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Acora Fios6rica, ————________ Plotino e Mestre Eckhart: uma mistica da unidade Profa. Maria Simone Marinho Nogueira! Resumo: 0 presente artigo procurard aproximar, através da idéia de uma Mistica da Unidade, a Filosofia de dois eminentes pensadores: Plotino e Mestre Eckhart. Buscaremos evidenciar - apesar da distancia temporal e, portanto, dos diferen- tes momentos histéricos - alguns pontos em comum entre a Filosofia Plotiniana e a Eckhartiana; sobretudo, no que diz respeito aos pressupostos de seus fun- damentos, 4 questao do retorno e da unidade e ao problema da linguagem. Mostraremos que, apesar de distantes, no espago € no tempo, os dois constru- fram uma mistica pautada em categorias e conceitos que nos permitem tragar um paralelo entre a Filosofia de ambos, aproximando-as. Palavras-chaye: mistica, unidade, retorno, desprendimento, linguagem. Abstract: this article will seek to bring closer together, by using the idea of a Mystic of Unity, the Philosophy of two eminent thinkers: Plotinus and Master Eckhart. We shall seek to provide evidence — despite the distance in time and, therefore, of the different historical periods — of some points in common between Plotinian and Eckhartian Philosophy, especially, with regard to the presuppositions of their underlying principles, to the question of return and unity and to the problem of language. We shall show that, despite being distant, in space and time, the two of them constructed a mystic grounded in categories and concepts which may permit us to trace a parallel between the Philosopy of both, which brings them closer together. Key-words: mystic, unity, return, disentangling, language. Filosofia de Plotino é, antes de mais nada, uma Filosofia da Uni- dade. Enquanto tal, ela convida-nos a percorrer um caminho de volta, caminho que tem como meta final 0 retorno a patria perdida - a contemplagao do Uno - representado pelo éxtase: um desnudamento, um abandono do nosso préprio “eu”, uma fuga do sé para o $6, En- quanto Filosofia da Unidade, 0 pensamento plotiniano oferece-nos dois movimentos para que possamos pensé-la: 0 primeiro diz respeito & processao (1196080); o segundo diz respeito ao retorno ( mis Tpo@N), Ano 3¢n" 1/2 jan./dez. 2003 - 103 DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA que, por sua vez, liga-se, diretamente, 4 necessidade de uma unidade no éxtase mistico. Com relacao ao primeiro movimento, toda a argumentagiio de Plotino vai ser desenvolvida mediante a processio de todas as coisas a partir do Uno. E preciso encontrar a unidade em todas as coisas, mas, mantendo-se a diferenga que distingue o Uno das outras coisas. Ha, na Filosofia de Plotino, algo que podemos chamar de sistema triddico - Uno, Inteligénciae Alma ( v, vod¢, yoy), mas estas trés hipéstases*, na verdade, formam uma unidade (En. V 1, 6: 40-45), pois as duas Ultimas voltam-se e identificam-se com a primeira. No que se refere ao segundo movimento, a questao da unidade € de fundamental importncia, pois s6 € possivel haver unido mistica ou éxtase na auséncia de toda e qualquer dualidade (vac), dai, Uno, unidade, uniao (Ev, évotng, Evwotc)*, E no segundo movimento que esta, seguramente, toda a espinha dorsal do pensamento de Plotino. O fim Gltimo 0 qual o ser humano almeja: encontrar-se sé com 0 S6 (@vy —pHdvov mpd Lovov— En. VI9, 11: 50-51). Esse fim ultimo € sustentado pelo Uno, que marca a relagdo de unidade no retorno mistico. Nesse sentido, tentemos compreender melhor 0 Uno plotiniano, buscando, posteriormente, relaciond-lo 4 mistica Eckhartiana, analisada, sobretudo, através de dois Sermées em especifico: os Sermées 21 e 29). A doutrina plotiniana sobre 0 Uno foi fortemente influenciada pelo Parménides de Platao e também pela idéia do Bem desenvolvida num outro didlogo daquele mesmo fildsofo: A Repiblica. Mas nao se trata apenas de uma interpretagao e posterior “divulgaciio” dos textos platénicos. Podemos afirmar que, apesar de se considerar um simples exegeta dos didlogos platénicos, Plotino, consciente ou nao, faz uma “desinterpretaciio” ou reinterpretagao’ dessas teses e, justamente nesse ponto, reside a sua originalidade e, conseqiientemente, a construgao de um sistema filosGfico que lhe é bem peculiar. Quanto ao Parménides, podemos afirmar que Plotino transforma a primeira hipotese do didlogo plat6nico na sua primeira e principal hipéstase: o Uno. Dessa forma, a existéncia do Uno passa a ser um fato incontestavel. Ainda com relagao a primeira hipéstase, Plotino interpreta as negagdes do Parménides em termos de 104 * UNIveRSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO, Acora FILosorica transcendéncia, o que implica dizer que hé uma insisténcia por parte de Plotino em afirmar a transcendéncia do primeiro Principio; ou seja, o Uno da primeira hipotese do Parménides nao esta, como podemos ver pelas negagées, em 138 a-b “[...]emnenhuma parte, nemem si, nemem outro [...]”°. Jé para 0 fildsofo alexandrino, conforme En. V 5.9: 1-26, o Uno esté em todas as coisas porque as contém, ao mesmo tempo que nao est4 em nenhuma porque nao é contido por nenhuma das coisas. Quanto a doutrina do Bem, Plotino substitui o termo Uno ( vy) pelo termo Bem (éya@6v) incontaveis vezes e, embora, tanto para Platao quanto para Plotino, o Bem seja visto como fundamento do ser, a supertranscendéncia daquele aparece isoladamente em uma passagem de A Reptiblica (508e - 509d). Ja em Plotino, essa idéia reaparece incansavelmente ao longo de todas as Enéadas’ e, neste sentido, o Uno plotiniano nao sé é anterior a todas as coisas, conforme En. VI 8, 11: 4-5: “[...]Perguntar por sua causa é lhe procurar um outro principio; ora, o principio universal nao tem princfpiof...]”*, como também esta muito acima ou além de todas as coisas. Feitas as observagées em relagao aos didlogos platénicos, vejamos um outro pressuposto acerca da teoria plotiniana do primeiro Principio, que se liga nao mais ao pensamento de Platao e, sim, as idéias dos fildsofos pré-socraticos. Este pressuposto é a idéia da infinitude, afirmada por Plotino em varias passagens de sua obra, como, por exemplo, em En. V 5, 11: 1-5, onde ele escreve: “ele possui a infinitude, porque nao é miltiplo, e porque nao hd nada parao limitar’”. Ora, se fizermos uma breve leitura sobre 0 pensamento grego, veremos que pouquissimos fildsofos se atreveram a atribuir ao primeiro Principio a idéia de infinitude: Anaximandro, Anaximenes, Melissus e Anaxagoras'®. No pensamento plat6nico-aristotélico, de uma forma geral, aidéia de infinito era atribuida a idéia de indeterminado e, desse modo, de imperfeigdo. Plotino, portanto, “refuta”, em boa parte, a idéia plat6nico-aristotélica da inter-relagao infinito-indeterminado- imperfeito e resgata a idéia de infinitude dos antigos fildsofos da @votc, transportando-a para um plano imaterial: “E preciso admitir também que sua infinitude consiste nao na incompletude de sua grandeza ou do numero de suas partes, mas na auséncia de limites a sua poténcia” (En. VI9, 6: 10-12)!" Ano 3 +n 1/2 * jan./dez. 2003 - 105 DePaRTAMENTO DE FILOSOFIA Diante dessas consideragées, podemos verificar em que medida a Filosofia de Plotino se aproxima e/ou se afasta do pensamento helénico e em que medida essas aproximacOes ou esses afastamentos permitem, gradativamente, vislumbrar, no sistema plotiniano, nao s6 um Ultimo e desesperado esforgo de resgate da Filosofia Grega, mas, sobretudo, um re-pensar ¢ um re-fundar de toda metafisicaclassica. A idéia de um fundamento primeiro e Ultimo, o Uno, enquanto supertranscendente, fornece as chaves para se pensar a metafisica plotiniana; a idéia do Uno enquanto infinito abre as portas que guardam o aspecto mistico de sua filosofia. Por hora, procuremos caracterizar, de forma mais precisa, a primeira hipdstase de Plotino. Citemos, primeiramente, uma