Você está na página 1de 16
| Febrénio Indio do Brasil: onde cruzam a Psiquiatria, a profecia, t 1 a homossexualidade ¢ 4 lei Peter Fry “Eles me batiam. Mas eu negaya tudo ¢ me calava porque meu livro nao tinha sido escrito para eles, E hoje, sou eu que pergunto, doutor, ‘por qué, mas por qué minha Dama Loura nao voltou e por que ndo a revi uma terceira vez? Eu declaro que vocés todos so stiditos do Diabo, ..” (Febrénio [ndio do Brasil) + Quando os antropélogos investigam acusagGes de feitigaria em sociedades tribais, o acento € sobre a funcio normativa destas crengas, ¢/0u epistemologia delas, e/ou seu uso em situagdes x > iltimo enfoque envolve as andlises do tipo intera- h 66 LINGUAGEM, ANTROPOLOGIA E CIENCIAS NATURAIS cionismo/simbélico € a teoria da rotulagio (“labelling theory") desenvolvidas primariamente na Sociologia para analisar, scima de tudo, a questiio de estigma social (Becker, Goffman, Szasz etc,) \ A Antropologia Social tradicional raramenie procurou invest. \ gar a construgio de crengas em feitigaria © menos ainda da identidade de feiticeiro ou bruxo. Em parte isso se deve nfo 36 ao yiés anti-histérico da Antropologia Social inglcsa a partir da posigéio de Malinowski contra especulagdes histdricas, mas tam. bém porque em sociedades pré-letradas seria realmente uma tarefa mais da imaginagio do que de pesquisa histérica propriamente | dita. No caso das sociedades letradas, portanto, para quem se interessa pelos aspectos politicos da rotulagio com estigma, é fundamental desvendar os processes através dos quais os rétulos surgem ¢ nas maos de quem. Becker sugere que se pense nos criadores de regras e r6tulos como “cmprcsarios morais” e que se estude como esies personagens surgem, operam e fazem valer suas idéias.* Para tanto, a Antropologia das acusagGes de bruxaria nas sociedades letradas pode e deve acrescentar as suas preocupagées sincrénicas uma dimensio histérica para poder justamente per- ceber a sociedade nfo como algo parado no tempo, mas como um processo. F freqiientemente possivel descobrir onde, quando e como os rétulos sio inventados e através de quais mecanismos adquirem legitimidade. Afinal, se algumas bruxas remontam a tempos inatingiveis pela pesquisa histérica, outras nfo. E o caso especificamente dos “loucos” ¢ dos “homossexuais”. Como Fou- cault mostra magistralmente, 0 cstudo do passado pode revelar 03 empresdrios morais responsdveis para tais inovagdes e seu lugar na Histéria das sociedades ocidentais. 0 estudo de grupos de empresétios morais, como faz Mariza Corréa no seu trabalho sobre Nina Rodrigues e sua “escola” *, CAMINHGS CRUZADOS, a bastante nitider a . ela com : Constructo de “tipns” revi do nebuloso reino da invengao par sua ee © sua pas apaturais”. Bste tipo de histéria, msolidagio como. »além de revela IT estes processos jiticos, também forgosamente relativica o present ee ye a Roabura| dace” das coisas (tais como carteiras de Siereae qu 0 “menor ) € apenas @ ilusio que & intrinseca as construghes ideoldgicas. Mas este tipo de histéria pode ser enriquecido por outras | formas de investigagdo, notadamente de situagdes dramiticas especificas. A vantagem de estudos de crise € que no momento de confrontagées e briga ostensiva é possiyel enxergar represen- tagdo € agao operando conjuntamente, Uma coisa é analisar dis- cursos restrito estritamente no plano das idéias, onde os idedlogos desenvolyem suas posigGes de certa forma abstratamente, outra é yer estas idéias em acao, empregadas no sentido de legitimar certos comportamentos ¢ denegrir outros. Afinal, sio estas situa- ges concretas que constituem a vida social como cla é, e é por isso que devem representar a matéria-prima do estudioso do pro- social. ars antropélogo Max Gluckman propde que qualquer situagao social contém dentro de si todas as contradigdes eee estao presen: tes na sociedade circundante. * E uma posigao aceitavel, 86 ae preciso lembrar que as possibilidades de perceber estas oat i- ges exigem um conhecimento geral da sociedade em questio. Desta forma, 0 estudo de situagées sociais complementa outras fontes de conhecimento social. Acima de tudo, além de revelar as ae a andlise de situagdes resgata 0 individuo das Brasil representa, neste sentido, evelar nao 36 nogoes correntes e sobre crime, homossexualidade, go, mas também algo @ respeito com o caso. Além disso, 68 LINGUAGEM, ANTROPOLOGIA E CIENCIAS NATURAIS quero sugerir que o drama de Febrénio, por se tornar assunto nacional, ocupando um espaco grande na imprensa