O presente artigo procurará aproximar, através da idéia de uma Mística
da Unidade, a Filosofia de dois eminentes pensadores: Plotinoe Mestre Eckhart.
Buscaremos evidenciar - apesar da distância temporal e, portanto, dos diferen¬
tes momentos históricos - alguns pontos em comum entre a Filosofia Plotiniana
e a Eckhartiana; sobretudo, no que diz respeito aos pressupostos de seus fun¬
damentos, à questão do retorno e da unidade e ao problema da linguagem.
Mostraremos que, apesar de distantes, no espaço e no tempo, os dois constru¬
íram uma mística pautada em categorias e conceitos que nos permitem traçar um
paralelo entre a Filosofia de ambos, aproximando-as. Palavras-chave: mística,
unidade, retorno, desprendimento, linguagem.
O presente artigo procurará aproximar, através da idéia de uma Mística
da Unidade, a Filosofia de dois eminentes pensadores: Plotinoe Mestre Eckhart.
Buscaremos evidenciar - apesar da distância temporal e, portanto, dos diferen¬
tes momentos históricos - alguns pontos em comum entre a Filosofia Plotiniana
e a Eckhartiana; sobretudo, no que diz respeito aos pressupostos de seus fun¬
damentos, à questão do retorno e da unidade e ao problema da linguagem.
Mostraremos que, apesar de distantes, no espaço e no tempo, os dois constru¬
íram uma mística pautada em categorias e conceitos que nos permitem traçar um
paralelo entre a Filosofia de ambos, aproximando-as. Palavras-chave: mística,
unidade, retorno, desprendimento, linguagem.
O presente artigo procurará aproximar, através da idéia de uma Mística
da Unidade, a Filosofia de dois eminentes pensadores: Plotinoe Mestre Eckhart.
Buscaremos evidenciar - apesar da distância temporal e, portanto, dos diferen¬
tes momentos históricos - alguns pontos em comum entre a Filosofia Plotiniana
e a Eckhartiana; sobretudo, no que diz respeito aos pressupostos de seus fun¬
damentos, à questão do retorno e da unidade e ao problema da linguagem.
Mostraremos que, apesar de distantes, no espaço e no tempo, os dois constru¬
íram uma mística pautada em categorias e conceitos que nos permitem traçar um
paralelo entre a Filosofia de ambos, aproximando-as. Palavras-chave: mística,
unidade, retorno, desprendimento, linguagem.
Acora Fios6rica, ————________
Plotino e Mestre Eckhart:
uma mistica da unidade
Profa. Maria Simone Marinho Nogueira!
Resumo: 0 presente artigo procurard aproximar, através da idéia de uma Mistica
da Unidade, a Filosofia de dois eminentes pensadores: Plotino e Mestre Eckhart.
Buscaremos evidenciar - apesar da distancia temporal e, portanto, dos diferen-
tes momentos histéricos - alguns pontos em comum entre a Filosofia Plotiniana
e a Eckhartiana; sobretudo, no que diz respeito aos pressupostos de seus fun-
damentos, 4 questao do retorno e da unidade e ao problema da linguagem.
Mostraremos que, apesar de distantes, no espago € no tempo, os dois constru-
fram uma mistica pautada em categorias e conceitos que nos permitem tragar um
paralelo entre a Filosofia de ambos, aproximando-as. Palavras-chaye: mistica,
unidade, retorno, desprendimento, linguagem.
Abstract: this article will seek to bring closer together, by using the idea of a
Mystic of Unity, the Philosophy of two eminent thinkers: Plotinus and Master
Eckhart. We shall seek to provide evidence — despite the distance in time and,
therefore, of the different historical periods — of some points in common between
Plotinian and Eckhartian Philosophy, especially, with regard to the
presuppositions of their underlying principles, to the question of return and
unity and to the problem of language. We shall show that, despite being distant,
in space and time, the two of them constructed a mystic grounded in categories
and concepts which may permit us to trace a parallel between the Philosopy of
both, which brings them closer together.
Key-words: mystic, unity, return, disentangling, language.
Filosofia de Plotino é, antes de mais nada, uma Filosofia da Uni-
dade. Enquanto tal, ela convida-nos a percorrer um caminho de
volta, caminho que tem como meta final 0 retorno a patria perdida - a
contemplagao do Uno - representado pelo éxtase: um desnudamento,
um abandono do nosso préprio “eu”, uma fuga do sé para o $6, En-
quanto Filosofia da Unidade, 0 pensamento plotiniano oferece-nos dois
movimentos para que possamos pensé-la: 0 primeiro diz respeito &
processao (1196080); o segundo diz respeito ao retorno ( mis Tpo@N),
Ano 3¢n" 1/2 jan./dez. 2003 - 103DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
que, por sua vez, liga-se, diretamente, 4 necessidade de uma unidade
no éxtase mistico.
