular não é simplesmente um processo que assegura que partes de um sistema estejam juntas de
modo eficiente e sustentável. Noções como modularidade, auto-similaridade, recorrência e hierarquia
seriam centrais para o modo como a forma urbana é estruturada. “Uma das marcas de sistemas que
evoluem de modos relativamente estáveis é que eles crescem de acordo com seus módulos, cada um
de seus componentes se ajustando àqueles mais afins, enquanto evoluem em termos de tamanho e
36
complexidade”. Alexander ilumina bem este ponto: ele fala de transformações capazes de preservar
uma estrutura, as quais afetariam o sistema urbano através de pequenas adaptações locais que
gradualmente convergiriam em configurações adequadas para seu propósito:

Como pode um sistema complexo achar seu caminho [way] pra a boa configuração? Em um sentido
teórico, podemos dizer que o sistema caminha pelo espaço da configuração, pegando este ou aquele giro,
e sempre chegando a uma configuração bem-adaptada. A grande questão, claro, é como esse caminho é
controlado: quais são as regras da caminhada [walk] que levam à boa adaptação? Embora poucas e
preliminares respostas tenham sido dadas a essa questão, nenhuma boa ainda foi dada. Esta é talvez a
37
questão científica de nossa era.

Por sua vez, Batty evoca um princípio Darwiniano de seleção que, “lenta mas seguramente, preserva
o mais adequado [fittest] e destrói o resto. Esta visão parece cada vez mais atrativa para explicar a
dinâmica de crescimento de diversas de organizações não-biológicas, como as cidades”. Batty afirma
ser possível “simular esses processos evolutivos, assim sugerindo como ‘boas’ configurações
38
[designs] podem emergir entre um universo de configurações possíveis”. Batty e Alexander
compartilham visões interpretáveis como teleológicas – e mais, evolucionistas – da morfogênese

                                                        
35
Em discussão com Vis.
36
Batty (2013:246).
37
Alexander (2003:19).
38
Batty (2013:246).

  18
urbana. Entretanto, vimos que esse processo não é inteiramente aleatório. A infinita possibilidade de
combinações de células no nascimento da cidade como sistema espacial complexo é limitada
abruptamente pela necessidade prática da agregação de células como um primeiro movimento, e a
agregação em anéis e sistemas de quarteirões justapostos, incluindo um sistema de canais de acesso
– o que converge com a ideia de Hillier e Hanson de restrições provenientes de uma lógica social no
processo aleatório da morfogênese.
Um primeiro ponto a observar é de caráter inteiramente lógico: a morfogênese do quarteirão
com essas características e implicações práticas não pode ser uma mera coincidência, uma feliz
contingência. Processos morfogenéticos inteiramente aleatórios podem tomar qualquer direção, sem
necessidade alguma de atender necessidades da prática, e sem necessidade alguma de assumirem
padrões espaciais consistentes, como os que encontramos em diferentes culturas urbanas. Note que
o sistema de quarteirões suporta a prática social e a interatividade de um modo extraordinário. Mesmo
que o padrão de quarteirões se reproduzisse por pura repetição, a chegada a ele é altamente
improvável – ela dificilmente poderia ser acidental, simplesmente porque as possibilidades
geométricas são grandes demais para termos “caído” exatamente em um sistema espacial que
funciona com tanta afinidade com as demandas de interatividade que a prática social coloca. Em um
mundo definido apenas pela contingência, formas seriam sempre aleatórias e cidades poderiam ter
formas radicalmente distintas – tudo seria acidental. Lembrando Jacques Monod em outro contexto,
39
“aleatoriedade e necessidade” interagem: entre todas as estruturas possíveis, há razões para que
cidades em diferentes culturas tenham atingido a estrutura profunda do quarteirão. Interessantemente,
esse raciocínio pode ser entendido quase como uma forma de demonstração lógica, equivalente à
demonstração matemática (como a de Martin e March), ambas suficientes em relação à empírica.
Mas se há “necessidades” vindas da prática e intensas ao ponto de moldarem a forma urbana
de modo que esta gerasse as externalidades desejadas ou os “efeitos certos”, como elas operam?
Como uma sociedade ou uma cultura espacial chega às “decisões espaciais coletivas certas” que
vimos acima? A forma urbana não é invenção deliberada racionalmente: ela emerge antes de
qualquer forma de projeto ou planejamento, e provavelmente sem uma decisão auto-consciente para
gerar um tipo de agregação espacial ou a procura por uma externalidade bem-vinda. Sugiro que a
estruturação via agregação celular envolva um processo capaz de incluir tanto o aleatório na produção
espacial quanto aspectos vindos do confronto com as necessidades da prática: o processo coletivo e
histórico da tentativa e erro. Imaginemos uma tentativa de produção da forma via agregações de
células arquitetônicas em certa configuração. Edificações vão sendo construídas e posicionadas,
aleatoriamente. Ao longo do processo, fazemos (mesmo sem projeto) decisões de implantações de
edificações e caminhos em certa posição. Em princípio, formas tanto adequadas quanto inadequadas

                                                        
39
Monod in Arthur (1994:8).

  19
para a prática da interatividade podem ser reproduzidas. Em seguida, esse posicionamento ou arranjo
é experimentado, testado na prática (social). Problemas podem aparecer exatamente nesse momento
da adequação à prática. Exemplos são as agregações que falham em produzir inteligibilidade ou são
contraditórias à necessidade da proximidade, trazendo dificuldade à interação, como vimos acima.
Alterações sucessivas sobre o conjunto podem ser então implementadas. Aquelas formas testadas e
preferidas no confronto com a prática poderão servirão como guias na orientação da produção de
novas edificações e formações urbanas. Podem se estabilizar como um “modo de fazer” através de
processos de produção de formas arquitetônicas posicionadas no território. O processo de tentativa e
erro põe em curso transformações no caminho de formação urbana. Problemas de adequação (o que
Alexander chama misfits) podem receber atenção e ser alterados ao longo do tempo. A adequação
entre forma urbana e interações amparadas pela forma pode ser considerada como a “ausência de
40
inadequações”. As formas afeitas à interatividade – que a expressam e a suportam sem ruídos –
seguem sendo reproduzidas, possivelmente sendo alteradas de acordo com a mudança nos
requerimentos das práticas sociais, que tampouco são estáticas.
(b) Caminhos consolidados a partir da aleatoriedade. Essa descrição é consistente com
41
dois interessantes conceitos da teoria econômica: path creation e path dependence. Eventos
acidentais ou escolhas contingenciais podem colocar em movimento uma sequência de situações ou
uma trajetória de desenvolvimento e consolidação, envolvendo o “encerramento” em certo processo e
formas do seu reforço, como a repetição de procedimentos e decisões. Em uma sequência de
mudanças dependentes do caminho (path dependent), influências sobre o resultado eventual de um
42
processo podem ser exercidas por eventos remotos, incidentais, não-sistemáticos. A forma inicial e
eventos acidentais podem ter efeitos significativos no caminho até o estado ou estrutura atual. Efeitos
de rede ainda podem reforçar o padrão. No nosso caso, o estado atual de um sistema espacial urbano
depende de eventos que levaram até ele – como se a história e o passado tivessem força motriz.
Essa força do evento inicial, mesmo sendo aleatório, poderia estar ativo na emergência do
quarteirão como item marcante da forma urbana. Em termos urbanos, proponho capturar esse
processo estocástico usando o “esquema de Polya”. Polya, um matemático dos anos 1930, propôs a
ideia de uma urna – digamos, com bolas brancas e vermelhas – onde cada bola retirada é substituída
por uma bola da mesma cor. A cada nova retirada, uma cor pode ser adicionada à mesma anterior.
Não podemos saber ex ante qual cor poderá ter maior presença. Entre os cenários possíveis, há
aquele em que há dominância de uma cor. Em outras palavras, a probabilidade que a cor da bola
substituída volte a ser retirada depende da proporção em que elas estiverem presentes na urna. No
caso da economia, em um cenário onde os custos de seleção caem ou têm retornos positivos

