Qualquer estilista diria que seu figurino era terrível. Nenhum nutricionista aprovaria sua dieta baseada
em gafanhotos e mel. Foi assassinado por não refrear a língua diante dos erros dos poderosos.
Enquanto o estabelecimento político-religioso de seus dias o rejeitou, Jesus considerou João Batista o
profeta mais importante da história.
O Mensageiro do Deserto foi escrito para explicar a vida daquele que preparou o caminho para a
chegada de Jesus. Ao comparar João Batista conosco, este livro revela o tipo de gente que Deus espera
que seus filhos sejam nos dias de hoje.
Douglas Reis é pastor e escritor. Atua como capelão no Instituto Adventista Paranaense (IAP),
onde ensina e aconselha jovens e universitários. Ele é autor do livro Paixão Cega, lançado pela
Casa Publicadora Brasileira
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1ª edição neste formato
Versão 1.1
2016
Coordenação Editorial: Vanderlei Dorneles
Editoração: Vinícius Mendes e Wellington Barbosa
Revisão: Adriana Seratto
Design Developer: Cristiano Soares Vieira
Projeto Gráfico e Capa: Leonardo Alves C. Rodrigues
Imagem da Capa: © george kuna | Fotolia
Naqueles dias surgiu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Ele dizia: “Arrependam-se,
porque o reino dos céus está próximo.” […] As roupas de João eram feitas de pelos de camelo, e ele
usava um cinto de couro na cintura. O seu alimento era gafanhotos e mel silvestre (Mateus 3:1, 2,
4).
João Batista é, sem dúvida, uma figura vistosa. Não é o tipo de sujeito que
você esperaria ver na fila do banco ou saindo de um restaurante. Qualquer
estilista diria que seu figurino é desatualizado. Nenhum nutricionista aprovaria
sua dieta baseada em gafanhotos e mel. Ele tem olhar penetrante e voz potente. É
infatigável e corajoso em suas denúncias. Arauto incansável, mestre persistente.
Vejo-o percorrer distâncias arenosas, fustigado pelo calor palestino, adornado
por expressões de curiosos e sinceros.
Sem dúvida, João não era seguidor de uma tendência da moda ou fazia
parte de uma tribo urbana (dessas que os pais torcem para os filhos adolescentes
não aderirem). Por vezes, ele nos faz lembrar os tipos messiânicos dos quais a
história testemunha. Apesar de algumas semelhanças entre o Batista e Antônio
Conselheiro ou Inri Cristo 3 existem diferenças abissais!
Por mais que João se pareça com um revolucionário popular ou um
religioso charlatão, trajando pele de animais, com a barba a roçar o peito, ele é
mais do que aparenta ser. Examine o aspecto que o torna inconfundível: ao
contrário da mensagem de Conselheiro e Inri, a de João era legítima. Tudo o
mais não era questão de excentricidade; tratava-se de adequação às
circunstâncias. Vestir-se daquela forma fazia sentido em sua época. Se você
fosse um judeu do primeiro século e se deparasse com ele, às margens do Jordão,
não teria dúvidas: aquele era um profeta, o porta-voz de Deus!
Contudo, voltemos para o século 21: entre todo tipo de aberração, um
programa de TV acompanha anônimos que realizam cirurgias plásticas. O
objetivo é se assemelhar a algum ídolo do cinema, da música ou do show
business. Para uma especialista, apesar desse comportamento não se caracterizar
como uma doença, “de qualquer forma, é sintoma de uma desvalorização pessoal
muito grande”. 4
Mesmo entre artistas, a supervalorização da aparência é potencialmente
destrutiva. Por outro lado, as aparências contam e temos de nos adequar a
padrões sociais para sermos bem compreendidos. Mencionamos de início a
estranheza que causariam pastores e advogados que se vestissem de forma pouco
convencional. Não faz mal respeitar algumas convenções sociais e transmitir, por
meio da aparência, uma mensagem de integridade, honestidade e decência,
compatíveis com o caráter cristão. O perigo está na forma exagerada como as
pessoas se preocupam com a beleza exterior. Isso hoje se tornou um pré-
requisito para aceitação social e construção de uma autoestima veiculada a
padrões midiáticos. Bem diferente da preocupação adequada com o exterior,
muitos se voltam para estereótipos superficiais.
Você não precisa viver assim. Podemos ser felizes equilibrando o que é
socialmente aceito com nosso jeito de ser, e ainda encontrar orientação em
princípios bíblicos.
Analise mais a fundo, por exemplo, João Batista, que mostrava quem era
por sua roupa e por seus hábitos. O que o impulsionava? Certamente, sua
motivação seguia para além de ter “um nome a zelar”. João possuía identidade
estritamente relacionada com a urgente missão que Deus lhe dera. Tudo nele
contribuía para atingir seu alvo na vida. Ele não buscava fama ou aprovação
social. Não imitava nenhum astro recém-surgido dos reality shows. João era
autêntico e plenamente identificado com o que Deus queria dele. “Por sua vida
abstinente e simplicidade de vestuário, devia [João Batista] constituir uma
repreensão para sua época”. 5 Nesse aspecto, será que estamos à altura de seu
ideal de vida?
João possuía um referencial. Infelizmente, muitas pessoas imaginam que
viver seguindo “a própria vontade” seja um alvo ideal. O roqueiro Gene
Simmons, da famigerada banda Kiss, é alguém que pensa assim: “Tenho o
melhor hobby do mundo, que é ser Gene Simmons, do Kiss. É um hobby para o
qual não há regras. E eu nunca tenho de perguntar a alguém como devo me
comportar ou o que fazer. Mesmo o papa tem de perguntar pra alguém. Eu não
tenho mestre nem patrão.” 6 Ocorre que viver espelhado no próprio umbigo não
garante que nossas escolhas sejam as melhores ou mais corretas.
Imagine: dez pessoas acordam em uma floresta escura, desconhecida.
Nenhuma delas possui treinamento em sobrevivência ou está habituada a trilhas.
Não possuem alimento, GPS ou mapas. Cada qual pode intuir ou tentar sair da
floresta. Obviamente, suas tentativas bem-intencionadas para achar o caminho
para casa seriam confusas, dividindo potencialmente o grupo e os expondo a
eventuais perigos.
Entretanto, imagine que surja ali um desconhecido. Com boina de soldado e
fala arrastada, ele se apresenta ao grupo como a única solução para seu dilema.
“Eu conheço esta mata como a minha palma. Posso levá-los à cidade; mas terão
que confiar em mim.” Nesse caso, uma ajuda externa seria menos arriscada do
que tentar a esmo achar um caminho sem qualquer tipo de indicação.
Semelhantemente, viver sem referenciais é algo confuso, perigoso. Precisamos
de um guia. Alguém que nos preencha com significado exuberante, indicações
claras e nos dê uma direção confiável.
João Batista era do tipo que preferia reconhecer a necessidade de um guia
no longo deserto da vida. Já foi dito que a mensagem de João, que se originava
em Deus, “não veio das sinagogas ou das escolas do templo, mas de um homem
cuja escolaridade estava em sua caminhada com Deus”. 7 Nas palavras de Ellen
White, ele contemplou “o Rei em sua beleza, e o próprio eu foi esquecido. Vira a
majestade da santidade, e sentiu-se ineficiente e indigno. Estava disposto a ir
como mensageiro do Céu; não atemorizado pelo humano, pois contemplara o
Divino. Podia ficar ereto e destemido em presença de governantes terrestres,
porque se prostrara diante do Rei dos reis”. 8
Fascinantes lições existem na vida do profeta do Jordão. Ele combateu
burocratas religiosos enquanto abria os braços a prostitutas e operários de moral
duvidosa. Até soldados estrangeiros acatavam suas orientações! Sua acolhida aos
desclassificados prenunciava o tipo de abertura social que mais tarde seria vista
na pregação de Jesus. João lidou com a intriga das massas, o receio dos fariseus
e os louvores equivocados daqueles que viam nele o Messias prometido.
Todavia, a principal função do Batista era atrair a atenção do povo, despertar-lhe
para a vinda do Messias. Sua mensagem era inequívoca: “Arrependam-se, pois o
reino do Céu está próximo.” Sua mensagem o definia.
Será que os crentes que vivem às vésperas do advento de Jesus estão
compenetrados como João em sua missão de preparar o caminho para o Rei?
Será que suas músicas gritam que eles não pertencem ao mundo que os cerca?
Será que suas roupas testemunham que esperam pelo Rei? Será que seus hábitos
contam que eles são hoje “a voz que clama no deserto”?
Pense neste exemplo: nas capas dos álbuns, sua presença era discreta. Nas
músicas, sua voz não se destacava, embora integrasse harmoniosamente o todo.
No entanto, ele foi um dos maiores gênios da música adventista. Wayne Hooper
compôs e fez arranjos para mais de 2 mil hinos para quartetos masculinos. Ele
integrou The King’s Heralds 9 por 18 anos, cantando a voz do barítono e
permaneceu outras muitas décadas como arranjador, ora em período integral, ora
ocasionalmente. Seu último álbum foi uma coleção de Spirituals intitulada
Delivered (2002).