Com relacao ao primeiro movimento, toda a argumentagiio de
Plotino vai ser desenvolvida mediante a processio de todas as coisas
a partir do Uno. E preciso encontrar a unidade em todas as coisas,
mas, mantendo-se a diferenga que distingue o Uno das outras coisas.
Ha, na Filosofia de Plotino, algo que podemos chamar de sistema
triddico - Uno, Inteligénciae Alma ( v, vod¢, yoy), mas estas trés
hipéstases*, na verdade, formam uma unidade (En. V 1, 6: 40-45),
pois as duas Ultimas voltam-se e identificam-se com a primeira.
No que se refere ao segundo movimento, a questao da unidade
€ de fundamental importncia, pois s6 € possivel haver unido mistica
ou éxtase na auséncia de toda e qualquer dualidade (vac), dai, Uno,
unidade, uniao (Ev, évotng, Evwotc)*, E no segundo movimento que
esta, seguramente, toda a espinha dorsal do pensamento de Plotino.
O fim Gltimo 0 qual o ser humano almeja: encontrar-se sé com 0 S6
(@vy —pHdvov mpd Lovov— En. VI9, 11: 50-51). Esse fim ultimo
€ sustentado pelo Uno, que marca a relagdo de unidade no retorno
mistico. Nesse sentido, tentemos compreender melhor 0 Uno plotiniano,
buscando, posteriormente, relaciond-lo 4 mistica Eckhartiana, analisada,
sobretudo, através de dois Sermées em especifico: os Sermées 21 e
29).
A doutrina plotiniana sobre 0 Uno foi fortemente influenciada
pelo Parménides de Platao e também pela idéia do Bem desenvolvida
num outro didlogo daquele mesmo fildsofo: A Repiblica. Mas nao se
trata apenas de uma interpretagao e posterior “divulgaciio” dos textos
platénicos. Podemos afirmar que, apesar de se considerar um simples
exegeta dos didlogos platénicos, Plotino, consciente ou nao, faz uma
“desinterpretaciio” ou reinterpretagao’ dessas teses e, justamente nesse
ponto, reside a sua originalidade e, conseqiientemente, a construgao
de um sistema filosGfico que lhe é bem peculiar.
Quanto ao Parménides, podemos afirmar que Plotino
transforma a primeira hipotese do didlogo plat6nico na sua primeira e
principal hipéstase: o Uno. Dessa forma, a existéncia do Uno passa a
ser um fato incontestavel. Ainda com relagao a primeira hipéstase,
Plotino interpreta as negagdes do Parménides em termos de
104 * UNIveRSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO,Acora FILosorica
transcendéncia, o que implica dizer que hé uma insisténcia por parte
de Plotino em afirmar a transcendéncia do primeiro Principio; ou seja,
o Uno da primeira hipotese do Parménides nao esta, como podemos
ver pelas negagées, em 138 a-b “[...]emnenhuma parte, nemem si,
nemem outro [...]”°. Jé para 0 fildsofo alexandrino, conforme En. V
5.9: 1-26, o Uno esté em todas as coisas porque as contém, ao mesmo
tempo que nao est4 em nenhuma porque nao é contido por nenhuma
das coisas. Quanto a doutrina do Bem, Plotino substitui o termo Uno
( vy) pelo termo Bem (éya@6v) incontaveis vezes e, embora, tanto para
Platao quanto para Plotino, o Bem seja visto como fundamento do ser,
a supertranscendéncia daquele aparece isoladamente em uma passagem
de A Reptiblica (508e - 509d). Ja em Plotino, essa idéia reaparece
incansavelmente ao longo de todas as Enéadas’ e, neste sentido, o
Uno plotiniano nao sé é anterior a todas as coisas, conforme En. VI 8,
11: 4-5: “[...]Perguntar por sua causa é lhe procurar um outro principio;
ora, o principio universal nao tem princfpiof...]”*, como também esta
muito acima ou além de todas as coisas.
Feitas as observagées em relagao aos didlogos platénicos,
vejamos um outro pressuposto acerca da teoria plotiniana do primeiro
Principio, que se liga nao mais ao pensamento de Platao e, sim, as
idéias dos fildsofos pré-socraticos. Este pressuposto é a idéia da
infinitude, afirmada por Plotino em varias passagens de sua obra, como,
por exemplo, em En. V 5, 11: 1-5, onde ele escreve: “ele possui a
infinitude, porque nao é miltiplo, e porque nao hd nada parao limitar’”.
