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f 636 Robert K. Merton:


XVII A CIÊNCIA
quer das t
relações so Uma vez fundamentada com firmeza a instituição social da ciência, E A ORDEM SOCIAL1
Os cin quais são os determinantes, diferentes dos complementos científicos, dos
a ciência e focos de interêsse para a pesquisa e para escolha dos problemas? É a esta
de alguns é questão que o capitulo final é dedicado, ainda com a Inglatena como lugar
primeiro 11 e o século XVII como época. Desde que apareceu pela primeira vez êste
e da estn; trabalho, aumentou e se tornou mais acalorada a controvérsia sôbre a deso-
social rela< · rientadora e r.stéril questão de se saber se a escolha de problemas para a
Em segunc investigação científica é afetada ou não pelas necessidades práticas ( eco-
pendência, nômicas e 1.ecnológicas) da éipoca. São os entusiastas de um e de outro i
campo que conseguem converter um problema de pesquisa sociológica em ti
Capítulc
senvolvime "slogans" políticos, em que as respostas já são dadas de antemão, antes de
q l'
1!

que têm un se iniciar o árduo trabalho da pesquisa. O problema importante, no fim rJ

l
tensão ent1 das contas, não é de saber se essas influências práticas sôbre o curso do
da ditadur desenvolvimento científico tiveram lugar algiima vez ou se permaneceram
!r
sociedades sempre determinantes. Constitui, pelo contrário, assunto de múltiplas
ciência e a perguntas, cac.a uma das quais exige longo e paciente estudo e não rá-
mentas de pidas e ilnpacisntes respostas. Em que medida essas influências atuaram i1 NOS COMEÇOS DO SÉCULO XX, Max Weber observou que "a crença
prêgo. Ilw em diferentes tempos e lugares? Em que circunstâncias sociológicas re - ,J no valor da verdade científica não procede da natureza, mas é um produto

~
prêgo modE sultaram ser mais determinantes e em que circunstâncias menos determi- de detenninadas culturas".2 Hoje, podemos acrescentar: "e esta crença se
helião cont nantes? Encontram-se caracteristicamente nas p1imeiras etapas de uma ,, transforma fàcilmente em dúvida ou incredulidade". O desenvolvimento con-
do seu objE disciplina (;ientífica? Quais são as diversas conseqüências, tanto para a 4 tínuo da ciência somente ocorre em sociedades de certa ordem, submetidas
conta-se a e ciência como para a estrutura social, das diversas normas mediante as quais ;I a um complexo peculiar de pressupostos tácitos e de coações institucionais.
mente figur se adotam os problemas para a pesquisa? O que é hoje para nós um fenômeno normal que não exige explicação e
À medida em que os documentos concernentes a estas questões forem :i garante muitos valôres culturais evidentes por si mesmos, foi, em outras
eia respons~
ção humarn se acumulando, outro setor da sociologia da ciência irá ganhando em subs- épocas, e ainda é hoje em muitos lugares, anormal e pouco freqüente . A i
tância. ~ l o dêste livro destina-se a proporcionar alguns continuidade da ciência requer a participação ativa de pessoas interessadas e f
noite e nur 1,
materiais rel:iitivos a um breve período dos primeiros dias da ciência na preparadas para os empreendimentos científicos. O apoio à ciência só é
O Capít
estuda as r Inglaterra. assegurado pelas condições culturais apropriadas. Por conseguinte, é im-
portante examinar os fatôres que motivam as carreiras científicas, que
dera-se que
universais i selecionam e dão prestígio a certas disciplinas científicas e rejeitam ou
embaraçam as outras. Tornar-se-á evidente que as .m udanças na estrutura
valôres fàcii
institucional podem restringir, modificar ou possivelmente impedir o cul-
o que impor
tivo da ciêncfa.3
as origens e
o "comunisr
Ciência conv1 FONTES DE HOSTILIDADE EM RELAÇÃO À Clf.NCIA
1.
partilhados I A hostilidade para com a ciência pode nascer pelo menos de dois con~
se mesmo c
menta da é1
juntos d~ circunstâncias, embora os sistemas concretos de valôres - hu-
manitários, econômicos, políticos, religiosos - sôbre os quais se baseia, pos-
li,,
devem ser p
!!
similá-los, e
1. Trabalho lido na "American Sociological Society Conference" , em dezembro de 1937. O
tiÍ,
nismos militi a utor agradece a.os professõres Read Bain e Talcott Parsons e aos Drs. E. Y . Hart-
circunstânci:
tucionais um
shorne e E. P. Hutcbinson, pelas suas valiosas sugestões.
2. Max Webr r, Gcsammcltc Aufsãizc zur 'Wisscnschaftslchrc, 213; cf. Sorokin, Social anel
!
Cultural Dynamics, especiaJmente II, cap . 2.
os dias. Pe 3. Cf. Merton, Scicncc, Technology anel Society in Seventcenth Centnry Englanel, cap. XI.
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638 Robert
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/::iociologia - Teoria e Estrutura 639 '
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~! sam variar consideràvelmente. O primeiro contém a conclusão lógica,
embora não necessàriamente correta, de que os resultados ou métodos da
j que a teoria da relatividade, de Einstein, constitui uma "base óbvia para
ulteriores investigações" .7
ciência são contrários à satisfação de importantes valôres. O segundo con- ( Nestes casos, os sentimentos de pureza nacional e racial prevaleceram
siste, em grande parte, de elementos não lógicos. Repousa no sentimento l claramente sôbre a racionalidade utilitária. A aplicação dêsses critérios 1,
de incompatibilidade entre os conceitos encarnados na atitude científica produziu uma perda proporcionalmente maior nas faculdades de ciências ;i
e os que se (ncontram em outras instituições. Os dois conjuntos de cir- naturais e de medicina das univ.ersidades alemãs do que nas faculdades de
f cunstâncias repousam, em grau variável, na base das rebeliões atuais contra teologia e de direito, conforme observou E. Y. Hartshorne.B ~ t e ,
11,1 a ciencia. ' Podemos acrescentar que essas reações racionais e afetivas es- ªª-..considerações utilitárias passam IJara o p_rimeir.o- plano,_q.uando- se _tt,c:ta
1:
tão implícitas também na aprovação social da ciência. Mas nestes casos d~_n_olítica oficial relativa à direção que devem seguir as investigações
acredita-se que a ciência facilita a consecução de finalidades aprovadas e se ~ientíficas. o trabalho º cfrintíficÕ-:~:~~;;;_:;te .. beii;fi~iÕs práticos - di'r"é"tõs
!~.
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pensa que os valôres culturais básicos são congruentes com os da ciência e pãia ~ p~rtfd~--;-;;_;ista ou-pãra~ ·Terceiro Reich de.v:e ser .incenÜvadÔ aci-
ma de tudo e os funrlos destinados à pesquisa devem ser redistribuídos :1
não emocionalmente incompatíveis com êles. A posição da ciência no mun-
f'1, do moderno pode ser considerada, portanto, como resultante de dois con- de acôrdo com .. essa política,9 O reitÕr da Universidade -cl~ H~id~lberg
juntos de fôrças contrárias, que aprovam e desaprovam a ciência como
atividade social em larga escala.
Limitamos nosso exame a alguns casos notórios de certas reavaliações
do papel social da ciência, sem implicar que o movimento contra esta
fique assim localizado, em qualquer sentido . Muito do qué aqui se diz
1 ©
declara que "a questão da importância científica (Wissenschaftlichlceit)
de qualquer conhecimento é coisa absolutamente secundária quando com-
ara com a questão da sua utilidade" .10
O tom geral de antiintelectualismo, com seu desprêzo pelo sábio teó-
rico e sua glorificação do homem de ação, 11 pode ter efeitos a longo prazo,
pode ser a.plicado a casos ocorridos em outras épocas e outros luga:res.4 e não imediatos, sôbre o papel da ciência na Alemanha. Porque, se
A situação na Alemanha nazista, a partir de 1933, é exemplo dos chegarem a consolidar-se essas atitudes, pode-se esperar que os elementos
modos como convergem processos lógicos e não lógicos para modificar ou \...x:,_nelhor dotaàos da população fujam das disciplinas intelectuais despres-
reprimir a atividade científica. Em parte, os obstáculos à ciência são
um subproduto inesperado das mudanças na estrutura política e no credo 7. Cf. o órgão oficial das SS, o Scltwarzc Korps, 15 de julho de 1937, 2. Nesse número Johan-
nacionalista. De acôrdo com o dogma da "pureza de raça", pràticamen- nes Stark. presidente do Physikalisch-Technischen Reichsanstalt, Insiste na eliminação de
te :tôdas as personalidades que não preenchiam os critérios politicamente te,is colaborações que ainda perduram e protesta pela nomeação de três professõres uni-
versitários que foram "discípulos" de não arianos. Ver também Hartsl10rne, op. cit., 112-3;
~mpostos de ascendência "ariana" e de manifesta simpatia pelos objetivos Alfred Rosenberg, Wcscn, Grundsiilzc und Ziclc clcr Nationalsozialistiscbcn Dcutschcn
nazistas, foram eliminadas das universidades e dos institutos científicos.5 Arbcitcrpartci, (Munique : E . Boepple, 1933), 45 e segs.; J . Stark, "Philipp Lenard ais
Como entre os expulsos figurava número considerável de cientistas emi- ~ deutscher Naturforscher", Nalionalsozialistische Monatshcftc, 1936, , 71, 106-11, onde Heisen-
nentes, uma conseqüência indireta dêsse expurgo racial foi o enfraque- berg, Schrodinger, von Laue e Planck são criticados por não se terem sepe.rado da "flsica
judia" d.e Einstein.
cimento da ciência na Alemanha. 8. Os dados sôbre os quais se baseia esta afirmação procedem de um estudo inédito de
Implícita nesse racismo está a crença na contaminação da raça me- {- E. Y. Hartshorne.
diante relações reais ou simbólicas.6 Limita-se ou proíbe-se a pesquisa i,. Cf. Wissc11schaft und Vicrjaltrcsplan, Reden a nliisslich der Kundgebung des NSD-Dozen-
tenbundes, 18 de janeiro de 1937; Hartshorne, op. · cit ., 110 e segs.; E. R . Jaensch, Zur
científica aos indivíduos de impecável ascendência "ariana", mas que co- N~ugestaltung des deutschen Studcntentums und der Hochsclrnle, (Lips la: J. A. Bart,
laboraram com não arianos ou aceitaram suas teorias científicas. Criou- 1937) esp. 57 e segs. No campo da história, por exemplo, Walter Frank, diretor cio
-se nova categoria política-racial para êsses arianos incorrigíveis: a cate- Reichsinstitut für Geschichte des neuen Deutschlands, "a primeira org!mização cienti-
fica alemã cria da pelo espirita ela r evolução nacione.1-socialista",· declara. . que .file é a
goria de "judEus brancos" . O indivíduo mais ilustre dessa nova raça é
últim a pessoa a abandonar a simpatia pelo estudo d::i hi stória a,ntiga, "mesmo a dos povos
Werner Heisenberg, Prêmio Nobel de Física, que persistiu em declarar estrangeiros", mas também assinala qu e os fundos previamente concedidos ao Instituto
Arqueológico devem ser redistribu!dos para esta nova corporação históTica, que "terá a
honra de escrever a história da Revolução Nacional-Socialista". V er seu Zuh:unft unà
4. A morte prematura de E.Y. Hartshorne interrompeu um estudo projetado sõbre a ciên- Nation, (Hamburgo: Hanseatische Verlagsanstalt, 1935), esp. 30 o segs.
cia no mundo moderno nos moldes que se expõe n este capitulo. J0. Ernst Krieck, Nationalpoli.tisrhe Erziehnng, (Lipsia: Armancn Verla.g, 1935), (19.n edi-
ção), 8.
5. Ver Capitulo III de E. Y. Hartshorn e, Thc Gcrman Univcrsities anel, National Socialism
11. O teórico na.zi sta Alfred Baeumler escreve: "Se um estudante se recusa. hoje a subme-
(CambridgP: Harva rd University Press , 1937), sõbre o expurgo n as universid ades; cf. Volk 1
ter-se à norma politica, negando-se, por exemplo, a ton1a.r parte nu1n acan1pam ento de
und Wcrdcn, 5, 1937, 320-1, que trata de alguns dos novos requisitos para o doutorado,.
trabalho' cu de 'esporte militar', argumentando que com isso perderia tempo d estinad".l
6. 1':ste é um dos muitos aspectos da introdução de um sistema de castas na Ale manha. aos estudos , estaria mostrando i.tnica.me nte que nada compreendeu do que está aconte-
Como obs~rvou R. M. Maciver, "a idéia de contaminação é comum em todo sistema de cendo ao seu redor. Só perderia seu tempo se o dedicasse a um estudo nbstrnto, se1n
i castas". 8odcty, 172 . orientação"- Miinncrbund und Wisscnschaft, (Berlim: Junker & Dünnhaupt, 1934), 153.
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<., 640 Robert K. Merton
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!:iociologia - Teoria e EstrU:t1lra 641