As duas composições mais lembradas de Hooper, ainda cantadas no mundo
inteiro, são: The Lord is coming, are you read? (O Coração Não se Turbe) e We
have this hope (Oh, que Esperança, HA 469). Sobre esta última, Hooper
declarou, certa vez, que sentiu a música fluindo em sua mente no momento da
composição. Em inglês, o hino começa com as solenes palavras: “Nós temos esta
esperança queimando em nosso coração”. 10
A volta de Jesus queima em seu coração? Sente você que a “bendita
esperança”, que movia João Batista, comove sua alma e a faz vibrar? Sinto que
enquanto a esperança do retorno do Senhor não nos motivar a falar a outros
sobre o Salvador prestes a vir, permaneceremos por tempo indefinido neste
mundo! Está em nossas mãos apressar o regresso de Cristo.
Este livro é escrito para corações que desejam permanecer queimando. E
mesmo para aqueles que parecem reduzidos a cinzas: Deus pode reanimar as
chamas internas com a esperança dada em sua Palavra. Temos de viver para
anunciar o retorno da Luz ao mundo. Para nos orientar a cumprir essa preciosa
missão, escolhi analisar a biografia de um personagem fantástico e vitorioso:
João Batista. O que aprendemos com sua vida de sacrifício e sua pregação
zelosa? Como seu exemplo pode nos animar a viver para anunciar o advento do
Senhor? É sobre temas como esses que trataremos.
Antes, eu preciso evidenciar meu agradecimento sincero a todos os que
contribuíram, de alguma forma, para o nascimento deste livro. Aos amigos de
São Francisco do Sul, a quem apresentei os temas principais sobre João Batista
durante o acampamento de verão de 2011, meu muito obrigado pela
oportunidade.
1
A organização PETA (sigla de People for the Ethical Treatment of
Animals ou “Pessoas pelo Tratamento Ético aos Animais”) milita contra os maus
tratos prolongados sofridos pelos animais nas indústrias farmacêuticas, têxtil e
de entretenimento, entre outras. A PETA é bem conhecida por campanhas
agressivas, nas quais recorre frequentemente à nudez.
2
A moda dos coloridos chegou ao Brasil especialmente pela banda de rock
Restart. Basicamente, essa tendência explorava cores vibrantes, chegando até
mesmo ao fosforescente.
3
Antônio Conselheiro foi um célebre líder carismático que liderou a
Guerra de Canudos, no fim do século 19. Ele se tornou célebre por intermédio do
relato de Euclides da Cunha em Os Sertões, clássico da Literatura Brasileira. Inri
Cristo é um autoproclamado messias brasileiro, que possui um pequeno número
de seguidores. Ele ganhou fama por aparições bizarras em programas televisivos
(sobretudo, os humorísticos).
4
Revista Veja, “Anônimos com cara de famosos”. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/050504/p_072.html>. Acessado em 23 de abril de 2013.
Quem opina é Ana Mercês Bahia Bock, presidente do Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo.
5
Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí, SP: Casa
Publicadora Brasileira, [CD-ROM], 2001), p. 100-101.
6
Jotabê Medeiros, “Com a língua de fora, mas infatigáveis”. Disponível
em:
<http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090325/not_imp344374,0.php>.
Acessado em 23 de abril de 2013.
7
Myron S. Augsburger e Lloyd J. Ogilvie, The Preacher’s Commentary
Series Matthew (Nashville, TN: Thomas Nelson, 1982), v. 24, p. 18.
8
White, O Desejado de Todas as Nações, p. 103.
9
The King’s Heralds é o mais antigo quarteto contínuo do mundo,
existindo desde 1927. A princípio formado por estudantes com certo grau de
parentesco, o quarteto adotou o nome de The Lone Star Four [Quarteto Estrela
Solitária, em tradução livre]. Convidados pelo fundador da Voz da Profecia,
H.M.S. Richards, para participar de séries evangelísticas e cantar em programas
de rádio, o grupo teve o nome mudado para King’s Heralds, por meio de um
concurso de votação popular. Hooper integrou a formação de ouro do quarteto,
com Bob Edwards (primeiro tenor), Bob Seamont (segundo tenor) e Jerry Dill
(baixo), todos já falecidos. Atualmente, o quarteto continua em atividade, tendo,
a partir de 2004, voltado a fazer parte de A Voz da Profecia (o grupo permaneceu
desligado da VP por 22 anos, período no qual adotou o nome de The Heralds).
Os integrantes atuais do The King’s Heralds são Don Scrogg (primeiro tenor),
Jared Otto (segundo tenor), Russell Hospedales (barítono) e Jeff Pearles (baixo).
O site oficial do grupo é <www.theheralds.org>.
10
O depoimento de Wayne Hooper se encontra no DVD Fireside Reunion,
gravado em 2000.
1. SERÁ MESMO?
Conforme o costume dos sacerdotes, ele havia sido escolhido por sorteio para queimar o incenso
no altar e por isso entrou no templo do Senhor. Durante o tempo em que o incenso queimava, o povo
lá fora fazia orações. Então um anjo do Senhor apareceu em frente de Zacarias, de pé, do lado
direito do altar (Lucas 1:9-11, NTLH).
Claro que Zacarias sabia quem eram os anjos. Ele já havia lido sobre eles
na Bíblia Hebraica. Conhecia o relato da visita deles a personalidades como
Abraão, Jacó, Manoá e sua esposa (os pais de Sansão) e tantos outros. Ocorre
que você não esbarrava em anjos o tempo todo nas ruas de Jerusalém. Aliás,
fazia algum tempo desde que o último anjo fizera uma visita ao povo escolhido.
Muitos sacerdotes já nem acreditavam mais neles. 14
O que um anjo fazia ali? Sem dúvida, não tinha ido tomar uma xícara com
cevada! O mensageiro celestial portava um recado. Algo incrível aconteceria. E
Zacarias faria parte daquilo – por mais inacreditável que parecesse.
A primeira reação do sacerdote e futuro pai de profeta foi de medo. Ele se
sentiu profundamente aterrorizado pela companhia repentina. Você já teve medo
de algo que Deus fez? Já sentiu o coração ficar abaixo de zero com o toque do
Eterno? Era bom demais para se crer, mas estava lá, acontecendo diante dos
próprios olhos fora das órbitas!
Claro que o anjo tinha boas notícias. Zacarias veria um sonho concretizado.
Eu me recordo de uma sexta-feira, quando estive na sede da Associação
Catarinense. Três fatos espetaculares aconteceram: um velho problema, que
quase me fez desistir do ministério, foi resolvido. Simples assim! Em um dia, eu
tinha o sono perturbado. No outro, voilá. Conversando com o secretário do
Campo (na época do ocorrido), eu mal podia crer. Era assombroso; porém,
estava diante dos meus olhos. Eu achei incrível. Deus dizia que era pouco.
O secretário me perguntou se eu sabia do restante. E ele me informou: eu
voltaria a trabalhar na Educação, como pastor de escola. Fazia três meses que
deixara essa área para tornar-me um pastor auxiliar. A mudança foi positiva em
muitos aspectos. Houve crescimento. Em um primeiro momento, eu me assustei
quando a departamental de Educação manifestou interesse no meu retorno aos
colégios durante o concílio, no início daquele ano. Contudo, no transcurso dos
meses, eu havia sentido falta do contato com os alunos. E agora, eu teria isso de
volta! Fiquei maravilhado. E Deus no Céu, sorria, como se dissesse: “Douglas,
você ainda não viu tudo!”
Ao voltar de Florianópolis naquele dia, recebi um e-mail de meu amigo,
Denis Cruz. Ele escrevera para avisar que meu primeiro livro, Paixão Cega,
havia sido lançado pela CPB. Não contive minha alegria; afinal, três coisas
daquele tipo acontecendo simultaneamente, no mesmo dia? Eu comecei a ficar
assustado. Quando contei à minha esposa as três bênçãos, emendei uma
pergunta: “Agora, depois de tudo isso, não diga que você está grávida!” Se
tivesse dito sim, provavelmente um infarto impediria que eu escrevesse este
livro.
Zacarias também deve ter ficado ainda mais deslumbrado com a notícia de
que suas orações haviam sido atendidas e que em breve seguraria um filho nos
braços (Lucas 1:13). O cheiro de xampu infantil ficaria impregnado nas mãos
cheias de calos. Depois de tantos anos, ele e sua amada Isabel poderiam voltar a
pensar em enxoval e economias para as fraldas.
Contudo, não se trataria apenas de um sonho. O pacote completo incluía
uma solene responsabilidade. O menino seria especial. Um mensageiro de
alegria. Traria renovação e satisfação a um povo oprimido pela maldade. A
aridez da religião seria irrigada com a mensagem do profeta do Jordão.
O menino seria chamado João, nome que está associado à palavra “graça”.
Graça é quando o Ser supremo beija o pó que o cerca, o qual jamais poderá
beijar sua face em retribuição – eu e você somos esse pó, diante do glorioso
Deus que nos trata favoravelmente. Não merecemos e recebemos. Isso é graça.