                                                        
40
Derivo esta ideia de Alexander (“fit as the absence of misfits”, 1964:27).
41
O originador do conceito de path dependence na economia é Paul David (1985). Veja ainda Page (2006).
42
David (1985).

  20
crescentes, cada decisão aumentaria a probabilidade de que o próximo selecionador favoreça aquele
padrão. Eventos randômicos são magnificados por retornos positivos. Para efeitos urbanos,
imaginemos uma situação de opção entre a produção de uma célula a ser acrescentada, digamos, de
modo ‘solto’ sobre o território, ou por adjacência a uma célula anterior. A agregação de uma segunda
célula adjacente poderá ser seguida por outra, e por outra, até ser seguida por uma célula solta. Um
número suficiente de células adjacentes poderão configurar um padrão emergente. O mesmo pode ser
o caso para células soltas.
Entretanto, a forma urbana claramente não é decidida apenas por sorte. Como na economia,
atores produtores de espaço não atuam de modo rigorosamente aleatório em nossas decisões.
Definimos critérios nos quais decisões anteriores sugerem formas de escolhas. Cada decisão
estocástica em favor de um padrão particular pode aumentar a probabilidade (mas não garantir) que a
próxima seleção favoreça o tipo selecionado anteriormente. A probabilidade de uma escolha passa a
ser influenciada pela proporção na qual aquela escolha (no caso, tipo de célula ou edificação) está
presente no território. Mesmo que randomicamente, o processo de produção pode levar a
consagração de um caminho.
Ainda, atores são seres cognitivos: se um caminho envolver mais apelo, o processo pode ser
magnificado. A economia aponta para tipos de apelo, como a questão do custo, digamos, da
movimentação em termos de tempo ou esforço. No caso da produção espacial, somos capazes de
algo muito interessante: conhecer as propriedades dos eventos e condições em jogo. Podemos
antecipar, mesmo que não discursivamente ou conscientemente, o resultado de certos eventos como
implicações onde “uma coisa leva a outra”. Arranjos espaciais que tragam externalidades bem-vindas
– efeitos como a facilidade de controle em situações sociais onde a segregação for desejada, ou co-
presença onde a interatividade for importante – podem ser entendidos, mesmo não-discursivamente.
Essas externalidades reconhecíveis poderão interferir em futuras decisões. Quanto mais uma solução
se repete, maiores as chances de mais atores aderirem a ela, aumentando a probabilidade que
futuras edificações seguirão o mesmo padrão. Na linguagem da economia, eventos fortuitos
associados a retornos crescentes poderão determinar o desenrolar dos acontecimentos. Na cidade,
aderentes a uma solução espacial se beneficiarão das externalidades condicionadas pela adoção
crescente dessa solução. Isso independe dessas implicações serem mesmo o caso. Em outras
palavras, mesmo que o filósofo Hume estivesse certo e não existissem causalidades, e elas fossem
só uma impressão de humanos criando conjunções entre coisas que na verdade são meramente
coincidentes, ao interpretar eventos, nós, humanos, imergimos em cadeias de ações, engendrando
consequências mesmo que as causalidades originais não existissem. A questão é que elas existem.
(c) A materialidade como força causal. As externalidades reconhecidas exaustivamente na
economia são decorrentes de propriedades materiais e podem ser conhecidas pelos atores em seus
deslocamentos e práticas diárias. Nós, atores, sentimos fisicamente e entendemos cognitivamente

  21
que mais distâncias significam mais esforço físico, ou que menos densidade espacial significa menos
densidade de pessoas e menos encontros, e assim por diante. Nos caminhos morfológicos que
sociedades urbanas tomaram, há contingência e há causalidade – forças causais operando sempre e
a priori, oriundas da relação profunda entre espaço e prática social. Forças causais não implicam em
determinismo ou o fim da contingência. Elas significam que há implicações e condições materiais para
a interação emergir em menor ou maior intensidade e diversidade ou com menos ou mais esforço. E
se diferenças nas condições materiais (como a alta densidade ou acessibilidade) importam para as
intensidades da presença e da interação, temos de reconhecer a possibilidade de que humanos
realmente moldem seus espaços historicamente sabedores – mesmo inconscientemente – dessas
implicações, de modo a encontrar os requerimentos de suas próprias práticas comunicativas e trocas
materiais – como veremos abaixo. Essa ausência de intenção não implica na suspensão das
causalidades materiais envolvidas na presença do espaço na prática, como a do movimento,
copresença e a troca – e a economia espacial e outras teorias endereçam essas causalidades
adequadamente. Há razões empíricas para a emergência do quarteirão: nossa prática tem uma
espacialidade inerente e o espaço, uma inevitável implicação material com nossa prática – uma
implicação ativa o tempo todo, historicamente, enquanto esses padrões eram moldados entre tantos
possíveis.
(d) Reflexividade e conhecimento dos atores. Não houve a priori uma intenção teleológica
em jogo no momento da emergência histórica dos espaços urbanos. Não houve plano: não
inventamos cidades deliberadamente. Moldamos essa espacialidade progressivamente,
historicamente, cumulativamente, pela tentativa e erro – tentativas inteiramente aleatórias em si,
talvez. O resultado do processo lembra em parte contornos Darwinianos, mas não envolve apenas a
variação aleatória e a reprodução do padrão espacial mais adequado. O processo de tentativa e erro
inclui o aleatório, mas não é cego: onde o requerimento da intensidade da interação é menor ou deve
ser controlado (como na restrição da interação ou segregação), outros padrões são testados e
“escolhidos” como mais adequados, face a suas implicações, via inferências dos atores ou via
tentativa e implementação. Os padrões que respondem mais adequadamente aos requerimentos da
prática encontram reprodução nas próprias práticas – alcançando aquelas de produção do espaço em
si. Isso pode ocorrer nos casos onde o processo de produção do espaço é reflexivo, retroalimentado e
confrontado diariamente com as práticas de reprodução dos grupos e socialidades atuando nesses
espaços. Diferentemente de sistemas puramente biológicos, somos seres reflexivos. Humanos podem
antecipar os efeitos de suas ações – e de eventos materiais. Podemos inferir possíveis conexões
causais e cadeias de eventos. Lidamos intuitivamente com noções de probabilidade, que acompanha
o pensamento abstrato mediado simbolicamente e linguisticamente. Essas são capacidades
cognitivas tremendas que não podem ser ignoradas.