tigia.da&.... No~ fins da década de 1930 já se podia descobrir conseqüências rid.ades políticas, estão em conflito com as do Estado.15 As normas do
H desta atitude antiteórica na distribuição dos interêsses acadêmicos nas rthos cientlfi.ro devem ser sacrificadas, porquanto exigem o repúdio dos
ij'
~ universidade alemãs.IZ crité1ios politicamente impostos de valiclez científica ou de valor científi-
Seria errôneo sugerir que o govêrno nazista repudiasse completamente A ampl'iação do contrôle político C;ria lealdades antagônicas. A êste
a ciência e a inteligência. As atitudes oficiais para com a ciência são respeito, as reações dos católicos praticantes que se opõem aos esforços da
claramente :-..mbiva:lentes e instáveis. (Por êste motivo, tôdas as decla- autoridade polítira em definir de nôvo a estrutura social, por se intro-
~; ra1.-ões sôbre a ciência na Alemanha nazista devem ser aceitas sob reser- meterem em terrenos que pertencem tradicionalmente à religião, são d:l.
mesma orcJ.en; que a resistência dos cientistas . Do ponto de vista socioló-
vas). Por um lado, o ceticismo e o desafio às "verdades" convencionais,
gico, o lugar àa ciência no mundo totalitário é em grande parte o mesmo
que são próprios à ciência, chocam-se com a imposição de uma nova tabe·
que o de tJdas as demais instituições, exceto o Estado, de predonúnio
la de valôres que exigem ilimitada aquiescência. Mas a nova ditadura
recente . A mudança básica consiste em colocar a ciência em nôvo con-
1:em que reco1,hecer, como fêz Hobbes - o qual também afirmava que o texto social, onde, às vêzes, parece competir com. a lealdade ao Estado.
Estado deve ser tudo ou nada - que a ciência é uma fôrça. Por razões Assim, a cooperação com os não arianos vem a definir-se como um sím-
militares, econômicas e políticas, a ciência teórica - sem falar de tecno - bolo de deslealciade política. Nwn regime liberal a limitação da ciência
logia, seu rei:Jento mais respeitável - não pode ser descartada sem risco €i r:ão surge dêsse modo, pois nessa estrutura, as instituições não políticas
A experiênc1t. ~;::,;i. demonstrado que as pesquisas mais esotéricas têm gozam de uma esfera substancial de autonomia - naturalmente de exten-
encontrado aplicações importantes . A menos que a utilidade e a racio- são variável.
nalidade sejam relegaclas da memória, não. se pode esquecer que as espe- O conflito entre o Estado totalitário e o homem de ciência nasce,
culações de Clark Maxwdl sôbre o éter facilitaram a Hertz as descobertas pois, ern parte de urna incompatibilidade entre a ética da ciência e o nõvo
que culminar.:1.m no telégrafo sem fio. E, na realidade, 111n porta-voz código político que se lhe impõe, independentemente do credo profissio-
nazista também observou: "Como a práitica de hoje se baseia na ciência nal. 0 etho3 da ciênciae implica a exigência funcionalmente necessária
de ontem, também a investigação de hoje é a prática de amanhã". 13 A de que as teorias ou generalizações sejam avaliadas em têrmos da sua
ênfase sôbre a utilidade requer urn mínimo inevitável de interêsse pela consistêncin. lógica e da sua consonância com os fatos. A ética política
ciência que pode ser posta a serviço do Estado e da indústria. 14 Ao introduziria. os critérios até então irrelevantes da raça ou do credo político
mesmo temr,o, essa ênfase conduz à limitação das pesquisas de ciência do teórico.17 A ciência moderna considerou o coeficiente pessoal como
pura. fonte potencial de êrro e criou critérios impessoais para circunscrever o
êrro. Hoje é invocada para sustentar que certos cientistas, devido às
Q
PRESSÕES SOCIAIS SôBRE A AUTONOMIA DA CIÊNCIA
-
15. Isto é dit,J cle,ramente por Bernhard Rust, Reichswlssenschaftsminister,. em D as .natio-
'\
Uma an~llise do papel da ciência no Estado nazista revela os seguintes 1 nalsozialisliscllll Dcntschland und dic \Visscnschaft (Hamburgo: Hanseatlsche Verlagsans-
~
elementos e processos. A ampliação do domínio de um setor da estrutura talt, 1936). 1-22 esp. 21.
16. O "ethos" da ciência se refere a um complexo de tom emocional de regras, prescrições
social - o .Estado - pressupõe a exigência de lealdade primordial para
com êle. Exige-se do!S cientistas, assim e.orne de tôda a gente, que renun- ) costumes, crenças, valôres e pressupostos, que obrigam moralmente os cienllstas. Algu -
mas fases dêsse complexo podem ser metodologicamente desejáveis, mas " observância.
das regras não ê dita sôn1ent.e por considerações metodológlcns. Este "ethos", como a r,
ciem à adesão a tôdas as normas institucionais que, na opinião das auto-
' códigos r.ociais em geral, é apoiado pelos sentimentos daqueles a quem se a.plica . A
transgressão é reprimida por proibições admitidas pelo grupo e por reações emocionais
d e desaprPvação, postas em movimento pelos que o.pói2,m o "ethos". Existindo um "etho~"
12. Hartshon1e,, op. cit., 106 e segs.; Cf. Wissenschaft und Vicrjahresplan, 011. cit ., 25-6, em e!etivo dê,se tipo, o ressentimento, o rancor e outras manifestações ele antipatia operam
que se diz que a presente "trégua na produtividade científica" se deve em parte ao falo quase autnmàticarnente parn, estabilizar a estrul:ura vigente. Isto pod~ ser constatado na
de que um número considerável dos que puderam ter r ecebido preparo científico foram corrente 1.e sistência dos cientistas alemães e m aceitar modificações. profundo.s no con-
recrutado, para. o exército. Embora isto seja uma duvidosa explicação para uma situação 14
t eúdo d êsse uethos" . Pode-se considerar o "ethos" como o ingrediente cultural" dn ciên·
particular, um desvio prnlon ga,do de interêsse da ciência teórica, produzirá provà\'e1- eia, enquanto diferente do inrrredi ente de "civilização ", Cf. R. K. Merton "Civilization
mente um decllnio das realizações cientnficas. a nd cult!lre" , Sociology anel Social Rcsearch, l!l36, 21, 103-113.
13. O professor Thiessen, em Wisscnschaft und. Vicrjahrcsplan, op. cit., 12. 17. C!. Baeumler. op . cit.. 145. Ver também Krleck, que diz: "Nem tudo o que pode pre-
14 • Por exemplo, a qu!mica é altamente apreciada, devido a sua importância prática. Coa.o tender Justlf!cadamenta ser considerado ciência, encontra-se no mesmo nivel hierárquico
disse Hitler, "continuaremos a caminhar para a !rente porque temos a vonta.de fanática e de valor; as ciências protestante e cntólice,, francesa a nlemã, germ,\nica e judia, huma-
de nos ajudar a nós mesmos e porque t emos na Alemanha os qu'imicos e os inventor~s ni sta ou racista, Eão en1 princ1pio n,crns possibilidades, não vnlôrcs jâ. cumpridos ou de
que suprirão as nossas necessidades". Cita.do em Wisscnschaft und Vierjabrcsplan, op.cit ., graduação id êntica. . A deci são acêrca do vo,lor da ciência provirá da sua 'atualldacle', cio
6 ct passim. grau de sua !ert!Ildade, da sua !Orça. llistôrlcomente criadora ... "
ç
---642 Robert K. Merton .~ Sociologia - Teoria e Estru'tura 643

suas afiliações e;;:tracientíficas, são incapazes a priori de 1.udo o que não"\ impugnado. As descobertas da c1encia são consideradas mera expressãe>
sejam teorias espúrias e falsas . Em alguns casos, exige-se dos cientistas ela raça, da classe ou da nação.21 Ao se infiltrarem essas doutrinas entre
que aceitem m; juízos de chefes políticos cientifica mente incompetentes, J os leigos, convidam a uma desconfiança geral em relação à ciência e à
r~lativos .ª. matérias científicas. Essa tátic~, ~con~elh~vel do pon~~ ~e f depreciação do prestígio dos cientistas, cujas descobertas parecem arbi-
vista po1It1co, choca-se contra as normas 1nst1tuc10nallzadas da c1enc1a, / trárias e caprichosas. Esta variedade de antiintelectualismo, que ameaça
porém, estas normas são condenadas pelo E's tado totalitá rio como precon- sua posição social, encontra resistência característica da parte do cientista.
oeitos "liberais", "cosmopolitas", "burgueses",18 porquanto não se coadunam Também na frente ideológica o totalitarismo entra em conflito com os
facilmente com as campanhas a favor de um credo político que não se po-
pressupostos tradicio~1ais da ciência moderna.
de discutir.
De um ponto de vista mais amplo, o conflito é um aspecto da dinâ-
mica institu.cicnal. A ciência, que adquiriu um grau considerável de auto- FUNÇÕES DAS NORMAS DA CIÊNCIA PURA
nomia e criou um complexo institucional que conta com a lealdade dos
cientistas, vê agora ameaçada sua autonomia tradicional e suas regras Um sentimento que o cientista assimila desde o próprio comêço da
de jôgo - seu "ethos", em suma - por uma autoridade externa. Os senti· sua preparação rnlaciona-se com a pureza da ciência. A ciência não deve

