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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

VINÍCIUS TELES CÓRDOVA

A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA NO CINEMA BRASILEIRO: O CENÁRIO DA


GUERRA

Dissertação apresentada para o Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Juliana Gonzaga Jayme

BELO HORIZONTE
2018
VINÍCIUS TELES CÓRDOVA

O CENÁRIO DA GUERRA: A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA NO CINEMA


BRASILEIRO

Dissertação apresentada para o Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Juliana Gonzaga Jayme

BELO HORIZONTE
2018
VINÍCIUS TELES CÓRDOVA

A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA: O CENÁRIO DA GUERRA

Dissertação apresentada ao programa de pós-


graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais.

Profª. Drª. Juliana Gonzaga Jayme – PUC Minas (Orientadora)

Profª. Drª. Luciana Teixeira de Andrade – PUC Minas (Banca Examinadora)

Profª. Dr.ª Aure Regina Guimarães Thomasi – UNA (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 23 de março de 2018


FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Córdova, Vinícius Teles


C796r A representação da favela no cinema brasileiro: o cenário da guerra /
Vinícius Teles Córdova. Belo Horizonte, 2018.
116 f. : il.

Orientadora: Juliana Gonzaga Jayme


Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

1. Cinema. 2. Favelas - Aspectos sociais. 3. Representações sociais. 4. Cinema


- Cenários. 5. Representação cinematográfica. I. Chacham, Alessandra Sampaio.
II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

CDU: 791.43-22
Ficha catalográfica elaborada por Rosane Alves Martins da Silva – CRB 6/2971
Aos meus pais, Artêmio e Mariângela, a eles todo créditos e amor que posso
imaginar.
À Joice e meus amigos, pelo vasto tempo que deixai de estar junto a eles, mesmo
eles ficando juntos de mim de diversas formas.
AGRADECIMENTOS

À CAPES, pois sem o o auxílo não teria conseguido arcar com os custos de
um mestrado.
À Prof.ª Juliana Gonzaga Jayme pela leitura atenciosa e crítica que criou em
mim a atenção com o texto e atenção com o leitor, assim como a paciência com um
orientado ocupado demais em diversas outras atividades.
À Prof.ª Luciana Teixeira de Andrade pelas contribuições na qualificação, pela
disponibilidade sobre textos quanto por compor minha banca.
À Prof.ª Aurea Tomasi por ter aceitado o convite para compor a banca
À Prof.ª Ana Lúcia Modesto, por me mostrar da possibilidade de pensar o
cinema pelo olhar da antropologia. Esta dissertação nasceu em uma disciplina dela.
Ao meu Tio Magno e Tia Janete pela leitura da minha dissertação e por
conselhos que me acalmaram.
Aos meus colegas de mestrado pelas conversas que tornaram períodos
difíceis em bons momentos. Agradeço especialmente à Alexandra, Fernanda, Letícia,
Luana, Marina, Taciana e Thaís que compartilhei vários dos melhores, e por vezes
piores, momentos do mestrado.
Aos meus colegas e professores do curso técnico de teatro do CEFAR que
acompanharam todo o meu trabalho e me apoiaram quando precisei e me fizeram
“desligar” da escrita no papel e me levaram para a escrita no corpo.
Aos meus amigos-irmãos Eduardo, Fillipi (Pufe), Henrique, Marcos, Matheus
Duarte, Matheus Rosa, Rangel e Yuri pelos poucos momentos que convivemos
presencialmente neste período, mas que sempre estavam presentes quando precisei
para falarmos sobre qualquer coisa ou sobre nada.
À Joice por estar ao meu lado, e suportar meu estresse, por todo o processo.
Presente de diversas formas agradeço por tudo.
Aos meus pais que me mostraram a importância e o prazer do estudo, me
deram condições econômicas, afetivas e tudo o mais para que eu tenha chegado até
aqui. Se eu pudesse escreveria um agradecimento em cada página desta dissertação
para vocês.
SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES .......................................................................................VII


RESUMO .................................................................................................................VIII
ABSTRACT................................................................................................................IX
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11
1.1 METODOLOGIA ............................................................................................... 14
1 OLHOS PELOS QUAIS ASSISTI AOS FILMES: TEORIAS PARA UMA
ANÁLISE FÍLMICA ............................................................................................. 17
1.1 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES E ALGUMAS OBSERVAÇÕES EM
DIREÇÃO A UM ESTUDO DO CINEMA .......................................................... 17
1.2 ESTUDOS SOBRE O CINEMA ........................................................................ 23
2 NA FAVELA, POLICIAL É ALEMÃO: A REPRESENTAÇÃO DO POLICIAL ... 32
2.1 CRIME E TENSÃO POLICIAL: VIDA PROFISSIONAL E VIDA PESSOAL ...... 32
2.2 TONS DE CINZA NA DICOTOMIA POLICIAL HONESTO E CORRUPTO ...... 37
2.3 ARBÍTRIO POLICIAL E CORRUPÇÃO INSTITUCIONAL ................................ 45
2.4 ESPAÇO DA MORTE E DO DINHEIRO: A TENSÃO ENTRE POLÍCIA E
FAVELA................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
3 OS DONOS DO MORRO: A REPRESENTAÇÃO DO CRIMINOSO ..................... 59
3.1 BANDIDO OU TRABLHADOR? A REPRESENTAÇÃO DO BANDIDO EM
CONTRAPOSIÇÃO A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHADOR .................... 59
3.2 OS DONOS DO MORRO: O LÍDER DO TRÁFICO COMO PROPRIETÁRIO
DA FAVELA...................................................................................................... 71
4 VIVENDO NA GUERRA: A REPRESENTAÇÃO DO MORADOR ...................... 80
4.1 VIVENDO ENTRE CRIMINOSOS .................................................................... 80
4.2 A FAVELA COMO PALCO DA GUERRA E O MORADOR NO FOGO
CRUZADO........................................................................................................ 88
4.3 A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA COMO UM LUGAR A PARTE DA
CIDADE ............................................................................................................ 95
4.4 PROPRIEDADE DESRESPEITADA, CORPO VIOLENTADO E VIDA
INSIGNIFICANTE ............................................................................................. 98
5 CONCLUSÕES ................................................................................................. 105
6 ANEXO .............................................................................................................. 110
6.1 RESUMO DO FILME CIDADE DE DEUS (2002) E DESCRIÇÃO DOS
PERSONAGENS PRINCIPAIS ...................................................................... 110
6.2 RESUMO DO FILME TROPA DE ELITE (2007) E DESCRIÇÃO DOS
PERSONAGENS PRINCIPAIS ...................................................................... 112
SUMÁRIO
6.3 RESUMO DO FILME ALEMÃO (2014) E DESCRIÇÃO DOS
PERSONAGENS ............................................................................................ 113
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 114
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 - NASCIMENTO E SUA ESPOSA ROSANE – IMAGEM EXTRAÍDA


DO FILME TROPA DE ELITE ............................................................................. 36
FIGURA 2 - MATIAS SOBE A FAVELA, COMO PAISANO, ENQUANTO O
CAPITÃO NASCIMENTO, IMPLICITAMENTE O RECRIMINA POR ISSO. –
IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME TROPA DE ELITE .......................................... 53
FIGURA 3 - CORPO DEIXADO NA FAVELA PELOS POLICIAIS DO BOPE –
IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME TROPA DE ELITE .......................................... 57
FIGURA 4 - SEQUÊNCIA DE CENAS QUE REPRESENTAM O COTIDIANO
DA FAVELA – IMAGENS RETIRADAS DO FILME “ALEMÃO” (2014) ............ 81
FIGURA 5 - CONVERSA ENTRE TRAFICANTE E MORADORES – ALEMÃO .81
FIGURA 6 - MORADORES E TRAFICANTES DANÇANDO NO BAILE FUNK
– IMAGENS RETIRADAS DO FILME “TROPA DE ELITE” (2007).................... 83
FIGURA 7 - MORADORES APROVEITAM O ASSALTO AO CAMINHÃO DE
GÁS – IMAGEM RETIRADA DO FILME “CIDADE DE DEUS” (2002) .............. 85
FIGURA 8 - LÍDER DO TRÁFICO, PLAYBOY, ANDANDO PELA FAVELA
COMO UMA CELEBRIDADE – IMAGEM RETIRADA DO FILME “ALEMÃO”. 87
FIGURA 9 - CONFRONTO ENTRE TRAFICANTES – IMAGEM EXTRAÍDA DO
FILME CIDADE DE DEUS (2002) ....................................................................... 89
FIGURA 10 - CONSEQUÊNCIAS DO CONFRONTO ENTRE TRAFICANTES –
IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME CIDADE DE DEUS (2002) .............................. 89
FIGURA 11 - TREINAMENTO DO BOPE – IMAGEM EXTRAÍDA DOTROPA DE
ELITE (2007) ....................................................................................................... 91
FIGURA 12 - FOCO EM BUSCAPÉ COM O GRUPO DE POLICIAIS AO
FUNDO – IMAGEM EXTRAÍDA DO CIDADE DE DEUS (2002) ........................ 92
FIGURA 13 - FOCO EM BUSCAPÉ COM TRAFICANTES AO FUNDO –
IMAGEM EXTRAÍDA DO CIDADE DE DEUS (2002) ......................................... 92
FIGURA 14 - INÍCIO DO CONFRONTO ENTRE POLICIAIS CORRUPTOS E
TRAFICANTES – IMAGEM EXTRAÍDA DO TROPA DE ELITE (2007) ............. 93
FIGURA 15 - PERSONAGEM QUE FREQUENTAVA O BAILE NO MOMENTO
DO CONFRONTO - IMAGEM EXTRAÍDA DO TROPA DE ELITE (2007) ......... 94
FIGURA 16 - FUGA DA GALINHA – CIDADE DE DEUS ...................................... 95
FIGURA 17 - CAMINHADA DE BUSCAPÉ E SEUS AMIGOS PELA CIDADE
DE DEUS – IMAGEM EXTRAÍDA DO CIDADE DE DEUS (2002)...................... 97
FIGURA 18 - INVASÃO DO BOPE A UMA FAVELA PARA – IMAGEM
RETIRADA DO TROPA DE ELITE (2007) ........................................................ 100
RESUMO

Esta dissertação buscou compreender a representação das favelas em três filmes


nacionais: Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e Alemão (2014), a fim de
compreender os elementos recorrentes nos três filmes, assim como particularidades
de cada um. A análise da representação se baseou na metodologia proposta por
Pierre Sorlin (1985) que delimita os objetos analisados por época e sucesso de público
e/ou crítica. A análise dos filmes utiliza a decupagem, processo no qual se analisa os
diferentes elementos fílimicos e posteriormente se comparam, a fim de compreender
a representação do filme. Por meio deste processo, realizo uma divisão analítica que
considera os principais grupos que atuam nos filmes: policiais, bandidos e
trabalhadores (ZALUAR, 1985). Os dois primeiros são, geralmente, representados
como grupos militarizados que se confrontam e o terceiro é representado como um
grupo que está entre o conflito dos dois primeiros grupos. De forma geral, a favela é
representada como um espaço de guerra e um lugar no qual se pratica o crime, de
modo que os traficantes são representados como proprietários do território e os
policiais optam entre a omissão ou o enfrentamento bélico dos criminosos.

Palavras chave: Cinema, Favela e Representação


ABSTRACT

This dissertation bring a clarification about the favela representation three Brazilian
movies: Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) and Alemão (2014), to
understand the elements and singularities that compund each movie. The
representation analysis was based in the methodology created by Pierre Sorlin (1985).
He defines the delimitation of the objects analysed by period and sucesso f public an/or
critic. The movie study utilize the decupagem, process where a range of movie
elements ar analysed and compared. This is mad with a purpose to understand better
the movie representation. By the utilization of this process, I perform an analytic
division that consider the main groups that are exposed in the movies: policemen,
criminals and workers (ZALUAR, 1985). The first two groups, generally, are
represented as militarized grupos and the latter as a group that is located between the
conflicts them. In general, the favela is symbolized as a space of war and where the
crime is experiencied. In this same space the druga dealers are denoted as owners os
the place and the policemen choose between the omission and the warlike
confrontation of the criminals.
Key word: Cinema, Favela and Representation.
1 INTRODUÇÃO
11

1 INTRODUÇÃO

A dissertação se iniciou muito antes de ingressar no mestrado, quando vi e


revi, por gosto, diversas vezes os filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite. E na
recorrência destes filmes percebi a quase onipresença da violência física nos dois
filmes e isto me inquietou, pois não sabia se era uma característica do cinema ao
representar este espaço ou se era uma representação específica. Ao ver outros filmes,
de menor bilheteria e destaque comercial, vi outros modos de representar a favela, o
que me despertou a vontade de compreender qual é, ou quais são, a representação
presente da favela nos filmes de grande bilheteria. Deste modo, a dissertação buscou
analisar as representações da favela no cinema brasileiro contemporâneo de grande
bilheteria.
Favelas e periferias estão presentes no cinema brasileiro desde 1935 e foram
uma temática recorrente ao longo do cinema nacional. A seleção dos filmes se baseou
nos estudos de Pierre Sorlin (1985) sobre representações hegemônicas, no cinema,
de determinados temas, tendo como critério a época de produção dos filmes e o
sucesso de bilheteria e/ou de crítica. Assim, os filmes analisados se restringem ao
denominado Cinema de Retomada1, com mais de quinhentos bilhetes vendidos em
salas de cinema nacional2 e que geraram, em seu lançamento, discussões por parte
do público e da crítica especializada. Além disso, optei por filmes em que a favela
tinha relevância na narrativa. Desse modo, os filmes aqui analisados são: Cidade de
Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e Alemão (2012).
A questão que orientou a pesquisa foi a seguinte: quais são as representações
da favela no cinema brasileiro contemporâneo de grande bilheteria? Para essa
discussão, parti da ideia de Morin (1970) de que o cinema é a objetivação do subjetivo
do cineasta, mas um subjetivo constituído a partir de relações sociais e de

1 Filmes produzidos no fim da década de 1980 tendo condições de produção superiores à

ditadura militar devido a incentivos fiscais, não se referindo a uma proposta estética ou temática, mas
a uma condição econômica e política (MARSON, 2006).
2 Dado obtido no site ANCINE: https://oca.ancine.gov.br/cinema
12

representações coletivas. Portanto, a representação subjetiva está vinculada ao plano


coletivo, sendo alterada por ele e o alterando. A objetivação dá origem a um espaço
imaginário, que é o mesmo do filme, que inclui tanto o que é de fato mostrado pela
câmera, quanto o que está potencialmente fora da tela (AUMONT, 1994). E, mesmo
que ele seja imaginário e que os espectadores tenham consciência da não realidade
daquele espaço (SORLIN, 1985), ele oferece uma “impressão de realidade”
(AUMONT, 1994).
Nota-se aqui um ponto central na representação fílmica, pois ao mesmo tempo
em que o meio dá essa impressão de realidade, a representação é relativamente
autônoma ao substrato material, tendo uma realidade própria (DURKHEIM, 1970).
Essa se molda a partir de uma geografia dos significados que misturam imagens,
identificações, lógicas e afeto, de modo que, mesmo que se queira dar um relato do
real, há uma fusão entre sujeito e objeto (JOVCHELOVITCH, 2012). Mesmo não
sendo uma duplicação do real, as representações promovem uma constituição da
identidade de si e do outro (JOVCHELOVITCH&GUARESCHI, 2012), pois carregam
uma concepção de sociedade do cineasta, que cria um repertório imagético para o
filme, assim como se apropria de signos já utilizados socialmente para se referir a uma
temática (SORLIN, 1985). Esta concepção de sociedade, juntamente com os signos
instituídos e reproduzidos no filme, ocorre em processo linear e global.
Como evidencia Sorlin (1985), porém, esta concepção é construída a partir de
uma estrutura fílmica, códigos e meios típicos do cinema. O espaço imaginário é
traduzido em materiais e linguagens convencionais do cinema (BECKER, 1993). E o
cinema enquanto imaginário só completa sua função de representação quando o
receptor acessa este mundo imaginário, caso contrário o filme será um “remanescente
congelado da ação coletiva” (BECKER, 1993, p. 137).
Para analisar as representações da favela nos três filmes selecionados,
pensarei nos personagens como representantes de três grupos, os quais sejam:
organização policial, narcotraficantes e favelados. É preciso explicitar, porém, que
serão consideradas as particularidades dentro de cada grupo, em relação aos filmes
em geral e em cada filme separadamente. A hipótese inicial da pesquisa foi que a
favela é representada pelos filmes analisados como o lócus da tragédia urbana, e os
indivíduos que de alguma forma se relacionam com ela, sejam moradores ou não,
viveriam numa constante negociação entre o mundo legal e o mundo ilegal. Esta
13

hipótese se confirmou em todos os grupos analisados (policiais, moradores e


criminosos) em diversos momentos dos filmes.
Esta dissertação está dividida em quatro capítulos, além desta introdução e das
considerações finais. No primeiro capítulo, “Olhos pelos quais assisti os filmes: teorias
para uma análise fílmica”, há um panorama das perspectivas teóricas e a metodologia
utilizadas para a análise dos filmes, como a discussão sobre cinema de Pierre Sorlin
(1985) e Jacques Aumont (1994) e a Teoria das Representações Sociais, além de
colocar alguns autores que foram utilizados.
O capítulo 2, intitulado “Na favela policial é alemão: a representação do policial”
tem como foco a representação da polícia, que aparece nos filmes como o único grupo
que se relaciona com o Estado. Mas a atuação dela se dá somente pela repressão,
constituindo um poder paralelo, no sentido de que a força policial não atua de modo a
aplicar (ou zelar pela aplicação das) as leis e regras do Estado democrático, mas a
partir de uma dinâmica própria e tendo como objetivo os interesses próprios da
organização policial.
No capítulo 3, “Os donos do morro: a representação do criminoso”, a análise
recai sobre a representação do crime. Nos filmes analisados, os crimes, na grande
maioria das vezes, são relacionados ao narcotráfico, que é representado como
principal agente territorializador da favela, no sentido de que altera as relações e a
dinâmica do espaço. Nesta representação de territorialização do tráfico, as ações de
todos os indivíduos que pertencem a este lugar são dependentes das ações e normas
dos traficantes, sobretudo do líder do tráfico;
O último capítulo, “Vivendo na guerra: a representação do morador”, a atenção
se volta para a representação dos favelados que não estão associados ao crime.
Estes aparecem nos filmes analisados, de modo geral, como pessoas que lutam pela
sobrevivência neste espaço, em constante processo de negociação entre os domínios
legítimos e ilegítimos, sofrendo violências físicas tanto por parte dos criminosos
quanto dos policiais.
14

1.1 METODOLOGIA.

A metodologia utilizada foi baseada na decupagem proposta por Pierre Sorlin


(1985). A decupagem é a análise do filme a partir das partes que o constituem:
direção, roteiro e atuação. A divisão do filme visa um distanciamento do material
fílimico por parte do pesquisador e consiste em uma divisão do filme em planos, cenas,
narrativa e personagens. O plano é a unidade mínima do filme, que consiste em um
segmento ininterrupto de tempo e espaço, a cena é uma unidade de ação no mesmo
espaço e tempo, a narrativa são os eventos contados em uma relação de causa e
efeito e os personagens são representações de indivíduos (SORLIN, 1985;
NOGUEIRA, 2010).
A decupagem foi realizada seguindo os procedimentos de criação fílimica
mais usuais (NOGUEIRA, 2010) e se pautou pelas seguintes questões:a) quais os
eventos principais do filme, sua ordem e lógica interna de progressão dramática? b)
quais as ações principais em uma cena e quais os personagens que realizam ou
sofrem a ação? c) qual a trajetória e as principais características dos personagens
principais?
O material coletado, focado na narrativa, originou uma série de dados
qualitativos internos ao filme que foram comparados entre si, a fim de compreender
as representações do filme para cada grupo de pesquisa. Os demais elementos
fílmicos, iluminação, direção e atuação foram analisados conjuntamente com a
narrativa com o intuito de compreender os componentes visuais que constituem a
representação de cada grupo estudado e da favela como um todo. Com este material
buscou-se compreender tanto a representação geral dos grupos, como particular de
cada personagem importante para o filme. Os materiais individuais dos filmes foram
comparados para descobrir recorrências de representação (SORLIN, 1985), buscando
compor um panorama geral dos filmes, assim como perceber representações
particulares.
A constituição de um panorama das representações tanto dos grupos, quanto
da favela, almejou compreender não somente a representação em si, mas também a
lógica da representação. Assim, os mesmos elementos presentes somente em um
filme foram comparados com a representação geral com a finalidade se observar
15

conflitos ou harmonias possíveis entre a representação geral dos três filmes e


particular de cada obra.
1 OLHOS PELOS QUAIS ASSITI AOS FILMES:
TEORIAS PARA UMA ANÁLISE FÍMICA
17

1 OLHOS PELOS QUAIS ASSISTI AOS FILMES: TEORIAS PARA UMA ANÁLISE
FÍLMICA

1.1 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES E ALGUMAS OBSERVAÇÕES EM


DIREÇÃO A UM ESTUDO DO CINEMA

Duas discussões da teoria das representações são centrais para esta


dissertação: a que se refere a relação entre realidade e representação e a que aborda
o vínculo entre representação coletiva e individual.
A discussão sobre realidade e representação pode ser tomada a partir de duas
perspectivas: a representação como relativamente autônoma à realidade, formulação
presente primeiramente em Durkheim (1970) e a representação como uma fração da
realidade, defendida por Becker (1993). Para esse, as pessoas utilizam diferentes
representações da realidade social, por exemplo, mapas, que fornecem um “retrato
parcial” da realidade. Esse retrato tem forma e conteúdo,

porque a organização social molda não somente o que é feito, mas também
o que as pessoas querem que as representações façam, que tarefa precisam
que seja realizada [...] e que padrões usarão para julgá-las. (BECKER, 1993,
p. 139)

Assim, há ao menos dois atores envolvidos na atividade da representação, o


produtor e o receptor. A parcialidade, algo menor do que se poderia vivenciar e achar
disponível no ambiente real, tem início no produtor quando este busca relatar somente
aquilo que é necessário para o que pretende comunicar (BECKER, 1993). Esse relato
é transmitido para o receptor por meio de uma “realidade traduzida em materiais e na
linguagem convencional de um ofício específico” (BECKER, 1993, p. 142), de modo
que essas representações são trazidas à vida pelo receptor, pois até que este as
utilize, elas são “remanescentes congelados da ação coletiva” (BECKER, 1993, p.
137). Para o autor, então, o conhecimento deve ser relativizado, pelo menos no
sentido de que uma mesma realidade pode ser descrita de diferentes formas.
Para os estudos do cinema, há alguns pontos de grande força na perspectiva
defendida por Becker (1993). A primeira é uma divisão entre produtor e receptor, que
no caso de filmes de grande circulação é uma divisão em polos muito clara. A ideia
das representações enquanto “remanescentes congelados da ação coletiva”, pode ser
pensada para o filme. Pois a partir do momento em que ele é gravado, editado e
18

distribuído, se torna “um baú de representações” que é visto de forma diferente por
cada indivíduo que “abre este baú”. Essa diferença interpretativa se dá a partir da
posição social de cada espectador.
Becker afirma que na representação o produtor busca relatar somente o
necessário para se comunicar, sem inserir qualquer elemento que vá além do que
busque relatar ao receptor. Para o cinema isto pode até ser uma busca para alguns
cineastas, como afirma Luís Nogueira (2010) ao tratar da produção de roteiros de
filmes não experimentais. Para analisar os filmes é preciso considerar que tudo o que
está presente no filme se baseia em uma intenção e não em “erros” da direção.
Importam ainda outros dois elementos da perspectiva de Becker (1993): a
materialização da representação e a linguagem específica do ofício. Tomando as
representações como um conjunto de ideias socialmente constituídas e que estão
presentes nos indivíduos desta sociedade, elas só podem ser transmitidas por meios
que sejam captados sensorialmente. As representações precisam se converter em
som, em imagem ou nos dois, como é comum no cinema. As imagens e sons do
cinema não são uma extração completa da realidade, no sentido de terem origem
somente nela, mas imagens e sons artificiais, o que leva a problematizar uma
interpretação que seja feita somente a partir das discussões de Becker (1993) para o
cinema.
Colocar as representações como originadas unicamente do real pode abrir
brecha para desconsiderar a criação a partir deste real, pois não somente se recolhe
da realidade seus elementos constitutivos, como também as relações que estes
elementos mantêm entre si. Ao meu ver, isso limita bastante o aspecto da criatividade
do produtor, ou seja, sua capacidade de recortar diferentes elementos da realidade e
uní-los para realizar algo novo. Não há como pensar a arte sem o elemento da
imaginação, não há como pensar a representação somente como parte da realidade,
é necessário pensá-la também como relativamente autônoma a esta realidade.
Esta relativa autonomia da representação pode ser percebida na perspectiva
durkheimiana, para quem a fonte das representações está no substrato das relações,
mas
uma vez que um primeiro caudal de representações foi constituído deste
modo, elas se tornam, em virtude das razões que já expusemos, realidades
parcialmente autônomas que gozam de uma vida própria e que têm o poder
de atrair-se, repelir-se, deformar entre si sínteses de naturezas diversas,
19

combinações determinadas por suas afinidades naturais e não pelo estado


do meio no qual se desenvolvem. (DURKHEIM, 1970, p. 40)

Assim, a autonomia das representações é relativa, pois essas dependem de


um primeiro momento do substrato social, bem como de outras representações. No
entanto, o espaço das construções humanas sobre o real é passível de ser expandido,
redefinido e transformado, já que ele é um domínio contratual entre os indivíduos.
Outro ponto de diferença entre os dois autores se refere à ênfase que Durkheim (1970)
dá a uma apreensão a partir da representação do indivíduo. Durkheim (1970) retira do
senso comum a capacidade de compreender a realidade, o objeto em si, sem que
estas sejam modificadas por representações individuais anteriores à experiência com
o objeto.
Tomando o cinema como uma representação, no sentido durkheimiano, pode-
se pensar que o filme é a representação individual dos seus produtores (direção,
roteiro, atores etc.) e esse perfil fílmica de algo não se dá diretamente pela observação
da realidade, mas pela contínua interferência e condicionamento das representações
coletivas. Os produtores não apreendem a favela para ficar com o objeto desta
pesquisa, e a representam por meio do cinema. Essa sequer é a representação
puramente individual da favela, mas apreendem uma representação coletiva da
favela, inserem sua representação individual e a materializam em um filme.
Seguindo o caminho aberto por Durkheim (1970), Jovchelovith (2012) pensa as
representações como um espaço no qual se constrói uma noção da realidade,
configurando-o de várias representações justapostas, que ela denomina como
geografia dos significados.

