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Cr'itica da musicologia e apontamentos de fenomenologia

Conference Paper · January 2008

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Gimenes Toffolo Luis Felipe Oliveira


Universidade Estadual de Maringá Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Crítica da musicologia e apontamentos de fenomenologia

Rael B. Gimenes Toffolo


UEM
rbgtoffolo@uem.br
Luis Felipe de Oliveira
UNICAMP
oliveira.lf@gmail.com
André Luiz Gonçalves de Oliveira
UNOESTE
alguns@gmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar princípios que consideramos fundamentais para o
desenvolvimento de uma musicologia de orientação fenomenológica. Iniciamos por uma
descrição histórica da musicologia apresentando os estudos sobre música relevantes para a
formação da cultura ocidental e tratamos também dos limites e alcances dos estudos
musicológicos a partir do século XVIII. Classificamos os estudos sobre música em três vertentes
musicológicas principais e apontamos uma crítica sobre problemas conceituais específicos a
cada vertente. Como última etapa descrevemos princípios organizadores de uma musicologia
fenomenológica. Tais princípios são apenas descritos como um primeiro conjunto conceitual
para o desenvolvimento de estudos futuros que poderão decorrer em novas tendências nos
estudos musicológicos.

Palavras-chave: Musicologia, Fenomenologia.

a descrição da atividade musical prática,


1. Introdução em especial da composição, abordagem
esta inaugurada no Micrologus de Guido
Os estudos sobre música remontam d´Arezzo, que tem por seqüência as obras
à formação da história do ocidente. As teóricas de Vitry à Rameau, passando por
primeiras abordagens que anacronicamente Tinctoris e Zarlino. Essas visões sobre
podemos chamar de musicológicas são música se mantêm de forma muito similar
resultantes dos princípios pitagóricos que até o fim da renascença, só sendo
consideravam a música como parte de uma sobrepujadas pela revolução copernicana.
cosmologia fundada no conceito de No século XVII a influência de
número enquanto unidade, conceito este Descartes foi tão significativa que
que se aplicava às várias instâncias do podemos considerar a Idade Moderna
cosmos; através do número é que se como a era do pensamento cartesiano,
entendiam as proporções dos corpos caracterizado por duas principais
sonoros, sua relação com o nível humano e doutrinas: o racionalismo, inclusive
com o movimento das esferas celestes. Tal enquanto fundamento de uma metodologia
abordagem, remodelada de formas científica, e o dualismo mente-corpo,
diferenciadas por Platão e Aristóteles, se também chamado de Dualismo cartesiano.
estendeu pelo mundo Romano e por toda a Obviamente, tanto a nova cosmologia
idade média. É neste período que além de possibilitada pela revolução copernicana
tratados com abordagens mais filosóficas quanto as novas práticas científicas e
(cosmológicas) surgem outros que visavam filosóficas decorrentes do pensamento

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cartesiano alteraram as formas de como se músicos e a música dos nativos e