~
@:l
mentos incC1Tpcrados no "ethos" da ciência - caracterizados por expres- -resignar-se a. ser a r.riada da teologia, da economia ou do Estado . A
sões como honradez intelectual, integridade, ceticismo organizado, de-
sinterésse, impessoalidaG.e - se vêem ultrajados pelo conjunto de senti-
mentos noves que o Estado impõe na esfera da investigação científica.
Com a deslocação da estrutura prévia, em que diferentes campos da ati-
funçã o dêsse sentimento é provàvelmente de manter a autonomia da
ciência, pois, se se adotam critérios tão extracientíficos do valor da ciência,
como a pres:.!!nível consonância com doutrinas religiosas, ou a utilidade
r.c-onômica, ou a afiliação política, a ciência torna-se aceitável sàmente na
1
l!I
vidade humana são investidos de limitados centros de poder, para uma medida em que &atisfaz a êsses critérios. Em outras palavras, ao ser ~
estrutura ern que não há mais que um foco centralizado de autoridade eliminado o sentimento da ciência pura, a ciência fica submetida ao con-
~
~
sôbre todos os aspectos da conduta, os representantes de cada esfera trôle direto de outras organizações institucionais e o seu lugar na socie-
atuam para l·esistir às mudanças e para conservar a estrutura original de ~ade torna-se cada vez mais incerto. O repúdio persistente, por parte

~
autoridade pluntlística . Embora seja costume considerar o cientista como \ dos cienti.stas, à aplicação de normas utilitárias ao seu trabalho tem por
indivíduo de~apaixonado e impessoal - e istp pode ser exato no que con- \ função principal evitar êsse perigo que é particularmente marcante nos
cerne a sua atividade técnica - é necessário lembrar que o cientista, na · tempos presentes . O reconhecimento tácito dessa função talvez possa
companhia de todos os outros trabalhadores profissionais liberais, fêz um explicar o brinde posslvelmente apócrifo, levantado durante um banquete tíl
grande investimento emocional em seu modo de vida, definido pelas nor- de cienti&tas e::m Cambridge: "Levanto minha taça para as matemáticas 1
mas institucionais que governam sua atividade. A estabilidade social da puras, e para que nunca sejam úteis a ninguén1!" 11
ciência somente pode ser conseguida se se levantam barreiras adequadas Assim se vê que a exaltação da ciência pura constitui uma defesa ri'J
~

~
contra as mudanças impostas de fora, por elementos estranhos à própria contra a invasão de normas que limitam as direções do progresso potencial
irmandade científica. e ameaçam a estabilidade e continuidade da pesquisa científica corno ati·
:ll:ste processo de conservar a integridade institucional e de opor re-
sistência a novas definições da estrutura social que podem impedir a au-
vidade social digna de estima. Naturalmente, o critério tecnológico das li
tonomia da ciência, encontra expressão em mais outra direção. Pressu-
rnalizações científicas também tem uma função social positiva para a
ciencia. As crescente3 comodidades e satisfações derivadas da tecnologia
'I'Ili
posto b ásico da ciência moderna é que as proposições científicas "são e, em definttivo, da ci.ência, incitam o apoio social à pesquisa científica.
~
invariáveis em relação ao indivíduo" e ao grupo.19 Mas numa sociedade
completamente politizada - na qual, como diz um teórico nazista, "se
Também atestam a integridade do cientista, já que teorias abstratas e difí-
ceis, que os leigos não podem compreender e avaliar, são demonstradas
ti
H
reconhece o significado universal da política"20 - êsse pressuposto é Ili
21. i;: de considerável interêsse o fato de que os teóricos totalitá rios tenham adotado as
doutrinas r el ativistas radicais da Wisscnssoziologic como recurso polltico para despres- .
I[
18. Assim, diz Ernst Krieck: "No futuro n ão se adotará a ficção de uma neutralidade enfrtir tigiar a ciência "liberal", ou "burguesa", ou "não ariana". Uma. sa.l dn. para êste beco sem
=!,
1 .

quecida na ciência. pois não é mais que um r e flexo do método de govêrno". Nationalpoli- salda é proporcionada por uma "alava.nca de Arquimedes": a i!lfa libilidade do Fiihrcr
;lj:
tische Er-Lichung, 6. Cf. Baeumler, op. c.it., 152; Frank, Zukunft und Nation, 10 ; c0n-
1i:
e do seu Volk. Cf. General Hermann Goering. Gcrmany Rcborn, (Londres: Mathews & iL
!''
frontar com o "preconceito" de Max Weber de que "Politik gehõrt nicht in den Hõrs:,,nl". Marrot, 1934, 79). Vari ações "politicamente eficazes" do "relacionismo" de Ka,rl M~n- !I
19. H. Levy, Tbc Univcrsc or Sciencc, (Nova Iorque: Century Co., 1933), 189. nheim (por exemplo, lc1eology aml Utopia), têm s ido usadas, para fins propagancl!sticos, l!i
ll

20. Bacumler, Mãnncrbund und Wissenschaft, 152. por teóricos nazistas tais como Walter Frank, Krieck, Rust e Rosenberg. !li
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644 Robert K. M erton
"'
Sociologia - Teoria e Estru'tura 645

i de uma manei.ra que, presumivelmente, pode ser entendida por todos, isto rápido desenvolvimento da ciencia e da tecnologia relacionada com ela
~ é, mediante suas aplicações tecnológicas. A disposição em aceitar a auto- deu origem a um movimento implicitamente anticientífico por parte de
1• ridade da ciência repousa, em medida considerável, na sua demonstração certos interêsses criados que se sentem ameaçados em seu sentido de
diária de poder. Se não fôssem essas demonstrações indiretas, o com,tan- justiça econômica. O eminente "Sir' Josiah Stamp e muitas outras pes-
i;I, te apoio social a essa ciência, que é incompreensível do ponto de vista soas m enos ilustres propuseram uma moratória nos inventos e nas des-
1
• intelectual para . o público, dificilmente poderia ser alimentado apenas cobertas,24 a fim de que os homens tenham tempo de respirar para adap-
~ pela fé. tar sua estr:.itura social e econômica ao ambiente em perpétua mudança
'1 Ao mesmo tempo, esta insistência sôbre a pureza da ciência, teve
outras conseqüências, que mais ameaçam que protegem a origem social
que lhe é imposto pela "embaraçosa fecundidade da tecnologia". Estas
propostas Live1am grande divulgação pela imprensa e foram expostas com
da ciência. Dizem muitas vêzes que os cientistas deveriam ignorar, em infatigável insistência ante corporações científicas e organizações esta-
suas pesqui::,as, tôdas as considerações que não fõssem o progresso dos ti:i,is.25 A oposição procede tanto dos representar1tes das classes operárias,
!,I conhecimentos.22 A sua atenção deve ser focalizada exclusivamente sôbre \ que receiam a perda das habilidades adquiridas: e que se tornam antiqua-
'1
'1 a importância científica do seu trabalho, sem se preocupar com os usos das ante a ccrrente de novas técnicas, como dos capitalistas que se opõem
'J
ti! práticos a que se possa aplicar, nem às suas repercussões sociais em geral. \ a.o envelhecimento prematuro das suas máquin::;,s industriais. Ainda que

H
~I
Il';v
A costumeira justificação dêste lema - que, em parte, tem suas raízes na
realidade23 e que, em qualquer caso, tem funçõ-es sociais definidas, como
acaba:mos de ver - pretende que a não adesão a êste requisito estorvará 1
l estas propostas não se transformem em aç~io num futuro imediato, cons-
tituem um possível núcleo ao redor do qual pode tomar corpo uma re-
belião contra a · ciência. Não importa muito que as opiniões que res-
li! a investigação, aumentando a possibilidade de preconceitos e de erros.
1
pontil'!.brllzam cte111,itivamerte a ciência por situ:i,ções indesejáveis sejam
1.1
~ Mas êste ponto de vista metodológico esquece os resultados sociais de tal válillas ou não. O teorema :,óc.i::-,lógico de W. L Thomas foi repetida-
1li
ij atitude. As conseqüências objetivas desta atitude proporcionaram mais / men·,e comprovado: "Se os homens dr.;finem as situações como reais,
)
~' uma base de rebelião contra a ciência, rebelião- incipiente que se dá vir- 1 elat, têm co11::eqüências reais".
tualmente em tõda sociedade em que a ciência chegou a alto grau de de-
senvolvimento. Como o cientista não controla, ou não pode controlar, a 24. Não é êst~, n a turalment e, um movimento oposto à cit ncia como tal. Aliás, a d estrui,
cüreção em que aplicam suas descobertas, transforma-se em objeto da ção d as máquinas peleis operários e a supressão dos inventos pelo capital já ocorreram
no passado, Cf. R . K. Merton, "Fluctation s in t h e rate of i ndustrial invention", Quar-
censuras e reações mais violentas na medida em que ditas aplicações são tcr!y Journal of Economics, 1935, 49, 464 e segs. Mas êsse movim ento sensibiliza a opinião
á.esaprovada.s pelos agentes ·da autoridade ou por grupos de pressão . A no sentidn d e que a ciência deve ser consiclerada e~tritamente r esponsável pelas suas
antipatia para com os resultados da tecnologia projetam-se sôbre a pró- conseqüências soci2J s. A sugestão de "Sir" Josi ah Stan1p pode ser encontra.da en1 seu
pria ciência . Assim, quando gases ou explosivos recém-inventados se discu rso :.1.a Associação Británica para o Progresso ela. Ciência, Ab erdeen, 6 de setembro
de 1934. Mora tóri as dês te tipo ta mbém foram propostas por M. Caillaux ( Cf. John Stra,.
aplicam como instrumentos militares, os indivíduos cujos sentimentos chey, Thc Coming Strugglo for Powcr, Nova Iorque : 1935, 183); por H . W. Sumners n,,
humanitários são atingidos censuram a química em geral. Considera-se Câ mara de Representantes dos Estados Unidos e por muitos outros. Em t ê nnos dos cri-
que a. ciência. é culpada, em grande parte, por produzir essas máquinas térios coxrentes, humanitários, socinis e econõrnicos , alguns el os produtos cl.1. c iência são
mais perniciosos que benéficos. Esta avaliação pode tlestruir a base r2,c ional do trabalho
ele destruição humana que, segundo se diz, podem submergir a civilização cientifico. Como clizia p a té ticamente um cientista: "se o homem de ci{·nciel eleve p edir
na noite e na confusão eternas. Ou, para citar outro exemplo notável, o desculpa pelo seu trabalho, entã o desperdicei a minha vide.". Cf, Thc Frustration of
Scicnco (redação de F . Soddy), (Novu Iorque: Norton , 1935), 42 ct passim.
22. Por exemplo Pareto escreve: "A busca. de uniformidades experimentais é um fim ~m 25 . Os c ientistas inglêses tê m-se destacado na reação contra a "pros tituição do esfôrço cien-
si mesmo". Veja-se também uma declaração tlpica de George A. Lundberg: "Não cabe tifico pani fins bélicos". Discursos presid enciai s n a Associação Britânica p a ra o Pro-
a o qulmico que inven ta um poderoso explosivo, deixar-se influir na sua tarefa por con- gresso da Ciênci 2,, fre qüentes editoriais e cartas publicadas en1 Na.turc, co1nprovam êste
si derações r el2,tlvas à utilização que será dada a seu produto, seja d estruir catedrais ou movim entn, destinado a provocar "nova consciência d e responsabilidade social entre a
cava r túneis nas montanhas. T a mbém não cabe a o cientista sociál, que chega às leis dn geração :.:i.scenclente de trabalhadores científicos". S ir" Frederick Gowland I·Iopkins, ºSir·•
11