  22
(e) Atores, interatividade, uma divisão do trabalho mais complexa. Diferentes sociedades
tomaram como caminho morfológico e organizacional levou para a espacialidade repetitiva e
altamente permeável do sistema de quarteirões como uma solução recorrente ao problema da
intensificação e diversificação da interação e de uma crescente resiliência econômica. Estruturas
espaciais baseadas no sistema de quarteirões e redes de ruas exponenciam suas interações ao ponto
de colocar a sociedade em um regime se trocas e inovações que a leva a desdobrar-se em mais
técnicas e especialidades – alimentando mais divisão do trabalho, sem um fim. Elas oferecem a
massa crítica, a explosão combinatória de interações imprevisíveis que induz mais divisão.
Sociedades não urbanas tendem a estabilizar sua divisão do trabalho e seu potencial de inovação –
daí sua ênfase constante na reprodução ritualizada de tradições. Sociedades urbanas tenderiam a ser
prisioneiras de sua própria explosão combinatória de interações, e são calibradas para mais e mais
dependência de progressiva especialização na sobrevivência de atores imersos intensa interação, e
portanto dependentes de inovação. Essa tendência pode ser alimentada por um sistema de
organização social e produção econômica calibrado para gerar mais produção, como em cidades em
sociedades capitalistas. Por outro lado, regras sociais fortes o bastante podem aplacar essa
tendência, ao regular as interações, como em cidades no mundo islâmico. Entendo que essa é uma
hipótese radical que coloca a cidade como a entidade híbrida propulsora da complexidade social e
técnica – o que se alinha com as impressões de Jacobs, Soja, Glaeser e Bettencourt sobre o lugar na
cidade na historia das inovações. O que devemos avançar em relação a suas descrições é o “como”:
eles nos falam de densidades e interações, mas precisamos entender a espacialidade detalhada da
interação, o papel do quarteirão repetido em um sistema, assim como o lugar deste sistema espacial
no impulso à interatividade e à crescente especialização de atores imersos em interações aleatórias,
intensificadas por este padrão espacial.
(f) O quarteirão como resposta à intensificação e diversificação das interações: a
43
resiliência material de sociedades. A repetição do quarteirão em cidades com grelhas, um
aspecto não encontrado em assentamentos não-urbanos, pode ser reveladora quanto à dinâmica
social. O que a repetição do quarteirão implica em termos práticos? Primeiramente, devemos assumir
que desse modo temos mais atividades em um único assentamento. A repetição envolve uma
tendência à “escala”, fazendo uso do termo comum na economia: uma ampliação do número de
famílias e suas residências, da demanda por suporte material (alimento, trabalho, troca), da oferta de
produtos e atividades – uma microeconomia cotidiana mais extensa, com mais atores envolvidos. A
repetição de quarteirões em cidades com redes internas teria a ver com um aumento no potencial da
diversidade social e microeconômica – uma cultura mais extensa de papéis especializados e uma
divisão mais complexa do trabalho? Essa pergunta é interessante sob o ponto de vista de abordagens

                                                        
43
Observação de Benjamin Vis, em comunicação pessoal.

  23
às condições de reprodução material de sociedades, como a economia e a antropologia. Nelas
encontramos por um axioma da vida econômica: a correspondência profunda entre tamanho da
população, diversidade de atividades e a especialização de ocupações. Essa mesma correspondência
foi recentemente encontrada nos extensos estudos arqueológicos de Ortman et al. Se essa
correspondência fizer de fato sentido empírico e material, a repetição de quarteirões pode ser um forte
indício de uma cultura bem estabelecida de especialistas mutuamente dependentes. Podemos
entender a diversidade de edificações arranjadas em quarteirões conectados por caminhos capazes
de levar a uma maior variedade de oportunidades de interação na prática cotidiana. Ainda, a
configuração-gêmea do sistema de quarteirões e do sistema de ruas torna a espacialidade da cidade
particularmente adaptável a mudanças no tempo, tanto nas atividades quanto na forma construída,
44
com substituições arquitetônicas a partir de inovações sociais, econômicas e técnicas.
(g) A estabilização do padrão espacial do quarteirão. Esse processo de produção e ajuste
a demandas e expectativas sociais envolve constante tensão e confronto entre materialização da
prática e a materialidade do espaço que lhe expressa e dá suporte, e parece consistente com a ideia
de um processo auto-organizado, onde o sistema urbano se autorregula através de interações e
sucessivos ajustes e progressivas adaptações às inovações da prática (incluindo novas demandas
materiais). Soluções para a agregação de células arquitetônicas são construções históricas testadas
na prática. Elas amadurecem, são mudadas, completadas, parcialmente substituídas, até o ponto de
atingir formas relativamente estáveis, servindo à prática, amparando as trocas comunicativas e
materiais. Não há um plano inicial, mas adaptação constante. O mecanismo de transmissão e herança
estaria no próprio espaço – em padrões-memória de uma forma de construir que expressa uma forma
de cooperação lida cognitivamente (a “leitura de descrições” espaciais, como chamam Hillier e
Hanson), as “urbanidades amalgamadas” de Krafta, então reproduzidos no presente, em constante
45
confronto com a prática corrente. Dessa morfogênese em ciclos de tentativas e erros, tivemos a
aparente estabilização de um modo de construir na forma do quarteirão com células construídas
dispostas continuamente – uma solução que amplia a generalização da proximidade entre atores
atuando em uma sociedade de especialistas, imersos na dependência mútua típica de uma divisão do
46
trabalho que sempre ganha complexidade. Espacialmente, a implicação material é a de que
maximizar a presença de faces arquitetônicas para um mesmo canal de espaço livre implica em
estender esses efeitos de generalização da proximidade para os atores, com consequente aumento
de densidade, de modo altamente eficiente em relação ao solo disponível, como demonstram Martin e
March. Para tanto, a contiguidade é acompanhada da porosidade de fachadas e da proximidade entre
                                                        
44
Meu argumento sobre o papel do sistema de quarteirões como avanço da divisão do trabalho é complementado pela
observação de Vis sobre seus efeitos sobre a oportunidade de interações e adaptabilidade (lembrando o argumento de Hillier e
Netto [2002] sobre o modo como a morfologia urbana absorve transformações sociais).
45
Hillier e Hanson (1984) usam o termo “description retrieval”; veja Krafta (2012).
46
Como reconhecido na economia espacial como a força que gera a aglomeração (veja Marshall, 1920; Jacobs, 1969; Fujita e
Thisse, 2009).