fazer, experimentar e falar sobre música. estrangeiros. Ainda no século XVIII,
A posição cartesiana assumida pela Forkel apresenta uma divisão diferenciada
ciência e filosofia moderna e por que se caracteriza pelos estudos da física
conseqüência nos estudos sobre música do som, da matemática do som, da
incorre em oposições como pode ser gramática musical, da retórica musical e da
verificado nos trabalhos de caráter crítica musical. A preocupação com a
fisicalista de Helmholtz e Stumpf, de um música não ocidental tem início nos
lado, e a filosofia metafísica de trabalhos de Fétis no século XIX, sendo
Schopenhauer, por exemplo, de outro. Essa este considerado o formador das bases para
oposição também pode ser encontrada o surgimento da Musicologia Comparada
entre Hanslick e Wagner; entre a música ou Etnomusicologia. Guido Adler, em
entendida como representação de nada 1855, foi o responsável pela distinção entre
além de si mesma e a música servindo a musicologia histórica e musicologia
um ideal máximo e sintético da obra de sistemática, que amplia a área de estudos
arte total, da Gesamtkunstwerk, que musicológicos para além daqueles de
Wagner retirou da tragédia clássica. Áreas natureza histórica, incluindo aspectos
como a Psicologia1 não surgiriam teóricos e analíticos, sociológicos e
descoladas da física não fosse o rumo culturais, estéticos e educacionais. De fato,
cartesiano da história da ciência. Há, como o termo musicologia, ou
consenso, uma posição distinta entre os Musikwissenschaft, que significa Ciência
assuntos chamados de ciências humanas e da Música, surge como título do trabalho
os chamados de ciências naturais. Tal de Johann Bernhard Logier, em 1827
distinção é tão carente de fundamento que, (apesar de que os termos musikalische
sem querer aprofundar a crítica, poder-se- Wissenschaft e tonwissenschaft remontam
ia questionar se o próprio homem não faz a textos do século XVIII).
parte da natureza (cf. Merleau-Ponty, No entanto, quando se fala em
2000). No entanto, para retornar ao ramo musicologia enquanto ciência,
central do nosso interesse, a musicologia é tradicionalmente o que se tem em mente
fruto de uma ciência objetivista e de uma são as áreas das ciências humanas,
filosofia e psicologia metafísicas, que se principalmente as ciências sociais e a
entendem como distintas, quando não filosofia. No século XX inclusive, existe
como excludentes. uma grande ênfase em aspectos
Ainda não havia uma área de sociológicos, antropológicos e etnológicos,
estudos denominada musicologia e é talvez mesmo até em detrimento de
somente a partir do século XVIII que questões filosóficas (epistemológicas e
Framery apresenta uma das primeiras mais ainda ontológicas). Dentro dessa
divisões que demarcaram o escopo da linha, alguns musicólogos do século XX
musicologia. Tal autor estabeleceu um hall irão sugeriram que a etnomusicologia
de disciplinas e áreas de atuação que tem deixasse de ser uma sub-área da
como raiz a Acústica subdividida em musicologia para, na verdade, ser ela
ciências quantitativas e ciências própria a visão de musicologia que deveria
metafísicas, a Prática Musical subdividida ser praticada. Segundo tal visão, a
em composição e interpretação e a História musicologia deveria englobar, estudar e se
da Música que engloba os fatos presentes e relacionar com aspectos estruturais e
passados, a história da música e dos estéticos, porém sempre dentro de uma
visão sociológica, não eurocentrada, que
1
Apesar do termo único, entendemos que a substituísse a musicologia essencialmente
Psicologia abarca áreas distintas e nossa crítica histórica feita até o momento. Dessa forma
encaminha-se especificamente àquelas mais ligas à a musicologia tradicional deveria adotar a
metafísica dualista.
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metodologia aplicada aos estudos chuva” de musicologia, estipula duas


