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O Brasil vive hoje uma crise profunda. Ela tem uma causa específica?
A característica dessa crise tem a ver com o fato de o Brasil até hoje não
ter conseguido incluir a maior parte da sua população nas benesses do
mundo moderno. O problema é a desigualdade. Obviamente esse é o
grande ponto. E tem uma mentira aí: a que diz que a grande questão que
impede que o Brasil seja uma nação desenvolvida e rica, como as nações
europeias ou a norte-americana, é a corrupção do Estado. Essa é a
principal mentira. Isso foi construído por ideias, por intelectuais, aqui em
São Paulo, desde a década de 1930, quando a elite local ficou sem o
poder político. Essa elite já era a mais forte, era proprietária das indústrias,
das fazendas de café — a semente do que hoje seria o agronegócio. Sem
poder político, essa elite precisava criminalizar e estigmatizar o Estado,
sobre o qual havia perdido o controle.
Embuste total. Porque ela serve exatamente para esse tipo de coisa, para
denunciar esse roubo da política para tornar invisível o grande assalto do
mercado e dos bancos. Por exemplo, quando o Palocci quis falar dos
crimes do mercado financeiro, isso não interessa, não interessa ao
mercado.Mas os crimes do mercado financeiro são os mais importantes.
Isso explica que os bancos tenham os maiores lucros de sua história, com
um juro de 6,5% ao ano e o país na maior miséria.
Existe a ideia de que o país sairá melhor da Lava Jato, com uma
diminuição da corrupção sistêmica.
Ela persiste de novas formas. Ela persiste no sentido de que você tem aqui
uma multidão, mais de 50% da população brasileira, exercendo atividade
semiqualificada. É trabalho manual, é trabalho sem grande incorporação
de conhecimento, exatamente como o trabalho escravo. Essas classes
populares são odiadas e desprezadas, como os escravos eram. Você pode
matar um pobre no Brasil, que não acontece nada. A polícia mata com
requintes de crueldade e ninguém se comove porque os pobres são
percebidos de modo desumanizado, como os escravos eram. A escravidão
perpassa o núcleo da sociedade brasileira. E boa parte da classe média
tem preconceitos de senhor de escravo e da elite com relação a esse
povo. O que eu tento mostrar é como essa escravidão se torna a base e o
centro de tudo que a gente está vivendo hoje. Nós somos filhos da
escravidão, isso nunca foi percebido. É como se fosse uma coisa que
aconteceu há muito tempo e não tenha mais nada a ver hoje. É o contrário.
A escravidão continua. Para mim, essa desigualdade doente de hoje vem
da escravidão.
Fiquei muito contente. Foi uma das minhas maiores alegrias como
pesquisador. É claro que outros autores também eram a base do desfile,
mas eram autores que só tocavam no período da escravidão. O desfile
teve dois passos, duas épocas, a escravidão como um fato histórico e
depois como a escravidão vem persistindo até hoje. E como fato histórico
ele cita vários autores. Mas o único livro que trata de como a escravidão
vem até hoje era o meu. E obviamente isso me deixou muito contente,
muito orgulhoso, porque isso é um sonho de todo intelectual engajado
como eu.
Você parece fazer uma espécie de sociologia da fúria. Concorda com essa
ideia?