Para transmitir a mensagem de amor com propriedade, o menino passaria
por um preparo altamente espiritual. Deus o escolhera para ser nazireu. À
semelhança de Sansão, João Batista assumiria o voto que implicava consagração
ao serviço espiritual. O não tomar vinho (ou quaisquer derivados da uva), não
cortar os cabelos e não encostar em mortos (mesmo familiares) eram as
prescrições básicas do nazireado. Alguns pregadores bem-intencionados
afirmam que Jesus também fez esse voto. Provavelmente partam de uma
confusão entre o termo nazareno (referente à cidade de Nazaré onde Jesus
cresceu) e nazireu. É improvável admitir que Jesus fosse nazireu não só pelo fato
de ele não ter cumprido os princípios do voto, mas porque o próprio Jesus
admitira o contraste entre sua condição e a do primo, João Batista (Mateus
11:18, 19; Lucas 7:33, 34).
Tudo aquilo soava fantástico. Até demais. Zacarias era um sacerdote, que
orava regularmente e que tinha diante de si a confirmação sobrenatural de que
Deus o ouvira. O que fez ele? Começou a exclamar “aleluia!”, enquanto pulava
de felicidade? Infelizmente, sua reação tinha o ranço da dúvida que persegue um
adorador amargurado:
Zacarias perguntou ao anjo: ‘“Como posso ter certeza disso? Sou velho, e
minha mulher é de idade avançada.’ O anjo respondeu: ‘Sou Gabriel, o que está
sempre na presença de Deus. Fui enviado para lhe transmitir estas boas-novas.
Agora você ficará mudo. Não poderá falar até o dia em que isso acontecer,
porque não acreditou em minhas palavras, que se cumprirão no tempo
oportuno’” (Lucas 1:18-20).
Com mal disfarçada descrença, o esposo de Isabel se manifestou. Talvez
fosse a vez do anjo se impressionar: “Como esses mortais conseguem ser tão
cegos?!”
Soltando a voz
O texto destaca qual seria a punição de Zacarias: sendo que sua fala
expressou descrença, sua mudez serviria para convencê-lo de que Deus é capaz
de realizar o que desejar. Às vezes, as maravilhas do Céu nos deixam
boquiabertos e mudos, de qualquer jeito mesmo…
Quando o Senhor levanta a voz, o silêncio humano deixa de ser mero
requisito para tornar-se o habitat do sábio – pois quem seria tolo para contestar
as palavras do Rei do Universo? No templo do silêncio, a alma reverencia quem
merece ser ouvido.
Foi fácil para o idoso sacerdote se conservar mudo? Nos meses seguintes,
ele não pôde comemorar a gravidez com Isabel, nem dizer que ela continuava
linda quando a barriga começou a se destacar. Não deu muitos palpites nas cores
do quarto da criança. Teve que permanecer quieto, de forma embaraçosa.
Contudo, chegou o dia da mudança: o sol se derramou pelas colinas e se
deitou sobre a grama, que agora se iluminava de forma especial. Pássaros
cantavam apaixonada e febrilmente. Todos na vizinhança acordaram cedo,
expectantes. Uma parteira estava profissionalmente ao lado de Isabel, insegura
pela gestação tardia. As contrações aumentaram, os gritos surgiram, os sorrisos
despontaram.
O bebê nasceu!
Zacarias, evidente, estava lá, na primeira fila. As circunstâncias lhe faziam
ter muito a comentar. Se pudesse, teria falado para todos de sua alegria. Todavia,
ele ainda estava sem palavras – literalmente. Os presentes reconheciam o
nascimento da criança como resultado da misericórdia divina sobre o casal
(Lucas 1:57); na verdade, como veremos, Deus estendia sua misericórdia sobre
todos ao levantar João Batista.
Oito dias depois, o menino deveria ser circuncidado, de acordo com a lei.
Seria uma grande festa, além de ocasião para que a criança recebesse um nome.
Segundo a tradição, era mais comum receber o nome de seu pai ou de algum
familiar. Quando Isabel, mãe de primeira viagem, disse que a criança se
chamaria João, todos objetaram. A saída foi perguntar ao pai como ele queria
nomear seu filho:
Então fizeram sinais ao pai do menino, para saber como queria que a criança se chamasse. Ele
pediu uma tabuinha e, para admiração de todos, escreveu: “O nome dele é João”. Imediatamente
sua boca se abriu, sua língua se soltou e ele começou a falar, louvando a Deus (Lucas 1:62-64).
11
Nos quadrinhos, Susan Storm é uma integrante do Quarteto Fantástico,
equipe de super-heróis criada pelo quadrinista Stan Lee. Susan é a Mulher
Invisível, que além da habilidade de sumir de vista, projeta campos de força para
proteger-se.
12
Oswald Guinness, Encontrando Deus em Meio à Dúvida: A Segurança
da Fé Para Além das Questões Mais Difíceis da Vida (Brasília, DF: Palavra,
2011), p. 26.
13
Abordei a questão do ceticismo pós-moderno em meu livro Explosão
Y: Adventismo, Pós-Modernidade e Gerações Emergentes (Ivatuba, PR: IAP,
2013).
14
O grupo dos saduceus, influenciados pelo pensamento grego, não
acreditava em anjos, milagres ou determinadas manifestações sobrenaturais.
Esse grupo era composto justamente pela maioria dos sacerdotes do templo.
15
Uma ótima introdução ao paralelismo no Novo Testamento pode ser
achada em Kenneth E. Bailey, As Parábolas de Lucas (São Paulo: Edições Vida
Nova, 1995).
2. A VOZ NASCIDA NO DESERTO
Ritmo legítimo?
Jonathan Swift não tem uma obra literária de grande expressão, mas marcou
presença na literatura mundial com o clássico Viagens de Gulliver. Num dos
momentos do livro, o cirurgião e aventureiro Lemuel Gulliver sobrevive a um
naufrágio e chega inconsciente às praias do reino de Lilipute, onde vivem
pessoas do tamanho de dedos.
Por sinal, essa desproporção causa pânico nos nativos, que resolvem
prender o “gigante” com amarras antes que ele desperte. Por precaução, retiram
todos os objetos “perigosos” encontrados nos bolsos do náufrago.
Dos bolsos de Gulliver surge um relógio, engenhoca desconhecida pelos
liliputianos. Eles passam a considerar a peça como uma espécie de oráculo, por
observarem que o estranho não tomava uma decisão antes de consultar o curioso
mecanismo.
Acho a passagem deliciosa e há muito reflito na forma sarcástica como ela
expressa uma observação sobre a nossa cultura: o tempo é nosso oráculo. Nós
não apenas o consultamos, mas vivemos em função dele. Cronometramos a vida
na esperança de que, ao dividi-la e mensurá-la, possamos controlar seu curso.
Infelizmente, com que frequência nós nos tornamos escravos sentindo as
chibatadas cruas do tempo em vez de o dominarmos!
Pertenço a uma geração superestimulada. Nossos pais não nos queriam
desocupados – por isso, pagavam cursos de inglês ou informática, judô, natação,
escolinha de futebol ou qualquer outra atividade do gênero. Cresci jogando os
games competitivos, desafiado sempre a passar fase de fase. Os adultos que têm
minha faixa etária são como eu. Apressados, quase neuróticos. Envolvidos com
muitas coisas. A simultaneidade das tarefas é imprescindível. Isso significa
agenda com folhas maiores. E, às vezes, poucas horas de sono à noite. 17
Minha esposa é uma típica workaholic. Há ocasiões em que apareço na sala
dela. O fim do expediente já aconteceu há algumas horas; porém, ela continua
correndo, digitando comunicados ou revisando as provas que os professores
enviam. Eu bato à porta e mal sou notado. Ela está refém de suas obrigações (já
se sentiu assim?). Costumo brincar com ela. Eu entro e digo: “Vim salvar você
de você mesma.”
Se mesmo no contexto de uma instituição confessional devemos lutar
contra a tirania dos ponteiros, imagine no ambiente secular. Em um colégio
cristão, trabalha-se para promover uma educação restauradora. Em uma empresa
secular, as pessoas buscam lucros e promoções. Você trabalha duro, faz cursos,
especializa-se, aumenta a produtividade. O mínimo esperado é receber um elogio
do supervisor. O gerente tem de ver tudo o que você realizou durante a semana.
Trabalha-se por dinheiro, status e valorização. Tudo ao redor nos diz isso.
Sobra pouco tempo para acompanhar a lição de casa dos filhos ou visitar os avós
doentes.
O pastor que me batizou voltou dos Estados Unidos para visitar nossa
igreja, na cidade de Guarulhos (SP). Contou algumas experiências. Uma delas
tratava de um membro de sua congregação. O ministro o conhecera anos antes,
ainda no Brasil. Era um líder envolvido em diversos ministérios. Trabalhando no
exterior, ele reencontrou o mesmo homem. Quanta mudança! Ele mal ia à igreja.
Quando o fazia, sua participação se resumia a ocupar um lugar em um dos
bancos.
Notando a diferença, o pastor resolveu visitar aquele membro.
Amorosamente, ele perguntou o que estava acontecendo. “Pastor”, respondeu o
cidadão, “eu vim para esse país porque queria dinheiro. Se eu estivesse
interessado em continuar envolvido com a igreja, teria permanecido no Brasil”.
O sonho americano é o pesadelo que impede a muitos de sonhar com o Céu.
Se quisermos contemplar a Deus, é tempo de frearmos ambições. Casa na
praia e viagens a Orlando não podem estar no topo da lista. É hora de pensar
menos em horas extras. Gastar menos no shopping. Menos programas de
televisão. Mesmo as coisas boas precisam ser usadas com temperança.
