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O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO
NO LIVRO ILUSTRADO
BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
São Paulo
2012
Ficha Catalográfica
São Paulo
2012
Dedicatória
Aos meus pais, Francisca Paiva
e Cícero Juvêncio, que forneceram as
bases para a construção do meu mundo.
Agradecimentos
Ao prof. Dr. Jofre Silva, que orientou este estudo e que sempre contribuiu
com discussões construtivas e desafiadoras. Ao professor Dr. Marcus Bastos, que
orientou esta pesquisa até o terceiro período do mestrado.
Nunca podem faltar agradecimentos à Antônia, secretária do mestrado,
cuja a calma e a paciência são de um monge. E sempre está disposta a ajudar.
À Silvana Santini, quem muitas vezes foi a primeira leitora do que escrevi,
além de colaborar com a revisão parcial.
À Marina Mercadante, quem igualmente colaborou com a revisão parcial.
Agradeço a compreensão de familiares e amigos para com a relativa
ausência neste momento em que escolhi distanciar-me de tudo para ampliar
minha percepção sobre o design e ilustração. Áreas as quais devo me dedicar
pelas próximas décadas.
Resumo Abstract
Este estudo trata da relação entre design e ilustração This study refers to the relation between design and
no livro ilustrado contemporâneo que desenvolve uma illustration inherent in contemporary illustrated books that
narrativa por meio da mútua interação entre texto e imagem. present narratives developed through mutual interaction
O intuito é compreender como o design está presente na between text and image. The intent is to understand the
composição da imagem ilustrativa e como se desenvolve presence of design in images’ composition and how does it work
no livro ilustrado. O assunto é abordado por meio da inside an illustrated book. This topic will be presented through
organização de diferentes recursos como: enquadramento, the exposure of different means such as framing, viewpoint,
ponto de vista, ritmo, imaginário, relação entre texto e rhythm, imaginary, relation between text and image and the
imagem, e a montagem entre enunciados verbais e visuais. combination between verbal and visual resources. Those matters
Estes assuntos são extraídos de estudos de caso de livros were extracted from illustrated books’ case studies. All analysis
ilustrados. As análises são realizadas tendo em vista o were done considering the theory of design and illustration as
instrumental teórico do design e da ilustração, como: Oliveira follows: Oliveira (2008), Loomis (1947; 1951; 1961), Nikolajeva
(2008), Loomis (1947; 1951; 1961), Nikolajeva (2010), Linden (2010), Linden (2011), Arnheim (2008), Gombrich (1999; 2007)
(2011), Arnheim (2008), Gombrich (1999; 2007) e Flusser and Flusser (2007). The mainstream of this study is the design
(2007). O objeto deste estudo é o design da ilustração de presented on Ismalia (2006), Lampião e Lancelote (2006)
Ismália (2006), Lampião e Lancelote (2006) e Um outro and Um outro pastoreio (2010). With this, a vision of design
pastoreio (2010). Assim, apresentamos um modo de ver and illustration is presented: a vision that culminates on an
o design da ilustração que se concretiza sempre na visão observer’s subjective view. Also the illustrator’s importance is
subjetiva do observador. Também é ressaltada a importância highlighted: a professional contributing to the propagation of
do ilustrador no entretenimento, na disseminação de cultura entertainment, culture and popular imaginary.
e no imaginário popular.
Keywords
Palavras chave Design, illustration, storytelling, art and illustrated book.
Design, ilustração, narrativa, arte e livro ilustrado.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 15
INTRODUÇÃO
O terceiro capítulo debruça-se sobre o objeto deste estudo, personagens de duas culturas distantes. Como estudo de caso,
que são três livros ilustrados: Ismália (2006), do ilustrador Odilon Lampião e Lancelote nos oferece a chance de ampliarmos nossa
Moraes; Lampião e Lancelote (2006), de Fernando Vilela; e Um outro percepção sobre o imaginário cultural e as capacidades de dar
pastoreio (2010), de Indio San e Rodrigo Dmart. As obras foram sentido às praticas e processos de impressão no design da ilustração.
escolhidas pela importância da ilustração no projeto gráfico e em Os autores de Um outro pastoreio também são inspirados
sua narrativa. Também foi um requisito a nacionalidade das obras. pelo imaginário cultural ao compor a narrativa entre orixás,
Cada uma delas destaca-se por alguma característica de ousadia entidades das religiões afro-brasileiras, e o Negrinho do pastoreio,
no uso de recursos e configurações visuais. Esses destaques são o lenda gaucha. Entretanto, o que mais destaca o livro de outros
foco de cada uma das análises. Ao analisar obras com publicação tantos é a complexidade do roteiro com foco narrativo em muitos
recente, espera-se aprimorar a visão e o estudo sobre o design da personagens e as diversas linhas temporais, o que é atípico nos livros
ilustração no livro ilustrado contemporâneo brasileiro. ilustrados. Como a narrativa no livro ilustrado acontece por meio da
Ismália chama atenção, primeiramente, pelo formato do palavra e da imagem, o que se sobressai em Um outro pastoreio é
livro que se abre em sanfona. Tal peculiaridade é o reflexo do ritmo como são utilizados os recursos ilustrativos para contar uma história
visual e fictício desenvolvido pelo ilustrador Odilon Moraes, que tão complexa e labiríntica. Para tanto, são utilizados recursos de
teve como base de seu trabalho o poema simbolista de Alphonsus montagem entre enunciados verbais e ilustrativos. Assim, o estudo
Guimaraens. Portanto, o estudo de caso de Ismália nos oferece um de caso de Um outro pastoreio nos mostra uma maneira de unir
campo de análise para compreendermos uma forma de como pode diferentes recursos para montar enunciados verbais e ilustrativos
ser articulado o ritmo no design da ilustração. com um enredo complexo de uma narrativa épica.
Lampião e Lancelote mostra um embate cultural entre a Portanto, este estudo utiliza-se das ferramentas do design
cavalaria medieval e o cangaço nordestino. Ao dialogar com duas para compreender a dinâmica da ilustração, apresentando uma
culturas tão distintas, salienta-se a forma como o ilustrador trabalha visão de que o design e a ilustração estão integrados. Pela riqueza
o imaginário popular e consegue sintetizar as inspirações culturais da articulação visual e verbal no livro ilustrado, os resultados podem
na linha visual e na narrativa. Uma característica importante ser enriquecedores para profissionais interessados no meio gráfico
também nesta obra é o uso de cores especiais e dos processos de e no design da ilustração.
impressão que são utilizados para caracterizar o universo de dois
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Ilustrar é design. A frase parece até mesmo óbvia para as pinturas, gravuras, fotografias; e as imagens cinematográficas,
aqueles familiarizados com o termo design, uma vez que é comum televisivas, holo e infográficas. Comumente, utilizamos a palavra
utilizar-se do termo em inglês para se referir tanto à estrutura e ilustrar para nos referirmos a algo que ilumine a ideia de outro algo,
projeto quanto ao desenho de imagens. A adoção de uma palavra como, por exemplo, na frase ‘a ficção ilustra a vida’, ou ‘a expressão
importada tem causado grandes discussões no sentido de tentar no rosto da personagem ilustra suas reais intenções’ (grifo do
criar fronteiras entre o campo do design e outras áreas, e até de autor). Vemos, então, que ilustrar exige apresentar imagens que
definir caminhos para o futuro da profissão. representem conceitos e ideias, e que isso envolve imagens mentais
Cardoso (2008) nos fala que a palavra design deriva do inglês evocadas pela linguagem verbal. Neste estudo, é abordado apenas
e refere-se tanto a ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à o conceito das imagens como representação visual.
ideia de configuração, arranjo e estrutura. A origem mais remota Cruzando o significado das palavras ilustrar e design,
está no latim designare, verbo que abrange ambos os sentidos, o podemos ver que o design está implícito em ilustrar. Afinal, ilustrar
de designar e o de desenhar. A maioria das definições concorda requer a criação de uma estrutura de elementos visuais a partir da
que o design opera na junção desses dois níveis, atribuindo forma concepção de uma ideia, como afirmou Loomis (1951). Portanto,
material aos conceitos intelectuais. Trata-se de uma área que gera ilustrar retém ambos os conceitos da palavra design, o de dar
projetos, no sentido objetivo de plano, esboços ou modelos. desígnio e o de estruturação.
No dicionário Houaiss (2001), encontramos a etimologia da A fotografia, a pintura, o desenho de formas e figuras,
palavra ilustração, deriva do latim illustrare, que significa iluminar colagens, tipografias, texturas, cores, pinceladas e todas as formas
uma ideia ou um texto, ornar ou elucidar um texto por meio de de representação visual podem vir a ser ilustrativas se carregarem
estampa, figura, gravuras e desenhos. Se ilustrar é iluminar uma em si a função de ilustrar uma ideia ou um texto. Loomis (1947,
ideia ou um texto, podemos pensar que a ilustração pode funcionar p.178, tradução nossa) deixa esta questão nítida ao dizer que “uma
em dois âmbitos, o das imagens mentais e o das imagens como imagem sem uma ideia ou propósito definido dificilmente pode
representações visuais. Essa divisão foi apresentada por Santaella ser pensada como uma ilustração”. Algumas vezes, a função e o
(2008). As imagens mentais, segundo a autora, são as imagens da propósito da ilustração não são claros. Exemplo disso é que, muitas
nossa mente, que aparecem como visões, fantasias, imaginações, vezes, chamamos um desenho ou uma fotografia de ilustração
esquemas, modelos, ou, em geral, como representações do nosso apenas quando são veiculados por um impresso, ou quando
meio ambiente visual. As imagens como representações visuais são queremos nos referir a uma separação entre a palavra e a imagem.
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Frequentemente, “o que é ilustração” vira uma questão que Santaella (2009). Autora apresenta que os suportes matéricos
deve ser analisada caso a caso pelo especialista, que pode ser o referem-se ao método de produção manual das imagens, como o
ilustrador, o crítico de arte, historiador ou o designer. A análise deste desenho e a pintura que se utilizam da tela de tecido, de papel,
especialista será guiada pela compreensão do discurso. Segundo vidro, madeira etc. A fotografia tem como suporte um fenômeno
Santaella (2009), todo discurso fala sobre algo, de um falante para químico ou eletromagnético, que reage mediante o estimulo da
um ouvinte. Coli (2010) afirma que o discurso é um instrumento luz. O terceiro suporte, imatérico, é aquele em que o ilustrador
para decidir o que é e o que não é arte em nossa cultura. Coli (2010, não age sobre o real, mas transmuta-o através de uma máquina.
p.18) comenta que este tipo de julgamento costuma ter a influência São as imagens que tem como suporte a computação gráfica,
da afinidade entre “a cultura do crítico e do artista, de coincidência mediadas através de programas, modelos e cálculos. As imagens
(ou não) com os problemas tratados, de conhecimento mais ou produzidas pelos dois primeiros suportes, quando digitalizadas,
menos profundo da questão e mil outros elementos podem entrar sofrem influência do terceiro. Ao serem digitalizadas, as imagens
em cena para determinar tal ou qual preferência”. Portanto, uma produzidas manualmente ou através de um processo fotográfico
imagem, para ser considerada ilustração, deve conter um discurso podem perder qualidades próprias do seu suporte de produção,
de ilustração reconhecível para seus avaliadores. bem como adquirir novas qualidades do suporte imatérico. Caso
A concepção do livro ilustrado tem como ponto de partida o processo de trabalho da produção das ilustrações seja manual,
a dinâmica de um projeto de design. A feitura das ilustrações, a ao digitalizar suas imagens, o profissional pode corrigir erros do
organização coerente de textos e imagens no espaço da página e processo, fazer alterações estruturais na imagem e até recomeçar
as escolhas decorrentes do processo de produção e reprodução do um novo processo criativo.
livro, como tipo de papel, impressão e acabamento, são questões Para expressar-se visualmente é preciso não apenas
comum do design. Mesmo que a concepção do trabalho aconteça conhecimentos dos elementos do design, mas também domínio
apenas na mente do criador do livro ilustrado, ainda assim é possível sobre as ferramentas de trabalho, seja o desenho, colagem,
perceber a existência de um projeto. Na verdade, o design pode fotografia, gravura ou a computação gráfica. Cada uma dessas
ser tratado como uma “atividade ou produto que tem como ponto técnicas irá, ao seu modo, compor a imagem ilustrativa. É na
de partida o projeto e como ponto final o receptor ou usuário, composição da imagem ilustrativa que o design está sempre
passando pelo processo de criação, produção e reprodução, que implícito. As escolhas decorrentes do processo de composição da
envolve materiais, técnicas e tecnologias diversas, e escolhas imagem não partem do acaso, o ilustrador controla sua criação
estéticas” (Campos: 2009, p.68). com o objetivo de comunicar ou interagir com o assunto de sua
O suporte de impressão dos livros ilustrados é o papel. narrativa. Assim, é importante não apenas ter o domínio prático
Já o suporte utilizado na produção das ilustrações pode ser das ferramentas de trabalho, mas também tentar prever os efeitos
matérico, químico ou eletromagnético e imatérico como definiu psicológicos que a imagem terá no público.
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Usualmente, os livros possuem uma grade que determina lombo, ou lombada, é onde as páginas do miolo são grampeadas
suas divisões internas. Ao trabalhar sobre essa grade, o designer coladas ou costuradas. Haslam explica que a página dos livros
cria um layout e, por aspectos formais, estabelece a posição a costuma ser definida pelos formatos retrato ou paisagem. O
ser ocupada pelos elementos. Busca-se criar uma hierarquia primeiro corresponde ao formato, em que a altura da página
na informação, para guiar a atenção do leitor. No caso do livro é maior que a largura. O segundo, ao formato no qual a altura
ilustrado, dificilmente, a grade aparece como elemento formal. da página é menor que a largura. Haslam cita componentes de
Como aponta Haslam (2007), na maioria dos livros ilustrados, divisão do espaço da página como fólios, calha, página única
uma vez definido o tamanho e o formato, as ilustrações são é página espelhada. Os fólios referem-se à linha que define a
produzidas na proporção da página. O formato pode ser definido posição dos números de página. A calha é a margem interna entre
tanto para adequar-se a uma coleção como para ajustar-se ao as duas páginas, a dobra do caderno. A página única, ou simples,
conteúdo da narrativa e das ilustrações, como poderemos ver no é aquela em que o conteúdo impresso está separado das outras
caso do livro Les Larmes de crocodile, na página 24. Uma vez que páginas. Na espelhada, o material impresso ocupa duas páginas
as ilustrações são produzidas para um formato específico, torna- como se fosse uma única. É também chamada de página dupla.
se difícil ou impossível mudar radicalmente o formato destes Dentro dessa estrutura de elementos físicos que compõe
livros em novas publicações. o livro, o designer cria a organização dos elementos que serão
O design do livro ilustrado está diretamente relacionado impressos. A narrativa do livro ilustrado acontece por meio do
à narrativa que se desenvolve dentro de um objeto físico, texto e de ilustrações. Porém, além das ilustrações que têm o
composto de uma série de elementos, como a capa e quarta intuito de narrar e descrever ações, temos ilustrações que
capa, lombo, guardas, folhas e caderno. Segundo Haslam (2007), ornam para valorizar o todo narrativo, como capitulares, padrões
a capa e quarta capa são o revestimento de papel, cartão ou ornamentais, vinhetas, molduras e rébus. Assim, o designer do
outro material que é colado, grampeado, ou costurado ao miolo, livro ilustrado precisa lidar com a complexidade de integrar uma
sendo a capa localizada na parte frontal do livro e a quarta capa grande quantidade de elementos para dar forma à narrativa.
no verso. As guardas são folhas de papel encorpado, dobradas, Haslam (2007) comenta que o designer costuma definir uma
formando quatro ou oito páginas, sendo uma colada na placa série de regras internas para cada elemento, as quais são
de cartão na frente e a outra no final do livro de capa dura. aplicadas em todo o livro. O intuito deste processo costuma ser a
A finalidade é prender o miolo à capa dura, aumentando a criação de uma coerência no projeto gráfico. Cria-se não apenas
durabilidade do livro. As folhas são um conjunto de duas páginas, uma hierarquia na leitura de elementos, favorecendo a leitura e
geralmente, numeradas com algarismo ímpar na frente e par no o impacto de alguns em relação a outro, mas também busca-se
verso. O caderno é formado por folhas impressas e dobradas em acumular estímulos visuais que gerem emoções e sentimentos.
múltiplos de quatro páginas para formar uma sessão do livro. O
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Farbiarz (2008) comenta que é preciso que o do processo de produção industrial como: técnicas de
escritor, designer e ilustrador do livro ilustrado tenham impressão, escolha de papel, tipografia e acabamento. Na
em mente a sensibilidade de seu público, uma vez que o criação de seus originais ilustrados, o profissional pode
livro participa de uma sociedade e interfere nela por meio perceber uma inviabilidade na reprodução de seu livro. Esse
de repertórios culturais que se concretizam no discurso. profissional terá que adaptar sua obra em prol de viabilizar
Também é preciso levar em conta o contexto em que se a reprodução de seu trabalho. O processo irá exigir projeto,
insere a obra literária, já que esta pertence a determinado pesquisa e muito provavelmente escolhas de tecnologias de
espaço geográfico, cultura e época. impressão que implicarão também em escolhas estéticas.
Toda essa demanda irá refletir no projeto gráfico, O profissional pode até mesmo decidir que o seu trabalho
o que faz com que os profissionais envolvidos sigam uma final será o próprio original, agregando valor de peça única,
metodologia, um projeto. Em geral, é necessário que os ou de uma tiragem limitada, através de cópias manuais.
envolvidos na produção do livro ilustrado trabalhem a Tanto no caso do diretor de arte quanto do artista, houve
partir de um briefing que aponta necessidades e objetivos a necessidade em coordenar diferentes conhecimentos
específicos. Muitas vezes torna-se preciso realizar pesquisas e disciplinas. Isso demonstra a natureza transdisciplinar
sobre referências históricas e contextos relevantes para do design, como explica Campos (2009, p.67), “isto é, o
inspiração. Embora os profissionais possam realizar seu trânsito necessário entre disciplinas diversas”.
trabalho sem uma pesquisa prévia, tomando como base Dessa maneira, o design está implícito no ato de
o conhecimento que já tenham armazenado, a própria ilustrar por exigir uma organização de elementos visuais
demanda do nosso contexto contemporâneo exige uma com o propósito de comunicar uma ideia. Conforme
diversidade cada vez maior de repertório e precisão nas apontado anteriormente, o livro ilustrado abrange autores
referências visuais, o que frequentemente impossibilita com diferentes formações e repertórios. Porém, ao
este tipo de atitude. observar as escolhas relacionadas ao design da informação
Zeegen (2009) descreve que a concepção do visual e verbal, bem como aos procedimentos presentes
livro ilustrado realizado dentro de uma editora pode ser na coordenação de etapas e processos de produção, a
gerenciada pelo designer gráfico ou diretor de arte, que concepção do livro ilustrado torna-se indissociável do
irá avaliar todo material produzido e direcionar o processo. design. Então, nos próximos capítulos, pretende-se ampliar
Este profissional tem como princípio de seu pensamento o a compreensão das características do design da ilustração
design. Em uma ilustração, uma ideia pode ganhar existência nos livros ilustrados.
por infinitas formas, o papel do designer é encontrar a
melhor forma de comunicar-se com o seu público. O livro
também pode ser concebido inteiramente por um artista
ou por um profissional não consciente de todas as etapas
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Figura 3 Figura 4
Topsys and turvys Topsys and turvys
Peter Newell Peter Newell
Livro ilustrado, 1989. Livro ilustrado, 1989.
Fonte: NEWEL, 1989. Fonte: NEWEL, 1989.
Oliveira (2008A) comenta que no chamado período vitoriano Um exemplo de livro ilustrado desta época, publicado pela primeira
(1837-1901), acontece a popularização do livro ilustrado como vez em 1893, é Topsys and turvys, de Peter Newell. O livro apresenta
conhecemos hoje, seja do ponto de vista gráfico ou conceitual. Oliveira um texto rimado, poético e bem humorado, que é impresso no topo da
(2008A, p.14) explica que é o momento em que o livro ilustrado “começa ilustração e abaixo da ilustração. A leitura do topo segue da esquerda
a estabelecer códigos – e até mesmo convenções em sua linguagem visual para direita, e para encontrar o sentido da leitura do texto abaixo da
– que permanecem até hoje”. Por volta da primeira metade do século XX, ilustração, é necessário que o leitor gire o livro em 180˚. Ao girar o livro,
os ilustradores passam a explorar cada vez mais o espaço narrativo do ele percebe que a imagem permite uma nova leitura. O que era uma
livro, seu formato e a relação entre texto e imagem, o que se torna um figura, aparentemente se transforma em outra. Podemos perceber esta
conjunto narrativo indissociável. A ilustração cada vez mais predomina dinâmica na Figura 3 (acima), na capa do livro de Peter Newell, e na Figura
sobre o texto. Como aponta Linden (2011, p.15), este é o período do livro 4 (acima), página do miolo. Topsys and turvys nos mostra que o livro
ilustrado moderno, no qual “a diagramação está a serviço da expressão, ilustrado desenvolve uma narrativa não apenas por meio da dualidade
manifestando-se por meio de uma grande flexibilidade, e é concebida de entre palavra e imagem, mas também explora as possibilidades de leitura
forma coerente em função do encadeamento de páginas”. da imagem e sua relação com o formato do livro.