passagem do tratado En. V 4 — como os seres que vém depois do Primeiro derivam do Primeiro: sobre o Uno — por dois motivos: primeiro, a citagdo que sera feita, nao s6 reforga, como também resume, de forma mais transparente, as caracteristicas em relagao ao Uno frisadas nos pardgrafos anteriores; segundo, € nesse tratado, tomando-o pela ordem cronolégica, que Plotino explicita, pela primeira vez, sua teoria sobre o Uno. Vejamos, entao, uma passagem importante a respeito dessa teoria: Enecessdrio com efeito que haja algo anterior a tudo, algo que deve ser simples e diferente de tudo que lhe € posterior; existente por si mesmo; transcendente ao que dele procede, e, ao mesmo tempo, de maneira tipica, capaz de estar presente nos outros seres [...] (En. V 4, 1: 5-10). Podemos retirar dessa passagem trés “qualidades” importantes em relagao ao Uno: anterioridade, transcendéncia e onipresenga; ou seja, o Uno é anterior a tudo, dai a sua anterioridade; é transcendente, pois difere de tudo que lhe é posterior, isto €, transcende a sua produgao eé, ao mesmo tempo, onipresente, porque esta presente nos outros seres (diz Plotino quando nos fala dessa onipresenga: “O Uno veio como alguém que ndo veio”, ou seja, o Uno apresenta-se como algo ja sempre presente). Mas é no tratado En. VI19 — Sobre o Bemou o Uno —na ordem cronolégica aparece logo depois do En. V 4—que encontramos melhor sistematizada toda a teoria plotiniana acerca da primeira hipostase. 106 * UNIVERSIDADE CaTOLICA DE PERNAMBUCO, Acora FILosorica O nono tratado da sexta Enéada nos conduz, gradativamente, a teoria plotiniana acerca da primeira hipdstase. Essa gradagao é extremamente rica, uma vez que, ao tentar definir o Uno, o filésofo alexandrino termina, comparativamente, por nos mostrar, além das outras duas hipéstases, a questao do Ser, que, na Filosofia de Plotino, nao se confunde com o Unoe, nesse sentido, é mais aplicado dizer da Filosofia plotiniana que a mesma é uma metafisica da unidade (henologia)!*. Sendo assim, o tratado abre-se com a tese acerca da unidade: Porque, 0 que existiria se nio fosse Uno? No instante mesmo em que fosse arrancado do Uno nao seria 0 que era. Nem hd exército se nao é um exército, nem coro, nem rebanho, se nado s4o um; porém nem sequer uma casa, uma nave s4o, se néo séo um, posto que a casa é uma casa, e a nave uma nave, € , se isto perdessem, j4 nao seriam casa nem nave [...]. Ha satide quando 0 corpo tende ao Uno, beleza quando as partes participam da natureza do Uno, virtude da Alma quando chega ao Uno e ao acordo (En. V1 9, 1: 1-16)". Exposta a tese plotiniana acerca do Uno, qual seria o seu postulado? Seria a propria Unidade originaria. Desse modo, as idéias de anterioridade, transcendéncia e onipresenca, que aparecem na citagdo anterior, reaparecem nessa tiltima passagem das Enéadas de forma mais clara, devido, talvez, ao emprego das imagens utilizadas por Plotino; ou seja, cle estende a imagem do Uno abstrato, idealizado, aimagens concretas que chegam a ser corriqueiras, como um exército, um rebanho, uma casa [...]. Essa facilidade que Plotino tem de retratar o mundo supra-sensivel, através de imagens do mundo sensivel!®, fornece-nos a pista para pensarmos que 0 hiato existente entre ume outro nao seja tao absoluto e que, nesse intersticio, exista uma veia pulsante chamada de unidade. Isso nos leva crer que 0 postulado da tese plotiniana é 0 primado da unidade sobre qualquer outro primado. Demonstradaa tese inicial do tratado En. V19, qual seja, a idéia de que tudo que existe, existe, participa e depende da primeira hipdéstase, vejamos o que é e que natureza tem o Uno. Entretanto, Ano 3 n* 1/2 * jan./dez. 2003 - 107 DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA antes de chegarmos a este ponto - 0 que € o Uno -, Plotino nos mostra que a Primeira Hipdstase nao é nem Ser, nem Inteligéncia, nem Alma"’. Na argumentagao demonstrada por