A vida de “sim” com Deus exige uma série de “nãos”. Não à toa, quando
Deus precisou de homens para serviços especiais, ele os levou ao seu centro de
treinamento chamado deserto – um lugar onde videogames e smartphones são
inúteis. No deserto, ninguém se preocupa com a última moda ou com o acesso à
internet. O deserto evoca as questões primordiais, relativas à sobrevivência.
E é para lá que nós vamos.
Naqueles dias surgiu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Ele dizia: “Arrependam-se,
porque o reino dos céus está próximo.” Este é aquele que foi anunciado pelo profeta Isaías: “Voz do
que clama no deserto: ‘Preparem o caminho para o Senhor, façam veredas retas para ele’” (Mateus
3:1-3).
Mas os judeus perderam a vida espiritual de suas cerimônias, apegando-se às formas mortas.
Confiaram nos sacrifícios e ordenanças em si mesmos, em lugar de descansar naquele a quem
apontavam. […] Mediam sua santidade pela multidão de cerimônias, ao passo que tinham o
coração cheio de orgulho e hipocrisia. 20
João vestia roupas feitas de pelos de camelo, usava um cinto de couro e comia gafanhotos e mel
silvestre (Marcos 1:6).
[…] Ele nunca tomará vinho nem bebida fermentada, e será cheio do Espírito Santo desde antes
de seu nascimento (Lucas 1:15).
16
Para proteger os envolvidos, usei pseudónimo.
17
De forma mais completa, abordo as questões envolvendo a nova geração
e o adventismo no já mencionado Explosão Y: Adventismo, Pós-Modernidade e
Gerações Emergentes (Ivatuba, PR: IAP, 2013) e em Adventismo para uma nova
geração: como viver a fé em um contexto digital (Ivatuba, PR: IAP, 2014).
18
Menahem Stern, “A revolta dos Asmoneus e seu papel na história da
religião e da sociedade judaica”, em Vida e valores do povo judeu (São Paulo:
Perspectiva, 1999, 2a ed.), p. 100.
19
George R. Knight, The Pharisee’s Guide to Perfect Holiness: A Study of
Sin and Salvation (Boise, ID: Pacific Press, 1992), p. 18-21.
20
Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí, SP: Casa
Publicadora Brasileira, 2008), p. 29
21
David H. Stern, Comentário Judaico do Novo Testamento (Belo
Horizonte: Atos; São Paulo: Didática Paulista, 2008), p. 42.
3. VIVER PARA A MENSAGEM
João é “o começo das boas-novas de Jesus” porque Elias deveria “vir primeiro para restaurar
todas as coisas”. Desse modo, o que ele dizia ou fazia não importava tanto quanto quem ele era. 23
O segredo de João foi ter se identificado tanto com sua mensagem a ponto
de ser difícil dissociá-lo dela. Ele não era uma pessoa até a soleira da porta de
sua casa e outra da porta para dentro. Sua vida estava despida do senso do
politicamente correto. Vaidades não lhe convenciam. Estamos diante de um
homem que descobriu que agradar a Deus é o melhor da vida.
Cabe perguntar: Qual era exatamente a mensagem que João Batista tinha a
transmitir? Vale descobrirmos a reposta.
O evangelho do Jordão
Lá no Jordão, um homem vestido de forma exótica começa a dizer
impressionantes verdades. Os longos cabelos encobrem parcialmente os olhos.
Estes irradiam tamanha percepção que, caso você se demore muito em olhar para
eles, ficará com a impressão de que eles absorvem todos os seus segredos mais
íntimos. A voz desse pregador é desafiadora, mas cheia de entusiasmo. Ele
atende pelo nome de João.
A mensagem desse surpreendente profeta tem um centro: arrependimento.
Não se trata de se desculpar por erros ocasionais; vai além disso. João chamava
o povo de volta a Deus. Retornar para Deus implica abandonar a rota escolhida
pelos próprios pés. A urgência do arrependimento aumentava, em virtude da
chegada do juízo divino (Lucas 3:7). Esse julgamento não dizia respeito apenas
ao fim de tudo. O “reino dos céus está próximo” (Mateus 3:2) porque seria
manifestado na pessoa do Messias – Jesus, a quem João antecipava. Desse
modo, ouvindo João e sendo levado a Jesus, qualquer pessoa experimentaria a
essência da eternidade.
O que é religião? O mundo precisa disso? Em tempos em que o termo
“religião” aparece desgastado (devido, principalmente, aos escândalos), ele é
evitado mesmo entre os cristãos. Religião é identificada com formalismo
religioso, com regras excessivas e uma herança cultural maciçamente rejeitada.
Não obstante, religião permanece aventura empolgante, sentimento
realizador e pensamento excelente. Religião: a mão que oferece capa ao nu, o
livro que se abre para o inquiridor, a esperança para quem morre. A luz da
religião é um grito quebrando o silêncio das trevas ao longo da história.
Embora pingasse a superstição sobre a seda da tradição bíblica, houve
alvejante disponível àqueles que queriam remover a mancha e redescobrir a
verdade. Afinal, por meio do compromisso religioso com o Deus supremo,
quantos não puderam obter o verdadeiro significado para a vida?
Olhe com atenção: embora profundamente espiritual, a pregação de João
Batista tinha algo a dizer para o cotidiano das pessoas. O preparo para o reino
incluía aspectos práticos, consequentes de quem havia se voltado em
arrependimento sincero para Deus.
É importante notar as instruções do profeta do Jordão a seus discípulos:
“O que devemos fazer então?”, perguntavam as multidões. João respondia: “Quem tem duas
túnicas dê uma a quem não tem nenhuma; e quem tem comida faça o mesmo.” Alguns publicanos
também vieram para serem batizados. Eles perguntaram: “Mestre, o que devemos fazer?” Ele
respondeu: “Não cobrem nada além do que lhes foi estipulado.” Então alguns soldados lhe
perguntaram: “E nós, o que devemos fazer?” Ele respondeu: “Não pratiquem extorsão nem acusem
ninguém falsamente; contentem-se com o seu salário” (Lucas 3:10-14).
Hoje há um grande medo nas cidades grandes e vivemos com medo porque sabemos que somos
muito vulneráveis a coisas como o terrorismo ou a um chefe de governo que decida fazer alguma
coisa estúpida a ponto de mudar o curso da história. E conforme a tecnologia avança, crescem os
perigos. Nosso mundo não é lugar seguro. 24
22
A maior parte das informações sobre Hildebrando foi obtida de um
antigo volume sobre História dos Papas, uma compilação sem indicação de data.
23
Walter Wink, John the Baptist in the Gospel Tradition (Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 2006, [edição digitalizada]), p. 3-4.
24
Gerard Butler, em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,entrevista-com-
gerard-butler--para-agradar-kim-jong-un,1022007,0.htm>. Acessado em 17 de
abril de 2012. O ator fez a declaração no contexto do lançamento de seu novo
filme, Invasão à Casa Branca, no qual terroristas norte-coreanos fazem o
presidente dos Estados Unidos como refém. Coincidentemente, na vida real
houve especulações sobre um possível ataque da Coreia do Norte aos Estados
Unidos, próximo ao lançamento do filme.
4. DOCUMENTOS, POR FAVOR!
Os líderes judeus enviaram de Jerusalém alguns sacerdotes e levitas para perguntarem a João
quem ele era. João afirmou claramente:
– Eu não sou o Messias. Eles tornaram a perguntar:
– Então, quem é você? Você é Elias?
– Não, eu não sou! – respondeu João.
– Você é o Profeta que estamos esperando?
– Não! – respondeu ele (João 1:19-21, NTLH).
A quem ele chama? Deus chama pastores para ser pregadores do evangelho
em tempo integral. O que seria da igreja sem seus ministros? Digo que ser um
pastor é algo tremendo e maravilhoso, muito acima de minhas capacidades.
Trata-se de um privilégio que palavras jamais poderiam expressar com exatidão.
Louvo a Deus por ter me chamado para o ministério e desejo honrá-lo a cada dia.
Entretanto, Deus chama a outros de formas diferentes, com funções
diferentes. Não deve haver confusão: cada cristão é chamado, não somente para
ser um cristão, mas para servir em algum ministério. Isso tudo é simples: o
Senhor nos dotou de pelo menos um dom. Ao usarmos os dons individuais para
a glória do Céu, começamos um ministério. Todos podem servir de alguma
maneira.
Quando olhamos para o ministério de João Batista e para o modo como
Deus aprovou seus esforços, compensa nos espelharmos em seu exemplo.
Contudo, João não era a própria mensagem. O que o profeta tinha a dizer
era sobre outra pessoa. Ele deveria pavimentar o caminho para alguém diferente
dele. Sua missão exigia lançar fora a pior erva daninha do campo do coração: o
orgulho.
– Eu batizo com água, mas no meio de vocês está alguém que vocês não conhecem. Ele vem depois
de mim, mas eu não mereço a honra de desamarrar as correias das sandálias dele (João 1:26,
NTLH).
25
Oswald Guinness, O Chamado: uma Iluminadora Reflexão Sobre o
Propósito da Vida e o Seu Cumprimento (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), p.
32.