Ora, se fizermos uma breve leitura sobre 0 pensamento grego, veremos
que pouquissimos fildsofos se atreveram a atribuir ao primeiro Principio
a idéia de infinitude: Anaximandro, Anaximenes, Melissus e
Anaxagoras'®. No pensamento plat6nico-aristotélico, de uma forma
geral, aidéia de infinito era atribuida a idéia de indeterminado e, desse
modo, de imperfeigdo. Plotino, portanto, “refuta”, em boa parte, a
idéia plat6nico-aristotélica da inter-relagao infinito-indeterminado-
imperfeito e resgata a idéia de infinitude dos antigos fildsofos da @votc,
transportando-a para um plano imaterial: “E preciso admitir também
que sua infinitude consiste nao na incompletude de sua grandeza ou do
numero de suas partes, mas na auséncia de limites a sua poténcia” (En.
VI9, 6: 10-12)!"
Ano 3 +n 1/2 * jan./dez. 2003 - 105DePaRTAMENTO DE FILOSOFIA
Diante dessas consideragées, podemos verificar em que medida
a Filosofia de Plotino se aproxima e/ou se afasta do pensamento
helénico e em que medida essas aproximacOes ou esses afastamentos
permitem, gradativamente, vislumbrar, no sistema plotiniano, nao s6
um Ultimo e desesperado esforgo de resgate da Filosofia Grega, mas,
sobretudo, um re-pensar ¢ um re-fundar de toda metafisicaclassica. A
idéia de um fundamento primeiro e Ultimo, o Uno, enquanto
supertranscendente, fornece as chaves para se pensar a metafisica
plotiniana; a idéia do Uno enquanto infinito abre as portas que
guardam o aspecto mistico de sua filosofia. Por hora, procuremos
caracterizar, de forma mais precisa, a primeira hipdstase de Plotino.
Citemos, primeiramente, uma passagem do tratado En. V 4 — como
os seres que vém depois do Primeiro derivam do Primeiro: sobre o
Uno — por dois motivos: primeiro, a citagdo que sera feita, nao s6
reforga, como também resume, de forma mais transparente, as
caracteristicas em relagao ao Uno frisadas nos pardgrafos anteriores;
segundo, € nesse tratado, tomando-o pela ordem cronolégica, que
Plotino explicita, pela primeira vez, sua teoria sobre o Uno. Vejamos,
entao, uma passagem importante a respeito dessa teoria:
Enecessdrio com efeito que haja algo anterior a tudo,
algo que deve ser simples e diferente de tudo que lhe
€ posterior; existente por si mesmo; transcendente
ao que dele procede, e, ao mesmo tempo, de maneira
tipica, capaz de estar presente nos outros seres [...]
(En. V 4, 1: 5-10).
Podemos retirar dessa passagem trés “qualidades” importantes
em relagao ao Uno: anterioridade, transcendéncia e onipresenga; ou
seja, o Uno é anterior a tudo, dai a sua anterioridade; é transcendente,
pois difere de tudo que lhe é posterior, isto €, transcende a sua produgao
eé, ao mesmo tempo, onipresente, porque esta presente nos outros
seres (diz Plotino quando nos fala dessa onipresenga: “O Uno veio
como alguém que ndo veio”, ou seja, o Uno apresenta-se como algo
ja sempre presente). Mas é no tratado En. VI19 — Sobre o Bemou
o Uno —na ordem cronolégica aparece logo depois do En. V 4—que
encontramos melhor sistematizada toda a teoria plotiniana acerca da
primeira hipostase.
106 * UNIVERSIDADE CaTOLICA DE PERNAMBUCO,Acora FILosorica
O nono tratado da sexta Enéada nos conduz, gradativamente,
a teoria plotiniana acerca da primeira hipdstase. Essa gradagao é
extremamente rica, uma vez que, ao tentar definir o Uno, o filésofo
alexandrino termina, comparativamente, por nos mostrar, além das
outras duas hipéstases, a questao do Ser, que, na Filosofia de Plotino,
nao se confunde com o Unoe, nesse sentido, é mais aplicado dizer da
Filosofia plotiniana que a mesma é uma metafisica da unidade
(henologia)!*. Sendo assim, o tratado abre-se com a tese acerca da
unidade:
Porque, 0 que existiria se nio fosse Uno? No instante
mesmo em que fosse arrancado do Uno nao seria 0
que era. Nem hd exército se nao é um exército,
nem coro, nem rebanho, se nado s4o um; porém nem
sequer uma casa, uma nave s4o, se néo séo um, posto
que a casa é uma casa, e a nave uma nave, € , se isto
perdessem, j4 nao seriam casa nem nave [...]. Ha
satide quando 0 corpo tende ao Uno, beleza quando
as partes participam da natureza do Uno, virtude da
Alma quando chega ao Uno e ao acordo (En. V1 9,
1: 1-16)".
