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BELO HORIZONTE
2018
VINÍCIUS TELES CÓRDOVA
BELO HORIZONTE
2018
VINÍCIUS TELES CÓRDOVA
CDU: 791.43-22
Ficha catalográfica elaborada por Rosane Alves Martins da Silva – CRB 6/2971
Aos meus pais, Artêmio e Mariângela, a eles todo créditos e amor que posso
imaginar.
À Joice e meus amigos, pelo vasto tempo que deixai de estar junto a eles, mesmo
eles ficando juntos de mim de diversas formas.
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pois sem o o auxílo não teria conseguido arcar com os custos de
um mestrado.
À Prof.ª Juliana Gonzaga Jayme pela leitura atenciosa e crítica que criou em
mim a atenção com o texto e atenção com o leitor, assim como a paciência com um
orientado ocupado demais em diversas outras atividades.
À Prof.ª Luciana Teixeira de Andrade pelas contribuições na qualificação, pela
disponibilidade sobre textos quanto por compor minha banca.
À Prof.ª Aurea Tomasi por ter aceitado o convite para compor a banca
À Prof.ª Ana Lúcia Modesto, por me mostrar da possibilidade de pensar o
cinema pelo olhar da antropologia. Esta dissertação nasceu em uma disciplina dela.
Ao meu Tio Magno e Tia Janete pela leitura da minha dissertação e por
conselhos que me acalmaram.
Aos meus colegas de mestrado pelas conversas que tornaram períodos
difíceis em bons momentos. Agradeço especialmente à Alexandra, Fernanda, Letícia,
Luana, Marina, Taciana e Thaís que compartilhei vários dos melhores, e por vezes
piores, momentos do mestrado.
Aos meus colegas e professores do curso técnico de teatro do CEFAR que
acompanharam todo o meu trabalho e me apoiaram quando precisei e me fizeram
“desligar” da escrita no papel e me levaram para a escrita no corpo.
Aos meus amigos-irmãos Eduardo, Fillipi (Pufe), Henrique, Marcos, Matheus
Duarte, Matheus Rosa, Rangel e Yuri pelos poucos momentos que convivemos
presencialmente neste período, mas que sempre estavam presentes quando precisei
para falarmos sobre qualquer coisa ou sobre nada.
À Joice por estar ao meu lado, e suportar meu estresse, por todo o processo.
Presente de diversas formas agradeço por tudo.
Aos meus pais que me mostraram a importância e o prazer do estudo, me
deram condições econômicas, afetivas e tudo o mais para que eu tenha chegado até
aqui. Se eu pudesse escreveria um agradecimento em cada página desta dissertação
para vocês.
SUMÁRIO
This dissertation bring a clarification about the favela representation three Brazilian
movies: Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) and Alemão (2014), to
understand the elements and singularities that compund each movie. The
representation analysis was based in the methodology created by Pierre Sorlin (1985).
He defines the delimitation of the objects analysed by period and sucesso f public an/or
critic. The movie study utilize the decupagem, process where a range of movie
elements ar analysed and compared. This is mad with a purpose to understand better
the movie representation. By the utilization of this process, I perform an analytic
division that consider the main groups that are exposed in the movies: policemen,
criminals and workers (ZALUAR, 1985). The first two groups, generally, are
represented as militarized grupos and the latter as a group that is located between the
conflicts them. In general, the favela is symbolized as a space of war and where the
crime is experiencied. In this same space the druga dealers are denoted as owners os
the place and the policemen choose between the omission and the warlike
confrontation of the criminals.
Key word: Cinema, Favela and Representation.
1 INTRODUÇÃO
11
1 INTRODUÇÃO
ditadura militar devido a incentivos fiscais, não se referindo a uma proposta estética ou temática, mas
a uma condição econômica e política (MARSON, 2006).
2 Dado obtido no site ANCINE: https://oca.ancine.gov.br/cinema
12
1.1 METODOLOGIA.
1 OLHOS PELOS QUAIS ASSISTI AOS FILMES: TEORIAS PARA UMA ANÁLISE
FÍLMICA
porque a organização social molda não somente o que é feito, mas também
o que as pessoas querem que as representações façam, que tarefa precisam
que seja realizada [...] e que padrões usarão para julgá-las. (BECKER, 1993,
p. 139)
distribuído, se torna “um baú de representações” que é visto de forma diferente por
cada indivíduo que “abre este baú”. Essa diferença interpretativa se dá a partir da
posição social de cada espectador.
Becker afirma que na representação o produtor busca relatar somente o
necessário para se comunicar, sem inserir qualquer elemento que vá além do que
busque relatar ao receptor. Para o cinema isto pode até ser uma busca para alguns
cineastas, como afirma Luís Nogueira (2010) ao tratar da produção de roteiros de
filmes não experimentais. Para analisar os filmes é preciso considerar que tudo o que
está presente no filme se baseia em uma intenção e não em “erros” da direção.
Importam ainda outros dois elementos da perspectiva de Becker (1993): a
materialização da representação e a linguagem específica do ofício. Tomando as
representações como um conjunto de ideias socialmente constituídas e que estão
presentes nos indivíduos desta sociedade, elas só podem ser transmitidas por meios
que sejam captados sensorialmente. As representações precisam se converter em
som, em imagem ou nos dois, como é comum no cinema. As imagens e sons do
cinema não são uma extração completa da realidade, no sentido de terem origem
somente nela, mas imagens e sons artificiais, o que leva a problematizar uma
interpretação que seja feita somente a partir das discussões de Becker (1993) para o
cinema.
Colocar as representações como originadas unicamente do real pode abrir
brecha para desconsiderar a criação a partir deste real, pois não somente se recolhe
da realidade seus elementos constitutivos, como também as relações que estes
elementos mantêm entre si. Ao meu ver, isso limita bastante o aspecto da criatividade
do produtor, ou seja, sua capacidade de recortar diferentes elementos da realidade e
uní-los para realizar algo novo. Não há como pensar a arte sem o elemento da
imaginação, não há como pensar a representação somente como parte da realidade,
é necessário pensá-la também como relativamente autônoma a esta realidade.
Esta relativa autonomia da representação pode ser percebida na perspectiva
durkheimiana, para quem a fonte das representações está no substrato das relações,
mas
uma vez que um primeiro caudal de representações foi constituído deste
modo, elas se tornam, em virtude das razões que já expusemos, realidades
parcialmente autônomas que gozam de uma vida própria e que têm o poder
de atrair-se, repelir-se, deformar entre si sínteses de naturezas diversas,
19
[A] teoria das representações sociais se articula tanto com a vida coletiva de
uma sociedade, como com os processos de constituição simbólica, nos quais
sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar
o seu lugar, através de uma identidade social. (JOVCHELOVITCH, 2012, p.
54)
3 Fato que recebeu alguma atenção por parte da mídia na época de lançamento do filme
Cidade de Deus, uma das reportagens mais atuais é da Revista IstoÉ, disponível no endereço
eletrônico: istoe.com.br/21469_IDENTIDADE+REVELADA/
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maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para
outras pessoas que querem sabe-lo, como atividades organizadas moldadas
pelo esforço conjunto de todas as pessoas envolvidas. (BECKER, 1993,
p.137)
Neste tópico, a reflexão está voltada para o filme em si. Num primeiro
momento, as discussões de Jacques Aumont (1994) e Ismail Xavier (2005) são
fundamentais. Ao final, o foco da reflexão é o espectador e sua relação com o filme, a
partir de estudos de Pierre Sorlin (1985) e Paulo Menezes (2003).
24
Esta impressão de realidade do filme nos faz tomar o que está dentro do
enquadramento, também chamado de campo, como parte de um “espaço mais vasto”,
como se fosse uma janela através da qual o espectador vê uma parte desse mundo.
Assim, há um espaço invisível que, embora fora do enquadramento, está
imaginariamente presente no filme para o espectador. Essa relação entre campo e
fora de campo, segundo Xavier (2005), ocorre em maior ou menor grau dependendo
do filme, de modo que o espaço cinemático consiste tanto do espaço interior ao
enquadramento quanto do exterior.
25
isto mais do que uma representação”4 (SORLIN, 1985, p. 42, tradução minha).
Considero que a partir desta citação é possível pensar sobre a ideia de construção da
realidade no filme. Sorlin traça uma primeira diferença com uma arte semelhante, a
fotografia. A fotografia transmite significados a partir de imagens estáticas, ao passo
que no filme os significados se dão por imagens que dão impressão de movimento.
Para o autor, isto seria o aspecto linear e global do filme e esta linearidade não é um
monobloco, mas um conjunto no qual se inserem inúmeros elementos que são postos
em relação. O processo de filmagem consiste em recortar e isolar objetos ou
personagens de onde se encontravam na realidade e os colocar de forma contígua no
filme. A imagem fílmica consiste em fragmentos descontínuos que são postos como
um concreto contínuo. Aqui entra um elemento crucial para o pensamento de Sorlin:
a imagem “bruta” captada por uma câmera disparada ao azar é uma imagem
construída, um conjunto espacial organizado em planos sucessivos que se
ordenam a partir do olhar do espectador. O que vemos no cinema, e o que
nos parece natural porque não conhecemos outras formas de audiovisual,
depende de uma técnica, ordenada ela mesma por uma concepção do papel
demarcado ao público no espetáculo. No curso de qualquer filme nos
encontramos em uma situação de observador privilegiado: objetos, atores,
textos, se reúnem em uma relação perspectiva cujo foco central é nosso olho5
(SORLIN, 1985, p. 118, tradução minha).