26
Oswald Guinness, Sete Pecados Capitais: Navegando Através do Caos
em uma Época de Confusão Moral (São Paulo: Shedd, 2006), p. 41.
27
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 199.
5. APRESENTO-LHES O CORDEIRO
Ocavalheiro ali atrás tem uma resposta para a nossa pergunta. Posso ver que os
olhos queimam, e ele não evita levantar a mão pedindo a palavra.
Assemelha-se a um afobado aluno da sexta série. Claro que ele é um homem
feito, ainda no auge da juventude. Por mais ansioso que se mostre, temos que
fazê-lo esperar.
Primeiro, vamos ouvir os artistas. Sempre criativos e preocupados com uma
visão autoral. Depois vamos convidar nosso voluntário a dar seu depoimento.
Comecemos então por Laudo Ferreira Júnior, um desenhista de história em
quadrinhos (HQ). No fim de 2009, o artista lançou a obra Yeshuah: assim em
cima assim embaixo. Trata-se da história de Jesus. Laudo foi responsável pelo
enredo e pelos desenhos, enquanto Omar Viñole realizou a arte-final. Para
escrever Yeshua, o autor pesquisou os evangelhos canônicos e apócrifos. Muitos
dos nomes de personagens bíblicos foram trocados pelos nomes hebraicos
originais, num preciosismo um tanto piegas. Contudo, o mais preocupante na
adaptação é a perspectiva com a qual foi feita.
No site da Devir (editora que lançou a obra), Laudo declarou:
A ideia não foi criar um roteiro completamente novo levando a história de Jesus para outro
caminho que não o conhecido. O desafio foi justamente trabalhar em cima da versão canônica
dando minhas intervenções, meu pensar quer textualmente ou visualmente sobre várias sequências
da história. O meu Jesus a ser apresentado nessa história, teria que ser um homem normal, humano,
completamente fora da aura católica, santa, de que as grandes obras do Renascimento estão
impregnadas. 28
Toda essa pressão recairá sobre Gwen, a mulher que foi selecionada através de um processo
parecido com o do American Idol para ser a mãe do novo Messias. Para proteger o clone é
contratado Thomas McKael, guarda-costas que já foi integrante do IRA, o que lhe garante um
passado turbulento. 30
Quase sou capaz de prometer dar meu carro para quem surgir com uma
história mais blasfema e ridícula! Todavia, nesse caso, o prêmio caberia a Rob
Liefeld.
Rob Liefeld nunca foi um desenhista de muitos recursos. A anatomia das
personagens desenhadas pelo norte-americano sempre se mostraram deficitárias,
assim como suas noções de luz e sombra. Não se pode dizer, contudo, que
Liefeld não tenha contribuído com a indústria de quadrinhos. Suas criações
marcaram a década de 1990 – Cable, Deadpool (Marvel Comics) e Youngblood
(Image Comics), entre outros.
Depois de homéricas brigas com a DC e a Image, companhia que ajudou a
fundar em 1992, Liefeld começou a retornar ao cenário dos quadrinhos. Com um
enredo baseado em uma porção bíblica, convenientemente deslocada, a trama
gira em torno de uma invasão de zumbis a Jerusalém, após a ressurreição de
Jesus. Tudo bem, o negócio é, de fato, tão ruim quanto parece (pior seria
impossível!). Para completar, um cavaleiro chamado Lázaro, o imortal, surge
para combater as criaturas.
Na mesma linha, a HQ Jesus Hates Zombies [Jesus Odeia Zumbis] foi
lançada em 2011. Chamar a série de trash é ofender o gênero! Na trama, Jesus
volta à Terra para salvar o mundo os zumbis, que disputam com vampiros a
participação no maior número de obras de ficção de mau gosto. O autor da
façanha é Eric Balfour. 31
Depois dessa maratona, de clones a zumbis, passando por interpretações
pouco convencionais, resta perguntar: De onde surgiram ideias tão estranhas
sobre Jesus?
Naqueles dias, Jesus foi da Galileia até o rio Jordão a fim de ser batizado por João Batista. Mas
João tentou convencê-lo a mudar de ideia, dizendo assim:
– Eu é que preciso ser batizado por você, e você está querendo que eu o batize?
Mas Jesus respondeu:
– Deixe que seja assim agora, pois é dessa maneira que faremos tudo o que Deus quer.
E João concordou (Mateus 3:13-15, NTLH).
Era dele que eu estava falando quando disse: “Logo vai chegar um homem muito mais importante
do que eu, o qual já existia muito antes de mim! Eu não o conhecia, porém estou aqui batizando com
água a fim de revelá-lo à nação de Israel.” Então João deu o seguinte testemunho: “Eu vi o Espírito
descendo dos céus na forma de uma pomba e permanecer sobre Jesus. Eu não sabia quem era ele,
mas aquele que me enviou para batizar, disse-me: ‘Quando você vir o Espírito descer e pousar sobre
alguém, esse é aquele que batiza com o Espírito Santo’. Eu vi acontecer isso com esse homem, e,
portanto, sou testemunha que ele é o Filho de Deus” (João 1:30-34, Nova Bíblia Viva).
Batizando o Messias
Se o seu chefe lhe dissesse: “Escute, preciso de sua ajuda. Gostaria que
você agisse com franqueza. Não tente ser lisonjeiro ou conciliador. Responda à
minha pergunta: Quais defeitos você nota em mim?”
Por um minuto, a indecisão paira sobre sua fronte. Ele está falando sério? E
se, hipoteticamente falando, você tentasse responder à pergunta da forma mais
objetiva, qual o risco de deixar o seu superior descontente? Talvez lhe ocorra
algo como: “Digo para ele assinar um acordo prometendo não me demitir e aí
responderei à questão.”
Há certos momentos em que temos vergonha de dizer ou fazer algo na
frente dos superiores. Rir com os colegas de trabalho é algo diferente de estar na
presença do chefe. Já se sentiu assim?
João Batista estava em uma situação similar. Já havia batizado outras
pessoas. Todavia, desta vez era diferente. Ele batizaria o “Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo”. Era de fazer com que qualquer um tremesse e suasse.
Outros poderiam ignorá-lo. Os teólogos liberais chegaram a desprestigiá-lo. A
mídia de hoje pode achar que Jesus foi somente um homem qualquer. No
entanto, João sabia bem quem estava à sua frente.
Como batizar alguém que não precisa morrer para o pecado, pelo simples
fato de jamais ter pecado? Nada de mudar de vida. Esqueça coisas como ficha
limpa ou folha em branco. A história de que o “passado não conta” se torna
irrelevante. Falar em recomeço é perda de tempo. A vida imaculada de Jesus
tornava todas essas garantias desnecessárias.
Isso deve ter dado um nó na cabeça de João. Se Jesus não possuía pecado,
porque batizá-lo?
Perceba o constrangimento evidente do Batista:
– Eu é que preciso ser batizado por você, e você está querendo que eu o batize?
Mas Jesus respondeu:
– Deixe que seja assim agora, pois é dessa maneira que faremos tudo o que Deus quer.
E João concordou (Mateus 3:14, 15, NTLH).
28
Disponível em: <http://www.devir.com.br/hqs/yeshuah_v001.php>.
Acessado em 18 de março de 2013. A obra de Laudo Ferreira Júnior ganhou um
segundo volume, intitulado Yeshua, o Círculo Interno, o Círculo Externo.
29
Disponível em: <http://www.multiversodc.com/v2/2012/04/punk-rock-
jesus-e-nova-obra-da-vertigo/>. Acessado em 19 de março de 2013.
30
Disponível em: <http://hqmaniacs.uol.com.br/principal.asp?
acao=noticias&cod_noticia=34086>. Acessado em 19 de março de 2013.
31
Disponível em: <http://hqmaniacs.uol.com.br/principal.asp?
acao=noticias&cod_noticia=30424>. Acessado em 19 de março de 2013.
32
Veja, por exemplo, as seguintes passagens bíblicas: João 1:1, 14, 18;
20:28; Filipenses 2:5-10; Colossenses 1:16; Hebreus 1:6, 8.
33
Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u696080.shtml>. Acessado
em 19 de março de 2013.
34
Há bons livros cristãos que respondem às distorções sobre Jesus
presentes nesses materiais. Veja especialmente: Grenville Kent, Philip
Rodionoff, O Código da Vinci e a Bíblia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira,
2006); Josh McDowell, Bill Wilson, Ele Andou Entre Nós: evidências do Jesus
Histórico (São Paulo: Candeia, s/d); Woodrow W. Whidden, Ellen White e a
Humanidade de Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004).
6. ENCARAR A REDUÇÃO DE SI MESMO
Apenas o amigo
A essa altura, alguém poderia dizer: “Bem, isso é tudo muito bonito, mas
que tal voltar para a atmosfera do planeta Terra?” Falar em abnegação em um
mundo competitivo? Com raros exemplos, as pessoas não se parecem com anjos,
que, ao menor sinal, acham-se dispostos a servir. Há exemplos de gente
abnegada. Todavia, quem garante que suas boas atitudes não eram apenas
pontuais? Caso tenham feito o bem buscando aprovação, continuam sendo
egoístas no íntimo.