Exposta a tese plotiniana acerca do Uno, qual seria o seu
postulado? Seria a propria Unidade originaria. Desse modo, as idéias
de anterioridade, transcendéncia e onipresenca, que aparecem na
citagdo anterior, reaparecem nessa tiltima passagem das Enéadas de
forma mais clara, devido, talvez, ao emprego das imagens utilizadas
por Plotino; ou seja, cle estende a imagem do Uno abstrato, idealizado,
aimagens concretas que chegam a ser corriqueiras, como um exército,
um rebanho, uma casa [...]. Essa facilidade que Plotino tem de retratar
o mundo supra-sensivel, através de imagens do mundo sensivel!®,
fornece-nos a pista para pensarmos que 0 hiato existente entre ume
outro nao seja tao absoluto e que, nesse intersticio, exista uma veia
pulsante chamada de unidade. Isso nos leva crer que 0 postulado da
tese plotiniana é 0 primado da unidade sobre qualquer outro primado.
Demonstradaa tese inicial do tratado En. V19, qual seja, a
idéia de que tudo que existe, existe, participa e depende da primeira
hipdéstase, vejamos o que é e que natureza tem o Uno. Entretanto,
Ano 3 n* 1/2 * jan./dez. 2003 - 107DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
antes de chegarmos a este ponto - 0 que € o Uno -, Plotino nos
mostra que a Primeira Hipdstase nao é nem Ser, nem Inteligéncia, nem
Alma"’.
Na argumentagao demonstrada por Plotino no Tratado En. VI
9, fica claro que o Uno nao pode ser confundido com as duas outras
hipdstases, nem tampouco com o Ser. Alias, o Ser na Filosofia de
Plotino €, muitas vezes, confundido com a Inteligéncia, “ja que a
Inteligéncia é todas as coisas [...] posto que o Ser é todas as coisas”
(En. VI 9, 2: 45-47)'§; ou ainda, no tratado En. V 1 Sobre as trés
hipéstases, onde Plotino afirma, explicitamente, no pardgrafo 4, linhas
25-35, que os dois (Ser e Inteligéncia) nao formam senio uma tinica
coisa. E justamente nesse sentido que nds afirmamos que o primado
da Filosofia plotiniana nao é o Ser, ja que o Ser, nessa metafisica,
ocupa um lugar secundario, ou seja, ele nao é fundamento, ele € sim,
“fundado” pelo Uno. Narbonne aponta para idéia de uma
secundarizagao do ser, afirmando que “[...] 0 ser, enquanto causado, é
necessariamente um ser secundarizado” (1994, p. 59); e a afirmacao
de Bousquet corrobora essa idéia, quando o mesmo afirma que 0 ser
nado € 0 primeiro, nem 0 mais fundador entre os principios (Cf. 1976,
p- 25)”:
Nas diferengas apontadas pela argumentagao plotiniana entre
as duas hipéstases” em relagio ao Uno, destaca-se uma diferengaem
comum entre a Almaea Inteligéncia: a multiplicidade. Ora, é exatamente
essa caracteristica (a multiplicidade) que faz com que 0 noaj e a yuc»
nao se confundam com 0 €v, pois o mesmo €, antes de mais nada,
simples e é simples no sentido de ser Uno, de “possuir” somente
unidade, ou melhor, ele é a propria unidade. Essa diferenca basica
ratifica a idéia de que o primado da Filosofia plotiniana é 0 primado da
unidade. Saltemos, pois, do século II para o século XTV e vejamos
como € possivel aproximar a filosofia de dois pensadores tao distantes
no tempo.
A filosofia de Mestre Eckhart também € marcada pelo retomo
ao Uno - a Deus - € esse retorno também é expresso, como na mistica
plotiniana, por um desnudamento, um abandono das coisas sensiveis,
umeterno afastar-se de todas as imagens e de simesmo, como cle
enfatiza em O homem nobre e como tenta mostrar através do termo
108 ¢ UNiversIDADE CaTOLICA DE PERNAMBUCOAGORA FILOSOFICA
Abgeschiedenheit: desprendimento, esvaziamento de si,
disponibilidade plena?".