etnomusicológicos como afirmam grandes categorias nos estudos sobre
Harrison, Hood, & Palisca (1963): “É música da atualidade: musicologia
função de toda musicologia ser na verdade sistemática e musicologia histórica e
etnomusicologia.” Essa visão recuperada e etnológica. A musicologia sistemática
revisitada a partir da década de 1980, divide-se em dois sub-grupos. O primeiro
recebeu o nome de Nova Musicologia e foi seria a musicologia sistemática científica,
protagonizada por trabalhos influenciados incluindo a relação entre a música e áreas
pela Nouvelle Historie, pela Antropologia como a psicologia, as ciências sociais, a
Cultural, pela Sociologia, pela Crítica acústica, a fisiologia, a neurociência e a
Literária e pelos trabalhos da Escola de ciência cognitiva. Por sua vez, a
Frankfurt. Kramer (2003), em sua musicologia sistemática humanística,
Musicologia Cultural, afirma que suas incluiria a filosofia estética, a sociologia, a
preocupações centram-se, antes de tudo, semiótica, a hermenêutica, a crítica
em questões do significado musical musical e os estudos culturais e de gêneros.
amplamente elaboradas em um contexto Nos últimos anos, temos visto a
antropológico. A tendência geral na manifestação de uma área que se auto-
musicologia pós década de 1980 denomina Musicologia Interdisciplinar que
caracteriza-se pela investigação dos tem como principal fundamento a
fenômenos musicais a partir dos aspectos aproximação entre as duas vertentes da
sociológicos, significações de tais Musicologia Sistemática, segundo o
manifestações em grupos sociais, não entendimento de Parncutt e outros. De
devendo considerar questões que se qualquer forma, a delimitação das ciências
afastem disso. que constituem uma área como a
A partir dos anos de 1990, surge musicologia vai sempre ser limitada,
um outro tipo de musicologia que se mesmo porque a prática de pesquisa,
concentrou não sobre aspectos sociais e principalmente dentro das perspectivas
antropológicos, mas sobre aspectos multi ou interdisciplinares, que têm se
psicológicos e cognitivos da experiência destacado na atualidade tendem escapar a
musical. Tal área, chamada de Musicologia uma sistematização. Nesse sentido,
Cognitiva, se caracteriza em primeiro parecem mais fácil delimitar agendas de
lugar, por uma reformulação da agenda de pesquisa e questões a serem estudadas do
pesquisa da psicologia da música e em que áreas e metodologias que podem
segundo lugar pelo apoio sobre os exercer tais investigações. Mesmo porque,
desenvolvimentos da chamada Revolução aparentemente, a Musicologia sempre teve
Cognitiva dos anos de 1970. Huron (1999), no mínimo uma vocação interdisciplinar.
aponta que a Musicologia Cognitiva se
opõe a Psicologia da Música, porque esta 2. Limites e alcances da Musicologia
última se apóia fortemente no positivismo
devido a seus protocolos behavioristas A partir deste momento o que nos
sendo, dessa forma, impedida de responder interessa é verificar se tais vertentes
questões ligadas à experiência musical musicológicas consideram questões
num sentido amplo. A Musicologia fundamentais sobre aquele que
Cognitiva possui ainda um forte apelo consideramos como ponto de partida para
computacional, decorrente das modelagens os estudos sobre música: a música
da Inteligência Artificial e do enquanto experiência.
Conexionismo, surgidos com a Revolução Propomos aqui uma taxonomia que
Cognitiva. somente visa destacar alguns pontos que
Parncutt (2007), no artigo que nos parecem estar razoavelmente
busca destrinchar o conceito “guarda- negligenciados em distintas orientações da

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Musicologia. Sendo assim, descrevemos não entendemos, ao contrário de Harrison,