Sorlin (1985) reforça que estes elementos presentes no filme não podem ser
classificados como signos, pois estes existem somente quando há uma
intencionalidade por trás e que a unidade mostrada é utilizada para se referir a uma
4 La câmara registra cosas reales, pero essas cosas no son “la realidade”;son “la vida”
percebida, o reconstituída, o imaginada por quienes hacen el filme y nada nos permite consderarlas
más que como representaciones
5 La imagem “bruta” captada por uma câmara disparada al azar ya es uma imagem construída,
um conjunto espacial organizado em planos sucessivos que se ordenan respecto de la mirada del
espectador. Lo que vemos em el cine, y que nos parece natural porque casi no conocemos nada más,
depende de yna técnica, ordenada ella misma por uma concepción del papel assignado al público em
el espetáculo. En el curso de cualquier función, nos encontramos em situación de observador
privilegiado; objetos, actores, decorados, se reúnen em uma relación perspectiva cuja chave está em
nuestro ojo. (SORLIN, 1982, p.118)
27
significativos6” (SORLIN, 1985, p. 49, tradução minha). Por conta disso, é necessário
formular hipóteses para a análise fílmica, pois assim o pesquisador busca por sentidos
nos filmes, em vez de buscar signos visuais, em teoria, infinitos. O filme, para o autor,
tem uma construção de sentido interno, em um primeiro momento, pois ele deve ser
compreendido pelos elementos nele contidos.
Sorlin (1985), no entanto, não descarta que os filmes trabalham com certas
indicações e elementos que têm uso socializado e funcionam de fato como signos
para serem percebidos pelo espectador, por isso
O cinema é, ao mesmo tempo, repertório e produção de imagens. Não mostra
“o real”, mas sim os fragmentos do real que o público aceita e reconhece. Em
outro sentido, contribui para construir o domínio do visível, a impor imagens
novas.7 (SORLIN, 1985, p. 60, tradução minha)
6 “No existe una significación inherente al filme: son las hipótesis de la investigación las que
permiten descobrir ciertos conjuntos significativos.” (SORLIN, 1985, p.49)
7 “El cine es, al mismo tiempo, repertorio y producción de imágenes. No muestra “l real”, sino
los fragmentos de lo real que el público acepta e reconoce. Em outro sentido, contribuye a ensanchar
el domínio de lo visible, a imponer imagenes nuevas (SORLIN, 1985, p.60)
29
elementos que são, eles mesmo, mensagens globais dispostos em uma leitura
transveral.”8 (SORLIN, 1982, p. 61, tradução minha)
Se tomarmos espectador e filme como dois polos, a representificação seria a
ligação entre eles. O mundo construído no filme é posto em presença do espectador,
que articula os elementos presentes nesse para constituir, de fato, uma unidade. O
ato de ver um filme é uma construção entre elementos, no qual elementos isolados
são postos em relação, mais do que uma contemplação de fatos e coisas. Além disto,
Sendo assim, assistir a um filme não é um ato passivo, seja no que tange à
necessidade do espectador de construir relações, seja na opinião e sentimentos que
este mesmo espectador tem em relação ao que ele construiu ao assistir ao filme.
Assim, emerge a questão temporal apontada por Menezes (2003), pois a
representificação não se configura como algo linear (passado, presente e futuro), mas
é um entrecruzamento no qual se articula a cada exibição do filme passado e presente.
Mesmo que eu concorde com grande parte do que é aqui exposto, não é difícil
perceber que há algumas posições opostas entre os autores, o que exige uma tomada
de posição minha, além de existirem pontos em discordância particular. Esta parte
final do capítulo é um breve comentário sobre estes pontos.
Os filmes escolhidos para analisar seriam, na perspectiva de Aumont (1994),
narrativos e representativos, sendo que tomarei o filme como um mundo em si, ou
seja, como um espaço que contém uma realidade, mesmo que esta seja imaginada.
No entanto, me afasto levemente da concepção de uma total desconexão entre o
mundo fílmico e o nosso mundo, o mundo “real”, pois tomo que a própria matéria-
prima originária do filme é a nossa realidade. Em termos gerais, o filme tem contornos,
a meu ver, como uma representação no sentido de Durkheim (1970), para quem há
uma relativa autonomia em relação à realidade, mas a matéria-prima é a realidade.
Isto leva à discussão que foi feita a partir de Aumont (1994) e Xavier (2005)
sobre o enquadramento. Considero que o que está fora do ajuste tenha o mesmo
“peso” do que está no enquadramento, a existência do que está fora se baseia numa
concepção de coerência e homogeneidade com o que é presente dentro do
enquadramento. O que ocorre dentro desse é estruturante do que podemos imaginar
com o que ocorre fora do mesmo. Isto reforça não só a ideia de um mundo próprio, no
qual o que está enquadrado postula as leis deste espaço, como este mundo é
coerente internamente. No entanto, a visão deste mundo não é objetiva, mas
intencionada. Intenção que se transmite pelo olhar da câmera, desse modo, a
“abertura da janela” é a marca da subjetividade ao olhar para este mundo.
Isso se tornará mais evidente pelos filmes que escolhi para pesquisar, pois
eles apresentam três pontos de vistas muito distintos (a visão do favelado, a visão
exterior da favela pelo policial e a visão interna da favela pelo policial). Nessas visões
subjetivas vão se criando os sentidos do filme em uma relação que é horizontal e
vertical. Horizontal porque ela ocorre em uma dimensão temporal em que são
passados as imagens e os sons. Vertical, pois em cada instante há várias linhas de
sentido, vários elementos cinematográficos (como atores, iluminação, cenário, falas,
ruídos etc.) que ocorrem simultaneamente. O plano do filme tem duas dimensões:
cada elemento cinematográfico possui uma temporalidade que vai se processando ao
longo do filme. No entanto, isto é passado como um bloco ao espectador, sendo
necessário que o analista separe estes elementos e depois os agrupe novamente, a
partir de suas hipóteses de análise, para compreender tanto o mundo criado no filme,
quanto sua visão subjetiva.
2 NA FAVELA POLICIAL É ALEMÃO: A
REPRESENTAÇÃO DO POLICIAL
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É possível perceber nos três filmes que há uma tensão entre a vida pessoal e
a atividade profissional dos policiais. Na introdução de Tropa de Elite, por exemplo,
ouve-se Capitão Nascimento em off:
Na minha cidade tem mais de 700 favelas. Quase todas dominadas por
traficantes armados até os dentes. É só nego AR-15, pisto uzi e HK10. No
restante do mundo este equipamento é usado na guerra, no Rio de janeiro
são as armas do crime. Um tiro de 76211 atravessa um carro como se fosse
papel e é inocência achar que um policial nestas condições vai subir a favela
só para fazer valer a lei. Policial tem família, parceiro. Policial também tem
medo de morrer.
Nogueira (2010) afirma que em grande parte dos filmes a introdução demarca
os elementos mais importantes da trama, diante disso a fala de Capitão Nascimento
ganha maior relevo. A partir desta fala, nota-se se não um dilema, pelo menos uma
9 Expressão utilizada para se referir a pessoas não bem vistas pelos traficantes na favela, a
expressão “policial é alemão” é utilizada no filme Tropa de Elite, dita pelo líder do tráfico no filme,
Baiano.
10 Metralhadoras.
bélica estatal permite o árbitro dos conflitos e que a força é o instrumento limite pelo
qual o Estado force o cumprimento das suas decisões judiciais; a defasagem do poder
da polícia em relação aos bandidos permite o livre desenvolvimento de uma ordem
territorial de caráter privado. (ZALUAR, 1996). Desse modo a paridade de poder, ou
inferioridade bélica, constrói a representação da favela como uma outra sociedade,
alheia os desígnios do Estado ou como um Estado paralelo ao oficial.
A polícia é representada como uma instituição que tem a função de combater
o crime e que não a cumpre porque os policiais se afastam do seu papel por medo de
morrer. A atividade policial, assim, é representada como uma atividade mortal e, diante
dessa situação, alguns policiais aceitarão cumprir seu dever (mesmo correndo o risco
de morrer) e outros não. A opção do policial nos três filmes aqui analisados, demarca
se ele é honesto ou corrupto. Ser honesto, então, parece significar, se atirar para a
morte.
Parece que aqui a vida pessoal molda a conduta profissional, podendo
impossibilitar que a atividade seja executada corretamente. De acordo com Poncioni
(2007), nas sociedades democráticas há um ideal de policial, que se refere àquele que
aplica a lei de modo imparcial, neutro, seguindo os procedimentos protocolares da
instituição. Nas palavras da autora:
entrelaçamento de dois modelos: o burocrático-militar e a (?) aplicação
da lei. Assim, o policial é um operador imparcial da aplicação da lei e
relaciona-se com os cidadãos profissionalmente, de forma neutra e
distante, cabendo-lhe cumprir os deveres oficiais e seguir os
procedimentos de rotina, independentemente de suas tendências
pessoais e a despeito das necessidades do público, que muitas vezes
não estritamente enquadradas pela lei. (PONCIONI, 2007, p. 23)
12 Termo utilizado no filme para se referir à todos os policiais militares que não fazem parte
do BOPE.