Talvez esses questionamentos tenham seu lugar. Entretanto, o argumento da
maioria não serve para anular nosso dever. Se Deus exige algo, seria tolice
humana tentar se desculpar argumentando que aquilo seja pouco popular ou
incomum! Além do mais, o Senhor reservou, ao longo da história, exemplos
genuínos de abnegação e serviço. Embora imperfeitos, homens e mulheres fiéis
abrilhantaram a trilha e cravaram suas pegadas de forma inconfundível.
João Batista faz parte da lista de pessoas abnegadas que devem nos inspirar.
Um dos episódios mais ilustrativos ocorreu durante um diálogo de João e seus
discípulos.
Tudo começou um pouco antes, quando os discípulos de João
aparentemente discutiam teologia com um grupo de judeus. Provavelmente, o
assunto “Jesus” entrou na pauta. Os seguidores de João voltaram como nerds que
ouviram alguém criticar seu filme favorito (nunca contrarie um fã!). Eles
possuíam um lado zeloso e ciumento.
Sentiram que Jesus estava ganhando espaço e, dia a dia, tornava-se mais
popular do que seu querido mestre. Eles não poderiam tolerar isso! Quem sabe
uma campanha de marketing, uma nova turnê ou um jingle mais chamativo
poderia mudar as coisas, e as pessoas voltassem a valorizar João Batista. No
entanto, teriam de primeiro comunicar o profeta do Jordão dos índices do Ibope:
“Mestre, aquele homem que estava contigo no outro lado do Jordão, do qual
testemunhaste, está batizando, e todos estão se dirigindo a ele” (João 3:26).
Os alunos de João trataram Jesus quase que como desertor de seu clube e,
pior, fundador de um clube rival. Para tornar a situação ainda mais dramática, o
sucesso de Jesus superava o daquele que o havia batizado. Quanta falta de
respeito – afinal, Jesus não devia seu sucesso a João, que havia servido de mestre
de cerimônia entre ele e a multidão?
Impressionante como existem aqueles que “tomam as dores” e se envolvem
em situações que não lhe dizem respeito. Sem se dar conta, os discípulos de João
estavam servindo de tentação para seu mestre. Ele poderia “comprar a briga”.
Ainda bem que João tinha consciência de quem era. Calmamente, ele deve ter
feito seus alunos zelosos se assentarem em roda, enquanto lhes contava essa
parábola:
João respondeu: – Ninguém pode ter alguma coisa se ela não for dada por Deus. Vocês são
testemunhas de que eu disse: “Eu não sou o Messias, mas fui enviado adiante dele.” Num
casamento, o noivo é aquele a quem a noiva pertence. O amigo do noivo está ali, e o escuta, e se
alegra quando ouve a voz dele. Assim também o que está acontecendo com Jesus me faz ficar
completamente alegre. Ele tem de ficar cada vez mais importante, e eu, menos importante (João
3:27-30, NTLH).
Em primeiro lugar, João sabia de algo que nós não sabemos. As pessoas não
ocupam cargos no reino dos céus por seu talento, beleza ou status. O Senhor
reservou um lugar para cada um. Isso implica que desde agora o foco tem de
estar no serviço, não na função e no que ela representa.
Alguém já disse sabiamente que “o verdadeiro teste do servo é ver se ajo
como servo quando sou tratado como um deles”. 37 Por mais tocante que seja
assumir o título de “servo de Deus”, somente quando nossa patente é rebaixada e
pisam em nosso pescoço é que de fato somos servos.
Os seguidores de João são relembrados de que suas esperanças foram
construídas sobre a areia da vaidade humana. Seu mestre jamais aspirou a
qualquer cargo. Ele não estava ali para concorrer com Jesus, mas para apresentá-
lo. Portanto, não havia a menor razão para ciúmes. João e Jesus desempenhavam
o papel que a Providência lhes confiara. Para ilustrar isso, João fez uso de uma
história.
Preciso dizer para você que o casamento é uma bênção, e sempre me
recordo com muito carinho daquele dia especial em que eu e Noribel estivemos
juntos no altar. Que dia magnífico e abençoado! Claro, o dia do casamento
também é marcado por picos de ansiedade, como, aliás, toda grande ocasião na
vida. Para que tudo corresse bem, os preparativos foram intensos. Até
improvisamos uma linha de montagem para organizar os presentes – Henry Ford
balançaria a cabeça em aprovação.
Por mais que todos os detalhes sejam planejados com carinho e zelo, somos
surpreendidos por aquilo que sai do script – desde o sapato do pajem, que, por
engano, era um número a mais, ao sumiço das chaves da sala em que ficava o
banco para noivinhos. Obviamente, nenhum desses detalhes tira o brilho do
sonho que está sendo realizado, em virtude do amor que bancou o sonho.
Sem dúvida, devo muito aos amigos. Muitos vieram de longe. Outros
participaram em momentos decisivos da cerimônia. Ajudaram a organizá-la.
Fizeram todo o barulho possível na festa, arrecadando dinheiro – a famosa
técnica da gravata! No fim, todas essas pessoas contribuíram para que o dia
findasse com um sentimento de vitória muito grande, que eu descobriria depois
que é apenas parte da vitória maior de continuar casado com alguém tão
especial!
No entanto, quando a festa terminou, eu e minha esposa fomos a um hotel
na cidade mesmo, antes de viajarmos. Aquele era o nosso momento. Não fomos
acompanhados por nenhum amigo ou amiga. Não esperávamos que a campainha
tocasse e víssemos um rosto conhecido à porta. Estávamos sozinhos e assim
deveria ser!
Note as palavras de João: “Num casamento, o noivo é aquele a quem a
noiva pertence. O amigo do noivo está ali, e o escuta, e se alegra quando ouve a
voz dele” (João 3:29, NTLH). Os noivos pertencem um ao outro. Há amigos,
padrinhos, pajens e uma série de outras pessoas que se envolvem em um
casamento. Todos muito queridos e bem-vindos. Eles participam de alguma
forma, tanto na cerimônia quanto na festa. No entanto, há uma diferença crucial
entre o noivo e seus amigos: apenas ao noivo pertence à noiva.
João Batista sabia os limites de seu ministério. E estava feliz por participar
da alegria de Jesus, mas como um amigo. Jesus era o noivo bendito, aquele que
conquistaria as multidões que formariam a sua comunidade, a igreja, tantas
vezes comparada a uma noiva (veja, por exemplo, Efésios 5:25-27). A igreja
pertence a Jesus, não ao seu primo e precursor.
João ainda exterminou o orgulho do partido que levava seu nome com a
frase: “Convém que ele cresça e que eu diminua” (João 3:30, ARA). Havia
chegado o tempo de o profeta do Jordão sair de cena. Ele não mensurava o
sucesso por seu desempenho ou pela mídia que reunia. João ignoraria os
paparazzi ou os índices do Ibope. O Batista seguia o roteiro divino para sua vida.
Isso sim lhe importava.
Abrace a humilhação
Escolha um ano a partir de 1960. Seja qual for sua escolha, darei uma das
seguintes respostas: “tenho” ou “nesse ano eles não lançaram nada.” Eu explico:
mantenho uma coleção de álbuns dos King’s Heralds, desde a década de 1960
até os dias atuais. Praticamente todos os álbuns. Conheço centenas de músicas
do quarteto. Consigo reconhecer a formação que canta pelo timbre de cada uma
das vozes. Consigo identificar cada um dos componentes do grupo.
Sendo assim, fica difícil dizer qual minha música predileta. Durante muito
tempo, eu não tinha dúvida de que minha favorita era uma canção simples,
intitulada Humble Heart [Coração humilde]. Curiosamente, eu a ouvi
primeiramente em português, em um antigo vinil dos Arautos do Rei (aqueles
que tiverem menos de 18 anos perguntem a seus pais o que é um vinil!). 38
Na época, era muito comum as canções receberem o nome conforme o
primeiro verso. Assim, a canção em português foi intitulada De onde vem tão
clara luz. Na segunda estrofe, em um dos momentos mais belos, o primeiro tenor
assume a melodia e a letra diz:
Sim, Deus tem prazer naquele servo que está tão despido de si mesmo que
pode ser preenchido com o Espírito. E ele convida você hoje para ser esse servo,
disposto a se reduzir, a se humilhar, a abrir mão de supostos direitos e abandonar
a arrogância. Está você disposto a encarar o chamado?
35
Vale lembrar que o jornal News of the World, o maior da Inglaterra, viu-
se em meio a escândalos devido ao uso de escutas ilegais e uma série de falsas
alegações que lhe valeram uma insuperável crise de credibilidade. Acabou
encerrando suas atividades em julho de 2011.
36
Mark Andrew Spitz mantinha o recorde de sete medalhas de ouro em
uma mesma edição das Olímpiadas (conquistado em 1972) e superado apenas
por Phelps em 2008. A sua declaração aparece em uma entrevista cedida a Paulo
Roberto Conde, “Phelps não volta a nadar porque teme fracassar”, publicada no
jornal Folha de S. Paulo, caderno Esportes, p. D9, 10 de março de 2013.
37
Citado em C. Gene Wilkes, O Último Degrau da Liderança (São Paulo,
Mundo Cristão, 1999), p. 124.
38
A música estava no quinto disco da série Redescobrindo, composta
originalmente de seis discos de vinil gravados pelos Arautos na década de 1970.