três vertentes musicológicas: a) Hood, & Palisca (1963), que a musicologia
musicologia estruturalista, preocupada deve ser única e exclusivamente
com aspectos da sintaxe musical, que se etnomusicologia. Se a etnomusicologia
apóia na Teoria da Música e na Análise fosse capaz de responder nossas perguntas,
Musical; b) musicologia sócio-etnológica, poder-se-ia até cogitar tal possibilidade,
que pretende entender a música enquanto mas, de fato, esse não é o caso. Outra
fenômeno social e cultural; e c) problema sintomático do tipo de pesquisa
musicologia cognitiva, ocupada em que atrai os etnomusicólogos, é aquele
descrever como ocorrem determinadas referido ao interesse acentuado por
atividades musicais, entendidas como aspectos sociais sobre os propriamente
fenômenos cognitivos, atuando em musicais, e isso faz com que a musicologia
colaboração com a Psicologia, Filosofia, se torne uma parte da Sociologia, perdendo
Neurociência, entre outras. seu foco, assim como seu objeto de estudo
No entanto, observamos que as três (e.g. Bohlman, 1993; Brett, et al. 1994;
vertentes apresentam problemas. Não que Seeger, 1961).
sejam problemas ligados a suas próprias A musicologia estruturalista parece
constituições, mas são problemas que sofrer do contrário. Muitas vezes, torna-se
decorrem da defesa de uma musicologia de difícil distinguir entre os objetos de estudo
caráter o mais amplo possível, preocupada da Musicologia e da Teoria Musical. O
em lidar com questões conceituais básicas surgimento de novas formas de pesquisa e
o bastante para serem simplesmente de metodologias joga luz sobre antigos
desconsideradas nas abordagens mais postulados de tratadistas, teóricos e
tradicionais. Tais vertentes não enunciam compositores. O próprio desenvolvimento
questões como: qual é a natureza da da área analítica com novas técnicas
música, o que é e como é o fenômeno numéricas e computacionais (e. g. Forte,
musical, como experienciamos música, 1977; Oliveira, 1998) e a semelhança
como entendemos música, como sintática entre a música e a linguagem
percebemos música, para que serve natural (e. g. Raffman, 1993) favoreceram
música, por que gostamos de música? as investigações musicológicas de caráter
Talvez essas perguntas sejam básicas estruturalista. Mas, existe nessa
demais para serem investigadas em musicologia um domínio dos estudos sobre
abordagens musicológicas que já tenham o sistema tonal (e.g. Krumhansl & Kessler,
suas agendas preenchidas com suas 1982; Krumhansl & Shepard, 1989),
especificidades. Ao mesmo tempo são porém, ao contrário da musicologia sócio-
musicais demais, para serem meramente etnológica, estuda-se o sistema tonal sob o
lançadas à área da Epistemologia ou da enfoque das estruturas sintáticas e não das
Estética Geral. influências sócio-culturais correlacionadas.
Uma musicologia sócio-etnológica A vertente estruturalista tem grande apreço
pode lidar com algumas destas questões e, pela História da Música - o contrário
normalmente nem considera outras delas. também se mostra verdadeiro (e. g.
Na melhor das hipóteses tal orientação Dahlhaus, 1983). A Teoria Musical é uma
levará a respostas que consideram sempre área de conhecimento indispensável, assim
a música enquanto fenômeno social. No como a Análise Musical, mas a redução da
entanto, pode-se muito bem perguntar se é musicologia a elas ou, na melhor das
função da musicologia sócio-etnológica hipóteses a uma história da teoria musical,
responder e mesmo se interessar por que tem como metodologia a prática
indagações como as que levantamos acima. analítica, parece ser um estreitamento
Por outro lado, isso não faz com que tais muito acentuado do que pode ser a
questões sejam irrelevantes, mesmo porque musicologia; esse fato é ainda agravado

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pela falta de diálogo entre essa apontar à vertente musicológica cognitiva é