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decisões voltadas para a ordem pública e tomadas a partir de uma lei abstrata para
decisões contextuais e pessoais. A vida pessoal é representada como algo que
modifica o policial, tornando-o não um agente que visa o cumprimento das leis de um
Estado, mas um agente que é motivado primeiramente por interesses e situações
particulares.
Depois disso, o ouvimos sua voz em off: “A guerra sempre cobra seu preço.
E quando preço fica alto demais é hora de pular fora.” Tanto o diálogo, quanto a última
fala, apresentam a tensão, ou o dilema, de Nascimento com o trabalho. Ter uma
relação satisfatória com a mulher, incluindo ter filhos, parecem ser incompatíveis com
a atividade profissional. A última fala ainda explicita que Nascimento vê a atividade
policial como uma guerra contra o crime. Tropa de Elite parece querer mostrar que
os policiais estão encerrados em um dilema difícil de ser solucionado. O ofício
entendido como atividade de guerra prejudica os vínculos familiares e esses mesmos
vínculos dificultam a profissão. Essa influência negativa da vida pessoal é
representada em Tropa de Elite quando o BOPE faz uma operação para prender
alguns traficantes e Capitão Nascimento não consegue agir adequadamente por medo
de morrer — e deixar a família desamparada — e ordena aos policiais que matem os
criminosos. O personagem explica em off o temor:
Lima (1997), mas faz parte do mundo do crime, não somente como a polícia é
categorizada por Feltran (2002), uma organização que está em constante contato com
os criminosos, mas de ser uma organização criminosa em si. Porém, diferente dos
traficantes, a polícia corrupta não constitui na favela uma relação de domínio territorial,
e sim se aproxima de uma organização que permite ou repreende a criminalidade
dependendo do seu arbítrio.
Carlinhos, do Alemão, é o policial com maior envolvimento com a favela,
relação ressaltada pelo mesmo em diversas falas, e essa proximidade o levou a
namorar uma moradora. No filme se subentende a participação do policial em
pequenos crimes com a finalidade de se infiltrar no grupo do líder do tráfico. Carlinhos,
dos policiais analisados, é o menos violento, agindo com agressividade somente como
uma forma de reação, e essa violência é restrita aos policiais e traficantes. A
capacidade militar do personagem é baixa, o que é representado nas duas cenas em
que confronta os traficantes: quando tenta negociar com Senegal a liberação de
Letícia, ele se coloca em risco e precisa que Branco o resgate; e na cena da invasão
da pizzaria é o segundo policial a morrer, apresentando pouca resistência aos
traficantes.
Considerando os policiais analisados, Carlinhos é o único que durante toda o
filme se mantém como um personagem não violento contra os moradores e também
é o único que mantém um vínculo afetivo forte com a favela e os favelados. Essa
relação é demonstrada na cena em que conversa com os policiais:
... me fodi pra caralho aqui dentro para quê? Pra quando isto aqui for ocupado
vir um soldado de merda como você vir escrachar a comunidade? Dar tapa
na cara de trabalhador?
que o policial pode constituir laços com a favela e seus moradores, desde que não
seja reconhecida sua profissão. Na representação que se cria sobre Carlinhos é
colocada que o ofício não altera drasticamente o comportamento do indivíduo de
modo que ele possa manipular a identidade oculta. O personagem constitui a
representação de que as relações tensas entre favela e policial não se referem a
questões entre um espaço e um indivíduo específico, mas entre a representação de
um espaço e uma função - uma profissão específica. O personagem reforça um
elemento que vai ser explorado no capítulo 4, que é da favela como um espaço do
crime. Pois o policial, quando reconhecido socialmente como tal, só pode se relacionar
com a favela considerando o crime, seja combatendo ou obtendo lucro com as
atividades criminosas.
Matias, do Tropa de Elite, é o personagem que mais se modifica dentre os
policiais analisados. No começo do filme, antes de entrar para o BOPE, ele tem
ligações mais próximas com a favela, representada na sua participação na ONG e na
proximidade com o garoto Romerito, além de ter grande envolvimento com a faculdade
e namorar uma colega de sala, Maria. Esta proximidade com a favela e com o restante
da sociedade é colocada com constância pelo Capitão Nascimento como algo que
aproxima o policial do crime ou, como é o caso de Matias, uma omissão em relação
aos crimes. O personagem não apresenta sinais de ser violento, assim como tem
baixa capacidade militar.
Após o treinamento do BOPE todos esses elementos se modificam. Matias
abandona a faculdade, Maria termina o namoro com ele e o personagem não mantém
mais contato com Romerito e sai da ONG. As interações de maior afetividade com a
favela são substituídas por interações violentas, sobretudo de tortura com os
moradores. A violência torna-se uma marca do policial, que passa a interagir de forma
agressiva com todos os outros personagens, o que reflete na sua extrema intolerância
a alguns crimes, como o tráfico de drogas. Ocorre também um aumento na sua
capacidade militar.
Matias no começo do filme apresenta várias semelhanças com Carlinhos do
Alemão, baixa violência, grande contato com a sociedade, pouco preparo militar.
Assim como Carlinhos, a proximidade do personagem com a sociedade, ou o mundo
fora da organização policial, é vista com desconfiança. Carlinhos durante quase todo
o filme é acusado de envolvimento com o crime e Matias é julgado por Nascimento,
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em off, em diversas cenas pela sua relação estreita com a sociedade. Duas cenas,
em específico, exemplificam a visão que Nascimento tem das relações próximas que
Matias tem com a sociedade: Matias fazendo trabalho em uma ONG na favela se
omite em relação aos colegas fumando maconha e ele escondendo a profissão para
a namorada. A primeira cena Nascimento recrimina a ida à paisana de Matias à favela,
subentendo que o policial só pode ir para este espaço para o combate ao crime, e
quando Matias se omite em relação aos colegas fumando maconha, Nascimento diz
em off:
Matias não devia estar ali. Mas já que estava tinha que dar o flagrante e atuar
os maconheiros no artigo 12 da lei 6368. O cara tinha acabado de entrar pra
faculdade e já estava aliviando os colegas.
alta capacidade militar. O conflito apontado no subcapítulo anterior entre vida pessoal
e vida profissional é respondido no Tropa de Elite quando o policial abdica das
relações pessoais e afetivas e incorpora uma moral policial na sua vida cotidiana. A
destituição destes laços como critério para se tornar um policial do BOPE é vista em
uma das últimas cenas do filme: ex-colegas de faculdade de Matias fazem uma
marcha em protesto à morte de uma colega morta pelo tráfico, Matias vai à passeata
e agride seus colegas fisicamente e verbalmente, pois um deles provocou a morte de
Neto. Em off Nascimento diz: “O Matias não estava somente vingando a morte do
amigo, ele estava se transformando em um policial de verdade.”
A representação do policial no filme Tropa de Elite se refere não somente a
uma atuação profissional militarizada, mas também pelo cumprimento de uma série
de restrições e regras na vida pessoal (não frequentar espaços com potencial
criminoso, como a favela e a faculdade, ter uma postura violenta no seu cotidiano).
Como consequência, a profissão é utilizada para exercer poder sobre a sociedade
civil, ordená-la e usá-la estrategicamente tendo como base seu poder militar e jurídico.
De modo que não se nega a vida pessoal, mas busca-se destruição das possíveis
contradições entre vida pessoal e profissional por meio de uma imersão do
personagem na organização policial e um afastamento da vida paisana.
Considerando somente os personagens policiais analisados, Neto é o mais
distante de relações sociais que não sejam dentro da organização policial. Somente
uma cena ele conversa com um favelado, Romerito, mas o faz no lugar de Matias, que
não poderia encontrar o menino. Com exceção desta cena, não há qualquer interação
de Neto com qualquer outro personagem que não seja policial ou criminoso. A
capacidade militar do personagem é a que mais modifica ao longo do filme. No início,
Neto é representada com uma baixa estratégia de guerra, explicada por sua
impulsividade, que aparece em dois momentos distintos: no início do filme, antes de
ingressar no BOPE, quando ele e Matias tentam resgatar Fábio no baile funk, e
provocam um tiroteio entre policiais corruptos e traficantes; no treinamento do BOPE,
quando o grupo de concorrentes ao batalhão faz uma operação na favela, Neto se
coloca em situação de perigo para matar um traficante. A violência é uma marca do
personagem, pois mesmo que não esteja em uma operação policial, o personagem
constantemente é apresentado em alguma atividade que remete à violência
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(brincando com uma arma ou dando soco em um saco de boxe) e o seu tom de voz
invariavelmente é agressivo.