Originalmente, pertencia ao álbum Wheel in a Wheel, Gravado em 1967 pelos
King’s Heralds.
7. PELO CERTO
Outras concessões
Evidentemente, existem outras heranças pagãs no seio do cristianismo.
Rituais dedicados a santos, festas pagãs recicladas e objetos de adoração
semelhantes aos encontrados em cultos não cristãos. Mesmo na
contemporaneidade, igrejas mais recentes têm voltado às tradições medievais,
usando água benta e objetos consagrados. Outras usam velas na adoração.
Ao longo de sua existência, o cristianismo enfrenta uma batalha para resistir
aos apelos da cultura em que está inserido. Nem tudo o que pertence à cultura é
errado por si – do contrário, teríamos de usar roupas completamente diferentes
em nosso dia a dia (não sei se eu me adaptaria a uma túnica, por exemplo!).
Ocorre que muitas expressões e costumes culturais podem ferir princípios claros
do evangelho.
Colportando nas serras gaúchas, certo dia eu voltava para o alojamento. Era
próximo ao meio-dia. O sol estava a pino. Tinha sede. Bati palmas em uma casa,
de onde saiu uma moça. Pedi-lhe um copo com água. Em instantes, ela voltou
com um copo que, em vez de água, continha vinho branco. Felizmente, percebi
antes de experimentar! Como a região onde eu estava é famosa por vinícolas
comunitárias, o costume era oferecer vinho. No entanto, como cristão, não
poderia aceitar aquilo. Então, gentilmente, expliquei à moça que não tomava
aquela bebida.
Nem sempre é tão simples detectar quando algo representa um perigo para a
vida cristã. Muitos hábitos, costumes e práticas aparentemente inofensivos
escondem princípios antagônicos à mensagem do evangelho. Cada realidade
cultural apresenta semelhantes desafios.
No contexto pós-moderno, os desafios são imensos e exigem constante
reflexão. A maior tentação é nos tornarmos cristãos pós-modernistas,
assimilando comportamentos urbanos errados e hábitos norteados pela cultura de
massa. A experiência religiosa se tornará mero entretenimento religioso, nutrida
com pregações pasteurizadas. Substituiremos as doutrinas pelo sentimento de
pertencimento e a autêntica comunhão cristã baseada na verdade pela mera
amizade social. Precisamos de equilíbrio para não ser insensíveis à época em que
vivemos, sabendo contextualizar o evangelho, sem cair na armadilha de aculturar
nossa fé.
Em cada período da história, os servos de Deus agiam como hábeis
médicos, capazes de fazer o diagnóstico correto e propor o tratamento adequado.
Isso não lhes garantia aceitação ou popularidade. Ao contrário, as reações a seus
esforços eram violentas – para dizer o mínimo.
Denunciando o erro
João Batista não era um mensageiro passivo. Não usava um microfone
auricular, enquanto contava piadas para ouvir sua audiência gargalhar. Não o
imagine como um tipo bonachão, boa-praça, desses que têm linguagem fluida e
sabem agradar a todos com lisonjas calculadas.
O que movia o profeta do deserto era o seu desejo de ficar ao lado da
verdade. E isso tem permanecido, ao longo dos séculos na história cristã, como
um dos maiores inconvenientes. Quem quer que se levante em favor da verdade
sofre, na melhor das hipóteses, zombaria e indiferença.
Isso não significa que os servos de Deus sejam desagradáveis de propósito.
Entretanto, ao se posicionarem diante do erro de seus contemporâneos, atraem
críticas e acusações. Desde Abel tem sido assim.
Certamente, João Batista tinha palavras duras a transmitir. Caso se
recusasse a falar, o peso da responsabilidade cairia inteiramente sobre ele. Sinta
o peso de sua pregação:
Quando viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava batizando, disse-lhes:
Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira que se aproxima? Deem fruto que mostre o
arrependimento! Não pensem que vocês podem dizer a si mesmos: “Abraão é nosso pai”. Pois eu
lhes digo que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão. O machado já está posto à raiz
das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo (Mateus 3:7-10).
Com o peito estufado e voz possante, João não poupava os fariseus que se
aproximavam do Jordão. Suas palavras não incluíam uma saudação
condescendente. O Batista agia como um verdadeiro zagueiro diante do contra-
ataque puxado por um volante habilidoso – rápido e incisivo.
João lembrava aos líderes de seu tempo que, se é impossível fugir do
julgamento de Deus, é mais sensato se preparar para ele. Parece que, em menor
ou maior grau, todos padecemos do sentimento irracional de viver em
desconformidade com nossa expectativa – o que afeta a vida espiritual.
É uma ilusão imaginar que se possa alcançar a salvação sem verdadeiro
arrependimento e transformação de vida. Nem mesmo a etnia – ser ou não
descendente de Abraão – garante privilégios espirituais. As árvores que não
produzissem fruto (de genuíno arrependimento) seriam cortadas pelas mãos
calosas do divino lenhador.
João não reservava suas palavras duras apenas para os fariseus. Ele
denunciou a imoralidade do próprio governante da região. Depois da morte do
profeta, Herodes ouviu falar a respeito de Jesus. Por alguma razão, o sinistro
monarca concluiu que o Galileu era, em verdade, o próprio Batista ressuscitado.
Nesse contexto, o evangelista relembra o motivo de João ter sido preso:
Pois Herodes havia prendido e amarrado João, colocando-o na prisão por causa de Herodias,
mulher de Filipe, seu irmão, porquanto João lhe dizia: “Não te é permitido viver com ela” (Mateus
14:3, 4).
Em busca de respostas
Atente para a sequência: os mensageiros de João chegaram a Jesus com
olhos sem brilho e vozes embargadas. A descrença de João não lhes havia
poupado. Que resposta deveriam dar ao desiludido precursor? Que resposta
teriam para seu proveito próprio?
Sem dúvida, as maneiras de Jesus irritariam muitas pessoas em nossos dias.
Parece que suas respostas raramente eram diretas. Não que o objetivo dele fosse
confundir ou dificultar. Ele é o Senhor do simples. Ao mesmo tempo, a
profundidade do que Cristo dizia causava (e ainda causa) alvoroços. No caso em
questão, sua resposta aos discípulos de João se mostrou rica em significado:
Voltem e anunciem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos veem, os mancos andam,
os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as boas-novas são
pregadas aos pobres; e feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa (Mateus 11:4-6).
Jesus não tinha uma homilia sobre os sofrimentos. Não fez um discurso
acadêmico intitulado: “Motivo para resignação dos mártires da perspectiva
eclesiológica.” Ele, a princípio, nada disse. Contou com a compreensão dos
emissários de João. Fez com que acompanhassem a rotina do Messias. Após
algumas curas e feitos extraordinários, chamou os rapazes para um canto. “Vocês
viram o que eu fiz?”, perguntou-lhes Jesus. Cegos chegavam guiados e saíam
falando da cor do céu. Os surdos vinham deprimidos e voltavam assoviando para
acompanhar o cântico das aves. Paralíticos eram trazidos em macas e deixavam
o recinto aos pulos.
O que Jesus fazia era a evidência dos sinais messiânicos. A conclusão
deveria ser óbvia: se ele agia como o Messias, não poderia ser um jogador de
tênis passando as férias na Palestina! Não haveria outro para vir. O Nazareno de
fato era o Messias anunciado pelos profetas e batizado por João.
Já passou por momentos assim? As convicções rodopiam pelo ar, até
sumirem de vista. A esperança fica tão esmigalhada que parece impossível juntar
seus estilhaços. O que você faz? Desiste de lutar contra as ideias evolucionistas
na sala de aula e se submete às pressões acadêmicas? Abandona a resistência à
pressão e começa a frequentar as festas na república, regadas a álcool e muito
sexo? Fica com medo de perder a promoção e começa a trabalhar uma sexta-
feira à noite por mês?
Na hora da dúvida, a fraqueza espiritual nos esmaga. A angústia é imensa, e
as reservas emocionais estão ressequidas. João passou por isso. O primo do
Messias, na prisão? O mensageiro escolhido, dormindo com ratos? Teria o
Batista se enganado? Sua mensagem estava equivocada?
Se Jesus era mesmo o Messias, por que ele não o libertava? Bastava a ele
enviar um anjo, como quando Daniel esteve na cova dos leões (Daniel 6)? Jesus
poderia ter aparecido ali, de forma sobrenatural. Poderia ter feito as barras de
ferro se derreterem ou virarem isopor. Nada disso aconteceu. Sem milagres. Sem
solução. Sem certezas. João Batista estava sozinho?
Note a frase que Jesus cuidadosamente escolheu dizer a João: “Quem não
perde sua fé em mim é realmente abençoado.” Não é fácil remar entre
tempestades. Não é fácil dormir quando os problemas pesam. No entanto, é
necessário. E, pela fé, é possível. João deveria mais do que antes se apegar à
mensagem que ele próprio transmitiu. O homem do Jordão deveria substituir o
prisioneiro desiludido – sim, ele teria de voltar a ser o mesmo João Batista,
independentemente das circunstâncias. Principalmente, porque as coisas iriam
piorar!
Despedida cruel
Na prisão, João contava com um simpatizante inesperado: o próprio
Herodes!