mesmo os mais básicos símbolos são o resultado de uma mistura de


imagens, de contrastes, de identificações, que condensam por assim dizer a
variedade de objetos, afetos e outros significativos [...]. Daí que deve haver
um deslocamento de significados entre esses vários objetos (objeto aqui
refere-se a coisas e pessoas), dando a um a referência do outro, evocando
em um a presença do outro, misturando em um a imagem e o som do outro
(JOVCHELOVICTH, 2012, p. 65)

De acordo com Jovchelovith (2012), o processo de representação depende de


quatro elementos básicos, quais sejam: a objetificação, a partir da qual uma pessoa,
um objeto, uma ideia ou um sentimento é alocado em algo material e de caráter
imagético; a ancoragem, a partir da qual elementos do substrato social, ou de
20

representações alheias ao indivíduo e à sociedade em que ele vive, são relacionados


com elementos típicos da representação nativa do indivíduo; o deslocamento, que se
refere à transição dos elementos das representações entre as diversas sociedades,
que se dá pelo isolamento de elementos específicos da geografia de significados
original e a adaptação deste elemento isolado em outra sociedade; a condensação,
aglutinação de diversos elementos a partir de afinidades.
Parece-me que a contribuição de Jovchelovith (2012) é a que mais se aproxima
do processo de representação ocorrida no cinema. A concepção de referência é
crucial para a compreensão das imagens que se passam em um filme, pois o que está
representado na tela não é a coisa ou a pessoa em si, mas uma imagem que remete
ao espectador a coisa em si. Há uma evocação da representação que o espectador
tem da realidade. E no cinema é imperativo que ocorram os quatro elementos básicos
da representação.
Os aspectos do diretor necessitam ser objetificadas, para que possam ser
captadas pelos sentidos do espectador, pois as representações individuais só podem
ser transmitidas se tomarem uma forma sensorialmente perceptível para outros
indivíduos. Ao ver um filme, o espectador vai ancorando o que se passa na tela com
a sua representação, desse modo há um encontro entre a sua representação (que é
constituída por elementos sociais) e a materialização da representação do diretor, não
com a representação do diretor em si. Na produção dos filmes se retira elementos da
realidade e os insere no filme, construindo uma nova relação entre eles, a fim de gerar
um efeito específico. Um exemplo pode ser visto em Cidade de Deus que é
parcialmente baseado em uma história real e cujo protagonista, Buscapé, na realidade
é uma pessoa branca, mas o diretor optou por colocá-lo no filme como um rapaz negro
para que não se reforçasse a ideia de que somente pessoas brancas conseguem sair
21

da favela3. A partir disso, tem-se a aglutinação, elementos que na realidade não


contíguos são postos em relação, criando um espaço novo nas representações.
O segundo eixo de discussão das teorias das representações sociais se refere
à relação entre as representações individuais e as coletivas. Esse eixo parte da
perspectiva durkheimiana de que “as representações coletivas são exteriores às
consciências individuais (...) porque elas não provêm dos indivíduos tomados
isoladamente, mas em seu conjunto” (DURKHEIM, 1994, p.43). Isso não significa que
as representações individuais sejam insignificantes, mas que se inserem na
representação coletiva, já que tanto a vida coletiva, quanto a vida mental dos
indivíduos, são feitas de representações (DURKHEIM, 1970), de modo que estas
articulam o individual e o coletivo (MOSCOVICI, 2012). Assim, como apontam
Guareschi e Jovchelovith (2012), é preciso compreender que o social produz
fenômenos psicossociais cuja lógica difere da individual, pois mesmo que o indivíduo
não esteja apartado da coletividade, a constituição de ambos se dá por mecanismos
diferentes. O individual não se resume ao social, e vice-versa:

[A] teoria das representações sociais se articula tanto com a vida coletiva de
uma sociedade, como com os processos de constituição simbólica, nos quais
sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar
o seu lugar, através de uma identidade social. (JOVCHELOVITCH, 2012, p.
54)

O processo de constituição do Eu é feito a partir da representação de um


Outro generalizado, que é colocado em público e propicia a representação individual
e coletiva. Ou seja, as representações coletivas e as representações individuais têm
o mesmo substrato, que são as relações em espaço público, pois este permite tanto
a construção da individualidade, quanto a representação do coletivo sobre si
(JOVCLEHOVITCH, 2012). Mas vale ressaltar que embora as constituições das
representações sejam mútuas (FARR, 2012), estas não possuem um mesmo peso,

3 Fato que recebeu alguma atenção por parte da mídia na época de lançamento do filme
Cidade de Deus, uma das reportagens mais atuais é da Revista IstoÉ, disponível no endereço
eletrônico: istoe.com.br/21469_IDENTIDADE+REVELADA/
22

pois os indivíduos se inserem em um mundo já estruturado, tanto no nível


representacional quanto das relações sociais (Durkheim, 1970; Jovchelovith, 2012;
Spink, 2012).
Nos filmes, mais do que afirmar que há uma mistura entre representação
coletiva e individual, nota-se elementos recorrentes entre eles de modo geral, e
elementos particulares a cada um deles, o que pode nos levar a pensar em elementos
mais presentes na representação coletiva e outros mais associados à representação
individual. Desse modo, a mistura de representações diversas, encarnadas no
indivíduo, dão origem a uma forma particular, mas nunca isolada da coletividade.
Assim, nos filmes, toda representação é social. No entanto, apesar da força do
coletivo, os

fatos sociais necessitam ser traduzidos em entidades mentais


intraindividuais, antes que eles possam ser usados para explicar ou para
serem articulados com comportamentos individuais. Não é a pertença de um
sujeito que faz com que ele se comporte socialmente da maneira como o faz,
mas a sua representação mental dos fatos sociais. (WAGNER, 2012, p. 131)

Isso nos faz retornar à necessidade dos quatro elementos do processo de


representação apontados por Jovchelovith (2012), pois as representações coletivas
só existem na consciência individual. É possível notar, então, que a constituição das
representações ocorre de forma mútua entre as coletividades e os indivíduos.
As representações coletivas consideram a espacialidade, que são as
sociedades e o tempo, que Spink (2012) divide em três: o tempo curto, no qual há a
interação entre indivíduos e a maior diversidade e criação; o tempo vivido, referente
ao processo de socialização e constituição do habitus; e o tempo longo, que é da
ordem das memórias coletivas, do imaginário social. Esses coexistem e se
contradizem em um jogo de permanências e de brechas estruturais. Assim, para a
autora, as representações não são estáticas, mas um processo contínuo estabelecido
pelas práxis, no qual há um “confronto entre os tempos”.
Tal temporalidade auxilia na análise do cinema, a partir de uma adaptação com
caráter mais metodológico e de recortes quanto aos filmes que o pesquisador pode
utilizar. O tempo curto pode ser pensado para análise interna ao filme, ou seja, as
representações diversas que são elaboradas e entram em conflito dentro de uma
mesma obra. A noção do tempo vivido pode ser expandida para a busca de uma
23

representação geral e sua comparação com outros filmes próximos - em termos


temporais. Por fim, o tempo longo pode ser pensado para analisar épocas no cinema,
a fim de compreender as representações gerais presentes nesta época. Sendo
essencial a perspectiva de Spink (2012) do movimento dessas representações pelas
práxis, que para uma análise do cinema, pode ser pensada como a própria produção
do filme, que materializa representações individuais e coletivas.
De acordo com Becker, as representações são ainda

maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para
outras pessoas que querem sabe-lo, como atividades organizadas moldadas
pelo esforço conjunto de todas as pessoas envolvidas. (BECKER, 1993,
p.137)

Nota-se também aqui o caráter público das representações, indicando dois


fenômenos interligados: da representação coletiva enquanto algo acessível a todos e
da divisão entre público e privado no campo das representações. As representações
coletivas também estabelecem fronteiras entre o mundo privado e o mundo público,
pois, presentes no segundo, elas dão uma vida que extrapola o mundo privado e das
representações individuais, pois no público elas têm capacidade de se produzir,
manter e transformar-se a partir dos artefatos e narrativas humanas (BECKER, 1993;
JOVCHELOVITH, 2012).
Ao ver o cinema a partir deste pensamento, a representação no filme é parte
da representação que indivíduos e coletividades fazem de si. Nos filmes, o espectador
passa por um processo de compreensão de si e da realidade. Não é uma via de mão
única. Ele utiliza da representação social para se constituir e constrói a parte da
representação social daquilo que ele apresenta. Ou seja, é a um só tempo construído
e construtor da geografia das representações.
.

1.2 ESTUDOS SOBRE O CINEMA

Neste tópico, a reflexão está voltada para o filme em si. Num primeiro
momento, as discussões de Jacques Aumont (1994) e Ismail Xavier (2005) são
fundamentais. Ao final, o foco da reflexão é o espectador e sua relação com o filme, a
partir de estudos de Pierre Sorlin (1985) e Paulo Menezes (2003).
24

As observações de Jacques Aumont (1994) se referem ao que ele denomina


de cinema narrativo e representativo, “filmes que, de uma maneira ou de outra, contam
uma história situando-a num certo universo imaginário que eles materializam pela
representação” (AUMONT, 1994, p. 26). O autor considera que a linguagem do cinema
estabelece um espaço fílmico que é construído a partir de dois elementos centrais: a
impressão de realidade e o campo, os elementos representados na tela e os aludidos
fora da tela.
Parte dessa ilusão de realidade vem da fotografia, que de acordo com Xavier
(2005), é representada como um documento que atestaria a pré-existência do que ela
revela. O cinema amplifica essa ilusão devido ao movimento e à profundidade. O
movimento é ilusório porque as imagens dos filmes são constituídas a partir de
fotografias descontínuas, cuja relação (entre uma e outra) é forjada por duas
operações que ocorrem na construção do filme: a filmagem (opção de como os vários
registros serão feitos) e a montagem (escolha do modo como as imagens serão
combinadas e ritmadas). Para Aumont (1994), isso não advém somente das
especificidades do cinema, mas é algo que o espectador vai aprendendo com o tempo.
Aprende a ignorar os elementos não reais do filme, como a não profundidade física,
pois as imagens são feitas em duas dimensões, e a descontinuidade temporal, devido
aos cortes nos planos.

Reagimos diante da imagem fílmica como diante da representação muito


realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo. Mais
precisamente, como a imagem é limitada em sua extensão pelo quadro,
parece que estamos captando apenas uma porção desse espaço. É essa
porção de espaço imaginário que está contida dentro do quadro que
chamaremos de campo. (AUMONT, 1994, p. 21)

Esta impressão de realidade do filme nos faz tomar o que está dentro do
enquadramento, também chamado de campo, como parte de um “espaço mais vasto”,
como se fosse uma janela através da qual o espectador vê uma parte desse mundo.
Assim, há um espaço invisível que, embora fora do enquadramento, está
imaginariamente presente no filme para o espectador. Essa relação entre campo e
fora de campo, segundo Xavier (2005), ocorre em maior ou menor grau dependendo
do filme, de modo que o espaço cinemático consiste tanto do espaço interior ao
enquadramento quanto do exterior.
25

Mesmo que um seja visível, o campo, e o outro invisível, o fora de campo,


ambos pertencem a um mesmo espaço homogêneo, o ambiente fílmico ou cena
fílmica. Os dois são igualmente importantes, sobretudo, porque a cena fílmica não se
limita aos traços visuais, mas também ao som (AUMONT, 1994). Isso ocorre porque
o fora de campo é criado a partir dos elementos presentes no campo, cria-se uma
contiguidade que não apresenta contradições, mas complementaridades (AUMONT,
1994; XAVIER, 2005). Este efeito de um mundo “fora do enquadramento” é presente
em outras artes, como na fotografia e na pintura, e no cinema é reforçado pelo
movimento efetivo de elementos visíveis que podem se mover para fora e para dentro
do enquadramento. Sendo assim, a dimensão temporal dá uma nova dimensão para
o “fora do enquadramento”.
Para realizar a análise do filme, Xavier (2005) o coloca como uma janela para
um mundo que existe em si e independente do nosso. O filme é um microcosmo
separado radicalmente do nosso com composição e leis próprias. Este “microcosmo
pode apresentar a realidade, mas não tem nenhuma conexão imediata ou contato com
ela” (XAVIER, 2005, p. 22). A noção de filme como outro mundo é reforçada por dois
elementos tradicionais e fundadores do cinema: a expressividade da câmera e a
montagem. A expressividade da câmera se refere à ideia de que ela tem um olhar
intencionado e “procura” ver algo, como se fosse alguém que olhasse para o mundo.
Esta intenção do olhar da câmera torna o espaço fora do enquadramento como
potencialmente observável.
A montagem, diferentemente da expressividade da câmera reforça uma
descontinuidade do registro, descartando a “objetividade” que ocorre na indexalidade
da fotografia, pois a montagem indica uma clara manipulação humana. É esta
descontinuidade entre imagens que propicia um “salto” brusco da nossa realidade
para o mundo que se apresenta no filme, pois “a descontinuidade do corte poderá ser
encarada como um afastamento frente a uma suposta continuidade de nossa
percepção do espaço e do tempo da vida real.” (XAVIER, 2005, p. 24).
A discussão de Sorlin (1985) sobre o cinema parte da seguinte afirmação: “A
câmera registra coisas reais, mas essas não são ‘a realidade’; são ‘a vida’ percebida
ou reconstituída, ou imaginada por quem faz o filme, e nada nos permite considerar
26

isto mais do que uma representação”4 (SORLIN, 1985, p. 42, tradução minha).
Considero que a partir desta citação é possível pensar sobre a ideia de construção da
realidade no filme. Sorlin traça uma primeira diferença com uma arte semelhante, a
fotografia. A fotografia transmite significados a partir de imagens estáticas, ao passo
que no filme os significados se dão por imagens que dão impressão de movimento.
Para o autor, isto seria o aspecto linear e global do filme e esta linearidade não é um
monobloco, mas um conjunto no qual se inserem inúmeros elementos que são postos
em relação. O processo de filmagem consiste em recortar e isolar objetos ou
personagens de onde se encontravam na realidade e os colocar de forma contígua no
filme. A imagem fílmica consiste em fragmentos descontínuos que são postos como
um concreto contínuo. Aqui entra um elemento crucial para o pensamento de Sorlin:
a imagem “bruta” captada por uma câmera disparada ao azar é uma imagem
construída, um conjunto espacial organizado em planos sucessivos que se
ordenam a partir do olhar do espectador. O que vemos no cinema, e o que
nos parece natural porque não conhecemos outras formas de audiovisual,
depende de uma técnica, ordenada ela mesma por uma concepção do papel
demarcado ao público no espetáculo. No curso de qualquer filme nos
encontramos em uma situação de observador privilegiado: objetos, atores,
textos, se reúnem em uma relação perspectiva cujo foco central é nosso olho5
(SORLIN, 1985, p. 118, tradução minha).

Sorlin (1985) reforça que estes elementos presentes no filme não podem ser
classificados como signos, pois estes existem somente quando há uma
intencionalidade por trás e que a unidade mostrada é utilizada para se referir a uma

4 La câmara registra cosas reales, pero essas cosas no son “la realidade”;son “la vida”
percebida, o reconstituída, o imaginada por quienes hacen el filme y nada nos permite consderarlas
más que como representaciones
5 La imagem “bruta” captada por uma câmara disparada al azar ya es uma imagem construída,
um conjunto espacial organizado em planos sucessivos que se ordenan respecto de la mirada del
espectador. Lo que vemos em el cine, y que nos parece natural porque casi no conocemos nada más,
depende de yna técnica, ordenada ella misma por uma concepción del papel assignado al público em
el espetáculo. En el curso de cualquier función, nos encontramos em situación de observador
privilegiado; objetos, actores, decorados, se reúnen em uma relación perspectiva cuja chave está em
nuestro ojo. (SORLIN, 1982, p.118)
27

outra unidade oculta. Para prosseguir nesta discussão é necessário, em alguma


medida, tratar da noção de realidade dada pelo cinema. Sorlin (1985) desconsidera a
possibilidade de um completo realismo no cinema, pelas próprias características da
arte. Quando o espectador toma algo como real não é pela imagem fílmica em si, mas
pela projeção que o espectador faz das imagens sobre dados que ele toma como real.
A impressão de verdade, em Pierre Sorlin (1985), se desloca do filme para o
espectador.
O autor, então, em vez de pensar na noção de signo, investe na concepção do
sentido que é dada pelo espectador, algo que difere o espectador comum do analista.
Enquanto o primeiro se atém a detalhes, por vezes minúsculos, o analista deve buscar
as múltiplas linhas de sentido que podem ser vistos em um filme. Esta discussão
ganha, na minha opinião, um pouco mais de profundidade na abordagem de Menezes
(2003) e o cito literalmente:
Proponho que se entenda a relação entre cinema, real e espectador como
uma representificação, como algo que não apenas torna presente, mas que
também nos coloca em presença de relação que busca recuperar o filme em
sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em projeção, é
percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de
sentidos. Sentidos estes que estão na relação, e não no filme em si mesmo.
O conceito de representificação realça o caráter construtivo do filme, pois nos
coloca em presença de relações mais do que na presença de fatos e coisas.
Relações constituídas pela história do filme, entre o que ele mostra e o que
ele esconde. Relações constituídas com a história do filme, articulação de
espaços e tempos, articulação de imagens, sons, diálogos e ruídos. Pensar
o cinema como representificação significa poder pensar a sessão de cinema
como acontecimento (MENEZES, p.94).

Retomando a diferença que Sorlin (1985) faz entre o espectador comum e a


analista, Menezes (2003) reforça a ideia dos espectadores como responsáveis por
conferir realidade ao filme. Pois, mesmo que o cineasta tenha consciência de que o
filme é uma construção do real, é quem o assiste que vai dizer se o que se passa na
tela é uma reprodução do real ou não. Assim, “não existe uma significação inerente
ao filme: são as hipóteses da investigação que permitem descobrir certos conjuntos
28

significativos6” (SORLIN, 1985, p. 49, tradução minha). Por conta disso, é necessário
formular hipóteses para a análise fílmica, pois assim o pesquisador busca por sentidos
nos filmes, em vez de buscar signos visuais, em teoria, infinitos. O filme, para o autor,
tem uma construção de sentido interno, em um primeiro momento, pois ele deve ser
compreendido pelos elementos nele contidos.
Sorlin (1985), no entanto, não descarta que os filmes trabalham com certas
indicações e elementos que têm uso socializado e funcionam de fato como signos
para serem percebidos pelo espectador, por isso
O cinema é, ao mesmo tempo, repertório e produção de imagens. Não mostra
“o real”, mas sim os fragmentos do real que o público aceita e reconhece. Em
outro sentido, contribui para construir o domínio do visível, a impor imagens
novas.7 (SORLIN, 1985, p. 60, tradução minha)

Ou seja, há um jogo entre as imagens novas e aquelas já socialmente


legitimadas, pois algumas delas não têm seu significado construído no filme, mas
usam de imagens coletivas já dadas. Mesmo que todo filme seja uma ficção, no
sentido de ser uma criação em relação ao que se convencionou chamar de real, a
matéria prima é oriunda dessee real, mas é moldada, e posteriormente montada,
formando um todo, um mundo construído. Para Paulo Menezes (2003, p. 94) esse
molde é a “matéria-prima de uma investigação sociológica sobre o cinema em geral.”
Isso torna o filme um testemunho de uma concepção da sociedade e de seus
mecanismos de produção de imagens e representações. Assim, o filme se configura
como uma “sucessão de imagens, ou seja, um encademaento linear, longitudinal, de

6 “No existe una significación inherente al filme: son las hipótesis de la investigación las que
permiten descobrir ciertos conjuntos significativos.” (SORLIN, 1985, p.49)
7 “El cine es, al mismo tiempo, repertorio y producción de imágenes. No muestra “l real”, sino
los fragmentos de lo real que el público acepta e reconoce. Em outro sentido, contribuye a ensanchar
el domínio de lo visible, a imponer imagenes nuevas (SORLIN, 1985, p.60)
29

elementos que são, eles mesmo, mensagens globais dispostos em uma leitura
transveral.”8 (SORLIN, 1982, p. 61, tradução minha)
Se tomarmos espectador e filme como dois polos, a representificação seria a
ligação entre eles. O mundo construído no filme é posto em presença do espectador,
que articula os elementos presentes nesse para constituir, de fato, uma unidade. O
ato de ver um filme é uma construção entre elementos, no qual elementos isolados
são postos em relação, mais do que uma contemplação de fatos e coisas. Além disto,

A representificação seria a forma de experimentação em relação a alguma


coisa, algo que provoca reação e que exige nossas tomadas de posições
valorativas, relacionando-se com o trabalho de nossas memórias voluntária e
involuntárias que o filme estimula. (MENEZES, 2003, p. 94)

Sendo assim, assistir a um filme não é um ato passivo, seja no que tange à
necessidade do espectador de construir relações, seja na opinião e sentimentos que
este mesmo espectador tem em relação ao que ele construiu ao assistir ao filme.
Assim, emerge a questão temporal apontada por Menezes (2003), pois a
representificação não se configura como algo linear (passado, presente e futuro), mas
é um entrecruzamento no qual se articula a cada exibição do filme passado e presente.
Mesmo que eu concorde com grande parte do que é aqui exposto, não é difícil
perceber que há algumas posições opostas entre os autores, o que exige uma tomada
de posição minha, além de existirem pontos em discordância particular. Esta parte
final do capítulo é um breve comentário sobre estes pontos.
Os filmes escolhidos para analisar seriam, na perspectiva de Aumont (1994),
narrativos e representativos, sendo que tomarei o filme como um mundo em si, ou
seja, como um espaço que contém uma realidade, mesmo que esta seja imaginada.
No entanto, me afasto levemente da concepção de uma total desconexão entre o
mundo fílmico e o nosso mundo, o mundo “real”, pois tomo que a própria matéria-

8 “El filme es una sucessión de imagenes, es decir, um encadenamiento lineal, longitudinal,


de elementos que son, ellos mismos, mensajes globales propuestos a uma lectura transversal.”
(SORLIN, 1985, p. 61)
30

prima originária do filme é a nossa realidade. Em termos gerais, o filme tem contornos,
a meu ver, como uma representação no sentido de Durkheim (1970), para quem há
uma relativa autonomia em relação à realidade, mas a matéria-prima é a realidade.
Isto leva à discussão que foi feita a partir de Aumont (1994) e Xavier (2005)
sobre o enquadramento. Considero que o que está fora do ajuste tenha o mesmo
“peso” do que está no enquadramento, a existência do que está fora se baseia numa
concepção de coerência e homogeneidade com o que é presente dentro do
enquadramento. O que ocorre dentro desse é estruturante do que podemos imaginar
com o que ocorre fora do mesmo. Isto reforça não só a ideia de um mundo próprio, no
qual o que está enquadrado postula as leis deste espaço, como este mundo é
coerente internamente. No entanto, a visão deste mundo não é objetiva, mas
intencionada. Intenção que se transmite pelo olhar da câmera, desse modo, a
“abertura da janela” é a marca da subjetividade ao olhar para este mundo.
Isso se tornará mais evidente pelos filmes que escolhi para pesquisar, pois
eles apresentam três pontos de vistas muito distintos (a visão do favelado, a visão
exterior da favela pelo policial e a visão interna da favela pelo policial). Nessas visões
subjetivas vão se criando os sentidos do filme em uma relação que é horizontal e
vertical. Horizontal porque ela ocorre em uma dimensão temporal em que são
passados as imagens e os sons. Vertical, pois em cada instante há várias linhas de
sentido, vários elementos cinematográficos (como atores, iluminação, cenário, falas,
ruídos etc.) que ocorrem simultaneamente. O plano do filme tem duas dimensões:
cada elemento cinematográfico possui uma temporalidade que vai se processando ao
longo do filme. No entanto, isto é passado como um bloco ao espectador, sendo
necessário que o analista separe estes elementos e depois os agrupe novamente, a
partir de suas hipóteses de análise, para compreender tanto o mundo criado no filme,
quanto sua visão subjetiva.
2 NA FAVELA POLICIAL É ALEMÃO: A
REPRESENTAÇÃO DO POLICIAL
32

2 NA FAVELA, POLICIAL É ALEMÃO9: A REPRESENTAÇÃO DO POLICIAL

Os filmes analisados nesta dissertação focalizam a polícia em situações e


perspectivas diferentes. Em Cidade de Deus os policiais são representados a partir
da visão dos favelados; Tropa de Elite quer mostrar a visão de um policial sobre a
organização policial e suas atividades (incluindo aquelas relacionadas à favela); em
Alemão o foco são os policiais infiltrados à paisana em uma favela. Embora existam
estes enfoques diferentes, há representações que são comuns aos três filmes.

2.1 CRIME E TENSÃO POLICIAL: VIDA PROFISSIONAL E VIDA PESSOAL

É possível perceber nos três filmes que há uma tensão entre a vida pessoal e
a atividade profissional dos policiais. Na introdução de Tropa de Elite, por exemplo,
ouve-se Capitão Nascimento em off:

Na minha cidade tem mais de 700 favelas. Quase todas dominadas por
traficantes armados até os dentes. É só nego AR-15, pisto uzi e HK10. No
restante do mundo este equipamento é usado na guerra, no Rio de janeiro
são as armas do crime. Um tiro de 76211 atravessa um carro como se fosse
papel e é inocência achar que um policial nestas condições vai subir a favela
só para fazer valer a lei. Policial tem família, parceiro. Policial também tem
medo de morrer.

Nogueira (2010) afirma que em grande parte dos filmes a introdução demarca
os elementos mais importantes da trama, diante disso a fala de Capitão Nascimento
ganha maior relevo. A partir desta fala, nota-se se não um dilema, pelo menos uma

9 Expressão utilizada para se referir a pessoas não bem vistas pelos traficantes na favela, a
expressão “policial é alemão” é utilizada no filme Tropa de Elite, dita pelo líder do tráfico no filme,
Baiano.
10 Metralhadoras.