conduta relativa a um gmpo, preocupa r-se em saber se as suas conclusões coincidirão John Orr, o professo r Soddy, "Sir" Da niel Ha.ll, o Dr. Julian Huxlcy, J. B . S. Hald ane e
com as idéias vigentes, ou qual será o efeito das suas descobertas sôb re a .ordem social". o professor L . H ogben fi gura m entre os chefes do movimento. Veja-se , por exemplo, u
Trends in American Sociology (red ação de G. A. Lundberg , R . Bain e N. Anderson), carta assir.ada por vinte e dois cientistas d a Universidatle de Cambridge, preconizando,
(Nova, Iorque : H arper, 1929), 404-5. Comp arar com as observações de Rea d B a in sôbrc com urgi,n cia, um movimento para dissociar a ciência da, guerra (Naiurc, 1936, 137, 8291.
"Scientist as Citizen", Soda! Forces, 1933, 11, 412-415. E ssas t entativ as de ação organizada por parte d os cientistas in glêses contra.stam aguda-
23. Uma justificação neurológica desta opinião encontra-se num ensaio de E. D. Adrian, em m ente com a a p a tia elos cientistas norte-americanos em relação a êsse ·probl ema. (Es·;a
Factors Determining Human Ilchavior, (Harva rd T ercentenary Publications, Cambrid ge, observação é vá lida ·para o perlodo anterior à bomba atômica). Os motivos dessa dife-
1937), 9. "Para a condu ta, discriminadora . . . d eve haver algum interêsse, m as se ·êst~ for r en ça d e atitud es pocleriam ser pesquisados com proveito. De qualquer man eira,, ainda
demasiado, a conduta deixará de ser discriminadora . Sob o e feito d e uma tensão emo- que êste movim enlo talvez provenha de fontes sentim enta is, pode d esemp enh ar a fun-
cional inten sa a conduta tende a ajustar-se n, um dos diferentes tipos e s tereotipados··. ção de elimin a r uma causa de hostilidad e contra "' ciência em regimes d emocrático,; .
r. .
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'-, 646 Robert K. Merton· Sociologia - Teoria e Estru'tura 647
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1

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1

Em suma, esta base para a reavaliação da ciência, provém do que cha- investigação científica, necessita-se de um longo programa de rigorosa
mei em outras passagens o "imperioso imediatismo do interêsse".26 O preparação para testar ou mesmo para compreender os novos achados da
interesse pela meta primordial, que é a promoção dos conhecimentos, ciéncia. O culto da ininteligibilidade tem sido inevitàvelmente endossado
une-se à indiferença pelas conseqüências que caem fora da zona do interêsse pelo cientisi;a moderno . Dai resulta um abismo cada vez maior entre o
imediato, !nas os resultados sociais perturbam os objetivos originais. cientista e o leigo. O leigo tem de aceitar, como artigos de fé, as decla-
Esta conduta pode ser racional no ~entido de que se pode esperar que rações pubfü;adas acêrca da relatividade ou dos quanta, ou outras maté-
conduza à satisfação do interêsse imediato, mas é irracional no sentido rias igualmente esotéricas. Fê-lo de boa vontade, pois se lhe afirmou
em que anula outros valôres que não são, no momento, supremos, mas repetidamente que os progressos tecnológicos dos quais provàvelmente
que, nem poz isso, deixam de formar parte integrante da escala social de se beneficiou, procediam, em definitivo, daquelas investigações. Não
valôres. Precisamente porque a pesquisa científica não se faz num vácuo obstante, essas estranhas teorias ainda lhe causam certo receio . Versões
social seus efeitos se ramificam em outras esferas de valôres e interêsses . popularizadas e amiúde desvirtuadas da nova ciência põem em destaque
Na medida em que êsses efeitos sejam considerados socialmente indesejá- certas teorias que parecem chocar-se com o bom; senso. Para a mentali-
veis, atribuiu-se a responsabilidade à ciência. Já não s.e consideram os dade pública, a ciência e a terminologia esotérica estão entrelaçadas de
benefícios da ciência como uma bênção sem limites. Visto desta perspec- modo indissclúvel. As declarações presumidamente científicas dos por-
tiva, o lema da ciência pura e do desinterêsse contribuíram para preparar t'
ta-vozes totalitários sôbre as raças, a economia ou a história, são, para os
seu epitáfio. leigos ignora.ntes, da mesma ordem que as declarações concernentes a
As linhas de batalha estão traçadas de acôrdo com esta pergunta: um universo em expansão ou à mecânica ondular. Num e noutro caso,
Pode uma árvore boa dar um fruto mau? Os que gostariam de derrubar o profano não está em situação de compreender essas concepções, nem
a árvore da ciência ou impedir o seu crescimento devido aos seus frutos de testar sua validez científica e, em ambos os casos, elas podem não ser
malditos, são obstados pela alegação de que o fruto mau foi enxertado na compatíveis com o senso comum . O mais provável é que os mitos dos
árvore boa pelos representantes do Estado e das fôrças econômicas. Pode teóricos totalitários pareçam mais admissíveis e, sem dúvida, são mais
salvar a consciência do homem de ciência individual a afirmação de que compreensíveis para o grande público, do que teorias científicas funda-
uma estruturn social inadequada perverteu as suas descobertas. Mas isto mentadas, uma yez que aquêles mitos se ajustam mais ao sentido comum
dificilmente será suficiente para satisfazer uma oposição rancorosa . As- 'e ao preconceito cultural. Portanto, em parte como conseqüência do
sim como os motivos dos cientistas podem ir desde o apaixonado ,desejo de progresso científico, o povo em geral tornou-se maduro para novos mis-
promover os conhecimentos até um interêsse profundo em adquirir fa. ticismos revestidos de um jargão aparentemente científico. É ·isto que
ma pessoal, e assim como as funções da investigação científica podem va- facilita o êxito da propaganda em geral. A autoridade da ciência, to-
riar desde proporcionar racionalizações prenhes de prestígio da ordem mada de empréstimo, transforma-se em símbolo poderoso de prestígio pa-
vigente até reforçar nosso domínio da natureza, assim também outras ra as teorias anticientíficas. \
conseqüências sociais da ciência podem ser consideradas perniciosas à
(:
sociedade ou r edundar na modificação do "ethos" científico. Há entre HOSTILIDADE PÚBLICA CONTRA O
os cientistas uma tendência a supor que os efeitos sociais da ciência têm CETICISMO ORGANIZADO
que ser benéficos a curto ou a longo prazo. Êste artigo de fé desempe-
r:ha a funçfic de proporciona~ uma justificação racional da pesquisa Outra característica da atitude científica é O· ceticismo organizado
científica mas não é, evidentemente, a expressão de um fato inconteste; que, freqüentemente, se converte em iconoclastia.27 A ciência pode pa-
implica na confusão da verdade com a utilidade social, que se encontra recer que está desafiando os "confortáveis pressupostos de poder" de
de maneira característica na penumbra não lógica cra ciência. outras instituições,28 pelo simples fato de submetê-los a um exame im-
parcial. O ceticismo organizado implica a discussão latente de certas
bases da rotina consagrada, da autoridade, dos procedimentos estabeleci-
CIÊNCIA ESOTÉRICA CONSIDERADA dos e da esfera do sagrado em geral. É certo que, làgicamente, demons-
COMO MISTICISMO POPULAR
27. Frank H. Knight, "Economic psychology and the value problem", Quartcrly Jouroal \lf
Outro aspecto relevante das conexões entre a ciência e a ordem social, Econo mics, 1925, 39, 372-409. O cientista não experimentado , esquecendo que o ceticis-
poucas vêze::; tem sido reconhecido. Com a crescente complexidade da mo é principalmente um cânon m etodológico, deixa, que o seu ceticismo invada a área
do valor em geral. Ignora a função social dos símbolos e os itnpugna. por "falsos". Con. 1
fund e-se mais um a vez a utilidade social e a verdade . 1

26. Merton, "The unanticipated consequences ot purposive social action", op. cit.
r,.
28. Charles E. Merriam, Political Power, (Nova Iorque: Whittlesey House, 1934), 82-3.
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t.rar a gêneae empírica das crenças e dos valôres não é negar sua validade, na. Numa estrutura ditatorial, a unificação efetua- se primordialmente
mas é êste muitas vêzes o efeito psicológico sôbre as mentes ingênuas. pela organização formal e a centralização do contrôle social. A disposi- [.,
Os símbolos e os valôres institucionalizados exigem atitudes de lealdade, ção à aceitação óêsse contrôle é instilada pela aceleração do processo de \
solidariedade e respeito . A ciência, que coloca problemas de fato, rela- impregnar o corpo político com novos valôres culturais, substituindo pela
tivos a todos os aspectos da natureza e da sociedade, entra em conflito propaganda à alta pressão o processo mais lento da inculcação difusa
psicológico, nfio lógico, com outras atitudes para com os mesmos dados c~as normas rnciais. Estas diferenças nos mecanismos mediante os quais
que foram cristalizados e amiúde ritualizados por outras instituições . A se efetua ti]Jicamente a integração, permite uma latitude para a autode-
maior parte das instituições exige uma fé ilimitada, mas a instituição da terminação e a autonomia de diversas instituições, entre as qi.ais a ciên-
ciência faz do ceticismo uma virtude. Tôda instituição abrange, neste cia, maior numa estrutura livre do que numa totalitária. Mediante uma
',,I·
sentido, uma área sagrada, que resiste ao exame profano em têrmos de organização rigorosa, o Estado ditatorial intensifica seu domínio sôbre as 1
1
observação lógica e científica. A própria ciência, como instituição, im- instituições 11:10 políticas, até produzir uma situação diferente em tipo e t
plica a solid::iriedade emocional a certos valôres; mas, quer se trate da em grau. For exemplo, as represálias contra a ciência podem encontrar 1! 1
sagrada esfera das convicções políticas, ou da fé religiosa, ou dos direitos mais fácil expressão no Estado nazista do que nos EsLados Unidos, ond,~ !
econômicos, o pesquisador científico não se conduz na forma acrítica e os interêsses não estão organizados de modo a impor limitações à ciência,
l'itualista prescrita; não mantém a distância entre o sagrado e o profano, quando essas são julgadas necessárias. Sentimentos incompatíveis devem
f;ntre o qua exige um respeito acrítico e o que pode ser objetivamente ser isolados um. do outro ou integrados entre si, para que haja estabilida-
analisado.29 de social; mas êste isolamento torna-se virtualmente impossível quando
É isto que, em parte, está na raiz dos repúdios à chamada intromis- há um contrôle· centralizado, sob a égide de um setor da vida social, que
&ão da ciência em outras esferas. No passado, essa resistência procedia impõe e procura fazer respeitar a obrigação de solidariedade aos seus va-
em sua maio1· parte da Igreja, que restringia o exame cientifico das dou- lôres e sen~imentos como condição de continuidade da existência. Nas
trinas santHicadas. A crítica textual da Bíblia ainda é suspeita... Esta estruturas liberais a ausência de tal centralização permite o grau necessá-
resistência por parte da religião organizada perdeu a importância quando rio de isolarner..to, garantindo a cada esfera direitos restritos de autono-
o foco do poctH social -p assou pa..ra as instituições econômicas e políticas, mia e permitindo assim a integração gradual de elemento5 temporària-
as quais, por sua vez, mostram um franco antagonismo a êsse ceticismo mente inconr;ruentes .
generalizado que, ao que se diz, ameaça as bases da estabilidade institu-
cional . Esta •Jposição pode existir completamente à parte da introdução
·de certas descobertas científicas que parecem invalidar dogmas especiais CONCLUSÕES
: da Igreja, d8. E'c onomia ou do Estado. É, antes, um reconhecimento di- As príndpaís conclusões dêste trabalho podem ser ràpidamente resu-
fuso, muitas vêzes vago, de que o ceticismo ameaça o status quo. É
midas. Exisie uma hostilidade latente e ativa contra a ciência em mili-
conveniente sublinhar, mais uma vez, que não há necessidade lógica para (;. tas sociedades, embora o grau dêsse antagonismo ainda não possa ser
o conflito entre o ceticismo, dentro e.a esfera da ciência e as solida.ri:
bem precisallo . O prestígio que a ciência adquiriu nos três últimos séculos
dades emocicr.ais exigidas por outras instituições; mas, como derivado
é tão grande, que as tentativas para reduzir seu campo de ação ou para
psicológico, êste conflito aparece inevitàvelmente sempre que a ciência
rechaçá-la em parte, costu mam estar unidas à afirmação da integridade
leva suas investigações a novos terrenos para os quais existem atitudes
imperturbada da ciência ou ao "renascimento da verdadeira ciência" .
institucionaürndas, ou quando outras instituições ampliam sua zona de
Estas formas de respeito verbal aos sentimentos pró-científicos, diferem
contrôle. Na sociedade totalitária, a centralização do contrôle institucio-
com freqüência da conduta dos que as manifestam. Em p.arte, o movi·
nal é a principal fonte de oposição à ciência; em outras estruturas, a ex-
mento anticientífico nasce do conflito entre o "ethos" da ciência e o de
tensão da pesquisa científica é de maior importância . A dita,dura orgar
outras instit1.1ições sociais. Um corolário desta proposição é que as re-
niza, centraliza e, em conseqüência, intensifica fontes de rebeldia contra .
voltas contemporâneas contra a ciência são formalmente análogas às
a ciência que, numa estrutura liberal, está desorganizada, difusa e
amiúde latente. anteriores, embora as fontes concretas sejam diferentes. O conflito
produz-se quando os efeitos sociais das aplicações dos conhecimentos cientí-
Numa sociedade liberal, a integração procede, antes de mais nada, do
conjunto de ri.o rmas culturais para as quais se orienta a atividade huma- fico,s se consideram indesejáveis, quando o ceticismo do homem de ciên-
cia se dirig0 para os valôres fundamentais de outras instituições, quando
29. P a ra um estudo g~rn.l do "sagrado" nestes térmos, ver Durkheim , The Elcmcn!ary Forms
a ampliação da autoridade política, religiosa ou econômica limita a auto-
o! thc Rcligious Lifc, 37 e segs., ct pa.ssim. nomia do cientista, quando o antiintelectualismo discute o valor e a inte-
C-
li ' 650
·.I

