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A DOENÇA DO BRASIL É O ÓDIO DE CLASSE

Jessé Souza, sociólogo


Entrevista a Vicente Vilardaga
Edição 17/08/2018 - nº 2539 https://istoe.com.br/a-doenca-do-brasil-e-o-odio-de-classe/#

O Brasil vive hoje uma crise profunda. Ela tem uma causa específica?

A característica dessa crise tem a ver com o fato de o Brasil até hoje não
ter conseguido incluir a maior parte da sua população nas benesses do
mundo moderno. O problema é a desigualdade. Obviamente esse é o
grande ponto. E tem uma mentira aí: a que diz que a grande questão que
impede que o Brasil seja uma nação desenvolvida e rica, como as nações
europeias ou a norte-americana, é a corrupção do Estado. Essa é a
principal mentira. Isso foi construído por ideias, por intelectuais, aqui em
São Paulo, desde a década de 1930, quando a elite local ficou sem o
poder político. Essa elite já era a mais forte, era proprietária das indústrias,
das fazendas de café — a semente do que hoje seria o agronegócio. Sem
poder político, essa elite precisava criminalizar e estigmatizar o Estado,
sobre o qual havia perdido o controle.

Mas o brasileiro não é, de um modo geral, patrimonialista, sempre


misturando o público e o privado?

É claro que essa história de patrimonialismo tem um grão de verdade. O


grão de verdade é que se rouba no Estado também, ainda que este roubo
seja a gorjeta dos donos do mercado. Mas todo o resto é mentira e essas
abstrações jurídicas do privado e do público não explicam coisa alguma. A
gente está montando uma concepção vira-lata sobre o nosso próprio povo,
agindo contra nós mesmos. Olha como nossos políticos são corruptos,
então vamos logo entregar a Petrobras de mão beijada para as petroleiras
europeias e americanas porque os estrangeiros são honestos.
Basicamente a coisa funciona assim.

Então a corrupção não é nosso problema principal?

A corrupção no Estado nunca foi o nosso problema principal. É claro que


existe, é claro que se rouba no Estado. Mas se você compara a merreca
que a Lava-Jato diz ter recuperado para os cofres públicos com o que
realmente se rouba no mercado, é ridículo. Cinco anos passando um
scanner na corrupção da Petrobras e você recupera menos do que a
empresa pagou de multa para os americanos. As isenções fiscais para
latifundiários somam dezenas de bilhões todos os anos. Para os bancos
ainda mais. Sem contar a dívida pública, Selic etc. A corrupção feita pela
elite de proprietários, pelo agronegócio e pelos bancos e grandes
empresas é mil vezes maior, é um milhão de vezes maior do que o roubo
do aviãozinho do tráfico, que é como eu chamo o roubo do político.

“A elite do atraso” afirma que a Lava Jato é um embuste. Por quê?

Embuste total. Porque ela serve exatamente para esse tipo de coisa, para
denunciar esse roubo da política para tornar invisível o grande assalto do
mercado e dos bancos. Por exemplo, quando o Palocci quis falar dos
crimes do mercado financeiro, isso não interessa, não interessa ao
mercado.Mas os crimes do mercado financeiro são os mais importantes.
Isso explica que os bancos tenham os maiores lucros de sua história, com
um juro de 6,5% ao ano e o país na maior miséria.

Existe a ideia de que o país sairá melhor da Lava Jato, com uma
diminuição da corrupção sistêmica.

Eu não vejo nenhum aspecto positivo na Lava Jato. Inclusive, a maior


parte das pessoas, mesmo de esquerda, via de modo ambivalente a Lava
Jato, achava que aquilo poderia ter algum aspecto positivo, até porque a
esquerda também é dominada por essa coisa do patrimonialismo. Eu não
concordo. A corrupção sistêmica está no mercado financeiro.

A esquerda perdeu o atributo da honestidade?

Eu vejo de outro modo. Eu acho que o monopólio da honestidade ninguém


tem. É um negócio absurdo achar que porque é de esquerda você tem o
monopólio da virtude. Esse é um negócio idiota. O problema é que o tema
da corrupção entre nós e agora na América Latina vira uma histeria. A
Alemanha ou os Estados Unidos combatem a corrupção de modo
cotidiano, sóbrio, é um crime como outro qualquer.

A escravidão persiste no Brasil?

Ela persiste de novas formas. Ela persiste no sentido de que você tem aqui
uma multidão, mais de 50% da população brasileira, exercendo atividade
semiqualificada. É trabalho manual, é trabalho sem grande incorporação
de conhecimento, exatamente como o trabalho escravo. Essas classes
populares são odiadas e desprezadas, como os escravos eram. Você pode
matar um pobre no Brasil, que não acontece nada. A polícia mata com
requintes de crueldade e ninguém se comove porque os pobres são
percebidos de modo desumanizado, como os escravos eram. A escravidão
perpassa o núcleo da sociedade brasileira. E boa parte da classe média
tem preconceitos de senhor de escravo e da elite com relação a esse
povo. O que eu tento mostrar é como essa escravidão se torna a base e o
centro de tudo que a gente está vivendo hoje. Nós somos filhos da
escravidão, isso nunca foi percebido. É como se fosse uma coisa que
aconteceu há muito tempo e não tenha mais nada a ver hoje. É o contrário.
A escravidão continua. Para mim, essa desigualdade doente de hoje vem
da escravidão.