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Entre 1950 e 1960 o projeto gráfico do livro ilustrado ganha cada vez mais importância, como apontou Linden
(2011). Há então uma preocupação crescente com a materialidade do livro, com o conjunto de todos os seus componentes
e sua relação com o espaço narrativo. Exemplo deste momento é o livro Les Larmes de crocodile, de André François, como
podemos ver nas Figuras 5 e 6 (abaixo). Linden, sobre o livro de François, destaca o cuidado do autor com a tipografia
e com o formato da embalagem. O livro vem em uma caixa de formato comprido, imitando o formato do crocodilo
representado nas páginas internas. Les Larmes de crocodile é um exemplo de como o formato do livro ilustrado pode se
relacionar ao conteúdo.
Figura 5 e 6
Les Larmes de crocodile
André François
Livro ilustrado, 1956
Fonte: PIXEL CREATION, 2011.
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Linden (2011) comenta que, a partir de 1970, pequenas editoras começaram a explorar novos caminhos para
o livro ilustrado, com o uso da fotografia, estilos pictóricos ousados, livros de imagens e livros com estruturas não
narrativas. A autora declara a década de 1990 como marca do surgimento do livro ilustrado contemporâneo, tanto pelas
iniciativas editoriais inovadoras quanto pelo diálogo entre o livro ilustrado e a arte contemporânea. Linden afirma que o
livro ilustrado contemporâneo é, a priori, um objeto visual, sem limites em termos de tamanho, materialidade, estilo ou
técnica, e toda sua dimensão visual, inclusive tipográfico.
Poderíamos citar como exemplo de livro ilustrado contemporâneo Pinocchio (2009), da ilustradora Sara Fanelli e
do escritor Carlo Collodi. Para narrar a história do clássico Pinocchio, a ilustradora utiliza uma abordagem visual inusitada.
Na Figura 7 (abaixo), podemos ver que é criada uma dinâmica entre a retirada da caixa do livro e o crescimento do nariz
dos personagens.
Figura 7
Pinocchio
Sara Fanelli
Livro ilustrado, 2009
Fonte: PINOCCHIO, 2010 .
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Na Figura 8 (abaixo), verificamos colagens de diferentes materiais Assim como os outros exemplos, Topsys and turvys e Les
e composições tipográficas, que possuem fortes características do Larmes de crocodile nos mostram a relação do formato do livro com
período contemporâneo. Afinal, como define Cardoso (2008), a marca o conteúdo da história. Os exemplos apresentados remontam a
registrada do período contemporâneo é o pluralismo, em que já não história do livro ilustrado demonstrando algumas de suas principais
há espaço para pretensão de encontrar uma única forma correta de características, passando pelas origens, pelo período moderno, até o
fazer as coisas. Pinocchio apresenta um discurso de técnica mista, ou contemporâneo, que é o enfoque deste estudo. No próximo tópico,
seja, o uso diferentes técnicas em uma mesma ilustração. veremos um pouco sobre a história do livro ilustrado no Brasil.
Figura 8
Pinocchio
Sara Fanelli
Livro ilustrado, 2009
Fonte: PINOCCHIO, 2010.
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Entre 1940 e 1970, alguns dos destaques da ilustração apontados Santa Rosa utilizando de três técnicas diferentes de ilustração, o que
por Melo (2006) e Cardoso (2005) são: Santa Rosa, Oswaldo Goeldi, demonstra a versatilidade do ilustrador ao trabalhar com a demanda
Carybé, Gian Calvi, Eugenio Hirch, Jayme Cortez, Clovis Graciliano, Di de um tema, ou texto literário.
Cavalcanti, Ziraldo. Nas Figuras 10, 11 e 12 (abaixo), podemos observar
Podemos ver nas Figuras de 10 a 16 (acima) a coexistência de diferentes estilos da ilustração nos anos 60.
Como aponta Melo (2005), muitas vezes o estilo de um ilustrador marca a identificação de um escritor ou de uma
editora. Nas Figuras 15 e 16 podemos ver as capas com projeto gráfico de Ziraldo, costumeiramente inserido na
história das artes gráficas apenas como ilustrador.
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No design da ilustração dos livros ilustrados contemporâneos encontramos o uso de diferentes técnicas de produção de imagem.
Roger Mello, ilustrador e artista plástico influenciado pelo artesanato, costuma explorar colagens de papel e tecidos, como em Meninos
do mangue (2001), na Figura 19 (abaixo). Na figura 20 (abaixo), vemos a ilustração do livro A mãe d’água (2005), de Graça lima, que
explora uma técnica mista de colagem de tecidos, pintura com guache, tinta Suvinil e canetinhas. Esta pequena sequência entre as
Figuras 17 e 20 apresenta o livro ilustrado brasileiro contemporâneo. Com eles, podemos perceber que o Brasil tem ilustradores com
os mais diferentes estilos, com talento também como escritores e designers gráfico. Pela lacuna histórica, e pelo local onde o estudo é
realizado, damos aqui enfoque ao livro ilustrado produzido e publicado no Brasil.
Figura 19 Figura 20
Meninos do mangue A mãe d’água
Roger Mello Graça Lima
Livro ilustrado, 2001 Livro ilustrado, 2005
Fonte: MELLO, 2008. Fonte: GOMES, 2005.
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Falar de livro ilustrado não é o mesmo que falar de livro infantil. algumas vezes não fica clara, como demonstram Linden e Nikolajeva.
O livro ilustrado pode ser concebido para públicos de diferentes idades. Nikolajeva (2011) aponta que no livro ilustrado do século XX, a
Entre os pesquisadores que estudam o livro ilustrado, alguns costumam relação entre palavra e imagem envolvia técnicas de enriquecimento
trabalhar com os livros infantis (LINDEN, 2011; NIKOLAJEVA, 2011), da compreensão por meio do detalhe, da criação de impacto afetivo,
outros incluem no estudo também os livros com público juvenil e adulto tanto pelo uso de palavras como pelo design das imagens. Isso abrange
(POWERS, 2007; CADEMARTORI, 2010). a apresentação de diferentes pontos de vista entre texto e imagem,
Cademartori (2010) inclui em sua pesquisa tanto livros infantis e interação irônica entre as duas. À medida que o século avançava, a
quanto juvenis. A respeito dos leitores mais novos, a autora comenta que perspectiva e os eventos da dupla narrativa cada vez mais desafiavam o
a narrativa oferece às crianças em fase de alfabetização a oportunidade leitor ao introduzir uma ambiguidade às vezes tão intensa, que o mesmo
de experimentarem a potencialidade linguística, o que favorece sua era forçado a chegar às suas próprias respostas. Toda esta crescente
exploração e entendimento do mundo. A apresentação dos códigos complexidade da linguagem do livro ilustrado contradiz o conceito
visuais por meio das ilustrações busca preparar a criança para lidar com principal de simplicidade para comunicação com o público infantil. Neste
a convenção do código das letras. A linearidade do livro induz a criança panorama em que muitos autores são questionados sobre o problema,
a associar a temporalidade do som a um sinal espacial, a letra. A mútua vários assumem que não escrevem para crianças, mesmo que seus
interação entre texto e imagem estimula a capacidade expressiva da livros sejam publicados na categoria de literatura infantil. Outra questão
linguística. Ponderando sobre este processo de desenvolvimento da abordada pelos autores de livros ilustrados é a dupla audiência cabível a
criança, os autores levam em consideração a idade dos leitores em suas este produto. Embora muitos livros ilustrados sejam produzidos para um
diferentes etárias. Isso inclui a escolha dos elementos que compõe a público infantil ainda em processo de alfabetização, quem lê estes livros
narrativa, os quais devem estar de acordo com as competências de leitura para a criança são os adultos. Assim, muitos autores, para enriquecer
que o leitor previsto já alcançou. O tema e a forma de comunicação visual a experiência do livro, preocupam-se em tornar o livro um produto
e verbal também é uma preocupação importante, e devem atender as atrativo tanto para os adultos quanto para as crianças.
exigências do público. Entretanto, a questão do público no livro ilustrado
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 33
Sobre este panorama, Linden (2011) argumenta que na leitura compartilhada, adultos e
crianças podem descobrir elementos diferentes na narrativa. E que muitos dos livros ilustrados
produzidos para crianças são consumidos por adultos, e que editoras francesas como a Møtus
começaram a criar coleções de livros ilustrados voltados especialmente para o público adulto.
Nesta problemática de definir um público limítrofe para os livros ilustrados, devemos
considerar que o planejamento dos autores de um livro nem sempre se concretiza na prática.
Afinal, nada impede que adultos venham interessar-se por livros infantis. Para o designer gráfico
é importante encontrar a comunicação ideal para cada autor e seu público. Como o livro ilustrado
possui esta abrangência de públicos, torna-se necessário analisar caso a caso para definição do
público-alvo, para algumas vezes chegar à conclusão de que há mais de um alvo para atingir.
O pesquisador Powers (2007) é flexível ao tratar do público dos livros ilustrados, incluindo
em sua pesquisa não apenas os livros ilustrados infantis, mas também livros ilustrados juvenis. O
autor comenta que o projeto gráfico e as ilustrações podem ser responsáveis pelo sucesso destes
livros entre o público de diferentes idades. Heller (2008) comenta que a temática de muitos livros
ilustrados juvenis, frequentemente, é semelhante aos livros infantis, envolvendo poesias, universos
de fantasia, contos de fada, lendas e mitologia. Devemos, porém, perceber que a ilustração é
utilizada de maneira peculiar dependendo do público, do projeto gráfico e da narrativa.
Com temáticas semelhantes ao livro ilustrado infantil, os juvenis muitas vezes não
são inseridos nos estudos do livro ilustrado por não possuir a ilustração como predominante
nas páginas. O que faz com que as autoras Linden (2011) e Nikolajeva (2011) não considerem
estes livros como livro ilustrado, mas como livro com ilustrações. Como exemplo de livros com
ilustrações podemos citar A espada na pedra (2004), do escritor T. H. White e do ilustrador Alan
Lee. O livro reconta a lenda do rei Arthur, que é chamado de Wart. Como primeiro livro de uma
série, A espada na pedra conta toda a educação e formação de Wart antes de ser rei. Em relação
às imagens, o texto é dominante na narrativa e nas páginas do livro. As ilustrações aparecem no
final dos capítulos, criando relações entre o texto do capítulo que passou e o texto do capítulo que
virá. Abaixo das ilustrações há sempre um olho de texto, que repete um trecho do texto de um
dos capítulos, dando coordenadas ao leitor à qual momento da narrativa se relaciona a ilustração.
O olho de texto é um recurso mais utilizado em revistas e é descrito por Samara (2011) como um
recurso de apoio, um parágrafo curto que esclarece o conteúdo do texto. O exemplo de como
acontece a interação entre texto e imagem em A espada na pedra, que pode ser visualizado na
Figura 21 (abaixo).
34 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Como demonstrou Farbriarz (2008), os autores do livro ilustrado ocupando, assim, um espaço maior dentro da cena. Na massa de texto,
são todos os profissionais que são mediadores da narrativa tendo em pode-se utilizar a cor para dar destaque a uma palavra específica, como,
vista o seu público. O livro ilustrado evoca duas linguagens, a visual e a por exemplo, uma palavra em vermelho no meio de um parágrafo criará
verbal, e sua narrativa acontece pela interação entre ambas. Isso implica, um ponto de atenção. Na ilustração pode-se criar um ponto de interesse
na maioria das vezes, na existência de uma dupla autoria de escritor e ou de destaque ao pintar de vermelho um objeto da cena. É através da
ilustrador. Nesse caso, muitas vezes o livro ilustrado surge a partir da composição dos elementos do design que nasce o livro ilustrado.
interpretação do ilustrador sobre o texto. Oliveira (2008) comenta que o Uma das dificuldades enfrentadas pelo pesquisador do livro
que se espera do ilustrador é que ele seja um interprete do texto. Porém, ilustrado é perceber que profissionais de diferentes áreas como, designers,
há sempre a dificuldade em saber o ponto exato dessa interpretação, fotógrafos, escritores, poetas visuais, pintores, artistas em geral, podem
uma tensão entre o que está escrito e as visões pessoais do ilustrador. aventurar-se na produção destes objetos. Cabe ao pesquisador aceitar
Outro caso acontece quando o ilustrador é também autor do texto e tem que o livro ilustrado é um objeto diversificado, capaz de ganhar vida
o poder de controlar todo o processo de interação entre texto e imagem, por meio de diferentes caminhos do pensamento. Ao dizermos que
e não necessariamente o texto precisa aparecer antes das imagens. profissionais com tantas possibilidades de formações e conhecimentos
A preponderância visual no livro ilustrado demanda que seus podem produzir livros ilustrados, devemos alertar as divergências entre o
autores trabalhem com a linguagem visual, que foi descrita por Campos livro ilustrado e o livro de artista.
(2009, p.67) como uma “construção complexa e autônoma, capaz Segundo Linden (2011), a partir de 1960, Dieter Roth, Marcel
de emitir mensagens, pensamentos e visões de mundo a partir da Broodhaers e outros artistas plásticos de vanguarda adotam como
composição de seus elementos plásticos constituintes”. Para Campos espaço criativo o livro enquanto objeto, ou o também denominado livro
(IBID., p.67), são “elementos da linguagem visual as cores, as formas, as de artista. Nesse tipo de livro desenvolve-se um ato plástico e poético,
linhas, as texturas, a tipografia, a criação e a representação de figuras, os que abre o livro para os domínios da estética, da história fragmentada e
estudos de composição e a pesquisa de materiais”. Estes elementos que de uma narrativa sem fio condutor. Há, portanto, uma separação entre
estruturam a visualidade também costumam ser chamados de elementos dois objetos distintos, o livro de artista e o livro ilustrado. Silveira (2008)
do design por Lupton (2008) e Dondis (2007). apresenta que o termo livre d’artiste surgiu na França no século XIX para
No design da ilustração e no design da página do livro ilustrado, designar as edições de luxo dos livros ilustrados ou ornamentados. No
os profissionais utilizam-se do mesmo conhecimento dos elementos Brasil, segundo Silveira, o termo livro de artista costuma referir-se a
do design. Por exemplo, buscando destacar um título, ou uma parte um campo artístico específico, e seu produto deriva das experiências
importante do texto, pode-se escolher aumentar o corpo do texto. Para conceituais que surgiram a partir dos anos 60. Porém o autor afirma que o
destacar um personagem dentro de uma ilustração, pode-se utilizar o termo é problemático, não havendo um consenso entre os pesquisadores.
mesmo recurso através da inserção do personagem em primeiro plano,
36 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Para narrar sua história, El Lissitzsky transformou relações espaciais entre eles, criando símbolos que possam
quadrados em personagens, que atuam no espaço da página descrever, narrar, ou sugerir ações e conceitos. O ilustrador
juntamente com palavras, números e formas visuais. A história de livros trabalha com a criação de imagens que possam ser
de dois quadrados busca conduzir a narrativa compondo compreendidas juntamente com à narrativa.
elementos puros ou formas não representativas. As imagens Na produção destas imagens, como demonstrou
não representativas foram definidas por Santaella (2009) como Gombrich (2007, p.117), o ilustrador é levado “à exploração
as imagens que comumente são chamadas de abstratas por de efeitos visuais, e a interpretação desses efeitos”. Esses
reduzirem a declaração visual a elementos puros como tons, efeitos visuais comumente adquirem um sentido de metáfora.
cores, manchas, brilhos, contornos, movimentos, ritmos etc. Santaella (2009) comenta que há dois conceitos centrais
A autora afirma que, a priori, as imagens não representativas embutidos na noção de metáfora. O primeiro reporta-se
são incapazes de representar algo fora delas. Entretanto, ao conceito abrangente de metáfora como sinônimo de
também complementa dizendo que estas formas possuem qualquer figura de linguagem. Enquanto o segundo refere-
um alto grau de sugestão que fisga a imaginação do leitor por se à metáfora em um sentido estrito, como uma figura de
meio das semelhanças. Assim, podemos pensar que as formas linguagem entre outras. Neste estudo, quando falarmos
abstratas podem nos fazer perder o referencial sobre aquilo que de metáforas, estamos nos referindo ao primeiro conceito.
estamos vendo, mas também podem instigar nossa capacidade Gombrich (1999 p.14) define que as metáforas são um código
de relacionar o que vemos com dados já conhecidos, como de símbolos que constantemente são associados à maturidade
experiências ambientais e vivências. emocional e cultural, e que podem ser tanto de uso regional,
Arnheim (2008) comenta que a arte abstrata é incapaz como universal. Gombrich Gombrich (IBID., p.14) explica que a
de deixar de representar, uma vez que uma linha, uma cor, uma metáfora decorre da infinita elasticidade da mente humana de
forma ou movimento, por mais simples que sejam, não oferecem perceber e “assimilar que experiências novas são modificadas
abstrações intelectuais, possuindo um significado simbólico. de outras mais antigas, a aptidão de descobrir equivalências
Quando uma imagem atinge um simbolismo, são chamadas de nos fenômenos mais disparatados e de substituir um por outro
imagens simbólicas e necessitam do aprendizado de um código qualquer”. O autor afirma que quando estes efeitos visuais
estabelecido por convenção para serem compreendidas, como relacionam-se diretamente ao tema da narrativa, podem ser
apresentou Santaella (2009). Deste modo, podemos sintetizar considerados como metáforas visuais, porém, para ele:
que as imagens funcionam em três níveis que se misturam e se Desse ponto de vista, as metáforas não são, basicamente, sentido
sobrepõem, imagens não representativas ou abstratas, imagens “transferidos”, vinculações estabelecidas, como o entende a teoria
clássica da expressão metafórica. São indicadores de vinculações
figurativas e imagens simbólicas. ainda não rompidas, de pombais suficientemente amplos para
Para ilustrar por meio de elementos puros, o ilustrador abarcar tanto o azul de um céu de primavera quanto um sorriso
cria um design a partir da combinação de elementos e das de uma mãe (GOMBRICH, 1999, p.48).
38 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
A partir de Gombrich, podemos notar que o para, assim, construir novos sentidos à narrativa. Como
observador de uma ilustração pode criar interpretações interprete do texto, o ilustrador não é um médium que
amplas sobre os significados das formas da visualidade. psicografa imagens ao bel prazer. O verdadeiro ilustrador,
A cor vermelho, por exemplo, em uma mancha, pode ser mesmo quando o assunto gera dúvidas, busca, através de
relacionada ao sangue, que pode simbolizar tanto a vida suas imagens, comunicar a essência de seu assunto, tendo
quanto a morte. Com um outro referencial, linhas fluidas da em vista o repertório de seus leitores. Algumas vezes, a
cor vermelha podem simbolizar amor ou paixão. Em linhas compreensão sobre a ilustração envolve um mergulho
horizontais, o vermelho pode simbolizar o nascer ou pôr do subjetivo dentro do diagrama de relações internas que o
Sol. Ao perder todo e qualquer referencial, a cor vermelho leitor possa criar entre o enredo da narrativa e a ilustração.
pode ser relacionada a todas as coisas citadas, ou a coisa Isso acontece por que a narrativa do texto abre tantos
nenhuma. Ao perder completamente o referencial, uma caminhos de interpretação e de visões pessoais sobre
imagem deixa de ser ilustrativa, por não comunicar ideia um mesmo assunto, que a capacidade de sugestionar
alguma, ou por comunicar todas as ideias. Para evitar que dos elementos puros torna-se um recurso ilustrativo mais
a imagem perca seu referencial, no design da ilustração o eficiente do que a literalidade das imagens figurativas.
ilustrador costuma utilizar-se da criação de metáforas ou Exemplo disso está em O alienista (1994), do escritor
símbolos extraídos das recorrências culturais e universais, Machado de Assis, ilustrado pelo artista plástico Candido
que sejam diretamente relacionados à narrativa. Assim, Portinari em 1948.
consideramos que uma composição de elementos puros ou O enredo do alienista conta a história do Dr.
abstratos é ilustrativa quando esta representar conceitos e Simão Bacamarte, médico conceituado da Vila de Itajaí
ideias. Afinal, como vimos na página 18, todas as formas no século XIX. Ao decidir estudar os limites da loucura,
de representação visual podem vir a ser ilustrativas se o médico funda a casa verde, hospício onde o alienista
carregarem em si a função de ilustrar uma ideia ou um utiliza seus pacientes como cobaias de seu estudo, para
texto. Não basta apenas que o ilustrador tenha a intenção tentar catalogar os gêneros da loucura. No início, o Dr.
de comunicar algo, é preciso que ele se submeta aos códigos Bacamarte é apoiado pela população, até que pessoas
culturais e universais no design de sua obra. Isso implica a que aparentemente não apresentam os males da loucura
criação de símbolos e metáforas acessíveis ao seu público. começam a ser recolhidas pela casa verde. O alienista passa
O ilustrador, portanto, está subordinado ao seu assunto, a recolher todas as pessoas da cidade que ele julga loucas,
seu discurso se relaciona ao propósito da narrativa e de o vaidoso, os com mania de grandeza, outros com manias
seu tema. de discurso, o bajulador, a supersticiosa e a indecisa. Os
Como apontou Oliveira (2008), a finalidade de uma exageros de Simão Bacamarte desencadeiam a revolta
ilustração de livro não é apenas comentar o texto literário, das Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio. O barbeiro
mas também favorecer a criação de uma nova leitura da utiliza-se da revolta para tornar-se senhor de Itaguaí. Após
narrativa, interpretada pelo ilustrador. A ilustração abre conseguir seu intento, Porfírio reconhece a necessidade da
caminho para interpretações que o texto não proporciona, casa verde, deixando que o alienista continue seu estudo.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 39
invadem agressivamente o espaço ocupado por outras cores, o que podemos interpretar como uma
metáfora visual aos danos negativos causados durante toda a jornada do alienista. As manchas em preto
apresentam linhas conflitantes na horizontal, vertical e diagonal. Essas linhas se apresentam como se
tivessem sido produzidas em um acesso de fúria, que com velocidade espalhou a tinta sobre a superfície
do papel. O conflito das formas visuais pode adquirir um caráter metafórico em relação aos conflitos
gerados dentro da narrativa.