Robert K. Merton
.:)

Ili gridade da uencia, e quando se introduzem critérios não científicos para \


XVIII A CIÊNCIA
,. escolher o campo da pesquisa científica.
Êste trabalho não apresenta um programa para fazer frente às- amea-
}
E A ESTRUTURA SOCIAL DEMOCRATICA
ças contra o desenvolvimento e a autonomia da ciência; mas é possível ~
sugeri!' que, enquanto o foco do poder social residir numa instituição que ·\
não seja a ciência, e enquanto os próprios cientistas não estiverem segu- i
ros a respeito de qual seja a sua lealdade primordial, a posição dêles se
enfraquecerá e se tornará incerta.

11

A CI:ll:NCIA, COMO QUALQUER OUTRA ATIVIDADE que envolve cola-


boração social, está sujeita a mudanças de fortuna. Por difícil que esta sim-
ples idéia possa parecer às pessoas criadas numa cultura que dá à ciência
um lugar proeminente, senão de predomínio, na ordem das coisas, é evi-
dente que a ciência não é imune aos ataques, à restrição e à repressão.
Veblen, que descreveu já faz bastante tempo, pôde observar que a fé da
cultura ocidental na ciência era ilimitada, indiscutível e sem igual. A
rebelião contra a ciência, que então parecia tão improvável, que sõmente
interessava ao intelectual tímido acostumado a pesar tôdas as contingên-
cias, por remotas que fôssem, agora se impôs à atenção tanto do cientista
como do leigo . Os contágios locais de antiintelectualismo ameaçam tor-
nar-se epidêmicos.

(J
CIÊNCIA E SOCIEDADE
Os ataques incipientes e reais à integridade da c1encia têm levado
os cientistas a reconhecerem sua dependência d!e certos tipos de estru-
tura social. Manifestos e declarações de associações científicas são dedi-
) cados às relações entre a ciência e a sociedade. Uma instituição que so·
fre ataques tem que examinar de nôvo seus fundamentos, revisar seus

~
objetivos, buscar sua explicação racional. As crises convidam à autocrí-
tica. Agora que têm que enfrentar ameaças ao seu modo de vida, os inte-
lectuais foram lançados a um estado de aguda conscientização : consciên-
~ia da própria personalidade como 1::lemento integrante da sociedade, e
das obrigações e interêsses correspondentes.1 A tôrre de marfim é inde-

1. Como êssa trabalho foi escrito em 1942, é evidente que a explosão de Hiroshima contri-
buiu p a,ra que maior núm ero de cientistas percebesse as conseqüências sociais das suas
descobertas.
ç
·r
~

652 Robert K. M erDon i:Í ::íociologia - Teoria e Estrutura 653

r fensável quando suas muralhas s ã o assaltadas. Depois de prolongado


período de relativa segurança, durante o qual o culto à ciência e a difu-
proscrições, preferências e permissões, que se legitimam em relação eom
valôres instibcionais. Êsses imperativos, transmitidos pelo preceito e
são dos conhecimentos tinham chegado a uma posição de destaque, senão pelo exemplo e reforçados por sanções, são assimilados em graus vana-
de primeiro plano, na escala de valôres culturais, os cientistas se vêem veis pelo cientista, formando assim sua consciência científica ou, se pre-
obrigados a justificar os caminhos da ciência para os homens. Assim ferirmos usar a palavra moderna, seu superego. E1nbora o "ethos" da
êles fecharam o círculo, levando-o de volta ao ponto e momento em que a ciência não tenha sido codificado,2 pode ser inferido do consenso moral
i:.iência reapareceu no mundo moderno . Três séculos atrás, quando a dos cientistêls expresso nos usos e costumes, em numerosas obras sôbre o
instituição da ciência pouca justificação podia apresentar para conseguir espírito científico e na indignação moral que suscitam as contravenções do
o apoio da socieda,de, os filósofos naturais eram levados assim mesmo a "ethos" .
justificar a dência como um meio para fins culturalmente válidos de uti- O estudo do "ethos" ela ciência moderna nada mais é que uma intro·
lidade econômica ou de glorificação de Deus. O cultivo da ciência n ã o era
clução limitada a um problema maior: o estudo comparativo da estrutura
então um valor evidente por si mesmo. Mas, com a interminável corren-
te de êxitos obtidos pela ciência, o instrumental se transformou em final,
os meios se transformaram em fins. Assim fortalecido, o çientista che-
institucional d~ ciência. Ainda que as monografias detalhadas, reur-:indo
os materiai·1 comparativos necessários sejam poucas e espalhadas, propor- llii.
cionam alg,.11na base para o pressuposto provisório de que "a ciência tem !'
ti gou a considerar-se independente da sociedade e a encarar :1 ciência como eportunidade de desenvolvimento, numa ordem democrática, integrada
'1' emprêsa que se justifica por si mesma e que "está" na sociedade, mas n ã o
·~
.,.t
"faz parte" dela. Era necessário que se desse um ataque frontal contra
a autonomia da ciência, para transformar êsse isolacionismo otimista em
com o 'ethos'' da própria ciência". Isto não significa que o cultivo da
ciência esteja restrito às democracias.3 As estruturas sociais mais diver-
f as têm proporcionado certo apoio à ciência. Basta lembrarmos que a
participação realista do conflito revolucionário das culturas. A conse- "Accadernia del Cimento" foi patrocinada por dois Médicis ; que Carlos II
qüência dessa associação leva a clarificar e reafirmar o "ethos" da ciência tem direito ao reconhecimento da história por ter concedido carta de pri-
moderna.
lj vilégio à Real Sociedade de Londres e por ter patrocinado o Observatório
A pala;,·ra ciência é um vocábulo enganosamente amplo, que designa ri,, Greenwich; que a Academia de Ciências em Paris foi fundada sob os
grande diversidade de coisas diversas, embora relacionadas entre si. É auspícios de Luís XIV, mediante a recomendação de Colbert; que, pres-
usada geralmente para indicar: (1) um conjunto de métodos característi- sionado por Leibniz, Frederico I fundou a Academia de Berlim, ao passo
cos por meio dos quais os conhecimentos são comprovados; ( 2) um acervo q_ue a Acadernia de Ciências de São Petersburgo foi instituída por Pedro,
de conhecimento-; acumulados, provenientes da aplicação dêsses métodos; o Grande (para refutar a opinião de que os russos eram bá_rbaros). Mas
(3) um conjunto de valôres e costumes culturais que governam as atividades êstes fatos históricos não implicam uma ligação fortuita da ciência e da
chamadas científicas; ou, ( 4) qualquer combinação dos itens anteriores. estrutura so~ial. Resta ainda a questão da proporção entre o desenvolvi-
Aqui estamos tratando, preliminarmente, da estrutura cultural da ciência,
isto é, de um aspecto limitado. da ciência como instituição. Assim, pois, exa- .,
minaremos não os métodos da ciência, mas os costumes que os circundam.
·Sem dúvida, os cânones metodológicos são muitas vêzes expedientes téc-
nicos e, ao mesmo tempo, obrigações morais, mas são apenas estas últi-
mas que agora nos interessam. Êste é um ensaio sôbre a sociologia da
0 mento científlco e as potencialidades científicas . É certo que a ciência
se desenvolve em diversas estruturas sociais, mas quais fornecem melhor
contexto institucional para seu maior desenvolvimento?