Para esse desprendimento pleno, é preciso atingir a unidade
no éxtase mistico e, para mostrar isso, Eckhart também constréi uma
Mistica da Unidade, pautada num Deus uno, cujos pressupostos se
aproximam muito dos pressupostos do Uno plotiniano. Em Plotino, a
influéncia de Platao e de alguns pré-socraticos o fez apresentar o Uno
como Primeiro, separado de tudo, Infinito, Simples ¢ Perfeito. Vejamos
algumas passagens dos Sermées 21 e 29 (Deus é um, ele é um negar
do negar e Deus é um) de Eckhart, nas quais ele procura explicitar
Deus, fundamento de sua filosofia; assim como o Uno fundamenta a
filosofia plotiniana. Diz-nos o Mestre alemao:
Ele é 0 primeiro e 0 supremo pela simples razdo de
ser uno ... Deus é um em si mesmo e separado de
tudo [...]. Deus é infinito em sua simplicidade e
simples em sua infinidade ... Repara bem que o um,
em sentido préprio, diz respeito ao todo e ao perfeito.
Pelo que, mais uma vez, nada lhe falta (1994, p.
162,165, 160, 161).
No Sermio 29 - Deus é um -, Eckhart procura explicitar a
unidade de Deus, mostrando que s6 Ele € um, mas, a0 mesmo tempo,
expressa que essa unidade deve estender-se - através da semelhanga
-atodas as coisas. A semelhanga, neste Sermo, é uma certa unidade,
pois, conforme diz 0 mistico alemio no terceiro ponto do referido
Sermao: “Porque no um, enquanto um, estao todas as coisas. Pois
toda multidao é unae um, no ume peloum”. Ou seja, Eckhart “‘retoma’””
a tese plotiniana que abre 0 Tratado En. VI 9, a qual nos diz que tudo
0 que existe, existe pelo Uno, participa e depende Dele, j4 que - para
Eckhart e também para Plotino - tudo que é ntimero (entenda-se
miultiplo) depende do um e o um nao depende de nada, isto é, a
existéncia do multiplo necessita da unidade, pois, de uma forma ou de
outra, tudo é exigéncia de simplicidade’*.
Essa exigéncia de simplicidade, por sua vez, é retomada no
Sermao 21 - Deus é um, Ele é um negar do negar - no qual Eckhart
relaciona, mais de perto, unidade e retorno™. O mistico alemao nos
Ano 3 ¢n" 1/2 ¢ jan/dez. 2003 - 109DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
diz que a distingdo e, portanto, a diferenga sao empecilhos para a
operagao de Deus na alma: “Todas as criaturas em que ha distingao
nao sao dignas de que o proprio Deus nelas opere” (1994, p.166).
Desse modo, é necessdrio que toda a distingao seja suprimida e toda
diferenga apagada para que a alma/criatura se una a Deus na sua pureza
e simplicidade. E 0 que enfatiza Eckhart na continuagao da citagao
acima:
A alma em si mesma, ali onde estd acima do corpo, €
tao pura € tao tenra que nada admite em si que nao
seja a mera e pura divindade. E 0 mesmo Deus ali
nio pode entrar, a menos que se lhe tire tudo que lhe
tenha sido acrescentado [...]” (1994, p 167)".
Como superar, portanto, os empecilhos que se nos impoem
no caminho de volta? Para Eckhart, € preciso ter um coraciio puro,
como esta escrito em Mateus 5, 8: “Bem-aventurados os puros de
coragdo, porque verdo a Deus”. Mas, o que significa pureza de
coragao? Eckhart nos responde no Sermao 21: “Pureza de coragao
€ 0 que esta separado e apartado de todas as coisas corporais e
recolhido c encerrado em si mesmo, para ento (a partir) desta pureza,
langar-se no scio de Deus e ali reunir-se (com Ele)” (1994, p.166). E
assim, convida-nos o mestre alemio - no final do Sermao 21 - a sermos
umcom Deus, auxiliados por «Um Deus, pai de todos».
Por sua vez, para Plotino, também € preciso ter um coragiio
puro, e pureza de cora¢ao significa, em outras palavras, purificagio da
alma. Purificagaéo coroada pela contemplagao do Uno, que
corresponde, na filosofia plotiniana, ao éxtase: simplificagao, abandono
de si, quietude. Termos que podem ser relacionados a “saida de si” e
que devem ser compreendidos como &mede m&vta, como
despojamento de tudo**. A safda representa, pois, 0 abandono da
alma a tudo que a relaciona com a matéria e, nesse sentido, a saida
assim como a fuga devem ser entendidas como um ensimesmamento.
Notemos, pois, aproximando a linguagem eckhartiana da plotiniana:
“separado e apartado de todas as coisas corporais”/ “o abandono da
alma a tudo que a relaciona com a matéria” e “encerrado em si mesmo”/
“ensimesmamento”. A linguagem, desse modo, passa por um processo
de purificacdo (assim como o homem), de catarse, pela qual cada vez
110 * UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCOAGora Fitosorica
mais se aproxima do Principio Absoluto, esvaziando-se, deixando para
trés toda sua vestimenta (metaforas, comparagées, exemplos, teologia
afirmativa, simbélica...) até tornar-se despida de tudo 0 que a liga as
coisas corporais. Ha uma espécie de desmaterializagao da linguagem,
até esta tornar-se um puro nada que une o homem ou absoluto: nenhuma
fala, nenhum discurso, nenhuma imagem. Somente o nada, 0 vazio ¢ 0
siléncio”.
