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Reciclagem, comidas organicas, andar de bicicleta... nado é assim que nds salvaremos o planeta 10 MARGO 2017 "ARTIGOS E DEBATES ARTIGO ANTERIOR PROKIMO ARTIGO Reciclagem, comidas organics, andar de bicicleta... nao é assim que nés salvaremos o planeta Por Slavoj Zizek Via BlibiObs Em dezembro de 2016, milhares de cidadaos chineses asfixiados pela poluigao atmosférica tiveram que se refugiar no campo na esperanga de nele encontrar uma atmosfera mais respirdvel. Esse “arpocalipse” afetou 500 milhdes de pessoas. Nas grandes aglomeragées, a vida diaria tomou a aparéncia de um filme pés-apocaliptico: os transeuntes equipados com mascaras de gas circulavam em uma fumaga sinistra que cobria as ruas como uma coberta. Este contexto fez aparecer claramente a separacdo de classes: antes que a névoa nao chegasse a fechar os aeroportos, somente aqueles que possuiam os meios de comprar um bilhete de aviao puderam deixar as cidades, Para isentar as autoridades, os legisladores de Pequim chegaram a classificar a névoa entre as catastrofes meteoroldgicas, como se fosse um fendmeno natural, e no uma consequéncia da poluigao industrial. Uma nova categoria veio entao se juntar a longa lista de refugiados que fogem das guerras, das secas, dos tsunamis, dos terremotos e das crises econémicas: os refugiados da fumaga. No entanto, o “arpocalipse” nao tardou em ser objeto de uma normalizagao. As autoridades chinesas, obrigadas a darem conta da situacdo, aplicaram medidas para permitir aos cidadaos que continuassem com sua rotina didria. Eles Ines recomendaram ficar fechados em casa e nao sairem sendo em caso de necessidade, munidos de uma mascara de gas. O fechamento das escolas fez a alegria das criangas. Uma escapada para 0 campo se tornou um luxo e Pequim viu prosperar as agéncias de viagem especializadas nessas pequenas excursdes. O essencial era nao entrar em panico, agir como se nada tivesse acontecido. Uma reagao compreensivel, se consideramos que “quando somos confrontados com alguma coisa to completamente estranho a nossa experiéncia coletiva, nés nao realmente a vemos, mesmo que a prova seja esmagadora. Para nés, essa “alguma coisa” é um bombardeio de imensas alteragdes biolégicas e fisicas do mundo que nos alimentou”. Nés niveis geolégicos e biolégicos, o ensaista Ed Ayres enumera quatro “picos’ (desenvolvimento acelerados) aproximando assintoticamente o ponto além do qual se desencadeara uma mudanga qualitativa: crescimento demografico, 0 consumo de recursos limitados, emissdo de gases carbénicos, extingéo em massa das espécies Diante dessas ameagas, a ideologia dominante mobiliza mecanismos de dissimulagao e cegueira: “Entre as sociedades humanas ameagadas prevalece um padrao geral de comportamento, uma tendéncia a fechar os olhos ao invés de se concentrar na crise, algo um tanto vao.” Esta atitude é aquela que separa o saber e a crenga: nés sabemos que a catadstrofe (ecoldgica) é possivel, mesmo provavel, mas nés nos recusamos a acreditar que ela vai acontecer. Quanto o impossivel se torna norm: Lembre-se do sitio de Saravejo no inicio dos anos 1990: que uma cidade europeia “normal” de cerca de 500.000 habitantes se encontrasse cercada, esfomeada, bombardeada e aterrorizada por atiradores de elite durante trés anos teria parecido inimaginavel antes de 1992. Em um primeiro momento, os habitantes de Saravejo acreditaram que essa situacao nao duraria. Eles pensavam ‘em enviar seus filhos para um lugar seguro durante uma ou duas semanas, até que as coisas se apaziguassem. Todavia, muito rapidamente, o estado de sitio se normalizou. Essa mesma alternancia do impossivel ao normal (com um breve interltidio de choque e panico) é evidente na reagao do establishment liberal americano em face da vitdria de Trump. Ela se manifesta igualmente na forma como os Estados e o grande capital enxergam as ameacas ecoldgicas tais como o derretimento da calota glacial. Os politicos e gestores que, ainda recentemente, excluiam a ameaga de aquecimento global como um complé crypto-comunista ou, ao menos, como um prognéstico alarmista e infundado, nos asseguram que nao ha qualquer razao para panico, considerando agora 0 aquecimento global como um fato estabelecido, como um elemento normal. Em Julho de 2008, uma reportagem da CNN, “The Greening of Greenland’ ("A Groenlandia se toma verde"), exaltou as possibilidades abertas pelo derretimento do gelo: que felicidade, os habitantes da Groenlandia vao agora cultivar seus jardins! Essa reportagem foi indecente na medida em que ela aplaudia os beneficios marginais de uma catastrofe mundial, mas sobretudo porque ela associava o “esverdeamento” da Groenlandia, consequéncia do aquecimento global, a uma tomada de consciéncia ecoldgica. Em “A Doutrina do Choque”, Naomi Klein mostrou como 0 capitalismo mundial explora as catastrofes (guerras, crises politicas, catastrofes naturais) para fazer tabula rasa das velhas constrigdes sociais e impor sua prépria agenda. Longe de desacreditar © capitalismo, a ameaga ecoldgica ndo fara talvez que promove-lo ainda mais. Bata no seu peito Paradoxalmente, as préprias tentativas para combater outras ameagas ambientais podem agravar © aquecimento dos polos. O buraco na camada de oz6nio ajuda a proteger a Antartida do aquecimento global. Se ele fosse levado a