O marrom, segundo Pedrosa (2010), não existe enquanto luzes coloridas, por serem amarelos
sombrios. Na pintura, pode ser utilizado para rebaixar o tom das cores. Em heráldica, é visto como
sinônimo de penitência, sofrimento, aflição e humildade. O marrom, portanto, pode ser lido como uma
metáfora dos dramas terrenos e do sofrimento causado pela causa verde. O azul é descrito por Pedrosa
como a mais imaterial das cores, e nesse aspecto poderia ser relacionada a todo contexto de mistério
sobre a psique humana apresentada em O alienista. As manchas em azul são grosseiras, talvez denotando
a imperfeição da psique humana. O verde descrito por Pedrosa é uma cor contraditória, uma vez que
sua formação depende da junção de uma cor quente e de uma cor fria, do amarelo e do azul. Quando
a junção das duas cores atinge um perfeito equilíbrio, pode também, segundo Pedrosa, representar um
estado de calma. Também pode atingir o simbolismo de medicina e de esperança. Pela dualidade que o
verde permite, e pelo seu significado com a medicina, podemos ver que não por acaso a cor foi escolhida
por Machado de Assis para seu hospício. O verde não aparece na ilustração de Portinari; ao que parece, o
ilustrador tentou fugir da objetividade da palavra para fisgar o observador para subjetividade da imagem.
Vemos então, através da análise de O alienista, que o ilustrador que utiliza a composição de
elementos puros caracteriza seu assunto por meio do poder destes elementos de sugestionar símbolos e
ideias. Assim, a ilustração não é um delírio imaginativo do ilustrador, e muitas vezes não se refere ao que
o texto fala, mas ao que o texto sugere. Podemos também destacar que a obra de Portinari sem o texto
de Machado de Assis poderia adquirir outras interpretações.
A cor, o traço, as formas, os tons, as texturas e as manchas são elementos do design com os quais
trabalhamos para estruturar construções de imagens ilustrativas ou tipográficas. Estes elementos também
compõe o próprio objeto livro em sua materialidade, como, por exemplo, a cor, textura e transparência
do papel, seu formato e tamanho. Toda construção visual, seja figuras de personagens, cenários, tipos,
ou a própria materialidade do objeto livro, como a cor, a textura e a forma das folhas de papel, podem
absorver dos elementos do design sua capacidade de sugestionar símbolos. Sabendo das capacidades do
livro ilustrado, e das infinitas possibilidades da articulação dos elementos do design, muitos profissionais
ao longo da história exploraram seus recursos. Bruno Munari foi um destes profissionais, podendo ser
visto como uma referência no assunto.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 41
Na Figura 24 (ao lado), capa do livro Na noite escura (2007), de Munari, publicado
pela primeira vez em 1956, podemos ver como a cor pode sugestionar simbolicamente
tanto na figura do gato quanto na tipografia. O azul foi descrito por Pedrosa (2010) como a
cor mais escura dentre as primárias, tendo uma analogia com o preto e com a ausência de
luz. Por estas razões, o azul na pintura costuma ser utilizado como sombra. Embora mesmo
na mais escura das noites seja impossível vermos um gato azul, a simplificação de Munari
parece referir-se a como o azul se comporta na natureza misturando-se as outras cores no
ar atmosférico. Como o azul é visto como sombra, quanto mais escura a noite, mais azul,
teoricamente, teríamos no ambiente através do emprego de um tom azulado aos objetos.
Parece complexo explicar este tipo de código, mas, para os ilustradores, costuma ser uma
linguagem familiar. A figura do gato é, por si só, simbólica, já que é um animal que tem fama
noturna e por ser um animal doméstico, introduz que a história do livro irá acontecer em
um ambiente urbano.
Para analisarmos a tipografia do título do livro de Munari, devemos primeiro dizer
que quando falamos em texto, nos referimos ao texto escrito. Como definiu Santaella:
“Texto” é considerado como unidade complexa de significação de um nível superior à frase,
apresentando uma coesão que o distingue de uma mera soma de frases. Essa coesão não depende
da extensão, pois uma simples palavra já pode ser considerada como texto, dependendo da situação
(SANTAELLA, 2009, p.283)
O grande desafio dos designers e ilustradores de livros é que a palavra, quando
impressa na forma de registro de fala, perde sua expressividade. Entretanto, como nos
mostrou Santaella (2008), o espaçamento, os tamanhos, as cores e as formas da tipografia
possuem qualidades que podem vir a mimetizar a fala; desse modo, o texto é visto como
imagem. Assim, os profissionais trabalham com a exploração dos elementos do design na
tentativa de transformar os tipos na voz do texto. Ao buscar a expressão da voz através da
tipografia, o designer explora o lado emocional do leitor. Este tipo de abordagem é comum
nos livros ilustrados que tentam integrar o visual do texto com o visual das ilustrações. O
objetivo é que enquanto o leitor capta as emoções do design da imagem e dos tipos, também
absorve seu conteúdo. Visto a possibilidade dos aspectos emocionais que podem adquirir os
tipos, podemos analisar como pode ser lido o título da capa do livro de Munari. A tipografia
com corpo grosso poderia ser traduzida por uma voz grave, forte. Por ter características um Figura 24
Na noite escura
pouco agressivas principalmente nas pontas, poderíamos dizer que há distorções na voz que Bruno Munari
buscam causar terror e medo sobre o tema: a noite escura. O azul parece valorizar o tom Livro ilustrado, 1956
noturno na voz, que surge da ausência de luz e do silêncio que o preto proporciona. Fonte: MUNARI, 2007.
42 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O livro de Munari possui três cenários por onde se desenrola transparência do papel vegetal para descrever uma manhã nublada.
a narrativa. O primeiro é um ambiente urbano, onde transitam Assim, por meio das sobreposições de transparência do papel, temos
gatos e ratos. Na Figura 25 (abaixo), vemos manchas que descrevem a sensação de profundidade. Podemos ver através das páginas as
três mágicos e um palhaço tentando equilibrar três escadas. Ainda imagens das páginas seguintes em um tom esmaecido, leitoso,
utilizando-se do par preto e azul, Munari também recorre ao recurso como a distorção de uma neblina. O efeito pode ser visto como uma
de um recorte circular no meio das páginas para sugerir a existência metáfora visual que busca, no passar das páginas, nos aproximar
de uma luzinha bem longe. Deste modo, ao passar das páginas, da sensação de estar caminhando no meio do mato pela neblina.
temos a impressão de estarmos nos aproximando desta luzinha. Ao virarmos as páginas, podemos ter a sensação de estarmos nos
O segundo cenário apresenta o nascer do dia em meio aproximando cada vez mais dos animais que são apresentados pelo
à relva. Na Figura 26 (abaixo), podemos ver que Munari utiliza a texto, e que outrora estavam nublados pelo efeito da transparência.
Figura 25 Figura 26
Na noite escura Na noite escura
Bruno Munari Bruno Munari
Livro ilustrado, 1956 Livro ilustrado, 1956
Fonte: MUNARI, 2007, p.15 Fonte: MUNARI, 2007, p.21
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 43
Figura 31
Peter Pan
Robert Sabuda
Livro pop-up, 2009
Fonte: SABUDA, 2009.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 47
Muitas vezes, os livros ilustrados agregam em sua narrativa elementos, recursos e soluções visuais aplicados em outras áreas
como a história em quadrinhos, o cinema, a arte e a fotografia. Troula (2008) comenta que a dinâmica também é frequente nas histórias
em quadrinhos americanas de super-heróis. Naturalmente, os livros ilustrados podem assemelhar-se as histórias em quadrinhos. Basta
dizer que em ambos os casos presenciamos o desenrolar de uma narrativa que acontece a partir de uma intrínseca relação entre texto
e imagem. Linden (2011) comenta que, muito embora hajam páginas de livros ilustrados muito semelhantes às páginas dos quadrinhos,
o livro ilustrado possui algumas especificidades, tais como: imagens maiores em tamanho e quantidade, e imagens mais subordinadas
ao movimento de passagem das páginas, sendo a compartimentação do espaço menos importante do que nas histórias em quadrinhos.
Como exemplo da afirmação de Linden, podemos ver na Figura 32 (abaixo), Os lobos dentro das paredes (2006), de Dave Mckean.
Figura 32
Os lobos dentro das paredes
Neil Gaiman (escritor)
Dave Mckean (ilustrador)
Livro ilustrado, 2006
Fonte: GAIMAN, 2006.
48 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O design do livro ilustrado, por toda complexidade de organização de uma narrativa visual, pode ser
visto como um problema de montagem. A montagem, como comenta Xavier (2005), é um termo utilizado no
cinema, em que são filmadas pequenas unidades sequenciais do filme, chamadas de planos. Um plano é cada
tomada de cena, um segmento contínuo da imagem filmada. Após a filmagem dos planos, é feita a montagem,
ou seja, o encadeamento dos planos. A montagem implica em uma descontinuidade, já que ocorrem cortes
para junção dos planos. Mediante uma montagem com continuidade lógica coerente, a sucessão de eventos
e cenas é compreendida por meio das convenções. O termo plano também é usado para referir-se ao ponto
de vista em relação ao objeto filmado. No caso do cinema, o ponto de vista está posicionado no foco da
câmera. Nesse sentido de utilização do termo plano, é comum o uso de quatro termos técnicos para referir-se
ao ponto de vista do observador da imagem. São eles: plano geral, plano médio, plano americano e primeiro
plano ou close. O plano geral acontece em cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos; a câmera
toma posição de modo a mostrar todo o espaço da ação. O plano médio é principalmente utilizado em
interiores onde a câmera procura mostrar um conjunto de elementos envolvidos na ação. A diferença entre o
plano médio e o plano geral é que o primeiro abrange um campo de visual menor. O plano americano acontece
quando as figuras humanas são mostradas até a cintura aproximadamente, por estarem mais próximas da
câmera. O primeiro plano também é chamado de close; nesse caso, a câmera está bem próxima da figura
humana, exibindo apenas o rosto ou um detalhe. Refere-se também ao maior detalhamento de objetos.
50 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Diferente do cinema, O livro ilustrado de movimento e de tempo de duração nas O segundo uso, que iremos nos ocupar agora,
não possui nenhuma maneira direta de ilustrações. Também se pressupõe que as refere-se à moldura como borda da imagem
retratar o fluxo de tempo, mas compartilha lacunas entre uma imagem e outra possam ou do suporte, o seu limite. A moldura é o
de sua descontinuidade e cortes de cena. ser completadas pela imaginação dos leitores. que separa a imagem do que esta fora dela.
Cada ilustração, como imagem fixa, presa a O encadeamento dos instantes congelados Aparece como metáfora de uma janela que
um suporte, capta um instante congelado, na ilustração podem sugerir o tempo que se abre para um mundo fictício, imaginário.
que possui seu tempo de duração sugerido. se passou entre uma cena e outra, embora, No design do livro ilustrado, delimitar a
As imagens se utilizam de convenções para muitas vezes, seja necessária a intervenção moldura da imagem pode implicar em
representar a passagem de tempo. Portanto, é do texto para situar o leitor no tempo fictício. fazer escolhas sobre o formato do livro ou
importante estabelecer que quando falamos Em um outro caso, as ilustrações podem não na divisão do espaço da página. Dentro
em imagens sequenciais no livro ilustrado, possuir uma linearidade de conjunto sugerida, destas possibilidades há uma grande gama
estamos cientes dos cortes que ocorrem por retratarem eventos que acontecem de escolhas de formas e tamanhos da
entre uma imagem e outra. O que acontece em lugares diferentes, com personagens moldura. Tais escolhas costumam interferir
nas imagens sequenciais do livro ilustrado é diferentes. Ou, ainda, ao abrir espaço para na interpretação da imagem. Por exemplo,
que sua contiguidade é compreendida por um discurso poético, as ilustrações possuem um formato longo em proporção horizontal
meio das convenções estabelecidas pela mais uma ligação plástica e estética do que pode facilitar a composição de uma imagem
leitura da imagem estática. Por exemplo, narrativa. Nesses casos, a presença do texto que descreva a passagem de um tempo
se o personagem aparece em cima de uma torna-se imprescindível para uma montagem longo, ou uma vista panorâmica de um
árvore, podemos pressupor o curto espaço com coerência. Assim, o design de uma ambiente. Entretanto, apenas a dimensão
de tempo que a ação leva para acontecer, montagem coerente com continuidade e a forma da moldura não expressam a
porque sabemos que, por convenção, o lógica é um dos elementos fundamentais do passagem do tempo. A composição dos
tempo que se leva para subir em uma árvore. livro ilustrado. elementos e a criação de símbolos dentro da
O cenário também pode ser um O design da ilustração é influenciado moldura é o que guia o leitor a compreender
fator que demonstra a passagem do tempo, por uma moldura. Como demonstrou o tempo fictício por meio das convenções.
apresentando indícios como o nascer do dia Aumont (2002), o termo moldura pode Assim, o design do formato e composição
e o anoitecer. O crescimento da criança, o ter dois usos. O primeiro uso se refere às da ilustração caminham juntos. Decidir um
envelhecimento dos adultos, tudo isso pode molduras decorativas, que emolduram e formato para o livro ou para a moldura da
demonstrar passagem de tempo, de curtos adornam imagens, quadros, espelhos etc. imagem, consequentemente, restringe as
ou longos de períodos. Portanto, o design do Este caso é detalhado a seguir, no tópico 2.4 escolhas do design da ilustração.
livro ilustrado tenta transmitir uma sensação Ilustração ornamental narrativa, página 81.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 51
No livro ilustrado, as ilustrações que possuem a função de narrar a partir da interação com o texto
são chamadas de ilustração narrativa. O termo ilustração narrativa foi empregado por Gombrich (2007),
e embora o autor não expresse uma definição do termo, fica claro que ele refere-se às obras que contam
uma história por meio de imagens.
Oliveira define o gênero e diz que a ilustração narrativa está sempre associada a um texto literário.
Segundo Oliveira (2008, p.44), o que fundamentalmente caracteriza a ilustração narrativa “são o narrar e
o descrever histórias através de imagens, o que não significa em hipótese alguma uma tradução visual do
texto. A ilustração começa no ponto em que o alcance literário do texto termina, e vice-versa”.
Segundo Santaella (2009), a narrativa acontece pelo registro linguístico de eventos ou situações
por meio da contiguidade linear ou não linear de fatos narrados, o que implica em um narrador e um
leitor. A realização de ações determina a existência de personagens. Nos livros ilustrados, os personagens
podem ser pessoas, objetos, animais, criaturas mitológicas, monstros etc. Ao abrir espaço para o poético,
os personagens podem ser até mesmo sentimentos e cores.
Para desenvolver discursos tão rebuscados, a ilustração narrativa precisa interagir com o texto.
Segundo Linden (2011), texto e imagem podem ter três tipos de relacionamento narrativo: redundância,
colaboração e disjunção. A redundância acontece quando a ilustração tenta reproduzir a mensagem do
texto. Embora a total redundância entre texto e imagem seja impossível, já que pertencem a linguagens
distintas. Linden (2011, p.120) comenta que a redundância “se refere à congruência do discurso, o que
não impede, por exemplo, que a imagem forneça detalhes sobre os cenários ou desenvolva um discurso
estético específico”. A colaboração acontece quando texto e imagem colaboram unindo na narrativa
as forças e fraquezas próprias de cada código. E a disjunção ocorre quando há uma disjunção entre o
conteúdo do texto e da imagem. A autora afirma que, quando há disjunção, podem existir duas linhas
narrativas paralelas. A relação entre texto e imagem podem ser mantida ou alterada ao longo da narrativa.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 53
Figura 33
Flicts
Ziraldo
Livro ilustrado, 1969
Fonte: ZIRALDO, 2005, p.5.
54 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 34
Flicts
Ziraldo
Livro ilustrado, 1969
Fonte: ZIRALDO, 2005, p.14
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 55
Figura 35
Flicts
Ziraldo
Livro ilustrado, 1969
Fonte: ZIRALDO, 2005, p.37.
Na Figura 35 (acima), o texto diz: “UM DIA FLICTS PAROU / e parou de procurar” (ZIRALDO, 2005,
p.37). O texto em caixa alta busca imitar a ênfase da fala, praticamente um grito. A ilustração nos apresenta
uma barra da cor Flicts, podendo ser visto como uma metáfora visual que pretende descrever o repouso da
forma. A relação entre texto e imagem é de redundância, já que a ilustração tenta reproduzir a mensagem do
texto. A ilustração entre duas frases do texto parece representar uma pausa no meio delas. Assim, o design
da página do livro ilustrado, além de preocupar-se em criar uma organização coerente e estética entre o texto
e imagem, pode buscar relações com a sonoridade da fala e com o ritmo e de leitura.
56 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 38
A dona da festa
Elisa Lucinda (escritora)
Graça Lima (ilustradora)
Livro ilustrado, 2011
Fonte: LUCINDA, 2011, p.10 – 11.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 59
No livro A rainha das cores (2003), de Jutta Bauer, a da rainha das cores que invoca as cores ao seu bel prazer, até
ilustração de capa, na Figura 39 (abaixo), é uma variação de que as cores se revoltam contra o mau humor da rainha e tudo
uma ilustração do final da narrativa. Ela apresenta a rainha ao redor dela se torna cinza. A reviravolta acontece quando a
das cores em todo seu esplendor, portanto, a capa antecipa o rainha das cores se arrepende e começa a chorar cada lágrima
desfecho da história. A ilustração passa pelo lombo do livro e de uma cor, e tudo volta a ser colorido; então ela começa a
se estende da capa até a quarta capa. O livro conta a história jorrar cor e alegria por todos os lados da página.
Figura 39
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: Bauer, 2003.
60 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O texto de A rainha da das cores é caracterizado sempre pela voz acompanha o texto mostra a rainha galopando no cavalo vermelho. A
do narrador, que conta a história de cada uma das peripécias da rainha ao relação de redundância entre o texto e a imagem se mantém durante todo
invocar as cores. Na Figura 40 (abaixo), do lado esquerdo da página dupla, o livro, o que ocasiona uma leitura uniforme, sem grandes surpresas. Há
temos no texto de Bauer (2003, p.12): “Ela ordenou que ele virasse um pouco espaço para dúvida ou questionamento sobre a relação entre o
cavalo”. E na ilustração temos a rainha das cores ordenando o vermelho texto e a imagem. Embora sem surpresas, o ritmo de leitura de A rainha
a virar um cavalo. Em seguida, do lado direito da dupla, temos o texto das cores é bem ligeiro devido à diagramação associativa que reúne uma
de Bauer (2003, p.13): “e assim galoparam pelo reino”. A ilustração que ilustração e textos curtos em cada página.
Figura 40
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p.12- 13.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 61
Figura 41
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p. 16- 17.