musicologia estruturalista e a sócio- o uso de modelos psicoacústicos baseados
etnomusicológica. no paradigma do processamento de
A musicologia cognitiva, inclusive, informação, que carregam questões no
dedica-se à investigação acerca das mínimo controversas como seu caráter
relações entre níveis semântico e sintático, desincorporado e abstrato, do uso
porém através de um encaminhamento exagerado de representações físicas de
problemático, no qual o nível semântico é conteúdo simbólico que remontam ao
redutível ao sintático, ou seja, os aspectos problema do homúnculo, e a entender a
de significação do fenômeno musical são percepção como um processo do tipo de
explicados a partir da organização dos resolução (abstrata) de problemas, sem
elementos estruturais da obra (e.g. Lerdhal nenhuma consideração dos papeis que a
& Jakendoff, 1983). Naquelas propostas ação e o corpo exercem (cf. Clarke, 2005;
que não aceitam tal reducionismo, observa- Oliveira e Toffolo, 2005; Haselager, 2004;
se uma volta à perspectiva dualista – em Oliveira & Oliveira, 2003, Oliveira, 2002;
certo sentido uma perspectiva reducionista Merleau-Ponty, 1999). Nos parece,
formal, e ao mesmo tempo inclusive por decorrência do apreço pelo
conceitualmente dualista, já era defendida processamento de informação e das origens
por Hanslick (1989). Numa observação computacionais da mencionada revolução
panorâmica, pode-se ter a impressão de cognitiva, que a musicologia cognitiva
uma contradição entre os métodos e carrega consigo, mesmo que
objetivos desta musicologia; enquanto os implicitamente, a perspectiva dualista que
primeiros são bastante restritos, os separa de um lado uma mente que recebe
segundos são amplos e visam abranger informações precariamente estruturadas, e
todo um universo de casos. Como exemplo as elabora na construção de representações
do que acabamos de argumentar, podemos simbólicas sobre o qual o conhecimento se
tomar as pesquisas de Leman (1984). Tal sustenta, e de outro, o mundo enquanto
autor emprega uma metodologia bastante realidade física desordenada, que de
restritiva e simplista, como no caso do uso alguma forma propicia tal operação mental
das reduções em pitch-class. Porém suas de construção do conhecimento (cf. M-
conclusões, ou seus objetivos, visam dar Ponty, 2005 e 1999; Searle, 1998). Um
conta de explicar processos complexos, outro aspecto ainda a realçar é que para ao
como o de ontogênese do sistema tonal. paradigma do processamento de
Não pensamos que o conexionismo não informação, a sintaxe é responsável única
contribua com a pesquisa sobre cognição e pela realização do significado. Em outras
musicologia. O que ressaltamos é que ele palavras, há problemas quanto ao
não pode ser tomado como única estabelecimento de relações explicativas
abordagem possível. Em outras palavras, entre os níveis sintático e semântico, sem
nossa crítica aponta que essa vertente da mencionar o papel que o domínio coletivo
musicologia cognitiva fica presa em uma exerce na determinação do significado.
lacuna epistemológica quando transpõem
resultados e conclusões de experimentos de 3. Musicologia fenomenológica
laboratório, como os feito com Mapas
Auto-Organizados de Kohonen, para Entendemos que a musicologia até
conclusões sobre ontogênese de um aqui não concentrou esforços em responder
sistema musical, ou ainda para explicar perguntas básicas, fundamentais para o
funções que ocorrerem em sistemas direcionamento dos caminhos da pesquisa
neuronais de maior complexidade, como o em música. Assim, a partir do
dos humanos. (cf. Janata et al., 2002). encaminhamento de novas saídas para
Outro grave problema que podemos problemas antigos e através da abordagem

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filosófica chamada de fenomenologia é que tecnologia desenvolvida no fim do século