11 Metralhadora com grande poder de fogo.


33

tensão entre o “mundo pessoal” — ou a vida fora do trabalho — e o mundo da atividade


profissional dos policiais, mas há outros elementos que devem ser destacados.
Nascimento parece deixar claro que a favela é o espaço da criminalidade e, mais
importante que os bandidos, têm mais capacidade bélica do que a própria polícia,
dessa forma, o policial, que teria a função de combater o crime (mas a partir da
violência também), se sente acuado diante das armas dos seus opositores – teme
morrer e deixar a família desamparada – e acaba por fazer “vistas grossas” ou acordos
(corruptos, ilegais) com os bandidos. “É inocência achar que um policial vai subir a
favela só para fazer valer a lei.”
A prática policial é necessariamente situada, de modo que uma reflexão sobre
o fazer policial precisa considerar o contexto em que a instituição atua, mesmo que
seja uma sociedade representada, como no caso do filme. Na fala do Nascimento fica
implícito que o principal espaço de atuação por parte da polícia são as favelas, que
são abundantes, e estas são dominadas pelo crime (representação que abordarei com
mais detalhe nos capítulos 3 e 4). O contexto de atuação da polícia representada no
filme é de uma cidade que relega uma parte significativa dos cidadãos em moradias
irregulares, frutos de um processo de urbanização que marginaliza camadas mais
pobres desta sociedade.
Mesmo mencionado esse contexto, a pobreza, ou qualquer outro elemento de
caráter exterior ao indivíduo não é colocado como fator que motiva a constituição de
um personagem como bandido. No filme, ser um bandido ou não é uma
“predestinação” do indivíduo. Constrói-se uma representação da polícia como a que
atua somente contra o criminoso e ignora as condições sociais que originam o crime.
O enfoque é no crime e em um tipo de crime específico. Desse modo, se estabelece
um inimigo para o policial, o traficante, assim como o lugar que está o inimigo, a favela.
A representação da polícia no Tropa de Elite parte da concepção de que a polícia tem
como função o enfrentamento bélico do crime e que neste enfrentamento a polícia
está em ampla desvantagem.
O déficit bélico da polícia em relação ao tráfico, elemento recorrente nos três
filmes, é uma representação da falha em relação ao monopólio da violência por parte
do Estado. Mesmo que o monopólio nunca tenha sido absoluto (KANT DE LIMA, 2014)
a representação da favela se constrói a partir de criminosos que superam em grande
escala o poder de fogo da polícia, portanto, do Estado. Considerando que a soberania
34

bélica estatal permite o árbitro dos conflitos e que a força é o instrumento limite pelo
qual o Estado force o cumprimento das suas decisões judiciais; a defasagem do poder
da polícia em relação aos bandidos permite o livre desenvolvimento de uma ordem
territorial de caráter privado. (ZALUAR, 1996). Desse modo a paridade de poder, ou
inferioridade bélica, constrói a representação da favela como uma outra sociedade,
alheia os desígnios do Estado ou como um Estado paralelo ao oficial.
A polícia é representada como uma instituição que tem a função de combater
o crime e que não a cumpre porque os policiais se afastam do seu papel por medo de
morrer. A atividade policial, assim, é representada como uma atividade mortal e, diante
dessa situação, alguns policiais aceitarão cumprir seu dever (mesmo correndo o risco
de morrer) e outros não. A opção do policial nos três filmes aqui analisados, demarca
se ele é honesto ou corrupto. Ser honesto, então, parece significar, se atirar para a
morte.
Parece que aqui a vida pessoal molda a conduta profissional, podendo
impossibilitar que a atividade seja executada corretamente. De acordo com Poncioni
(2007), nas sociedades democráticas há um ideal de policial, que se refere àquele que
aplica a lei de modo imparcial, neutro, seguindo os procedimentos protocolares da
instituição. Nas palavras da autora:
entrelaçamento de dois modelos: o burocrático-militar e a (?) aplicação
da lei. Assim, o policial é um operador imparcial da aplicação da lei e
relaciona-se com os cidadãos profissionalmente, de forma neutra e
distante, cabendo-lhe cumprir os deveres oficiais e seguir os
procedimentos de rotina, independentemente de suas tendências
pessoais e a despeito das necessidades do público, que muitas vezes
não estritamente enquadradas pela lei. (PONCIONI, 2007, p. 23)

Nos filmes analisados, no entanto, percebe-se que a vida profissional dos


policiais é permeada por relações que não se limitam somente à organização da
polícia e às leis, e isso pode resultar em um conflito interno entre a vida profissional e
a pessoal do policial, como é representado na história do personagem Capitão
Nascimento do Tropa de Elite que é representado como um modelo de policial, mas
por conta de suas relações familiares muitas vezes opta por caminhos que não
estariam de acordo com as regras institucionais para atingir seus objetivos, como fica
claro na cena que será descrita abaixo.
No início do filme, Capitão Nascimento e outro policial do BOPE estão
escondidos, aguardando uma negociação ilegal entre traficantes e policiais
35

convencionais12. Nascimento opta por atirar em um dos traficantes, a fim de iniciar um


conflito entre as partes que negociavam ao invés de efetuar a prisão das partes
envolvidas. Na cena seguinte, como uma explicação por ter autorizado a morte dos
traficantes e policiais corruptos, Nascimento chega em casa e pensa, sentando ao pé
da cama onde está a sua mulher grávida, que dorme: “É cara... eu tenho que admitir
que estava ficando com pavio curto. E minha vida estava ficando cada vez mais
complicada.” Enquanto na primeira fala de Nascimento fica implícito que a vida familiar
afeta a vida profissional do policial no sentido de esse não combater o crime. No caso
do Nascimento, a vida pessoal o torna mais violento em relação aos criminosos. Na
primeira cena citada, no parágrafo está implícito que o procedimento mais correto
seria esperar que os policiais descessem da favela com o dinheiro da negociação,
pois haveria uma viatura do BOPE para realizar a prisão. As duas cenas compõem os
dois aspectos que atravessam o personagem, na primeira cena é apresentada o modo
de agir de Nascimento, na segunda há uma explicação da violência exacerbada do
personagem. A vida pessoal não somente tensiona a vida profissional do policial, mas
o faz ir de encontro à lei, revelando a representação da arbitrariedade como um
desrespeito à uma conduta não violenta que utiliza da força somente como resposta
(KANT DE LIMA, 2014).
A vida pessoal não tem como efeito somente um afastamento da função, mas
pode gerar um aumento da violência exercida pelo personagem. A vida pessoal
representa, necessariamente, um desequilíbrio, seja no sentido de tornar o policial
conivente com o crime, ou por fazê-lo abusar da força. No caso de Nascimento, o
policial extrapola os limites do poder legítimo, tornando-se um agente que, assim como
o traficante, dificulta o exercício democrático. O aspecto “anti-democrático” de
Nascimento se refere a um dos aspectos deste tipo de governo no qual o uso da força
por parte do Estado precisa advir de uma legitimidade dada pela lei e esta, por sua
vez, é fundada na população. Nos dois casos o policial sai da esfera da lei, das

12 Termo utilizado no filme para se referir à todos os policiais militares que não fazem parte
do BOPE.
36

decisões voltadas para a ordem pública e tomadas a partir de uma lei abstrata para
decisões contextuais e pessoais. A vida pessoal é representada como algo que
modifica o policial, tornando-o não um agente que visa o cumprimento das leis de um
Estado, mas um agente que é motivado primeiramente por interesses e situações
particulares.

FIGURA 1 - NASCIMENTO E SUA ESPOSA ROSANE – IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME TROPA DE


ELITE

A cena seguinte à chegada de Nascimento à sua casa é um diálogo entre ele


e sua esposa na cozinha do apartamento:
Nascimento: Dia
Rosane: Bom dia, meu bem [entregando uma xícara de café para
Nascimento]
Nascimento: Eu vou levar...
Rosane: Pera aí amor, eu boto a mesa para você...
Nascimento: Vou ter que sair agora, vou ter que chegar cedo no batalhão
Rosane: Mas Beto... cê chegou tarde ontem e tá saindo correndo agora.
Dormi muito mal a noite
Nascimento: E o neném? O neném tá bem?
Rosane: Tá bem, mas eu fico sempre te esperando, fico nervosa e ele acaba
sentindo. Já não ganhou peso na última vez
Nascimento: Você quer que eu faça o quê? Que eu pare de trabalhar?
Rosane: Se eu soubesse que você não ia sair eu não tinha engravidado
37

Nascimento: Tchau (dá um beijo na testa da esposa e sai do apartamento)

Depois disso, o ouvimos sua voz em off: “A guerra sempre cobra seu preço.
E quando preço fica alto demais é hora de pular fora.” Tanto o diálogo, quanto a última
fala, apresentam a tensão, ou o dilema, de Nascimento com o trabalho. Ter uma
relação satisfatória com a mulher, incluindo ter filhos, parecem ser incompatíveis com
a atividade profissional. A última fala ainda explicita que Nascimento vê a atividade
policial como uma guerra contra o crime. Tropa de Elite parece querer mostrar que
os policiais estão encerrados em um dilema difícil de ser solucionado. O ofício
entendido como atividade de guerra prejudica os vínculos familiares e esses mesmos
vínculos dificultam a profissão. Essa influência negativa da vida pessoal é
representada em Tropa de Elite quando o BOPE faz uma operação para prender
alguns traficantes e Capitão Nascimento não consegue agir adequadamente por medo
de morrer — e deixar a família desamparada — e ordena aos policiais que matem os
criminosos. O personagem explica em off o temor:

Pra mim estratégia só tem lógica se a operação tem sentido. A operação do


Papa era uma burrice. Numa situação normal eu só ia ficar puto, mas meu
filho ia nascer, eu não podia dar bobeira. Eu não queria morrer à toa. (Capítão
Nascimento em Tropa de Elite)

Como se percebe, Tropa de Elite, a partir de Capitão Nascimento, vincula a


corrupção policial ao medo da morte. Capitão Nascimento, diferentemente da maioria
dos policiais apresentados no filme, é representado como honesto e, diante do medo
da morte, ao invés de fazer acordos, ele usa a violência contra os criminosos. Isso
delimita a estrutura representada no filme: criminosos com grande poderio bélico,
possibilidade constante de morte dos policiais, tensão entre a atividade profissional e
vida pessoal. Nessa estrutura, o filme acaba apresentando um espectro de opções ao
policial que vai da honestidade — combate ao crime, via guerra — à corrupção —
conivência com o crime, ainda que por medo.

2.2 TONS DE CINZA NA DICOTOMIA POLICIAL HONESTO E CORRUPTO

Os três filmes apresentam diversos tipos de policiais com diferentes graus de


aproximação com a sociedade, diferentes níveis de violência, relações com o crime e
38

capacidade. Para fins analíticos escolhi quatro personagens representativos desses


tipos de policiais presentes nos filmes, iniciando com um personagem colocado como
corrupto e terminando com um perfil mais próximo de um policial ideal honesto. Esses
dois extremos são a principal diferença entre os policiais nas representações dos
filmes analisados.
Cabeção, do Cidade de Deus, não apresenta relações de amizade ou
companheirismo com os moradores, mas dentro dos policiais analisados, neste
subcapítulo, ele é o único que tem um envolvimento constante com diversos tipos de
crime, todos envolvendo algum favelado, seja como vítima ou como parte do negócio.
O personagem também não é apresentado como um policial preparado para o
confronto militar. Mas isso não inibe um comportamento violento, pois diversas de
suas ações e falas são agressivas, sendo que das seis cenas que participa, em três
ele se envolve com um assassinato.
Cabeção é um personagem que representa uma idealização do policial
corrupto, presente, em alguma medida, nos três filmes. Sobretudo em Tropa de Elite,
a corrupção é motivada tanto por questões morais do personagem, quanto por
elementos da organização policial. Neste filme, Capitão Nascimento “justifica” a
corrupção policial pelo medo da morte, como dito no último subcapítulo, assim como
a baixa preparação militar e baixa remuneração. Os elementos da organização policial
que influenciam os policiais a serem corruptos não são apresentados no Cidade de
Deus, o que faz Cabeção ser representado como um policial corrupto somente por
uma escolha moral. A ênfase em uma moralidade corrupta aparece em algumas falas
do do personagem como: “roubar preto e ladrão é crime?”, obrigar Buscapé a entrar
na viatura e roubar o dinheiro do menino. O julgamento moral é uma marca presente
nos três filmes quanto a atuação da polícia, mesmo Tropa de Elite que busca discutir
mais os elementos estruturais da corrupção. Isso caminha junto com a representação
de moralizar o crime, vendo sempre como um elemento referente ao indivíduo,
desconsiderando aspectos estruturais da organização e da socidade.
Os três filmes representam o policial corrupto como um personagem que tem
uma proximidade utilitária com a favela. Cabeção representa essa visão utilitarista na
qual não apresenta relações mais próximas com o favelado e suas incursões ao
espaço, assim como as suas interações, são motivadas para um ganho econômico.
Nesse sentido, a polícia corrupta não se contrapõe ao crime, como coloca Kant de
39

Lima (1997), mas faz parte do mundo do crime, não somente como a polícia é
categorizada por Feltran (2002), uma organização que está em constante contato com
os criminosos, mas de ser uma organização criminosa em si. Porém, diferente dos
traficantes, a polícia corrupta não constitui na favela uma relação de domínio territorial,
e sim se aproxima de uma organização que permite ou repreende a criminalidade
dependendo do seu arbítrio.
Carlinhos, do Alemão, é o policial com maior envolvimento com a favela,
relação ressaltada pelo mesmo em diversas falas, e essa proximidade o levou a
namorar uma moradora. No filme se subentende a participação do policial em
pequenos crimes com a finalidade de se infiltrar no grupo do líder do tráfico. Carlinhos,
dos policiais analisados, é o menos violento, agindo com agressividade somente como
uma forma de reação, e essa violência é restrita aos policiais e traficantes. A
capacidade militar do personagem é baixa, o que é representado nas duas cenas em
que confronta os traficantes: quando tenta negociar com Senegal a liberação de
Letícia, ele se coloca em risco e precisa que Branco o resgate; e na cena da invasão
da pizzaria é o segundo policial a morrer, apresentando pouca resistência aos
traficantes.
Considerando os policiais analisados, Carlinhos é o único que durante toda o
filme se mantém como um personagem não violento contra os moradores e também
é o único que mantém um vínculo afetivo forte com a favela e os favelados. Essa
relação é demonstrada na cena em que conversa com os policiais:
... me fodi pra caralho aqui dentro para quê? Pra quando isto aqui for ocupado
vir um soldado de merda como você vir escrachar a comunidade? Dar tapa
na cara de trabalhador?

O personagem lança luz sobre a representação de que quanto mais laços


afetivos o policial constitui com a favela, menos violento ele é com a mesma. Não
basta haver uma proximidade utilitária, como é construída pelos policiais corruptos,
assim como as intervenções de caráter militar são incapazes de constituir um laço
afetivo com a comunidade. No entanto, há uma particularidade do Carlinhos quanto à
proximidade afetiva que ele criou com a favela. Ele não era reconhecido como policial,
pois estava disfarçado. Os outros policiais analisados, quando eram reconhecidos
como policiais, pendiam ou para uma relação que via na favela um meio para se obter
dinheiro ilegalmente ou um espaço para combater o crime. A representação criada é
40

que o policial pode constituir laços com a favela e seus moradores, desde que não
seja reconhecida sua profissão. Na representação que se cria sobre Carlinhos é
colocada que o ofício não altera drasticamente o comportamento do indivíduo de
modo que ele possa manipular a identidade oculta. O personagem constitui a
representação de que as relações tensas entre favela e policial não se referem a
questões entre um espaço e um indivíduo específico, mas entre a representação de
um espaço e uma função - uma profissão específica. O personagem reforça um
elemento que vai ser explorado no capítulo 4, que é da favela como um espaço do
crime. Pois o policial, quando reconhecido socialmente como tal, só pode se relacionar
com a favela considerando o crime, seja combatendo ou obtendo lucro com as
atividades criminosas.
Matias, do Tropa de Elite, é o personagem que mais se modifica dentre os
policiais analisados. No começo do filme, antes de entrar para o BOPE, ele tem
ligações mais próximas com a favela, representada na sua participação na ONG e na
proximidade com o garoto Romerito, além de ter grande envolvimento com a faculdade
e namorar uma colega de sala, Maria. Esta proximidade com a favela e com o restante
da sociedade é colocada com constância pelo Capitão Nascimento como algo que
aproxima o policial do crime ou, como é o caso de Matias, uma omissão em relação
aos crimes. O personagem não apresenta sinais de ser violento, assim como tem
baixa capacidade militar.
Após o treinamento do BOPE todos esses elementos se modificam. Matias
abandona a faculdade, Maria termina o namoro com ele e o personagem não mantém
mais contato com Romerito e sai da ONG. As interações de maior afetividade com a
favela são substituídas por interações violentas, sobretudo de tortura com os
moradores. A violência torna-se uma marca do policial, que passa a interagir de forma
agressiva com todos os outros personagens, o que reflete na sua extrema intolerância
a alguns crimes, como o tráfico de drogas. Ocorre também um aumento na sua
capacidade militar.
Matias no começo do filme apresenta várias semelhanças com Carlinhos do
Alemão, baixa violência, grande contato com a sociedade, pouco preparo militar.
Assim como Carlinhos, a proximidade do personagem com a sociedade, ou o mundo
fora da organização policial, é vista com desconfiança. Carlinhos durante quase todo
o filme é acusado de envolvimento com o crime e Matias é julgado por Nascimento,
41

em off, em diversas cenas pela sua relação estreita com a sociedade. Duas cenas,
em específico, exemplificam a visão que Nascimento tem das relações próximas que
Matias tem com a sociedade: Matias fazendo trabalho em uma ONG na favela se
omite em relação aos colegas fumando maconha e ele escondendo a profissão para
a namorada. A primeira cena Nascimento recrimina a ida à paisana de Matias à favela,
subentendo que o policial só pode ir para este espaço para o combate ao crime, e
quando Matias se omite em relação aos colegas fumando maconha, Nascimento diz
em off:
Matias não devia estar ali. Mas já que estava tinha que dar o flagrante e atuar
os maconheiros no artigo 12 da lei 6368. O cara tinha acabado de entrar pra
faculdade e já estava aliviando os colegas.

O começo da fala já marca que o policial não pode frequentar a favela, ao


menos como paisano (“Matias não devia estar ali”) e a última frase relaciona a entrada
do personagem em uma faculdade, um espaço fora da organização policial, com a
omissão ao crime. A representação construída é da incompatibilidade entre a
manutenção de uma vida pessoal fora da organização policial e um bom exercício da
atividade policial, na visão do Nascimento, que explicarei adiante que é a
representação do policial como um soldado. A relação que o policial deveria manter
com a favela, na visão do soldado, é de um espaço para reprimir o crime. Assim como
o policial deve exercer sua atividade mesmo quando não está trabalhando, ou seja, é
representado que um “bom policial” está em serviço a todo instante. Subentendido a
isso, está a ideia da sociedade, ou o mundo fora da organização policial, como
potencialmente criminosa e que a entrada do policial nas relações sociais não-policiais
o afasta da sua função (SILVA, 2011).
A segunda cena que Nascimento recrimina a postura de Matias tem a seguinte
fala do primeiro: “Matias era um cara dividido e no BOPE, nego assim não se cria.” A
divisão a que Nascimento se refere é entre a vida paisana e a vida policial, entendido
como um soldado contra o crime. A entrada de Matias no Batalhão de Operação
Especiais acompanha o término de vínculos sociais paisanos (faculdade e namorada)
e, sobretudo, a perda de contato afetivo com a favela. Constrói-se a representação do
policial que combate o crime como um agente distante das relações sociais paisanas,
sobretudo, da favela vista como espaço do crime. Soma-se à essa representação a
necessidade de um comportamento violento, refratário por completo ao crime e com
42

alta capacidade militar. O conflito apontado no subcapítulo anterior entre vida pessoal
e vida profissional é respondido no Tropa de Elite quando o policial abdica das
relações pessoais e afetivas e incorpora uma moral policial na sua vida cotidiana. A
destituição destes laços como critério para se tornar um policial do BOPE é vista em
uma das últimas cenas do filme: ex-colegas de faculdade de Matias fazem uma
marcha em protesto à morte de uma colega morta pelo tráfico, Matias vai à passeata
e agride seus colegas fisicamente e verbalmente, pois um deles provocou a morte de
Neto. Em off Nascimento diz: “O Matias não estava somente vingando a morte do
amigo, ele estava se transformando em um policial de verdade.”
A representação do policial no filme Tropa de Elite se refere não somente a
uma atuação profissional militarizada, mas também pelo cumprimento de uma série
de restrições e regras na vida pessoal (não frequentar espaços com potencial
criminoso, como a favela e a faculdade, ter uma postura violenta no seu cotidiano).
Como consequência, a profissão é utilizada para exercer poder sobre a sociedade
civil, ordená-la e usá-la estrategicamente tendo como base seu poder militar e jurídico.
De modo que não se nega a vida pessoal, mas busca-se destruição das possíveis
contradições entre vida pessoal e profissional por meio de uma imersão do
personagem na organização policial e um afastamento da vida paisana.
Considerando somente os personagens policiais analisados, Neto é o mais
distante de relações sociais que não sejam dentro da organização policial. Somente
uma cena ele conversa com um favelado, Romerito, mas o faz no lugar de Matias, que
não poderia encontrar o menino. Com exceção desta cena, não há qualquer interação
de Neto com qualquer outro personagem que não seja policial ou criminoso. A
capacidade militar do personagem é a que mais modifica ao longo do filme. No início,
Neto é representada com uma baixa estratégia de guerra, explicada por sua
impulsividade, que aparece em dois momentos distintos: no início do filme, antes de
ingressar no BOPE, quando ele e Matias tentam resgatar Fábio no baile funk, e
provocam um tiroteio entre policiais corruptos e traficantes; no treinamento do BOPE,
quando o grupo de concorrentes ao batalhão faz uma operação na favela, Neto se
coloca em situação de perigo para matar um traficante. A violência é uma marca do
personagem, pois mesmo que não esteja em uma operação policial, o personagem
constantemente é apresentado em alguma atividade que remete à violência
43

(brincando com uma arma ou dando soco em um saco de boxe) e o seu tom de voz
invariavelmente é agressivo.
Neto é o personagem que se enquadra na categoria de soldado, um policial
que apresenta mais características militares do que civis no seu comportamento,
postura e modo de compreender a sociedade (SILVA, 2011). O seu isolamento da
vida paisana, que não se modifica ao longo do filme, é uma das principais
características do personagem e que permite seu comportamento rígido e violento
com os criminosos. O soldado é caracterizado por somente conseguir resolver
embates e crimes a partir do uso da violência, característica priorizada em batalhões
que visam o combate armado do crime, como o BOPE. A única característica que não
tornava Neto um soldado ideal é a sua impulsividade, ou seja, sua falta de capacidade
de controle da sua raiva em favor da estratégia militar. No entanto, Nascimento
modifica o policial e o treina para que ele transforme a violência já presente em uma
violência controlada e racional. A violência não é repugnada nesta representação, mas
é algo que deve ser direcionada para o combate ao crime, de modo que fatores
passionais são tidos como características necessárias para a constituição de um bom
policial. Considerando que as paixões de um indivíduo se referem às características
do mesmo, de encontro às situações específicas, ela está de encontro às atitudes de
caráter racional e universal. A característica desejável ao policial é uma característica
contrária à democracia.
Nos filmes, a representação do policial-soldado carrega consigo o aspecto de
um profissional honesto, no sentido de não se envolver com os bandidos. O Tropa de
Elite é o único dos três filmes que aborda um batalhão específico para policiais desse
tipo, que escolhem entrar para a guerra contra o crime. A relevância de um batalhão
especializado é a representação da polícia convencional como estruturalmente
corrupta e que se omite ao crime. Em Cidade de Deus e Alemão o batalhão específico
não está na representação, subentendendo que os policias fazem parte da polícia
convencional (os batalhões que não visam um treinamento específico de guerra ao
crime) e nos dois filmes os policiais se relacionam de algum modo com uma atividade
criminosa ou a ela se omitem.
A representação do soldado como o mais próximo do ideal de policial honesto
carrega a concepção da necessidade de violência contra os criminosos, vistos como
inimigos. A violência policial do soldado entra na categoria de abuso da força, pois os
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policiais utilizam de diversos modos de tortura, assim como buscam necessariamente


a eliminação do criminoso. Nessa representação policial e “juiz” estão encarnados na
mesma personagem. Isso leva a uma discrepância entre a lei e o fazer policial,
representação reforçada em algumas cenas do filme, como na entrada de Matias na
faculdade. Nascimento o considera ingênuo por achar que direito tinha algo a ver com
trabalhar na polícia. A visão do Nascimento mostra uma dissociação entre lei e fazer
policial, ou seja, a polícia é autônoma em relação a lei, não sendo esta organização
uma garantia do cumprimento da mesma. Isso é simbolicamente representado no
funeral de Neto, no qual o Capitão Nascimento coloca a bandeira do BOPE sobre a
bandeira nacional. Não somente polícia e Estado de direito são esferas autônomas,
como o policial considera que as normas da polícia são prioridade em relação às leis
do Estado de direito.
A dissociação entre lei e atividade policial torna o ato de matar algo recorrente
e naturalizado para os soldados, como é apresentado em diversas cenas do Tropa de
Elite e que é visto no comportamento de personagens de outros filmes que se
enquadram na categoria soldado: Touro do Cidade de Deus e Branco do Alemão.
Desse modo, a representação do policial mais associado ao honesto é aquele que
busca a eliminação dos criminosos em uma guerra contra o crime, reflexo da
representação do senso comum “do público e da polícia a ideia do perigo iminente e
da necessidade mobilização máximo de esforços para sobrepujar aquilo que provoca
tal circunstância. ” (PONCIONI, p. 23, 2007). A resolução de conflitos e manutenção
de uma ordem social se resume, para o policial-soldado, na intervenção de caráter
bélico onde predomina uma disputa militar contra o crime, sobretudo, os traficantes. É
representado uma polícia “honesta”, mas que ao negligenciar a manutenção da
ordem, focando só em uma estratégia reativa, torna-se menos efetiva (PONCIONI, p.
24, 2007), tanto que a criminalidade não é resolvida em nenhum dos filmes, só elimina
alguns criminosos. Isso é algo que Kant de Lima (1997) coloca como fruto de uma
sociedade desigual, pois neste contexto a polícia não é incumbida da garantia da lei,
mas de identificar conflito e suprimí-los de modo que sua legitimidade se ancora no
que “deseja o Estado para a sociedade, não ao que a sociedade deseja para si
mesma. ” (KANT DE LIMA, p. 82, 1997). Impera uma concepção autoritária do
emprego da polícia (KANT DE LIMA, 1997). Não é coincidência que o modelo
colocado como a polícia honesta é o BOPE, um batalhão que tem um treinamento
45

generalizado para o confronto e, por isto, considera que acabar com o crime é acabar
com os criminosos (KANT DE LIMA, 1997).