Neto é o personagem que se enquadra na categoria de soldado, um policial
que apresenta mais características militares do que civis no seu comportamento,
postura e modo de compreender a sociedade (SILVA, 2011). O seu isolamento da
vida paisana, que não se modifica ao longo do filme, é uma das principais
características do personagem e que permite seu comportamento rígido e violento
com os criminosos. O soldado é caracterizado por somente conseguir resolver
embates e crimes a partir do uso da violência, característica priorizada em batalhões
que visam o combate armado do crime, como o BOPE. A única característica que não
tornava Neto um soldado ideal é a sua impulsividade, ou seja, sua falta de capacidade
de controle da sua raiva em favor da estratégia militar. No entanto, Nascimento
modifica o policial e o treina para que ele transforme a violência já presente em uma
violência controlada e racional. A violência não é repugnada nesta representação, mas
é algo que deve ser direcionada para o combate ao crime, de modo que fatores
passionais são tidos como características necessárias para a constituição de um bom
policial. Considerando que as paixões de um indivíduo se referem às características
do mesmo, de encontro às situações específicas, ela está de encontro às atitudes de
caráter racional e universal. A característica desejável ao policial é uma característica
contrária à democracia.
Nos filmes, a representação do policial-soldado carrega consigo o aspecto de
um profissional honesto, no sentido de não se envolver com os bandidos. O Tropa de
Elite é o único dos três filmes que aborda um batalhão específico para policiais desse
tipo, que escolhem entrar para a guerra contra o crime. A relevância de um batalhão
especializado é a representação da polícia convencional como estruturalmente
corrupta e que se omite ao crime. Em Cidade de Deus e Alemão o batalhão específico
não está na representação, subentendendo que os policias fazem parte da polícia
convencional (os batalhões que não visam um treinamento específico de guerra ao
crime) e nos dois filmes os policiais se relacionam de algum modo com uma atividade
criminosa ou a ela se omitem.
A representação do soldado como o mais próximo do ideal de policial honesto
carrega a concepção da necessidade de violência contra os criminosos, vistos como
inimigos. A violência policial do soldado entra na categoria de abuso da força, pois os
44
generalizado para o confronto e, por isto, considera que acabar com o crime é acabar
com os criminosos (KANT DE LIMA, 1997).
suficientes para definir a organização policial como corrupta, mas as ações corruptas
continuadas dos policiais podem ser categorizadas como institucionais, se
estendendo no tempo (Cidade de Deus), possuindo um alcance amplo na organização
(Alemão e Tropa de Elite) e tendo uma articulação relativamente estável (Tropa de
Elite).
A polícia é uma organização que visa a regulação da ordem na sociedade,
sendo potencialmente presente em diversos setores da vida cotidiana. A função do
policial é garantir o funcionamento social, inibindo o exercício de atividades que
possam prejudicar ilegalmente outros cidadãos (KANT DE LIMA, 2014). Aproveitando
dessa imersão da polícia em diversos setores, assim como do monopólio da força pelo
Estado, em Tropa de Elite aparece a criação do “sistema”, uma série de práticas de
corrupção policiais envolvendo vários grupos da sociedade. As cenas que escolhi para
analisar apresentam um panorama da corrupção policial representada nos filmes,
existente tanto na relação da polícia com diferentes setores da sociedade, quanto
dentro da organização.
Em Tropa de Elite e Cidade de Deus os policiais ganham dinheiro em diversas
atividades ilegais, como o tráfico ou legais, como oficinas mecânicas, mas, por vezes,
com condutas ilegais, como a burla de algumas leis. Quando Neto conhece o
funcionamento do “sistema”, em Tropa de Elite, são apresentadas tanto as relações
de corrupção entre setores da economia formal e os policiais, como dentro da própria
instituição e um conflito entre policiais corruptos para decidir quem obteria os lucros
das negociações ilegais. O principal elemento da representação da corrupção policial
no Tropa de Elite, como nos outros filmes, é o manuseio e a particularização da
atividade policial tendo fins econômicos e individuais. Assim, a polícia deixa de ser
uma organização estatal e universal (KANT DE LIMA, 1997) que atende os cidadãos
em seus direitos e deveres e passa a ser uma organização econômica que atende
determinadas pessoas em suas necessidades específicas, mediante pagamento
(ilegal).
A corrupção policial vem tanto por parte da polícia como de cidadãos que
também não acreditam em uma aplicação universal da justiça, ou seja, em valores
democráticos (ADORNO & DIAS, 2014). Usando do seu monopólio da força, a polícia
atende as necessidades particulares, podendo ou não “cumprir a lei”, no sentido de
repressão do crime e não do caráter universal das leis. O “sistema”, então, tem
47
potencial para estar em toda a sociedade e se configura como uma forma privada de
resolução de conflitos (ADORNO & DIAS, 2014) que concorre com a segurança
estatal. Ou seja, de dentro de uma organização do Estado surge uma instituição fruto
da crise de legitimidade da democracia como modelo de resolução de conflitos
(ADORNO & DIAS, 2014).
O “sistema”, no entanto, não é um bloco, ou seja, há disputas internas pelo seu
controle. Aprofundando o que é inicialmente colocado em Cidade de Deus como
amplamente presente na polícia, Tropa de Elite afirma que é algo uniforme na polícia
convencional, mas que os policiais corruptos têm que disputar pelo seu espaço no
“sistema”. A disputa é resolvida tanto pela hierarquia dentro da instituição, de modo
que as patentes mais altas têm privilégio também na prática da corrupção, como uma
proteção organizacional para praticá-la e, no limite, o assassinato de concorrentes que
atrapalham o lucro dos policiais nas patentes mais altas.
A corrupção aparece no filme como uma modificação da funcionalidade da
organização policial para atender as demandas da corrupção e sua manutenção.
Matias é alocado no departamento de inteligência do batalhão e faz um relatório que
demonstrava as falhas no policiamento. Seu superior ordena que o policial adultere
os dados para não gerar cobranças de seus superiores. Em off, Nascimento explica:
“A polícia depende do sistema e o sistema trabalha para resolver os problemas do
sistema.”. A cena revela os elementos já citados: conhecimento do exercício correto
da polícia, mas seu não cumprimento por motivações individuais. Há ainda outros
elementos importantes desta cena que serão analisados abaixo.
Em primeiro lugar, em Tropa de Elite, assim como em Alemão é mencionada
uma relação hierárquica dentro da organização policial, mas ao contrário do primeiro,
esta hierarquia não força a obediência da função policial, mas motiva os policiais
corruptos a não cumprir sua função. Devido à hierarquia os dados são alterados, o
que revela que nos filmes a polícia é representada como corrupta e arbitrária, sendo
que o policial mais próximo das atividades da rua lida com as situações de forma
distanciada das normas corretas de operação policial (SILVA, 2011). O policial da rua
utiliza da sua posição e do desconhecimento de policiais de altas patentes dos
acontecimentos para a prática da corrupção.
O segundo ponto é a hierarquia como motor de corrupção dos policiais de
patente mais baixa. Na cena sugere-se que o policial, mesmo visto como honesto, vai
48
De modo que o “sistema” altera a atividade policial em sua essência, mas usa de sua
estrutura para se manter. O “sistema” tem uma capacidade de neutralizar qualquer
forma de destruição, o que é possível ser feito é apenas alterar os policiais que se
beneficiam dele. A possibilidade do uso da força pelos policiais impede que civis, e
policiais de patentes mais baixas, sejam capazes de se opor a situações de corrupção
e violência perpetradas pelos policiais. Isto faz parte da segunda face do Estado, a
primeira de servir a população e a outra de controle e domínio dos subalternos
(ZALUAR, 1996), assim o Estado nos filmes é representado somente como instância
do controle e do poder policial.
Há uma naturalização da corrupção na polícia convencional, pois a estrutura
na qual ela se baseia é permissiva e as práticas corruptas continuamente reiteradas
criam a impressão de serem inerentes a uma organização (COSTA & LIMA, 2014).
Os conflitos no primeiro terço do filme Alemão se baseiam na possibilidade de
corrupção por parte de algum dos policiais, corrupção que teria levado à descoberta
da identidade dos policiais e à perseguição empreendida pelos traficantes. Há a
representação de que qualquer policial pode ser corrupto devido às características da
organização, mas porque ser corrupto é fruto da decisão individual, há também
constante desconfiança entre policiais, pois um sempre vê o outro como um corrupto
em potencial. O que reafirma a ideia de que a própria atividade da polícia convencional
leva à corrupção, pois esta fica em contato mais direto com a sociedade civil e esta é
representada permeada por relações perpassadas por crimes e infrações. O policial
em contato, nessa representação, em algum momento se omitiria ou beneficiaria com
o crime. A matriz desta representação é da sociedade civil como origem do crime, o
que segundo Zaluar (1984) vem de uma incompatibilidade entre a moralidade comum
da população e uma lei que não vem das relações constituídas da mesma população,
mas é externa em grande medida a mesma.
negociada com os criminosos. Ao passo que Silva (2011), coloca o espaço público
como campo de atuação da polícia, na favela o que seria o espaço público não o é,
pois a favela não é representada como um espaço público, mas um território do tráfico.
Assim, a representação dos filmes coloca a favela como um espaço que a atuação
policial não é dada, mas sim um ponto de tensão. A polícia pode se apresentar na
favela desde que conivente com o crime, caso contrário sua presença implica em
guerra. Neste sentido a representação dos filmes ganha caráter dualista: o policial,
reconhecido socialmente como tal, está na favela como parte do mundo do crime ou
para eliminar militarmente os criminosos.