Assim, podemos notar, apesar da distancia temporal e, portanto,
da diferenga contextual’, que a idéia de uma Mistica da Unidade, ou
seja, uma mistica pautada na unidade do Principio Absoluto (Uno/Deus)
une a filosofia plotiniana com a eckhartiana de tal maneira, que as
semelhangas encontradas em ambas comegam desde os pressupostos
do seu fundamento, passando pelo caminho do retomno — que apenas
aludimos aqui —até chegar a linguagem que culmina, no seu apice, no
esvaziamento, no desertoe no siléncio. Em tltima instancia, reina, no
siléncio desertificado, a celebragao de uma experiéncia pessoal,
instransferfvel c inefavel no momento do éxtase; mas, que pode e deve
ser compartilhada e, assim como numa comunhio, celebrada e
imortalizada pelo testemunho de dois grandes pensadores: Plotino e
Eckhart.
Notas
| Professora da UEPB e Mestra em Filosofia pela UFPB.
O termo processao significa o modo como as coisas derivam do Uno. Alguns
estudiosos chamam de emanatismo ou criacionismo. Mesmo assim, parece-
nos menos problematico utilizar 0 termo processao em vez de emanagao ou
criagado. A emanago implica a perda progressiva daquilo do qual as coisas
so emanadas. Ora, em Plotino, o Uno nao se despotencializa, quando
“gera” as outras hipdstases. Quanto ao criacionismo, o termo também é
problematico, porque aproxima demais a processao do Uno com a idéia da
criag3o ex nihilo do pensamento cristéo. O termo processao, portanto,
encontra um meio termo entre 0 polo da emanagao ¢€ o da criagao.
Sao as trés formas das quais hierarquicamente acontecem as processes: a
primeira delas € o Uno, a segunda a Inteligéncia e a terceira a Alma.
Plotino raramente usao termo évotng. O termo utilizado por ele para significar
unidade é 0 mesmo utilizado para significar Uno (év). Por este motivo,
Ano 3¢n* 1/2 jan/dez. 2003 - 111DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
quando citarmos a palavra unidade, usaremos 0 termo grego correspondente
ao Uno.
Marco Lucchesi comenta, na sua apresentagao a tradugao de OQ livro do
amor, de Marsilio Ficino, que Plotino faz uma admirdvel desinterpretagdo
do Parménides (1996, p. 21). Ja Jestis Igal, na sua introdugao a tradugio
das Enéadas, diz-nos que Plotino “nao tinha consciéncia, ou nao a tinha
plenamente, de que sua interpretagao do platonismo era, na realidade, uma
reinterpretagao acomodada aos problemas da sua época e condicionada
por suas proprias reflexoes [...]” (1992, p. 26). Por outro lado, nao podemos
deixar de observar que o pensamento de Plotino representa, também, uma
brilhante sintese da Historia da Filosofia Grega, como afirmam estudiosos
como Mehlis que chega a afirmar: “A Filosofia de Plotino constitui uma
criagdo do puro espirito Heleno” (1931, p. 60). Desse modo, as duas leituras
nos parecem pertinentes, do ponto de vista da Filosofia plotiniana e, dessa
forma, concordamos com ambas; logo, nao podemos concordar com Bacca,
que afirma, numa atitude radical - defendendo somente a idéia de uma
“desinterpretagio” - que Plotino seja um anti-helénico.
Kat puqv torodtov ye bv ovdapod av ein odte yap év &AAw odte EV
Eavte ein. (138a)
E not6rio 0 uso recorrente que Plotino faz do advérbio énéxeiver, querendo
designar a supertranscendéncia do Uno: Este esta para além (énéxewvar) de
todas as coisas.
TO pév of etvan, dc A€yopev exetvo evan, ek TOV LET” adTO: TO SE BiG Tt
apxny GAAnY Cytet dpyiis 8é tig mang od« Eoti &pyty
Kai 16 &retpov todto 7 pL) MAEOV Evds Eivon pNdé Exerv mpdc 6 Opret te
tv Exvtod:
Anaximandro via no Apeiron a unidade de toda a multiplicidade do universo.
Para ele, tudo que é determinado é perecivel e, portanto, 0 principio de
todas as coisas precisaria ser indeterminado. Anaximenes viu no ar a
multiformidade que os outros elementos nao tinham. Melissus afirmava
que a realidade era infinita e, por fim, Anaxdgoras encontrou nas suas
homeomerias um principio que continha toda a infinidade dos elementos.