2.3 ARBÍTRIO POLICIAL E CORRUPÇÃO INSTITUCIONAL

Os estudos sobre polícia com frequência se debruçam sobre a arbitrariedade


policial, a margem de ação que o policial tem no seu ofício em relação à constituição
e os procedimentos padrões de procedimento na sua atividade. Em Cidade de Deus
não se aborda as leis do Estado e as normas da polícia; Em Tropa de Elite a lei (de
proibição do uso de drogas) é citada como motivo para repreender o crime somente
em uma cena, e as normas da organização policial de combate ao crime e
manutenção da ordem não são generalizadas, mas constituídas pelos policiais de
cada batalhão; e em Alemão as leis não são consideradas, as normas da organização
são mencionadas em somente uma cena e a alocação dos policiais do filme a um
batalhão é subentendida, mas não há relação de controle entre o batalhão e os
policiais infiltrados.
A ausência da representação de leis escritas nos filmes reforça a
arbitrariedade policial, pois, assim, elas se tornam objeto de negociação ou de arbítrio
pessoal (ZALUAR, 1996), como no caso dos filmes aqui analisados, nos quais os
policiais são representados sempre como arbitrários, seja porque são corruptos (aliás,
a corrupção é vista como um elemento institucional da polícia), seja porque usam a
violência em desacordo com as normas. A violência quase generalizada será tratada
no próximo tópico, pois esta se relaciona intimamente com a interação entre os
policiais e os moradores da favela.
Considerando a distinção feita por Costa & Lima (2014) entre instituições e
organizações, no qual

“as organizações têm por objetivo a realização de determinadas ações de


interesse social, política ou econômico através da coordenação de certas
habilidade e estratégias. Já as instituições são costumes e práticas sociais,
estabelecidos por normas ou costumes, que se perpetuam no tempo. As
organizações desenvolvem uma série de práticas buscando responder aos
desafios e problemas que se apresentam.” (COSTA & LIMA, p.485, 2014)

As práticas de corrupção representadas são uma instituição da polícia e não


uma característica da organização policial, pois os filmes não apresentam elementos
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suficientes para definir a organização policial como corrupta, mas as ações corruptas
continuadas dos policiais podem ser categorizadas como institucionais, se
estendendo no tempo (Cidade de Deus), possuindo um alcance amplo na organização
(Alemão e Tropa de Elite) e tendo uma articulação relativamente estável (Tropa de
Elite).
A polícia é uma organização que visa a regulação da ordem na sociedade,
sendo potencialmente presente em diversos setores da vida cotidiana. A função do
policial é garantir o funcionamento social, inibindo o exercício de atividades que
possam prejudicar ilegalmente outros cidadãos (KANT DE LIMA, 2014). Aproveitando
dessa imersão da polícia em diversos setores, assim como do monopólio da força pelo
Estado, em Tropa de Elite aparece a criação do “sistema”, uma série de práticas de
corrupção policiais envolvendo vários grupos da sociedade. As cenas que escolhi para
analisar apresentam um panorama da corrupção policial representada nos filmes,
existente tanto na relação da polícia com diferentes setores da sociedade, quanto
dentro da organização.
Em Tropa de Elite e Cidade de Deus os policiais ganham dinheiro em diversas
atividades ilegais, como o tráfico ou legais, como oficinas mecânicas, mas, por vezes,
com condutas ilegais, como a burla de algumas leis. Quando Neto conhece o
funcionamento do “sistema”, em Tropa de Elite, são apresentadas tanto as relações
de corrupção entre setores da economia formal e os policiais, como dentro da própria
instituição e um conflito entre policiais corruptos para decidir quem obteria os lucros
das negociações ilegais. O principal elemento da representação da corrupção policial
no Tropa de Elite, como nos outros filmes, é o manuseio e a particularização da
atividade policial tendo fins econômicos e individuais. Assim, a polícia deixa de ser
uma organização estatal e universal (KANT DE LIMA, 1997) que atende os cidadãos
em seus direitos e deveres e passa a ser uma organização econômica que atende
determinadas pessoas em suas necessidades específicas, mediante pagamento
(ilegal).
A corrupção policial vem tanto por parte da polícia como de cidadãos que
também não acreditam em uma aplicação universal da justiça, ou seja, em valores
democráticos (ADORNO & DIAS, 2014). Usando do seu monopólio da força, a polícia
atende as necessidades particulares, podendo ou não “cumprir a lei”, no sentido de
repressão do crime e não do caráter universal das leis. O “sistema”, então, tem
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potencial para estar em toda a sociedade e se configura como uma forma privada de
resolução de conflitos (ADORNO & DIAS, 2014) que concorre com a segurança
estatal. Ou seja, de dentro de uma organização do Estado surge uma instituição fruto
da crise de legitimidade da democracia como modelo de resolução de conflitos
(ADORNO & DIAS, 2014).
O “sistema”, no entanto, não é um bloco, ou seja, há disputas internas pelo seu
controle. Aprofundando o que é inicialmente colocado em Cidade de Deus como
amplamente presente na polícia, Tropa de Elite afirma que é algo uniforme na polícia
convencional, mas que os policiais corruptos têm que disputar pelo seu espaço no
“sistema”. A disputa é resolvida tanto pela hierarquia dentro da instituição, de modo
que as patentes mais altas têm privilégio também na prática da corrupção, como uma
proteção organizacional para praticá-la e, no limite, o assassinato de concorrentes que
atrapalham o lucro dos policiais nas patentes mais altas.
A corrupção aparece no filme como uma modificação da funcionalidade da
organização policial para atender as demandas da corrupção e sua manutenção.
Matias é alocado no departamento de inteligência do batalhão e faz um relatório que
demonstrava as falhas no policiamento. Seu superior ordena que o policial adultere
os dados para não gerar cobranças de seus superiores. Em off, Nascimento explica:
“A polícia depende do sistema e o sistema trabalha para resolver os problemas do
sistema.”. A cena revela os elementos já citados: conhecimento do exercício correto
da polícia, mas seu não cumprimento por motivações individuais. Há ainda outros
elementos importantes desta cena que serão analisados abaixo.
Em primeiro lugar, em Tropa de Elite, assim como em Alemão é mencionada
uma relação hierárquica dentro da organização policial, mas ao contrário do primeiro,
esta hierarquia não força a obediência da função policial, mas motiva os policiais
corruptos a não cumprir sua função. Devido à hierarquia os dados são alterados, o
que revela que nos filmes a polícia é representada como corrupta e arbitrária, sendo
que o policial mais próximo das atividades da rua lida com as situações de forma
distanciada das normas corretas de operação policial (SILVA, 2011). O policial da rua
utiliza da sua posição e do desconhecimento de policiais de altas patentes dos
acontecimentos para a prática da corrupção.
O segundo ponto é a hierarquia como motor de corrupção dos policiais de
patente mais baixa. Na cena sugere-se que o policial, mesmo visto como honesto, vai
48

adulterar os dados, beneficiando o “sistema”, devido à hierarquia institucional. Isso


reforça a ideia de que a corrupção é estrutural e institucionalizada na organização
policial. O “sistema” é representado como algo exterior ao policial, que é obrigado a
se corromper, passivamente (se omitindo) ou ativamente.
A fala do Capitão Nascimento aponta para dois outros elementos importantes:
“a polícia depende do sistema” e “o sistema trabalha para resolver os problemas do
sistema.” Como se vê, para ele, a corrupção é parte do funcionamento da polícia
convencional, o modo como isso opera é mais bem representado em outra cena do
mesmo filme. Neto é colocado como supervisor da oficina de carros do quartel, e ao
relatar a falta de peças para o conserto dos veículos é ignorado pelo seu superior e
aconselhado por seus colegas a conseguir o dinheiro para a compra dos itens faltantes
através do “sistema”. Na cena, a dependência da polícia não é somente por um
interesse dos policiais em obter dinheiro por meio de ações ilegais, mas a organização
para funcionar precisa do “sistema”. A polícia é modificada pela corrupção nas
atividades exercidas pelos policiais, assim como sucateia a parte material da
organização, e a mesma só pode ser recuperada utilizando dos mecanismos da
corrupção.A segunda parte da fala revela que o “auxílio” do “sistema” à organização
policial é um elemento secundário, pois a estrutura da instituição busca se
retroalimentar e se preservar.
O fato de Neto ser obrigado a repor as peças com o dinheiro da corrupção
mostra que o “sistema” leva os policiais para a corrupção e que qualquer tentativa de
dissolução é repreendida pelos superiores corruptos. Como dito por Nascimento: “na
polícia a hierarquia protege os corruptos.” Assim, o “sistema” modifica a priorização
de funções da organização, que deixa de ser voltada para a sociedade e se torna uma
organização voltada para si, construindo a representação da polícia como organização
avessa à democracia, já que confunde a função pública com a função privada.
(ZALUAR, 1996)
Um exemplo da proteção aos policiais corruptos está em uma cena na qual
Neto delata uma tentativa de suborno e seu superior o impede de prosseguir na
denúncia. De acordo com Alba Zaluar (1996), esse fenômeno é parte de uma questão
da democracia moderna em que há uma divisão social entre os que mandam e os que
obedecem, o que possibilita a corrupção e o uso abusivo do poder conferido a algumas
funções. Assim, a corrupção policial é parte de uma tendência da própria democracia.
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De modo que o “sistema” altera a atividade policial em sua essência, mas usa de sua
estrutura para se manter. O “sistema” tem uma capacidade de neutralizar qualquer
forma de destruição, o que é possível ser feito é apenas alterar os policiais que se
beneficiam dele. A possibilidade do uso da força pelos policiais impede que civis, e
policiais de patentes mais baixas, sejam capazes de se opor a situações de corrupção
e violência perpetradas pelos policiais. Isto faz parte da segunda face do Estado, a
primeira de servir a população e a outra de controle e domínio dos subalternos
(ZALUAR, 1996), assim o Estado nos filmes é representado somente como instância
do controle e do poder policial.
Há uma naturalização da corrupção na polícia convencional, pois a estrutura
na qual ela se baseia é permissiva e as práticas corruptas continuamente reiteradas
criam a impressão de serem inerentes a uma organização (COSTA & LIMA, 2014).
Os conflitos no primeiro terço do filme Alemão se baseiam na possibilidade de
corrupção por parte de algum dos policiais, corrupção que teria levado à descoberta
da identidade dos policiais e à perseguição empreendida pelos traficantes. Há a
representação de que qualquer policial pode ser corrupto devido às características da
organização, mas porque ser corrupto é fruto da decisão individual, há também
constante desconfiança entre policiais, pois um sempre vê o outro como um corrupto
em potencial. O que reafirma a ideia de que a própria atividade da polícia convencional
leva à corrupção, pois esta fica em contato mais direto com a sociedade civil e esta é
representada permeada por relações perpassadas por crimes e infrações. O policial
em contato, nessa representação, em algum momento se omitiria ou beneficiaria com
o crime. A matriz desta representação é da sociedade civil como origem do crime, o
que segundo Zaluar (1984) vem de uma incompatibilidade entre a moralidade comum
da população e uma lei que não vem das relações constituídas da mesma população,
mas é externa em grande medida a mesma.

2.4 A TENSÃO ENTRE POLÍCIA E FAVELA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE


GUERRA

Nos três filmes aqui analisados, as intervenções da polícia na favela


aparentam, em um primeiro momento, ser esporádicas ou, ao menos, não serem uma
presença cotidiana, o que construiria uma representação da polícia que não realiza
50

sua função: a de fazer “cumprir empiricamente as regras de utilização dos espaços


públicos.” (KANT DE LIMA, 1997, p.77). No entanto, as formas como a polícia se faz
presente na favela se modificam em cada filme, mas todas ela é constante em algum
ponto. Em Cidade de Deus a polícia tem uma presença diferente nas duas épocas em
que o filme se passa (Anos 1960 até início dos Anos 1980), no primeiro a polícia se
faz presente no espaço atendendo a ocorrências ou procurando criminosos; nos Anos
1970 e 1980 a polícia intervém na favela para negociar com o tráfico ou, em uma
rápida e única cena, revistar um morador. Em Tropa de Elite o policial, em serviço, vai
à favela para negociar com o tráfico ou para o combate ao crime. Em Alemão a
presença policial é cotidiana, mas eles não são reconhecidos como tal pela
comunidade, pois estão infiltrados à paisana e, o que parece sugerir que não há a
presença ostensiva da polícia na favela. Neste subcapítulo abordarei as relações que
a polícia mantém com a favela e o favelado, e busco demonstrar que a polícia tem
presença constante, mesmo que indireta, e esta presença é sempre conflitiva.
No filme Alemão é explorada de forma mais explícita a tensão entre o policial
e os moradores da favela. O início do filme apresenta o cotidiano da favela, o que
inclui interações entre trabalhadores e entre trabalhadores e bandidos. O cotidiano do
espaço é alterado pela descoberta de policiais alii infiltrados, pois, a partir de então,
os traficantes impedem a comunicação dos moradores do lugar com o restante da
cidade e o livre tráfego dos moradores no Morro do Alemão. Desse modo, há duas
situações distintas no espaço: uma sem a polícia, o cotidiano normal da favela; e uma
com o policial, a favela tem seu cotidiano alterado, transformando em um espaço
militarizado (BURGOS, 2002).
As relações entre policial e favela ganham maior complexificação quando são
analisadas algumas cenas dos três filmes. Nesse filme, a favela pode ter seu cotidiano
alterado quando o policial é socialmente reconhecido como tal, assim a identidade
profissional do policial não inibe necessariamente suas relações com a favela,
somente quando este é visto como um combatente ao crime. Na iminência de invasão
da polícia, Playboy se questiona se os policiais não continuariam aceitando o “arrego”
(propina para os policiais permitirem as atividades criminosas). O pensamento do
traficante subentende que é uma prática comum, assim como em Tropa de Elite a
viatura do comandante do batalhão da PM cobrava rotineiramente a propina. A
organização policial pode ser presente na favela, desde que sua presença seja
51

negociada com os criminosos. Ao passo que Silva (2011), coloca o espaço público
como campo de atuação da polícia, na favela o que seria o espaço público não o é,
pois a favela não é representada como um espaço público, mas um território do tráfico.
Assim, a representação dos filmes coloca a favela como um espaço que a atuação
policial não é dada, mas sim um ponto de tensão. A polícia pode se apresentar na
favela desde que conivente com o crime, caso contrário sua presença implica em
guerra. Neste sentido a representação dos filmes ganha caráter dualista: o policial,
reconhecido socialmente como tal, está na favela como parte do mundo do crime ou
para eliminar militarmente os criminosos.
A seguinte sequência apresenta as possíveis consequências da ida de um
policial à uma favela. Em um apartamento, Neto brinca com uma arma enquanto
Matias tenta estudar, mas não consegue se concentrar devido ao barulho da arma:

Matias: Pô, para com esta merda!


Neto: Pô, para de estudar também. Vão dar uma volta
Matias: Vai sair com o carro amanhã?
Neto: Pra que tu quer meu carro?
Matias: Vou lá no Morro dos Prazeres
Neto: Tu tá maluco? O que tu vai fazer na favela?
Matias: Pessoal da faculdade marcou trabalho numa ONG lá dentro. Tem que
ir
Neto: Pô, tu é policial, não pode ir na favela não, nego te mata lá dentro. Faz
esta porra sozinho, dá um jeito.
Matias: Fica tranquilo, ninguém na faculdade sabe que eu sou policial
Neto: Olha lá, hein?!

Aqui policial é representado como um personagem estranho à favela. Nota-se


que há, para o policial, uma divisão entre duas categorias de espaço na cidade: o que
não é favela, que vou chamar aqui de “asfalto” e a favela. No asfalto, o policial não
necessitaria ter comportamentos pré-determinados, na favela, diferentemente, há o
pressuposto do crime, inclusive contra os próprios policiais, que correm risco de estar
nesse espaço, mesmo (ou principalmente) quando não estão trabalhando. Essa
divisão espacial da cidade é reforçada na própria captação e edição das imagens em
Tropa de Elite e nos outros filmes aqui analisados. Nas cenas fora da favela o
enquadramento é mais próximo, e o foco está nas relações entre os personagens e
não no espaço, enquanto as cenas na favela costumam enquadrar o espaço e os
personagens. Dentro da linguagem cinematográfica (NOGUEIRA, 2010) isto induz à
52

ideia de que o espaço tem importância sobre as ações dos personagens, o que fica
explícito nos filmes aqui analisados.
A percepção da favela como um lugar do crime é uma representação comum
entre os personagens policiais dos filmes aqui analisados. Essa representação vai ao
encontro da ideia proposta por Zaluar (1994), de uma “teoria da marginalidade” que
consiste em tomar os favelados como uma população sem consciência jurídica, com
fortes vínculos com a criminalidade e que, além de se opor, desrespeita a polícia. No
entanto, o modo de lidar com este espaço altera dependendo do personagem. Os
policiais que tomam a sua profissão como uma guerra contra o crime, veem a favela
como espaço para intervenção militar. Em Tropa de Elite, por exemplo, há uma cena
em que Matias, ao ser recriminado por Capitão Nascimento porque vai à paisana para
a favela, responde: “Mas eu vou subir armado, parceiro. E de farda preta” 13. A
representação construída é da impossibilidade de um policial visar o combate o crime
e desenvolver uma relação com a favela que não tenha caráter militar. Carlinhos, de
Alemão, é alvo de suspeitas por parte de seus colegas por ter contato íntimo com a
favela e seus moradores. Ou seja, a favela é vista como inimiga da polícia, exatamente
por ser representada como espaço do crime.
A representação fílmica acompanha a discussão de Kant de Lima (2014), que
afirma que o não envolvimento da polícia no cotidiano da favela, torna o policiamento
mais mortal para os moradores da favela e para o próprio policial. Em Cidade de Deus
e Tropa de Elite há morte na maioria das cenas que mostram a polícia na favela. Em
Alemão, quando os policiais infiltrados são descobertos, se tornam “jurados” de morte
pelos traficantes.

13 A farda preta é o uniforme do policial do BOPE.


53

FIGURA 2 - MATIAS SOBE A FAVELA, COMO PAISANO, ENQUANTO O CAPITÃO NASCIMENTO,


IMPLICITAMENTE O RECRIMINA POR ISSO. – IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME TROPA
DE ELITE

A tensão por estar no espaço da favela é mantida mesmo no caso dos policiais
corruptos, ainda que de forma diferente em relação ao policial que guerreia contra o
crime. Em Cidade de Deus a polícia, personificada no personagem Cabeção, é
representada em grande parte como corrupta. Em uma cena curta, na qual Buscapé
em off explica como funciona o tráfico de drogas na favela, o policial solta dois
traficantes em troca de dinheiro. A cena representa a favela e o tráfico como parte do
“sistema” para o policial corrupto.
A representação do policial corrupto no tráfico é de um personagem que
decide quais traficantes poderão ou não continuar no tráfico. Como será discutido no
capítulo 3, as relações de dominação do traficante sobre os demais moradores da
favela são feitas pelo uso ostensivo da força, representada pelo porte de armas
(ZALUAR, 1985) e estas são vendidas pela polícia para os criminosos. Nos três filmes
são apresentadas negociações ou alusões a policiais que vendem armas para o
tráfico. A polícia corrupta é representada nesses filmes como um obstáculo financeiro
para os traficantes, já que eles precisam pagar aos policiais para operarem seu
comércio, mas os policiais também auxiliam no controle dos traficantes sobre a favela
fornecendo armamento para os bandidos. Em Tropa de Elite, o conflito em potencial
é representado se dá a partir do confronto armado entre policiais corruptos e
54

traficantes após Neto ter matado um policial. O laço econômico que se cria entre os
policiais corruptos e os traficantes não os torna parte de um mesmo grupo. É comum
que uma das partes rompa o trato.
Em Cidade de Deus, a ideia que se passa é que os bandidos têm vantagem
na relação com a polícia, exatamente porque têm mais armas. Isso fica claro na cena
em que Cabeção busca intimidar Zé Pequeno para que ele pague pela compra das
armas, mas é repelido pelo traficante e seu grupo devido ao seu poderio bélico. Em
uma cena posterior, os policiais prendem Zé Pequeno e o soltam para que ele pague
pela compra das armas. A principal ferramenta de ambos os lados para manter as
relações de troca é o poderio bélico, mas, nos filmes, os traficantes aparecem sempre
como tendo maior poder, e, daí, mais controle para negociar a corrupção.
A partir do que foi dito, pode-se pensar que a favela é representada nos filmes
investigados como um quisto urbano, definido por Adorno & Dias (2014) como:

territórios onde o Estado não dispõe do monopólio do exercício da


violência física legítima; o uso abusivo e arbitrário da violência por parte
da polícia como forma habitual de repressão aos crimes; a corrupção
das autoridades encarregada da aplicação da lei e da manutenção da
ordem, com consequências do ponto de vista da confiança dos
cidadãos em relação à lei e à Justiça (ADORNO & DIAS, 2014, p. 196)

A favela é vista como um espaço inóspito para o policial e ele é um


personagem estranho a ela. A falta de legitimidade do Estado na favela torna seus
agentes não uma força do Estado, mas um grupo armado que se impõe por meio da
força. Via de regra, as ações policiais na favela são representadas sempre como fruto
da arbitrariedade do policial, não se diferindo por completo dos traficantes,
aparecendo como um grupo rival e não como uma força de repressão ao crime. Este
elemento reforça a representação de uma polícia distanciada da moradia e da justiça
da população, pois se afasta das leis constituídas pela mesma população (ZALUAR,
1996).
Nos filmes analisados, o favelado é visto pelos policiais como um grupo
homogêneo, despojado do status de sujeito de direito e da proteção policial, situação
semelhante ao que Kant de Lima (2014) aponta em suas pesquisas. Essa
representação se junta a representação do policial “honesto” como um indivíduo que
atua de forma militar na favela e se afasta de uma normatização estatal de atuação
contra o crime. As duas representações constroem uma polícia que compreende
55

algumas pessoas como “não-cidadãos” e que pode ocorrer interações com as


mesmas fora do âmbito da legalidade. Desse modo, o uso da violência se baseia em
uma visão de que o controle social nos bolsões da miséria só é possível por meio de
ações militarizadas e de violência institucional, sendo a polícia representada como
mecanismo opressor (ADORNO & DIAS, 2014). A polícia que combate o crime é
representada nos filmes como necessariamente truculenta com os moradores e letal
com os criminosos.
A truculência com os moradores se baseia na percepção dos pobres
(favelados) como “classe perigosa” (ZALUAR, 1994) “sem moral”, e a favela como
espaço de famílias segregadas e lideradas por marginas (ZALUAR, 1994). Por isso,
seus moradores seriam passíveis de ter seus direitos civis violados (ADORNO & DIAS,
2014). Somado à representação da polícia “honesta” como a que promove incursões
à favela somente para eliminar os criminosos, e a representação do policial como livre
de amarras, a fim de atingir seus objetivos, o trabalhador se transforma em um meio
para o policial chegar ao bandido, neutralizá-lo ou eliminá-lo. Um exemplo está no final
de Alemão, quando policiais e traficantes negociam usando os moradores como
moeda de troca, desumanizando-os.
A anulação dos direitos civis dos moradores auxilia essa visão de
desumanização dos personagens e constrói uma representação de passividade e
resignação quando os moradores não realizam protestos formais contra as incursões
policias. Neste sentido a anulação dos direitos civis é dupla, da integridade e do direito
de protesto contra um Estado opressor. A favela, na visão policial representada, torna-
se um espaço à parte das lógicas presentes na “cidade formal”. É vista como moradia
de estrangeiros no próprio país e a polícia é um grupo que potencializa esta
“estrangeirização” forçada dos favelados.
Por tudo isso, a polícia não é vista como uma instituição que detêm um poder
legítimo, mas como uma instituição violenta, cujas práticas não se alicerçam no direito
(ADORNO & DIAS, 2014). Ou seja, há um desvio na função da polícia, pois, na favela,
ela não cumpre as regras de utilização dos espaços públicos (KANT DE LIMA, 1997).
Isto é visível em Cidade de Deus, nos anos 60, quando os policiais, para encontrar os
rapazes do Trio Ternura, interrogam de forma truculenta e prendem os moradores
que, mesmo assim, não contam o que sabem, o que revela que eles não conferem
legitimidade a esta instituição. Com isso, os policiais representados nos filmes
56

percebem a favela como um espaço que possui uma “legislação” própria, totalmente
alheia ao Estado de direito, que contribui (pela omissão) com a prática do crime. Na
visão dos policias, a favela é o lugar do crime, seja cometida por parte dos traficantes
ou dos policiais. Sendo corrupta ou “honesta”, a polícia não toma ações por completo
legítimas, pois estas se baseiam na vontade policial e não na coletividade que legitima
um Estado (KANT DE LIMA, 1997).
A percepção da favela como um espaço do crime e propício à violência física
dá origem à sua representação como espaço de guerra para os policiais. Enfatizo a
noção de guerra para a polícia porque tanto em Alemão quanto em Tropa de Elite e,
de um modo específico (que será explicitado no capítulo 4) em Cidade de Deus, a
favela sem os policiais “honestos” tende a apresentar um cotidiano sem conflitos
militarizados, pois a polícia honesta entrará em conflitos com os traficantes tornando
a favela um espaço de guerra. Em Alemão, por exemplo, há uma coexistência pacífica
entre moradores e traficantes até que a polícia aparece como personagem do espaço.
Em Tropa de Elite em todas as cenas em que aparecem policiais honestos na favela,
há conflito armado. A fala em off de Capitão Nascimento sobre Neto e Matias em
determinada ação realizada na favela revela o que está sendo dito:
No Rio de Janeiro o policial tem três opções: ou se corrompe, ou se omite ou
vai para guerra. Naquela noite Neto e Matias fizeram a mesma escolha que
eu tinha feito há dez anos atrás: eles foram para a guerra.