O "ETHOS" DA CIÊNCIA
ciência, não uma incursão da metodologia. De modo análogo, tampouco / A meta institucional da ciência é a ampliação elos conhecimentos com-
trataremos d:::.s descobertas concretas da ciência (hipóteses, uniformidades, ( provados. Os métodos técnicos empregados para êste fim proporcionam
leis), salvo quando forem pertinentes aos sentimentos sociais padroniza-
dos em relaçfa, à ciência . Não se trata de uma aventura de polimatia .
O "ethos" da ciência é êsse complexo de valôres e normas afetivamen- ; logo abandona n descrição e a análise e se põe a moralizar; ver sua La moralc de la
scicncc, ( Paris, 1931).
te tonali~auo_, que se considera c~mo constituindo uma obrigação moral 2. Conforme ciiz Bayet: ''Cette morale [de la science] n'o. pas eu ses théoriciens, mais elli!
para o c1entM,ta.1• As normas sao expressas em forma de prescrições, n eu ses artisans. Elle n'a pas exprimé son idéa,J, mais elle l' a servi: il est imp!iqué da:is
l 'existen ce rnên1e ele ln science". Op. cit ., 43.
J. T ocquevi lle foi mab longe: "O futuro provará se essas paixões [pura a ciência] raras e
la. Sôbre o conceito do uethos", ver Sumner, Folkways, 36 e segs.; Hans Speier, "The social !ecundas ao mesmo tempo, nascem e se desenvolvem tão fàci!mente entre ns socledartes
determination of ideas", Social Rcscarcb, 1938, 5, 196 e segs.; Max Scheler, Schriftcu aus democráticas, como nas comun istas aristocrátic~. Quanto a mim, confesso que me custa
acreditar nisso". Dcmocrncy in Amcrica (Nova Iorque. 1898), II, 51. Veja-se outra ex-
<icm Nachlass (Berlim, 1933), 1, 225-62. Albert B aye t, em seu livro sôbre êste assunto,
pressão da mesma idéia: "É impos&lvel estabelece r uma relação causal entre a demo,ra-
r. ,·· .~
'1

654 Robert K. Merton s,ociologia - Teoria e Estru'tura 655

a definição relevante do conhecimento: predições empiricamente confir- Todavia, & instituição da crencia é apenas parte de uma estrutura so-
madas e lõgicamente congruentes. Os imperativos institucionais ("mo- cial maior, com a qual nem sempre está integrada. Quando a cultura
res") derivam do alvo e dos métodos . Tôda a estrutura de normas técni- maior se opõe ao universalismo, o "ethos" da ciência é submetido a fortes
cas e morais leva à consecução do objetivo final. A norma técnica da tensões. O etnocentrismo não é compatível com o universalismo . Par-
prova empírica, su:ficiente, válida, e digna de fé, é um requisito prévio para ticularmente, em épocas de conflitos internacionais, em que a situação su-
a comprovaçüo das pn'visões exatas ; a norma técnica da congruência ló- blinha fortemente as lealdades nacionais, o cientista está sujeito aos im-
gica, uin requisito právio para a predição sistemática e válida. Os "mo- perativos antagônicos do universalismo científico e do particularismo
res" da ciênf'ia . têm uma explicação racional metodológica mas são moral- etnocêntrico.4• A estrutura da situação em que se encontra determina o
mente obrigatórios, não sõmente porque são eficazes do ponto de vista do ~apel social que está chamado a desempenhar. O homem de ciência pode
procedimento, mas também porque são considerados justos e bons. É um ser transforwndo em homem de guerra e atuar em conseqüência. Assim,
conjunto ~e prescrições tanto morais como técnicas. em 1914, o manifesto de 93 cientistas e professôres alemães - entre os
Quatro passos de imperativos institucionais - universalismo, comu-
nismo, desinterêsse e ceticismo organizado - compreendem o "ethos" da
ciência moderna. 1 f,
quais Baeyef, Brentano, Ehrlich, Haber, Eduard Meyer, Ostwald, Planck,
Schmoller e Wassermann - desencadeou uma polêmica em c;ue individua-
lidades alemãs, francesas e inglêsas recobriram seus sentimentos políticos
com o manto da ciência. Cientistas desapaixonados impugnaram às con-
Universalismo tribuições do "inimigo'·, acusando-o de tendências nacionalistas, contubér-
nios, desonestidade intelectual, incompetência e falta de talento criador.5
O univnrsalismo4 encontra expressão imediata no cânon de que as Mas êste mesmo desvio dessa norma do universalismo pressupunha real-
pretensões à verdade, quaisquer que sejam suas origens, têm que ser sub- ( mente, sua legitimidade. Porque o preconceito nacionalista só é vergonhoso
metidas a critérios impessoais preestabelecidos: devem estar em consonân-
cia com a observação e com o conhecimento já previamente confirmado. 4a. Isto foi escrito em 1942. Em 1948, os lideres politicos da Rússia soviética acentuaram a
importância que concedem ao nacionalismo russo e começaram n. insistir no caráter u;ia-
A aceitação cu a rejeição dos pedidos de ingresso nos registros da ciência
cionaJ" da ciência. Num editorial int.itulado "Contra a ideologia burguesa no cosm opo-
não devem éiepender dos atributos pessoais ou sociais do requerente; não litismo", Voprosy filosofii 1948, N.o 2, traduzido no Currcnt Digcst of thc Sovict 1'rcss de
têm importância em si mesmas a raça, a nacionalidade, a religião e as 1.0 de fev..,reiro ele 1949, vol. 1, N.o 1, p. 9, lia-se o seguinte: '"Só um cosmopolita sen,

qualidades de classe ou pessoais. A objetividade exclui o particularismo. pátria , profundamente insenslvel a.os destinos reais da ciência, poderia negar, com de!l-
prezível indiferença, a existência das m,itizadas formas nacionais em que a ciência vive
A circuns tância de que as formulações cientificamente verificadas se re- e se d ese nvolve. Em vez da verdadeira his tória da ci0ncla e cios caminhos concretos
ferem a seqüências e correlações objetivas, milita contra tôdas as tenta- do seu d esenvolvimento, o cosmopolita apresenta conceitos fabricados de um tipo de
tivas de impor critérios particulares de validez. Um decreto de Nurem- ciência supernacional e rem classe, despojada, por assim dizer, ele tôda a riqueza, de
coloração nacional, despojada do brilho vivo e do caráter especifico do trnb u,lho criador
berg não pode invalidar o processo Haber, nem a lei da gravitação pode
5er revogada por anglofobia. ~uvinista pode riscar o nome dos cien- )
ris tas estrançeiros nos manuais de história, mas as formulações dQ1,J refe- ~-~, de um povo e transformado numa espécie de esplrito desencan1aclo ... O marxismo-leni-
nismo despedaça as ficções cosmopolitas concernentes à ciência. supraclnssista, não na-
cional, 'universal'· e demonstra definitivan1ente que a ciência, co1no tôda a cultura _d a
FmQ§___crêl'rt:tsrãsContinuam sendo indisnensáveis para a ciência e a tecno-
.!Qgia. Seja, echt-deutsch ou cem por cento norte-americano o resultado
~~(l~t,r sociedade moderna, é nacior.a.J na forma e classe quanto ao conteúdo". Esta opinião
confunde duas questões d1stinlns: primeirn, o ambiente cultural num a sociedade ou
nação determinada pode predispor os cientistas a enfocar a a.tenção sôbre certos ·pro-
iinal de um E·xperimento, alguns estrangeiros sempre intervêm em qual- blemas , a se mostrarem sensíveis a uns problemas e não a outros, dentro elas fronteiros
quer nôvo pregresso t écnico. O imperativo de unive!"salismo tem raízes da ciênci2,. Isto tem sido observado há muito tempo, mas é fundamentalmente dife-
rente da segunda questão: ns critérios de validez dos tltulos para que um conhecimento
profundas 110 caráter impessoal da ciência . seja considerado cientifico, não são assuntos de gôsto ou de cultura nacionais. Cedo
ou tarde, os titulos em competição para a va,Jidez são fixados pelos fatos universalistas
ela natureza que estão em consonância com uma teoria e não com outra. O trecho
eia e a ciencia e afirmar que somente a sociedade democrática pode proporcionar o selo acima transcrito é de primordial interêss~ como exemplo ela t endência. do etnocentrismo
adequado para o "desenvolvimento da ciência. Todavi a, não pode ser mera coincidência e das lealdades nacionais ag ud as a penetrar os próprios critérios da validez cientifica,.
que a ciência, na realidade, tenha tlorescido em épocas democráticas". Henry E . Slgerlst, 5. P a,ra uma coleção instrutiva ele do cum entos dêsse genero, ver Gabriel Pettit e Maurice
"Science and democracy", Science and Society, 1938, 2, 291. Leudet, Lcs allcmands ct la scicncc, (Paris, 1916) . Félix Le Dantcc, por exemplo, desco-
4. Para um" análise básica do universalismo nas r elações sociais, ver Talcott Parsons, bre que tanto Ehrlich como Weismann perpetraram fraudes tipicamente germânicas
Tbe Social System. Para uma expressão da crença de que a "ciência é completamente no mundo da ciência ("Le bluff de la science allemande"). Pierre Duhem conclui q119
independente das fronteiras nacionais, das raças e dos credos", ver a resolução do Con- o "espírito geométrico" de. ciência alemã abafou o esprit de finesse": La scicnce allcmandc,
11

selho da Associação Americana para o Progresso da Ciência, Scicncc, 1938, 87, 10; tam- (Paris, 1915); Hermanri Kellermann. Der ICricg der Gcistcr, (Weimar, 1915), r eplica vig~-
bém "The advancement of science and society: proposed world 2.ssociation", Naturc, rosamente. O conflito estendeu-se ao perloclo de após-guerra; veja-se Karl Kherkno!,
1938, 141, 169. Der Kricg gcgen dic Dculscbo Wíssenschaft, (Ha.Jle, 1933) .

