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Maisa Antunes
Diálogos brincantes
Por Maisa Antunes
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hoje atuo no ensino superior, onde trabalho com
o curso de formação de professores. Assumo,
dentre outros componentes curriculares: ARTE
E EDUCAÇÃO. Torno-me tão próxima deste
que sou freqüentemente convidada para contri-
buir em outros cursos de formação de professo-
res. Convivo cotidianamente com esse conceito
e passo a pensar mais sobre ele. Com isso, depois
de algum tempo revela-se em mim o desejo de
escrever um livro de entrevistas com um arte-
educador e um artista.
Meu convívio com os textos de Duarte
Júnior sobre arte-educação levou-me em 18 de
janeiro de 2011, final de manhã, a um encontro
com ele no aeroporto de Campinas-SP. Depois
de alguns contatos via e-mail, recebeu-me
carinhosamente em sua residência. Ele, Mary
(sua esposa), Daniel (seu orientando); e (não
podia esquecer) os cachorrinhos cuidados pelo
casal. Carlinho, sem nenhuma resistência,
encheu-me logo de carinhos, esfregando-se em
mim, como se fosse um gato; Lolly ficou me
observando de longe por muito tempo, no final
não resistiu, jogou-se em meus braços para um
afago, e Nina, que só se aproximava quando
estalava os dedos para ela, era uma cadela sofri-
da. Todos adotados... Duarte e eu trocamos
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livros e dedicatórias, depois iniciamos e finaliza-
mos a entrevista. Uma coleção de cactos embe-
lezava a sacada da janela frontal, os móveis da
sala, desenhados pelas mãos de um marceneiro
na década de 20 pertenceram ao avô de Duarte.
Lá estavam também dois baús - da sua bisavó -,
que possivelmente guardavam em suas memóri-
as, sensações, dores e amores de um enxoval
preparado por uma jovem que viajou da Itália
para o Brasil na metade do século XIX. Foi
cercada com esses símbolos que voltei para
minha cidade naquele mesmo dia, cansada, feliz
e protegida pelos gestos cuidadosos de Duarte
Júnior.
Do artista, há pouco tempo, eu só conhecia
suas obras por meio de exposições dos seus belos
e enigmáticos retratos. Marcos Cesário é um
poeta intimamente ligado a símbolos. Tem
conexão direta com seus sentimentos - e na
infância conviveu com um currículo nada
invejável de suspensões e expulsões de estabele-
cimentos de ensino -. Intenso e inquieto sabe
sempre o que não procura. Foi com revelações
inspiradoras que a entrevista com Marcos
Cesário aconteceu no dia 28 de janeiro de 2011.
Era início da tarde quando ele chegou, depois de
um forte suco de maracujá, contemplou por
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horas seus livros-irmãos - Wilde, Rubem Braga,
Exupéry, Hermann Hesse... - que habitualmente
relê. Quando o sol preparava-se para mais um
cochilo iniciamos e finalizamos uma entrevista
rápida, talvez menos de meia hora. Levei-o ao
terminal rodoviário, deixando comigo suas
palavras e risos no gravador que ouvi e muitas
vezes reli.
Duarte Júnior e Marcos Cesário falam da
mesma coisa dizendo-nos coisas diferentes?
Para Duarte a arte “educa” numa dimensão
não racional, refina nossa percepção e nossa
sensibilidade. A isto Cesário chama de desedu-
cação.
Duarte, mesmo reconhecendo as limitações,
os aprisionamentos e os instrumentos de ades-
tramento da educação escolar, ainda insiste em
acreditar na EDUCAÇÃO. Cesário, alimentado
por uma “revolta” da sua alma de poeta, argu-
menta, inspirado em Oscar Wilde que a lingua-
gem é mãe do pensamento, e assim sendo, esta,
segundo Cesário, deve ser mudada para que
também se mude o pensamento. Mudando
assim os equívocos cometidos ao tentar unir
“duas inimigas instintivas”: A ARTE E A
EDUCAÇÃO.
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Talvez aqui poderíamos defender juntos
que o sentimento vem primeiro. Que a sensação,
a paixão, a vaidade, a imaginação nos impulsio-
nam a viver, a criar. E como a escola se apóia em
instrumentos tão controladores, tão racionais,
como conciliar com a arte? Sobre isso, tanto
Duarte, como Cesário defendem que a arte deve
estar na escola, mas não refém do currículo
escolar.