diminui¢ao, a Antartida poderia ser pega no aquecimento do resto do planeta. Da mesma forma, esta na moda enfatizar o papel decisivo do “trabalho intelectual” em nossas sociedades pés-industriais. Ora, hoje, o materialismo opera uma reagao, como testemunha a luta por recursos escassos (alimentos, agua, energia, minerais) ou a poluigdo do ar. PUBLICIDADE > Mesmo quando nés nos dizemos prontos para assumir a nossa responsabilidad, podemos ver que existe af um truque que visa esconder a sua verdadeira amplitude. Hd algo falsamente tranquilizador nesta prontidao para bater em nosso préprio peito. Sentimo-nos culpados de bom grado porque, se somos culpados, é que tudo depende de nés, nés é que puxamos as cordas, basta mudarmos 0 nosso estilo de vida para sairmos dessa. Aquilo que é mais dificil para nés aceitar, nés ocidentais, é ser reduzido a um papel puramente passivo de um observador impotente. Nés preferimos nos langarmos a um frenesi de atividade, reciclar nosso desperdicio de papel, comer organicos, dar-nos a ilusao de fazer algo, dar a nossa contribuigdo, como um torcedor de futebol bem acomodado em seu sofé na frente de uma tela de TV, que acredita que as suas vociferagées influenciarao 0 resultado do jogo. Em matéria de ecologia, a negacdo tipica consiste em dizer: “Eu sei que estamos em perigo, mas eu nao acredito realmente nisso, entéo por que mudar meus habitos?" Mas hé uma negagao inversa: “Eu sei que ndo podemos fazer muito para interromper o processo que arrisca nos levar a nossa ruina, mas essa ideia é para mim tao insuportavel que eu vou tentar, mesmo que isso ndo sirva para nada’, Este é o raciocinio que nos leva a comprar produtos organicos. Ninguém é ingénuo o suficiente para acreditar que as mags rotuladas como “organicas”, meio podres € muito caras, so mais saudaveis. Se nés optamos por compra-las, nao é simplesmente como consumidores, é na ilusdo de fazer algo util, dar provas da nossa crenga, nos dar boa consciéncia, participar de um vasto projeto coletivo. Retorno a Mae Terra? Vamos parar de nos enganar. O “arpocalypse” chinés mostra claramente os limites deste ambientalismo predominante, estranha combinagao de catastrofismo e de rotina, de culpa e indiferenga. A ecologia é agora um grande campo de batalha ideolégico onde se desenrola uma série de estratégias para escamotear as reais implicagdes da ameaga ecoldgica: + Aignorancia pura e simples: é um fenémeno marginal, que néo merece que nés nos preocupemos com ela, a vida (do capital) esta em curso, a natureza se encarregara dela mesma; . A ciéncia e a tecnologia podem nos salvar; . O mercado resolver os problemas (pela taxagao dos poluidores, etc.); * Insisténcia sobre a responsabilidade individual no lugar de vastas medidas sistematicas: cada um deve fazer aquilo que pode, reciclar, reduzir seu consumo, etc.; O pior é sem duvida um apelo a um retorno ao equilibrio natural, a um modo de vida mais modesto e mais tradicional pelo qual nés renunciamos a hubris humana e nos tornamos novamente criangas respeitosas da Mae Natureza. O discurso ecolégico dominante nos interpela como se fossemos culpados a priori, em divida com nossa Mae Natureza, sob a pressdo constante de um superego ecolégico: “O que voce fez hoje pela Mae Natureza? Vooé jogou o seu velho papel no recipiente de reciclagem previsto para ele? E as garrafas de vidro, as latas? Vocé pegou 0 seu carro enquanto vocé poderia ter ido de bicicleta ou de transportes pliblicos? Vocé ligou o ar condicionado em vez de abrir as janelas?” As implicagées ideolégicas de tal individualizagao sao evidentes: totalmente ocupado em fazer meu exame de consciéncia pessoal, eu esquego de me colocar questées muito mais pertinentes sobre a nossa civilizagao industrial como um todo. Esta empreitada de culpabilizagao encontra também uma saida mais facil: reciclar, comer organicos, utilizar fontes de energia renovaveis, etc. Em boa consciéncia, nés podemos continuar nosso alegre caminho: Mas entdo, 0 que devemos fazer? Em sua tiltima obra, “Was geschah im 20. Jahrhundert” (ainda sem tradugdo N.T.) Sloterdijk dentincia a “paixao do real” caracteristica do século precedente, terreno fértl para 0 extremismo politico que leva ao exterminio dos inimigos, e formula propostas para o século XXI: nés, seres humanos, ndo podemos minimizar os danos colaterais gerados pela nossa produtividade. A Terra nao é mais o plano de fundo ou o horizonte de nossa atividade produtiva, mas um objeto finito que nés arriscamos tornar inabitavel acidentalmente, Mesmo quando nos tornamos poderosos o suficiente para afetar as condigdes elementares de nossa existéncia, nés devemos reconhecer que somos uma espécie entre outras sobre um pequeno planeta. Esta tomada de consciéncia exige uma nova maneira de nos inscrevermos em nosso ambiente: no mais como um trabalhador heroico que expressa seu potencial criativo através da exploragao de seus recursos inesgotaveis, mas como um modesto agente que colabora com o seu entorno e que negocia permanentemente um nivel aceitavel de seguranga e estabilidade. A solugio: Impor uma solidariedade internacional O capitalismo no se defini justamente pelo desprezo dos danos colaterais? Em uma légica onde somente 0 lucro importa, os danos ambientais nao estado incluidos nos custos de produgao e so

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