A seguinte sequência apresenta as possíveis consequências da ida de um
policial à uma favela. Em um apartamento, Neto brinca com uma arma enquanto
Matias tenta estudar, mas não consegue se concentrar devido ao barulho da arma:
ideia de que o espaço tem importância sobre as ações dos personagens, o que fica
explícito nos filmes aqui analisados.
A percepção da favela como um lugar do crime é uma representação comum
entre os personagens policiais dos filmes aqui analisados. Essa representação vai ao
encontro da ideia proposta por Zaluar (1994), de uma “teoria da marginalidade” que
consiste em tomar os favelados como uma população sem consciência jurídica, com
fortes vínculos com a criminalidade e que, além de se opor, desrespeita a polícia. No
entanto, o modo de lidar com este espaço altera dependendo do personagem. Os
policiais que tomam a sua profissão como uma guerra contra o crime, veem a favela
como espaço para intervenção militar. Em Tropa de Elite, por exemplo, há uma cena
em que Matias, ao ser recriminado por Capitão Nascimento porque vai à paisana para
a favela, responde: “Mas eu vou subir armado, parceiro. E de farda preta” 13. A
representação construída é da impossibilidade de um policial visar o combate o crime
e desenvolver uma relação com a favela que não tenha caráter militar. Carlinhos, de
Alemão, é alvo de suspeitas por parte de seus colegas por ter contato íntimo com a
favela e seus moradores. Ou seja, a favela é vista como inimiga da polícia, exatamente
por ser representada como espaço do crime.
A representação fílmica acompanha a discussão de Kant de Lima (2014), que
afirma que o não envolvimento da polícia no cotidiano da favela, torna o policiamento
mais mortal para os moradores da favela e para o próprio policial. Em Cidade de Deus
e Tropa de Elite há morte na maioria das cenas que mostram a polícia na favela. Em
Alemão, quando os policiais infiltrados são descobertos, se tornam “jurados” de morte
pelos traficantes.
A tensão por estar no espaço da favela é mantida mesmo no caso dos policiais
corruptos, ainda que de forma diferente em relação ao policial que guerreia contra o
crime. Em Cidade de Deus a polícia, personificada no personagem Cabeção, é
representada em grande parte como corrupta. Em uma cena curta, na qual Buscapé
em off explica como funciona o tráfico de drogas na favela, o policial solta dois
traficantes em troca de dinheiro. A cena representa a favela e o tráfico como parte do
“sistema” para o policial corrupto.
A representação do policial corrupto no tráfico é de um personagem que
decide quais traficantes poderão ou não continuar no tráfico. Como será discutido no
capítulo 3, as relações de dominação do traficante sobre os demais moradores da
favela são feitas pelo uso ostensivo da força, representada pelo porte de armas
(ZALUAR, 1985) e estas são vendidas pela polícia para os criminosos. Nos três filmes
são apresentadas negociações ou alusões a policiais que vendem armas para o
tráfico. A polícia corrupta é representada nesses filmes como um obstáculo financeiro
para os traficantes, já que eles precisam pagar aos policiais para operarem seu
comércio, mas os policiais também auxiliam no controle dos traficantes sobre a favela
fornecendo armamento para os bandidos. Em Tropa de Elite, o conflito em potencial
é representado se dá a partir do confronto armado entre policiais corruptos e
54
traficantes após Neto ter matado um policial. O laço econômico que se cria entre os
policiais corruptos e os traficantes não os torna parte de um mesmo grupo. É comum
que uma das partes rompa o trato.
Em Cidade de Deus, a ideia que se passa é que os bandidos têm vantagem
na relação com a polícia, exatamente porque têm mais armas. Isso fica claro na cena
em que Cabeção busca intimidar Zé Pequeno para que ele pague pela compra das
armas, mas é repelido pelo traficante e seu grupo devido ao seu poderio bélico. Em
uma cena posterior, os policiais prendem Zé Pequeno e o soltam para que ele pague
pela compra das armas. A principal ferramenta de ambos os lados para manter as
relações de troca é o poderio bélico, mas, nos filmes, os traficantes aparecem sempre
como tendo maior poder, e, daí, mais controle para negociar a corrupção.
A partir do que foi dito, pode-se pensar que a favela é representada nos filmes
investigados como um quisto urbano, definido por Adorno & Dias (2014) como:
percebem a favela como um espaço que possui uma “legislação” própria, totalmente
alheia ao Estado de direito, que contribui (pela omissão) com a prática do crime. Na
visão dos policias, a favela é o lugar do crime, seja cometida por parte dos traficantes
ou dos policiais. Sendo corrupta ou “honesta”, a polícia não toma ações por completo
legítimas, pois estas se baseiam na vontade policial e não na coletividade que legitima
um Estado (KANT DE LIMA, 1997).
A percepção da favela como um espaço do crime e propício à violência física
dá origem à sua representação como espaço de guerra para os policiais. Enfatizo a
noção de guerra para a polícia porque tanto em Alemão quanto em Tropa de Elite e,
de um modo específico (que será explicitado no capítulo 4) em Cidade de Deus, a
favela sem os policiais “honestos” tende a apresentar um cotidiano sem conflitos
militarizados, pois a polícia honesta entrará em conflitos com os traficantes tornando
a favela um espaço de guerra. Em Alemão, por exemplo, há uma coexistência pacífica
entre moradores e traficantes até que a polícia aparece como personagem do espaço.
Em Tropa de Elite em todas as cenas em que aparecem policiais honestos na favela,
há conflito armado. A fala em off de Capitão Nascimento sobre Neto e Matias em
determinada ação realizada na favela revela o que está sendo dito:
No Rio de Janeiro o policial tem três opções: ou se corrompe, ou se omite ou
vai para guerra. Naquela noite Neto e Matias fizeram a mesma escolha que
eu tinha feito há dez anos atrás: eles foram para a guerra.
violentos quase como únicos constitutivos da vida dos bandidos e os imputa como
necessário nas relações da favela (SILVA, 2004). A representação do filme se pauta
por uma “exotização” da favela.
Para Feltran (2008), a entrada no mundo do crime acontece paulatinamente,
acompanhada da saída, também aos poucos, do mundo legal. Em Cidade de Deus,
Dadinho é representado, desde a infância, como imerso no mundo do crime, pois
todas as personagens com quem se relaciona cotidianamente são deste mundo e,
talvez mais importante, ele não se relaciona com pessoas pertencentes o mundo legal,
seja na família, na escola ou na igreja. Ou seja, ele é representado como despojado
de laços sociais com o mundo legítimo — ou seja, com alta imersão no mundo do
crime, nos termos de Feltran (2008) — desde a infância.
A forma como é representada a infância das duas personagens já direciona o
espectador para a representação da sua vida adulta: Buscapé como trabalhador e
Dadinho como bandido. Buscapé afirma que não será policial nem bandido por medo
da violência, e Dadinho é descrito por Buscapé, o narrador da história, como uma
criança violenta e com uma inteligência voltada para o crime. Nas concepções
aparentemente opostas se mantém a semelhança de um cotidiano marcado pela
violência (SILVA, 2004), a diferença reside na forma como os personagens lidam
(com) e pensam (sobre) a a violência: se o trabalhador busca se afastar da mesma, o
bandido tem o poder de provocá-la e uma compreensão da realidade que visa esta
violência. O bandido tem o uso da força como princípio organizado de suas relações
sociais (ZALUAR, 1985, SILVA, 2004).
Buscapé, desde criança, sonha com a profissão de fotógrafo. Dadinho, por
outro lado, como narrado por Buscapé, já é predestinado ao sucesso no crime seu
sonho é se tornar o “dono do morro”. A relação entre o “presente” e o “futuro” dos
personagens parte de uma situação comum: a favela como espaço da violência
urbana. O desejo de Buscapé de seguir a profissão de fotógrafo surgiu ao ver um
fotógrafo registrando a morte de Cabeleira, o que aponta para dois elementos para
pensar a representação do trabalhador em Cidade de Deus. A primeira é do morador
como testemunha da violência na favela, o que será explorado no próximo capítulo, e
o segundo é a indiferença gerada no trabalhador em relação à morte dos bandidos.
Zaluar (1985) afirma que a sociabilidade marcada pela violência e a fatalidade do
mundo do crime distancia o trabalhador de uma relação afetiva com os bandidos, que
62
se tornam personagens em uma narrativa cotidiana no qual a morte é dada, vista como
certa (ZALUAR, 1995). Em Cidade de Deus, se Buscapé se relaciona com a violência
como testemunha, Dadinho, diferentemente, é agente dessa violência. A distinção
dele como bandido se assemelha à distinção que os trabalhadores fazem destes:
indivíduos que usam da força excessiva para realizar suas vontades (ZALUAR, 1985).