A desigualdade é que cria o subcidadão brasileiro?

O Brasil é um país doente, patologicamente doente pelo ódio de classe.


Isso é o mais característico do Brasil: o ódio patológico ao pobre. É a
doença que nós temos. A gente nunca assumiu a autocrítica de que somos
filhos da escravidão, com todas as doenças que a escravidão traz: a
desigualdade, a humilhação, o prazer sádico na humilhação diante dos
mais frágeis, o esquecimento e o abandono da maior parte da população.
Esse é o grande problema brasileiro. O resto é bobagem.

O complexo de vira-lata é uma dessas bobagens?

Essa história de vira-lata está ligada ao tema da corrupção como sendo a


questão mais importante, obviamente. Quem é o vira-lata? É o brasileiro
que supostamente herda de Portugal o “vírus cultural” da corrupção, como
se fosse uma singularidade nossa e que se imagina, portanto, como
inferior em relação aos europeus e americanos tidos como “honestos”.
Esse é o “vira-latismo” brasileiro montado pela elite e pelos intelectuais
cooptados por ela. Foi dito aos brasileiros que eles são marcados desde o
berço pela corrupção. Imagina uma loucura dessas. Claro que você ouviu
isso desde os cinco anos na escola, o seu pai contou isso e aí você
acredita nessa bobagem. Isso tem a ver com o tema da corrupção só no
Estado, claro. Para você montar esse tema da corrupção e aí criminalizar o
Estado e a política, quando interessar ao mercado e seus donos. Esse é o
ponto. É para isso que a história de vira-lata serve.

Somos filhos da escravidão. Ela é a base de tudo que a


gente está vivendo hoje, como essa desigualdade doente

E qual é a posição da classe média nessa história?

A classe média é a classe do privilégio. Qual é o privilégio da classe


média? O capitalismo tem dois grandes capitais. O dinheiro, obviamente, o
capital econômico. E o conhecimento. Não tem nada no capitalismo que se
faça sem conhecimento, tão importante como o dinheiro. A produtividade
do capitalismo depende do conhecimento, da ciência, da tecnologia. Para
exercer qualquer função no Estado ou no mercado você precisa ter
conhecimento incorporado. O que explicita a gênese da desigualdade é a
reprodução de privilégios, desde a família. A reprodução de privilégios que
é feita na classe alta, ou seja, na elite de proprietários, é a reprodução da
sua propriedade por amizades, casamentos e relações pessoais. Na
classe média você reproduz outro privilégio, que é o conhecimento
valorizado, mais invisível que o dinheiro, o qual exige disciplina,
capacidade de concentração e pensamento abstrato, que são pré-
condições recebidas pelo indivíduo da classe média. É o que as classes
populares não têm. Para ter o conhecimento valorizado você precisa
também que seu pai tenha algum dinheiro para pagar um colégio bom e
para você não precisar trabalhar. Entre nós, as classes populares
começam a trabalhar com 12 ou 13 anos.
O brasileiro se coloca numa posição de inferioridade?

Existe um racismo e o racismo não é só a cor da pele. O que é o racismo?


É você separar a humanidade em humanos e sub-humanos. É essa
operação que faz o racismo. A gente só vê a questão da cor da pele
porque é a mais visível. Mas você tem as culturas que são tidas como
superiores, como humanas, e as das classes populares, vistas como sub-
humanas.

“A elite do atraso” foi tema do enredo da escola de samba Paraíso do


Tuiuti. O que você achou da utilização de seu livro para a realização de um
desfile de Carnaval?

Fiquei muito contente. Foi uma das minhas maiores alegrias como
pesquisador. É claro que outros autores também eram a base do desfile,
mas eram autores que só tocavam no período da escravidão. O desfile
teve dois passos, duas épocas, a escravidão como um fato histórico e
depois como a escravidão vem persistindo até hoje. E como fato histórico
ele cita vários autores. Mas o único livro que trata de como a escravidão
vem até hoje era o meu. E obviamente isso me deixou muito contente,
muito orgulhoso, porque isso é um sonho de todo intelectual engajado
como eu.

Você parece fazer uma espécie de sociologia da fúria. Concorda com essa
ideia?

Eu concordo, claro. A raiva é a minha energia, mas o que eu fiz foi


transformar essa raiva em indignação. Não é uma raiva de você sair por aí
batendo nas pessoas, mas é a indignação de um discurso e de uma
intelectualidade que sempre serviu aos interesses dos poderosos. Não se
trata de usar o seu conhecimento como o rico usa o dinheiro, como enfeite.
O interesse é muito maior do que isso. Conhecimento é uma arma
extremamente importante. O conhecimento, para mim, é uma arma
política. Ele permite chacoalhar, dizer certas coisas para que as pessoas
possam se proteger melhor e não ficarem tão indefesas.

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