A frase do Capitão Nascimento ganha relevo considerando o filme como um


todo, pois Neto e Matias presenciam outras atividades criminosas em outros espaços
e eles intervêm nestas atividades, mas isto não é representado no filme como “ir para
a guerra”, porque o espaço não é a favela, por si só, espaço do crime. Esta percepção
é tão arraigada que nessa mesma sequência o BOPE inicia uma operação de resgate
dos policiais, diversos traficantes são mortos e seus corpos são abandonados na
favela. Esse espaço é tão fortemente representado como local de guerra, que as
consequências dos conflitos ocorridos ali não são problematizadas pelos policiais, que
ignoram como os moradores vão lidar com os corpos mortos. Neste sentido a polícia
guerreira perpetua uma violência institucional contra a favela, algo típico de países
onde o reconhecimento de direitos não é generalizado (ZALUAR, 1996)
57

FIGURA 3 - CORPO DEIXADO NA FAVELA PELOS POLICIAIS DO BOPE – IMAGEM EXTRAÍDA DO


FILME TROPA DE ELITE

Exatamente porque percebem a favela como do crime, para os policiais


qualquer morador pode ser perigoso. Um exemplo está em Alemão em que a
moradora Mariana é feita de refém pelos policiais, pois temiam que esta os
denunciasse aos traficantes, e no cárcere sofreu diversas agressões.
Revela-se, nesse comportamento, dos policiais infiltrados um traço da
organização policial que molda seu profissional
para um comportamento legalista, numa versão burocrática-militar,
com forte relevo ao combate ao crime [tendo] uma quase total ausência
de preparo na área da atividade preventiva, com enfoque na
negociação de conflitos e no relacionamento direto com o cidadão.
(PONCIONI, 2007, p. 25)

Os últimos eventos do filme Tropa de Elite são a sequência de cenas em que


os policiais do BOPE invadem uma favela em busca do líder do tráfico, Baiano. O filme
termina com a morte de Baiano. A expressão “invade” denota a relação conflituosa
que permeia a relação da polícia com o espaço da favela, percebida como morada do
crime. A presença da polícia “honesta” nesse espaço é sempre violenta, não há
possibilidade para uma negociação jurídica e civil. O crime deve ser exterminado e
isso parece só ser possível, em Tropa de Elite por meio da violência e da morte. É a
ideia de que o tráfico pudesse ter fim com a morte dos traficantes.
58

3 OS DONOS DO MORRO: A REPRESENTAÇÃO DO


CRIMINOSO
59

3 OS DONOS DO MORRO: A REPRESENTAÇÃO DO BANDIDO

Os três filmes analisados focam o narcotráfico como principal crime ocorrido


na favela, os demais crimes, via de regra, são representados como decorrentes do
tráfico. A exceção está em Cidade de Deus, que, no início do filme — que representa
o início da ocupação do bairro, no ano de 1960, focaliza o grupo de assaltantes, “Trio
Ternura”. Utilizo a denominação de bandido para me referir aos personagens que
estão inseridos de forma mais aprofundada no mundo do crime que, para Feltran
(2008), designa diferentes negócios ilícitos, desde pequenos furtos até o narcotráfico.
Ao pesquisar o Conjunto Habitacional Cidade de Deus, Alba Zaluar (1985) aponta que
lá bandido era categoria nativa usada em contraposição a trabalhador. O mundo do
crime não é isolado, compartilha fronteiras com outros “mundos” (por exemplo,
trabalho, religião e família), mas quanto mais um indivíduo adentra no mundo do crime,
mais se distancia desses outros mundos e de suas interações, assumindo um
comportamento típico do mundo do crime e visando este mundo.
A entrada no mundo do crime vai ocorrendo gradativamente. No início é
comum que o indivíduo tenha laços mais forte com os outros mundos, esses laços
vão se fragilizando, até que ele se insira totalmente no mundo do crime, se
relacionando majoritariamente com criminosos e adotando um modo de vida típico
desse mundo (FELTRAN, 2008).

3.1 BANDIDO OU TRABLHADOR? A REPRESENTAÇÃO DO BANDIDO EM


CONTRAPOSIÇÃO A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHADOR

A representação dos favelados como bandidos ou trabalhadores perpassa os


três filmes, mas para esta análise, focalizarei a história de Zé Pequeno e Buscapé de
Cidade de Deus, e serão utilizadas as histórias de outros traficantes importantes do
filme, Bené e Mané Galinha, mas sem aprofundá-las. Ao fim do subcapítulo discuto
algumas particularidades presentes nas histórias de Baiano de Tropa de Elite e de
Playboy e Senegal de Alemão.
60

A história de Buscapé e Zé Pequeno se inicia nos no ano de 1960, o início do


Conjunto habitacional Cidade de Deus, quando ambos têm por volta de 10 anos de
idade. Zé Pequeno era chamado de Dadinho e seu amigo mais próximo era Bené. Os
dois garotos admiravam e acompanhavam o Trio Ternura nos crimes, sendo que um
dos integrantes do trio era irmão de Bené. Buscapé também tinha um irmão que fazia
parte deste grupo de bandidos, mas não participava dos crimes, assim como seu
amigo Barbantinho.
O contexto social dos personagens principais é o mesmo: a favela e a
proximidade com o mundo do crime. Essa pequena distância entre os mundos legal e
ilegal, no entanto, não determina a sua identidade na favela. De acordo com Zaluar
(1985; 1994; 1995), a identidade do trabalhador se constrói em oposição à do bandido.
No filme Cidade de Deus, nota-se que o foco sobre as duas personagens constrói e
enfatiza narrativamente esta oposição, não apenas por meio dos atos e relações dos
personagens, mas pelos próprios elementos cinematográficos, como o
desenvolvimento das histórias em paralelo e o corte entre planos que focam estes
personagens individualmente.
É possível afirmar ainda que não só em Cidade de Deus, mas também nos
demais filmes analisados, há a representação de que ser bandido ou trabalhador - é
quase um destino. Zé Pequeno, desde quando era Dadinho é apresentado no filme
como destinado a ser bandido. Buscapé, diferentemente, seria naturalmente bom
caráter e trabalhador. Essa representação revela como as identidades são pensadas
de modo essencializado e “fatalista”. Desse modo, a proximidade entre o mundo legal
e ilegal, nos termos de Feltran (2008), não é utilizada para construir uma
representação dos condicionantes sociais na formação da identidade individual, mas
para representar a da identidade a partir de uma “essência” de bandido ou trabalhador.
A identidade nos filmes, então, é representada como “pronta”, resta apresentá-la ao
espectador. O cotidiano de Buscapé, no filme, seria o de uma “criança normal”, que
brinca com os amigos, conversa, vai para a escola. Considerando as duas crianças,
a atenção maior é dirigida a Dadinho, nos seus crimes com o Trio Ternura, uso
de drogas e assassinatos. Embora a favela não seja representada de forma
reducionista, a ênfase na atividade criminal em Cidade de Deus e nos demais filmes
revela não somente uma representação da favela como o espaço do crime, mas uma
visão exterior da violência urbana e da vida criminosa, na qual se isola os atos
61

violentos quase como únicos constitutivos da vida dos bandidos e os imputa como
necessário nas relações da favela (SILVA, 2004). A representação do filme se pauta
por uma “exotização” da favela.
Para Feltran (2008), a entrada no mundo do crime acontece paulatinamente,
acompanhada da saída, também aos poucos, do mundo legal. Em Cidade de Deus,
Dadinho é representado, desde a infância, como imerso no mundo do crime, pois
todas as personagens com quem se relaciona cotidianamente são deste mundo e,
talvez mais importante, ele não se relaciona com pessoas pertencentes o mundo legal,
seja na família, na escola ou na igreja. Ou seja, ele é representado como despojado
de laços sociais com o mundo legítimo — ou seja, com alta imersão no mundo do
crime, nos termos de Feltran (2008) — desde a infância.
A forma como é representada a infância das duas personagens já direciona o
espectador para a representação da sua vida adulta: Buscapé como trabalhador e
Dadinho como bandido. Buscapé afirma que não será policial nem bandido por medo
da violência, e Dadinho é descrito por Buscapé, o narrador da história, como uma
criança violenta e com uma inteligência voltada para o crime. Nas concepções
aparentemente opostas se mantém a semelhança de um cotidiano marcado pela
violência (SILVA, 2004), a diferença reside na forma como os personagens lidam
(com) e pensam (sobre) a a violência: se o trabalhador busca se afastar da mesma, o
bandido tem o poder de provocá-la e uma compreensão da realidade que visa esta
violência. O bandido tem o uso da força como princípio organizado de suas relações
sociais (ZALUAR, 1985, SILVA, 2004).
Buscapé, desde criança, sonha com a profissão de fotógrafo. Dadinho, por
outro lado, como narrado por Buscapé, já é predestinado ao sucesso no crime seu
sonho é se tornar o “dono do morro”. A relação entre o “presente” e o “futuro” dos
personagens parte de uma situação comum: a favela como espaço da violência
urbana. O desejo de Buscapé de seguir a profissão de fotógrafo surgiu ao ver um
fotógrafo registrando a morte de Cabeleira, o que aponta para dois elementos para
pensar a representação do trabalhador em Cidade de Deus. A primeira é do morador
como testemunha da violência na favela, o que será explorado no próximo capítulo, e
o segundo é a indiferença gerada no trabalhador em relação à morte dos bandidos.
Zaluar (1985) afirma que a sociabilidade marcada pela violência e a fatalidade do
mundo do crime distancia o trabalhador de uma relação afetiva com os bandidos, que
62

se tornam personagens em uma narrativa cotidiana no qual a morte é dada, vista como
certa (ZALUAR, 1995). Em Cidade de Deus, se Buscapé se relaciona com a violência
como testemunha, Dadinho, diferentemente, é agente dessa violência. A distinção
dele como bandido se assemelha à distinção que os trabalhadores fazem destes:
indivíduos que usam da força excessiva para realizar suas vontades (ZALUAR, 1985).
Embora as identidades sejam representadas no filme de forma essencializada,
também é possível notar a ideia de que favela propicia os meios para uma vida
criminosa. Assim, se para Buscapé, ser fotógrafo é um sonho pensado como
inatingível — ele se torna fotógrafo por acaso —, a carreira criminosa de Dadinho é
vista como dada e o seu sucesso não aparece como improvável. Persiste em Cidade
de Deus a representação (que data do início das favelas no Rio de Janeiro em 1920)
da favela como antro da marginalidade e como espaço fecundo par ao
desenvolvimento de atividades ilícitas (VALLADARES, 2005). A favela torna-se mais
o espaço do bandido, do que o espaço do trabalhador, de modo que o favelado
trabalhador tem na sua linha de horizonte o desejo de sair deste espaço que não lhe
pertence.
O trabalhador carrega consigo a representação da liberdade, ou seja, de um
sujeito que pode construir sua história, pois seus caminhos não são dados. O bandido
tem um caminho traçado já na sua infância, que é corroborado por todos os seus atos
e suas condições como pessoa: violento, inteligente e despojado de laços sociais.
Enquanto o caminho no mundo do crime é apresentado como único, não esquecendo
que nos filmes analisados o crime torna-se sinônimo de narcotráfico, o caminho no
mundo legal é diverso. Se o bandido argue para si o direito da liberdade suprema
(ZALUAR, 1995), nos filmes sua liberdade de escolha é limitada e seus atos são
encadeados em uma sequência determinística de causa e efeito previsíveis.
O paralelismo entre um personagem trabalhador e um bandido continua na
vida adulta dos dois personagens, no ano de 1970. Dadinho modifica seu nome para
Zé pequeno e torna-se o líder do tráfico por meio da morte de traficantes e roubo de
pontos de droga já existentes na Cidade de Deus. O personagem toma propriedade
de quase todos os pontos de droga, com exceção da “Boca do Cenoura”, pois o dono
era amigo de Bené. A pedido do amigo, Pequeno não mata o dono da “Boca dos
Apês”, mas o obriga a trabalhar para ele.
63

O gênio de Zé Pequeno surge pela segunda vez no filme. Num primeiro


momento sua inteligência criminal é direcionada para fora da favela e suas vítimas
não são criminosos, no segundo momento a ação é na favela e atinge os bandidos. A
passagem para a vida adulta é marcada pelo intenso envolvimento no mundo do
crime, o que permite a Zé Pequeno compreender as dinâmicas criminais e usá-las a
seu favor. A “essencialização” do bandido em Cidade de Deus ganha uma segunda
camada no sentido de colocar a vida criminosa como uma prática que possibilita o
personagem a aperfeiçoar-se (FELTRAN, 2008). Zaluar (1985) em seus estudos
verificou que a imersão no mundo do crime se inicia com uma revolta pelas condições
de trabalho precários oferecidos aos favelados, algo que não ocorre com Zé Pequeno,
que já não apresenta laços com o mundo legítimo desde sua infância, sendo
representando como um personagem “naturalmente” imerso no mundo do crime
(FELTRAN, 2014). Comparando ao primeiro momento que os laços de Dadinho com
o mundo legítimo eram inexistentes, ao menos na narrativa fílmica (sem família, sem
escola e sem amigos fora do mundo do crime).
Nos anos 1970/80, a imersão no mundo do crime afeta as relações internas a
este mundo, a trajetória do criminoso o faz ser violento também com outros bandidos
e companheiros de crime, e não apenas com pessoas do chamado mundo legal. Isso
implica em uma dissolução de laços no mundo legal, mas muitas vezes também no
mundo do crime, quando essa relação se restringem a outros como ele e são ligações
profissionais ou de rivalidade, ambos marcados por interações violentas (FELTRAN,
2008). Bené se mantém como a única pessoa com quem Zé Pequeno mantém um
laço afetivo. Bené é um bandido que ainda mantém uma moralidade para fora do
mundo do crime, se diferenciando do “bandido sanguinário” (ZALUAR, 1985). Na
infância, ao contrário de Dadinho, Bené tinha um vínculo familiar (Cabeleira), e não
estava presente no assalto ao caminhão de gás, na contagem de dinheiro e nem no
assalto ao motel. Embora pertença ao mundo do crime, não se pode dizer que Bené
perdeu todos os laços com o(s) outro(s) mundos.
Constrói-se nisso uma representação do mundo do crime em gradações de
imersão no qual os personagens se encaixam a partir de um distanciamento do mundo
legítimo e pelo uso da violência. Nessa gradação, considerando os três filmes, Zé
Pequeno se configura como um tipo ideal de criminoso, sem laços afetivos e sem
relações fora do mundo ilegal, o que gera uma falta de empatia com outros
64

personagens materializada pela violência constante. O tipo ideal de bandido se


configura como um bandido sanguinário, ou seja, aquele que atenta também contra a
vida do trabalhador (ZALUAR, 1985). A representação do bandido como moralmente
errado é baseada no alvo de seus crimes, não sendo uma regra universal de justiça,
pois a morte de outros bandidos pode gerar prestígio (ZALUAR, 1985).
No filme o crime não é julgado moralmente, mas sim quem o pratica,
revelando uma representação que estabelece uma distinção qualitativa entre
personagens a partir de uma ideia de “tipos humanos”. Nos filmes, assim como na
visão dos trabalhadores estudados por Zaluar (1985), a morte de outros bandidos não
implica em um julgamento moral, de modo que se constrói uma diferença de por qual
pessoa tem-se empatia. Relacionando com o que argumentarei no próximo
subcapítulo, do líder do tráfico como o parâmetro de justiça na favela, essa visão
compartilha uma compreensão da lei como particular. A representação da favela como
possuindo uma legislação própria e os filmes analisados corroboram, a partir de
elementos cinematográficos, com uma qualificação não universal entre as pessoas.
Assim, personagens como Bené e Mané Galinha de Cidade de Deus, Marcinho de
Tropa de Elite e Playboy de Alemão mesmo praticando diversos crimes não são
representados como bandidos sanguinários.
Bené especificamente funciona como uma “âncora” de Pequeno nos mundos
legítimos, um impeditivo do último de ingressar por completo no mundo do crime, não
à toa com a morte de Bené, a imersão de Pequeno na criminalidade é completa, com
ele atacando os trabalhadores. Mas este afundamento no mundo do crime se reverte
contra o personagem, pois gera um rival e uma guerra na qual ele acaba morto. As
relações entre mundo do crime e os mundos legítimos são apresentadas de forma
complexa. A imersão total do personagem no mundo do crime é, via de regra, fatal
(FELTRAN, 2014). Assim, a estadia do mesmo neste mundo nunca é algo permeado
pela paz e sim pelo conflito constante, não só do personagem como agente da lei,
outros criminosos e consigo para não ingressar por completo neste mundo, o que
aumentará os conflitos com potencial fatal. Com isso, a representação insere um
aspecto moralizante nas atitudes do criminoso, intimamente associada com sua falta
de vínculos com o mundo legítimo, no qual busca demarcar, mesmo que de modo
fluido, identidades de trabalhadores e de bandidos (ZALUAR, 1985)
65

Buscapé faz parte de um grupo de amigos que não se reconhecem como


moradores da favela. E sua vida tem dois dilemas principais: falta de dinheiro e a
virgindade. A virgindade ele não consegue perder nesta parte do filme, sendo que a
mulher que ele pretendia transar começou a namorar Bené. O emprego que Buscapé
conseguiu era enfadonho e ele foi demitido por justa causa, por suspeita de roubo.
Diante dos dois fracassos e vendo o sucesso econômico e pessoal que Zé Pequeno
e Bené conseguiram, Buscapé decide tornar-se criminoso. Buscapé e Barbantinho
tentam três vezes realizar um assalto: no ônibus falharam porque o trocador, morador
da Cidade de Deus, os reconheceu e eles simpatizaram com ele; na padaria Buscapé
se interessou sexualmente pela atendente e; em uma carona ele criou um laço de
amizade com o motorista, pois ele fumava maconha e escutava o mesmo tipo de
música que Buscapé.
Na história de Buscapé as relações também ganham importância na definição
de um personagem como bandido ou trabalhador, assim como revelam um quadro
mental da percepção do trabalhador sobre o bandido. O trabalhador constitui uma
visão particular do bandido tendo como base o contexto da favela e suas relações
diletantes com o mundo legítimo (ZALUAR, 1985). Não à toa, o personagem narra a
história da Cidade de Deus como uma história dos criminosos, há um misto de
encantamento pelo sucesso econômico e o poder que estes exercem junto a um medo
por eles representarem um perigo à vida em um contexto de sociabilidade violenta.
Diante deste quadro mental está a representação de uma vida na favela marcada por
uma sucessão de crises nos mundos legítimos (FELTRAN, 2014), algo representado
na trajetória de Buscapé com a perda dos laços de namoro e trabalho, o que o motiva
a tentar entrar no mundo do crime. A proximidade com esse mundo faz com que o
trabalhador veja o crime como um horizonte de possibilidade, como a favela possuísse
uma estrutura social para a formação de criminosos.
No caso de Buscapé, ao contrário de Pequeno, a crise motiva a entrada no
mundo do crime. Mas o personagem não consegue permanecer por dois motivos: pela
sua “essência” de trabalhador e pelos seus laços com o mundo legítimo (legal). O
primeiro assalto é frustrado por sua relação com os moradores da favela, o segundo
pelo seu interesse afetivo-sexual e o terceiro pela sua proximidade cultural com a
possível vítima. A permanência e o sucesso no mundo do crime são representados
66

como dependentes da falta de laços com outros mundos, a essência de trabalhador


não basta para manter um personagem como tal, caso de Mané Galinha.
Mané Galinha é apresentado como um trabalhador da Cidade de Deus, ex-
soldado do exército que tem emprego (que não o agrada), namorada e família. O
personagem é atacado em quatro momentos por Zé Pequeno, sendo que nas duas
últimas tem seu vínculo com a família e com a namorada rompidos. Em busca de
vingança se alia ao grupo de Cenoura, sob a condição de não matar inocentes, mas,
quando totalmente inserido no mundo do crime, esta regra perde validade para o
personagem e mesmo a vingança deixa de ser sua busca principal. Se Galinha e
Buscapé se assemelham no momento em que querem se aproximar do crime por
perceberem a vida de trabalhador como de otário. As trajetórias dos dois se diferem
quando Galinha mantém esta opção e Buscapé não se torna bandido. O Mané Galinha
do filme se assemelha ao Mané Galinha da vida real, ou aquele narrado pelos seus
contemporâneos por Alba Zaluar (1985), visto como uma pessoa que se torna um
bandido por ter sido injustiçado ao longo da sua vida.
Por que Buscapé não se firmou no mundo do crime, ao contrário de Mané
Galinha? Creio que as diferenças se concentram na (baixa) intensidade da perda dos
laços e na reinserção do personagem no mundo social legítimo. As relações que
Buscapé perde são secundárias, um interesse sexual e um emprego precário.
Galinha, por outro lado, perde um namoro duradouro e entes importantes da família,
devido às ações de Zé Pequeno. O rompimento dos laços é mais intenso, afetando
mais profundamente o personagem. No filme, isso é perceptível pela interpretação
dos atores/atrizes e tonalidade de luz utilizada para representar a tristeza de ambos:
as cores são claras para Buscapé e escuras para Mané Galinha.
67

Os dois personagens também têm posições muito distintas em relação a Zé


Pequeno: para Buscapé, Zé Pequeno é sinônimo de sucesso. Para Galinha, por outro
lado, Pequeno é a causa da sua melancolia. A vingança de Galinha é pelos seus laços
rompidos em uma posição social já estabelecida. O que o faz permanecer na
criminalidade, ao contrário de Buscapé, é possuir uma habilidade vantajosa no mundo
do crime, a capacidade militar. Soma-se a isto, o fato de que o personagem é
reinserido no mundo social dentro do mundo do crime, não mais como trabalhador,
mas como bandido. Sua capacidade militar o permite obter sucesso no mundo do
crime e paulatinamente incorporar as características deste mundo, enquanto Buscapé
é afastado por seus fracassos. A partir do momento em que o trabalhador consegue
algum sucesso, ele entra em uma lógica criminal, o “condomínio do diabo”, o prende
dentro de uma relação de vingança e disputa até a sua morte, tendo como base um
ethos de honra masculino (ZALUAR, 1985).
A representação construída para a entrada no mundo do crime em Cidade de
Deus considera tanto a “essência” do personagem, ou seja, o que ele é predestinado
a ser, como as habilidades adquiridas e os seus laços fora do mundo do crime. A
essência de trabalhador por si só não é capaz de manter um personagem como tal,
pois algumas situações podem “converte-lo” em bandido e, com isso, ele incorpora
valores e comportamentos do mundo do crime. Sendo que é necessário ter algo que
Buscapé não possui “disposição para matar” (ZALUAR, 1985), elemento que Galinha
possuía. O mesmo é válido para os personagens que têm uma “essência” de bandido,
mas aparentemente não possuem esta disposição, como é o caso do Bené.
Buscapé descreve Bené e Zé Pequeno da seguinte forma:
68

“Bené era o bandido mais responsa da Cidade de Deus, distribuía


maconha, pagava cerveja... Zé Pequeno era o contrário, só
pensava em trabalho e sempre tava arrumando uma desculpa para
tomar a boca do Cenoura.”