Plotino no Tratado En. VI 9, fica claro que o Uno nao pode ser confundido com as duas outras hipdstases, nem tampouco com o Ser. Alias, o Ser na Filosofia de Plotino €, muitas vezes, confundido com a Inteligéncia, “ja que a Inteligéncia é todas as coisas [...] posto que o Ser é todas as coisas” (En. VI 9, 2: 45-47)'§; ou ainda, no tratado En. V 1 Sobre as trés hipéstases, onde Plotino afirma, explicitamente, no pardgrafo 4, linhas 25-35, que os dois (Ser e Inteligéncia) nao formam senio uma tinica coisa. E justamente nesse sentido que nds afirmamos que o primado da Filosofia plotiniana nao é o Ser, ja que o Ser, nessa metafisica, ocupa um lugar secundario, ou seja, ele nao é fundamento, ele € sim, “fundado” pelo Uno. Narbonne aponta para idéia de uma secundarizagao do ser, afirmando que “[...] 0 ser, enquanto causado, é necessariamente um ser secundarizado” (1994, p. 59); e a afirmacao de Bousquet corrobora essa idéia, quando o mesmo afirma que 0 ser nado € 0 primeiro, nem 0 mais fundador entre os principios (Cf. 1976, p- 25)”: Nas diferengas apontadas pela argumentagao plotiniana entre as duas hipéstases” em relagio ao Uno, destaca-se uma diferengaem comum entre a Almaea Inteligéncia: a multiplicidade. Ora, é exatamente essa caracteristica (a multiplicidade) que faz com que 0 noaj e a yuc» nao se confundam com 0 €v, pois o mesmo €, antes de mais nada, simples e é simples no sentido de ser Uno, de “possuir” somente unidade, ou melhor, ele é a propria unidade. Essa diferenca basica ratifica a idéia de que o primado da Filosofia plotiniana é 0 primado da unidade. Saltemos, pois, do século II para o século XTV e vejamos como € possivel aproximar a filosofia de dois pensadores tao distantes no tempo. A filosofia de Mestre Eckhart também € marcada pelo retomo ao Uno - a Deus - € esse retorno também é expresso, como na mistica plotiniana, por um desnudamento, um abandono das coisas sensiveis, umeterno afastar-se de todas as imagens e de simesmo, como cle enfatiza em O homem nobre e como tenta mostrar através do termo 108 ¢ UNiversIDADE CaTOLICA DE PERNAMBUCO AGORA FILOSOFICA Abgeschiedenheit: desprendimento, esvaziamento de si, disponibilidade plena?". Para esse desprendimento pleno, é preciso atingir a unidade no éxtase mistico e, para mostrar isso, Eckhart também constréi uma Mistica da Unidade, pautada num Deus uno, cujos pressupostos se aproximam muito dos pressupostos do Uno plotiniano. Em Plotino, a influéncia de Platao e de alguns pré-socraticos o fez apresentar o Uno como Primeiro, separado de tudo, Infinito, Simples ¢ Perfeito. Vejamos algumas passagens dos Sermées 21 e 29 (Deus é um, ele é um negar do negar e Deus é um) de Eckhart, nas quais ele procura explicitar Deus, fundamento de sua filosofia; assim como o Uno fundamenta a filosofia plotiniana. Diz-nos o Mestre alemao: Ele é 0 primeiro e 0 supremo pela simples razdo de ser uno ... Deus é um em si mesmo e separado de tudo [...]. Deus é infinito em sua simplicidade e simples em sua infinidade ... Repara bem que o um, em sentido préprio, diz respeito ao todo e ao perfeito. Pelo que, mais uma vez, nada lhe falta (1994, p. 162,165, 160, 161). No Sermio 29 - Deus é um -, Eckhart procura explicitar a unidade de Deus, mostrando que s6 Ele € um, mas, a0 mesmo tempo, expressa que essa unidade deve estender-se - através da semelhanga -atodas as coisas. A semelhanga, neste Sermo, é uma certa unidade, pois, conforme diz 0 mistico alemio no terceiro ponto do referido Sermao: “Porque no um, enquanto um, estao todas as coisas. Pois toda multidao é unae um, no ume peloum”. Ou seja, Eckhart “‘retoma’”” a tese plotiniana que abre 0 Tratado En. VI 9, a qual nos diz que tudo 0 que existe, existe pelo Uno, participa e depende Dele, j4 que - para Eckhart e também para Plotino - tudo que é ntimero (entenda-se miultiplo) depende do um e o um nao depende de nada, isto é, a existéncia do multiplo necessita da unidade, pois, de