Figura 42
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p.34 - 35
62 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
As ilustrações de A rainha das cores possuem uma ganham grande impacto visual. Na sequência de imagens
grande variedade enquadramentos. Na capa, Figura 39 das Figuras 43, 44 e 45 (abaixo), as composições em plano
(acima), temos um plano geral. Ao abrir espaço para o geral mostram a rainha das cores percorrendo um grande
cenário, reforça-se a ideia de amplitude, grandiosidade e espaço e espalhando cores para todos os lados. A amplitude
o poder da rainha das cores. Na Figura 40 (acima), tanto do plano geral enfatiza o quão longe o poder da rainha com
na página da esquerda quanto da direita, temos duas as cores pode ir. As imagens sangradas intensificam o efeito
composições em plano médio, que gera ao leitor a sensação de que os poderes da rainha podem saltar para fora do
de distanciamento do acontecimento para que ele possa enquadramento da ilustração ou do universo fictício.
julgar as ações da rainha. Na Figura 41 (acima), temos um A montagem de A rainha das cores acontece por
plano médio que, unido à expressão corporal da rainha, meio de uma sequência de ilustrações. As lacunas entre
aumenta o efeito dramático da cena. Na Figura 42 (acima), uma ilustração e outra são preenchidas pela imaginação
temos, no lado esquerdo da dupla, um close no rosto da do leitor. Os eventos se desenvolvem linearmente, sendo
rainha. Ao ampliar o tamanho da personagem dentro da o texto auxiliar no desenvolvimento deste tempo narrativo.
página, altera-se a relação de espaço entre o observador e a Auxiliar, porque as ilustrações são suficientes para
imagem, o que, nesse caso, aumenta o impacto emocional compreensão da trama narrativa, e, ao tornar os eventos
da descrição das lágrimas da rainha. Do lado direito, ainda e personagens presentes, a ilustração descreve muito mais
na Figura 42, temos uma espécie de plano geral. O ilustrador detalhes que o texto escrito.
utilizou o recurso de esvaziar o fundo ao redor da rainha Podemos perceber mediante a análise de Flicts
para dar amplitude a cena, enfatizando a sensação de vazio, (2005), A dona da Festa (2011) e A rainha das cores (2003)
solidão e desamparo da rainha. que, no design da ilustração, o ilustrador trabalha na criação
No momento da reviravolta da narrativa, quando a de relações entre o texto e a imagem que acontecem
rainha das cores recupera seu reinado, o texto desaparece em diferentes níveis. Ao trabalhar no espaço da página,
e a ilustração dá sequência à narrativa, como podemos ver o ilustrador pode separar ou unir o texto e a imagem no
nas Figuras 43, 44 e 45 (abaixo). Esse recurso de desaparecer mesmo espaço. Ao trabalhar no significado das mensagens
com o texto é comum em alguns livros ilustrados, porém do texto e da imagem, o ilustrador por criar redundância,
não é por isso que as ilustrações não possuem relação com colaboração ou disjunção na montagem dos enunciados
o texto. Em um todo narrativo, as ilustrações continuam verbais e visuais. O design coerente das informações verbais
sendo elementos ligados a um texto, mesmo que este e visuais é o que dá fruição à narrativa. No próximo tópico
tenha ficado nas páginas anteriores ou apareça nas páginas veremos como o ilustrador trabalha no design da ilustração
seguintes. Com este recurso, busca-se favorecer o impacto escolhendo os elementos de cenário e personagens, além
de um momento da narrativa por meio das ilustrações. do momento que deve ser ilustrado, para causar impacto
O formato do livro é de 21x14 centímetros; aberto, visual e instigar a imaginação do leitor.
o livro ganha a dimensão de 42x14 centímetros. Com
essa amplitude longilínea, as composições em plano geral
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 63
Figura 43
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p.48-49.
Figura 44
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p.50-51.
Figura 45
A rainha das cores
Jutta Bauer
Livro ilustrado, 2003
Fonte: BAUER, 2003, p.52 – 53.
64 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Flusser (2007) aborda dois tipos de processos de leitura, Assim, a partir da citação de Flusser e dos argumentos
um por linha e outro por superfície. A linha refere-se ao de Loomis, podemos conceber que a linha é um elemento
processo da leitura do texto; enquanto a superfície refere-se à importante não apenas na leitura dos textos, mas faz parte
leitura das imagens. O autor exemplifica o processo dizendo que de uma noção de processo, de continuidade. O design do
precisamos seguir o texto se quisermos captar a mensagem, livro ilustrado é pensado dentro da pressuposição de uma
enquanto na pintura podemos apreender a mensagem primeiro linearidade na leitura. Podemos até abrir o livro e começar
e, depois, tentar decompô-la. Flusser (2007, p.105) comenta a folhear as páginas sem nenhuma linearidade. Entretanto,
que essa é “a diferença entre a linha de uma só dimensão e a narrativa do livro ilustrado acontece por meio da sucessão
a superfície de duas dimensões: uma almeja chegar a algum linear da passagem de páginas, que tem seu início na capa e
lugar e outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou”. seu encerramento na quarta capa.
Segundo Loomis (1947), o ilustrador se utiliza do poder da linha O tempo da narrativa é um elemento complexo e
para criar um caminho para o olhar do observador, guiando-o importantíssimo no design do livro ilustrado. Primeiro, temos
até o ponto focal, o ponto de maior interesse da ação narrativa. o tempo de leitura entre o texto e a imagem, que é pessoal,
Loomis ainda argumenta que o design desta organização de assim como o tempo que o leitor emprega em cada página
elementos é o que favorece a imagem atingir seu objetivo. Para e no passar de páginas. Em processo de alfabetização, uma
Flusser, a linha: criança pode demorar mais tempo para ler o texto escrito. O
arranca as coisas da cena para ordená-las novamente, ou seja, leitor também tem o controle do tempo que irá empreender
para contá-las, calculá-las. Ela desenrola a cena e a transforma em na leitura da imagem. Além do tempo de leitura, temos o
uma narrativa. Ela “explica” a cena na medida em que enumera
clara e distintamente (clara ET distincta perceptio) cada símbolo tempo fictício. Como comenta Linden (2011, p.116) no design
isolado. Por isso a linha (o “texto”) significa não a circunstância do livro ilustrado, tenta-se “fazer com que o tempo da leitura
diretamente mas a cena da imagem, que, por sua vez, significa a coincida com tempo fictício”. Por meio das relações entre texto
“circunstância concreta”. Os textos são um desenvolvimento das e imagem, tenta-se criar um ritmo de leitura similar ao ritmo
imagens e seus símbolos não indicam algo diretamente concreto, dos acontecimentos das cenas.
mas sim imagens. São “conceitos” que significam “idéias”
(FLUSSER, 2007, p.132).
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 65
Para comunicar a noção de tempo, a ilustração costuma Thapa Kunturi (2007) é do escritor e ilustrador Gonzalo
alternar na representação de instantes que sugerem ritmos Cárcamo. Como aponta Cárcamo (2007), é um conto situado na época
diferentes de leitura, como o instante qualquer, o instante movimento pré-hispânica, ou pré-colombiana, antes do chamado descobrimento
e o instante capital. Esses três tipos de instantes representados na da América por Cristovão Colombo, em 1492. A narrativa é sobre o
ilustração foram abordados por Linden (2011). A ilustração de um menino Wuayna Chacha e sua lhama de estimação, Wintata. Certo
instante qualquer é caracterizada pela ideia de desenvolvimento dia, perambulando pelas montanhas, Wuayna salvou um filhote
de tempo lento, relacionada mais a descrição de uma situação do de condor das garras de um gato montês. O menino então adota
que à figuração de uma ação. O instante qualquer, assim, parece o pássaro como novo animal de estimação e o chama de Khuna.
ser pinçado de um evento casual. O instante movimento figura o Em um determinado dia, durante um passeio de barco, a mãe do
momento característico de uma ação completa. Somos sugestionados filhote de condor aparece e em um instante toma seu filhote de
a imaginar o que aconteceu para que os personagens chegassem ao volta e o leva para longe. O texto narra que durante muito tempo
momento apresentado e podemos também imaginar um desfecho o menino se sentiu deprimido perante o episódio e tentou chegar
ou continuidade para o conflito criado nas cenas. O instante capital ao topo da montanha na esperança de reencontrar Khuna. Um
condensa a essência de um acontecimento, concentrando todas dia, andando pela montanha, o menino avista uma caverna onde
as características necessárias para sua compreensão. Uma das encontra uma relíquia dourada. Wuayna leva a relíquia para aldeia,
características do instante capital é a justaposição de uma série de onde os adultos ficam temerosos pelo mau agouro que a relíquia
fragmentos de eventos e ações em uma única imagem, o que resulta pode trazer para tribo. Os adultos decidem que o menino deve ir até
em um ritmo denso e complexo. Assim, a narrativa costuma alternar o bruxo da aldeia vizinha, para decifrar a estranha relíquia, e, assim,
entre ritmos de leitura mais ágeis e outros mais lentos. O ritmo, ele parte em nova jornada.
portanto, é um elemento fundamental no design da ilustração e no Ir até a aldeia vizinha implicava em seguir viajem por um
encadeamento de páginas. caminho estreito chamado Thapa Kunturi. Situado no ponto mais
Para o ilustrador, a composição dos elementos na página não alto da montanha, o caminho era à beira do precipício e não havia
é apenas uma preocupação estética, sua função é, principalmente, espaço para manobras que o capacitasse retroceder depois de
transmitir claramente a intencionalidade da história, criar um ritmo iniciado o trajeto. É quando o menino encontra um homem hostil
de leitura, gerar interesse pelas ilustrações e apreensão na narrativa. vindo em direção oposta. Então, o impiedoso homem tira uma
Portanto, o design da página no livro ilustrado está diretamente moeda e disputa o jogo de cara ou coroa com o menino, que perde.
relacionado ao ato de contar histórias. Na criação deste ritmo de Nesse momento, o homem aponta uma lança para Wuayna, que
leitura, o uso da ilustração pode ser visto como uma pausa no texto, se vê a beira da morte, sendo obrigado a retroceder o passo, o que
como demonstrou Nikolajeva (2011). Enquanto a leitura linear do o leva à beira do abismo. É então que um condor que espreitava a
texto nos emprega a noção de processo e incentiva a proceder, a cena intercepta o menino e sua lhama no ar, salvando-os da morte
imagem no convida a interromper uma linearidade. Devemos, certa. A história termina sem uma explicação clara, não sabemos
porém, perceber que a linha aparece na imagem narrativa como qual condor salvou a vida do menino, a mãe condor, ou seu antigo
noção de processo de leitura. Poderemos ver como a linha guia a animal de estimação que já havia crescido.
leitura na imagem por meio da análise de Thapa Kunturi.
66 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 46
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.12 – 13.
Figura 47
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Marcação de planos por meio de
vetores, sobre a página do livro
ilustrado, 2011
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.12 – 13.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 67
Figura 48
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.24 – 25.
Figura 49
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Marcação de planos e linhas de
força, sobre a página do livro
ilustrado, 2011
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.24 – 25.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 69
O texto de Cárcamo, com muitas descrições, sugere lirismo com linhas temporais que se
desenvolvem em longas ondulações. O livro fechado possui a medida de 28,5 x 21,5 centímetros,
atingindo 57 x 21,5 centímetros quando aberto. Este formato longilíneo sugere uma passagem de
tempo lenta; já do ponto de vista dramático, o tempo da ilustração parece lírico, assim como o texto.
Desse modo, texto e imagem compartilham desta sensação. Embora o tamanho do livro seja bem
grande em relação às mãos para manuseá-lo, os personagens são sempre vistos de longe, sendo
miniaturas comparadas ao tamanho e pessoas reais. Este fator nos dá a sensação de posse das
imagens e transmite uma separação entre a amplitude do nosso mundo e a amplitude do universo
do personagem. A moldura em branco separa o texto da ilustração em dois níveis de leitura distintos,
e também pode ser visto como uma metáfora visual, que separa o nosso universo do universo fictício.
Toda essa distância criada pelo tamanho da imagem e da colocação da moldura é dissipada quando
nos deixamos levar pela ficção, pela imaginação. A moldura, portanto, convida o leitor a entrar no
universo fictício, enquanto as imagens sangradas sugerem que o universo fictício esta saindo do livro.
Na Figura 48 (acima), vemos o momento em que a mãe condor aparece para recuperar o seu
filhote. A captura de uma ação em movimento caracteriza a representação de um instante movimento,
que cria impacto visual e acelera o ritmo da narrativa visual. O ponto de vista localizado no alto
aumenta o apelo dramático da cena de separação inevitável entre Wuayna e Khuna. Ao distanciar o
foco de Wuayna, o ilustrador expressa que ele está em segundo plano na cena; ele não é o foco neste
momento. O condor saindo da moldura da imagem enfatiza a mensagem de que o amigo Khuna está
longe do alcance de Wuayna. Na Figura 49 (acima), podemos ver as marcações das linhas de força
que guiam o olhar. A leitura ocidental segue da esquerda da direita, de cima para baixo. Sabendo
disso, o ilustrador usou no canto superior esquerdo da página o capim dourado, como elemento que
aponta em direção ao ponto focal. Podemos ver isso na marcação em vermelho. A marcação em verde
mostra que a imagem permite mais de um caminho até o ponto focal; entretanto, todas as linhas de
força guiam para o mesmo ponto de interesse. Tantas linhas confluindo para um mesmo ponto de
interesse buscam enfatizar que estamos diante de um momento de importância fundamental para
compreensão da narrativa. Assim, podemos perceber que a linha é capaz de criar diferentes ritmos
de leitura dentro da imagem, os quais podem expressar as tensões da narrativa.
70 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 50
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.34 – 35.
Figura 51
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Marcação de justaposição de
acontecimentos sobre o livro
ilustrado, 2011
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.34 – 35.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 71
Na Figura 50 (acima), temos a ilustração do momento com a sugestão do que vemos do que a representação
em que a tribo se reúne para decidir o que irão fazer com tal qual vemos no mundo real. Segundo Oliveira (2008,
a relíquia trazida por Wuayna Chacha. A justaposição de p.118), “o desenho tem como função tornar perceptíveis
uma grande variedade de acontecimentos simultâneos os objetos, e não dar formas acabadas a eles”. Gombrich
caracteriza um instante capital. Neste tipo de ilustração, (2007) demonstra que a sugestão abre muito mais portas
vários eventos parecem pinçados da linha temporal e são para a imaginação, uma vez que preferimos ajustarmos
apresentados ao leitor, que é exposto a complexidade de nossas expectativas para usufruir do ato de adivinhar, de
eventos daquele momento da narrativa. projetar. Para Gombrich (2007, p.326), “racionalizamos essa
Na Figura 51 (acima), podemos ver que há uma preferência, pretendendo que o desenho deva estar mais
separação de núcleos de pessoas reunidas. O núcleo 1 pode próximo daquilo que o artista viu e daquilo que sentiu do
ser definido como o foco principal de atenção. O núcleo 2 que a obra acabada”. Assim, podemos pensar que o ato de
está observando atentamente o núcleo 1. O núcleo 3 sugere estruturar satisfatoriamente a figura humana e representar
uma conversa paralela ao evento do grupo 1 e 2. O núcleo cenários não são o suficiente para uma boa ilustração,
4 parece estar mais distante do evento, aparenta uma é preciso, antes de tudo, que a ilustração estimule a
conversa paralela entre as mulheres da aldeia. O núcleo imaginação. Independente da técnica ou do suporte de
5 é composto pela sonolenta lhama distante dos eventos. produção da imagem, a ilustração, ao representar deve
Podemos notar também que o olhar e o posicionamento buscar convidar o observador para uma visão de um mundo
dos corpos dos personagens sugerem o direcionamento imaginário, ao invés de trazer ao observador uma visão do
de uma linha que guia o olhar do observador sempre em mundo real. Como comentou Oliveira (2008, p.118), sempre
direção do ponto focal. “é visível na obra dos grandes ilustradores uma membrana
O design da ilustração do livro ilustrado é construído de ilusão envolvendo o representado”.
com a intenção de despertar a imaginação. Flusser (2007), No design da ilustração é possível criar diferentes
ao tentar explicar a imaginação por meio de linhas e relações entre texto e imagem para estimular a imaginação
superfície, definiu dois tipos de ficção: a imagética e a do leitor. A ilustração pode adiantar cenas que o texto
conceitual. Segundo Flusser, a ficção imagética relaciona- não narrou, fazendo com que o leitor imagine como os
se com os fatos de um modo subjetivo e inconsciente, e personagens chegaram ao conflito apresentado pela
a ficção conceitual faz o mesmo de maneira objetiva e imagem. É possível também trazer ilustrações de cenas já
consciente. A ilustração narrativa, portanto, utiliza-se da narradas pelo texto para criar novas dúvidas. Quando a
criação de símbolos para comunicar fatos. Ao deparar- ilustração trabalha com a dúvida, pode promover muito
se com a imagem, o observador, mediante um repertório mais riqueza à imaginação do que quando ilustra uma
de convenções, decodifica esta imagem subjetivamente. redundância do texto. Ao esconder personagens e objetos
Essa subjetividade pode ser explorada na imagem, com nas sombras, o ilustrador pode explorar o campo da dúvida,
intuito de despertar a imaginação do leitor. E este parece pode projetar sua própria visão das coisas.
ser um dos grandes trunfos da ilustração ao trabalhar mais
72 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 52
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.42 – 43.
As sombras podem ser utilizadas como um recurso visual para criar homem. A neblina e a luz do sol que ofuscam a nossa visão, escondendo
suspense, e é o que acontece em Thapa Kunturi, quando o menino Wuayna o homem ameaçador nas sombras, são efeitos visuais que criam um
Chacha encontra um homem misterioso que o incita a pular no precipício. ambiente de dúvida, de imaginação. Nikolajeva comenta que enquanto:
Na Figura 52 (acima), vemos o menino, sua lhama e o homem montado o narrador verbal força o leitor a “ver” certos detalhes do cenário, ao
no touro, no fundo. O texto de Cárcamo (2007, p.42), que descreve o mesmo tempo que ignora outros. A representação visual do cenário é
homem, somente diz: “o homem de aspecto hostil lhe dirigiu algumas “inanarrada” e, por isso, não manipuladora, dando ao leitor considerável
palavras incompreensíveis com uma voz cavernosa”. Ao esconder a figura liberdade de interpretação (NIKOLAJEVA, 2011, p.85).
do homem nas sombras, o ilustrador promove a imaginação, uma vez que Podemos, então, pensar que, embora a ilustração seja capaz de
sentimos mais medo do desconhecido e do que podemos imaginar do que sugestionar o clima de tensão, também é capaz de deixar o leitor livre para
se víssemos a figura do homem. Ao esconder uma imagem nas sombras, tirar conclusões subjetivas sobre o cenário. No cenário também podem
o ilustrador força o leitor a questionar-se sobre o que esta vendo. O leitor, ser criadas metáforas visuais que visam reforçar a personalidade de algum
então, busca respostas no texto ou completa as lacunas com a imaginação. personagem ou a tensão do clima. É o caso do trovão sobre a cabeça do
Devemos perceber que nesta ilustração o que está em pauta não é apenas homem no plano de fundo da Figura 52 (acima), que parece sugestionar
o jogo de luz e sombras, mas também toda ambientação do cenário. O a agressividade da personalidade do homem. Portanto, no design da
cenário desfavorável é o que catalisa o impasse entre Wuayna Chacha e o ilustração narrativa, o cenário é um importante elemento na construção
da ambientação do clima e das emoções do momento narrativo.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 73
De fato, o cenário parece substancial para todo desenvolvimento construção diferentes. Também podemos observar que as casas foram
do discurso narrativo de Thapa Kunturi. Ao descrever as dificuldades construídas na beira do lago. O texto fala que a aldeia localizava-se
do clima de uma região, também nos apresenta características típicas nas margens do lago Titicaca. Enquanto o texto confere nomes às
de uma determinada época. Na Figura 53 (abaixo), podemos visualizar descrições, a imagem apresenta cores e sensações instantaneamente.
toda descrição da aldeia de Wuayna Chacha. Podemos acompanhar A ambientação também colabora para a caracterização dos
por toda a ilustração um dia típico do cotidiano da aldeia, perceber personagens. Ao sabermos onde o personagem mora e com que
como as pessoas se vestem, se comportam, se movimentam, formam tipo de pessoas e situações ele se relaciona, começamos a imaginar
grupos, como constroem suas casas. A casa de pedra no topo da colina características possíveis de sua personalidade.
cercada de casas de palha demonstra o domínio de duas técnicas de
Figura 53
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2011
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.10 – 11.
74 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 54
Thapa Kunturi
Gonzalo Cárcamo
Livro ilustrado, 2011
Fonte: CÁRCAMO, 2007, p.20 – 21.