Anrtéov Sé Kai &retpov od16 od 1 KSreErt|TO # TOD peyeBovs 7} tod
CPLOLOD, GAAG tO areprdanto tig Svuvepews.
Aci pév yep 11 2pd mévtwv eivar &mrody todto Kai MavtwV EtEpoV THV
pet” adtd, €p* Exvtod dv, od peprypévov tots Gx” adtod, Kai mer
Etepov tponov toic &AAOIG mapetvar Svvdpevoy [...].
A idéia da onipresenga do Uno pode dar margem a interpretagoes panteistas.
Porém, como bem afirmou Mehlis: “O mundo é divino, mas deus nao €
mundano (1931, p. 64).
A idéia de uma metafisica da unidade (henologia) é defendida por Francois
Bousquet no seu livro L’esprit de Plotin - Vitinéraire de V'ame vers Dieu
(1976), onde o autor defende tal idéia, expondo, para isso, razOes de ordem
histérica e de ordem metafisica. Em relagdo a Eckhart, afirma De Libera:
112 Universipave Caro.ica bb PERNAMBUCO6
20
AGORA FILOSOFICA
ckhart ultrapassa as “almas nobres” e as “inteligéncias separadas” de
Aristoteles e do peripatetismo em diregado a uma teologia do Uno, a uma
henologia, que ele 1é no Pseudo-Dionisio ou mesmo em Proclo” (1999, p.
316)
Ti yop Gy Kai etn, ci pi Ev etn; “Emetnep agoupedévte tod Ev 6 AEyetaL
ob« éotiv Exetva. O&te yap otpatoc Eotiv, ei Ly Ev ~otaL1, ote Yopdc
ovte &yeAn ph Ev Svta. “AAA? odSé oikia H vabs TO EV OdK ExoVTA,
éreinep 7 oikia év Kai h vods, 6 ei dxodGA01, odt” Gv 7 Oikia Ett Oikia.
obte 7 vad, Ta toivey ovvexi] peyeOn, €i jLt] 16 Ev AdtOTS napetn, odK
ein (...) Kai 1 byieve 5, dtav cic Ev ovvtTaxXOT 10 Oya, Kai K&AAOG,
Stay } TOd Evdg TH LOPLA KaTaoXH PboIG Kai anEeTH SE oxic, Gtav Eig
&v Kai €ig Piav OWoAoyicv Evo8F.
Jestis Igal, citando Armstrong, afirma que “[...] Nenhum filésofo jam:
empregou imagens do mundo sensivel para expressar a realidade supra-
sensivel com mais originalidade e forga que Plotino” (1992, p. 20-21).
Nao vamos expor essa argumentagao. Ela aparece claramente - na medida
do possivel - no Tratado indicado. Nés nos limitaremos aqui, somente, a
mostrar que diferenga une, em relagao ao Uno, o Ser, a Inteligéncia ea Alma.
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Por sua vez, nos textos eckhartianos, a questio do ser nao nos parece posta
com muita clareza. Apesar disso ¢ refletindo sobre alguns estudos sobre 0
tema, podemos dizer que Eckhart segue bem de perto a henologia plotiniana.
Vejamos 0 que diz Gilson a esse respeito: “[...] deve-se recusar a Deus para
que ele seja a causa de todo ser. Por isso, Deus é algo mais elevado do que
o ser[...]. Se se pode observar um progresso no pensamento de Eckhart a
esse respeito, esse consistiria antes na subordinagao final do préprio
“intelligere” a um termo ainda superior, o Uno [...] se atentarmos para os
termos que emprega, notaremos que a propria raiz do ser divino é menos a
esséncia mesma do que sua “pureza”, que é a unidade” (1995, p. 865, 866,
867).
Vamos considerar que o Ser e a Inteligéncia formam a segunda hipostase.
‘Talvez nem o termo abgeschiedenheit - de dificil tradugao, consiga expressar
tao bem a mistica eckhartiana quanto a famosa legenda de O garoto nu que
transcreveremos aqui: “Mestre Eckhart deu com um lindo garoto nu.
Perguntou-lhe donde vinha. «Venho de Deus», disse ele. «E onde o
deixaste?» «Nos coragdes virtuosos». «Para onde vais?» «Para Deus!»
«Onde 0 encontras?» «Onde larguei todas as criaturas». «Quem és ti
«Sou um rei!» «Onde esta 0 teu reino?» «No meu coragdo». «Toma cuidado
que ninguém o compartilhe contigo!» «E 0 que fago». Entao 0 conduziu 4
sua cela e disse: «Toma a veste que queiras!» «Deixaria de ser rein. E
desapareceu. Fora o proprio Deus que viera divertir-se com ele” (ECKHART,
1994, p. 203-204).