uma forma ou de outra, tudo é exigéncia de simplicidade’*. Essa exigéncia de simplicidade, por sua vez, é retomada no Sermao 21 - Deus é um, Ele é um negar do negar - no qual Eckhart relaciona, mais de perto, unidade e retorno™. O mistico alemao nos Ano 3 ¢n" 1/2 ¢ jan/dez. 2003 - 109 DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA diz que a distingdo e, portanto, a diferenga sao empecilhos para a operagao de Deus na alma: “Todas as criaturas em que ha distingao nao sao dignas de que o proprio Deus nelas opere” (1994, p.166). Desse modo, é necessdrio que toda a distingao seja suprimida e toda diferenga apagada para que a alma/criatura se una a Deus na sua pureza e simplicidade. E 0 que enfatiza Eckhart na continuagao da citagao acima: A alma em si mesma, ali onde estd acima do corpo, € tao pura € tao tenra que nada admite em si que nao seja a mera e pura divindade. E 0 mesmo Deus ali nio pode entrar, a menos que se lhe tire tudo que lhe tenha sido acrescentado [...]” (1994, p 167)". Como superar, portanto, os empecilhos que se nos impoem no caminho de volta? Para Eckhart, € preciso ter um coraciio puro, como esta escrito em Mateus 5, 8: “Bem-aventurados os puros de coragdo, porque verdo a Deus”. Mas, o que significa pureza de coragao? Eckhart nos responde no Sermao 21: “Pureza de coragao € 0 que esta separado e apartado de todas as coisas corporais e recolhido c encerrado em si mesmo, para ento (a partir) desta pureza, langar-se no scio de Deus e ali reunir-se (com Ele)” (1994, p.166). E assim, convida-nos o mestre alemio - no final do Sermao 21 - a sermos umcom Deus, auxiliados por «Um Deus, pai de todos». Por sua vez, para Plotino, também € preciso ter um coragiio puro, e pureza de cora¢ao significa, em outras palavras, purificagio da alma. Purificagaéo coroada pela contemplagao do Uno, que corresponde, na filosofia plotiniana, ao éxtase: simplificagao, abandono de si, quietude. Termos que podem ser relacionados a “saida de si” e que devem ser compreendidos como &mede m&vta, como despojamento de tudo**. A safda representa, pois, 0 abandono da alma a tudo que a relaciona com a matéria e, nesse sentido, a saida assim como a fuga devem ser entendidas como um ensimesmamento. Notemos, pois, aproximando a linguagem eckhartiana da plotiniana: “separado e apartado de todas as coisas corporais”/ “o abandono da alma a tudo que a relaciona com a matéria” e “encerrado em si mesmo”/ “ensimesmamento”. A linguagem, desse modo, passa por um processo de purificacdo (assim como o homem), de catarse, pela qual cada vez 110 * UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO AGora Fitosorica mais se aproxima do Principio Absoluto, esvaziando-se, deixando para trés toda sua vestimenta (metaforas, comparagées, exemplos, teologia afirmativa, simbélica...) até tornar-se despida de tudo 0 que a liga as coisas corporais. Ha uma espécie de desmaterializagao da linguagem, até esta tornar-se um puro nada que une o homem ou absoluto: nenhuma fala, nenhum discurso, nenhuma imagem. Somente o nada, 0 vazio ¢ 0 siléncio”. Assim, podemos notar, apesar da distancia temporal e, portanto, da diferenga contextual’, que a idéia de uma Mistica da Unidade, ou seja, uma mistica pautada na unidade do Principio Absoluto (Uno/Deus) une a filosofia plotiniana com a eckhartiana de tal maneira, que as semelhangas encontradas em ambas comegam desde os pressupostos do seu fundamento, passando pelo caminho do retomno — que apenas aludimos aqui —até chegar a linguagem que culmina, no seu apice, no esvaziamento, no desertoe no siléncio. Em tltima instancia, reina, no siléncio desertificado, a celebragao de uma experiéncia pessoal, instransferfvel c inefavel no momento do éxtase; mas, que pode e deve ser compartilhada e, assim como numa comunhio, celebrada e imortalizada pelo testemunho de dois grandes pensadores: Plotino e Eckhart. Notas | Professora da UEPB e Mestra em Filosofia pela