Quando trabalha no design dos personagens sugere que ele é carismático, já que as pessoas parecem
de uma narrativa, o ilustrador está trabalhando na prestar atenção no garoto. Devemos atentar que os
caracterização. Como comenta Loomis (1947), o eventos em que o personagem se envolve, bem como
ilustrador trabalha com fatos, por exemplo, o modo como suas ações, são um campo de indícios de sua descrição.
o menino de uma aldeia Inca deve vestir, movimentar, e Ao captar esses indícios, o leitor deverá fazer seu
a dimensão de seu psicológico. Embora haja pesquisa julgamento subjetivo sobre os personagens.
e referências históricas para o ilustrador realizar seu Através da análise de Thapa Kunturi, pudemos
trabalho, sua criação é voltada principalmente para os notar que explorar os potenciais próprios de cada
propósitos da narrativa ficcional. Na Figura 54 (acima), linguagem, visual e verbal, bem como a interação de
podemos ver o menino Wuayna Chacha. Olhando ambas, está na essência do design da ilustração. A
para sua figura, podemos perceber características dos relação entre palavra e imagem é construída quando
seus aspectos físicos e até psicológicos. Mediante a o ilustrador organiza e estrutura os elementos
linguagem corporal, conseguimos notar que ele é ágil, representados. Também quando escolhe os instantes
tem equilíbrio e é disposto. As roupas o caracterizam representados na ilustração, quando cria efeitos visuais
como membro de sua tribo, já que a maioria das que tenham relações com a sensação expressa na
pessoas ao seu redor está trajando roupas semelhantes. linguagem verbal e quando cria um projeto gráfico ou o
A linguagem corporal dos outros habitantes da tribo design da página.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 75
Flusser (2007) comenta que a imaginação costuma ser compreendida como uma faculdade humana que
se manifesta como um gesto com o qual o homem se posiciona em seu ambiente mediante a criação de imagens
mentais eventualmente exteriorizáveis. Flusser (2007, p.161) define que imaginação, “é a singular capacidade de
distanciamento do mundo dos objetos e de recuo para a subjetividade própria, é a capacidade de se tornar sujeito
de um mundo objetivo”. Isso demonstra que, na produção de imagens, o homem pode partir deste processo de
distanciamento, de imaginação. Ao entrar em contato com imagens, um observador terá de intersubjetiva-las, ou
seja, a imaginação é parte do processo de interpretação das imagens, compreendidas de maneira subjetiva. Vemos,
então, que o ilustrador expõe sua subjetividade, a qual também é interpretada de forma subjetiva.
O ilustrador, independente da técnica ou do uso de materiais, quando cria uma forma de representar
personagens e cenários, não se limita a imitar o que está vendo. A ilustração, para representar, precisa manter certas
semelhanças com seus referentes. Entretanto, a invenção da representação visual acontece não do aprendizado do
artista em imitar o objeto a ser representado, mas da descoberta de uma forma de representação, de um conceito
imaginado pelo artista, como demonstrou Arnheim (2008). Podemos conceber, portanto, que por meio da exploração
dos elementos dos elementos do design, da observação do mundo e de um processo de interiorização abstrativa, o
ilustrador busca um conceito de representação visual. Uma ideia capaz de manter conexão com o mundo visível e com
as convenções e estereótipos armazenados pelo seu público, mas que ao mesmo tempo expresse sua subjetividade
e instigue a imaginação dos observadores. Portanto, podemos pensar que o design da ilustração implica na criação
de um design de mundos imaginários que ambienta e pode construir novos significados entre a narrativa visual e
textual. Esta discussão pode nos levar a questão do estilo.
76 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O termo é definido por Lessa (2005, p.1): “Um ilustrador, mas que torna-se difícil discutir a questão
estilo é, genericamente, definido a partir da busca do estilo histórico e orgânico dentro da ilustração,
de regularidades e constantes, seja nas obras de um assim como muitas vezes fazemos com a história da
grupo de indivíduos, seja na de um único indivíduo”. pintura, das artes e da arquitetura.
Segundo o autor, as regularidades encontradas e Pela carga histórica que a palavra estilo pode
aplicadas na categorização de estilos de época ou acarretar, os teóricos da ilustração costumam evitar o
grupos são adequadas apenas aos períodos históricos termo para referir-se às regularidades e recorrências
anteriores à Revolução Francesa e a Revolução no trabalho dos ilustradores. Em Zeegen (2009),
Industrial, como o gótico e o barroco. Assim, Lessa encontramos uma solução para o impasse. Ele aborda
(2005, p.2) comenta que, “com o advento da sociedade o termo linha visual, que remete ao direcionamento,
industrial alteram-se de tal modo as condições de de escolhas de uma configuração, ou mesmo de uma
organização social, que passa a não mais haver a forma de ilustrar para um determinado trabalho.
possibilidade de um estilo artístico historicamente Assim, o desenvolvimento de uma linha visual é
orgânico”. Ao falarmos de ilustração, o termo estilo uma questão de design. A linha visual costuma ser
pode demonstrar-se insuficiente, já que o ilustrador definida entre o ilustrador, o cliente, o editor ou
preocupa-se em criar para cada texto uma imagem diretor de arte. Zeegen (2009, p.35) descreve que
adequada, que muitas vezes está de acordo, ou são feitas discussões a partir dos primeiros esboços
não, com os seus gostos pessoais. Como demonstra trocados entre o ilustrador e o cliente, e que a partir
Oliveira (2008), o ilustrador, em seu processo criativo, dos “primeiros esboços identificam uma abordagem
está mais influenciado pelo texto do que por um estilística e aspectos do assunto em questão. Esses
estilo pessoal. Em virtude da anexação com o texto, a desenhos são estudos rápidos, um método para gerar
ilustração de livros ilustrados não possuí uma história ideias por meio da exploração visual”. Desse modo,
no sentido estilístico, podendo, algumas vezes, se podemos nos referir à linha visual para denominar o
interligar com história da literatura. Parece sensato design das ilustrações de um determinado livro.
dizer que é possível falarmos do estilo pessoal de um
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 77
Ao trabalhar no design de uma linha visual, o ilustrador poderá ter como base a linguagem do texto.
Parece um tanto complicado e às vezes indizível comparar a linguagem de um texto à linguagem de uma
ilustração; entretanto, os ilustradores costumam tentar criar relações sensoriais entre a imagem e o texto. Nesse
caso, o ilustrador irá se concentrar na sensação que o texto lhe transmite. Se o texto transmite lirismo, leveza,
uma narrativa lenta ou rápida, objetividade, fuga da realidade etc. O ilustrador tentará captar a sensação do
texto para expressa-las em suas imagens. Como comentou Gombrich (1999, p.55), “toda cor, som ou forma
tem um tom sentimental natural assim como toda sensação tem uma equivalência no mundo da visão e do
som”. Pressupondo as equivalências sensoriais entre a linguagem verbal e visual, o ilustrador pode utilizar-se
da qualidade de técnicas ou materiais para representar sensações. Por exemplo, se um texto sugere aspereza
nas palavras, o ilustrador pode usar o bico de pena para criar uma textura áspera. Se há transparência, leveza e
sutiliza nas palavras, o ilustrador pode tentar representar essas características por meio da aquarela. Devemos,
porém, enfatizar que a qualidade dos materiais e técnicas somente irão expressar as sensações desejadas se o
ilustrador utilizar seus recursos de maneira adequada e coerente.
Sob o sol sob a lua (2007), da ilustradora e escritora Cynthia Cruttenden, utilizou-se da técnica dos
carimbos em sua narrativa. O livro conta a história de dois personagens que se encontram: a cobra que amava
o sol; e o lobo, que amava a lua. Para produzir os carimbos, a ilustradora talhou com goiva, utensílio para fazer
xilogravura, em borrachas plásticas. Com os carimbos prontos, a tinta foi passada na borracha e carimbada sobre
papel. O resultado nunca é igual por que a tinta se espalha de maneira diferente sobre o papel a cada carimbada.
Cynthia comenta que utilizou apenas dois carimbos no livro todo. Para compreendermos a relação dessa técnica
com o texto de Cynthia, é preciso citar o texto na integra:
Sob o sol... / ... sob a lua. / De dia, havia uma cobra / De noite, havia um lobo. / A cobra amava o sol. / O
lobo amava a lua. / Mas quando o sol caiu... / ... e a lua subiu, / a cobra e o lobo... / ... se encontraram... / ... e
lutaram. / Porém, daquela vez... / ... o sol e a lua pararam. / O lobo e a cobra descansaram... / ... e sonharam. /
Então, naquele dia, / não teve lua nem sol... / ... teve lobo e cobra no céu. (CRUTTENDEN, 2007).
No texto de Cynthia podemos notar um movimento de desconstrução e reconstrução. No início, temos o
sol e a lua, amados pelo lobo e pela cobra, mas então o sol cai, e a lua sobe, temos aí a desconstrução dos dois
elementos, o sol e a lua. Então o lobo e cobra se encontram, até que, naquele dia, não temos mais sol nem lua,
temos lobo e cobra no céu. Verificamos aqui o movimento de reconstrução em que o lobo e a cobra tomam o
lugar do sol e da lua no céu. Podemos pressupor que o lobo e a cobra se encontraram em um dia de eclipse, que
morreram lutando, e que se uniram ao sol e a lua, como forças da natureza. Em uma outra linha de pensamento
podemos supor que lobo e cobra são o sol e lua, personificados em animais, e que o eclipse é uma metáfora da
união entre duas essências, uma masculina e outra feminina. O eclipse, embora seja comentado na narrativa
textual de maneira sutil, é revelado na ilustração como podemos ver na Figura 55 (abaixo).
78 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 55
Sob o sol sob a lua
Cynthia Cruttenden
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CRUTTENDEN,
2007, p.22 – 23.
Podemos observar que o texto é aberto a interpretações e conceito relaciona-se de alguma forma com a narrativa. Se vários
questionamentos, mas a poesia parece revelar-se na dúvida, e as profissionais trabalharem para ilustrar o mesmo texto, o resultado será
ilustrações reforçam essa dúvida. Cruzando a Figura 56 com a 57 sempre diferente. E um único ilustrador pode criar diferentes linhas
(abaixo) podemos ver que as figuras da cobra e do sol são criadas a visuais para contar a mesma história. Isso acontece porque há muitas
partir do mesmo carimbo. Ao compor desta maneira, a ilustradora maneiras de se contar uma história e de criar relações entre textos e
sugere que o sol e a cobra são feitos da mesma essência. O mesmo imagens. Ao apresentar um mundo imaginário ao leitor, a ilustração
podemos concluir quanto ao lobo e a lua quando cruzamos a Figura 58 não impede que ele imagine a narrativa. A função do design de mundos
com a 59 (abaixo). Ao vermos na ilustração que lobo e lua são feitos de imaginários por meio da ilustração é inserir o leitor em um mundo nunca
um elemento, e cobra e sol de outro, isso reforça o questionamento antes imaginado, um ambiente aberto a interpretação de sensações.
sobre o que realmente eles são. É realmente o lobo que aparece no Um lugar onde lobos, cobras, o sol e a lua, não são como conhecemos.
poema ou é a própria lua? É a cobra ou o próprio sol? Percebemos, Isso exige que o leitor se posicione no novo mundo apresentado. Ao
então, que o design de um mundo imaginário surge a partir de um fisgar a imaginação do observador, o resultado será sempre subjetivo.
conceito de representação visual imaginado pelo ilustrador. Esse
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 79
Figura 56
Sob o sol sob a lua
Cynthia Cruttenden
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CRUTTENDEN, 2007, p. 4-5.
Figura 57
Sob o sol sob a lua
Cynthia Cruttenden
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CRUTTENDEN, 2007, p.8-9.
80 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 58
Sob o sol sob a lua
Cynthia Cruttenden
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CRUTTENDEN, 2007, p.10 – 11.
Figura 59
Sob o sol sob a lua
Cynthia Cruttenden
Livro ilustrado, 2007
Fonte: CRUTTENDEN, 2007, p. 6-7.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 81
A ilustração ornamental narrativa é aquela que, no espaço do livro, aparece não com o intuito
de narrar, mas de enriquecer a história, o projeto gráfico e o objeto livro. Como definiu Arnheim
(2008), um ornamento é uma forma visual subordinada a um todo maior, que ele completa, caracteriza
ou enriquece. Arnheim afirma que o todo é maior que a soma das partes, porém adverte que, sem
o todo, as partes deixam de ser o são. E que qualquer parte depende em maior ou menor extensão
da estrutura do todo, sofrendo influência da natureza das partes. Prova do argumento de Arnheim é
que, muitas vezes, ao retirarmos uma ilustração ornamental de um livro, ela descaracteriza-se, perde
seu contexto e sua conexão com os significados da narrativa.
Enquanto a ilustração narrativa cria uma mútua relação com o texto para contar história, a
ilustração ornamental narrativa relaciona-se mais com a temática do o texto literário. Ao criar relações
com a história, o design da ilustração ornamental valoriza a narrativa e o objeto livro, podendo
construir novas relações e questionamentos sobre a história e sobre o conceito do projeto gráfico.
Como comenta Speltz (1989, p.1), “a forma do ornamento deve combinar com a forma e a estrutura
do objeto que ele adorna, deve estar sempre subordinado a ele e nunca escondê-lo nem sufocá-
lo”. Portanto, o design da ilustração ornamental narrativa não se prende puramente nas questões
da estética, mas também a uma organização funcional. Como afirma Speltz (1989, p.1), a “arte da
ornamentação, no entanto, guarda uma relação íntima com o material, com o objetivo, com a forma
e com o estilo”. As ilustrações ornamentais narrativas empregam a função de evocar sentimentos de
uma época ou de uma temática e são elementos importantes na ambientação e caracterização de
uma narrativa. São os padrões ornamentais, as capitulares, vinhetas, molduras e rébus.
82 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Os padrões ornamentais costumam aparecer de parede, já que no século XVIII ambos eram fabricados
principalmente nas guardas. Como vimos na página 20, a pelos dominotiers, fabricantes de papel que revestiam jogos,
guarda tem a função de dar maior segurança e durabilidade como, por exemplo, dominós. Linden (2011, p.59) afirma
ao livro. A abertura da capa do livro marca um momento que “é comum identificarmos os vestígios dos primeiros
importante, a passagem de um objeto de duas dimensões para papéis estampados com motivos repetidos que revestiam
uma terceira. As guardas podem ser coloridas ou preenchidas os livros no século XVIII”. No livro ilustrado contemporâneo,
com padrões ornamentais. Buscam conduzir o leitor para entretanto, nem sempre há uma preocupação em seguir
uma determinada disposição de espírito e costumam se referências estéticas históricas. As composições podem ser
relacionar com a temática narrativa. Segundo Linden (2011), feitas com imagens figurativas ou abstratas.
esses padrões possuem uma herança histórica com os papéis
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 83
Figura 60
Figura 61
O milagre dos pássaros
O milagre dos pássaros
Jorge Amado (escritor)
Jorge Amado (escritor)
Joana Lira (ilustradora)
Joana Lira (ilustradora)
Guarda frontal do livro ilustrado, 2008
Guarda lateral do livro ilustrado, 2008
Fonte: AMADO, 2008.
Fonte: AMADO, 2008.
Na Figuras 60 e 61 (acima), podemos ver os padrões amante em praça pública. No final, um milagre acontece, e o
ornamentais impressos na guarda de O milagre dos pássaros amante trovador é resgatado por pássaros, que, acidentalmente,
(2008), do escritor Jorge Amado, e ilustrado por Joana Lira. O são libertados de suas gaiolas onde eram comercializados em
conto narra a história de uma fogosa esposa com um amante uma feira regional de Alagoas. Os pássaros carregam o amante
trovador apaixonado e mulherengo. Ambos são flagrados pelo segurando-o no bico pela camisola da esposa que ele vestira.
marido, com fama de matador violento, que deseja castrar o Assim, ele se afasta, voando para longe.
84 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 62
Um beija-flor mora na lua
Fernando Lobo (escritor)
Marilda Castanha (ilustradora)
Livro ilustrado, 2002
Fonte: LOBO, 2002, p. 4-5.
86 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 65 Figura 66
Desafios de Cordel Desafios de Cordel
César Obeid (escritor) César Obeid (escritor)
Fernando Vilela (ilustradora) Fernando Vilela (ilustradora)
Livro ilustrado, 2009 Livro ilustrado, 2009
Fonte: OBEID, 2009, p.22-23. Fonte: OBEID, 2009, p.8-9.
90 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Na Figura 64 (acima), que mostra o sumário, bem como na de fundo da abertura do primeiro capítulo, como vemos na Figura
Figura 67 (abaixo) que mostra a capa, podemos ver quatro barras 65 (acima). Assim, o design das ilustrações de capa e da vinheta do
horizontais cruzando a página. Cada uma das seis cores de cada uma sumário busca apresentar um sistema de navegação dentro do livro.
das barras corresponde à cor do plano de fundo das ilustrações de Vemos, então, que o design da ilustração pode criar regras para
abertura de cada capítulo. O roxo, por exemplo, corresponde ao plano organização dos elementos, facilitando a leitura do livro.
Figura 67
Desafios de Cordel
César Obeid (escritor)
Fernando Vilela (ilustradora)
Livro ilustrado, 2009
Fonte: OBEID, 2009.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 91
Figura 68
Limeriques do bípede apaixonado.
Tatiana Belinky (escritor)
Andrés Sandoval (ilustrador)
Livro ilustrado, 2004
Fonte: BELINKY, 2004.
92 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O ritmo nas artes visuais é uma repetição linear um ritmo que se desenvolve no passar de páginas, e pode
criada a partir do design e da organização de elementos criar relações com a narrativa textual.
no espaço, como aponta Loomis (1961). A linha, a forma, O livro Ismália (2006) surge a partir do poema
a cor e os tons apresentam características que sugerem simbolista de Alphonsus de Guimaraens, que ganhou a
um ritmo visual. Assim, o ilustrador trabalha sua imagem interpretação visual por meio de ilustrações e projeto
para sugerir um ritmo que se relaciona com a ação ou a gráfico de Odilon Moraes. A publicação foi realizada pela
sensação de que sua imagem deve comunicar. Por exemplo, editora Cosac Naify e teve sua primeira impressão com
ao desenhar um vestido listrado de verde, rosa e preto, o uma tiragem de três mil cópias. O livro foi lançado como
ilustrador cria um ritmo de cores que se repetem. Ao criar categoria de livro-presente, ou seja, um livro que tem como
uma composição de nuvens no céu, o ilustrador, por meio principal foco o público que busca presentear alguém. O
da presença ou ausência de nuvens no espaço do céu, cria livro em formato sanfona, logo de cara, chama atenção por
um ritmo através das formas. Ao compor uma imagem fugir do sentido de leitura horizontal tradicional dos livros.
com linhas retas e sinuosas, temos o ritmo da presença de A narrativa desenrola-se no sentido vertical de cima para
diferentes elementos, constantes ou não. No livro ilustrado, baixo, como podemos visualizar na Figura 69 (abaixo).
o encadeamento entre uma ilustração e outra pode sugerir
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 95
Figura 69
Ismália
Alphonsus Guimarães (escritor)
Odilon Moraes (ilustrador)
Livro ilustrado, 2006
Fonte: GUIMARAENS, 2006.
96 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
3.1.1 AUTORES
Odilon Moraes nasceu em 1966, em São Paulo, e passou a narrativa. Neste ponto, podemos lembrar que os simbolistas já
infância e adolescência no interior paulista, como aponta Moraes encontravam relações entre a visualidade e os sons.