Embora as identidades sejam representadas no filme de forma essencializada,
também é possível notar a ideia de que favela propicia os meios para uma vida
criminosa. Assim, se para Buscapé, ser fotógrafo é um sonho pensado como
inatingível — ele se torna fotógrafo por acaso —, a carreira criminosa de Dadinho é
vista como dada e o seu sucesso não aparece como improvável. Persiste em Cidade
de Deus a representação (que data do início das favelas no Rio de Janeiro em 1920)
da favela como antro da marginalidade e como espaço fecundo par ao
desenvolvimento de atividades ilícitas (VALLADARES, 2005). A favela torna-se mais
o espaço do bandido, do que o espaço do trabalhador, de modo que o favelado
trabalhador tem na sua linha de horizonte o desejo de sair deste espaço que não lhe
pertence.
O trabalhador carrega consigo a representação da liberdade, ou seja, de um
sujeito que pode construir sua história, pois seus caminhos não são dados. O bandido
tem um caminho traçado já na sua infância, que é corroborado por todos os seus atos
e suas condições como pessoa: violento, inteligente e despojado de laços sociais.
Enquanto o caminho no mundo do crime é apresentado como único, não esquecendo
que nos filmes analisados o crime torna-se sinônimo de narcotráfico, o caminho no
mundo legal é diverso. Se o bandido argue para si o direito da liberdade suprema
(ZALUAR, 1995), nos filmes sua liberdade de escolha é limitada e seus atos são
encadeados em uma sequência determinística de causa e efeito previsíveis.
O paralelismo entre um personagem trabalhador e um bandido continua na
vida adulta dos dois personagens, no ano de 1970. Dadinho modifica seu nome para
Zé pequeno e torna-se o líder do tráfico por meio da morte de traficantes e roubo de
pontos de droga já existentes na Cidade de Deus. O personagem toma propriedade
de quase todos os pontos de droga, com exceção da “Boca do Cenoura”, pois o dono
era amigo de Bené. A pedido do amigo, Pequeno não mata o dono da “Boca dos
Apês”, mas o obriga a trabalhar para ele.
63
Ao longo do filme, Playboy apresenta dúvidas sobre sua decisão pelo crime,
momentos em que Senegal o repreende e o motiva a continuar no mundo ilegal. A
polarização é feita explicitamente pelas relações que o personagem constrói no
mundo do crime, de modo que não são os atos criminosos que fazem um personagem
perder seus laços com personagens do mundo legítimo, mas outros personagens
pertencentes ao mundo do crime que promovem a dissolução destes laços. Mas este
distanciamento com o restante da sociedade não é completo, mas pragmático. O
criminoso pode ter acesso a alguns benefícios desta sociedade por meio do poder
adquirido pelo crime, como dito por Senegal a Playboy “Nós tá pesadão, o que tu
quiser tu tem. Ouro, mulher...” A entrada no mundo do crime é construída por um
distanciamento de algumas relações possíveis com o restante da sociedade, mas que
buscam auferir algo desta sociedade, especificamente elementos que na visão dos
criminosos podem ser colocados como consumo (ZALUAR, 1995).
A perspectiva do crime como meio para obter melhorias no mundo legítimo não
se percebe Cidade de Deus, pois tanto Zé Pequeno e Mané Galinha são
representados como criminosos que almejam o poder dentro do mundo criminoso. No
caso de Buscapé, o desejo de ser bandido se refere a ter uma vida melhor no mundo
legal, mas ele não se torna bandido. A ausência de uma busca concreta pelos
benefícios que o poder pode conferir ao personagem no mundo legítimo revela a
representação do bandido como imerso totalmente no mundo do crime. Como afirma
Feltran (2008), o crime cria uma lógica que se aparta do mundo legítimo e se torna o
interesse primário do indivíduo.
Em Tropa de Elite o criminoso que recebe maior atenção é Baiano, líder do
tráfico no Morro dos Prazeres e que é o único personagem identificado como bandido
que possui família — mulher e filho. Pode-se dizer que ele representa a ideia de que
a inserção do indivíduo no mundo do crime não implica em uma saída total dos
mundos legítimos. No entanto, algumas ações criminosas específicas podem levar à
ruptura dos vínculos familiares do criminoso, há algumas regras dentro do mundo do
crime que, se respeitada, permite compartilhar os laços sociais. Em Tropa de Elite, a
dissolução dos laços familiares do criminoso ocorre somente após o assassinato de
um policial do BOPE, dando a entender que um policial convencional não alteraria a
dinâmica presente no cotidiano do traficante. Mas esta dissolução ocorre pela
eminência da morte do bandido, neste sentido, em Tropa de Elite se constrói a
70
Elite, quando o líder do tráfico no baile gerencia os outros criminosos que fazem a
segurança da favela. Quando os policiais corruptos entram no baile para receber a
propina, o líder destaca um traficante para efetuar o pagamento e dois para escoltá-
lo. Esta cena representa a estrutura militar do tráfico — um líder com amplo poder
sobre seus subordinados e que gerencia e organiza os demais traficantes. Essa
estrutura militar do tráfico está presente nos três filmes). As resoluções cotidianas ou
eventuais, passam pelo crivo do líder e, via de regra, suas ordens são seguidas sem
questionamento. Dentro dessa estrutura há duas funções básicas: verificar a entrada
e saída de pessoas da favela; e confronto militar.
A representação da hierarquia do tráfico é demarcada pelas fronteiras da
favela, onde as regras do tráfico têm influência não somente sobre os criminosos, mas
também sobre trabalhadores e policiais. Dentro da favela, o tráfico é representando
como permeando todas as atividades, definindo o tráfego de pessoas e mercadorias.
A cena citada acima representa também o vínculo (e a dependência mútua) que se
cria entre a estrutura militar e econômica do tráfico de drogas, pois o comércio da
droga é defendido pelos aparatos militares do traficante e estes são munidos pelo
dinheiro vindo do tráfico.
A hierarquia econômica e funcional do narcotráfico é resumida em Cidade de
Deus por Buscapé:
poder por meio da violência física, nos termos de Zaluar (1985), fazer uso da máquina.
O mundo do crime, sobretudo no seu aspecto de potencialmente violento, aparece
como algo da vida do favelado, o que torna este mundo legitimado dentro da favela.
Esta legitimação pelo contato constante é algo observado por Feltran (2005) nos seus
estudos sobre a periferia de São Paulo.
Tela preta e em letras brancas lê-se que o filme trata sobre uma unidade da
polícia infiltrada no Morro do Alemão para auxiliar no processo de pacificação da
favela. Em seguida aparece a cena descrita acima. Nota-se que há a representação
imagética de uma favela que tem o crime como elemento constitutivo, daí, é possível
pensar que a música “Enxugando o gelo” seja um comentário sobre a tentativa de
pacificação do lugar, pois a expressão “enxugar gelo” remete a ações paliativas, que
cuidam do sintoma sem resolver o problema. Esta ação ineficiente pode ser o
processo de pacificação do Morro do Alemão, como se o crime fosse visto como parte
constitutiva e estruturante da favela.
As relações de copresença pacífica entre moradores e criminosos é
apresentada na introdução de Tropa de Elite. A partir de cortes rápidos que intercalam
o nome dos atores que participam do filme com cenas esparsas de um baile funk, vê-
se moradores e traficantes dançando, não aparentando qualquer relação de
desconforto entre as partes.
83
A ideia de que não há separação entre os dois grupos é reforçada por alguns
mecanismos fílmicos: compartilhar um lugar comum; uso do espaço de forma
semelhante (pela dança) pelos dois grupos e por uma continuidade na paleta de cores
que se mantém em tons de azul, pois as personagens se confundem no plano visual
e transmite ao espectador uma imagem sensorial semelhante. O que diferencia um
grupo do outro, assim como na introdução de Alemão, é somente o porte de armas.
Há uma representação de contiguidade entre o morador não bandido e o traficante,
na qual a diferença imagética se resume ao porte da arma. Esta contiguidade ganha
maior reforço porque os filmes não exploram uma das diferenças pontuada por Zaluar
(1985) para a autoidentificação dos moradores não criminosos dos criminosos: o
trabalho. Ao longo do filme há poucas cenas que aludem ao trabalho constante por
parte dos moradores.
84
15 Na primeira cena, Paraíba chega em casa e encontra sua mulher na cama com Marreco, que foge.
Ele bate na mulher com a pá até mata-la e depois a enterra em sua própria casa.
85
Outra ideia que se explicita no filme se refere a uma relação não conflitiva
entre trabalhadores e bandidos, quando os primeiros podem ser possíveis
beneficiários das ações dos criminosos, inclusive participando indiretamente destas
ações. Tais ações, no entanto, não são representadas no filme como crime, esses
trabalhadores não são enquadrados como criminosos pelos policiais. Assim, a
diferença entre moradores e criminosos não se dá pela possibilidade de cometer um
crime, mas por não deter os meios físicos para cometê-lo, a máquina (ZALUAR, 1984)
aparece como diferenciador entre os grupos. E os benefícios do crime ao morador
podem ser diversos, com estes recebendo dinheiro dos criminosos, seja por estarem
presentes no momento do crime ou por receber diretamente o dinheiro do assalto
devido a laços familiares. Essa representação se assemelha ao que Feltran (2008)
analisa ao estudar periferias de São Paulo. O autor comenta que as mercadorias
obtidas em atividades criminosas circulam para fora do mundo do crime, mas isto não
dissolve as fronteiras entre este mundo os mundos legítimos.