No filme, Bené impede diversos assassinatos por parte do Zé Pequeno e


gradativamente se afasta do mundo do crime, no plano cultural (usando roupas de
pessoas de fora da favela) e nas relações sociais (criando laços de amizade e
namorando com pessoas que não eram da favela). A namorada o motiva a sair dali e
ele realiza uma festa para se despedir da favela.
Assim como um dos motivos para Buscapé não se tornar criminoso está ligado
aos laços sociais que ele mantinha para fora daquele mundo, a saída de Bené deste
mundo é motivada pelos laços que ele já mantinha fora deste mundo e que foram
reforçados ao longo do filme. Esses vínculos o tornavam menos violento que Zé
Pequeno e, ao manter relações exteriores não só ao mundo do crime, mas também à
favela, o personagem busca sair da criminalidade. A representação criminosa ganha
outra camada se compararmos Bené e Zé Pequeno, o último centrava suas ações na
favela e no mundo do crime, enquanto o primeiro busca constituir laços com os
mundos legais. Para quem “nasce bandido” os laços sociais da favela não bastam
para fazê-lo sair do mundo do crime por completo, são necessários laços fora da
favela para isto, subentendido se mantém a representação da favela como espaço
criminoso.
A dissolução dos laços sociais dos criminosos é uma temática recorrente nos
outros dois filmes analisados, mesmo que a partir de perspectivas distintas. No filme
Alemão, o líder do tráfico, Playboy, teve que decidir se seguiria como traficante ou se
continuaria com sua namorada e filho. Senegal, a pedido de Playboy, agride e usa
sua irmã como isca para atrair Carlinhos, inclusive ameaçando matá-la. Se em Cidade
de Deus a perda de laços promove uma entrada no mundo criminal, em Alemão o
bandido precisa optar entre seus laços com o mundo legítimo ou um aprofundamento
no mundo do crime. Enquanto o caráter determinístico em Cidade de Deus é
ressaltado, em Alemão advém de uma escolha do personagem. Assim como Bené
do Cidade de Deus é possível para os traficantes de Alemão confluírem entre o mundo
legal e o ilegal, no entanto, a maior imersão no mundo do crime pressupõe a saída
dos mundos legais.
69

Ao longo do filme, Playboy apresenta dúvidas sobre sua decisão pelo crime,
momentos em que Senegal o repreende e o motiva a continuar no mundo ilegal. A
polarização é feita explicitamente pelas relações que o personagem constrói no
mundo do crime, de modo que não são os atos criminosos que fazem um personagem
perder seus laços com personagens do mundo legítimo, mas outros personagens
pertencentes ao mundo do crime que promovem a dissolução destes laços. Mas este
distanciamento com o restante da sociedade não é completo, mas pragmático. O
criminoso pode ter acesso a alguns benefícios desta sociedade por meio do poder
adquirido pelo crime, como dito por Senegal a Playboy “Nós tá pesadão, o que tu
quiser tu tem. Ouro, mulher...” A entrada no mundo do crime é construída por um
distanciamento de algumas relações possíveis com o restante da sociedade, mas que
buscam auferir algo desta sociedade, especificamente elementos que na visão dos
criminosos podem ser colocados como consumo (ZALUAR, 1995).
A perspectiva do crime como meio para obter melhorias no mundo legítimo não
se percebe Cidade de Deus, pois tanto Zé Pequeno e Mané Galinha são
representados como criminosos que almejam o poder dentro do mundo criminoso. No
caso de Buscapé, o desejo de ser bandido se refere a ter uma vida melhor no mundo
legal, mas ele não se torna bandido. A ausência de uma busca concreta pelos
benefícios que o poder pode conferir ao personagem no mundo legítimo revela a
representação do bandido como imerso totalmente no mundo do crime. Como afirma
Feltran (2008), o crime cria uma lógica que se aparta do mundo legítimo e se torna o
interesse primário do indivíduo.
Em Tropa de Elite o criminoso que recebe maior atenção é Baiano, líder do
tráfico no Morro dos Prazeres e que é o único personagem identificado como bandido
que possui família — mulher e filho. Pode-se dizer que ele representa a ideia de que
a inserção do indivíduo no mundo do crime não implica em uma saída total dos
mundos legítimos. No entanto, algumas ações criminosas específicas podem levar à
ruptura dos vínculos familiares do criminoso, há algumas regras dentro do mundo do
crime que, se respeitada, permite compartilhar os laços sociais. Em Tropa de Elite, a
dissolução dos laços familiares do criminoso ocorre somente após o assassinato de
um policial do BOPE, dando a entender que um policial convencional não alteraria a
dinâmica presente no cotidiano do traficante. Mas esta dissolução ocorre pela
eminência da morte do bandido, neste sentido, em Tropa de Elite se constrói a
70

representação de maior possibilidade de convivência entre mundo legítimo e mundo


do crime ou, como aponta Feltran (2012) em seus estudos, o criminoso pode manter
seus laços com o mundo legítimo, mesmo imerso no mundo do crime. Em Alemão,
Playboy só precisou optar entre o mundo do crime e a família quando assumiu o
comando do tráfico na favela. Em Cidade de Deus Bené demonstra que até certo
ponto de imersão no mundo legítimo é possível que este seja harmonizado com o
mundo do crime.
Ao contrário dos estudos de Zaluar (1985) para quem a distinção entre
trabalhador e bandido para os favelados não implica em um julgamento moral, nos
filmes esse aspecto é ressaltado com alguma frequência, o que vai ao encontro da
ideia essencialista da própria identidade pessoal. Determinadas pessoas “nasceriam”
para o crime. Apesar disso, nos três filmes, percebe-se também que é possível a um
bandido participar do mundo do crime e do mundo legítimo. Mas, se essa transição
pode ser representada como em um continuum, como no caso de Bené (Cidade de
Deus) e Baiano (Tropa de Elite), ou de forma dicotômica, como no caso do filme
Alemão. Mas nos três filmes a entrada no mundo do crime altera a maneira como o
personagem se relaciona com quem não é bandido.
Nesse sentido, os três filmes corroboram para a construção da violência urbana
como parte de uma sociabilidade violenta presente nas grandes cidades (SILVA,
2004), mas de forma mais profunda nas favelas. Cidade de Deus e os dois outros
filmes são parte de uma representação da sociabilidade violenta na qual a violência
urbana é usada como narrativa para explicar os motivos de ações, assim como fazer
avaliações morais do que é compreendida como uma forma de vida (SILVA, 2004).
Silva deixa claro que a violência urbana atinge as cidades como um todo, mas afirma
que as favelas são atingidas por ela de forma mais direta, “... provavelmente devido à
forma urbana típica desses locais, em geral muito densos e com traçado viário
precário, dificultando o acesso de quem não está familiarizado com eles e, portanto,
favorecendo o controle pelos agentes que lograrem estabelecer-se neles”. (SILVA,
71

2004, p. 78). Os filmes acabam por apresentar a favela como “o outro” 14 e o


espectador é colocado como um observador curioso de uma forma de vida exótica
caracterizada pelas relações marcadas pelo uso da força excessiva (SILVA, 2004).

3.2 OS DONOS DO MORRO: O LÍDER DO TRÁFICO COMO PROPRIETÁRIO DA


FAVELA

Os três filmes analisados representam a favela como território do crime devido


à dificuldade do Estado e demais mecanismos formais de controle atuarem no espaço
(o que foi discutido no capítulo anterior), o que torna o espaço socialmente
desorganizado ou tendo uma organização social alheia ao colocado nas democracias
ocidentais modernas (SILVA & MARINHO, 2014). Essa representação ocorre
juntamente com a representação de moradores tolerantes com práticas criminosas
que gera oportunidades e estímulos sociais que privilegiam um estilo de vida criminoso
(SILVA & MARINHO, 2014). O contexto de desorganização social, consequência da
falta de controle formal por parte do Estado, permite aos criminosos tomarem o
território para si a partir da força. Constituindo uma distância física e cultural da favela
com o restante da cidade a partir de um aspecto da dinâmica urbana e de dinâmicas
criminais que usam de um poderio bélico. O poderio bélico não garante somente o
controle interno da favela, mas a possibilidade de negociação dos criminosos com os
representantes do Estado, os policiais, por meio da corrupção. Ocorre a produção,
nesta representação, de uma localidade (ZILLI, 2014) criminosa, ou seja, torna a
favela um espaço constituído de associações estáveis e histórias comuns a partir do
crime (ZILLI, 2014)
A representação da favela como espaço da criminalidade, especificamente do
tráfico de drogas, é alicerçada em uma visão dos grupos criminosos que se estruturam
a partir de uma hierarquia militar e, sobretudo, funcional, tendo o líder do tráfico como
centro. A centralidade do “dono da boca” é representada na cena inicial de Tropa de

14 Sobre a ideia da favela como “o outro” ver Zaluar (1984).


72

Elite, quando o líder do tráfico no baile gerencia os outros criminosos que fazem a
segurança da favela. Quando os policiais corruptos entram no baile para receber a
propina, o líder destaca um traficante para efetuar o pagamento e dois para escoltá-
lo. Esta cena representa a estrutura militar do tráfico — um líder com amplo poder
sobre seus subordinados e que gerencia e organiza os demais traficantes. Essa
estrutura militar do tráfico está presente nos três filmes). As resoluções cotidianas ou
eventuais, passam pelo crivo do líder e, via de regra, suas ordens são seguidas sem
questionamento. Dentro dessa estrutura há duas funções básicas: verificar a entrada
e saída de pessoas da favela; e confronto militar.
A representação da hierarquia do tráfico é demarcada pelas fronteiras da
favela, onde as regras do tráfico têm influência não somente sobre os criminosos, mas
também sobre trabalhadores e policiais. Dentro da favela, o tráfico é representando
como permeando todas as atividades, definindo o tráfego de pessoas e mercadorias.
A cena citada acima representa também o vínculo (e a dependência mútua) que se
cria entre a estrutura militar e econômica do tráfico de drogas, pois o comércio da
droga é defendido pelos aparatos militares do traficante e estes são munidos pelo
dinheiro vindo do tráfico.
A hierarquia econômica e funcional do narcotráfico é resumida em Cidade de
Deus por Buscapé:

... o tráfico tem até plano de carreira, os garotos menores começam a


trabalhar como aviãozinho, recebe uma boa grana para levar e trazer
refrigerante, mandar recados, este tipo de coisa. Depois, eles passam para
olheiro quando a polícia aparece, a pipa desce do céu e todo mundo sai
saindo. De olheiro o cara passa pra vapor vendendo droga na favela. Pintou
sujeira, o vapor tem que evaporar rapidinho. O soldado é um cargo mais
responsa, ele fica na contenção. Se o cara for esperto e bom de conta pode
virar gerente da boca, o gerente é o braço direito do patrão.

A representação é do tráfico como uma carreira iniciada na infância e sem


cometer atos criminosos, a progressão no tráfico acompanha as atividades criminosas
realizadas pelo indivíduo, que vai de conivência com o delito até funções diretamente
envolvidas com o tráfico. Dentro dessa estrutura não há possibilidade do líder ser
deposto, tampouco de um traficante criar sua própria boca, pois como será explicado
mais à frente, os filmes representam o tráfico de forma homogênea.
73

As situações em que há troca de mando da boca são excepcionais. Em


Cidade de Deus isso é explicitado na história da Boca dos Apês. Dona Zélia, uma
moradora que começa a vender drogas, contrata alguns jovens para fazer a revenda.
Com um deles, Grande, ela tem envolvimento afetivo-sexual. Ao tornar-se adulto,
Grande toma a boca de Zélia e a expulsa. O vapor mais próximo de Grande, Cenoura,
torna-se o novo dono, quando o primeiro vai preso. Cenoura dá a boca de presente
para Neguinho, pois a considerava amaldiçoada. A representação dos movimentos
dentro da hierarquia do tráfico se dá tanto a partir da ideia de mérito do personagem,
como relações de afeto e interesse, além das necessidades estritas ao mundo do
crime. A ascensão para o posto de líder do tráfico acontece por conflito violento
(guerra entre traficantes) ou por acaso (prisão ou desistência do dono). Ao mesmo
tempo em que se representa, dentro do cotidiano do tráfico, a posição de “patrão”
como relativamente estável, as relações dentro de um grupo criminoso não se mantêm
pacíficas por longos períodos, apresentando fluidez e uma manutenção por interesses
de caráter situacional.
A fala de Buscapé e a história da “boca dos apês” jogam luz somente sobre
os aspectos funcionais e econômicos do tráfico, mas, como foi discutido no tópico
anterior, deve se considerar também as mudanças nas ligações do criminoso com o
mundo legal, de modo que a subida na hierarquia do tráfico é uma descida e eventual
abandono dos outros mundos. Assim como está implícito na fala de Buscapé um
aprendizado técnico e um reforço simbólico dos atos criminosos pelos pares,
legitimando estas ações (ZILLI, 2014). Comparando isto com o modo como é
apresentada a vida na favela, virtualmente sem qualquer atividade econômica para
fora do mundo do crime (o que será explorado no próximo capítulo), o morador vê no
crime a única possibilidade de ascensão econômica e de valorização de suas
características individuais, com recompensas rápidas e diretas. A falta de trabalho, ou
precariedade dos trabalhos disponíveis, auxiliam a representação do crime como uma
saída possível para o favelado. A representação da favela como um espaço sem
possibilidades de empregos formais é reforçada no sucesso profissional de Buscapé,
que só consegue realizar seu sonho ao buscar empregos fora da favela.
Arepresentação dos grupos criminosos nos filmes se aproxima ao que Zilli
(2014) define como grupos delinquentes, que têm como uma das caraterísticas uma
questão identitária — os grupos vistos como instâncias de socialização, lócus de
74

compartilhamento de valores e representações simbólicas — e o conflito, pois os


valores do grupo, em geral se baseiam na violência, que constitui a própria identidade
do grupo (ZILLI, 2014). Esta normatização violenta é introjetada, e respaldada, pelos
criminosos na medida em que há um sistema normativo mutuamente compartilhado
entre os membros. Para Zilli (2014), os grupos criminosos se enquadram em uma
subcultura delinquente (ZILLI, 2014), na qual não se tem uma percepção puramente
racional e econômica do fazer criminoso, mas há uma conformação moral deste fazer.
É possível afirmar que os filmes representam dessa maneira os personagens
criminosos.
Há nuances das relações que se constroem internamente, que variam da
obediência, aparentemente total, às regras, até as desobediências à hierarquia, que
surgem como frutos da individualidade. Em Cidade de Deus, por exemplo, Bené
abandona o tráfico a contragosto de Zé Pequeno; em Alemão, Senegal confronta os
policiais infiltrados, em busca de vingança, e não informa sua ação para Playboy, pois
este não autorizaria a invasão da pizzaria com a Mariana como refém. A semelhança
entre estes dois personagens reside em aspectos dos roteiros de ambos os filmes,
pois somente esses dois traficantes não-líderes têm uma construção de personagem
mais complexa, na qual desejos e motivações são exploradas, assim como outros
vínculos sociais que não são restritos ao líder.
Caso se considere que esses personagens são os únicos que defrontam de
fato o líder do tráfico por serem os únicos traficantes complexos (NOGUEIRA, 2010)
além do líder, de modo que se aproximam mais do que o cinema compreende como
uma pessoa, uma análise possível seria que as características individuais dos
personagens o motivam à rebelião. Indo por esta linha de raciocínio, o embate se
refere a diferentes visões de mundo que Bené e Senegal têm em relação a Zé
Pequeno e Playboy, respectivamente. Bené almejava uma saída do mundo do crime
ou, ao menos, uma confluência maior entre este mundo e os mundos legítimos,
diferentemente de Zé Pequeno, cujas ações eram todas direcionadas ao mundo do
crime. Senegal, ao contrário, buscava uma imersão completa no mundo do crime e
rejeitava as buscas de Playboy por retornar seus vínculos com o mundo da família.
Nos dois casos, o líder do tráfico não é despojado de sua posição, mas acontecem
ações importantes na dinâmica do grupo sem que ele controle. A negação, mesmo
que momentânea, da hierarquia se dá com duas concepções distintas do que fazer
75

em uma determinada situação e o critério de seleção deixa de ser a hierarquia e passa


a ser a vontade de uma das partes.
Em Tropa de Elite há um exemplo das punições dentro do mundo do crime.
Nascimento e seu batalhão, em uma operação, surpreendem alguns traficantes e os
imobilizam, terminada a ação, o capitão libera o fogueteiro (responsável por avisar aos
outros traficantes da chegada de policiais), sabendo que ele seria morto por seu
superior.A “jurisdição” do crime se pauta por punições severas que violentam
fisicamente quem transgrediu as normas do líder. Estas se enquadram na ideia de
que os grupos criminosos seriam agentes de socialização, que conformam
identidades individuais e coletivas dentro de uma lógica violenta. A perversão da
liberdade (ZALUAR, 1996), que consiste no bandido que se sobrepõe sobre os demais
pela força e não aceita o mesmo com ele, é algo restrito aos líderes do tráfico. De
modo que o poder do líder do tráfico consiste em exercer sua vontade em detrimento
da vontade de qualquer favelado, seja ele bandido ou trabalhador.
A representação do líder do tráfico como um personagem de poder amplo
sobre os demais traficantes se constrói com a ideia de que o poderio bélico, como é
reforçado em Cidade de Deus quando Cabeção e outros policiais recuam diante dos
traficantes fortemente armados. O porte da arma é uma forma de classificação entre
bandidos e trabalhadores e que carrega tanto um estigma quanto uma fonte de poder.
Poder que este modifica não só as relações com os trabalhadores, mas com os
policiais (ZALUAR, 1985).
O centro do tráfico é o líder e o centro da favela também o é, como
exemplificado em Alemão, na qual Playboy impede tanto a comunicação dentro da
favela e a livre circulação de pessoas. A representação, nos três filmes analisados, da
relação entre o líder do tráfico e a favela é esta: domínio amplo sobre os corpos e
interferência direta na compreensão do favelado sobre si e sobre sua realidade. A
favela torna-se um microcosmo de cerceameneto da liberdade individual, tanto em
relação ao deslocamento quanto de comunicação a partir da vontade um indivíduo, o
líder do tráfico. A representação da criminalidade da favela se atrela à representação
da importância do traficante para a dinâmica da mesma. E, subjacente a esta
importância, está uma concepção de que um único indivíduo diferenciado é capaz de
moldar toda a estrutura social de um determinado espaço. A representação de relação
76

líder do tráfico e favela se baseia em uma supervalorização da agencia individual


dentro de uma estrutura criminosa e social.
A representação da favela como uma propriedade dos criminosos, se
configura dentro de uma extensão do narcisismo masculino que reivindica uma área
como seu território (ZALUAR, 1985). Os meios para assegurar esta posse passam
pelo uso da violência física organizada por esta liderança masculina, que age com
extrema violência numa lógica de preservação da moral (ZALUAR, 1985) acompanha
a quase onipresença do crime na favela, uma “legislação” criada pelo líder e a
legitimidade do crime na favela.
A quase onipresença do crime na favela é apresentada de forma explícita nos
três filmes analisados. Como apontando acima, o mote do filme Alemão é a reclusão
forçada em uma pizzaria de alguns policiais infiltrados na favela porque os criminosos
sua identidade. Com isto a favela como um todo se torna um território de perigo para
os policiais, porque em qualquer lugar eles podem encontrar com um traficante e isso
desencadear um conflito armado. A favela é pensada aqui como um território
homogeneamente controlado por grupos que não teriam o uso da força legitimamente.
Este domínio territorial necessariamente armado possibilita o controle social e
espacial de negócios ilegais, que por sua vez são uma prática que territorializa o
espaço como criminoso (ZILLI, 2014).
A força da presença do tráfico se faz tanto pela ocupação, na representação
fílmica, quase total da favela, quanto por uma “legislação” feita pela violência, na qual
o personagem que desrespeita as ordens do líder do tráfico recebe um castigo físico.
Zé Pequeno protagoniza, a pedido de um comerciante recorrentemente assaltado, o
assassinato de uma criança e a mutilação de outra que realizavam furtos na favela.
Assim, os criminosos, legitimados pela população, garantem a inviolabilidade da
favela. De certo modo, o bandido torna-se um defensor do trabalhador diante da
ausência da proteção policial ou jurídica (ZALUAR, 1985).
Essa justiça informal se dá pela violência e busca o monopólio do crime, pois
não há uma lei abstrata e universal de proibição de atos criminosos, mas uma
proibição de outros grupos paralelos ao do líder de cometer delitos. O monopólio da
violência por parte do líder do tráfico é acompanhado pelo monopólio das atividades
criminosas, como agressões físicas e a comercialização de drogas. A justiça letal
praticada nos morros se baseia na ideia de máxima violência para impedir que atos
77

semelhantes ocorram, uma característica de territórios no qual as gangues detêm o


poder de polícia (BEATO & ZILLI, 2014) e se baseia numa busca por respeito de
identidades subalternas (ZALUAR, 1985)
A justiça do crime tem por contexto a ausência do Estado como detentor do
monopólio da violência e da jurisdição, algo que ocorre tanto por uma deficiência em
termos urbanísticos (a representação da arquitetura e urbanismo dos filmes sempre
revela extrema precariedade), quanto de serviços básicos e de agentes que façam um
ordenamento cotidiano da sociedade, como apontado no capítulo anterior. Neste
vácuo de poder surgem indivíduos violentos e carismáticos que forçam o controle do
território por meio da força e substituem as organizações estatais por “instituições”, no
sentido de costumes, privadas e arbitrárias (BEATO & ZILLI, 2014; ZALUAR, 1985) e
que criam uma simbiose entre o trabalhador e o bandido (ZALUAR, 1985).
A presença constante do tráfico, a justiça violenta e a ausência do Estado, no
sentido apresentado, são, nesta representação, um fomento para o ato criminoso
apresentar se não uma legitimidade, uma tolerância social na favela. As relações entre
trabalhadores e bandidos são cotidianas e, nos filmes, não conflitivas e
costumeiramente de amizade e familiaridade. Aparentemente são criadas regras de
convivência entre os trabalhadores e os bandidos de modo que os primeiros não
sejam tão frontalmente atingidos pela guerra instaurada na favela (ZALUAR, 1985). A
favela torna-se um espaço composto de relações sociais diferentes e contrárias ao
restante da cidade, pois o tráfico impõe uma espacailidade alternativa ao que é posto
como o comum em uma democracia moderna (CAVALCANTI, 2009). O espaço é
representado como um lugar onde foram impostos, e aparentemente aceitos pelos
trabalhadores e pelo estado, novos usos e rotinas sociais que produzem na
representação coletiva um reforço das fronteiras sociais e simbólicas entre a favela e
o restante da cidade (CAVALCANTI, 2009).
A normalização do crime nas relações dentro da favela ao mesmo tempo em
que representa a favela como o espaço do crime e de identidades marginais,
representam a fragilidade do Estado em manter o monopólio da violência
(KOWARICK, 20020). Isto gera um “terreno fecundo” para a criação do criminoso, que
é, como será explorado na parte seguinte, quase que unicamente vindo da favela e,
quando não é proveniente destes espaços, é influenciado por ela. A redução da favela
às atividades criminosas retoma os estudos de Feltran (2009) ao tratar das narrativas
78

de jovens criminosos que somente as atividades referentes ao mundo do crime


tornam-se relevantes. Assim como na narrativa dos jovens, os filmes representações
que as relações do mundo do crime representam a “totalidade da vida” na favela
(FELTRAN, 2009).
4 VIVENDO NA GUERRA: A REPRESENTAÇÃO DO
MORADOR
80

4 VIVENDO NA GUERRA: A REPRESENTAÇÃO DO MORADOR

Este capítulo visa lançar luz sobre as características recorrentes dos


personagens que são representados como moradores da favela e que não são
policiais ou criminosos. Nos três filmes não há uma grande variação da representação
destes personagens, assim, de forma proposital, usarei o termo morador para me
referir a esses sujeitos. Os desvios a esta representação “genérica” que é posta nos
filmes serão colocados como nota de rodapé, pois essas mudanças não são
significativas para o enredo de nenhum dos filmes analisados.
De forma geral, todas estas características apontadas se relacionam com a
representação, presente nos filmes, da favela como um espaço do crime, dominada
por criminosos. Esta presença do crime em diversos espaços e influenciando em
diversos aspectos da vida dos moradores é o que Feltran (2008) denomina como
expansão do mundo do crime, no qual agentes desse mundo se fazem presentes em
diversos espaços e em diferentes aspectos de um espaço.

4.1 VIVENDO ENTRE CRIMINOSOS

Nos três filmes nota-se a presença constante e cotidiana dos


bandidos em todos os espaços da favela e, daí, de uma
convivência cotidiana dos trabalhadores com o mundo do crime.
O filme Alemão inicia com uma imagem panorâmica do Morro do
Alemão com pequenas cenas do cotidiano da favela, que
incluem conversas entre bandidos e trabalhadores. Enquanto
são apresentadas estas cenas, ouve-se o seguinte trecho da
música “Enxugando gelo” (BNegão e os Seletores de
frequência):Enxugando o gelo, sua realidade segura por um fiapo de
cabelo
Apego pelo tempo, melhor não tê-lo; segurá-lo, não quero, nem há como
contê-lo
No último capítulo, vimos nosso herói encontrar-se em maus lençóis
No momento crucial em que teve sua piada mental fatiada ao realizar a
manobra arriscada de manter ao mesmo tempo comida no prato, iluminação,
água pro banho, bom nível de informação e temperamento intacto
A seu favor, ele conta com sua quase total imunidade espiritual corpo e humor
à-prova-de-contas, além de uma dose generosa de honestidade fazendo o
diferencial
Contra ele, credores-comedores-de-cabeça, agiotas ultra magnéticos (além
de outras aves de rapina menos cotadas) de butuca, em cada esquina
Corte pra outra cena, sem anestesia. A liberdade estendida na sua frente
tendo um ataque de epilepsia
81

Ordem para o povo, progresso para a burguesia


Tele-apatia, nossa ação já se encontra no campo do movimento condicionado
Sorria, você está com o filme queimado
Uma vez mais sua volta será necessária, pra ver se deixa tudo pelo menos
no empate (ou zerado)
Sigo na batida, a frequência desse pensamento não pode ser captada com
perfeição por um receptor enferrujado pelos padrões do dia-a-dia
Enxugando o gelo, sua realidade segura por um fiapo de cabelo
Apego pelo tempo, melhor não tê-lo; segurá-lo, não quero, nem há como
contê-lo

FIGURA 4 - SEQUÊNCIA DE CENAS QUE REPRESENTAM O COTIDIANO DA FAVELA – IMAGENS


RETIRADAS DO FILME “ALEMÃO” (2014)

FIGURA 5 - CONVERSA ENTRE TRAFICANTE E MORADORES – ALEMÃO

Nestas sequências percebe-se que trabalhadores e bandidos são


representados como partes constitutivas da favela. Os dois grupos convivem
harmoniosamente e a diferença que mantêm entre si, no plano da imagem, é o porte
de armas. Assim, o que difere o morador do criminoso é a capacidade de exercer
82

poder por meio da violência física, nos termos de Zaluar (1985), fazer uso da máquina.
O mundo do crime, sobretudo no seu aspecto de potencialmente violento, aparece
como algo da vida do favelado, o que torna este mundo legitimado dentro da favela.
Esta legitimação pelo contato constante é algo observado por Feltran (2005) nos seus
estudos sobre a periferia de São Paulo.
Tela preta e em letras brancas lê-se que o filme trata sobre uma unidade da
polícia infiltrada no Morro do Alemão para auxiliar no processo de pacificação da
favela. Em seguida aparece a cena descrita acima. Nota-se que há a representação
imagética de uma favela que tem o crime como elemento constitutivo, daí, é possível
pensar que a música “Enxugando o gelo” seja um comentário sobre a tentativa de
pacificação do lugar, pois a expressão “enxugar gelo” remete a ações paliativas, que
cuidam do sintoma sem resolver o problema. Esta ação ineficiente pode ser o
processo de pacificação do Morro do Alemão, como se o crime fosse visto como parte
constitutiva e estruturante da favela.
As relações de copresença pacífica entre moradores e criminosos é
apresentada na introdução de Tropa de Elite. A partir de cortes rápidos que intercalam
o nome dos atores que participam do filme com cenas esparsas de um baile funk, vê-
se moradores e traficantes dançando, não aparentando qualquer relação de
desconforto entre as partes.
83

FIGURA 6 - MORADORES E TRAFICANTES DANÇANDO NO BAILE FUNK – IMAGENS


RETIRADAS DO FILME “TROPA DE ELITE” (2007)

A ideia de que não há separação entre os dois grupos é reforçada por alguns
mecanismos fílmicos: compartilhar um lugar comum; uso do espaço de forma
semelhante (pela dança) pelos dois grupos e por uma continuidade na paleta de cores
que se mantém em tons de azul, pois as personagens se confundem no plano visual
e transmite ao espectador uma imagem sensorial semelhante. O que diferencia um
grupo do outro, assim como na introdução de Alemão, é somente o porte de armas.
Há uma representação de contiguidade entre o morador não bandido e o traficante,
na qual a diferença imagética se resume ao porte da arma. Esta contiguidade ganha
maior reforço porque os filmes não exploram uma das diferenças pontuada por Zaluar
(1985) para a autoidentificação dos moradores não criminosos dos criminosos: o
trabalho. Ao longo do filme há poucas cenas que aludem ao trabalho constante por
parte dos moradores.
84