UFPB. O termo processao significa o modo como as coisas derivam do Uno. Alguns estudiosos chamam de emanatismo ou criacionismo. Mesmo assim, parece- nos menos problematico utilizar 0 termo processao em vez de emanagao ou criagado. A emanago implica a perda progressiva daquilo do qual as coisas so emanadas. Ora, em Plotino, o Uno nao se despotencializa, quando “gera” as outras hipdstases. Quanto ao criacionismo, o termo também é problematico, porque aproxima demais a processao do Uno com a idéia da criag3o ex nihilo do pensamento cristéo. O termo processao, portanto, encontra um meio termo entre 0 polo da emanagao ¢€ o da criagao. Sao as trés formas das quais hierarquicamente acontecem as processes: a primeira delas € o Uno, a segunda a Inteligéncia e a terceira a Alma. Plotino raramente usao termo évotng. O termo utilizado por ele para significar unidade é 0 mesmo utilizado para significar Uno (év). Por este motivo, Ano 3¢n* 1/2 jan/dez. 2003 - 111 DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA quando citarmos a palavra unidade, usaremos 0 termo grego correspondente ao Uno. Marco Lucchesi comenta, na sua apresentagao a tradugao de OQ livro do amor, de Marsilio Ficino, que Plotino faz uma admirdvel desinterpretagdo do Parménides (1996, p. 21). Ja Jestis Igal, na sua introdugao a tradugio das Enéadas, diz-nos que Plotino “nao tinha consciéncia, ou nao a tinha plenamente, de que sua interpretagao do platonismo era, na realidade, uma reinterpretagao acomodada aos problemas da sua época e condicionada por suas proprias reflexoes [...]” (1992, p. 26). Por outro lado, nao podemos deixar de observar que o pensamento de Plotino representa, também, uma brilhante sintese da Historia da Filosofia Grega, como afirmam estudiosos como Mehlis que chega a afirmar: “A Filosofia de Plotino constitui uma criagdo do puro espirito Heleno” (1931, p. 60). Desse modo, as duas leituras nos parecem pertinentes, do ponto de vista da Filosofia plotiniana e, dessa forma, concordamos com ambas; logo, nao podemos concordar com Bacca, que afirma, numa atitude radical - defendendo somente a idéia de uma “desinterpretagio” - que Plotino seja um anti-helénico. Kat puqv torodtov ye bv ovdapod av ein odte yap év &AAw odte EV Eavte ein. (138a) E not6rio 0 uso recorrente que Plotino faz do advérbio énéxeiver, querendo designar a supertranscendéncia do Uno: Este esta para além (énéxewvar) de todas as coisas. TO pév of etvan, dc A€yopev exetvo evan, ek TOV LET” adTO: TO SE BiG Tt apxny GAAnY Cytet dpyiis 8é tig mang od« Eoti &pyty Kai 16 &retpov todto 7 pL) MAEOV Evds Eivon pNdé Exerv mpdc 6 Opret te tv Exvtod: Anaximandro via no Apeiron a unidade de toda a multiplicidade do universo. Para ele, tudo que é determinado é perecivel e, portanto, 0 principio de todas as coisas precisaria ser indeterminado. Anaximenes viu no ar a multiformidade que os outros elementos nao tinham. Melissus afirmava que a realidade era infinita e, por fim, Anaxdgoras encontrou nas suas homeomerias um principio que continha toda a infinidade dos elementos. Anrtéov Sé Kai &retpov od16 od 1 KSreErt|TO # TOD peyeBovs 7} tod CPLOLOD, GAAG tO areprdanto tig Svuvepews. Aci pév yep 11 2pd mévtwv eivar &mrody todto Kai MavtwV EtEpoV THV pet” adtd, €p* Exvtod dv, od peprypévov tots Gx” adtod, Kai mer Etepov tponov toic &AAOIG mapetvar Svvdpevoy [...]