f'
1~. ô56 Robert K. Merton ~.,.,. ·d!.
~ociologia - Teoria e Estru·t ura 657
1I
J,; quando julgado de acôrdo com a norma do universalismo; dentro de outro/ científico d~ que os cientistas sejam inimigos do Estado ou da Igreja. 8 As-
contexto institucional é definido como virtude: é o patriotismo. Assim, sim. os expoentes de uma cultura que abjura os padrões universalistas se
pelo _próprio fato de condenar sua violação, são reafirmadas as normas sentem obrig&dos a prestar homenagem, de bôca para fora, a êste valor
morais. no campo da ciência. O universalismo é tortuosamente louvado em teo-
'! Mesmo sob as pressões em contrário, cientistas de tôdas as nacionali- ria mas supr;mido na prática.
e1"1. ·
dades solidarizaram-se com o padrão universalista usando as palavras Por inadequadamente que seja pôsto em prática, o "ethos" da demo-
,1
,, mais, francas. Foi reafirmado o caráter internacional, impessoal, virtual-
,;·_: cracia compreende o universalismo como princípio-guia predominante. A
.
i' u1ente anônimo, da ciência.6 (Pasteur disse: "Le savant a une ;;atrie, la democratização equivale à eliminação progressiva de restrições ao exercício
1Íi science n' en a pas"). A negação da norma se considerava uma quebra e desenvolvimento de talentos socialmente valorados. Os critérios impes-
iij ãa fé.
soais de realização e a não estabilidade de status caracterizam a socieda-
i 1
O unive;:-:::alismo encontrou nova expressão, ao exigir que tôdas as dade democrática. Na medida em que persistem restrições, são considera-
1,::1 carreiras .fôssem abertas ao talento. A base racional é fornecida pela das como obstáculos no caminho da democratização total. Assim, na
r.lj
meta institucional. Restringir as carreiras científicas por outros motivos medida em que a democracia do "laissez-!aire" pernúte a acumulação de
que a falta de competência é prejudicar a promoção do saber. O livre vantagens áiferenciais para certos setores da população, diferenciais que
acesso às atividades científicas é um imperativo funcional . Coincidem a nfi.o estão vinculadas com diferenças demonstradas de capacidade, o pro-
e,onveniência e a moral. Daí a anmnalia de um Carlos II, a invocar a i,esso tlem0crático conduz à crescente regulagem pela autoridade política.
moral da ciência para censurar a Royal Society pela suposta exclusão de
John Graunt, o aritmético político e as suas instruções no sentido de que
-ag Em circunstâncias cambiantes, é necessário introduzir novas formas téc-
nicas de organização para conservar e ampliar a igualdade de oportuni-
"se encontr::i,ssem mais comerciantes assim, os admitissem in1ediatamente E-<
dades. O aparelho político destinado a pôr em prática os valôres demo-
e sem disc:lssão" . cráticos p0d'?, em conseqüência, variar, mas as normas universalistas são
Por aí ;;e vê também que o "ethos" da ciência pode não concordat
com o da socledade em geral. Os cientistas podem assimilar normas 3" mantidas. Na medida em que uma sociedade é democrática, oferece opor-
tunidade para o exercício de critérios universalistas na ciência .
~
de casta e c~:-:-rar suas fileiras a indivíduos de classe julgada inferior ( co- ....,d
cr.,
mo, mi, época, o comerciante acima citado), independentemente do seu ~ "COMUNISMO"
t alento e re~lizações. Mas isto provoca uma situação instável. Recorre-se 11
a i deologias complicadas para esconder a incompatibilidade entre a moral O "comunismo", no sentido não técnico e amplo de propriedade comum
Cll
de casta e a meta institucional da ciência. É necessário demonstrar que· "bi dos bens, é um segundo elemento integral do "ethos" científico . As des-
a
c;s indivíduos de casta inferior são intrinsecamente incapazes de trabalho õ cobertas substantivas da ciência são produto da colaboração social e estão
científico ou, pelo menos, que suas contribuições devem ser depreciadas de '8 destinados à comunidade. Constituem herança comum em que 0-5 lucros
e
l,1 maneira sistemática . "Pode-se aduzir, pela história da ciência, que os u:. do produtor individual estão severamente limitados . Uma lei ou teoria
fundadores cl& pesquisa em física e os gran,les descobridores, desde Gali- :,-, !in é propriedade exclusiva do descobridor e dos seus herdeiros, nem os
.l
leu e Newton até os físicos inovadores de nossos dias, foram quase exclu- costumes lhes concedem direitos especiais de uso e disposição. Os direi-
H
sivamente arianos, sobretudo de raça nórdica". As palavras modificati- tos de propriedade na ciência são reduzidos ao mínimo pelas razões e
1)1
vas "quase exclusivamente" constituem base de todo insuficiente para princípios da ética científica. O direito do cientista à sua propriedade
negar aos "pária-5" todos os direitos ao êxito científico. Então a ideolo- intelectual limita-se à. gratidão e à estima que, se a instituição funciona
gia é "arredondada" pelo ~onceito de ciência boa ou má: a ciência realista com um mínimo de eficácia, são mais ou menos proporcionais aos aumen-
e pragmática aos arianos opõe-se à ciência dogmática e formal dos não tos trazidos ao fundo comum de conhecimentos. A eponimia - por exem-
arianos.7 Ou se procuram fundamentos para a exclusão, no fato extra- plo, o sistem::.i. de Copérnico, : .,, lei de Boyle, - é, portanto, ao. mesmo tem-
po, recurso mn emônico e comemorativo.
6. Ver n. profissão de fé do professor E. Gley (em Pettit e Leudet, op . cit., 181) : " ... il ne
peut y avoir une vérité allemande, angln.lse, it2,lienne ou japonaise pas plus qu'une fran-
çaise . Et parler de science allemande, anglaise ou française, c'est énoncer une proposi- a. uTernos afastado [os 'negadores m arxistas'] não como representantes da ciêncla, rrias
tion contradictoire à l'idée méme de la sclence". Ver também 2.s afirmações de Grnsset e como partidários d e uma doutrino. politica que inscreveu em sua bandeira a destruição
Rlchet, ibid .i ele tôdas as ordens. Com ta.nta maior decisão tivemos de agir, quando a ideologia domi-
nante de uina ciência livre de valôres e de condições, lhes servia de resguardo pare
7. John.nnes Stark, Natnre, 1938, 141, 772; "Philipp Lenard als deutscher Naturforscher",
prosseguirem em seus planos. Não fomos nós que violamos a dignidade da ciê!1cia
Nationalsozialistiscl1c Monatshcfte, 1936, 7, 106-112. Isto me lembra o contraste de Duhi,m
livre . .. " Bernl12,rd Rust, Das n ationalsozialistischc Dcutschland und <lic " 'isscnschafl
entre a ciência "alemã" e a cEncia "francesa".
~ (Hamburgo, 1936) , 13.
ç.
r
658 Robert K. Merton Sociologia - Teoria e Estru'tura 659

Dada a importância institucional de gratidão e da estima como o úni.r pressão para a difusão dos resultados é reforçada pela meta institucional
co direito de propriedade do cientista sõbre os seus descobrimentos, o in- de ampliar as fronteiras do saber e pelo incentivo da fama, a qual depende,
terêsse pela prioridade científica é uma reação "normal". As controvérsias aturalmente, da publicidade. Um cientista que não comunica suas impor-
sõpre prioridade que marcam a história da ciência moderna s ão produto tantes descobertas à irmandade cientifica - por exemplo, um Henry Ca-
da importância institucional concedida à originalidade.9 Surge uma vendish - converte-se em alvo de reações ambivalentes. É estimado
cooperação competitiva. Os resultados da competição são comunizados10 pelo seu talento e, talvez, pela sua modéstia; mas, do ponto de vista insti-
e a estima cresce para o produtor. As nações alegam direitos à priori- tucional, sua modéstia está gravemente deslocada tendo-se em conta a obri-
dadelCl" e ::i,s novas entradas na comunidade da ciência são rotuladas com ~ ação moral de compartilhar a riqueza da ciência. Embora partindo de
os nomes dus nacionais : serve de testemunho a controvérsia sõbre as · um leigo, o comentário de Aldous Huxley sôbre Cavendish é instrutivo a
pretensões rivais de Newton e de Leibniz acêrca do cálculo integral . Mas êste respeito: "Nossa admiração pelo seu gênio é mitigada por alguma de-
tudo isso não ameaça a situação do conhecimento científico como pro- saprovação; parece-nos que um homem assim é egoísta e anti-social". Os
priedade comum. építetos são particularmente instrutivos porque implicam a violação de
o conceito institucional da ciência como parte do domínio público está
ligado ao imperativo da comunicação dos resultados. O segrêdo é a antí-
1 f,
um imperativo institucional definido. Ainda quando não se liga a um
( motivo ulterior, a ocultação das descobertas científicas é condenada.
O caráter comunal da ciência reflete-se também no 1econhecimento

~
tese dessa norma; a plena e franca comunicação é o seu cumprimento.11 A
por parte dos cientistas de que dependem de uma herança cultural à qual
não têm direitos diferenciais. A observação de Newton - "se enxerguei
mais longe iüi porque estava sôbre os ombros de gigantes" - exprime ao
9. Newton fnlnva por dura expenencia quando observou que "a filosofia (natural] é uma mesmo tempc: o sentimento de estar em divida com a herança comum e
dama tão impertinentemente litigiosa, que um homem sofreria tanto, em se envolver num z. confissão do caráter essencialmente cooperativo e acumulativo das reali-
processo judicial, quanto ter que tratar com ela". Robert Hooke, individuo socialmente
móvel, que subiu de situação unicamente por suas realizações cientifica..-;, era notàvel- zações cientificas.1 2 A humanidade do gênio científico não é sàmente cul-
mente "litigioso". turalmente B.dequada, mas é também a conseqüência da compreensão de-
10. Embora possa estar marcada .pelo comercialismo dominante na sociedade em geral, que o progres:;:o científico implica a colaboração das gerações passadas e
uma profissão como a medicina admite que o saber é de propriedade comum. Ver R.
H. Shryock, "Freeclom and interference in medicin e" , The Annais, 1938, 200, 45. • ... a. pro-
presentes. Foi Carlyle, e não Maxwell, que se entregou a uma concepção
fissão m éd ica ... natura,l mente franzia o sobrolho ante as patentes tiradas por m édi- criadora de mitos da história.
cos ... A profissão r egula r tem ... mantido essa posição constantemente, contra os mo- O comunismv do "ethos" científico é incompatível com a definição da
nopólios privados, d esde o advento da lei de patentes do século XVII" . Agora està tecnologia como "propriedade privada" numa economia capitalista. Obras
surgindo uma situação amb!gua, em que a. socialização da prática médica é combatida
em c!rculos onde n ão se discute a socialização dos conhecimentos. recentes sôbre a "frustração da ciência" refletem êste conflito. As paten-
10". Agora que os russos adota.raro oficialmente tão profunda reverência pela p átria , chegam tes registram direitos exclusivos de uso e, muitas vêzes, d e não uso. A
·a insistir na in1portância de determinar as prioridades nos de~cobrimentos cientilica5. supressão da invenção nega a explicação racional da produção e da
Assim, dizem êles: "A ma,is ligeira desatenção a questões de prioridade na ciência, o
difusão cientificai::, como se deduz da sentença de um tribunal no caso
mais leve d escuido devem pois ser condenados, porque dêles se aproveitam nossos ini-
migos, que encobrem sua agressão ideológica com um a conversa cosmopolita sõbre a su- do Estados Unidos contra a American Bell Telephone Co. "O inventor é um
posta inexistência de questões de prioridade na ciência, isto é, a.s questões relativas a06 indivíduo que descobriu algo de valor. É sua propriedade absoluta. Pode
indiv.fduos que fazem contribuições ao acervo geral da cultura universal" . E prosse- subtrair do público seu conhecimento . . . "13 As reações a essa situação t
guem: "O povo russo tem a história. mais rica. No curso da sua história criou a cultu-
ra mais rica e todos os demais pa!ses do mundo se abebedaram nela e continuam a conflitante têm sido diversas. Como medida defensiva, alguns cientistas
f azê-lo ainda hoj e". Voprosy filosofü, op . cit ., pp. 10; 12. Isto lembra as r eivindica- chegaram a patentear sua obra para garantir que seria posta à disposição
ções nacionalistas que se fizeram na Europa ocidental no século XIX e as dos nazista~
no século XX. (Cf. nota 7 do mesmo trabalho). O nacionalismo pa.rticularista nã.o faz
apreciações imparciais sõbre o curso do desenvolvimento cientifico. ceux qui travaillent pour perfectiunner les Sciences et les Arts, doivent même se regarc!er 1
11. Cf. Berna!, que observa: "O desenvolvimento da ciência moderna coincidiu com a rejei - comme les citoyens du mond e entier". J. D. Bern a!, Thc Social l'unction of Scicncc,
ção definitiva do segrêclo". Berna! cita uma passagem notável de Réaumur (L'Art de
150-151.
convcrtir lc forgé en acicr) no qual a obrigação moral ele publicar as pesquisas e~t:\ 12. É interessante saber que o aforismo de Newton é uma frase estcreolipada, conhecid_a

explicita m·ente relacionada com outros elen1entos do uethos" da ciência. P. ex.: " .. E y pelo menos desde o século X II . Pareceria confirmar que a dependência das descober-
eüt gens cjui tro u vêrent étrnnge que j 'eusse publié des secrets , qui ne devoient pas être t as e das invenções sõbrc as bases culturrus existentes j á fôrn notada muito tempo antes
revelés ... est-il bien sur que nos découvertes soient si fort à nous que le F'ublic n'y dos enunciados dos rncciernos sociólogos. Ver Isis, 1935, 24, 107-9; 1938, 25, 451-~.
ait pas droit, qu'elleõ n e !ui appartiennent p as en quelque sorte? ... restera.it il bien deg 13. 167 U. S. 224 (1897), citado por B. J. Stern, "Restraints upon the utilization of inven-
tions", Thc Annals, 1933, 200, 21. Pa.rn estudo mais aprofundado, cf. outros trabalhos
circonstances, ou naus soions absolument Maitres des nos découvertes?... Nous naus
de Stern cito.dos na mesma revista.; ver também W alton Hamilton, Patcnts aml Frcc 1
devons prcmiérement à not re Patri e, mais naus devons aussi au reste du monde; ç: Entcrprisc (Temporary National Economic Committee Monograph N.0 31, 1941) .
.,
·· j Sociologia - Teoria e Estru·tura 661
660 Robert IC M erton "I -'""'