Para Duarte, a escola atualmente é feita
atendendo a uma educação profissionalizante e
desenvolvendo capacidades lógicas e técnicas,
que corresponde a demanda do mercado de
trabalho. Nesse sentindo, segundo este pensa-
dor, a arte, a poesia é algo inútil do ponto de vista
da demanda deste mercado. E se a arte é inútil
qual o interesse pela arte por parte de institui-
ções educativas que estão a serviço de uma
sociedade capitalista, impulsionadora do consu-
mo desenfreado, ignorando o valor das coisas
materiais e espirituais?
O filotógrafo (filósofo-fotógrafo) Cesário
ao falar da arte e sua inutilidade nos provoca a
pensar sobre a sociedade que “mata” o indivíduo
em nome de um suposto bem estar para todos, e
ainda nos leva a pensar o caráter imprevisível e
livre da arte.
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Como educador sensível e entusiasta de
uma educação livre e com sentido Duarte
denuncia a forma como a arte está na escola. A
confusão que acontece, o absurdo que ocorre,
em que boa parte dos profissionais da educação
acha que a arte pode ser usada como um meio
para adquirir conhecimento. Diz ainda que as
aulas de Português “matam” a poesia e o poema
e os transforma em “cadáveres a serem disseca-
dos com os bisturis teóricos”, que o espaço
escolar “transforma uma obra de arte num corpo
sem vida e dele se vai extraindo os órgãos:
objetos diretos, sinédoques, metáforas, metoní-
mias etc”. Para Duarte esse procedimento
liquida qualquer prazer de um encontro poético.
Os estudantes são obrigados a ler um romance,
para fichá-lo ou para se submeter a uma avalia-
ção ou ainda porque tal obra literária será cobra-
da no vestibular.
Cesário, como artista, poeta, também
denuncia a estrutura dura da escola e adverte
que para a inspiração acontecer não precisa de
nenhuma atividade programada, ao contrário, é
na imprevisibilidade do encontro de contextos e
temperamentos que pode acontecer o nasci-
mento do criador e da criação. Diz ainda que a
educação quer confundir o hábito de medir, que
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é próprio da educação, “ao desejo descompro-
missado de contemplar e sentir”.
Coloco-me diante de Duarte e de Cesário
como alguém que quer desaprender o sentido da
arte-educação e como uma curiosa que quer não
descortinar o véu da arte, nem esgotar a compre-
ensão dos descaminhos da educação, mas como
uma menina que quer brincar, aprender e
desaprender quando as coisas aprendidas
estiverem sufocando. Quero educar-me e
deseducar-me para poder romper com os
regulamentos quando estes regularem demais.
Aqui recordo-me de uma passagem do livro A
escola que sempre sonhei sem imaginar que
pudesse existir, de Rubem Alves, que ao falar da
Escola da Ponte, ele inicia uma de suas crônicas
nos contando sobre os mestres Zen. Rubem diz
que esses educadores eram educadores estra-
nhos, uma vez que não pretendiam ensinar, estes
desejavam era desensinar. Avaliações de apren-
dizagem para estes mestres, nem pensar. Mas
estavam constantemente avaliando a desapren-
dizagem dos seus discípulos. Eles se interessa-
vam mesmo era pela desaprendizagem, quando
esta acontecia, riam de felicidade.
Tenho compartilhado com os estudantes os
poetas que gosto. E mesmo intuitivamente
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sabendo que a arte diz o indizível, que fala da
realidade fugindo dela, Nietzsche: “nenhum
artista tolera o real”. Sou capaz de apreender as
palavras que os poetas me dizem com suas
poesias em versos, imagens, pinturas, escultu-
ras...
Há experiências belas acontecendo, há
lugares habitados de sentimentos desenhados
por crianças e adolescentes, que com fome e
sede de beleza, se entregam à dança, ao teatro e à
música... Compondo cenários íntimos e lúdicos.
São espaços de encontros não-formais que vão
na contramão da lógica da educação formal.
A arte nos possibilita encontrarmo-nos? Ou
perdermo-nos em nosso próprio caminho?
Como Duarte, acredito na possibilidade de uma
educação menos adestradora, que verdadeira-
mente perceba outras dimensões do ser huma-
no, não apenas a razão, perceba outros canais de
apreensão do mundo como bem faz Cesário,
com a intuição, a estética e a imaginação.