Ano 3 nv 1/2 *jan./dez. 2003 - 113DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Nao queremos dizer com isso que Eckhart tenha lido Plotino: a influéncia
neoplatdnica lhe vem dos fildsofos posteriores a Plotino, mas nao quer isso
dizer que a filosofia plotiniana nao lhe tenha influenciado indiretamente:
“[...] outrossim, 0 influxo das idéias neoplaténicas, tornadas acessiveis em
parte por Alberto Magno e pelos arabes, e em parte por Dionisio Pseudo-
Areopagita, Maximo 0 Confessor, e Scoto Erigena” (BOEHNER ; GILSON,
1991, p. 521). Por outro lado, o mesmo Gilson afirmard: “O pensamento de
Eckhart nao é simples, e € facil explicar 0 embaraco de historiadores que
querem encerré-lo numa férmula ou mesmo designa-lo por determinado nome.
Alguns véem nele, antes de mais nada, uma mistica, outros uma dialética
plat6nica e plotiniana - e, provavelmente, todos tém razio” (1995, p. 870).
A exigéncia de simplicidade é uma das razdes metafisicas expostas por
Bousquet: “Do plotinismo se poderia dizer que ha na sua origem um ponto
de vista de que a unidade é 0 foco universal, que todo ser é essencialmente
exig€ncia de simplicidade, isto é, de coincidéncia consigo mesmo, que esta
tendéncia produz todo amor e todo pensamento” (1976, p. 25).
Em Plotino, como explicitamos no inicio do texto, 86 existe retorno longe de
toda e qualquer dualidade, ou seja, s6 existe retorno - entendido no seu
apice - na unidade.
Compare-se a citagao eckhartiana com a passagem VI9, 9: 51-56 das Enéadas,
na qual Plotino refere-se a uniao da alma com 0 Uno: “{...] e ja nada necessita,
senao que ha de renunciar a todo o resto e manter-se s6 nele e fazer-se um
com ele, suprimindo toda adigao, de tal maneira que consiga sair de tudo
isso € ver-se livre de tudo que possa até-la as outras coisas, para voltar-se
ao seu prprio ser e n&o ter em si parte alguma que nado se una com o
divinof...}”. [...] Kai det obdevic Etv todvavtiov dé anobEGbaL TH HAAG
Set, Kal Ev Love ativat TObTE, Kai ToDTO yevésba LLOVOV TEpLKOWavTO.
TH Aon Goo mepiKeipeba; dote eerCetv onevderv éevtedbev Kai
ayavaxtety Eni Oatepa. deSepévovc, iva 16 62 adtOv repintetopebar
Kai pndev pepos Exopev, O [17] Epantdpe0e. Oe0 [...].
De Libera, comentando a filosofia eckhartiana, aproxima-a da plotiniana
dizendo: “O lassen, o “deixar” da Gelassenheit é indiferente um deixar ser,
um deixar ir, um deixar partir, um abandonar; com efeito, é uma “velha frase”,
um velho slogan plotiniano - abandona tudo! [...] exprime 0 essencial do
que tradicionalmente se chama “€xtase”: 0 lasssen, como safda de si
(ussgehen), que libera um lugar para Deus, que desobstrui a alma para abrir
a Deus um espago interior. Tal é a lei do pensamento segundo Eckhart, uma
lei de troca, uma lei de compensagao do vazio (ein gelich widergelt und
gelicher kuof): quem sai de todas as coisas que estao nele, quem sai de seu
bem préprio, de seu “seu” - isto 6, de seu eu -, em suma, quem deixa a si
mesmo, deixa entrar Deus, nem mais nem menos” (1999, p. 327, 328).
7 BOFF, Leonardo. Introdugao. In: ECKHART, 1994, p. 17: “Na mistica do
desnudamento se enfatiza a unidade na diastase. Por um momento rompem-
se os véus da separagio Deus-homem e se celebra 0 esponsério mistico
114° UNIversipaDE CaTOLica DE PERNAMBUCOAGORA FU.OSOFICA
entre Deus eo homem. A dualidade persiste porque um nao é 0 outro mas
ela é transponivel numa unidade inefavel”.
“Toda mistica, crista ou paga, vive de uma experiéncia radical: aquela da
unidade do mundo com o supremo Principio ou do homem com Deus. Trata-
se de uma experiéncia imediata de Deus ou simplesmente do Uno”. (Ibid., p. 16)
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Canada: Editions Naaman, 1976.
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ECKHART, Mestre. O livro da divina consolagao e outros textos seletos. 3.
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GANDILLAC, Maurice de. La Sagesse de Plotin. Paris: Hachette, 1952.
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