  24
espaços construído e livre, privado e público, com atividades abertas ao acesso, vistas por Jacobs,
47
Bentley et al, Santos et al, Holanda e Gehl .
Uma formidável ruptura nesse “genótipo da contiguidade” das células arquitetônicas tão afeito
à intensificação da proximidade e da conectividade entre atores foi atingida deliberadamente no pico
do movimento modernista na virada para o século XX, na Europa, expandida em seguida para todo o
mundo: uma radical invenção a partir da rejeição completa da espacialidade tradicional, então
associada a epidemias e insalubridade (a culpa, claro, era da falta de infraestrutura). Examinarei
adiante, empiricamente, as consequências dessa ruptura no tecido socioespacial da nossa
interatividade.
(h) Contingência e idiossincrasia. Cidades compartilham praticamente os mesmos
componentes essenciais: edifícios, espaços livres axializados, espaços convexos. Da combinação
desses fatores, temos a tremenda variedade urbana – cidades com características espaciais distintas
em culturas espaciais distintas. As relações entre esses elementos básicos, assumindo variações
(formais, fenotípicas), vão gerar a diversidade na unidade reconhecível sob o termo “cidade”.
Semelhanças se devem à necessidade do amparo a práticas de troca que se repetem entre
sociedades e em momentos históricos, porque os processos e procedimentos da troca presencial
também encontram uma economia fundamental, uma forma mínima: a do estímulo à interatividade e a
maximização da conectividade entre atores. Quarteirões são todos diferentes entre si, mas
apresentam similaridades em suas estruturas profundas ou topológicas. Diferenças radicais podem
operar em seu interior (como seu preenchimento, em decorrência da célula arquitetônica adotada,
como no caso do quarteirão da cidade do oriente médio), sua porosidade (em função do espaçamento
entre células), seu tamanho e em sua forma – mas sua configuração de borda definida pelo canal da
rua e sua relação com outros quarteirões se mantêm. Contingências espaciais e necessidades
contextuais estabelecem idiossincrasias e diferenças entre cidades, formando culturas espaciais
distintas. Mas o fato de ainda assim podermos reconhecer elementos e aspectos em comum é
absolutamente intrigante e só pode ser explicado por algo que permita que a improbabilidade de uma
solução em comum se materialize em lugares distintos.

Brevemente descrita, essa é uma síntese do ciclo de geração, mudança e estabilização da forma
urbana em torno do sistema de quarteirões, como o item mais marcante da estrutura urbana. Meu
argumento envolve traços arqueológicos, a improbabilidade de simples coincidências entre
necessidades da interação e emergências espaciais, e a consolidação do sistema de quarteirões a
partir de suas implicações na complexificação da divisão do trabalho.

                                                        
47
Jacobs (1961), Bentley et al (1985), Santos et al (1985), Holanda (2003) e Gehl (2011).

  25
A hipótese de um ciclo de formação urbana e da gênese do quarteirão como efeito da
interatividade, estabelecida sobretudo em solo lógico, ainda deve ser demonstrada empiricamente, via
análise das formas desenvolvidas historicamente sob critérios das práticas da interação de cada
época. Fundamentalmente, em convergência com as contribuições da economia espacial, esse
processo de geração expressa uma espécie de teleologia: a interatividade da troca material e
comunicativa. A interatividade é a força centrípeta original que move a produção material, e toma a
forma do processo de agregação celular na origem das espacialidades densas da cidade – um
processo que a expressa e ampara a conectividade das ações dos atores. Podemos agora inserir
essa condição para nossos atos e associações como um fundamento material da relação sociedade-
espaço. A relação entre prática social e espaço mediada pela extensão do corpo molda o próprio
espaço em dobras capazes de informar e ampliar a fluidez e a intensidade das trocas em “sociedades
como sistemas de interação material”.
Uma vez identificada a força dos requerimentos da interação e da prática da associação
moldando a espacialidade da cidade (na diversidade infinita de suas formas) a partir da agregação da
própria célula arquitetônica, retornemos aos modos como, uma vez construída, os efeitos da forma
são sentidos em nossos esforços de interação. Em outras palavras, o reconhecimento da forma e
seus caminhos morfológicos como efeitos da interatividade agora nos demanda entender seus efeitos
sobre nossa interatividade. Vejamos esse lugar do espaço na materialização da interação.

3. Da “forma como efeito” ao “efeito da forma”: a aderência do ato ao espaço

Nós nunca “descobrimos nada a não ser que um evento segue outro”
e nunca observamos diretamente “uma força ou poder pelo qual a causa opera,
ou qualquer conexão entre ela e seu suposto efeito”
48
Hume em Lombrozo

Iniciei este ensaio buscando a “morfologia como um efeito da necessidade da interação”. Entretanto,
se a forma arquitetônica e urbana importa para estimular a presença das pessoas nos espaços
públicos e a interatividade, temos de assumir essa relação ativa já no momento da produção da forma
arquitetônica – o processo elementar da formação urbana. Situarei os efeitos da forma urbana sobre a
interatividade no único lugar onde poderiam iniciar e sobre o qual se abater: as relações entre espaços
e nossos corpos e seu movimento durante nossa atuação, assim como o movimento de qualquer
artefato. Esses efeitos vêm sendo tratados de maneira delimitada em escalas tidas como distintas –
da escala regional que leva à geração das aglomerações que chamamos cidades, suas estruturações
internas na forma de padrões de centralidade e localização, ao próprio movimento e performance do
                                                        
48
Lombrozo (2013).

  26
corpo. Enxergar a relação entre corpo e a extensão do espaço livre e do espaço construído vai
demandar rompermos com o artifício cognitivo que é o conceito de escalas. Escalas impõem
descontinuidades em movimentos e processos que se materializam de modo contínuo.
A aderência entre nossos atos e a extensão e forma do espaço está viva no conceito de
“fricção da distância” intuído pelo matemático Pierre de Fermat no século XVII, e explícito na geografia
econômica de Von Thünen em 1826. Gostaria de apontar que essa consideração escalar poderosa,
via abstração da análise matemática, pode nos induzir facilmente a uma redução: a dos corpos dos
atores e objetos em movimento a pontos “sem peso” ou materialidade em si, representados apenas
como entidades numéricas absolutas. Apesar da redução severa da materialidade dos corpos que
sofrem de fato os efeitos da distância, o confronto material entre corpos e entorno espacial está ativo
na ideia de “fricção da distância”, na extensão do espaço e seu efeito sobre a troca econômica. Mas
para reconhecermos como o corpo se relaciona materialmente com seu entorno espacial, precisamos
simultaneamente de outra escala de abordagem, rompendo com as descontinuidades que o conceito
de escala estabelece ao fixar autonomias aparentes entre “planos de espaço” (o local operando em
um nível, o regional em outro, etc.) que só poderiam existir em um ambiente cognitivo. Precisamos ver
essa aderência ao espaço viva na espacialidade dos nossos corpos, no gesto constituído de espaço,
na sensação da espacialidade em nosso próprio movimento. Esta leitura é encontrada em abordagens
na fenomenologia.