(2004). Cresceu desenhando com o pai que era pintor. Moraes O simbolismo foi um movimento subjetivista que aconteceu
(2011), em entrevista a revista eletrônica Entrelinhas, comenta que na literatura e na pintura por volta de 1885-1900. Os pintores deste
um bom ilustrador tem que ser um bom leitor, porque o desenho movimento podem ser agrupados apenas porque todos rejeitaram
do ilustrador nasce da compreensão do outro. O ilustrador também as concepções realistas da arte que haviam dominado na geração
descreve que criar ilustrações para um livro demanda um processo anterior, como aponta Chipp (1996). Seguindo os poetas, os
de pesquisa sobre a obra, os autores e os lugares em que se passa artistas se voltaram para o mundo interior dos sentimentos em
a obra. Moraes (2009), em entrevista a revista eletrônica Crescer, busca de seu tema, com frequência motivos tradicionais, religiosos
descreve que projeta seus livros criando bonecos, para pensar ou literários. Declararam que as qualidades emotivas vinham mais
no livro como um objeto existente, finalizado. O boneco é uma das cores e das formas do que do motivo escolhido. Segundo
espécie de réplica esboçada do livro, montada artesanalmente Chipp (1996, p.45), “o movimento foi, portanto, resultado de
para auxiliar o designer a visualizar como ficará seu projeto após o novas liberdades, possibilitadas pela rejeição da obrigação de
processo de produção. Moraes comenta que o boneco é utilizado ‘representar’ o mundo concreto, e dos estímulos proporcionados
na apresentação ao editor para guiar as discussões conceituais pela exploração do mundo subjetivo”. Na pintura, alguns dos
sobre o projeto. O ilustrador também descreve que pensa no representantes do simbolismo foram Paul Gauguin, Maurice Denis
projeto gráfico de seus livros como parte integrante do processo e Odilon Redon. Os poetas simbolistas agruparam-se em torno
de criação das ilustrações. Segundo Moraes, o projeto gráfico de Stéphane Mallarmé (1842-1898) e acreditavam que a maior
participa da criação de relações entre a palavra e imagem ao realidade estava no reino da imaginação e da fantasia. Muitos dos
invés de ser uma etapa em que se une texto e imagem no mesmo poetas simbolistas acreditaram que seus poemas não deveriam
espaço. Mores (2011), em entrevista para o canal do YouTube ser ilustrados, uma vez que a imagem tem o dom de revelar o
da Univesp, comenta que o ritmo de leitura no poema ilustrado que deveria estar oculto, coberto de mistério. Foram inspirados
tem um peso muito forte e que fazer ilustração para um livro é pelo Romantismo do poeta Charles Baudelaire e em sua teoria da
organizar um tempo, é organizar um espaço que, na verdade, é correspondência, que afirmava que uma obra de arte deveria ser
um tempo. Com isso, podemos perceber que o ilustrador organiza tão expressiva de sentimentos e tão evocativa de ideias e emoções
o espaço da página pensando em sugerir um tempo e um ritmo a ponto de se elevar a um nível no qual todas as artes estavam
de leitura. A organização desse tempo pode surgir do ritmo que interligadas; os sons sugerindo cores, as cores sugerindo sons, e
o texto sugere, ou de como o ilustrador interpreta o ritmo da ideias seriam evocadas a partir dos sons e das cores.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 97
Figura 72
Ismália
Alphonsus Guimarães (escritor)
Odilon Moraes (ilustrador)
Livro ilustrado, 2006
Fonte: GUIMARAENS, 2006.
100 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
3.1.3 ENREDO
3.1.4 O RITMO
Na Figura 75 (ao lado), vemos que Figura 75
Ismália
Moraes, em sua representação de Ismália, optou Alphonsus Guimarães (escritor)
por uma linha visual simples, que esconde os Odilon Moraes (ilustrador)
detalhes nas sombras, deixando as feições de Livro ilustrado, 2006
Fonte: GUIMARAENS, 2006.
Ismália a cargo da imaginação do leitor. Ismália
possui um vestido longo e branco, que aponta
para uma época passada, medieval. O cenário
com a torre também ambienta a narrativa em
um clima medieval. São utilizadas duas cores,
vermelho-escuro e o branco, e suas variações
de tons, nas ilustrações e no projeto gráfico de
Ismália. O vermelho escuro das ilustrações de
Ismália ambienta a atmosfera carnal do poema.
O vermelho, segundo Pedrosa (2010), pode
ser visto como a cor da líbido, do coração e do
conhecimento esotérico, além de possibilitar
a relação com a guerra e ao calor. O vermelho-
escuro de Ismália sugere uma mistura com o
preto, que, segundo Pedrosa, é visto como um
dano a cor pura e também diminui a luminosidade
da cor. Assim, o vermelho de Ismália parece
sugerir a morte, a sexualidade e até mesmo o
clima pesado, pouco luminoso do poema. Como
o vermelho-escuro predomina nas páginas de
Ismália, o lirismo do poema não se passa na luz
da razão, mas nas sombras da loucura.
104 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O branco na impressão pode ser visto como ausência a sensação carnal das imagens. O vento no vestido de Ismália
de cor, já que não é impresso, sendo uma área reservada, sugere o ritmo do balançar das dobras do tecido, enquanto o
a própria cor do papel. Entretanto, o branco sugere um poema de Guimaraens (2006, p.19) evoca este ritmo ao dizer
valor simbólico importante no projeto gráfico de Ismália e que “As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par...”.
poder ser interpretado como a pureza e a espiritualidade da A passagem de tons, hora mais delineado pelo pincel e hora
personagem. O branco, segundo Pedrosa (2010), pode ser mais leitoso, pode ser lida como um contraste entre a dureza
visto tanto no pensamento simbólico quanto como a morte, da torre e do mundo material e a sensibilidade psíquica de
como a vida, isso porque o branco pode ser considerado Ismália. As manchas e os tons de Ismália conferem um ritmo
o ponto inicial entre a luz e as trevas ou como ponto final, à ação. As manchas do cenário são grandes, ocupando grande
dependendo do ponto de vista. O branco também costuma parte da página. Esta amplitude emprega ao ritmo poucos
ser relacionado à pureza, tanto no cristianismo quanto nas elementos, mas de grande intensidade, podendo ser visto
religiões agrárias dedicadas ao pastoreio, que vincula o branco como um ritmo cerimonioso, majestoso. Nesse cenário, o
a farinha e ao leite. No século XX, costuma ser sinônimo de suicídio de Ismália é um acontecimento pomposo, é um delírio
paz entre os povos. Enquanto o vermelho predomina nas glorioso. Os tons mais claros podem ser lidos como uma
páginas de Ismália, o branco é o contraste, a última fagulha suavização do ritmo entre uma forma e outra; enquanto os
de luminosidade que nos permite enxergar as figuras e os recortes mais duros das manchas, que aparecem em poucos
tipos. Assim, o branco e o vermelho-escuro se completam, um momentos, empregam mais força e peso no ritmo. Assim, o
sendo o contraste do outro, um começa onde o outro termina. ritmo é uma combinação entre elementos leves e pesados,
Se Ismália possui a sensualidade e as manchas sombrias que intensos e suaves. Enfim, o ritmo aparece como qualidades
surgem da mistura entre o vermelho e o preto, também possui sugeridas na imagem, por meio do design e da organização
a pureza e a luminosidade que sugere o branco. de elementos criados pelo ilustrador. A marca do gesto das
Ainda na Figura 75 (acima), podemos notar que a pinceladas do ilustrador apresentam um ritmo, quer seja
técnica utilizada por Odilon Moraes foi a aquarela. A textura, controlado, quer aconteça ao acaso. O ritmo, como costuma
ocasionada pelas pinceladas e a tinta misturada com água ser nas formas visuais, é mais uma sugestão ao observador
espalhada pelo papel, pode ser vista como fator que aumenta que irá subjetivar o que é visto ao seu modo.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 105
Figura 77
Ismália
Alphonsus Guimarães (escritor)
Odilon Moraes (ilustrador)
Livro ilustrado, 2006
Fonte: GUIMARAENS, 2006.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 107
Figura 80
Ismália
Alphonsus Guimarães (escritor)
Odilon Moraes (ilustrador)
Montagem mostrando todas as lustrações do livro ilus-
trado, 2011
Fonte: GUIMARAENS, 2006
110 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
A montagem de Ismália acontece por de Ismália, que poderia caber em uma página,
meio de imagens sequenciais que mostram o dividido em 20 páginas, permite um tempo
suicídio da personagem, assim como podemos de leitura maior, o que favorece a apreciação
observar na Figura 80 (acima). A diagramação do momento. A diagramação associativa com
de texto e imagem busca interpretar o ritmo enunciados curtos oferece uma cadencia de
do poema de Guimarães, mas pela adição das leitura rápida. E o efeito de aproximar e afastar o
ilustrações e das qualidades do suporte cria-se ponto de vista das imagens emprega a qualidade
um novo ritmo, que é mais inspirado no poema de perturbador ao ritmo de leitura. Portanto,
do que uma tradução literal do ritmo da palavra. nesta análise de Ismália, podemos notar que o
O ritmo de leitura de Ismália é ditado por ritmo no design da ilustração é a interpretação
uma somatória de elementos e da interferência pessoal do ilustrador sobre a narrativa textual.
que cada elemento exercer sobre o outro. É uma Assim como o ilustrador cria o design de um
combinação de vetores que acontecem no espaço mundo imaginário onde se insere o leitor, o
bidimensional das imagens e no processo linear design das ilustrações e de todo projeto gráfico
da leitura. As manchas do cenário oferecem coloca um ritmo nos acontecimentos deste
amplitude ao ritmo, a figuração do vestido sugere mundo imaginário.
um ritmo veloz e harmonioso, poético. O texto
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 111
3.2.1 Autor
Fernando Vilela é artista plástico, curador, designer, sincretismo religioso e as novas situações do cotidiano popular.
professor, escritor e ilustrador de livros. Formado em artes plásticas Assim como nas trovas medievais, o tema caminha entre o real e
pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Artes pela o lendário, tendo como destaques os temas religiosos, a guerra
Universidade de São Paulo. Em 2009, publicou o livro Desafios de de Canudos, os duelos, a figura de Lampião, o cangaço e política.
Cordel, analisado na página 88. Em entrevista publicada no site da A ilustração alia-se ao cordel para tornar o material mais atrativo,
editora Cosac Naify, Vilela (2011) comenta que Lampião e Lancelote apresentando visualmente os heróis da trama, e identificado sua
é o livro mais vendido da editora, sendo um divisor de águas em temática, de cotidiano popular, crenças e valores de um povo.
sua carreira, que o projeta e lhe abre portas para novos trabalhos. Segundo Moretto (1985), o Cordel não é apenas para ser lido,
Vilela comenta que o encontro de Lampião e Lancelote não foi uma mas para ser cantado e ouvido. O vendedor do cordel, muitas vezes,
ideia totalmente inventada, mas que possui suas raízes históricas, já tem o dom de cantar esse folheto, de declamar bem, podendo ser
que a oralidade da poesia e seu registro por meio da xilogravura são visto como um ator popular. A sonoridade e o ritmo dos versos do
heranças da Europa medieval, que chegaram até o Brasil juntamente cordel contribuem para criação de versões cantadas comumente
com a colonização portuguesa. acompanhadas pela viola. Costumam aparecer em estrofes de seis
Filho (1985) comenta que o cordel pode ser encontrado em versos (sextilhas), ou de sete (septilhas) e dez versos (décimas).
outros países com outros nomes; em Portugal, chama-se “folhas Geralmente, seus versos possuem sete sílabas, embora hajam
soltas”; na Espanha, “pliegos sueltos”; na França, como “littèrature aqueles com número variado de sílabas, como seis ou oito.
de colportage”; e na Inglaterra é chamado de “catchpennies”. O Vilela (2006) comenta que foi principalmente na musicalidade
cordel, segundo o autor, é toda poesia e narrativa popular impressa, do cordel que ele se inspirou para compor seu texto. Servindo-se das
em verso ou em prosa, que resulte em um folheto. Costumam ideias tanto no cordel quanto na poesia medieval, o texto Lampião
ser constituídos de capa e miolo impressos em papel jornal, em e Lancelote pode ser dividido em três momentos. O primeiro é a
tamanho aproximado de 10x16. Segundo Vasconcelos (1985), o apresentação de Lancelote, em que o texto segue o léxico medieval
início da literatura de Cordel está ligado a implementação das das palavras de cavalaria. O segundo momento é a apresentação de
práticas tipográficas no Brasil, tendo raízes ibéricas no medievalismo Lampião, no qual o texto das falas do cangaceiro possui a métrica
europeu. A tradição da poesia oral provém do feudalismo, em que tradicional do cordel em sextilha, ou seja, seis versos de seis sílabas.
menestréis e jograis ocorriam nas aglomerações de vassalos durante O terceiro são as falas de Lancelote sempre compostas em sextilha,
peregrinações religiosas e guerreiras, divulgavam notícias, relatos de sete versos de sete silabas, consagradas nos duelos escritos por José
guerra, romances de amor, de cavalaria, viagens marítimas etc. No Costa Leite, um dos nomes mais conhecidos da literatura de cordel.
Brasil, a oralidade foi trazida pela colonização portuguesa, sofrendo Desse modo, podemos notar que Vilela inspirou-se não apenas na
influências também dos imigrantes. Desse modo, no nosso cordel, visualidade da cultura popular para compor seu livro, mas também
temos as características da miscigenação de raças e tradições, o na musicalidade e nas convenções do texto medieval e da literatura
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 113
de cordel. No caso de Vilela, que assume o papel de escritor e de o texto foi organizado na página par com uma inclinação de um
ilustrador, há uma maior liberdade para pensar em um design para ângulo positivo, enquanto na página impar da dupla a inclinação
comunicar um conceito que amarre o texto e as ilustrações do livro. do texto é um ângulo negativo. Esse recurso sugere o conflito entre
A relação de texto e imagem é de colaboração; o texto evoca o as armas apontadas entre os dois exércitos. Na Figura 82 (abaixo),
enunciado, mas não descreve as ações mostradas das ilustrações, podemos ver os versos do poema de Vilela espalhados pelo chão,
permitindo a linguagem visual expandir o conteúdo da informação. na tentativa de imitar o ritmo dos passos de dança que mistura os
Isso acontece tanto nos momentos em que temos a prosa quanto nos ritmos medievais e os ritmos do sertão. E na Figura 84 (página 116),
momentos em que temos os versos. Assim, a montagem de Lancelote podemos ver as estrofes do texto tentando mimetizar o movimento
e Lampião acontece através do texto que evoca os acontecimentos e das placas de metal que balançam enquanto Lancelote cavalga em
são expandidos pelas ilustrações. seu cavalo. Esses recursos sugerem ritmo, conflito e movimento na
A diagramação do texto de Vilela, na maioria das vezes, sugere página e no texto, favorecendo que o leitor percorra com o olhar
um ritmo de leitura ou das ações da narrativa. Na Figura 81(abaixo), toda a página em busca de mais detalhes e informações.
Figura 81
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
114 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 82
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
A técnica utilizada para impressão do cordel costuma ser a do século XX ganha dimensões nacionais, embora seja produzido e
xilogravura, que permite uma produção em larga escala e de baixo comercializado principalmente na região nordeste do país.
custo. Como aponta Nori (1985), a xilogravura foi inventada na China Vilela percebeu que a xilogravura foi um método de impressão
no século IX, chegou até a Europa onde realizou a proeza de imprimir que coexistiu tanto na época do desenvolvimento das narrativas de
os primeiros livros da história, os quais, posteriormente, chegaram até cavalaria quanto na época em que se desenvolveu o mito do Lampião
nós. Após o século XV, com a invenção da impressão por meio de tipos e utilizou a técnica para ilustrar seu livro que trata do encontro entre
móveis, a xilogravura passou à função de imprimir principalmente as as duas épocas. Assim, a xilogravura em Lancelote e o Lampião não é
ilustrações. No Brasil colônia, a gravura apenas engatinhou, tendo um mero acaso, expressando um valor simbólico ao criar um elo da
seu maior desenvolvimento após a vinda da família real para o Brasil visualidade entre duas épocas distintas. Vilela (2008), em entrevista
em 1808. O cordel ilustrado com xilogravura mais antigo de que se filmada à revista eletrônica Crescer, conta sobre seu processo de
tem notícia é de 1907 e trata da vida do cangaceiro Antônio Silvino. trabalho, que parte de uma abordagem experimental das técnicas e
Nas décadas seguintes, o cordel se populariza até que em meados dos procedimentos, combinando a utilização de carimbos, que é um
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 115
tipo de xilogravura, com a pintura e o desenho em nanquim. Entretanto, cada vez que o carimbo adere à folha de papel,
Cada cor de sua ilustração é construída em uma folha de papel causa um registro diferente pela pressão que o ilustrador
separada, e a mesa de luz é utilizada para que o ilustrador coloca entre o carimbo e a folha, e pela quantidade de tinta
possa guiar-se no processo de composição da imagem. Após que o papel absorve. Assim, há um certo acaso nesse tipo
a digitalização dessas imagens, o ilustrador costuma terminar de técnica; no entanto, o ilustrador tenta controlar de acordo
seu processo no computador, em que separa as cores para com suas intenções para o trabalho. A linha visual utilizada
impressão. em Lampião e Lancelote não tenta reproduzir fidelidade na
Nas Figuras 83, 84 e 85 (abaixo), temos as primeiras figuração do mundo visível, preferindo uma representação
ilustrações do livro de Vilela, as quais apresentam estilizada, quase planificada. Ao criar figurações estilizadas,
o personagem Lancelote. Observando a Figura 83, o ilustrador projeta um universo para ser subjetivado pelo
podemos notar que o ilustrador utilizou o mesmo carimbo leitor e abre espaço para sua imaginação.
repetidamente para compor diversas partes de sua ilustração.
Figura 83
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
116 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 84
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
Figura 85
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 117
Vilela (2006) comenta que para ambientação do cenário de da cela dos cavalos. Isso sugere que vemos homens montados em
Lampião utilizou referência dos adornos das iluminuras medievais cavalos enquanto nós estamos em um plano abaixo. Ou seja, ao
e de pinturas renascentistas. O ilustrador também comenta que se nos projetarmos na imaginação para dentro do quadro, estamos
inspirou na obra A batalha de São Romano, de Paolo Uccello, que fora de um cavalo e, portanto, em desvantagem em relação aos
remonta uma série de três quadros que podemos visualizar na Figuras cavaleiros. Assim, podemos notar que embora Vilela trabalhe com a
86, 87 e 88 (abaixo). Ao compararmos esta série de quadros de xilogravura, a divisão do espaço e da perspectiva em suas ilustrações
Paolo, com as Figuras 83 e 84 (acima), ilustrações de Vilela, podemos parecem ter influência do pintor renascentista Paolo Uccello. A visão
encontrar importantes relações entre elas. O primeiro é ponto de lateral dos personagens se mantém em muitos momentos em seu
vista em plano geral com personagens que estão constantemente livro, porém a altura da linha do horizonte se altera principalmente
de perfil se deslocando em um plano que não sugere muita quando o ilustrador compõe utilizando o ponto de vista em close
profundidade. A linha do horizonte, que sugere a altura do olhar do como na Figura 85 (acima).
observador da imagem, está localizada aproximadamente na altura
Figura 86
A batalha de São Romano 01
Paolo Niccolò Uccello
Tempera sobre madeira, 1438-1440
Fonte: WEB GALLERY ART, 2011.
118 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 87
A batalha de São Romano 02
Paolo Niccolò Uccello
Tempera sobre madeira, 1435-1455
Fonte: WEB GALLERY ART, 2011.
Figura 88
A batalha de São Romano 03
Paolo Niccolò Uccello
Tempera sobre madeira, 1456-1460
Fonte: WEB GALLERY ART, 2011.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 119
3.2.2 CAPA
Na Figura 89 (abaixo), podemos visualizar a quarta capa, a abaixo na horizontal. Essa solução prevê o conflito da narrativa e
lombada e a capa do livro de Vilela. O livro fechado tem o tamanho pode ser associado à silhueta de uma espada ou de uma faca. Cada
de 35x25 centímetros e aberto atinge 70x25 centímetros. Na capa, um dos personagens localizados em uma das extremidades da capa,
o título do livro na vertical rivaliza com o nome do autor localizado aumentando o prenúncio de embate.
Figura 89
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Capa de livro ilustrado impresso em hot stamp, 2006
Fonte: VILELA, 2006.
120 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Comparando a Figura 89 (acima), capa do livro de Vilela, Conhecer como funciona o processo de impressão das
com a Figura 88 (acima), pintura de Paolo, podemos notar imagens que o ilustrador está produzindo poderá auxiliar este
que a armadura de Lancelote é semelhante a armadura dos profissional na escolha dos efeitos utilizados nas imagens. Por
cavaleiros, sobretudo pela cor prata. A impressão do prata exemplo, a experiência com a impressão pode levar o ilustrador
e do cobre na capa do livro de Vilela acontece por meio de a perceber que determinadas texturas ou cores ficam melhores
hot stamp. Nesse processo acontece o uso de temperaturas que outras em um ou outro processo de impressão. Dessa
elevavas a uma fina película de metal que é aderida sobre a maneira, o ilustrador deve estar sempre atento ao projeto
capa do livro. As duas cores metálicas da capa, o prata e o cobre, gráfico e suas necessidades, para que seu trabalho possa ser
aparecem para caracterizar cada um dos dois personagens. A reproduzido com fidelidade e eficiência. Afinal uma cor, ou
cor prata caracteriza a armadura, a lança, as placas de metal uma textura que fuja do planejamento da comunicação de um
e os ornamentos de Lancelote, enquanto Lampião recebe o projeto gráfico, pode afetar o leitor de um modo completamente
cobre que caracteriza a cor de seus anéis, moedas e patentes indesejado, criar ruído na mensagem e até descaracterizar a
de suas vestimentas. Enquanto na capa a impressão destas narrativa. Vilela (2006) agradece ao amigo Sérgio Sister, que o
cores acontece por meio do processo do hot stamp, no miolo a ajudou com a pesquisa das cores especiais. Podemos também
impressão das cores metálicas acontece por meio de processos notar que foi o conhecimento dos processos de impressão que
digitais de impressão. São as chamadas cores especiais. Essas possibilitou Vilela formular seu processo de trabalho, no qual ele
cores não são possíveis de serem reproduzidas através dos une processos manuais e digitais para compor suas ilustrações.
meios convencionais de impressão que se utilizam do sistema Enquanto o processo manual de utilização dos carimbos dá ao
CMYK, que deriva do inglês Cyan (ciano), Magenta (magenta), seu trabalho o registro e a qualidade do material da xilogravura,
Yellow (amarelo), e Key ou Black (cor chave ou preto). Para o processo digital permite que o ilustrador manipule e organize
adicionar as cores especiais no processo de impressão é preciso com precisão seu trabalho para impressão. Portanto, pesquisar
que a impressora seja capaz de ser carregada com um cartucho a história do uso de materiais e processos de impressão e dar
especial que irá conter tintas com efeito metalizado. Nesse sentido ao uso de materiais e técnicas de ilustrar viabilizando
processo é possível uma impressão que una as cores do CMYK a reprodução industrial de um produto, também é uma
com as tintas metálicas. Podemos perceber que o conhecimento preocupação no design da ilustração.
dos processos de impressão é uma questão importante para
o ilustrador, que pode encontrar soluções para valorizar seu
trabalho ao se apropriar da qualidade das cores especiais.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 121
3.2.3 Enredo
A mitologia por trás do personagem Lancelote nos leva ao rei e herói Arthur e sua
corte, o que remete às origens do povo inglês. Doherty (1987) comenta que, por volta do
século V a.C, o território que conhecemos hoje como Inglaterra foi invadido pelos celtas, que
dominaram e se uniram às tribos locais, formando o povo bretão. Nessa época, o território
não era unificado, sendo composto por tribos independentes com hierarquia local própria.