esperamos apresentar uma possibilidade de XX trouxe novos horizontes aos modelos
direção aos estudos musicológicos, mais matemáticos, ampliou seu campo
especificamente àqueles que envolvem epistemológico e permitiu a reflexão sobre
percepção, significação e cognição relações antes impossíveis. Dupuy (1999)
musical. apresenta um caminho para a ontologia que
Em seu último livro, Maurice passa por uma naturalização da
Merleau-Ponty (2000), tece uma crítica a epistemologia e que vai ao encontro de
posicionamentos objetivistas e subjetivistas uma verdade heideggeriana sobre o Ser
como dois pólos de oscilação do mesmo (Sein), como diz: "a truth that involves a
paradigma; de um lado um mundo dado, deconstruction of the metaphysical view of
independente e anterior a um percebedor, the subject."
de outro lado, um percebedor que também Há grande proximidade entre essa
existe independente do mundo, que existe corrente filosófica, a fenomenologia, e
enquanto uma subjetividade, um áreas como a cibernética ou mesmo a
homúnculo, que pensa, considera, toma ciência cognitiva, por exemplo. Isso abre
decisões e, não sendo matéria, age sobre a caminho à proposta ontológica já iniciada
matéria. O autor aponta que todo no princípio de naturalização da
desenvolvimento da filosofia e da ciência Fenomenologia, presente no Visível e
modernas se dá sob o fundamento dualista Invisível de Merleau-Ponty, e as ciências
cartesiano, o que dificulta a tarefa de uma naturais. Em outras palavras, cremos que
investigação que procure na matéria e em uma musicologia fenomenológica pode
seu funcionamento particular as causas de encontrar nos estudos sobre percepção,
seus comportamentos específicos. A significação e cognição realizados pela
musicologia é uma das áreas do fenomenologia naturalizada, ou pela
conhecimento que vem apresentando uma ciência cognitiva atuacionista, um rico
transição bastante lenta entre o paradigma material para sua reflexão e descrições de
dualista cartesiano da modernidade e novas fenômenos musicais diversos; que ela pode
possibilidades paradigmáticas. Por isso nos reservar espaço em sua agenda e que
interessa voltar aos conceitos mais possui meios para desenvolver pesquisas a
fundamentais, para que a partir de novas fim de responder questões sobre a natureza
colocações acerca deles tenhamos novas do fenômeno musical, sobre a percepção
descrições sobre a experiência musical. musical, sobre significação e cognição
Fenomenologia tem sido um termo musicais.
empregado por diferentes filósofos e com A circunscrição do que estamos
certa variedade de significados. No denominando por musicologia
presente trabalho estamos nos referindo a fenomenológica envolve o exame de
uma tradição filosófica que se intitula alguns princípios ou conceitos
husserliana e que tem sido tema de fundamentais para a explicação de
comentários e encaminhamentos de uma qualquer fenômeno que se considere
série de autores2 durante todo o século XX musical: (i) a música é um fenômeno que
e na atualidade. Essa corrente tem envolve interação entre diferentes agentes
representado filósofos que buscam a para sua existência e desenvolvimento; (ii)
articulação dos saberes conceituais com a cognição musical é um caso particular de
práticas de laboratório, que permitem uma descrição geral de cognição
modelos onde as hipóteses conceituais (assumindo que se pode estabelecer um
podem ser implementadas ou testadas. A contínuo entre os processos cognitivos e os
processos naturais); e (iii) a significação
musical é um caso particular de um
2
M. Merleau-Ponty, M. Heidegger, H. Maturana, processo geral de significação.
F. Varela, J. Petitot, J.-M. Roy, entre outros.
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É plausível afirmar que vários HARRISON, F.; HOOD, M.; PALISCA,


pesquisadores ligados à musicologia não C. Musicology. Englewood Clifis:
estão satisfeitos com os resultados obtidos Prentice-Hall, 1963.
pela prática científica cartesianamente HASELAGER, W.F.G. O mal estar do
orientada. A crença de que existe um representacionismo: sete dores de cabeça
objeto musical independente de um agente, da Ciência Cognitiva. In: FERREIRA, A.;
ou de que música é pura interiodade, ou de GONZALEZ, M.E.Q.; Coelho, J.G.
que o significado musical está contido Encontro com as ciências cognitivas. São
naquele objeto, ou ainda de que a música Paulo: Cultura Acadêmica, 2004.
nada significa, são pressupostos que vêm
sendo gradativamente abandonados. HEIDEGGER, M. El Ser Y el Tiempo.
Entender a música enquanto experiência, México: Fondo de Cultura Económica,
enquanto fenômeno, parece possibilitar 1997.
uma compreensão muito mais ampla do HURON, D. Music and mind:
domínio musical, ao apoiar-se naquilo que Fundations of cognitive musicology.
consideramos como o fato mais essencial Online, 1999. Disponível em: http://music-
de qualquer musicologia, ou seja, no cog.ohio-
entendimento de música como um state.edu/music220/bloch.lectures/bloch.le
processo interativo entre os vários ctures.html.
elementos que constituem um sistema
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