Também sou provocada por Rubem Alves
quando diz no prefácio do livro Fundamentos
Estéticos da Educação (Duarte Jr., 1995), que a
educação na perspectiva da estética é uma causa
possivelmente derrotada, uma vez que esta,
pensada a partir da beleza “equivale afirmar que
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o poeta e músico são mais importantes que o
banqueiro e o fabricante de armas”.
Se esses diálogos não iluminarem a nossa
razão que ao menos nos desvele a desrazão, o
“acriançamento das palavras” como disse
Manoel de Barros.
Brinquemos então.
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(...) Se a própria vida é biologica-
mente estética e se o próprio
cosmo é primariamente um evento
estético, então a beleza não é
apenas um acessório cultural, uma
categoria filosófica, um domínio
das artes, ou mesmo uma prerroga-
tiva do espírito humano. Ela
sempre permaneceu indefinível,
porque é uma testemunha sensori-
al daquilo que está fundamental-
mente para além da compreensão
humana.
(James Hillman)
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Entrevista com o professor e psicólogo
Francisco Duarte Jr. – 18.01.11
Por Maisa Antunes
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que eu chamo de educação estética ou educação do
sensível.
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fica meio desajustada, mas existem experiências que
vão contra a corrente. Ao longo da história sempre
houve pessoas como Herbert Read, que pensou a
arte como fundamento da educação, quer dizer, a
educação, segundo ele, começaria na dimensão
sensível, e a razão e o pensamento surgiriam como
um aprimoramento de alguma coisa que começa
nessa dimensão sensível; esse seria o ideal: a arte
como base da educação. Infelizmente no mundo
que estamos vivendo a arte se tornou somente um
elemento curricular a mais, e o mais trágico é que
setores ligados à própria arte-educação, de certa
maneira, capitularam e passaram a entender a arte
assim, como um dos itens do currículo.
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tendência de se pensar a arte como experiência, ora
de se pensar a arte como conteúdo; as coisas
oscilam entre esses dois pólos. Na verdade, isso é
uma falsa polaridade, pois a arte é essencialmente
uma experiência e o seu conteúdo é precisamente
ser ela uma experiência. Vamos falar
metaforicamente: você pode dar um curso de
natação e levar apostilas sobre água, sobre os
estados físicos e tipos da água: água limpa, água suja,
água de rio... todos os estudos possíveis sobre a
água; estudos sobre movimentos musculares;
estudos sobre natação e assim você faz um brilhante
curso teórico sobre o que é nadar; você apresenta
vídeos sobre nadadores e pessoas nadando e tal, e,
no final, os aprendizes fazem uma prova teórica e
você dá um diploma de nadador a eles. É mais ou
menos isto que está acontecendo com a arte hoje,
quer dizer, estão sendo ministrados cursos sobre a
arte dentro da escola sem as pessoas terem a
experiência da arte, sem as pessoas terem a
experiência de “caírem na água” e aprender com a
“experiência da água”, no caso, com a experiência
estética. Todo o saber que você pode ter sobre
natação e que, por certo pode ser aprimorado até
com teorias, tudo isso só tem sentido depois que
você “caiu na piscina”, que aprendeu a nadar, depois
que seu corpo conheceu a água. É a mesma coisa
com a arte, ou seja, História da Arte, Sociologia da
Arte, Filosofia da Arte, todos esses saberes são
importantes, mas depois que você tenha uma
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formação sensível com a arte. O que acho falta na
escola, hoje, é essa experiência: o mergulho na
experiência estética, o face a face com a arte.
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com aquilo que está acontecendo na obra, como se
fosse verdade, é o jogo do “como se”, e é muito
parecido com um jogo infantil, por exemplo, aquele
em que a criança sobe em um cabo de vassoura e se
comporta como se ele fosse um cavalo. Na arte é a
mesma coisa: tem-se uma experiência e eu me
comporto como se estivesse vivendo uma realidade,
a qual, embora fictícia, e mesmo eu sabendo disso, o
meu cérebro faz com que eu a vivencie
intensamente. Isso é uma função muito importante
da arte: fazer com que a gente explore sentimentos,
tenha vivências e conheça realidades de outros seres
humanos, de outras culturas, mesmo isto
ocorrendo no modo do “como se”. A filósofa
Susanne Langer diz que é exatamente por eu saber
que é uma grande mentira, um faz-de-conta, o que
estou vivendo, que eu me permito viver
experiências aterradoras, como as que existem num
filme de terror. As experiências mais brutais eu
posso assistir no teatro ou no cinema porque eu sei
que aquilo é uma ficção e, portanto, eu me permito
sentir coisas das quais fujo em meu cotidiano. Eu
acho que isso constitui um dos papéis mais
fundamentais da arte: permitir que a gente vivencie
a experiência de outros seres humanos, que a gente
se entregue a elas sem medo ou preconceitos.