No século I d.C, o território foi novamente invadido e dominado pelos romanos, tornando-
se província do Império Romano. Mas no limiar do século V, o poder de Roma declina, e
a província fica entregue a própria sorte para se defender das invasões saxônicas. É no
meio deste cenário de conflitos e invasões que teria surgido um grande líder e guerreiro
Arthur. Os primeiros indícios da existência do Arthur histórico surgem a partir de relatos
de monges historiadores como Gildas, galês do século VI, e Nênio, do século VII d.C. Esses
registros históricos dos monges são, muitas vezes, exagerados e fantasiosos, embora
haja um consenso entre os historiadores de que por volta do século V, houve um grande
líder militar e guerreiro que lutou contra a invasão dos saxões e venceu uma importante
batalha situada em um monte chamado Badon, dando ao povo bretão quarenta anos de
paz na ilha. Ao que parece, em um determinado momento, o Arthur histórico, com poucas
evidências concretas sobre sua existência, começou a perder importância, enquanto a
figura mitológica de Arthur ganha força como um símbolo de nacionalidade do povo. A
partir de então, as trovas e relatos ao longo dos séculos são regadas pela imaginação dos
autores, e o Arthur histórico cede lugar ao Arthur mítico. Ao longo da história, a lenda de
Arthur e seus cavaleiros tem sido contada e recontada, adaptando-se, algumas vezes, ao
contexto da sociedade e de seu tempo, porém sem perder sua essência.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 123
Assim, Lancelote, por carregar a mancha de honra na no município de Serra Talhada, no período entre 1897 e 1900. A
essência de sua personagem, em muitas narrativas acaba adquirindo imprecisão do ano de seu nascimento deriva de incompatibilidade
um caráter multifacetado. Ora é visto como o cavaleiro honrado e do ano registrado em livro de batismo da igreja e do ano de registro
corajoso que tenta a todo custo vencer a paixão por Guinevere para no cartório. Virgulino fez primeira comunhão e o sentimento de
não trair Arthur, como parece ser o caso da narrativa de Malory, ora religiosidade o acompanhou por toda vida, mantendo grande
é retratado como vaidoso e covarde que se aproveita das situações simpatia pelo Padre Cícero de Juazeiro, que é tido como santo por
para ganhar fama e poder, além de trair Arthur pelas costas, como muitos sertanejos ainda hoje. Neto comenta que, desde cedo,
acontece em As crônicas de Arthur (2006), de Bernard Cornwell. Virgulino parecia se destacar em vários ramos, demonstrando um
Diferente de Lancelote, a existência do Lampião histórico carisma e espírito de liderança, tido como bom dançarino, repentista
tem muitos registros como fotografias, filmagens e relatos de e tocador de sanfona. Como podemos ver na Figura 91 (abaixo),
pessoas da época. Segundo Neto (2010), Virgulino Ferreira da Silva, Vilela se apropria desta fama de Lampião para figurar o personagem
conhecido popularmente como o Lampião, nasceu em Pernambuco, tocando sanfona.
Figura 91
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 125
Figura 92
Sem título
Autor desconhecido.
Fotografia de Lampião
Fonte: ISTOÉ, 2011.
Figura 93
Sem título
Autor desconhecido.
Fotografia de Lampião
Fonte: ISTOÉ, 2011.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 127
Figura 94
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
Figura 95
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
128 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Neto (2010) comenta que Lampião procurava passar uma Arthur, que sempre aparece como representação de caráter exímio,
impressão de que era o salvador daquela região e dos sertanejos. poderia colocar Lampião no papel de bandido da história. Portanto, é
Isso era possível por que as Volantes, a polícia da região, muitas vezes provável que Vilela tenha percebido essa relação multifacetada entre
agiam de modo muito similar aos cangaceiros. As volantes costumavam os personagens na hora de compor sua narrativa. Outra relação entre
humilhar, torturar e até matar muitos sertanejos para conseguir o que Lampião e Lancelote é a vaidade e a riqueza visual de ornamentos de
queriam. Então, o povo local se sentia entre a cruz e a espada no meio do duas épocas distintas, o que possibilita que o ilustrador trabalhe estes
fogo cruzado entre a polícia e os cangaceiros. Desse modo, ao longo do ornamentos para valorizar sua narrativa. Neste caso, é importante
tempo, Lampião foi ganhando uma visão multifacetada, entre o bandido observar que o planejamento da narrativa irá influenciar posteriormente
e o herói, o cruel e o justiceiro. no design da ilustração.
Podemos notar que tanto Lancelote quanto Lampião possuem Vilela também pesquisou a vegetação da caatinga nordestina,
na essência dos personagens mitológicos alguma mancha na honra, palco de sua trama. Uma das representações recorrentes em suas
ou mesmo uma visão multifacetada que caminha entre o bem o mal, o ilustrações são os pés de xique-xique ou de mandacaru, os quais,
certo, o errado e o duvidoso. Portanto, parece fazer sentido o encontro semelhantes aos cactos, são abundantes no clima da caatinga, como
dos personagens, uma vez que ambos podem aparecer tanto quanto vemos na Figura 96 (abaixo).
mocinhos como bandido da história. Um encontro entre Lampião e
Figura 96
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 129
Figura 97
Lampião & Lancelote
Fernando Vilela
Livro ilustrado, 2006
Fonte: Vilela, 2006
Na Figura 97 (acima), podemos encontrar outra referência da O design da ilustração de livros costuma exigir pesquisa, e,
cultura popular nordestina: as bandeirinhas coloridas das festas de ao trabalhar com elementos da cultura e do imaginário popular, o
São João, sempre utilizadas para enfeitar a cidade e as festas do mês ilustrador terá de selecionar quais elementos da cultura popular irão ser
de junho. Portanto, podemos notar que as ilustrações de Vilela unem representados em sua ilustração. O aprofundamento da pesquisa histórica
o imaginário popular aos elementos do cotidiano e da cultura de da cultura e do imaginário popular é importante para que o ilustrador
dois povos. Ao apresentar Lampião e Lancelote, Vilela, por meio do não descaracterize os personagens. Ao abrir dialogo entre duas culturas
repertorio cultural, ganha empatia do público que gosta de dois gêneros distintas,Vilela fortalece o interesse do público no aprofundamento do
diferentes. Ao acessar um repertório cultural, a ilustração pode ganhar imaginário popular e suas relações históricas. Ao trabalhar no design das
interpretações ainda mais pessoais, uma vez que entramos em contato ilustrações com duas culturas diferentes, o ilustrador empenha-se em
com um personagem conhecido, podemos lembrar-nos de outras tantas criar uma forma de representação atrativa e capaz de manter unidade
histórias e experiências que nos remetem ao personagem. Ao inserir entre elementos e ornamentos de épocas distintas. O processo pode criar
elementos da cultura popular do seu público, como as bandeiras de São novas visualidades, novas combinações e novas maneiras de ver objetos
João e a sanfona, a narrativa pode tornar-se mais crível e acessível para aos quais estamos familiarizados, e essas parecem ser as principais
determinados leitores. características de Lampião e Lancelote.
130 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
O livro ilustrado pressupõe uma organização lógica e coerente de enunciados visuais e verbais
que tornam inteligíveis a narrativa. A organização e ordenação das ilustrações em um livro ilustrado
pode ser chamada de montagem. Quando o leitor se depara com enunciados verbais e visuais, e tenta
dar sentido e sequência nas informações, pressupõe-se que ele imagine as lacunas que não aparecem
no texto ou nas imagens. O espaço entre um enunciado e o próximo, e como vão se montar é o que
caracteriza a montagem. Podemos falar da montagem dos enunciados de uma página, da montagem
dos enunciados entre as páginas e da montagem dos enunciados entre linhas de tempo da história.
Embora possam ser encontradas relações entre o cinema e o livro ilustrado, a montagem do
livro ilustrado possui suas próprias convenções. O termo montagem parece adequado, porque, no
livro ilustrado, a configuração no espaço da página entre uma imagem e a próxima vai além de uma
organização de conteúdo, tendo a importância de criar ritmo de leitura e despertar emoções no leitor.
Cada cena ou ação representada em uma imagem sugere o tempo do acontecimento. O tempo das
ilustrações é sempre composto de cortes, já que é impossível para o livro ilustrado representar o fluxo
de movimento contínuo como no cinema. O texto pode aparecer descrevendo, narrando ou evocando
sensações. Assim, o livro ilustrado possui sua própria linguagem, que capacita sua leitura.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 131
Ao visualizar uma ilustração narrativa, o leitor irá percebemos que sua montagem acontece a partir do
criar relações de tempo e espaço sobre o que está sendo encadeamento de imagens seqüenciais, e que o texto funciona
representado. Ao deparar-se com uma sequência de ilustrações como uma voz que acompanha a ilustração na narrativa. Nas
dentro de uma página dupla, o leitor irá tentar decifrar a páginas 111-129, pudemos perceber que a montagem de
relação de tempo entre as diferentes representações. Entre Lampião e Lancelote é guiada pelo texto que evoca ilustrações
uma imagem e outra, o leitor pode montar relações de que expandem o conteúdo do enunciado textual. O que todos
casualidade e de sequencialidade. A virada de página pode esses livros têm em comum é que são histórias relativamente
ser vista como um corte ou uma transição entre uma página curtas e lineares, com foco narrativo sempre em um ou dois
e outra. A montagem entre uma página e outra acontece por personagem que estão interagindo na mesma cena. São
meio da relação que o leitor estabelece entre os enunciados histórias em que se apresenta uma situação de conflito que,
verbais e visuais da página anterior e a página seguinte. quando solucionada, dá fim à narrativa. Essa parece ser a
Nas páginas 53-56, por meio da análise de Flicts, vimos principal configuração dos roteiros dos livros ilustrados.
que o texto pode guiar a montagem das ilustrações, uma vez Um outro pastoreio (2010) tem uma configuração
que ele evoca as ilustrações que irão apresentar um aspecto diferente dos demais livros ilustrados no mercado, já que
que contribui para fruição da história. Nas páginas 56-58, na possui um roteiro complexo, com foco narrativo que se alterna
análise do livro a Dona da festa, vimos que texto e imagem muitas vezes, criando uma série de linhas temporais que se
podem criar linhas temporais distintas que se relacionam sobrepõem e interagem. Além de utilizar-se de recursos de
para dar continuidade a narrativa. Nesse caso, a linha mestra ilustração, das histórias em quadrinhos, como os balões e as
que guia a narrativa e a montagem dos enunciados é o texto. onomatopeias, o texto também intercala a narrativa em prosa
Na página 59-63, a análise de A rainha das cores nos mostra e em verso. Essas características deram a Um outro pastoreio
que a montagem pode ser guiada por imagens sequenciais uma montagem complexa. Esta junção de diferentes recursos
que se utilizam do texto como recurso auxiliar e redundante textuais e ilustrativos é estudada neste capítulo.
para explicá-las. Nas páginas 94- 110, ao analisar a Ismália,
132 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
3.3.1 AUTORES
Rodrigo Dmart nasceu em 1974, Pelotas, RS, é músico, escritor e jornalista. Indio San é Everson
Nasari, e trabalha como ilustrador e designer gráfico. Juntos, se engajaram na criação do livro ilustrado Um
outro pastoreio, que possui um sistema de publicação independente e inovador. Com mais de 200 páginas
com ilustrações coloridas, o livro exigia um alto investimento para custear sua impressão, o que vai além
dos padrões do mercado para as editoras. Para arrecadar verba e viabilizar o livro, eles criaram um sistema
de cotas que foram vendidas para amigos e conhecidos. Com o livro impresso, os participantes receberam
duas cópias do livro autografadas. A primeira tiragem foi de mil cópias.
A partir do exemplo de Um outro pastoreio, podemos pensar que o planejamento da quantidade
de ilustrações e de páginas para um projeto gráfico está ligada a viabilização de um produto. Portanto,
viabilizar custos e meios para publicação e distribuição do livro ilustrado faz parte do design da ilustração,
uma vez que entendemos o objeto livro ilustrado inserido dentro do sistema da sociedade de consumo.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 133
3.3.2 CAPA
O livro possui capa dura no tamanho 15,5 x 23,5cm. O
miolo possui tamanho 15x23 centímetros e é impresso em papel
pólen de 80g/m2 pela Prol editora gráfica. A impressão em papel
pólen de baixa gramatura diminui um pouco a saturação das
ilustrações. Na Figura 98 (ao lado) podemos ver a quarta capa,
lombo e capa de Um outro pastoreio. A capa e o lombo possuem
o título e nome dos autores, e não há logotipo da editora, já
que o projeto ainda não possui editora. Na quarta capa, temos
a sinopse do livro, junto com um trecho da apresentação de
Renato Canini e Maria de Lourdes Martins Canini.
Na ilustração da capa, Figura 98, vemos o Negrinho do
Pastoreio, herói e um dos protagonistas da trama. O Negrinho do
Pastoreio é uma lenda do folclore brasileiro, mas precisamente
do folclore gaúcho. Segundo a lenda, em um dia de chuva e frio,
um Estanceiro, como são chamados os fazendeiros do sul do
país, enviou em missão seu pequeno escravo de apenas 14 anos
para pastorar cavalos. Em meio à chuva, o menino perde um dos
cavalos chamado Baio. O Estanceiro, então, pega o chicote e pune
o menino, e o ordena que volte e encontre o cavalo perdido. O
menino encontra o cavalo, que foge de seu controle, e, ao voltar
à fazenda, o menino é novamente punido com o chicote e preso Figura 98
Um outro pastoreio
a um formigueiro. Após um longo período, o Estanceiro volta ao Rodrigo Dmart (escritor)
local onde deixou o menino e, para sua surpresa, o Negrinho Indio San (ilustrador)
está sem feridas, montado no cavalo Baio, e ao lado dele está Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010
a Virgem Nossa Senhora. Deste dia em diante, a lenda que se
conta é que todo cristão que perder algo e acender uma vela ao
negrinho do pastoreio será atendido, sendo guiado a encontrar
o objeto perdido. A lenda do Negrinho do Pastoreio foi adaptada
e houve uma mistura com a mitologia dos orixás para compor a
narrativa de Um outro pastoreio.
134 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
3.3.3 ENREDO
O enredo de Um outro pastoreio acontece por meio de três linhas de tempo principais que se unem e
se relacionam ao longo da história. Na primeira linha de tempo, temos o velho Simão que segue em viagem,
procurando o túmulo do Negrinho do Pastoreio para revivê-lo, com intuito de que ele lute contra a horda para
salvar o mundo dos homens. Em seu caminho, à noite, na floresta, Simão encontra um menino e começa a
contar sobre a horda e a história do Negrinho do Pastoreio para o menino. Inicia-se, então, a segunda linha
temporal da história, que acontece por meio do relato de Simão.
O velho conta sobre a horda que é dominada pelo Estanceiro, e é movida por um monstro de metal que
incorpora e engole tudo que encontra pelo caminho. Simão conta que quando a horda apareceu, o negrinho
fugiu como muitas outras pessoas. Em sua fuga, o negrinho conhece uma feiticeira que reaviva sua coragem e
o incentiva a voltar e lutar pela sua terra, e o presenteia com um cavalo chamado Baio. O negrinho segue em
direção à guerra contra a horda, mas é capturado e torna-se escravo do Estanceiro. Em uma tentativa de lutar
contra seu senhor, o negrinho é açoitado até a morte e seu corpo é jogado em um formigueiro.
Quando Simão termina de contar esta história ao menino que ele encontrou na viagem, o velho descobre
que o menino é o espírito do Negrinho do Pastoreio, que o ajuda a encontrar seu túmulo. Então, o velho faz
uma magia com o próprio sangue que traz o negrinho de volta a vida com um corpo gigantesco. O Negrinho
com corpo gigantesco parte para cima do monstro de lata da horda, destruindo tudo e causando o caos.
A terceira linha temporal aparece fragmentada entre a primeira e a segunda linha e acontece no mundo
dos orixás, divindades espirituais das religiões africanas. No mundo os orixás, o Exu, mensageiro dos deuses,
utiliza-se do sinal de maus presságios para anunciar uma guerra sem precedentes no mundo dos homens. A
tramoia do Exu não é percebida pelas outras divindades que se desesperam e começam as discussões sobre
qual será a posição dos deuses na guerra. Ogum, deus da guerra, não quer saber de conversa, cria um artefato
que aprisiona todos os deuses para que ele possa lutar sozinho na guerra. Iansã, deusa dos ventos e relâmpagos,
é a única que descobre a armação de Ogum e não é aprisionada. Assim, Ogum desce ao mundo dos homens e
começa a formar um exército. Ogum ensina os homens a forjar armas e a criar máquinas de guerra. Porém os
homens traem o deus, o esquartejam e o aprisionam em uma caixa. Os homens gananciosos e com tecnologia
agora formam a horda. As três linhas narrativas então se unem entorno da horda e da caixa onde Ogum está
aprisionado, que é guardada pelo Estanceiro.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 135
Nesse ponto da história, já sabemos e 100 (abaixo), os pincéis funcionam como mantém uma conexão com um objeto do
que a feiticeira que encontrou o negrinho na elementos que interagem com a fotografia mundo visível, com o que vemos e percebemos
verdade é Iansã, a deusa que tenta recuperar para completar a figuração dos bonecos e criar com os sentidos e, convencionalmente, pode
o corpo de Ogum para libertar o panteão a figuração do cenário. Nesse caso, podemos ser chamado de ‘mundo real’. O conceito
que está aprisionado. Iansã, então, aparece dizer que os pincéis são elementos de uma de real pode atingir valores subjetivos,
e invade a cidade da horda juntamente com foto manipulação. Já nas Figuras 101 e 102 dependendo da crença religiosa, da cultura
o negrinho do pastoreio, com novo corpo (abaixo), os pincéis são o elemento principal e da época. Aqui consideramos ‘mundo real’
gigante. Iansã recupera a caixa onde está para a criação da figuração dos personagens, o que percebemos com os cinco sentidos e
aprisionado Ogum e volta para o mundo caracterizando assim uma pintura digital. por meio da leitura dos fenômenos criamos
dos deuses onde os Orixás são libertados, e Como elemento presente tanto nas imagens modelos para subjetivar um mundo estável
o Exu é punido. O Estanceiro morre com um produzidas por meio da técnica da foto e o chamamos de realidade. A fotografia dos
raio de Iansã, e o negrinho e o velho Simão manipulação quanto nas imagens produzidas bonecos que aparecem na Figura 99 (abaixo)
recuperam a paz no mundo dos homens. por meio da técnica da pintura digital, os possui um caráter de imagem religiosa, de
Para ilustrar um enredo tão complexo pincéis, ajudam a manter a unidade no design divindade, de santidade. Assim, os bonecos
e rico, encontramos no livro uma linha visual nas ilustrações. Como vemos nas Figuras são objetos do ‘mundo real’ com ligação com
que mistura fotografia, foto manipulação e a 100, 101 e 102 (abaixo), a pintura digital o mundo mítico. O mundo mítico é criado a
pintura digital. A fotografia tem como suporte de Um outro pastoreio é bem livre, sem se partir de um discurso, de uma fala repleta
um fenômeno químico ou eletromagnético. preocupar em captar todos os detalhes que de simbolismos e sugestões de fenômenos,
Quando digitalizada, pode ser manipulada vemos no mundo visível. A pintura por meio que podem, dependendo do ponto de vista
por um software como o photoshop. Na dos pincéis dos softwares digitais, neste caso, ,extrapolar o sentido do ‘real’. A fotografia
fotomanipulação podem ser realizados apenas nos sugere a essência dos objetos, do boneco que representa a deusa Iansã é,
ajustes de cores, contraste, saturação, buscando insinuar a sensação e a qualidade portanto, um registro de um objeto do ‘mundo
efeitos de desfoque, texturização, brilho, dos objetos que figuram, tais como a textura, real’ que mantém uma conexão com o mundo
iluminação, mescla de fotografias diferentes a maciez e o peso. Em algumas áreas, a dos mitos. Os bonecos dentro da narrativa
e até a inserção de elementos de pintura pintura é tão gestual e espontânea que cria são personagens que atuam dentro do que
digital como os pincéis. A pintura digital é uma semelhança com elementos da arte foi imaginado pelos autores da história, que,
uma técnica de pintura em que a produção abstrata, ou seja, que não possuem o intuito para ser compreendida, será intersubjetivada
de imagens derivada do uso de ferramentas de criar figuração. pelos leitores. Assim, o design da ilustração
digitais com a utilização de softwares como O registro fotográfico como elemento de Um outro pastoreio mostra um universo
o painter e o photoshop. Neste processo, do design das ilustrações de Um outro imaginário que mantém ligações com o mítico
é comum a utilização da ferramenta pincel pastoreio funciona como constatação da e com o real. Essas características sugerem
que simula na tela do computador o efeito existência de um objeto que esteve de frente um mundo imaginário que beira o mundo
gerado pelos pincéis reais. Nas Figuras 99 do olhar da câmera. A fotografia, portanto, real e aproxima o leitor da narrativa.