A representação de um cotidiano compartilhado entre moradores e criminosos


propicia a constituição de relações diversas entre os dois grupos, que pode ser de
mando dos criminosos (ordens dadas pelos criminosos aos moradores), benefícios
indiretos que os moradores obtêm com a atividade dos bandidos e companheirismo
entre os grupos. Esses elementos estão pulverizados nos três filmes, mas em Cidade
de Deus eles se encontram condensados na sequência de cenas em que Buscapé —
em voz off — apresenta o Trio Ternura em um jogo de futebol onde estão bandidos e
crianças da favela:
Este cara aí é o Cabeleira. Pra contar a história da Cidade de Deus eu preciso
contar a história dele. Mas pra contar a história do Cabeleira eu tenho que
começar com a história do Trio ternura

Depois da fala de Buscapé, Alicate e Marreco aparecem na cena do jogo para


chamar Cabeleira para assaltar o caminhão de gás. Nota-se que o cotidiano de todos
os moradores é afetado pela presença dos criminosos, mesmo as crianças estão em
constante contato com o mundo do crime, o que pode interferir inclusive em suas
brincadeiras. A cena de apresentação do trio Ternura termina com Cabeleira dando
um tiro na bola do jogo.
Cidade de Deus explicita, em todo o filme, a ideia da naturalização da violência
na favela. Além do tiro em uma bola que está sendo jogada, é possível citar inúmeras
cenas violentas no filme, por exemplo, o assassinato de uma mulher pelo marido (que
a mata com uma pá)15. Essas representações podem contribuir para apresentar as
relações entre moradores como conflitivas e potencialmente violentas, reforçando a
representação de um comportamento antissocial característica da ideia de gueto no
senso comum (WACQUANT, 2004), e também podem acentuar a ideia da
criminalização da pobreza.
(...) a partir da década de 1990, com o aumento do desemprego e
subemprego, da favelização e da própria criminalidade, estruturou-se um
conjunto de discursos e práticas que operou uma assemelhação da situação
de pauperismo com o comportamento delinqüente. (KOWARICK, 2002, p.24)

15 Na primeira cena, Paraíba chega em casa e encontra sua mulher na cama com Marreco, que foge.
Ele bate na mulher com a pá até mata-la e depois a enterra em sua própria casa.
85

FIGURA 7 - MORADORES APROVEITAM O ASSALTO AO CAMINHÃO DE GÁS – IMAGEM


RETIRADA DO FILME “CIDADE DE DEUS” (2002)

Outra ideia que se explicita no filme se refere a uma relação não conflitiva
entre trabalhadores e bandidos, quando os primeiros podem ser possíveis
beneficiários das ações dos criminosos, inclusive participando indiretamente destas
ações. Tais ações, no entanto, não são representadas no filme como crime, esses
trabalhadores não são enquadrados como criminosos pelos policiais. Assim, a
diferença entre moradores e criminosos não se dá pela possibilidade de cometer um
crime, mas por não deter os meios físicos para cometê-lo, a máquina (ZALUAR, 1984)
aparece como diferenciador entre os grupos. E os benefícios do crime ao morador
podem ser diversos, com estes recebendo dinheiro dos criminosos, seja por estarem
presentes no momento do crime ou por receber diretamente o dinheiro do assalto
devido a laços familiares. Essa representação se assemelha ao que Feltran (2008)
analisa ao estudar periferias de São Paulo. O autor comenta que as mercadorias
obtidas em atividades criminosas circulam para fora do mundo do crime, mas isto não
dissolve as fronteiras entre este mundo os mundos legítimos.
Também, em Tropa de Elite e em Alemão, aparecem os laços familiares entre
bandidos e trabalhadores nas favelas, o que pode reforçar a representação de uma
ligação estreita entre trabalhadores e criminosos. Em Tropa de Elite há duas cenas
em que moradores e criminosos são apresentados como parentes. Na primeira, a mãe
86

de um fogueteiro16 procura pelo corpo do filho morto no quartel. Na segunda, Baiano


aparece abraçado com sua mulher e filho, depois que eles se escondem do policial
do BOPE na casa da mãe.
Em Alemão os laços familiares são essenciais para o desenvolvimento do
enredo, pois são usados para a negociação entre policiais e traficantes. Mariana, por
exemplo, namorada do traficante Playboy é feita refém pelos policiais e, quase no final
do filme, é usada para negociar a liberdade de policiais que estavam escondidos dos
traficantes. Outra moradora, Letícia, irmã de um traficante e que se envolve com um
policial infiltrado, é usada como isca pelos traficantes para encontrar este policial, que
está escondido na favela.
Mas não são apenas os laços familiares que unem moradores bandidos e
trabalhadores nos filmes. Também há relações que passam pela amizade e
admiração. Em Tropa de Elite, por exemplo, Romerito admira alguns traficantes. Em
Alemão, a admiração geral dos moradores ao líder do tráfico é mais explícita do que
nos outros filmes. Um exemplo é a cena em que Playboy anda pelo Morro do Alemão,
com alguns traficantes fortemente armados, e diversos moradores ficam observando
em volta, acenando, tirando foto e sorrindo com sua presença.

16 Pessoa responsável por avisar aos bandidos sobre a chegada da polícia no morro por meio de
foguetes.
87

FIGURA 8 - LÍDER DO TRÁFICO, PLAYBOY, ANDANDO PELA FAVELA COMO UMA


CELEBRIDADE – IMAGEM RETIRADA DO FILME “ALEMÃO”.

Como mostra a imagem acima, em Alemão Playboy é aclamado como


celebridade pelos demais moradores da favela. Em Cidade de Deus há uma cena em
que Buscapé comenta que a favela se tornou um ponto de venda de drogas para não-
moradores devido à relativa paz do lugar, o que fez Zé Pequeno acumular muito
dinheiro. Termina a fala com a seguinte frase: “Se o tráfico fosse legal, o Pequeno
teria sido o Homem do Ano”.
Ao discutir sobre as favelas reais, não as representações dos filmes, Burgos
(2005) aponta para a existência de autoridades informais locais, que são validadas
por uma coletividade que não reconhece legitimidade nas autoridades legais. Para o
autor, isso estaria vinculado a uma identidade coletiva que passa pelo território (favela
em oposição a asfalto), até porque é comum a representação de que a favela é o lugar
do ilícito. Em A Máquina e a Revolta, Alba Zaluar também aponta para a ideia de que,
embora haja uma oposição entre bandidos e trabalhadores dentro da favela, na
relação com o “asfalto” é possível que bandidos e trabalhadores se unam em uma
identidade de favelado.
Nota-se, nos três filmes, certa relação de lealdade dos moradores em relação
aos criminosos, que pode ocorrer de diversas formas. Em Alemão os moradores
cooperam com os criminosos em diversos momentos para delatar a posição dos
policiais. A relação entre o crime e o favelado é representada de forma tão estreita
neste filme que há uma cena na qual os traficantes torturam e matam um policial ao
lado da residência de uma moradora que aparentemente escuta e não tem nenhuma
reação. Atos criminosos de extrema violência como a tortura e a morte não são algo
88

que fogem do cotidiano do morador, contribuindo para a representação de sua


naturalização. É preciso deixar claro também, que muitas vezes essa lealdade
aparece no filme como ligada ao medo. Em Cidade de Deus, por exemplo, apesar de
ter seu bar parcialmente destruído pelos rapazes do Trio Ternura em uma fuga da
polícia, o dono do estabelecimento e a maioria das outras testemunhas não revelam
o destino do trio.
Como aponta Silva (2002, p. 223), a favela é vista no “senso comum como um
espaço de falta (sem Estado, sem organização e etc.)”. Nos filmes, o Estado aparece
nas favelas, mas sempre pela via da polícia e, na maioria das vezes, com relações de
cumplicidade com o mundo do crime. Mas os filmes continuam produzindo o que Lago
& Ribeiro (2001, p. 31) chamam de “imagens, ideias e práticas que reeditam o antigo
mito da favela como um outro mundo social, à parte da cidade, diferente, identificado
pela carência e desorganização.” De modo que a representação dos filmes é pautada
pela noção de um território no espaço limiar da barbárie (BURGOS, 2005). Para o
autor, a categoria favela exprime mais que um aglomerado de moradia, seria um
espaço com um microssistema sociocultural particular, com instituições locais que
estabelecem com as demais instituições da cidade interações próprias, que podem
ser, inclusive, de cumplicidade com o crime.

4.2 A FAVELA COMO PALCO DA GUERRA E O MORADOR NO FOGO CRUZADO

A favela é representada nos filmes, em geral, sob duas perspectivas que não
se contradizem e aparecem conjuntamente: como palco de guerra e como território
do crime. Esta última foi tratada no capítulo anterior, aqui o foco é a primeira.
Se em Cidade de Deus, a “personagem principal” do filme pode ser pensada
como o próprio espaço — o conjunto habitacional —, a briga entre Zé Pequeno e Mané
Galinha tem um papel fundamental no enredo e a ideia de guerra se torna cada vez
mais forte, sendo muitas vezes explicitada pela narração de Buscapé:

O que era para ser uma vingança rápida e localizada se transformou em uma
guerra. A Cidade de Deus ficou dividida, quem morava na área de um dos
bandos não podia passar para o outro, nem pra visitar parente. Pra polícia,
morador de favela virou sinônimo de bandido e a gente se acostumou a viver
no Vietnã.
89

A instauração de um ambiente de guerra em Cidade de Deus ocorre quando


Zé Pequeno é defrontado pelo grupo liderado por Mané Galinha e Cenoura. Antes
disso, não havia conflito ali, porque Zé Pequeno tinha eliminado quase todos os outros
traficantes, se tornando o “dono do morro”. Ou seja, a favela é representada como um
espaço onde só a paz só é possível se não houver grupos distintos de bandidos ou
confronto com a polícia, já que o espaço é visto como contendo uma pulsão de
violência constante.

FIGURA 9 - CONFRONTO ENTRE TRAFICANTES – IMAGEM EXTRAÍDA DO FILME CIDADE DE


DEUS (2002)

FIGURA 10 - CONSEQUÊNCIAS DO CONFRONTO ENTRE TRAFICANTES – IMAGEM EXTRAÍDA


DO FILME CIDADE DE DEUS (2002)
90

Em Alemão, a guerra não é entre dois grupos de traficantes da favela, mas


aparece no confronto entre policiais e traficantes, sendo mais bem exemplificada em
uma das últimas cenas do filme, quando os traficantes invadem a pizzaria de Doca
(policial infiltrado). Vários traficantes, fortemente armados, cercam a pizzaria e os
policiais que estão lá dentro se preparam para o confronto. Durante a cena, toca uma
música de Mc Marechal, “É a Guerra Neguinho”:

Eu vejo a multidão de cego só crescendo olho na terra


Querem as joias da cora, forças, fronteiras se alteram
Geral quer ser rei, conspiram pro tempo que não espera
Impérios caem com novos reis, uns tempo passa a ser de guerra
Rua sangra, tensão triplica, eu vi camisa com desenho do mundo escrito
Isso aqui é de quem se antecipa
Eu incorporo o Sun-Tzu bolação vietnamita Osama
Bin que dinamita os bucha que desacredita
Gritaria, choradeira, tiro, cheiro, desespero
Se entregaram, desistiram, meus irmão escreveram
Na calada, somos rato, rap é o eco dos bueiros
Geração nos ouviram e os que não podiam ter rádio, leram
Os que não sabiam ler me viram, distinguiram o coração
Mensagem clara de que a tropa precisa da informação
Precisa da informação, precisa da informação.

O traficante Caveirinha explode o portão da pizzaria com uma bazuca e a


música de Mc Marechal retorna:
Cada vez que eu rimo eu ponho a minha alma em toda parte da letra
Como se escrevesse nos teus cornos com a ponta da baioneta
É a guerra, neguin, nós somos a guerra, neguin
Sofremo a guerra, neguin, vivemo a guerra, neguin

A representação da favela como palco da guerra não ocorre somente na


relação entre os personagens, mas é colocada como algo que é propiciado pela
arquitetura do espaço. Em Tropa de Elite isto se torna mais explícito no treinamento
do BOPE, quando Capitão Nascimento coordena uma etapa na qual os policiais vão
se movimentando de forma furtiva por entre containers que simulam a disposição das
moradias na favela. Em uma fusão de imagens, as moradias da favela tomam lugar
dos containers e os policiais entram em conflito direto com os traficantes. Estas cenas
são narradas pela voz em off de Capitão Nascimento:

Progressão em favela é uma arte, parceiro. E uma arte que ninguém aprende
na teoria. Depois que tudo estava ensaiado, a gente testava os caras na
prática, na real.
91

FIGURA 11 - TREINAMENTO DO BOPE – IMAGEM EXTRAÍDA DOTROPA DE ELITE (2007)

Outro aspecto da favela como lugar da guerra representado nos filmes se


refere à ideia do morador (não bandido) no meio do fogo cruzado entre traficantes e
policiais ou entre grupos rivais de traficantes, caso de Cidade de Deus. Neste filme,
por exemplo, uma cena que revela essa ideia é aquela em que Buscapé quer
fotografar Zé Pequeno para conseguir um trabalho em um jornal, uma galinha pousa
entre Buscapé e o traficante, que ordena ao primeiro que pegue a galinha. Nesse
instante, do outro lado da rua, descem de uma viatura três policiais armados. Buscapé
fica entre os traficantes e os policiais e ouve-se sua voz em off: “Uma foto podia mudar
minha vida, mas na Cidade de Deus: se ficar o bicho pega e se correr o bicho come.
E sempre foi assim, desde que eu era criança.”
92

FIGURA 12 - FOCO EM BUSCAPÉ COM O GRUPO DE POLICIAIS AO FUNDO – IMAGEM


EXTRAÍDA DO CIDADE DE DEUS (2002)

FIGURA 13 - FOCO EM BUSCAPÉ COM TRAFICANTES AO FUNDO – IMAGEM EXTRAÍDA DO


CIDADE DE DEUS (2002)

Nas duas imagens acima (Figura 18 e 19) há a representação imagética do


morador no meio da guerra entre policiais e traficantes e ambos, no confronto, têm
potencial de matá-lo, seja ignorando sua presença, como no caso de Cidade de Deus,
93

seja buscando ativamente a morte deste morador, como em Alemão. E este elemento
é constante nos três filmes.
A ideia que os grupos armados, quando em conflito, podem ferir ou matar o
morador é representada também em Tropa de Elite. Dentro de um baile funk policiais
corruptos e traficantes negociam a propina, pensando que um dos traficantes iria
matar um dos policiais corruptos, Neto, que estava distante do baile e com um rifle de
precisão, atira. Isto desencadeia um tiroteio (dentro do baile) entre traficantes e
policiais corruptos e outros traficantes começam a atirar em Neto e Matias, que fogem
pelas ruas da favela.

FIGURA 14 - INÍCIO DO CONFRONTO ENTRE POLICIAIS CORRUPTOS E TRAFICANTES –


IMAGEM EXTRAÍDA DO TROPA DE ELITE (2007)
94

FIGURA 15 - PERSONAGEM QUE FREQUENTAVA O BAILE NO MOMENTO DO CONFRONTO -


IMAGEM EXTRAÍDA DO TROPA DE ELITE (2007)

As cenas aqui descritas reforçam a representação da favela como um espaço


do confronto militar, um palco da guerra onde grupos rivais disputam o controle do
território por meio da violência física. Policiais e criminosos não levam em
consideração a integridade física dos moradores. Um exemplo é a personagem morta
que aparece na figura 12. O filme não explicita se o tiro veio da arma de um policial
ou de um traficante. O favelado é representado como um personagem hostilizado
sempre e por todos os lados, tanto que sair da favela é visto como a única maneira de
escapar dessa guerra. Em Cidade de Deus, por exemplo, Buscapé decide se mudar
devido ao acirramento da guerra entre os grupos de traficantes rivais.
O enclausuramento do morador pela violência é metaforizado pela cena da
galinha em fuga no início de Cidade de Deus. Uma galinha que seria abatida para um
churrasco organizado por Zé Pequeno foge e os traficantes correm atrás da ave,
atirando. A galinha escapa ao saltar para fora do beco, caindo em uma rua ainda
dentro da favela, quando quase é atropelada por uma viatura da polícia. O espaço da
favela, como um todo, é representado então como inóspito ao favelado, pois em
qualquer lugar que esteja ele pode ser morto. Policiais ou traficantes são personagens
com potencial para matá-lo. Para o morador a diferença entre policiais e traficantes é
que os criminosos buscam ativamente impedir sua saída da favela, matando-o caso
necessário; a polícia, por sua vez, mesmo não buscando agredi-lo, pode feri-lo ou
95

matá-lo em sua atividade. A favela é, assim, um espaço fatal e é preciso sair de lá


para sobreviver.

FIGURA 16 - FUGA DA GALINHA – CIDADE DE DEUS

4.3 A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA COMO UM LUGAR A PARTE DA CIDADE

Löic Wacquant (2004) caracteriza os guetos a partir de três elementos que


seriam corriqueiros nestes espaços, mas que isolados não os definiria como tal:
pobreza, segregação residencial e isolamento social dos seus moradores. A pobreza
é um elemento característico, comumente derivativo do isolamento que seus
moradores têm em relação ao restante da cidade, mas depende também de fatores
externos como demografia, ecologia, políticas públicas e a situação econômica de
forma geral. Os dois outros fatores se associam fortemente a questões de raça e etnia.
A segregação residencial, no caso do gueto, deve ser imposta e abrangente, além de
ter uma série de instituições que permitem ao grupo segregado reproduzir-se dentro
da área segregada. Por fim, o isolamento dos moradores de um gueto não é voluntário
e não visa ser uma forma de adaptação dos seus moradores à cidade como um todo
(WACQUANT, 2004).
Wacquant afirma que as favelas não devem ser pensadas como um caso de
guetização, pois a etnia/raça não são elementos centrais, antes, são os critérios de
classe que provocam seu isolamento. Mas, pode-se dizer que na representação
fílmica sobre as favelas, a discussão do autor sobre gueto permite compreender
96

alguns pontos, caso não se leve em consideração o fator etnia/raça. A fala de Buscapé
corrobora meu argumento:

A gente chegou na Cidade de Deus com a esperança de encontrar o paraíso.


Um monte de famílias tinham ficado sem casa por causa da enchente e de
alguns incêndios criminosos em algumas favelas. [Cena de um poste de luz
sendo erguido por moradores e um técnico de luz]. A rapaziada do governo
não brincava: se não tem onde morar, manda pra Cidade de Deus. Lá não
tinha luz, não tinha asfalto, não tinha ônibus. Mas pro governo e os ricos não
importava nosso problema. Pois como eu disse, a Cidade de Deus fica muito
longe do cartão postal do Rio de Janeiro.

No filme Cidade de Deus a favela é formada, no ano de 1960, por


personagens que apresentam fragilidade socioeconômica e que tiveram suas
residências originas destruídas. A medida que o governo toma é de realocar essas
personagens em uma área isolada da cidade sem infraestrutura urbana. A conivência
do Estado com a dinâmica da favela é algo que vai pautar frequentemente não
somente o filme Cidade de Deus, mas também Tropa de Elite e Alemão. Essa
representação da favela passa por uma forma de urbanização baseada em relações
de poder assimétricas entre diferentes grupos sociais. A diferença dessa
representação fílmica para os estudos que Wacquant (2004) realiza nos guetos norte-
americanos, ocorre pelo critério de segregação da população, enquanto nos filmes o
critério é a classe, nos estudos de Wacquant (2004) é a raça. Como aponta Rosa
(2009, p. 1). A favela é
a mais típica manifestação da não-integração de amplos setores da
sociedade urbana [...] sendo homogêneos, esquecidos pelas políticas sociais
e localizados tipicamente nas extremidades da área metropolitana.

Se o gueto, visto como lugar de segregação racial, não necessariamente


pressupõe a degradação, a representação das favelas se pauta pelo somatório da
segregação com a degradação e o abandono físico do espaço. Desse modo, a favela
é representada nos filmes como segregada (e daí a semelhança com o gueto) e como
degradada e abandonada fisicamente (ideia de slum em Wacquant).
97

FIGURA 17 - CAMINHADA DE BUSCAPÉ E SEUS AMIGOS PELA CIDADE DE DEUS – IMAGEM


EXTRAÍDA DO CIDADE DE DEUS (2002)

O isolamento deste espaço é revelado a partir de alguns elementos


cinematográficos. No caso de Cidade de Deus, os espaços fora da favela não são
essenciais para o que acontece dentro dela, sendo retratados para breves narrativas
da história de Buscapé. Em Alemão, a intervenção do espaço e de personagens de
fora da favela alteram toda a dinâmica do lugar, o que dá a entender que “em
condições normais”, o Morro do Alemão não sofre influência das regiões externas à
favela. Em Tropa de Elite as relações da favela com outros espaços e membros da
cidade se dá por uma ONG (mas que era associada ao líder do tráfico da região) e
intervenções rápidas da polícia. Segundo Wacquant (2004), esse isolamento faz
florescer instituições específicas ao local, mas enquanto em seus estudos há uma
diversidade de instituições, no caso dos filmes as instituições são organizações
criminosas que imputam uma sociabilidade específica pautada na violência.
A representação da favela como um espaço apartado do restante da cidade,
no caso específico de Cidade de Deus, pode beneficiar o morador, como em duas
situações protagonizadas por Buscapé: início do namoro com Angélica e o primeiro
emprego como fotógrafo. Buscapé inicia esse namoro comprando para ambos a
maconha vendida na Cidade de Deus. O jornal contrata Buscapé porque ele
conseguia entrar no conjunto habitacional fotografar os traficantes.
Nas duas situações o isolamento da favela e as dinâmicas criminais que
ocorrem no espaço, são elementos que o morador pode manejar a fim de conseguir
seus objetivos. De modo que a categoria de favelado tem efeitos concretos sobre a
98

sua vida (CAVALCANTI, 2009, p. 75) e, no caso, o torna uma ponte segura entre a
favela e o restante da cidade. Buscapé cumpre uma “função” na estrutura urbana que
segrega os moradores de um espaço que também tem funcionalidade dentro da
cidade:

maximizar os lucros materiais extraídos de um grupo visto como pervertido e


perversor e minimizar o contato íntimo com os seus membros a fim de evitar
a ameaça da corrosão simbólica e do contágio (WACQUANT, 2004, p. 157)

Esses diversos elementos constituem a representação de uma vida social


totalmente ensimesmada que estruturalmente reforça sua integração interna e diminui
ao máximo os elementos externos (WACQUANT, 2004)

4.4 PROPRIEDADE DESRESPEITADA, CORPO VIOLENTADO E VIDA


INSIGNIFICANTE

A representação da favela como um espaço de guerra e isolado do restante


da cidade constrói um espaço imaginário que opera por leis próprias de convivência.
Estas leis, via de regra, comprometem a autonomia individual e coletiva dos
moradores, construindo uma imagem de fragilidade dos direitos civis (BURGOS,
2005). A autonomia comprometida é perceptível tanto no plano da narrativa quanto
em alguns elementos de composição cinematográfica.
Pensando nesses elementos mais próximos a uma direção cinematográfica,
nos três filmes as interações dos moradores comumente envolvem traficantes ou
policiais. Mesmo Buscapé, o protagonista de Cidade de Deus, interage
majoritariamente com algum personagem envolvido no mundo do crime. Em Alemão
há apenas duas cenas curtas em que ocorre interação entre moradores e em Tropa
de Elite não há nenhuma. O morador de modo geral não é representando como um
personagem com história relativamente autônoma, mas sempre depende dos outros
dois grupos que exercem poder por meio da violência física. A representação dos
moradores é marcada por uma ausência de força na trama e, no limite, não tem
importância real para o desenvolvimento da narrativa, a não ser quando é um meio
para colocar em relação policiais e traficantes.
O morador como uma ponte entre os dois grupos com poderio bélico fica
explícito em Tropa de Elite. Uma moradora chamada Rosa aparece em duas situações
99

específicas: quando se despede de seu companheiro, o Baiano, porque ele está


fugindo da polícia; e quando é torturada pelos policiais do BOPE para que revele onde
seu companheiro está escondido.
Em Alemão há cenas semelhantes no fim do filme, quando Letícia é usada
como isca para atrair um policial infiltrado no morro. Essa dependência dos outros
grupos para a existência do morador é perceptível na história de Mariana, em Alemão.
No filme, ela aparece como ex namorada de Playboy, líder do tráfico e como refém
dos policiais infiltrados. Fica claro que Mariana só existe na trama porque tem alguma
relação com os outros grupos.
Em Cidade de Deus, mesmo que Buscapé tenha grande destaque, não há
cenas importantes para a trama em que ele se relacione com outros moradores. Na
verdade, o personagem aparece mais como um narrador e nas cenas em que aparece
e são importantes para a trama, Buscapé não se relaciona com moradores da Cidade
de Deus: o romance com Angélica e o ingresso no jornal. Esta dependência narrativa
que os moradores têm com os outros dois grupos é, em geral, marcada por relações
de violência diversas, como já foi apontado.
A invasão das propriedades dos moradores não bandidos, por policiais ou
criminosos, é comum aos três filmes. Em Tropa de Elite, Capitão Nascimento, Matias
e outros soldados do BOPE invadem a casa de diversos moradores em busca do líder
do tráfico, Baiano. Em Cidade de Deus, a casa de Buscapé é alvo da polícia, na busca
de Marreco, seu irmão. Em Alemão as residências dos moradores são invadidas pelos
traficantes diversas vezes ao longo filme na procura pelos policiais infiltrados. A
delimitação frágil entre espaço privado e espaço público não é representado como
algo geral das relações na favela, mas uma situação em que os moradores estão
sujeitos. Isto é exemplificado na cena em que Mariana vai à pizzaria do Doca e,
encontrando a porta fechada, fica em dúvida se entra ou não. Os moradores não se
veem com legitimidade para quebrar o espaço privado alheio, o que constrói a ideia
de que quem pode fazer isto são somente os grupos que detêm o poder da violência
física. A favela aparece, assim, como espaço cujas normas são construídas não a
partir de leis abstratas universalmente válidas, mas a partir da legitimação de
determinadas ações a partir do potencial de uso da violência física.
A invasão dos domicílios, além de apontar para uma indiferença à vida privada
dos moradores, reforça que o espaço privado dos moradores pode ser alterado pelos
100

grupos com poderio bélico. Esse espaço potencialmente violado acompanha a


representação de um espaço público com uma dinâmica inconstante. Em Cidade de
Deus, quando Mané Galinha e Cenoura começam uma guerra pelo controle da favela
com o grupo de Zé Pequeno, a dinâmica da favela muda, pois os moradores não
podem mais transitar livremente pelo espaço. Em Tropa de Elite, Baiano invade a
ONG que tinha na favela e sequestra os administradores que estavam lá dentro. Em
Alemão, quando os traficantes descobrem que há policiais infiltrados, impedem a
comunicação via internet e telefone, além de ordenar toque de recolher. Essas
situações constroem a representação da favela como um espaço que impede o
morador de agir com liberdade mínima dentro dos seus direitos civis, pois ele tem suas
atitudes mais cotidianas cerceadas pela polícia e pelo crime.