. A idéia da onipresenga do Uno pode dar margem a interpretagoes panteistas. Porém, como bem afirmou Mehlis: “O mundo é divino, mas deus nao € mundano (1931, p. 64). A idéia de uma metafisica da unidade (henologia) é defendida por Francois Bousquet no seu livro L’esprit de Plotin - Vitinéraire de V'ame vers Dieu (1976), onde o autor defende tal idéia, expondo, para isso, razOes de ordem histérica e de ordem metafisica. Em relagdo a Eckhart, afirma De Libera: 112 Universipave Caro.ica bb PERNAMBUCO 6 20 AGORA FILOSOFICA ckhart ultrapassa as “almas nobres” e as “inteligéncias separadas” de Aristoteles e do peripatetismo em diregado a uma teologia do Uno, a uma henologia, que ele 1é no Pseudo-Dionisio ou mesmo em Proclo” (1999, p. 316) Ti yop Gy Kai etn, ci pi Ev etn; “Emetnep agoupedévte tod Ev 6 AEyetaL ob« éotiv Exetva. O&te yap otpatoc Eotiv, ei Ly Ev ~otaL1, ote Yopdc ovte &yeAn ph Ev Svta. “AAA? odSé oikia H vabs TO EV OdK ExoVTA, éreinep 7 oikia év Kai h vods, 6 ei dxodGA01, odt” Gv 7 Oikia Ett Oikia. obte 7 vad, Ta toivey ovvexi] peyeOn, €i jLt] 16 Ev AdtOTS napetn, odK ein (...) Kai 1 byieve 5, dtav cic Ev ovvtTaxXOT 10 Oya, Kai K&AAOG, Stay } TOd Evdg TH LOPLA KaTaoXH PboIG Kai anEeTH SE oxic, Gtav Eig &v Kai €ig Piav OWoAoyicv Evo8F. Jestis Igal, citando Armstrong, afirma que “[...] Nenhum filésofo jam: empregou imagens do mundo sensivel para expressar a realidade supra- sensivel com mais originalidade e forga que Plotino” (1992, p. 20-21). Nao vamos expor essa argumentagao. Ela aparece claramente - na medida do possivel - no Tratado indicado. Nés nos limitaremos aqui, somente, a mostrar que diferenga une, em relagao ao Uno, o Ser, a Inteligéncia ea Alma. Od toivey od8é 76 Ev TH MéVTA Eoto, obtH yap odKETI Ev Elty ovd8é vodc, Kai yap &v obtas ein TH MA&VTA TOD QOD TH MiVTA SvTOG ovdé TO Sv TO Yap dv Ta NaVTE. Por sua vez, nos textos eckhartianos, a questio do ser nao nos parece posta com muita clareza. Apesar disso ¢ refletindo sobre alguns estudos sobre 0 tema, podemos dizer que Eckhart segue bem de perto a henologia plotiniana. Vejamos 0 que diz Gilson a esse respeito: “[...] deve-se recusar a Deus para que ele seja a causa de todo ser. Por isso, Deus é algo mais elevado do que o ser[...]. Se se pode observar um progresso no pensamento de Eckhart a esse respeito, esse consistiria antes na subordinagao final do préprio “intelligere” a um termo ainda superior, o Uno [...] se atentarmos para os termos que emprega, notaremos que a propria raiz do ser divino é menos a esséncia mesma do que sua “pureza”, que é a unidade” (1995, p. 865, 866, 867). Vamos considerar que o Ser e a Inteligéncia formam a segunda hipostase. ‘Talvez nem o termo abgeschiedenheit - de dificil tradugao, consiga expressar tao bem a mistica eckhartiana quanto a famosa legenda de O garoto nu que transcreveremos aqui: “Mestre Eckhart deu com um lindo garoto nu. Perguntou-lhe donde vinha. «Venho de Deus», disse ele. «E onde o deixaste?» «Nos coragdes virtuosos». «Para onde vais?» «Para Deus!» «Onde 0 encontras?» «Onde larguei todas as criaturas». «Quem és ti «Sou um rei!» «Onde esta 0 teu reino?» «No meu coragdo». «Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!» «E 0 que fago». Entao 0 conduziu 4 sua cela e disse: «Toma a veste que queiras!» «Deixaria de ser rein. E desapareceu. Fora o proprio Deus que viera divertir-se com ele” (ECKHART, 1994, p. 203-204). Ano 3 nv 1/2 *jan./dez. 2003 - 113 DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Nao queremos dizer com isso que Eckhart tenha lido Plotino: a influéncia neoplatdnica lhe vem dos fildsofos posteriores a Plotino, mas nao quer isso dizer que a filosofia plotiniana nao lhe tenha influenciado indiretamente: “[...] outrossim, 0 influxo das idéias neoplaténicas, tornadas acessiveis em parte por Alberto Magno e pelos arabes, e em parte por Dionisio Pseudo- Areopagita, Maximo 0 Confessor, e Scoto Erigena” (BOEHNER ; GILSON, 1991, p. 521). Por outro lado, o mesmo Gilson afirmard: “O pensamento de Eckhart nao é simples, e € facil explicar 0 embaraco de historiadores que querem encerré-lo numa férmula ou mesmo designa-lo por determinado nome. Alguns véem nele, antes de mais nada, uma mistica, outros uma dialética plat6nica e plotiniana - e, provavelmente, todos tém razio” (1995, p. 870). A exigéncia de simplicidade é uma das razdes metafisicas expostas por Bousquet: “Do plotinismo se poderia dizer que ha na sua origem um ponto de vista de que a unidade é 0 foco universal, que todo ser é