Também, em Tropa de Elite e em Alemão, aparecem os laços familiares entre
bandidos e trabalhadores nas favelas, o que pode reforçar a representação de uma
ligação estreita entre trabalhadores e criminosos. Em Tropa de Elite há duas cenas
em que moradores e criminosos são apresentados como parentes. Na primeira, a mãe
86
16 Pessoa responsável por avisar aos bandidos sobre a chegada da polícia no morro por meio de
foguetes.
87
A favela é representada nos filmes, em geral, sob duas perspectivas que não
se contradizem e aparecem conjuntamente: como palco de guerra e como território
do crime. Esta última foi tratada no capítulo anterior, aqui o foco é a primeira.
Se em Cidade de Deus, a “personagem principal” do filme pode ser pensada
como o próprio espaço — o conjunto habitacional —, a briga entre Zé Pequeno e Mané
Galinha tem um papel fundamental no enredo e a ideia de guerra se torna cada vez
mais forte, sendo muitas vezes explicitada pela narração de Buscapé:
O que era para ser uma vingança rápida e localizada se transformou em uma
guerra. A Cidade de Deus ficou dividida, quem morava na área de um dos
bandos não podia passar para o outro, nem pra visitar parente. Pra polícia,
morador de favela virou sinônimo de bandido e a gente se acostumou a viver
no Vietnã.
89
Progressão em favela é uma arte, parceiro. E uma arte que ninguém aprende
na teoria. Depois que tudo estava ensaiado, a gente testava os caras na
prática, na real.
91
seja buscando ativamente a morte deste morador, como em Alemão. E este elemento
é constante nos três filmes.
A ideia que os grupos armados, quando em conflito, podem ferir ou matar o
morador é representada também em Tropa de Elite. Dentro de um baile funk policiais
corruptos e traficantes negociam a propina, pensando que um dos traficantes iria
matar um dos policiais corruptos, Neto, que estava distante do baile e com um rifle de
precisão, atira. Isto desencadeia um tiroteio (dentro do baile) entre traficantes e
policiais corruptos e outros traficantes começam a atirar em Neto e Matias, que fogem
pelas ruas da favela.
alguns pontos, caso não se leve em consideração o fator etnia/raça. A fala de Buscapé
corrobora meu argumento:
sua vida (CAVALCANTI, 2009, p. 75) e, no caso, o torna uma ponte segura entre a
favela e o restante da cidade. Buscapé cumpre uma “função” na estrutura urbana que
segrega os moradores de um espaço que também tem funcionalidade dentro da
cidade:
Silva (2002) afirma que a favela e os favelados são tratados como objetos, sem
voz ativa, por agentes que atuam no espaço a partir de medidas repressivas e
disciplinadoras. Esta passividade colocada sobre os moradores reflete também o
processo de origem da categoria social “favelado” que é fruto de uma subordinação
extrema e de um imenso diferencial de poder. Esta identidade que é atrelada ao
espaço, propicia uma autoimagem do morador que reproduz a subalternidade. É
possível dizer que nos filmes, a representação da favela e dos seus moradores é muito
próxima ao que o autor encontrou em sua pesquisa.
Também se nota nos filmes uma representação do corpo do morador como um
espaço que pode ser violentado. Em Cidade de Deus há diferentes cenas
protagonizadas por Zé Pequeno que denotam essa ideia. Os traficantes em Alemão
também protagonizam cenas de violência diversa e em Tropa de Elite muitas cenas
de violência contra moradores são realizadas pelos policiais.
Tanto o corpo, quanto a propriedade privada do morador estão sujeitos à
violência, como se não o pertencessem, mas fossem propriedade daqueles que detêm
a força física e/ou bélica. Para Kowarick (2002), a sujeição a que estão submetidos os
moradores da favela tem como origem a fragilidade do Estado em seu atributo básico:
o monopólio legítimo da violência, o que gera uma inexistência de igualdade perante
a lei e uma consequente vulnerabilidade física dos favelados. Focalizando a violência
policial nas favelas, Kowarick faz uma análise que pode servir para pensar a
representação posta nos filmes analisados:
colocam uma arma na mão do morador que mataram, forjando nele um criminoso. Em
Alemão, durante mais da metade do filme uma moradora, Mariana, é mantida em
cárcere privado pelos policiais, que a impossibilitam de voltar para sua casa, onde
está seu filho. Além disso, nesse cárcere ela sofre agressões físicas, revelando que
não somente a traficante violenta os moradores, mas a polícia também.
Também em Tropa de Elite há cenas de maus tratos a moradores, tendo como
pretexto algum envolvimento com os criminosos. Ou seja, os moradores não têm
direitos civis garantidos e seus corpos podem ser manejados livremente por meio da
violência. Assim, pode-se pensar que os filmes transitam entre uma representação
que ignora a importância deles enquanto personagem ou os ignora como sujeitos
portadores de direitos, o que parece ser apresentado em tom de denúncia e revela a
representação da favela como local de perigo inclusive para os moradores honestos.
Esses moradores, aliás, são representados como despojados de qualquer forma de
reação à violência que sofrem, a não ser na forma de testemunho, mas para fora da
favela, como se nota no personagem Buscapé de Cidade de Deus, cuja profissão
pode retratar o que se passa na favela para quem está fora da favela.
Os favelados são representados ainda como “criaturas da reprodução da
desigualdade fundamental da sociedade brasileira e da forma de Estado que lhe
corresponde: expressão e mecanismo de continuidade de uma cidadania restrita,
hierarquizada e fragmentada” (SILVA, 2002, p. 224). Sendo vistos como categoria
social, na qual o indivíduo não tem espaço para ser algo além desta definição prévia,
como se houvesse um encapsulamento da sua identidade e das suas práticas (SILVA,
2002, p. 224). Em Cidade de Deus há um diálogo que exemplifica bem esta
representação do cotidiano dos moradores marcado por uma cidadania restrita,
sobretudo no tocante à violência. Buscapé conversa com seu amigo, Barbantinho:
Há o isolamento por parte de uma classe dominante, que não se faz presente
no filme, no entanto, não tem função de um recurso integrador e protetor, pois o perigo
que se coloca é interno. São criadas relações específicas impostas pelo isolamento,
mas que permitem não só a violência interna, mas incursões de grupos externos que
agem violentamente contra os moradores, constituindo um terror policialesco (SILVA,
2002) que vem de dentro e de fora.
.
6 CONCLUSÕES
105
5 CONCLUSÕES
somente a este mundo, mas invade os mundos legais e renegocia o que seria legítimo
e ilegítimo no espaço da favela (FELTRAN, 2008). E se nos filmes há uma
demarcação constante da diferença entre trabalhadores e bandidos por meio das
relações que o personagem constitui; a fluidez das fronteiras (FELTRAN, 2008) torna
constante as interações entre trabalhadores e bandidos, assim como um
deslocamento dos favelados entre o mundo legal e do crime. Há sempre a
possibilidade de um personagem cruzar as fronteiras entre os mundos legítimo e do
crime, seja com dificuldade (como no caso do Alemão) ou menos dificuldade (Cidade
de Deus).
A fluidez de fronteiras tem como base a representação de uma lógica criminal
permeando todas as relações na favela, de modo que tanto o trabalhador como o
policial precisam considerar as dinâmicas criminais em cada ação na favela. O tráfico,
neste espaço cumpre o papel de Estado ao implementar normas de conduta e pode
exercer a força contra aqueles que não respeitam estas normas. O tráfico como
“Estado paralelo” na favela surge com uma presença do Estado que é por meio de
ações militares de repressão, que não permite à polícia criar uma legitimidade na
comunidade, ou por práticas de corrupção policial, que não confrontam o tráfico.
Semelhante a uma justiça de caráter feudal (ZALUAR, 1994), os
narcotraficantes constroem uma hierarquia que tem o líder como epicentro e ponto
mais alto da escala. Este mesmo líder apresenta, geralmente, poder amplo sobre os
traficantes em hierarquias mais baixas, controle possibilitado por uma justiça
marcadamente violenta e arbitrária. A representação desta hierarquia forte
acompanha uma estrutura de poder no qual o traficante não é facilmente despojado
de sua posição, de modo que as mudanças no topo da hierarquia ocorrem por acaso
ou por casos de violência. No entanto, os personagens podem ascender na hierarquia
criminal por mérito ou por afinidade com o líder do tráfico. Contraposta à
representação da favela como um espaço no qual o trabalhador não exerce nenhuma
profissão aparentemente e se exerce, ela é algo de baixa remuneração e estagnada
em uma mesma posição na empresa, o tráfico e sua hierarquia se abrem ao favelado
como uma possibilidade de ascensão social.
A imersão no mundo do crime, ao mesmo tempo em que possibilita maior
consumo de bens disponíveis, acompanha a perda de laços com o mundo legal
(família, trabalho e igreja) (FELTRAN, 2008). Mas nos filmes não se constrói uma
107
dicotomia rígida na qual ser bandido anula por completo todos os laços com o mundo
legítimo, mas abre um campo de possibilidades, no qual as escolhas do personagem
o levam para uma maior ou menor imersão nesse mundo. No caso de Cidade de
Deus essa imersão menor ou maior não depende por completo das ações do
personagem, mas parece ser vista como um destino. O indivíduo “nasce” para ser
trabalhador ou bandido. Percebe-se, aqui, um aspecto moralizante para a prática
criminosa.