136 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 99
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 137
Figura 103
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010
140 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
3.3.4 A MONTAGEM
Figura 104
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 141
Figura 110
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010
146 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 111
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 147
Figura 112
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010.
148 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 114
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010.
150 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Figura 116
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Marcação com vetor sobre Livro
ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 151
Figura 117
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Livro ilustrado, 2010
Fonte: DMART, 2010.
Figura 118
Um outro pastoreio
Rodrigo Dmart (escritor)
Indio San (ilustrador)
Marcação com vetor sobre Livro
ilustrado, 2010.
Fonte: DMART, 2010.
152 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Na Figura 117 (acima), a marcação A alternância entre os recursos de cena, para uma nova linha temporal dentro
da linha azul na Figura 118 (acima) montagem faz com que a cada virada de da história. Portanto, podemos perceber
mostra a sequência de leitura da fala dos página o leitor seja obrigado a compreender que os dois recursos que caracterizam a
personagens. Após esta sequência, partimos o sistema de leitura que está em vigor. No montagem no design da ilustração, são o uso
instintivamente para o topo da próxima caso de uma página que só possui texto, da página dupla e dos capítulos. O primeiro
página, onde há um texto descritivo sobre a sabemos que devemos seguir a linearidade para fazer a montagem de enunciados
cena, que segue o sentido de leitura como da palavra. Nas páginas semelhantes às verbais e ilustrativos, e o segundo para fazer
marcado em magenta na Figura 118. Entre a histórias em quadrinhos, sabemos que a montagem das linhas temporais da história.
leitura no espaço da marcação da linha azul e precisamos seguir a sequência dos quadros. Assim, a montagem da página de Um
no espaço da marcação da linha magenta há E nas páginas com configuração mais comum outro pastoreio, bem como a montagem
uma quebra de tempo narrativo. Enquanto ao livro ilustrado, sabemos que precisamos da sequência de páginas, utiliza-se da
na primeira linha temos um diálogo guiado relacionar o enunciado verbal ao enunciado combinação de diferentes níveis de interação
por texto e imagem, na segunda linha temos ilustrativo para chegar a uma compreensão entre texto e imagem. A cada página há um
um texto descritivo e uma ilustração que do todo. Assim o leitor é obrigado a percorrer conjunto de enunciados a ser decifrado pelo
apresenta uma ação. Essa quebra pode ser o espaço da página buscando a chave que o leitor, que deve investigar o espaço da página
lida como uma tensão narrativa, já que a guia a encontrar as convenções de leitura de para compreender a narrativa. A combinação
imagem apresenta o golpe de Ogum no cada página. e a montagem de tantos enunciados que
coração do dragão, enquanto o texto descreve Os capítulos de Um outro Pastoreio fragmentam ou dão sequencialidade à
a mesma ação adicionando o tom dramático. funcionam como pontos de transição na narrativa criam uma cadeia labiríntica na
Portanto, a sequência de leitura das páginas montagem das diferentes linhas temporais qual o leitor navega tentando recompor as
de Um outro pastoreio utiliza-se de diversos que a narrativa desenvolve. A cada capítulo partes da narrativa. Instigar o leitor a buscar
recursos na página dupla para empregar o foco narrativo do personagem pode ser o detalhe parece ser a principal característica
diferentes ritmos na montagem sequencial. alterado, levando o leitor para uma outra da montagem de Um outro pastoreio.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo permitiu a compreensão da dinâmica do design da ilustração e a sua característica interdisciplinar.
Ilustrar exige a criação de uma estrutura de elementos visuais para iluminar uma ideia e, portanto, esse processo
retém alguns conceitos do termo design, como, por exemplo, o de ‘desígnio’ e o de ‘estruturação’.
Conforme destacado anteriormente, a escolha de técnicas e de materiais para produção da imagem ilustrativa,
empregando sentido a cada uma das opções tomadas, faz parte do design da ilustração. Assim, a ilustração pode
ser desenvolvida com diferentes processos, tais como a fotografia, a pintura, a colagem e o desenho. Entretanto, o
que fundamentalmente caracteriza o design da ilustração é o seu discurso e a sua função de ilustrar.
Foi a partir do século XIX que o livro ilustrado começou a estabelecer códigos e convenções da maneira
como conhecemos hoje. Época em que as novas técnicas de impressão como a litografia estão disponíveis, o que
facilita a impressão de texto e imagem na mesma página. Com o passar das décadas até a chegada do período
moderno, os ilustradores se tornaram cada vez mais ousados ao criar relações entre texto e imagem. A ilustração
passa a predominar sobre o texto. Entre o período moderno e o contemporâneo, o projeto gráfico tem cada vez
mais importância no livro ilustrado. Muitas vezes são criadas relações entre a tipografia, o formato e a composição
da página com o conteúdo da narrativa. A década de 1990 pode ser vista como o momento de consolidação do
livro ilustrado contemporâneo, pelos projetos cada vez mais inusitados e pela relação do livro ilustrado com a arte
contemporânea. A partir de então, cada vez mais, o livro ilustrado rompe limites de tamanho, materialidade, estilo
técnica e toda dimensão visual.
154 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
No Brasil, o livro ilustrado passa a ser projetado a partir de uma com esta complexidade em atingir um público de diferentes idades
perspectiva industrial nas primeiras décadas do século XX, devido à analisando caso a caso.
modernização das práticas e produtos. Nesse período, Monteiro Lobato No design da ilustração e da página do livro ilustrado, os
pode ser visto como um agente que impulsionou a produção nacional profissionais utilizam-se de elementos do design, tais como as cores, as
do livro ilustrado, tanto como escritor quanto como editor. Infelizmente, formas, as linhas, as texturas, a tipografia, a criação e a representação
podemos perceber que há uma lacuna no registro histórico da produção de figuras. Dentro do estudo dos elementos do design é comum dividir
do livro ilustrado brasileiro. as formas visuais em três níveis: a figurativa, a abstrata e a simbólica.
Entre as últimas décadas do século XX e a primeira década do Diante de um fenômeno visual, costumamos encontrar relações
século XXI, podemos notar que o livro ilustrado passa por mudanças de e equivalências entre o que vemos e o que está fora do que vemos, o
linguagem, de qualidade de papel e impressão, devido à presença dos que pode ser chamado de metáforas visuais. O ilustrador cria metáforas
cursos de design gráfico no país, a utilização da computação gráfica e visuais que estejam de acordo com a narrativa e com seu tema. Assim,
das novas tecnologias de impressão. No design da ilustração do livro ao trabalhar no design de sua obra, o ilustrador tem em vista os códigos
ilustrado contemporâneo encontramos diferentes técnicas de produção culturais e universais de seu público.
das imagens, como a colagem de papel e de tecidos, e a mistura de O design é indispensável na concepção do livro ilustrado por
diferentes técnicas de pintura além do uso da fotografia e de softwares exigir uma organização da informação a ser impressa e de processos de
como o photoshop (software usado no tratamento de imagens no sistema produção, o que também envolve escolhas estéticas. No livro ilustrado
digital). Também é comum a hibridização dessas técnicas na produção são realizadas diferentes etapas para estruturação do conteúdo, como
da imagem ilustrativa. Outra característica é que os ilustradores, muitas organização dos componentes físicos capa, folha de rosto, miolo etc.,
vezes, também trabalham como escritores e designers gráfico. escolha do suporte de produção das imagens, do suporte de impressão
Por vezes, a idade do público-alvo do livro ilustrado e organização do conteúdo impresso nas páginas. Não necessariamente
contemporâneo não fica clara, por possuir uma linguagem aberta e até o autor deve estar consciente de todas as necessidades de cada etapa
ambígua na relação de palavra e imagem, o que contradiz a simplicidade para que possamos dizer que há design em sua obra. Portanto, o livro
para comunicação com o público infantil. Os autores costumam levar ilustrado é um objeto que tem sua origem no design.
em consideração o desenvolvimento da criança para compor a narrativa No design da ilustração, o artista controla sua criação com o
e a escolha do tema para atender as exigências do público. E para objetivo de comunicar a essência do assunto. Portanto, as escolhas
enriquecer a experiência do livro ilustrado, muitos autores preocupam- decorrentes do processo de composição da imagem não partem do
se em tornar o livro um produto atrativo tanto para os adultos quanto acaso. A técnica e o suporte podem apresentar qualidades que ofereçam
para as crianças. Isso por que é comum que os adultos leiam os livros interpretações específicas ao leitor. Portanto, ter o domínio sobre as
ilustrados para as crianças em processo de alfabetização. Portanto, ferramentas de trabalho e prever os efeitos psicológicos que a obra tem
para definir objetivos para um projeto gráfico, o designer precisa lidar no público são funções do trabalho do ilustrador.
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 155
Ao criar uma organização e hierarquia na informação do fotografia, agregando recursos e elementos em sua narrativa. Embora
conteúdo impresso, o designer pretende guiar a atenção do leitor. No o livro de imagens e o livro pop-up sejam considerados categoria
livro ilustrado, enquanto as ilustrações narrativas possuem a principal de livro ilustrado, o objeto de estudo desta dissertação são os livros
função de, por meio da mútua interação entre texto e imagem, dar ilustrados que desenvolvem a narrativa por meio da intensa relação
contiguidade à narrativa. As ilustrações ornamentais narrativas entre o texto e a imagem, com uma organização coerente que contribui
costumam introduzir temáticas e sensações, atrair o público, criar para a narrativa. A organização da página dupla e do encadeamento de
sistemas de navegação no livro e gerar novos questionamentos sobre a páginas e os recursos de papelaria são importantes nestes objetos.
narrativa. Ou seja, a ilustração ornamental narrativa aparece no espaço A ilustração, ao narrar, sugere por meio de convenções o tempo
do livro ilustrado com intuito de enriquecer a história, o projeto gráfico de duração das ações. O encadeamento dos instantes congelados na
e o objeto livro. São os padrões ornamentais, as capitulares, vinhetas, ilustração pode sugerir o tempo que se passou entre uma cena e outra,
molduras e rébus. Portanto, buscar unidade, coerência e questionar embora muitas vezes seja necessário a intervenção do texto para
sobre a função entre todos elementos ilustrativos no projeto gráfico é situar o leitor no tempo fictício. Dessa forma, é importante o design de
responsabilidade do designer e do ilustrador. uma montagem coerente e lógica dos enunciados ilustrativos. Vimos
Assim, o designer costuma definir uma série de regras que visam também que a moldura, como delimitadora do tamanho da imagem
empregar a coerência na organização dos elementos do livro ilustrado. ou do suporte, pode influenciar no efeito psicológico do leitor diante
Essas regras visam não apenas uma organização visual, mas também o de uma ilustração. Assim, vimos que o impacto da composição da
registro de estímulos e efeitos que gerem emoções e sentimentos no ilustração está indissociável do tamanho e do formato da moldura.
leitor. Há a preocupação com a sensibilidade e a cultura do público que Percebemos que no livro ilustrado, ao possuirmos um narrador visual
se caracteriza também por um espaço geográfico e pela época. Para e um verbal, o ponto de vista de cada um pode assumir diferentes
atender à demanda, é comum que os profissionais envolvidos sigam configurações, concordando ou causando contrapontos na narrativa.
uma metodologia, guiada por um briefing, que aponta necessidades e Notamos que no design da ilustração do livro ilustrado são
objetivos específicos. criados diferentes níveis de relação entre texto e imagem. Nesse
Podemos perceber que o livro com ilustrações, algumas vezes, caso, texto e imagem podem ser parcialmente redundantes, já que
pode ser confundido com o livro ilustrado. Porém, enquanto no livro são linguagens diferentes. Podem unir as forças de cada uma das
com ilustrações a ilustração aparece como coadjuvante em meio ao linguagens para descrever com eficiência determinados enunciados.
texto preponderante nas páginas, no livro ilustrado a ilustração é E podem referir-se a universos distintos ou se contradizer para criar
sempre preponderante. novos sentidos para a história. Então percebemos que o design
O livro de imagens é aquele que desenvolve sua narrativa por coerente entre as informações verbais e visuais é imprescindível para
meio de imagens, sem o auxilio do texto, e que pode ser visto como a construção de uma narrativa compreensível ao público. A relação
categoria de livro ilustrado. O livro pop-up é aquele que possui um entre o verbal e o visual está na essência do design da ilustração. Desde
sistema de funcionamento com encaixes e abas que se desdobram a escolha dos momentos ilustrados, na organização de elementos
em três dimensões. Embora tenha características específicas, também visuais na ilustração e na página do livro. E também na criação de
pode ser visto como categoria de livro ilustrado. O livro ilustrado pode efeitos visuais que estabilizam pontes entre a sensação expressa no
abrir diálogo com as histórias em quadrinhos, o cinema, a arte e a texto e na ilustração.
156 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
Vimos que a sugestão e a dúvida são dois elementos catalisadores ritmo, como, por exemplo, o ritmo sugerido em como os cabelos ou as
para a imaginação dentro da ilustração. Sugestão, nesse caso, refere-se a roupas balançam ao vento. A diagramação dos elementos na página, a
todos os efeitos visuais criados pelo ilustrador que não revelam as figuras, composição da imagem, a escolha dos pontos de vista, a gestualidade
deixando a imagem para ser completada pelo leitor. E a dúvida refere- das pinceladas, a ausência e a presença da moldura, o formato, todos
se aos efeitos visuais criados para gerar questionamento no leitor, para esses recursos podem ser utilizados para compor o design da ilustração.
que este encontre suas próprias conclusões. Ao criar efeitos visuais que Enquanto o texto pode sugerir um ritmo por meio de conceitos
buscam descrever a tensão de um momento narrativo, ou um aspecto e sonoridades, a ilustração é capaz de apresentar um tempo dentro
emocional do personagem, a ilustração, por ser mais subjetiva que o do espaço de cada cena representada e do espaço de cada página. A
texto, deixa que o leitor tire suas próprias conclusões. No design da montagem desses elementos reflete em um ritmo. Esse ritmo apresenta
ilustração, a ambientação do cenário e a caracterização dos personagens qualidades que podem sugerir o desdobramento das cenas e ações que
são elementos de grande importância para criação dos efeitos visuais podem aparecer na imaginação do leitor. Portanto, o ritmo no design da
que são intersubjetivados pelo leitor. Por meio das convenções, o leitor ilustração não é apenas um recurso estético, mas, sim, um recurso que
pode extrair das imagens uma interpretação do perfil psicológico do denota o ‘como’ é contada a história, influenciando em ‘como’ a história
personagem ou do clima em que a história será contada. Portanto, pode influenciar o psicológico do leitor.
podemos perceber que o design da ilustração está diretamente ligado Quando contamos uma história oralmente, temos um ritmo e
ao ato de contar histórias, que tem como intuito conquistar o leitor, podemos mudar esse ritmo a cada vez que repetirmos o ato. Quando
influenciar a busca pelo detalhe e ao mergulho na imaginação. contamos a mesma história por meios textuais, o ritmo do que
Criar o design para ilustrações de um livro ilustrado implica em registramos no texto é inalterado, porém podemos alterar o ritmo, com
criar um mundo imaginário que surge de um conceito de representação que percebemos a mensagem se a leitura acontecer com outro estado
imaginado pelo ilustrador e que de alguma forma se relaciona ao conceito de espírito. Quando contamos uma história por meio de palavras e
da narrativa. A função deste mundo imaginário é fisgar a imaginação do imagens, tudo fica ainda mais complexo. Como texto e imagem são tipos
leitor para um mundo nunca antes imaginado por ele. de leituras diferentes, o leitor terá sempre um processo subjetivo ao
Percebemos que o ritmo é um aspecto de destaque no projeto juntar a compreensão das duas linguagens que pode passar por muitos
gráfico e no design da ilustração. O ritmo nas artes visuais é uma repetição filtros, como, por exemplo, o estado de espírito, a idade, a língua, a
de elementos que exercem influência um sobre o outro. A linha, a forma, cultura etc. Assim, podemos perceber que cada meio de contar uma
a cor, a textura, o tom, todos estes elementos apresentam características história pressupõe convenções. As bases do que foi contado talvez não
que exercem influência sobre o ritmo visual. Além das formas não sejam alteradas, mas o ‘como’ a história fisga o leitor poderá mudar.
representativas, também as formas figurativas podem apresentar
JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO 157
Com o uso de materiais e processos de impressão, como, por exemplo, as cores especiais, o ilustrador pode
empregar qualidades específicas em cenários, personagens e objetos. Também percebemos que o conhecimento
sobre os processos de impressão possibilita que o ilustrador viabilize seu processo de produção de imagens com
o processo de reprodução industrial.
Quando se inspira no imaginário popular e simplifica as formas da ilustração, o ilustrador deixa de colocar
nos personagens muitos detalhes que poderiam existir nas figuras se fossem elaboradas de uma outra forma. Ao
esconder os detalhes desnecessários para caracterizar os personagens, o ilustrador foca-se no essencial, tentando
juntar os traços mais característicos de cada personagem, os traços presentes no imaginário popular. Com isso,
podemos pressupor que os personagens podem ser reconhecíveis para uma margem de público maior. Ao inspirar-
se em repertórios visuais de diferentes culturas para compor o design da ilustração de um livro ilustrado, o designer
é capaz de compor novas visualidades. Assim, percebemos que a escolha dos personagens, do cenário, da história
a ser contada, e a inspiração no imaginário popular, consequentemente, influencia o design da ilustração.
Por mais linhas de tempo que uma história tenha, e que por mais labiríntica que seja a trama, o livro
ilustrado sempre exige o design de uma montagem coerente de enunciados textuais e ilustrativos. A montagem
além de organizar o conteúdo de uma forma coerente, tem a importância de por meio da sobreposição de
enunciados, despertar emoções no leitor expressando ritmos e tensões da narrativa. O ritmo é um elemento da
montagem, porém, enquanto o ritmo se desenvolve no tempo e no espaço, a montagem pressupõe o corte. A
montagem é o que leva o leitor de um lugar a outro, de uma cena à outra, de uma ideia a outra, em um instante.
Quando o leitor se depara com enunciados verbais e visuais e tenta dar sentido e sequência às informações,
pressupõe-se que ele imagine as lacunas que não aparecem no texto ou nas imagens. O espaço entre um enunciado
e o próximo e como vão se montar é o que caracteriza a montagem. Podemos falar da montagem dos enunciados
de uma página, da montagem dos enunciados entre as páginas e da montagem dos enunciados entre linhas de
tempo da história.
Quando temos duas imagens não acompanhadas de texto, que se relacionam em um tempo narrativo,
a relação de montagem entre elas acontece imagem a imagem. Quando temos duas imagens complementadas
de enunciados verbais, a montagem do tempo entre um e outro pode ser ditado pelo texto ou pela imagem.
Nesse caso, temos uma relação de montagem de texto a imagem ou de imagem a imagem. Quando temos um
enunciado textual e outro ilustrativo separados, a relação de montagem entre os dois enunciados é de texto a
imagem. Enunciados verbais e ilustrativos coexistentes no mesmo espaço não caracterizam a montagem, porque
se pressupõe que as duas informações estão se relacionando sem que haja nenhum corte. Percebemos, então,
que a montagem de enunciados verbais e visuais no design da ilustração pode criar diferentes ritmos e tensões
narrativas, o que pode sugestionar a imaginação do leitor.
158 JORGE PAIVA - O DESIGN DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
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