3.1. A espacialidade do gesto na fenomenologia


A fenomenologia é um campo da filosofia centrado no sujeito em sua experiência imediata do mundo.
Dentro desse interesse, a espacialidade da experiência e do próprio “ser” foi tema de autores
49
influenciados pela fenomenologia de Husserl, como Heidegger, Schütz e Merleau-Ponty. Da
regionalização do ser à espacialidade do gesto, encontramos amparo nesse campo para entendermos
a as relações fundamentais entre nossa atuação e o espaço. Destes autores, Merleau-Ponty oferece
as considerações mais agudas da espacialidade do corpo em seu ambiente e da importância do
movimento nos modos como ele habita o espaço como teatro da ação. Para o fenomenólogo, é na
ação que a espacialidade do nosso corpo é trazida à vida. O corpo é um meio de ingresso em um
ambiente que lhe é familiar: um corpo em coexistência com o lugar. O corpo é ele mesmo um espaço
expressivo, a origem do movimento. Nosso corpo não está primariamente no espaço: ele é feito de
espaço. O ator traça movimentos, descreve curvas: o gesto produz movimento concreto contra um
pano de fundo de posições. Esse espaço é um pano de fundo cinestésico. A experiência se abre em
um espaço objetivo, no qual o corpo encontra seu lugar – uma espacialidade primitiva: ser um corpo é

                                                        
49
Merleau-Ponty (1953).

  27
estar amarrado a um mundo. Temos aqui a “extensão do gesto”: as posições fenomenais no espaço
alcançadas pelo corpo (figura 10).

Fig. 10 – A dança como paradigma: a extensão do gesto e sua aderência ao “éter” do espaço livre; a fluidez e o
atrito do movimento.

A distância entre atores é imediatamente lida no gesto: o movimento toma lugar, “cava de dentro do
pleno do mundo”. Atuamos em um espaço que não está vazio ou desconectado aos nossos gestos,
mas ao contrário, carrega uma relação altamente [determinada] a eles: movimento e pano de fundo
50
são, de fato, estágios somente artificialmente separáveis de uma única totalidade. Entendo que o
51
confronto com o espaço envolve o atravessar espaços livres: o “éter” do espaço livre tem uma
extensão sentida pelo corpo na própria espacialidade do gesto e do movimento descrito no espaço.
Há uma aderência entre gesto do corpo e espaço, no realizar nossas ações no mundo. Essa
aderência é capturada como “fricção da distância” por abordagens econômicas – algo por trás das
próprias razões para produzirmos aglomerações urbanas em primeiro lugar. Ou assim nos informa a
economia espacial.

3.2. A espacialidade da interação na economia


Vimos que outra área também é capaz de evocar a relação entre corpo e objetos em interação e a
aderência do espaço a eles, mediando interações: a economia. A disciplina é centrada na reprodução
material de uma sociedade – isto é, na dependência entre atores e, portanto, na produção e troca
                                                        
50
Liepmann em Merleau-Ponty (1953:159).
51
O éter é uma definição entendida desde o Timaeus de Platão até o século XIX, como a substância que preenche o vazio entre
objetos; passando por Newton, como o meio de interferência através do qual a interação entre corpos distantes se propaga.

  28
entre atores. Trata da condição material da troca, do acesso ao lugar da atividade como forma de
atuar / produzir, do movimento entre lugares, e do acesso ao lugar da troca final. A economia
descreve o movimento coletivo dessas tramas de pura interatividade vistas “de fora” e de cima, como
é típico da epistemologia dessa ciência: mas reconhece a importância do movimento dos corpos e da
necessidade da superação do espaço via movimento, e a importância da proximidade e de espaços
que generalizem a proximidade. Saímos do reconhecimento da experiência pessoal do espaço e da
visão subjetiva da relação corpo-espaço como meio para a relação entre atores. A economia vê essa
presença do “espaço entre” atores de forma muito viva: como uma tensão atuando sobre as ações
dos atores, ou sobre seu potencial de interação. Forças centrípetas e centrífugas, de atração e
repulsão. As forças centrífugas são ativas na interatividade e terminam vencendo: produzimos
cidades. Mas as forças centrífugas seguem lá: produzimos redes de cidade dispersas sobre uma
52
região. As forças centrípetas descritas por Marshall capturam essas economias da aglomeração. No
centro dessas forças, temos a generalização da proximidade entre atores (figura 11).

Fig. 11 – As forças centrípetas e centrífugas que geram aglomerações urbanas.

Ambas as teorias, inteiramente desconectadas, baseadas em tradições e epistemologias distintas,


convergem em uma afirmação “gêmea”: a centralidade da relação entre corpo e espaço na
experiência humana do mundo e do outro – da espacialidade de nossos gestos concretos contra o
pano de fundo e o éter do espaço à interação e a troca material, que precisam superar a distância
para emergirem, considerando a relacionalidade profunda da ação humana como ação
inexoravelmente social. Atuar é atuar com o outro – e envolve o confronto com a espacialidade do
meio físico dos nossos atos.

3.3. Estendendo as tensões da proximidade ao entorno dos atores


Vimos os insights da fenomenologia sobre a relação profundamente corporal com o espaço, assim
como sua interpretação da economia, na forma da fricção do movimento no espaço livre – e seu
                                                        