A polícia, nesse contexto de controle do tráfico e relações constantes entre
bandidos e trabalhadores, é representada como um agente externo, mas não distante
das dinâmicas na favela. As relações que o policial constrói com o espaço são, em
geral, de combate (ao) ou de conivência com o crime, assim, a favela como espaço
criminoso se mantém. O policial como o guerreiro contra o crime tem como inimigo,
quase que exclusivamente, os traficantes. Considerando a representação da favela
como território do tráfico de drogas, ela aparece nos filmes como o espaço inimigo ao
policial honesto, a classificação colocada para o policial soldado (SILVA, 2011),
aquele que atua militarmente e cuja atuação na favela é marcada pelo abuso da força
propiciada pela arbitrariedade policial e por uma falta de normatização da conduta de
patrulha e de intervenção (KANT DE LIMA, 2014).
Nesse sentido, tanto a polícia “honesta” como a polícia corrupta são
caracterizadas por resolver os conflitos de forma privada, uma vez que, nos filmes, a
polícia é representada como uma organização que vai de encontro às leis universais,
ao Estado democrático de direito. Se a polícia “honesta” é representada como um
grupo militar apartada do Estado, a polícia corrupta é representada como uma
organização econômica que se utiliza da sua imersão em vários setores da sociedade,
e do monopólio legítimo da força para providenciar lucro material aos policiais
corruptos. A arbitrariedade policial é justificada pela tensão entre a vida pessoal e
profissional. Esta representação se relaciona com a representação da fatalidade da
função policial para o mesmo, de modo que o medo da morte leva o personagem a
recorrer a violência extrema contra bandidos e trabalhadores ou se corromper.
Respondendo à pergunta que me propus nesta dissertação, a favela é
representada nos filmes analisados como um espaço de conflito, sobretudo conflito
armado. A favela se torna nos filmes um palco para a guerra entre grupos ou mesmo
de personagens do mesmo grupo. A visão construída nos filmes é como se não fosse
108
possível para os grupos envolvidos na favela a resolução de disputas que não sejam
pautadas pela violência. A favela é representada como um quisto urbano (ADORNO
& DIAS, 2014), um espaço de exceção do Estado democrático, no qual tanto agentes
do Estado quanto sociedade civil podem ser violentos e sofrerem violência. A guerra
foi representada no cinema em países distantes e mesmo em outros mundos, no caso
destes filmes, a guerra está na cidade, mas na parte marginalizada e periférica da
cidade.
.
6 ANEXO
110
6 ANEXO
Personagens
Buscapé: protagonista e narrador do filme que almeja ser fotógrafo e sair da Cidade
de Deus.
Dadinho/Zé Pequeno: um dos personagens centrais do filme, representado como
pertencente ao mundo do crime desde a infância. Na vida adulta se torna um dos
líderes do tráfico da Cidade de Deus.
Mané Galinha: um dos personagens centrais do filme que no início do filme é
trabalhador, mas entra no crime para se vingar de Zé Pequeno, que estupra sua
namorada e mata seus familiares.
Cenoura: Traficante de Cidade de Deus.
Bené: Braço direito de Zé Pequeno, mas é representado como um criminoso não
violento.
Cabeleira: Membro do Trio Ternura.
Marreco: Membros do Trio Ternura e irmão de Buscapé.
Alicate: Membros do Trio Ternura.
Berenice: Mulher de Cabeleira.
Angélica: Namorada de Buscapé e depois de Bené..
Barbantinho: Amigo de Buscapé.
Thiago: Amigo de Buscapé e depois participante do grupo de Zé Pequeno.
Neguinho: Traficante. Depois que perdeu a boca para Zé Pequeno, passa a trabalhar
para ele. Assassino de Bené.
Paraíba: Dono de um bar em 1960. Preso por matar sua mulher.
Grande: Traficante.
Touro: Policial. Aparece apenas nos anos 1960 do filme.
Cabeção: Policia corruptol.
Resumo do filme
A história começa nos anos 1960 com o início do bairro Cidade de Deus,
criado pelo governo para abrigar moradores de favelas que foram destruídas por
inundações ou incêndios. No início do filme já se percebe a ênfase na criminalidade.
111
Personagens
Capitão Nascimento: protagonista do filme. Capitão do Batalhão de Operações
Especiais (BOPE) que precisa escolher como substituto Netou ou Matias.
Matias: personagem importante no filme, recém ingresso na polícia militar. Busca
conciliar vida profissional e pessoal
Neto: Amigo de Matias e também recém ingresso na polícia é o escolhido para
substituir Nascimento, em um primeiro momento.
Fábio: Policial corrupto
Rosane: Esposa de Nascimento
Maria: Namorada de André
Edu: Estudante de Direito e traficante.
Baiano: Líder do tráfico no Morro dos prazeres
Romerito: Garoto participante da ONG.
Resumo do filme
Neto e Matias são dois amigos de infância que ingressam juntos na polícia
militar do Rio de Janeiro. Neto se dedica à atividade policial, enquanto Matias cursa
Direito, auxilia uma ONG na favela e inicia um namoro com Maria. Na polícia, ambos
ocupam cargos administrativos e descobrem a corrpução na polícia. Neto usa da
corrupção policial para resolver um problema no seu setor, mas seu superior direto,
Fábio, recebe a culpa e não é assassinado porque Matias e Neto na tentativa de salvá-
lo provocam um tiroteio na favela. Os policiais são salvos pelo BOPE (Batalhão de
Operações Especiais) e Neto e Matias entram para o batalhão.
Maria descobre a profissão de Matias e termina o namoro, o policial abandona
a faculdade. O policial promete entregar uns óculos para uma criança da ONG na
entrada favela, mas tem entrevista de emprego no mesmo horário e Neto vai em seu
lugar. O líder do tráfico descobre sobre a ida de um policial à favela e o mata, sem
saber que Neto era do BOPE. Capitão Nascimento, que tinha escolhido Neto para ser
seu sucessor no cargo, motiva Matias a se vingar de Baiano para que o policial
consiga a ter um tipo de comportamento desejado para um Capitão do BOPE.
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Personagens:
Doca: Policial infiltrado na Favela, onde tem uma pizzaria usada como centro de
inteligência.
Samuel: Policial infiltrado na favelaBranco: Policial infiltrado. Tem comportamento
agressivo. Danilo: Policial infiltrado. Marquinhos: Policial infiltrado. Namorado da irmã
de Senegal (e como chama a irmã de Senegal?). Alvo de desconfiança dos demais
policiais.
Playboy: Líder do tráfico no Morro do Alemão, ex namorado de Mariana, com quem
tem um filho. Senegal: Braço direito de Playboy. Caveirinha: Traficante que auxilia
Playboy e Senegal em suas atividades. Descobriu que havia policiais infiltrados na
favela.
Mariana: Ex-namorada de Playboy, com quem tem um filho. Funcionária da pizzaria
do Doca.
Letícia: Namorada de Carlinhos e irmã de Senegal.
Resumo do filme:
A cidade do Rio de Janeiro sediará as Olimpíadas e o governo busca pacificar
algumas favelas, O Complexo do Alemão é uma destas e para isto a polícia infiltra
cinco policiais na favela. Os traficantes descobrem os policiais e esses ficam
escondidos na pizzaria de um dos policiais. Ocorre diversos conflitos entre eles e uma
moradora, Mariana, entra na pizzaria sem ter conhecimento dos policiais e vira refém
dos mesmos. Os policiais são descobertos quando um dos traficantes usa a irmã como
isca para um policial. Os traficantes invadem a pizzaria restando somente as duas
moradoras vivas.
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REFERÊNCIAS
ADORNO & DIAS, Sergio e Camila. Monopólio estatal da violência. In Crime, polícia
e justiça no Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora
contexto. 2014
AUMONT, Jacques. A estética do filme. Editora Papirus. 1994.
ALEMÂO. Direção: José Eduardo Belmonte. 1 DVD (90 min). Som, cor.
BEATO, Claudio & ZILLI, Luiz. Organização social do crime. In Crime, polícia e justiça
no Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora
contexto. 2014
BECKER, Howard. Método de pesquisa em Ciências Sociais. Editora Hucitec. São
Paulo, 1993.
BURGOS, Marcelo Baumann. “Cidade, territórios e cidadania” in DADOS – Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, nº1, 2005, pp. 189 a 222.
CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles & Kátia Lund. 1 DVD (135 min). Som,
cor.
COSTA & LIMA, Arthur e Rogério. Segurança pública. In Crime, polícia e justiça no
Brasil. LIMA, Renato, RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora contexto.
2014
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.
Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Versão online disponível em
http://jornalismoufma.xpg.uol.com.br/arquivos/a_casa_e_a_rua.pdf
ZILLI, Luís. Grupos delinquentes. In Crime, polícia e justiça no Brasil. LIMA, Renato,
RATTON, José & AZEVEDO, Rodrigo (orgs.) Editora contexto. 2014