fica pela importância que se dá à prioridade como critério de realização e,


do uso público . Einstein, Millikan, Compton, Langmuir tiraram patentes.14 em condições competitivas, podem surgir incentivos para eclipsar os rivais
Fizeram-se pressões sôbre os cientistas para que se convertessem em pro- por meios ilícitos. Mas êsses impulsos encontram escassas oportunidades
motores de novas emprêsas econômicas.is Outros procuram resolver o con- para se manifestarem no campo da pesquisa científica. Cultismo, cama-
flito invocando o socialismo.16 Estas propostas - as que pedem remunr~- ·1 rilhas informais, publicações prolíficas m as banais - podem-se usar essas
ração econômica para os descobrimentos científicos e as que pedem uma e outras técnicas para a promoção pessoal.lB Mas, em geral, as pretensões
mudança do si.stema social para deixar que a ciência prossiga em sua ta- espúrias parer:em ser negligíveis e ineficazes. A transformação da norma de
refa - refletem as discrepâncias no conceito da propriedade intelectual. 1 desinterêsse P.m prática é firmemente apoiada pela necessidade que os
cientistas têm, mais cedo ou mais tarde, de prestar contas perante os seus
DESINTERÊSSE colegas. Coincidem em grande parte os ditames do sentimento socializado
f! da conveniência, situação esta que conduz à estabilidade institucional.
1
A ciência, como ocorre com as profissões liberais e científicas em geral, o campo da ciência difere bastante a êste respeito, daquele de outras l f l•
inclui o desi11.terêsse como elemento institucional básico. Não se deve con- nrofissões. O cientista não lida com uma clientela leiga, como o fazem o
siderar o desinterêsse igual ao altruí&mo, nem a ação interessada igual ao médico e o advogado. A possibilidade de explorar a credulidade, a jgno-
egoísmo. Essas equivalências confundem níveis institucionais e de mo- () [rância ou a necessidade do leigo está assim consideràvelmente r.e duzida. A
tivação na análise.17 Ao cientista tem sido atribuído a paixão de &aber, fraude, a chicana e as pretensões irresponsáveis (charlatanismo) são ainda
uma curiosidade ociosa, um interêsse altruísta pelo benefício da huma-- menos prováveis do que entre as profissões de 'serviço'. ~ medida em.Jllle
nidade e muitos outros motivos especiais. A procura das motivações dis- as relações entre os cien1J§l;_a s_e_os- leig0s--adqui-Fem- imi;i01~tâ-ncia-sup.e.tia.r,
tintivas' parece ter sido mal orientada. É antes um padrão típico de con- desenv0l-vem-se-incen_tiy_Qs_p_ar a__b1.u:Iar--a- rn0:ral-da- ciêBeia-:-e - a 0 u s ~
trôle institucional d)e uma, ampla margem de motivações o que caracteriza t.c..ridade-c:10&-p.e ritos -ª-ª'--cri~ç_~ p.J?mJilJJ..Ciências. enti.:am _eJIJ.~ n-
o comportamento dos cientistas. Pois uma vez que a instituição impõe uma d.Q....JL.esti:.utu,Fa- de~-contrôle_exer.c ida_.p.o r_ colegas- qualiJ-icado&-.se....tnr_n~-
atividade desinteressada, é do interêsse do cientista conformar-se, sob pena fi.cie.nte.,19
de sanções e, na medida em que a norma foi assimilada, sob pena de c-on- É provável que a reputação da ciência e sua elevada posição éti~a na
flito psicológico_ estima dos leigos sejam devidas, ern grande parte, às realizações tecno-
A ausência virtual de fraudes nos anais da ciência, que parece excep- lógicas. 19a Tôda nova tecnologia atesta a integridade do cientista. A
cional quando comparada com outras esferas de atividade,· foi atribuída ciência realiza suas pretensões. Mas sua autoridade pode ser e é aprovei-
às qualidades pessoais dos cientistas. Por implicação, os cientistas se re- tada para propó~itos interessados, precisamente porque os leigos não estão
crutam entre as fileiras dos que apresentam um grau pouco habitual de amiúde em sit1..ação de distinguir as pretensões espúrias dessa autoridade,
integridade moral. Não há, na realidade, provas satisfatórias de que isto Q_as l<.,gítimas. As declarações presumivelmente científicas dos porta-vozes
seja assim; r-ode-se encontrar uma explicação mais admissível em certas totalitários sôbre a raça, a economia ou a história são, para os leigos incul-
características distintivas da própria ciência. Ao implicar, ~omo implica, a tos, da mesma orr.em que as informações dos jornais sôbre um universo em
verificabilidade dos resultados, a pesquisa científica está debaixo do con- expansão ou a mecânica ele ondas. Em ambos os casos declarações e in-
t.rôle exigente dos colegas peritos. Em outras palavras - e a observação formações tais não podem ser testadas pelo homem da rua e, em ambos
poderá sem dúvida ser interpretada como lesa majestade - as atividades os casos, podem ser contrárias ao bom-senso. Talvez os mitos possam pa-
dos cientistas estão submetidas a um policiamento rigoroso, sem paralelo, recer mais admissíveis, e seguramente mais compreensíveis ao público em
talvez, em qualquer outro campo de atividade. A exigência de desinterêsse geral, que as teorias científicas acreditadas, já que estão m ais perto da ex-
tem firme al~cerce no caráter público e testável da ciência e podemos su- periência de sentido comum e da tendência cultural. Por isso, em parte
por que esta circunstância contribuiu para a integridade do homem de ci- Jevido às conseqüências dos triunfos científicos, a população em geral : 1
~ncia. Exi.ste competição no campo da ciência, competição que se intensi- torna-se mais suscetível a misticismos novos expressos em tênnos aparente-

14 . Hamilton, op cit., 154; J. Robin, L'ocuvre scientifiquc, sa protcction-juridiquc, P a ris, 18. Ver o re!atório de Logan Wilson, Thc Acadcmic M;,.n, 201 e segs .
1928. 13. Cf. R . A. Brady, Thc Spirit an d Structurc of Gcrm.an Fascism (Nova Iorque, 1937), Cap.
15. Vannevar Bush, "Trends in engineering research", Sigma XI Quartcrly, 1934 , 22, 49. II; Martin Gardner, ln thc Namc or Scicncc (Nova Iorque: Putnam's, 1953).
16. Bern a!, op. cit., 155 e segs. 19a. Francis }Jacon formulou um d os primeiros e m ais suscintos enunciados dêste pragrna-
17. T a lcott P orsons, "The professions and social structu re", Social F orces, 1939, 17, 458-9; tisn10 popular . "O que é m a is útil na prática é o mais correto na t eoria". Nornm
cf. George Sarton, Thc History of Scicncc and thc Ncw Huma nism (Nova Iorque, 1931), Organum, Livro II, 4.
130 e segs. A distinção entre obrigações e motivos institucion ais é, naturalmen te , o
conceito chave da sociologia marxista.
f, 662 Robert K. Merton .:, XIX A MAQUINA,
i mente científicos. A autoridade, tomada de empréstimo à ciência, dá pres~ O TRABALHADOR E O ENGENHEIRO
tígio à teoria anticientífica. /

"1 CETICISMO ORGANIZADO

m :1
Como temos visto no c>apítulo anterior, o ceticismo organizado se in-
ter-relaciona de diversas maneiras com os outros elementos do "ethos" cien-
tífico. É um mandato ao mesmo tempo metodológico e institucional. A
;! suspensão do julgam~nto até que "os fatos estejam à mão" e o exame im-
! parcial das crenças de acôrdo com critérios empíricos e lógicos, têm envol-
'jl vido periõdicamente a ciência em conflitos com outras instituições. A ciên-
it ccia, que coloca questões de fato, incluídas as potencialidades, concernentes
a todos os aspectos da natureza e da sociedade, pode entrar em conflito
com outras Hiiludes em relação a êsses mesmos dados que foram cristali-
zados e, ami.úde, ritualizados por outras instituições. O pesquisador cien- ·º
tífico não respeita a separação entre o sagrado e o profano, entre Oi que
SUSPEITAR TôDA A MAGNITUDE da nossa ignorância é o primeiro passo
exige respeito sem crítica e o que pode ser objetivamente analisado ("Ein
Professor ist ein Mensch der anderer Meinung ist"). para suplantar essa ignorância por conhecunentos. O que se conhece acêrca
Esta parece ser a fonte das rebeliões contra a chamada intromissão da \ d.os efeitos das mudanças nos métodos de produção sôbre os problemas, con-
ciência em outras esferas. A resistência por parte da religião organizada duta e perspectivas do trabalhador é verdadeiramente pouco; ainda há mui-
tem perdido importância em comparação com a dos grupos econômicos e po· to a conhecer. Um rápido ensaio dedicado a êste importante assunto não po-
de fazer mais, no melhor dos casos, que traçar um simples esbôço dos con-
líticos. A oposição pode também existir completamente à parte da introdu-1
c;ão de descobertas científicas específicas que parecem invalidar dogmas par- tornos da nossa ignorância. É apenas possível aludir à ordem dos resul-
tados das pesquisas de que agora se disp·õe, às circunstâncias necessárias
ticulares da Igreja, da economia ou do Estado. É antes uma apreensão di-
fusa, muitas vêzes· vaga, de que · o ceticismo ameaça a distribuição de para a adequada ampliação dêsses resultados e à organização social das
poder -;.'. 6ente. O conflito acentua-se sempre que a ciência leva sua pes- pesquisas ulteriores necessárias para alcançar novas conclusões.
il 1 Tão divulgada e tão profundamente arraigada é a crença de que o
quisa a zona:.; novas nas quais já existem atitudes institucionalizadas, ou
l,; ~emnre que outras instituições ampliam sua área de contrôle. Na socie- 1 progresso técnico é um bem evidente por si mesmo, que os homens prescin-
I\ dade totalitária moderna, o anti-racionalismo e a centralização do con- l diram, em grande parte, de investigar as condições <Ia sociedade em que êste
i:l é realmente o caso. Se a tecnologia é boa, assim o é pelas implicações hu-
trôle institucional servem ambos para limitar o campo deixado à atividade ~ \ .,J rnanas, porque grande número de homens situados em posições diferentes
científica. 1
Lêm ocasião de considerá-la como tal à luz da sua experiência. E o fato
de que isto ocorra, depende não tanto do caráter intrínseco de uma tecno-
logia progressiva, que aumenta a capacidade de produzir abundância de
.,i:: bens, como da estrutura da sociedade que determina quais grupos e quais
individuas ganham com o aumento e produção e quais os que sofrem as
deslocações e os custos humanos que a nova tecnologia traz consigo. Mui-
tos individuas, em nossa sociedade moderna, julgam que estão muito longe
de serem vantajosos os numerosos efeitos sociais da introdução progres-
siva de uma tecnologia que economiza a mão-de-obra. Embora sejam pou-
cas as estatísticas sôbre desemprêgo tecnológico, deslocamento de mão-de·
-obra, obsolescência de habilidades, descontinuidades no trabalho e dimi·
nuição das tarefas por unidade de produto, tudo indica que os operários su-
portam as conseqüências do não planejamento para a introdução ordena-da
das descobertas nos processos de produção.

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