52
Marshall (1920).

  29
reverso: a atratividade ou tensão entre atores e espaços construídos. Essa tensão é sentida em
função da inevitável mediação da materialidade do corpo e dos objetos – o fato de que eles têm
extensão e ocupam lugar no espaço – e do próprio espaço para a construção da interação.
Precisamos superar a extensão entre nós e outros atores e seus lugares, de modo a reduzirmos o
esforço e a fricção do movimento, intensificando nossa interatividade. Vimos que cidades são uma
solução fabulosa para essa intensificação, via a invenção da espacialidade do quarteirão, capaz de
intensificar a generalização da proximidade via densidades e acessibilidade, enquanto oferece infinitas
possibilidades de movimento, percursos e liberdade nas interações – algo que só a segregação e a
rarefação espacial podem diluir.
Usemos agora uma forma bastante intuitiva para capturar essas relações: o meio visual e a
representação bidimensional da forma urbana. A figura 13 ilustra esquematicamente a relação entre
formas construídas e a relação inversa entre “distância” (extensão do espaço entre formas
construídas) e “tensão” (manifesta sobre nossos corpos em movimento, no esforço de interagirmos).
Células no primeiro diagrama mostram a possibilidade de interação (as linhas): a tensão entre a
edificação e o espaço da rua (retângulo horizontal), e a tensão entre edificações (retângulos verticais
em cinza). As células no segundo diagrama representam tipos de arquitetura contínuos, mostrando
sua associação direta. As células no terceiro diagrama representam o tipo isolado, cujas relações são
mediadas por espaços abertos (os círculos), que implicariam um aumento das distâncias e a redução
da tensão entre esses componentes básicos da forma urbana – e entre eles e o corpo. A tensão 1,
entre fachada do edifício e espaço público, é dependente da distância entre eles. A proximidade
aumenta a tensão com o espaço aberto, aparente na proximidade ao próprio corpo no espaço público.
A tensão 2, entre edifícios, é produzida pelas distâncias que, em última análise, terão de ser
percorridas pelos atores nesse entorno imaginário. Essas tensões envolvem o corpo de maneira mais
intensa quando não há distância entre edifícios. A fricção que a extensão dos espaços livre e
construído impõem a nossas práticas é como um análogo da tensão da proximidade entre formas
construídas, e entre estas e o espaço da rua.

Fig. 12 – Fricção da distância entre formas ! tensão de proximidade sobre o corpo.


53
Configuração elementar da relação entre espaço construído e espaço livre.

                                                        
53
Diagrama derivado de Krafta (2013).

  30
Vimos que essas configurações arquitetônicas elementares geram arranjos urbanos de infinita
variedade, situados entre dois casos arquetípicos de arranjos (figura 8). As tensões mais fortes entre
células no diagrama de cima (representando o tipo arquitetônico contínuo) seriam função da sua
proximidade. Essa proximidade é sentida pelo corpo como menor fricção para o movimento, e uma
condição para intensificar a copresença e a interação. As células no diagrama abaixo (representando
o tipo isolado) apresentam distâncias que reduzem as tensões entre edifícios e entre estes e o espaço
público. Teriam, portanto, efeitos contrários sobre nosso movimento, copresença e interatividade.
Essas relações entre formas e suas tensões de proximidade internas podem ser replicadas (e
intensificadas ou não) na constituição da espacialidade a nossa volta.
Como essas tensões podem ser capturadas empiricamente? A partir de pesquisa empírica
cujos resultados simplificados veremos em seguida, as distâncias entre edifícios e entre edifício e
espaço público correlacionam negativamente com a presença pedestre e de atividades públicas em
térreos etc. Podemos assumir que, aparentemente por trás dessa correlação negativa, quanto maiores
essas distâncias, menor a quantidade de pedestres e de atividades públicas. Em outras palavras, o
exame estatístico dos efeitos da arquitetura sobre a presença de atores no espaço público, fator de
interatividade, mostra consistentemente que as distâncias entre edifícios e entre edifício e espaço
público parecem ter um papel causal na presença pedestre e de atividades públicas, matérias primas
da interatividade. O que devemos saber é: o quanto esse é o caso?
Entendo que, por trás dessa indução de redução ou do aumento da presença do pedestre,
estão as mesmas tensões da distância e da proximidade que economistas enxergam ativas moldando
densidades e padrões de localização. Essas forças não se suspenderiam ao chegar na escala do ator
se apropriando do seu espaço imediato, elas têm de estar ativas nessa espacialidade imediata, cuja
extensão é sentida pelo corpo e superada no seu movimento, no exercício da interação. É isso que
entendo que nosso estudo consegue capturar, por meio de ferramentas estatísticas capazes de
correlacionar variações na espacialidade e variações na presença de pessoas e atividades. As
relações de distância/proximidade estariam no cerne dos “efeitos da arquitetura” sentidos pelo corpo
54
em ação e interação, ainda que tenhamos imensa dificuldade em pensar sobre esses efeitos. Mas
vejamos como chegamos às evidências que suportam essa interpretação.

                                                        
54
Veja Harvey (1973); Hillier e Hanson (1984).

  31
4. Reconhecendo empiricamente os efeitos sociais da arquitetura
Vejamos alguns resultados do estudo empírico desenvolvido com Júlio Vargas e Renato Saboya no
55
Rio de Janeiro. Nossa hipótese geral foi a seguinte:

rarefação de padrões da forma arquitetônica e urbana 
 
 
 
dissolução no uso social das ruas 
redução da apropriação pedestre e atividade microeconômica local,  
diluição de socialidades e da vida pública 
 
 
 
implicações sistêmicas potencialmente negativas para as cidades 
indução da dependência veicular, impactos ambientais, segregação, insegurança 

A existência de tensões ativas entre forma construída e a atividade dos atores pode apontar o quanto
a forma arquitetônica – da sua implantação no lote e no quarteirão ao grau de porosidade de suas
fachadas – importa na atratividade ao pedestre e a atividades microeconômicas, com efeitos
multiplicadores. Agora estamos em condição de preparar a hipótese das tensões entre a
espacialidade arquitetônica e urbana e a corporeidade inerente a nossos atos com mais precisão. Em
contextos urbanos onde propriedades como a acessibilidade e a densidade são iguais ou
suficientemente similares, o tipo arquitetônico (a) contínuo responderia mais adequadamente à vida
social e microeconômica na escala local, ao relacionar-se mais diretamente aos espaços públicos e
permitir uma relação mais intensa entre atividades e pedestres, por meio de suas fachadas contíguas.
Essa hipótese também aponta para a possibilidade de que o tipo (b) isolado teria efeitos opostos ao
tipo contínuo, variando como função do quão largos são os afastamentos do edifício dos limites do seu
lote, e as distâncias entre ele e seus edifícios vizinhos e à faixa pedestre. Esses fatores afetariam os
níveis de movimento pedestre e trariam dificuldades a atividades comerciais, com efeitos potenciais
de larga escala quanto ao desempenho urbano, como o aumento da dependência veicular. Quanto
mais o tipo isolado for dominante em uma área urbana, menos pedestres e atividades comerciais. Já o
tipo (c) híbrido teria um desempenho intermediário, em função de sua configuração e fachadas
possuírem características mistas, variando conforme a permeabilidade de seu térreo (figura 15).