essencialmente exig€ncia de simplicidade, isto é, de coincidéncia consigo mesmo, que esta tendéncia produz todo amor e todo pensamento” (1976, p. 25). Em Plotino, como explicitamos no inicio do texto, 86 existe retorno longe de toda e qualquer dualidade, ou seja, s6 existe retorno - entendido no seu apice - na unidade. Compare-se a citagao eckhartiana com a passagem VI9, 9: 51-56 das Enéadas, na qual Plotino refere-se a uniao da alma com 0 Uno: “{...] e ja nada necessita, senao que ha de renunciar a todo o resto e manter-se s6 nele e fazer-se um com ele, suprimindo toda adigao, de tal maneira que consiga sair de tudo isso € ver-se livre de tudo que possa até-la as outras coisas, para voltar-se ao seu prprio ser e n&o ter em si parte alguma que nado se una com o divinof...}”. [...] Kai det obdevic Etv todvavtiov dé anobEGbaL TH HAAG Set, Kal Ev Love ativat TObTE, Kai ToDTO yevésba LLOVOV TEpLKOWavTO. TH Aon Goo mepiKeipeba; dote eerCetv onevderv éevtedbev Kai ayavaxtety Eni Oatepa. deSepévovc, iva 16 62 adtOv repintetopebar Kai pndev pepos Exopev, O [17] Epantdpe0e. Oe0 [...]. De Libera, comentando a filosofia eckhartiana, aproxima-a da plotiniana dizendo: “O lassen, o “deixar” da Gelassenheit é indiferente um deixar ser, um deixar ir, um deixar partir, um abandonar; com efeito, é uma “velha frase”, um velho slogan plotiniano - abandona tudo! [...] exprime 0 essencial do que tradicionalmente se chama “€xtase”: 0 lasssen, como safda de si (ussgehen), que libera um lugar para Deus, que desobstrui a alma para abrir a Deus um espago interior. Tal é a lei do pensamento segundo Eckhart, uma lei de troca, uma lei de compensagao do vazio (ein gelich widergelt und gelicher kuof): quem sai de todas as coisas que estao nele, quem sai de seu bem préprio, de seu “seu” - isto 6, de seu eu -, em suma, quem deixa a si mesmo, deixa entrar Deus, nem mais nem menos” (1999, p. 327, 328). 7 BOFF, Leonardo. Introdugao. In: ECKHART, 1994, p. 17: “Na mistica do desnudamento se enfatiza a unidade na diastase. Por um momento rompem- se os véus da separagio Deus-homem e se celebra 0 esponsério mistico 114° UNIversipaDE CaTOLica DE PERNAMBUCO AGORA FU.OSOFICA entre Deus eo homem. A dualidade persiste porque um nao é 0 outro mas ela é transponivel numa unidade inefavel”. “Toda mistica, crista ou paga, vive de uma experiéncia radical: aquela da unidade do mundo com o supremo Principio ou do homem com Deus. Trata- se de uma experiéncia imediata de Deus ou simplesmente do Uno”. (Ibid., p. 16) Referéncias BOEHNER, P; GILSON, E. Historia da filosofia crista: desde as origens até Nicolau de Cusa. 5. ed. Trad. de Raimundo Vier. Petr6polis: Vozes, 1991. BOUSQUET, Frangois. L’esprit de Plotin - |’itinéraire de l’me vers Dieu. Canada: Editions Naaman, 1976. DE LIBERA, Alain. Pensar na Idade Média. Trad. Paulo Neves. Sao Paulo: Ed. 34, 1999. ECKHART, Mestre. O livro da divina consolagao e outros textos seletos. 3. ed. Trad. de Raimundo Vier er al. Petrépolis: Vozes. 1994. GANDILLAC, Maurice de. La Sagesse de Plotin. Paris: Hachette, 1952. GILSON, E. A filosofia na Idade Média. Trad. de Eduardo Brandao. Séo Paulo: Martins Fontes, 1995 LUCCHESI, Marco. Apresentagao. In: FICINO, Marsilio. O livro do amor. Trad de Ana Thereza Basilio Vieira. Rio de Janeiro: Clube de Literatura Cromos, 1996. MEHLIS, Jorge. Plotino. Trad. de J. Gaos. Madrid: Revista de Occidente, 1931. NARBONNE, Jean-Marc. La Métaphysique de Plotin. J. Vrin: Paris, 1994. (Bibliothéque d histoire de la philosophie) PLOTIN. Ennéades. (Texte établi et traduit par Emile Bréhier). Paris: Les Belles Lettres, 1924-1938. PLOTINO. Enéadas I-IV. Introd., trad. y notas de Jestis Igal. Madrid: Gredos, 1982. Endereco da autora: Rua Capitio Joao Alves de Lira, 1024 - Apto. 305 Bairro Bela Vista, Campina Grande/PB CEP 58101-281 E-mail: mar.simone @ig.com.br Ano 3 ¢n* 1/2 « jan/dez. 2003 - 115

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