Veja o que diz o texto bíblico:
Assim, Herodias o odiava e queria matá-lo. Mas não podia fazê-lo,porque Herodes temia a João e
o protegia, sabendo que ele era um homem justo e santo; e quando o ouvia, ficava perplexo. Mesmo
assim gostava de ouvi-lo (Marcos 6:19, 20).
Finalmente Herodias teve uma ocasião oportuna. No seu aniversário, Herodes ofereceu um
banquete aos seus líderes mais importantes, aos comandantes militares e às principais
personalidades da Galileia. Quando a filha de Herodias entrou e dançou, agradou a Herodes e aos
convidados. O rei disse à jovem: “Peça-me qualquer coisa que você quiser, e eu lhe darei.” E
prometeu-lhe sob juramento: “Seja o que for que me pedir, eu lhe darei, até a metade do meu reino.”
Ela saiu e disse à sua mãe: “Que pedirei?” “A cabeça de João Batista”, respondeu ela.
Imediatamente a jovem apressou-se em apresentar-se ao rei com o pedido: “Desejo que me dês
agora mesmo a cabeça de João Batista num prato” (Marcos 6:21-25).
O rei ficou muito aflito, mas, por causa do seu juramento e dos convidados, não quis negar o
pedido à jovem. Enviou, pois, imediatamente um carrasco com ordens para trazer a cabeça de João.
O homem foi, decapitou João na prisão e trouxe sua cabeça num prato. Ele a entregou à jovem, e
esta a deu à sua mãe (Marcos 6:26-28).
A avaliação final
Enquanto escrevo estas linhas, uma série de adolescentes está na sala de
aula, exibindo a concentração de um equilibrista. Alguns, tensos. Outros, apenas
preocupados. Eles não estão em aula. Realizam avaliações para recuperar notas
ruins. A aprendizagem deles está sendo testada, após plantões de dúvidas, aulas
de revisão e muito estudo (em alguns casos, porque são adolescentes, e você
sabe…).
A pedagogia adventista é redentora e se preocupa em desenvolver no aluno
o máximo de seu potencial. Acredito nisso. Nesse processo, a avaliação não é
definitiva. Somente proporciona uma oportunidade para verificar o quanto o
aluno aprendeu e fazer com que o professor reveja o processo de aprendizagem,
pensando no aprendizado.
Claro que isso produz um resultado final. Daí se pode constatar se o aluno
foi ou não aprovado. Ainda estamos no segundo bimestre. Ainda há
oportunidades para todos.
Na vida, não é muito diferente. Podemos nos avaliar a todo tempo. O
objetivo deve ser rever e consertar a rota. Substituir hábitos ruins por outros
saudáveis. Abandonar fracassos no passado e focar o que vem a seguir,
conservando as lições aprendidas com os deslizes. Nada é definitivo, porque a
vida vai sendo construída no processo. Seria bom cometer o menor número de
falhas; mas entre erros e acertos, podemos aprender e nos apegar a Deus.
Todavia, como em um ano letivo (ou no semestre de um curso superior), o
fim da vida é definitivo. Chega o momento da última avaliação. E Deus, o
mestre supremo, é quem dirá se fomos ou não aprovados. Antecipadamente,
podemos saber do resultado, desde que sigamos as orientações divinas. E
confiemos naquele que nos ama de um modo que é didático e assombroso ao
mesmo tempo.
O momento da avaliação derradeira um dia chegou para João Batista. Na
maioria dos casos, seres humanos mortais são deixados em suspenso, porque
Deus não divide sua opinião sobre quem avaliou. Claro que esperamos que
muitas das pessoas que amamos e que vimos servirem a Deus ressuscitem para
receber a coroa da vida. No entanto, não há garantias de que elas confiaram nos
méritos de Cristo. E é justo dizermos que estamos no escuro quanto aos que,
aparentemente, morreram sem uma experiência religiosa declarada.
Quem nos garante que uma pessoa, que recebeu pouca luz da verdade, na
última hora não tenha se arrependido? Ou que um cristão aparentemente fiel não
tenha sido um bom farsante, um hipócrita? Somente o Senhor conhece os
corações. Apenas ele pode determinar o destino de cada um em seu juízo.
Quanto a nós, o máximo que podemos – e devemos – saber diz respeito à nossa
própria condição. Assim, em vez de especularmos sobre a salvação dos outros,
devemos estar mais preocupados com a nossa!
Entretanto, em algumas ocasiões, o Senhor nos mostra em sua Palavra
como avaliou grandes homens do passado. Isso acontece para sermos
incentivados a imitar esses santos exemplos. Dessa perspectiva, vale
recapitularmos as palavras de Jesus sobre João Batista. É a avaliação final do
precursor da luz feita pela própria Luz.
Quando os discípulos de João foram embora, Jesus começou a dizer ao povo o seguinte a respeito
de João: – O que vocês foram ver no deserto? Um caniço sacudido pelo vento? O que foram ver?
Um homem bem-vestido? Ora, os que se vestem bem moram nos palácios! Então me digam: o que
esperavam ver? Um profeta? Sim. E eu afirmo que vocês viram muito mais do que um profeta
(Mateus 11:7-9, NTLH).
Porque João é aquele a respeito de quem as Escrituras Sagradas dizem: “Aqui está o meu
mensageiro, disse Deus. Eu o enviarei adiante de você para preparar o seu caminho.” Eu afirmo a
vocês que isto é verdade: de todos os homens que já nasceram, João Batista é o maior (Mateus
11:10, 11, NTLH).
Uau! Não é de todo mundo que se ouve um elogio desse tamanho. Todos
gostamos de elogios. Lembro-me de um episódio interessante: postei em minha
página no Facebook alguns desenhos antigos, feitos com pincel e nanquim.
Muitos curtiram e comentaram. No entanto, quando li um comentário de Thiago
Lobo, ilustrador da Casa Publicadora Brasileira, simplesmente ganhei meu dia.
Ser elogiado por alguém da área é sempre incrível.
Contudo, nada se compara ao elogio que João Batista recebeu. O próprio
Jesus, criador da humanidade, conhecedor de todas as coisas, afirmou: “de todos
os homens que já nasceram, João Batista é o maior.” Certa vez, em uma
declaração polêmica, o ex-jogador brasileiro Romário disse: “Quando eu nasci,
Deus apontou para mim e disse: ‘Esse é o cara’.” Com todo respeito ao grande
centroavante, o único que recebeu um elogio parecido chama-se João Batista.
Jesus não terminou aqui suas considerações. Há outras surpresas:
Digo-lhes a verdade: Entre os nascidos de mulher não surgiu ninguém maior do que João Batista;
todavia, o menor no reino dos céus é maior do que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o
reino dos céus é tomado à força, e os que usam de força se apoderam dele. Pois todos os Profetas e
a Lei profetizaram até João. E se vocês quiserem aceitar, este é o Elias que havia de vir (Mateus
11:11-14).
Geração indiferente
Como ninguém, Jesus se mostrou hábil em aproveitar as oportunidades. Ele
não pretendia apenas chamar a atenção para o caráter e missão de João Batista,
aprovado na avaliação do Céu. Ele queria que as pessoas pensassem em como
poderiam se autoavaliar. Acompanhe suas ponderações:
Aquele que tem ouvidos, ouça! A que posso comparar esta geração? São como crianças que ficam
sentadas nas praças e gritam umas às outras: “Nós lhes tocamos flauta, mas vocês não dançaram;
cantamos um lamento, mas vocês não se entristeceram.” Pois veio João, que jejua e não bebe vinho,
e dizem: “Ele tem demônio.” Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: “Aí está um
comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores.” Mas a sabedoria é comprovada pelas obras
que a acompanham (Mateus 11:15-19).
Não importava que meios o Senhor usasse para impressionar seu povo
incrédulo, pois o resultado se mostrava idêntico: em vez de estado de alerta,
apatia; em lugar de arrependimento, indiferença. As críticas se dirigiam tanto a
João quanto a Jesus.
E ao responder de forma tão apagada à pregação da mensagem, quem o
rejeitava se desqualificava para a salvação. Somos avaliados por Deus de acordo
com a resposta que damos à sua vontade. Muitos judeus do primeiro século se
recusaram a ouvir (mas não nos esqueçamos dos discípulos que eram judeus,
além de muitos que se converteram no Pentecostes). Entretanto, como Jesus
explanou: “a sabedoria é comprovada pelas obras que a acompanham.”
E hoje é diferente? Jesus está próximo de interromper o curso dese mundo.
Ele assumirá o controle absoluto do planeta. Seus olhos o verão invadir o espaço
das nuvens, escoltados por incontáveis anjos. Como essa notícia afeta você? Isso
se parece com uma velha história de família, com a qual já nos acostumamos
tanto a contar e a ouvir outros contarem, que não nos comove mais?
Enquanto estivermos acostumados a ponto de não nos importar com as
implicações práticas da mensagem, padeceremos da mesma ignorância daqueles
que rejeitaram a luz de João Batista. Mais do que aceitarmos sem relutância a luz
celestial, devemos nos tornar precursores da luz que está prestes a retornar.
Levante-se e brilhe. Ilumine as trevas. Seja a voz no deserto de hoje.
Abrevie o momento glorioso em que o Messias aparecerá – não para iniciar
outra missão entre os homens, mas para reinar soberano!