                                                        
55
Para considerações metodológicas e o trabalho empírico em detalhe, veja Netto, Vargas e Saboya, (2012).

  32
Fig. 15 – A hipótese dos efeitos da arquitetura.

Analisamos cerca de 30 aspectos da morfologia arquitetônica (dos tipos à posição no lote e


componentes das fachadas) e 10 variáveis sociais e econômicas (como a presença de pedestres e de
comércios e serviços). Em seguida, comparamos a distribuição das características arquitetônicas à
distribuição das variáveis socioeconômicas em 24 áreas urbanas do Rio, selecionadas aleatoriamente.
Levantamos 249 segmentos de rua, entre esquinas, e cerca de 3.800 edifícios, dispostos em três
conjuntos de amostra, cada um com um nível distinto de acessibilidade, baixa, média e alta.
Controlamos ainda as densidades populacionais nessas áreas. Fizemos observações da
movimentação pedestre em cada uma das ruas durante um dia de semana, das 9h às 19h. Dentro
desses 249 segmentos de rua, um número enorme de combinações de tipos arquitetônicos foi
encontrada. Essa variedade de combinações espaciais é muito importante neste estudo: é em função
dela que diferenças correspondentes na presença pedestre e de atividades poderão ser identificadas.
Vejamos, a partir desse confronto estatístico, alguns de nossos achados. Lembremos que fatores
urbanos são relacionados em tramas, e isolar fatores pode facilmente levar à supersimplificação.
Incluo aqui correlações entre pares de fatores como um meio de identificar comportamentos mútuos,
sem esquecer que eles são parciais demais para representar o cenário mais amplo das relações em
jogo. Vejamos o que essas correlações informam em relação a algumas perguntas clássicas:

  33
O quanto a forma arquitetônica importa para o pedestre e para a implantação de atividades públicas?
Variáveis pedestres Atividades nos térreos
CARACTERÍSTICA ARQ
Mov. Pedest Grupos Est Pessoas Est residencial Comercial Diversidade
Contínuo 0.327 0.447 0.407 -0.413 0.422 0.428
Isolado -0.342 -0.469 -0.415 0.446 -0.449 -0.456
Híbrido 0.094 0.140 0.060 -0.200 0.163 0.172

A forma, concentrada em tipos distintos, têm relações opostas na atração ao pedestre: o tipo contíguo
tem correlações positivas com a presença pedestre e de atividades e sua diversidade. Já a presença
do edifício isolado correlaciona com a redução desses itens.

O quanto a implantação importa?


Variáveis pedestres Atividades nos térreos
CARACTERÍSTICA ARQ
Mov. Pedest Grupos Est Pessoas Est residencial Comercial Diversidade
Ind Cont Fac 0.418 0.430 0.462 -0.316 0.380 0.276
Afast Frontal -0.424 -0.393 -0.394 0.227 -0.290 -0.217

Este é um dos pontos mais centrais na questão dos efeitos da forma. A distância entre edifícios têm
correlações negativas com pedestres e atividades públicas. O mesmo ocorre com a distância entre
fachada e rua. Distâncias que têm aumentado em edifícios produzidos mais recentemente (p valores
<0.05).

O quanto a permeabilidade ao edifício importa?


Variáveis pedestres Atividades nos térreos
CARACTERÍSTICA ARQ
Mov. Pedest Grupos Est Pessoas Est residencial Comercial Diversidade
Muro -0.472 -0.501 -0.460 0.467 -0.491 -0.442
Grade -0.196 -0.096 -0.113 0.150 -0.199 0.078
Lote Aberto 0.627 0.589 0.554 -0.592 0.650 0.410

Algo análogo ocorre com a presença de barreiras. Confirmando a impressão comum, a presença de
grades e sobretudo muros correlaciona negativamente com pedestres e atividades comerciais.

O quanto a porosidade da fachada importa?


Variáveis pedestres Atividades nos térreos
CARACTERÍSTICA ARQ
Mov. Pedest Grupos Est Pessoas Est residencial Comercial Diversidade
Dens Portas 0.683 0.446 0.499 -0.533 0.577 0.408
Dens Janelas 0.725 0.512 0.677 -0.466 0.524 0.338

As aberturas das janelas e portas têm grande importância na atração ao pedestre, tanto em
movimento quanto estáticos. Também suportam a presença de atividades e sua diversidade.

O quanto a altura do edifício e a densidade importam?


Variáveis pedestres Atividades nos térreos
CARACTERÍSTICA ARQ
Mov. Pedest Grupos Est Pessoas Est residencial Comercial Diversidade
Altura edifício 0.499 0.325 0.403 -0.243 0.300 0.195
Dens Arq 0.517 0.473 0.508 -0.223 0.284 0.216
Dens Econ 0.652 0.369 0.498 -0.360 0.427 0.256

Alturas e densidades arquitetônicas e de economias (atividades residenciais e comerciais) também


aparecem com correlações positivas com pedestres e, em menor grau, atividades públicas.

Outras ferramentas estatísticas podem mostrar com mais riqueza e precisão a trama de relações entre
esses fatores e outros analisados, considerados de modo simultâneo em uma análise de regressão
56
múltipla, exploradas em outros trabalhos. Nosso estudo ainda mostrou que os fatores favoráveis ao
pedestre tendem a correlacionar positivamente com a continuidade das fachadas, a sua proximidade
                                                        
56
Veja Netto, Vargas e Saboya (2012) e Netto (no prelo).

  34
com o espaço livre da rua, e com o tipo contínuo. Sugere que a arquitetura faz diferença nos
fenômenos socioeconômicos locais: duas morfologias de mesma densidade mas arranjadas em tipos
e implantações distintos terão efeitos e implicações distintas sobre o pedestre, a copresença e a
intensidade do encontro, assim como sobre a possibilidade de presença de atividades comerciais e a
materialização da vida social e microeconômica. Aspectos como a proximidade entre edifício e rua,
entre edifícios, sua permeabilidade e atividades, parecem produzir tensão entre espaço construído e
livre, entre arquitetura e corpo – as condições materiais do potencial de interação social e
microeconômica. Não há espaço aqui para uma discussão das causalidades em jogo, ou a expansão
57
dessas considerações em uma teoria probabilística dos efeitos da arquitetura. Mas gostaria de
sumarizar os achados dessa reflexão quanto aos dois tipos clássicos de célula arquitetônica e o modo
como configuram quarteirões.