FIGURA 18 - INVASÃO DO BOPE A UMA FAVELA PARA – IMAGEM RETIRADA DO TROPA DE


ELITE (2007)

Possivelmente, a cena que deixa mais explícita a indiferença de policiais e


criminosos em relação aos moradores está em Tropa de Elite. Em uma cena o BOPE
é convocado a resgatar alguns policiais de um tiroteio com traficantes. Na operação,
o batalhão mata diversos traficantes e deixa seus corpos na favela, pois Capitão
Nascimento precisava ir embora para ver o filho que tinha nascido. Naturalmente, esta
ação não é repreendida e não há qualquer consequência para os policiais. A favela é
representada somente como um palco de operações, como se não houvesse vida ali.
101

Silva (2002) afirma que a favela e os favelados são tratados como objetos, sem
voz ativa, por agentes que atuam no espaço a partir de medidas repressivas e
disciplinadoras. Esta passividade colocada sobre os moradores reflete também o
processo de origem da categoria social “favelado” que é fruto de uma subordinação
extrema e de um imenso diferencial de poder. Esta identidade que é atrelada ao
espaço, propicia uma autoimagem do morador que reproduz a subalternidade. É
possível dizer que nos filmes, a representação da favela e dos seus moradores é muito
próxima ao que o autor encontrou em sua pesquisa.
Também se nota nos filmes uma representação do corpo do morador como um
espaço que pode ser violentado. Em Cidade de Deus há diferentes cenas
protagonizadas por Zé Pequeno que denotam essa ideia. Os traficantes em Alemão
também protagonizam cenas de violência diversa e em Tropa de Elite muitas cenas
de violência contra moradores são realizadas pelos policiais.
Tanto o corpo, quanto a propriedade privada do morador estão sujeitos à
violência, como se não o pertencessem, mas fossem propriedade daqueles que detêm
a força física e/ou bélica. Para Kowarick (2002), a sujeição a que estão submetidos os
moradores da favela tem como origem a fragilidade do Estado em seu atributo básico:
o monopólio legítimo da violência, o que gera uma inexistência de igualdade perante
a lei e uma consequente vulnerabilidade física dos favelados. Focalizando a violência
policial nas favelas, Kowarick faz uma análise que pode servir para pensar a
representação posta nos filmes analisados:

A condição de subcidadania urbana é importante para fundamentar uma forma


de controle social pela vistoria da vida privada das pessoas: o mundo da desordem,
potencialmente delinquente, é jovem, [...] de preferência não porta ou não tem
carteira de trabalho e mora nos cortiços das áreas centrais ou nas favelas das
periferias. Sobre essa modalidade de moradia, o imaginário social constrói um
discurso que esquadrinha a mistura de sexos e idades, a desorganização familiar,
a moralidade duvidosa, os hábitos perniciosos, olhando esses locais como focos
que fermentam os germes da degenerescência e da vadiagem, e daí o passo para a
criminalidade. Ou seja: a condição de subcidadão como morador das cidades
constitui forte matriz que serve para construir o diagnóstico da periculosidade”
(KOWARICK, 2002, p. 20)

Em Cidade de Deus, por exemplo, há uma cena em que os policiais matam um


morador inocente com a desculpa de procurar criminosos. Assim como o corpo do
morador pode sofrer violência, sendo ele criminoso ou não, ele se torna um
personagem facilmente criminalizável. Isto ganha profundidade quando os policiais
102

colocam uma arma na mão do morador que mataram, forjando nele um criminoso. Em
Alemão, durante mais da metade do filme uma moradora, Mariana, é mantida em
cárcere privado pelos policiais, que a impossibilitam de voltar para sua casa, onde
está seu filho. Além disso, nesse cárcere ela sofre agressões físicas, revelando que
não somente a traficante violenta os moradores, mas a polícia também.
Também em Tropa de Elite há cenas de maus tratos a moradores, tendo como
pretexto algum envolvimento com os criminosos. Ou seja, os moradores não têm
direitos civis garantidos e seus corpos podem ser manejados livremente por meio da
violência. Assim, pode-se pensar que os filmes transitam entre uma representação
que ignora a importância deles enquanto personagem ou os ignora como sujeitos
portadores de direitos, o que parece ser apresentado em tom de denúncia e revela a
representação da favela como local de perigo inclusive para os moradores honestos.
Esses moradores, aliás, são representados como despojados de qualquer forma de
reação à violência que sofrem, a não ser na forma de testemunho, mas para fora da
favela, como se nota no personagem Buscapé de Cidade de Deus, cuja profissão
pode retratar o que se passa na favela para quem está fora da favela.
Os favelados são representados ainda como “criaturas da reprodução da
desigualdade fundamental da sociedade brasileira e da forma de Estado que lhe
corresponde: expressão e mecanismo de continuidade de uma cidadania restrita,
hierarquizada e fragmentada” (SILVA, 2002, p. 224). Sendo vistos como categoria
social, na qual o indivíduo não tem espaço para ser algo além desta definição prévia,
como se houvesse um encapsulamento da sua identidade e das suas práticas (SILVA,
2002, p. 224). Em Cidade de Deus há um diálogo que exemplifica bem esta
representação do cotidiano dos moradores marcado por uma cidadania restrita,
sobretudo no tocante à violência. Buscapé conversa com seu amigo, Barbantinho:

Buscapé: Se esta foto fica boa eu arrumo um emprego no jornal. Tem


que arriscar
Barbantinho: Tá arriscando sua vida à toa por causa de foto.
Buscapé: Cê acha que eu gosto mesmo de ficar cara-a-cara com
aquele bandido filho da puta?
Barbantinho: Se o Pequeno te pegar ele vai querer te matar.
Buscapé: Pra ele me matar, ele vai ter que me achar primeiro.
O desfecho da cena é o aparecimento de Zé Pequeno, acompanhando de todo
o seu bando de traficantes. Com isto é possível perceber que o campo de ação do
morador passa pela violência em potencial, que o faz ponderar suas ações levando
103

em conta a possibilidade de assassinato. A morte é vista como algo natural na vida


do morador. Estas representações unem policiais e traficantes como grupos que têm
o poder de exercer violência física contra os moradores, incapazes de se contrapor a
ela. O cotidiano do morador, assim como sua vida e morte é representado como
existente somente da vontade dos outros dois outros grupos. A existência autônoma
destes moradores se dá nas brechas que o tráfico e a polícia permitem aos moradores
e elas são poucas.
Com isso, a representação da favela permeia um tipo específico de gueto, que
é uma

instituição de duas faces, na medida em que serve a funções opostas


para dois coletivos aos quais une em uma relação assimétrica de
dependência. Para a categoria dominante, sua função é circunscrever
e controlar, o que se traduz no que Max Weber chamou de
“cerceamento excludente” da categoria dominada. Para esta última, no
entanto, trata-se de um recurso integrador e protetor na medida em que
livra seus membros de um contato constante com os dominantes e
permite colaboração e formação de uma comunidade dentro da esfera
restrita de relações criada. O isolamento imposto pelo exterior leva a
uma intensificação do intercâmbio social e cultural dentro do gueto. O
gueto é o produto de uma dialética móvel e tensa entre a hostilidade
externa e a afinidade interna que se expressa como uma ambivalência
no nível do consciente coletivo (WACQUANT, 2004, p. 159)

Há o isolamento por parte de uma classe dominante, que não se faz presente
no filme, no entanto, não tem função de um recurso integrador e protetor, pois o perigo
que se coloca é interno. São criadas relações específicas impostas pelo isolamento,
mas que permitem não só a violência interna, mas incursões de grupos externos que
agem violentamente contra os moradores, constituindo um terror policialesco (SILVA,
2002) que vem de dentro e de fora.
.
6 CONCLUSÕES
105

5 CONCLUSÕES

Os filmes aqui analisados guardam especificidades na representação que


fazem dos policiais, dos bandidos ou dos moradores, como explorado em cada
capítulo. No entanto, é possível afirmar que, nos três filmes, a favela é representada
como um espaço isolado do restante da cidade, e marcado pelo domínio do crime. A
representação da favela como lugar onde impera uma sociabilidade violenta (SILVA,
2004), na qual as interações entre as personagens comumente são permeadas pela
violência. Isto constrói a representação da favela como um espaço no limiar da
barbárie (BURGOS, 2005), ou seja, um lugar no qual os personagens não se pautam
por decisões a partir do diálogo, mas por via de infligir danos físicos nos demais.
Nessa representação, a favela é pensada como um território onde se
configura um poder que se reafirma não por um Estado constituído de leis abstratas e
democráticas, mas pelo poderio bélico. Com isso, a favela se torna um palco da
guerra, no qual o confronto militar e as relações marcadamente violentas tornam-se o
modelo básico de interação entre os personagens, sejam bandidos, policiais ou
trabalhadores. Mas entre esses grupos, o trabalhador é o único que não possui o meio,
a arma de fogo, para produzir violência em larga escala, o que leva à ideia de que ele
está enclausurado entre policiais e bandidos que, no conflito, não consideram sua
presença, violando sua propriedade, sua liberdade, seu corpo e, no limite, sua vida.
Se as interações dos policiais com os trabalhadores são apresentadas nos
filmes quase que estritamente violentas, com os bandidos nem sempre os
trabalhadores mantêm grandes conflitos, o que se deve a fluidez das fronteiras entre
o mundo legal e o mundo do crime. Se isso torna os bandidos menos agressivos com
os trabalhadores, ao mesmo tempo cria um espaço de legitimação do mundo do crime
na favela por uma compactuação, mesmo que a contragosto, das práticas criminosas.
Com isto os trabalhadores apresentam laços de amizade com alguns bandidos (além
dos laços familiares, muitas vezes existentes), mas também admiração pelo sucesso,
sobretudo econômico, que os traficantes conseguem.
A legitimidade do mundo do crime aliada à presença do Estado na favela
unicamente pela via policial (repressiva), permite que os bandidos instituam dinâmicas
específicas no território, inclusive com uma legislação própria criada pelo líder do
tráfico. Com isso, a moralidade e a dinâmica do mundo do crime não se restringem
106

somente a este mundo, mas invade os mundos legais e renegocia o que seria legítimo
e ilegítimo no espaço da favela (FELTRAN, 2008). E se nos filmes há uma
demarcação constante da diferença entre trabalhadores e bandidos por meio das
relações que o personagem constitui; a fluidez das fronteiras (FELTRAN, 2008) torna
constante as interações entre trabalhadores e bandidos, assim como um
deslocamento dos favelados entre o mundo legal e do crime. Há sempre a
possibilidade de um personagem cruzar as fronteiras entre os mundos legítimo e do
crime, seja com dificuldade (como no caso do Alemão) ou menos dificuldade (Cidade
de Deus).
A fluidez de fronteiras tem como base a representação de uma lógica criminal
permeando todas as relações na favela, de modo que tanto o trabalhador como o
policial precisam considerar as dinâmicas criminais em cada ação na favela. O tráfico,
neste espaço cumpre o papel de Estado ao implementar normas de conduta e pode
exercer a força contra aqueles que não respeitam estas normas. O tráfico como
“Estado paralelo” na favela surge com uma presença do Estado que é por meio de
ações militares de repressão, que não permite à polícia criar uma legitimidade na
comunidade, ou por práticas de corrupção policial, que não confrontam o tráfico.
Semelhante a uma justiça de caráter feudal (ZALUAR, 1994), os
narcotraficantes constroem uma hierarquia que tem o líder como epicentro e ponto
mais alto da escala. Este mesmo líder apresenta, geralmente, poder amplo sobre os
traficantes em hierarquias mais baixas, controle possibilitado por uma justiça
marcadamente violenta e arbitrária. A representação desta hierarquia forte
acompanha uma estrutura de poder no qual o traficante não é facilmente despojado
de sua posição, de modo que as mudanças no topo da hierarquia ocorrem por acaso
ou por casos de violência. No entanto, os personagens podem ascender na hierarquia
criminal por mérito ou por afinidade com o líder do tráfico. Contraposta à
representação da favela como um espaço no qual o trabalhador não exerce nenhuma
profissão aparentemente e se exerce, ela é algo de baixa remuneração e estagnada
em uma mesma posição na empresa, o tráfico e sua hierarquia se abrem ao favelado
como uma possibilidade de ascensão social.
A imersão no mundo do crime, ao mesmo tempo em que possibilita maior
consumo de bens disponíveis, acompanha a perda de laços com o mundo legal
(família, trabalho e igreja) (FELTRAN, 2008). Mas nos filmes não se constrói uma
107

dicotomia rígida na qual ser bandido anula por completo todos os laços com o mundo
legítimo, mas abre um campo de possibilidades, no qual as escolhas do personagem
o levam para uma maior ou menor imersão nesse mundo. No caso de Cidade de
Deus essa imersão menor ou maior não depende por completo das ações do
personagem, mas parece ser vista como um destino. O indivíduo “nasce” para ser
trabalhador ou bandido. Percebe-se, aqui, um aspecto moralizante para a prática
criminosa.
A polícia, nesse contexto de controle do tráfico e relações constantes entre
bandidos e trabalhadores, é representada como um agente externo, mas não distante
das dinâmicas na favela. As relações que o policial constrói com o espaço são, em
geral, de combate (ao) ou de conivência com o crime, assim, a favela como espaço
criminoso se mantém. O policial como o guerreiro contra o crime tem como inimigo,
quase que exclusivamente, os traficantes. Considerando a representação da favela
como território do tráfico de drogas, ela aparece nos filmes como o espaço inimigo ao
policial honesto, a classificação colocada para o policial soldado (SILVA, 2011),
aquele que atua militarmente e cuja atuação na favela é marcada pelo abuso da força
propiciada pela arbitrariedade policial e por uma falta de normatização da conduta de
patrulha e de intervenção (KANT DE LIMA, 2014).
Nesse sentido, tanto a polícia “honesta” como a polícia corrupta são
caracterizadas por resolver os conflitos de forma privada, uma vez que, nos filmes, a
polícia é representada como uma organização que vai de encontro às leis universais,
ao Estado democrático de direito. Se a polícia “honesta” é representada como um
grupo militar apartada do Estado, a polícia corrupta é representada como uma
organização econômica que se utiliza da sua imersão em vários setores da sociedade,
e do monopólio legítimo da força para providenciar lucro material aos policiais
corruptos. A arbitrariedade policial é justificada pela tensão entre a vida pessoal e
profissional. Esta representação se relaciona com a representação da fatalidade da
função policial para o mesmo, de modo que o medo da morte leva o personagem a
recorrer a violência extrema contra bandidos e trabalhadores ou se corromper.
Respondendo à pergunta que me propus nesta dissertação, a favela é
representada nos filmes analisados como um espaço de conflito, sobretudo conflito
armado. A favela se torna nos filmes um palco para a guerra entre grupos ou mesmo
de personagens do mesmo grupo. A visão construída nos filmes é como se não fosse
108

possível para os grupos envolvidos na favela a resolução de disputas que não sejam
pautadas pela violência. A favela é representada como um quisto urbano (ADORNO
& DIAS, 2014), um espaço de exceção do Estado democrático, no qual tanto agentes
do Estado quanto sociedade civil podem ser violentos e sofrerem violência. A guerra
foi representada no cinema em países distantes e mesmo em outros mundos, no caso
destes filmes, a guerra está na cidade, mas na parte marginalizada e periférica da
cidade.

.
6 ANEXO
110

6 ANEXO

6.1 RESUMO DO FILME CIDADE DE DEUS (2002) E DESCRIÇÃO DOS


PERSONAGENS PRINCIPAIS

Personagens
Buscapé: protagonista e narrador do filme que almeja ser fotógrafo e sair da Cidade
de Deus.
Dadinho/Zé Pequeno: um dos personagens centrais do filme, representado como
pertencente ao mundo do crime desde a infância. Na vida adulta se torna um dos
líderes do tráfico da Cidade de Deus.
Mané Galinha: um dos personagens centrais do filme que no início do filme é
trabalhador, mas entra no crime para se vingar de Zé Pequeno, que estupra sua
namorada e mata seus familiares.
Cenoura: Traficante de Cidade de Deus.
Bené: Braço direito de Zé Pequeno, mas é representado como um criminoso não
violento.
Cabeleira: Membro do Trio Ternura.
Marreco: Membros do Trio Ternura e irmão de Buscapé.
Alicate: Membros do Trio Ternura.
Berenice: Mulher de Cabeleira.
Angélica: Namorada de Buscapé e depois de Bené..
Barbantinho: Amigo de Buscapé.
Thiago: Amigo de Buscapé e depois participante do grupo de Zé Pequeno.
Neguinho: Traficante. Depois que perdeu a boca para Zé Pequeno, passa a trabalhar
para ele. Assassino de Bené.
Paraíba: Dono de um bar em 1960. Preso por matar sua mulher.
Grande: Traficante.
Touro: Policial. Aparece apenas nos anos 1960 do filme.
Cabeção: Policia corruptol.
Resumo do filme
A história começa nos anos 1960 com o início do bairro Cidade de Deus,
criado pelo governo para abrigar moradores de favelas que foram destruídas por
inundações ou incêndios. No início do filme já se percebe a ênfase na criminalidade.
111

Buscapé, personagem-narrador, afirma que a história do bairro deve ser contada a


partir da história dos seus criminosos. O primeiro deles é o Trio Ternura, que realizava
assaltosna Cidade de Deus e era formado por Alicate, Cabeleira (irmão do Bené) e
Marreco (irmão do Buscapé) e eram acompanhados por duas crianças: Dadinho e
Bené. A partir de uma ideia de Dadinho (futuro Zé Pequeno), o Trio resolve assaltar
um motel localizado fora do bairro. O papel de Dadinho era avisar ao trio uma eventual
chegada da polícia. Embora a polícia não tenha aparecido, Dadinho se comporta
como se ela estivesse lá e, com isso, os integrantes do trio fogem. Dadinho entra no
motel, mata a todos e rouba o restante do dinheiro. Depois disso , o trio se desfaz e a
polícia começa a dar batidas frequentes na Cidade de Deus. Alicate se converte ao
cristianismo. Marreco começa a trabalhar para o pai e é morto por Dadinho, quando
foge da favela quando é flagrado com a esposa de outro morador da Cidade de Deus.
Cabeleira também é assassinado, mas pela polícia, quando decide fugir da favela.
A história dá um salto temporal. Buscapé entra na adolescência e se apaixona
por uma amiga, Angélica, além de descobrir sua paixão pela fotografia, após ser
demitido do emprego tenta realizar alguns assaltos, mas falha em todos; Bené e
Dadinho crescem no mundo do crime, Dadinho muda seu nome para Zé Pequeno e
investe no tráfico, tomando todas as bocas de Cidade de Deus, menos uma, a de
Cenoura, amigo de Bené.
Bené inicia um namoro com Angélica decide sair com ela da Cidade de Deus
mas, em sua festa de despedida é morto por engano (no lugar de Zé Pequeno). Zé
Pequeno sai da festa decidido a tomar a boca de Cenoura (Bené era quem o impedia),
no caminho, porém, estupra a namorada de Zé Galinha e mata seus familiares. A fim
de se vingar, Mané Galinha, que era trabalhador, se junta ao bando de Cenoura e se
torna também líder do tráfico em Cidade de Deus. Com isso tem início a guerra entre
Zé Pequeno e Mané Galinha/Cenoura. Mané Galinha é morto por uma criança em um
confronto com a polícia, quando são presos Cenoura e Zé Pequeno, mas este é
liberado pela polícia em troca de dinheiro. Falido, Zé Pequeno é morto por um grupo
de crianças que realizava pequenos assaltos em Cidade de Deus, os moleques da
Caixa Baixa.
112

6.2 RESUMO DO FILME TROPA DE ELITE (2007) E DESCRIÇÃO DOS


PERSONAGENS PRINCIPAIS

Personagens
Capitão Nascimento: protagonista do filme. Capitão do Batalhão de Operações
Especiais (BOPE) que precisa escolher como substituto Netou ou Matias.
Matias: personagem importante no filme, recém ingresso na polícia militar. Busca
conciliar vida profissional e pessoal
Neto: Amigo de Matias e também recém ingresso na polícia é o escolhido para
substituir Nascimento, em um primeiro momento.
Fábio: Policial corrupto
Rosane: Esposa de Nascimento
Maria: Namorada de André
Edu: Estudante de Direito e traficante.
Baiano: Líder do tráfico no Morro dos prazeres
Romerito: Garoto participante da ONG.

Resumo do filme
Neto e Matias são dois amigos de infância que ingressam juntos na polícia
militar do Rio de Janeiro. Neto se dedica à atividade policial, enquanto Matias cursa
Direito, auxilia uma ONG na favela e inicia um namoro com Maria. Na polícia, ambos
ocupam cargos administrativos e descobrem a corrpução na polícia. Neto usa da
corrupção policial para resolver um problema no seu setor, mas seu superior direto,
Fábio, recebe a culpa e não é assassinado porque Matias e Neto na tentativa de salvá-
lo provocam um tiroteio na favela. Os policiais são salvos pelo BOPE (Batalhão de
Operações Especiais) e Neto e Matias entram para o batalhão.
Maria descobre a profissão de Matias e termina o namoro, o policial abandona
a faculdade. O policial promete entregar uns óculos para uma criança da ONG na
entrada favela, mas tem entrevista de emprego no mesmo horário e Neto vai em seu
lugar. O líder do tráfico descobre sobre a ida de um policial à favela e o mata, sem
saber que Neto era do BOPE. Capitão Nascimento, que tinha escolhido Neto para ser
seu sucessor no cargo, motiva Matias a se vingar de Baiano para que o policial
consiga a ter um tipo de comportamento desejado para um Capitão do BOPE.
113

6.3 RESUMO DO FILME ALEMÃO (2014) E DESCRIÇÃO DOS PERSONAGENS

Personagens:
Doca: Policial infiltrado na Favela, onde tem uma pizzaria usada como centro de
inteligência.
Samuel: Policial infiltrado na favelaBranco: Policial infiltrado. Tem comportamento
agressivo. Danilo: Policial infiltrado. Marquinhos: Policial infiltrado. Namorado da irmã
de Senegal (e como chama a irmã de Senegal?). Alvo de desconfiança dos demais
policiais.
Playboy: Líder do tráfico no Morro do Alemão, ex namorado de Mariana, com quem
tem um filho. Senegal: Braço direito de Playboy. Caveirinha: Traficante que auxilia
Playboy e Senegal em suas atividades. Descobriu que havia policiais infiltrados na
favela.
Mariana: Ex-namorada de Playboy, com quem tem um filho. Funcionária da pizzaria
do Doca.
Letícia: Namorada de Carlinhos e irmã de Senegal.
Resumo do filme:
A cidade do Rio de Janeiro sediará as Olimpíadas e o governo busca pacificar
algumas favelas, O Complexo do Alemão é uma destas e para isto a polícia infiltra
cinco policiais na favela. Os traficantes descobrem os policiais e esses ficam
escondidos na pizzaria de um dos policiais. Ocorre diversos conflitos entre eles e uma
moradora, Mariana, entra na pizzaria sem ter conhecimento dos policiais e vira refém
dos mesmos. Os policiais são descobertos quando um dos traficantes usa a irmã como
isca para um policial. Os traficantes invadem a pizzaria restando somente as duas
moradoras vivas.
.
REFERÊNCIAS
ADORNO & DIAS, Sergio e Camila. Monopólio estatal da violência. In Crime, polícia
e justiça no Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora
contexto. 2014
AUMONT, Jacques. A estética do filme. Editora Papirus. 1994.
ALEMÂO. Direção: José Eduardo Belmonte. 1 DVD (90 min). Som, cor.
BEATO, Claudio & ZILLI, Luiz. Organização social do crime. In Crime, polícia e justiça
no Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora
contexto. 2014
BECKER, Howard. Método de pesquisa em Ciências Sociais. Editora Hucitec. São
Paulo, 1993.
BURGOS, Marcelo Baumann. “Cidade, territórios e cidadania” in DADOS – Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, nº1, 2005, pp. 189 a 222.

CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles & Kátia Lund. 1 DVD (135 min). Som,
cor.
COSTA & LIMA, Arthur e Rogério. Segurança pública. In Crime, polícia e justiça no
Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora contexto.
2014
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.
Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Versão online disponível em
http://jornalismoufma.xpg.uol.com.br/arquivos/a_casa_e_a_rua.pdf

DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. São Paulo, Ed. Forense. 1970


FARR, Robert M. Representações sociais: a teoria e a sua história. In: GUARESCHI,
Pedrinho e JOVCHELVOVITCH, Sandra. (Orgs). Textos em representações sociais.
Petrópolis/RJ. 2012
FELTRAN, Gabriel. O legítimo em disputa: as fronteiras do “mundo do crime” nas
periferias de São Paulo in Dilemas: Revista de estudos de conflito e controle social 1
(1), 93-148

GUARESCHI, Pedrinho & JOVCHELOVITCH, Sandra. Introdução. In: GUARESCHI,


Pedrinho e JOVCHELVOVITCH, Sandra. (Orgs). Textos em representações sociais.
Petrópolis/RJ. 2012
ANEXO 2115

JOVCHELOVITCH, Sandra. Vivenda a vida com os outras: intersubjetividade, espaço


público e representações sociais. In: GUARESCHI, Pedrinho e JOVCHELVOVITCH,
Sandra. (Orgs). Textos em representações sociais. Petrópolis/RJ. 2012
KANT DE LIMA, ROBERTO. Direitos civis, Estado de Direito e “cultura policial”: a
formação do policial em questão
KANT DE LIMA, Roberto. Prefácio in SILVA, Robson Rodrigues da. Entre a caserna
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