M. A. – A arte educa?
M. A. – Sim.
M. A. – Da educação escolar.
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a minha educação foi uma educação bancária que
funcionou (risos).
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interessei em estudar Teoria da Arte muito mais
tarde, porque para mim a arte era uma vivência. E
em minha época de menino – em 1957, 58, quando
tinha quatro ou cinco anos – a televisão era
diferente dessa de hoje. Existia a TV Tupi, a mais
famosa, localizada aqui no estado de São Paulo, e
em sua programação havia três programas de
teatro: Grande Teatro Tupi, TV de Vanguarda e
TV de Comédia, os quais apresentavam sempre
uma peça da dramaturgia, ou um conto, ou um
romance adaptado para a televisão – não existia
videoteipe na época, tudo se fazia ao vivo. Tinha-se
então um bom teatro semanal com Paulo Autran,
Tônia Carrero, Fernanda Montenegro,
Gianfrancesco Guarnieri, todos eles atuando ali, ao
vivo, na televisão, e eu pequenininho, com cinco ou
seis anos, assistia a tudo aquilo: Shakespeare,
Gogol, Nelson Rodrigues... Via e ficava fascinado
com aquele universo, uma coisa deslumbrante. E
essa emissora também levava ao ar o “Concertos
Para a Juventude”, em que orquestras executavam,
também ao vivo, as principais peças do repertório
erudito. A televisão, na época, era uma coisa de elite
cultural, depois é que foi se popularizando. Então,
minha experiência com a arte foi assim: vivia em
uma cidade do interior, em Limeira, em que
raramente se tinha teatro; às vezes, aqui e ali, era até
possível se assistir a algumas peças infantis, mas era
coisa muito rara, e não havia orquestras tocando.
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Mas eu tinha o acesso ao universo da arte através
dos livros e da televisão e sempre me foi um prazer
assistir tudo isso, um universo que me fazia sonhar.
Foram experiências fantásticas, marcantes. Tem
coisas de que me lembro até hoje desses
espetáculos, cenas que marcaram muito minha
vida. Meu interesse por arte surgiu dessas
experiências marcadamente emotivas. Depois eu fiz
violão, fiz teatro amador, cursos de pintura,
desenho, e comecei a escrever poemas muito cedo,
com doze anos, mas nada disso deu certo e, por isso,
fui ser professor (risos).
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“Arte é fome”
(Rubem Fonseca)
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Entrevista com o artista filósofo-fotógrafo
(filotógrafo) Marcos Cesário – 28.01.11
Por Maisa Antunes
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sustenta o mundo que reinventamos e vivemos. Só
poetas travestidos de professores sabem que “a
realidade é o que a gente vê e não o que ela é”
(Gabriel García Marquez). Que a vida... “o que vejo
e que sou e suponho não é mais que um sonho num
sonho” (Edgar Allan Poe). Sendo assim, os únicos
que são capazes de ensinar são aqueles que são
capazes de desaprender o aprendido, assumindo
um eterno caso de amor com o mistério da beleza,
terreno sempre desconhecido. “A arte é um véu e
não um espelho” (Oscar Wilde). E a interpretação
desse véu é algo imprevisível... Schopenhauer, “você
pode fazer o que quer, mas não pode querer o que
quer”.
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M. Cesário - O fim da arte é a própria arte...
Tornar o espectador, alguém "melhor" ou "pior", é
função de quem acredita nas cartilhas, e nos resulta-
dos sempre previsíveis. E o que faz da arte, arte, é a
imprevisibilidade, a espontaneidade. O que a arte
provoca e revela é o individuo e ela só pode ser apre-
endida (não aprendida) pelo temperamento tem-
perado, pelo individualismo. Albert Camus pode
nos ajudar, "a verdade só alcança o homem carnal
pela carne. Por isso seus caminhos são imprevisíve-
is". E cada carne, cada temperamento encontra-se
ou perde-se em si mesmo através das circunstâncias
ou circunstancialmente através de uma obra de arte.
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FICHA CATALOGRÁFICA
CDD 707
Ficha Técnica
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