Se esse é o caso, esta abordagem chega a algumas confirmações: a primeira, de ordem empírica.
Nosso estudo mostra que nossas cidades têm visivelmente migrado de um padrão morfológico (o
primeiro, histórico, tradicional) para outro nas edificações mais novas [CORRELAÇÕES], facilmente
relacionável a uma lógica social e espacial de segregações ativas já na microescala urbana. O padrão
urbano que capturamos em três capitais brasileiras mostra a consagração de um novo caminho
morfológico na cidade brasileira, o qual parece desarticular, ao menos em parte, as “tramas da
interatividade” desenroladas na relação entre interior da arquitetura e o espaço público. Segundo, sob
o ponto de vista mais geral e considerando os ganhos de uma teoria, o fato de termos encontrado
correlações consistentes entre certos tipos de arquitetura e níveis distintos de presença de pessoas e

                                                        
57
Para elementos dessa teoria probabilística, veja Netto et al (2012), Netto (no prelo).

  35
atividades no espaço urbano, mesmo com todas as complexidades de uma cidade – da topografia ao
clima a condições históricas e culturais – é quase surpreendente. Temos fortes indícios do papel da
morfologia arquitetônica no potencial de interação pública de uma cidade. Terceiro, encontramos
traços marcantes da existência de relações não contingenciais entre sociedade e espaço operando já
na escala do edifício e seu entorno. Parece haver uma tensão socioespacial bastante delicada, onde a
redução da proximidade e continuidade da forma construída é sentida na facilidade de movimento e
na interatividade dos atores, sobretudo pública.
Vimos que essa convergência extraordinária é moldada historicamente na produção da
espacialidade urbana como expressão e suporte de aspectos da prática – da interação à segregação
– por tentativa e erro – e, no Brasil, parecemos estar em um momento em que a segregação,
naturalizada, domina a produção de soluções morfológicas. Considerando que uma cultura espacial
desenvolve seu caminho morfogenético parte acidentalmente, parte por moldagens no confronto
sucessivo com as demandas da interatividade e da reprodução material, os efeitos dessa
convergência de materialidades podem não se encerrar na sua dimensão social e microeconômica.

5. A convergência de desempenhos sociais, econômicos e ambientais?


Nossos estudos sobre o desempenho social e microeconômico da forma arquitetônica mostram que
tipos formais tem um comportamento bastante consistente, mesmo em diferentes cidades
58
brasileiras. Mesmo em contextos diferentes, a compacidade do quarteirão tem a ver com a
proximidade entre atores e a compressão de relações espaciais benéfica para a conectividade das
nossas práticas. Esses efeitos são relacionados: os efeitos da morfologia se tornam causas para
outras dimensões da vida urbana. Por exemplo, quando a microeconomia do bairro diluiu em
decorrência de tipologias pouco afeitas ao uso público do térreo, o pedestre também desaparece – e
vice-versa. Trata-se de uma trama de efeitos e causalidades mútuas, com potencial multiplicador.
Sobretudo, esses estudos trazem sugestões de que o pedestre é dependente da arquitetura, e
apontam os riscos de quando a arquitetura renuncia seu papel público de amparo à vida urbana.
E quanto às implicações da morfologia para além dos sistemas sociais – e a possibilidade de
externalidades dessas relações – como aquelas de natureza ambiental ou ecossistêmica? Na
hipótese de fundo deste trabalho, vimos a relação entre morfologia arquitetônica e dinâmicas locais
em três níveis, dos quais percorremos apenas os dois primeiros: a rarefação de padrões da forma
arquitetônica e urbana e sua repercussão como uma dissolução do uso social das ruas. Tratei dos
impactos desse novo padrão urbano, que se cristaliza há cerca de 3 décadas no Brasil, sobre a esfera
59
pública e a vida política urbana em outro trabalho. Mas ainda temos de verificar as implicações
ambientais. A compressão espacial implica em densificação dos encontros, e tem encontrado

                                                        
58
Veja Netto et al (2012).
59
Netto (no prelo).

  36
correlações positivas com comportamento ambiental de tecidos urbanos, dentro de limiares – ainda
60
que haja considerável disputa e dissenso entre abordagens. Outros resultados têm sugerido que não
só o desempenho econômico e o desempenho ambiental no processo de construção se mostra
diferente para tipos diferentes, mas o mesmo tipo contínuo, capaz de se plugar para constituir fitas e
conjuntos compactos parece também ter desempenho superior em termos da redução de consumo de
61
materiais, energia incorporada e da produção de efeitos colaterais como emissões de gás carbônico.
O que é fascinante é a coincidência que está se apresentando, e a pergunta que segue: por
que esse seria o caso? Por que o mesmo tipo arquitetônico, o mesmo genótipo espacial que abriga a
atividade humana e gera a forma tridimensional da cidade e do ambiente a nossa volta teria
desempenhos superiores em campos tão distintos, como a construtiva e seus impactos sociais e
urbanos? Poderia ser mera coincidência? Certamente. Mas há outra explicação possível. A de que
esses tipos são historicamente produzidos, moldados, testados, selecionados e adaptados
continuamente – talvez ecoando um processo de seleção não distante do princípio darwiniano, quanto
a formas mais afeitas à práticas humanas e mais capazes de atender e responder a seus
requerimentos de produção e uso social. Presente a demanda para tais densidades, a prática
humana, urbana produziu, modificou e selecionou inconscientemente, livre de teorias e prescrições
teóricas mas sujeitas à testagem e à experimentação prática dos urbanitas ao longo da história
urbana, chegamos a essas soluções.
Outra explicação possível pode estar na própria natureza espacial dessas formas edificadas –
e aqui retornamos à possibilidade de coincidência: o tipo contínuo, capaz de se plugar ao vizinho, sem
recortes e afastamentos, termina naturalmente respondendo, como tecido, às demandas e tensões da
prática no espaço livre público da troca e da movimentação, enquanto também, na sua simplicidade
espacial, responde à economia construtiva. Aqui, os efeitos poderiam se assemelhar em seus
benefícios. Mas a aparente coincidência esconde na verdade princípios espaciais ativos: a
continuidade da forma na interface espaço construído-espaço livre e a "simplicidade" de formas
contínuas que naturalmente possuem uma relação vantajosa entre área construída e superfície de
fachadas, reduzindo a demanda de materiais e suas externalidades ambientais, como exploram Kern
e colegas (2014). Como disse, a primeira dessas possibilidades, a de um processo histórico de
produção, testagem, seleção e adaptação de formas construídas tanto aos requerimentos da prática
quanto à construção, não pode ser demonstrada. A segunda, sim: é da razão e da natureza da forma
espacial – arquitetônica e urbana – ter implicações materiais na produção e na apropriação social e,
por extensão, nos impactos ambientais desses movimentos. Nesse caso, há a sobreposição de
propriedades em uma mesma forma, uma feliz implicação das propriedades da forma contínua,

                                                        
60
Veja o estudo de Chen et al (2008) para 45 cidades chinesas, e compare com as simulações de Echenique et al (2012) para 3
cidades inglesas.
61
Veja o trabalho de Kern et al (2014).

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ajustável diretamente ao vizinho. Mas ambas inerentes à forma. Esses distintos efeitos benéficos (ou
maléficos, no caso do tipo isolado e sua baixa compacidade) provêm das mesmas propriedades da
forma. Esta é uma proposição provocadora cujas implicações, se confirmadas, seriam tremendamente
relevantes. É o que novas pesquisas dos efeitos da arquitetura devem investigar.

Reconhecimento
Este trabalho contou com o apoio do arqueólogo Benjamin Vis, da Universidade de Leeds. Erros de interpretação
são meus.

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