brasileira coma, um todo, em setembro de 1927, tem um papel altamente didéticg, Através deste drama publico, as idéias dos legistas, dos médicos, dos jornalistas e do prdprio Febrénio atingem o cotidiano dog cidadaos. E seguramente através deste tipo de situagao piblica » dramética que o cidadfio comum toma conhecimento das teorias eruditas da sua época, traduzidas num vocabuldrio nao s6 mais acessivel, mas também mais empolgante. O “louco moral” dos tratados médico-legais transforma-se no “monstro” dos jornais, Esta comunicagio é uma primeira tentativa de ordenar os dados que tenho coletados até 0 momento sobre Febrénio ¢ ¢, portanto, nfo sé exploratéria, como também bastante descritiva, Além disso, dada a complexidade do caso e o ndmero de atores sociais envolvidos, tive de colocar alguns em relevo enquanto ‘outros assumem um papel secundério. E o caso, especificamente, dos homens de imprensa (0 levantamento da imprensa da época esta ainda em andamento). Pelos fins deste trabalho, que se liga ao de Mariza Corréa, dou destaque aos médicos psiquiatras, espe- cificamente Leonidio Ribeiro, entéo Diretor do Instituto de Iden- tificagao e Estatistica do Rio de Janeiro, Heitor Carrilho, entao Diretor do Manicémio Judicidrio da mesma cidade e do jovem advogado maranhense Letdécio Jansen, que defendeu Febrénio Indio do Brasil, No dia 13 de agosto de 1927, 0 corpo do menor Alamiro José Ribeiro foi encontrado morto por estrangulamento num ma- tagal na Ilha do Ribeiro. Apés levantar as primeiras testemunhas, a policia suspeitou de Febronio {ndio do Brasil como autor do a antecedentes criminais. Em fins deste més, Petr6polis e leyado ao Rio de Janeiro, confes- * de setembro. Dai em diante, os testemunhos CAMINHOS CRUZADOS 64 historia, inclusive esta minha, ¢ ; Tee, ms, neste cago, 2 oe bins construfda ¢ feyantar O pasado criminal de Febronio, bem Leer a assim dizer “moral”. Nos autos constam dezens de pre” ja Polfcia, por fraude, subotno, roubo © vadinnen Cone fodo entre 1916 © 1929, quando t gem durante 0 perio : E Tabalhou sob o pseudnimo de Bruno Ferreiro Gabina como falso médico ¢ dentista, Além des ses detalhes, a Promotoria junta aos autos evidéncias de sua eae sexualidade. Numa das suas passagens pela Casa de Detengiio, em agosto de 1927, 0 diretor informou que “consta que o referido Febronio entrega-se ao vicio da pederastia”.5 Consta também dos autos uma dentincia que data de 26 de janeiro de 1927 em que Febrénio é acusado de tentar estuprar Djalma Rosa no xadrez da Quarta Delegacia Auxiliar, depois pisando na sua barriga e cau- sando a morte deste. As testemunhas desta cena acusam Febranio de ter mantido relagdes sexuais com outros dois presos antes de seduzir Djalma Rosa. Juntaram-se tambénr aos ‘autos depoimentos de menores que acusaram Febrénio de tentar seduzi-los sexual- mente, €m outro processo em que Febrénio ¢ acusado de matar Joao Ferreira, também na Ilha do Ribeiro. Num desses depoimen- tos, Alvaro Ferreira, de 18 anos, conta como Febrénio promete-lhe emprego, leya-o para uma mata, na Tijuca, onde tatuou-o no peito com as letras romanas D.C.V.X.V.1. e depois obrigou-o a se sub- meter passivamente a uma relagao sexual, ‘As letras tatuadas no peito de Alvaro Ferreira sio as mesmas ‘que circundam o térax de Febrénio ¢ se explicam de acordo com a Teologia r Febronio desenvolveu através de sonhos y c ,D.C.¥.X.V.1, significava Deus Vivo com o relato de Blaise Cendrars, com essas letras para poder Loura ¢ contra o Deménio. " ou 1925, segundo TROPOLOGIA E CIENCIAS Nay L INGUAGEM. ANTROP ‘OL - 1 Febrénio mandou publicar sey *etgetiye slagoes do Principe do Fogo, contenag We i; Infelizmente, @ Policia Federal mandou cist 8 ginas- @ alé hoje ndo consegui achar nenhum, ¢ = Guktely por or, set mais explicito sobre o conte dq rat im) , de Febrénio 7” Blaise Cendrars, se chamava As Rev A DEFESA Febronio foi defendido por Letdcio Jansen que acabay, te se formar em direito, em Recife, com apenas 20 anos, Sua defesa de Febrénio marca o inicio de uma brilhante carreira, Jansen, comegou fazendo severas criticas aos autos do processo, “p not. ria a fama que goza a Quarta Delegacia de ser um lugar de suplicios: Arrancam-se declaragdes com espancamentos, oy entio vencende o acusado pela sede. O suplicio engendrado POL esses eérebros e, ao que dizem, bastante original: Dfo-se doce; ao preso como tinica alimentagao. O acticar provocar-the-a sede ¢ Agua, a preciosa linfa, sé lhe seré dada empdés a Confissdo,. "8 Observa Jansen que as testemunhas “depunham como se trouxes- sem uma ligéo de cor” ® ¢ chega @ conclusio de que “a Policia € a Promotoria naéo conseguiram provas cabais: Fm vez de ‘um processo fizeram uma farsa tragica, em vez de investigar fizeram reclame, barulho e... nada mais”.1° Mas mesmo assim, nao fol sobre esta observacgao que montou sua defesa, Dai em diante, Le- técio Jansen admitiu “que todos os fatos de que acusam Febrénio estejam plena, completa.e irrefutavelmente provados”, 1! ¢ prosse- guiu no sentido de mostrar que Febrénio era louco e, portanto, nao tesponsdyel por seus atos. Terminou dizendo: “Quer criminoso, quer néo-criminoso, Febr6nio Indio do Brasil ¢, positivamente, um louco. No pode ser pronunciado, ainda menos condenado. Se & SS 7. Cendrats, B., op. cit, p. 180, Ribeiro, L., Homossexualismo ¢ Endo 3 ie Francisco Alves, 1938, p. 127. ; sy eno Processo, p. CAMINHOS cRUZADos ; j m1 sociedade julge-o Perigoso, que se o jny Snitenciéria munca, Justiga!" 1 msme num maniedmio, numa ° seca de Letécio Jansen € um model i uridica € se Dasela em provas cientificas da louc: ee se nfo PORO enter no denies {Cr de Feta Besta notar que © advogado cita nio menos de 20 thane 15 estrangeiros e 5 nacionais, para indicar a importimin a da Ciéncia para legitimar o diagnéstico feito Sneek Sens © argumento € construfdo sobre a ing s a inexordvel li sadismo, homossexualidade ¢ o que ele chama is nie Primeiro mostra que é um fato cientifico o i ¢ homossexualidade ligados, Depois, anne ae eEae Jigada ao erotismo ¢ ao crime. Como Febrénio pratica atos aaa sexuais, estrangula e € profeta de uma teligiao propria, ergo é um Jouco moral, ¢, como tal, nao é responsdvel pelas suas ages. “A lou- cura é, segundo Brouatdel, a cegueira moral. Pode se culpar um cego por que nfo vé? Pode se culpar um louco lingiie?” ** Além desta incursdo de Letécio Jansen no campo da Psiquia- tria, pelo menos trés médicos psiquiatras produziram relatérios em que opinaram sobre a loucura de Febrénio, Leonidio Ribeiro, Murilo de Campos ¢ Heitor Carrilho, este ultimo nomeado ofi- cialmente pelo juiz, Como estes relat6rios sfio substancialmente semelhantes, e como apenas o de Heitor Carrilho aparece nos autos, restringirei meus comentérios a este tltimo. Foi completado de fevereiro de 1929 e foi baseado na observagao de ‘9 ano de 1928 que passou, com esse fim, no por que de- com os seus antecedentes familiares. . Jequitinhonha, no Estado de Minas casa acs 12 anos para escapar do wigueiro, Na segao intitulada “ante- pmgUAGEM, ANTROPOLOGIA E CIENCIAS NATURA, . onal de Psychopathas, em outubro de 192 eee re vonde recebeu © diagnéstico de “estado oe degeneragao”. Na segao antecedentes socials", 0 relatério coast que Febronio, ao fugir de casa, chegot a Diamantina onde oe dew a escrever. Passando por Belo Horizonte, chegou ao Rig ie : 14 anos. Segue entao um relato dos seus antecedentes ee de acordo com os autos. E interessante notar que, apesay a FebrOnio negat seus crimes, Heitor Carilho néio expressa nenhuma divide sobre sua veracidade, A histéria que €, de fato, tecons. trufda ex post facto é contada em forma linear © lWgica, como 72 um romance. ‘A segunda parte do relatério € um exame somitico, que contém as medidas da corpo de Febrénio. Destaca o seguinte: “considerdvel desenvolvimento das mamas (Gynecomastia), bacia larga, lembrando © typo feminino”, e as tatuagens. Embora as provas de loucura nao usem explicitamente estas cbservagSes da “feminilidade” do corpo de Febrénio (“typo dysplasico de Kretcr. mer”), certamente ¢ intengao do relator sugerir que a sua homos- sexualidade possui fundamentos biolégicos, de acordo com “algu- mas teorias da época. A terceira parte do relatério € intitulada “Exame Mental". Aqui, o relator frisa duas coisas basicamente. O fato de Febrinic nfo se atrepender da sua malandragem e as suas “extravagantes idéias mysticas”. “Febrénio ¢ um individuo habitualmente expan- sivo; a sua physionomia, quasi sempre, reflecte essa disposigao de humor; as suas faganhas de fraudador sao contadas por elle ‘numa enorme demonstragao de alegria, rindo-se das suas vitimas, v talvez de suas artimanhas. [...] As nogdes de honra, de altrufsmo, de piedade, de gratidao, parecem-lhe fe. A elle se ajusta o conceito de Kraft-Ebing moraes”. "4 Af segue uma longa citasa0 dos Alienados deste autor austriaco. No es idéias mysticas”, 0 relator do seu livro As Revelagbes do mu CAMINHOS CRUZAnos 13 ven ine do Fogo, © concorda co, o de Pe ontsio Ribeiro © Murilo ie Seaktlewes scant ata gofreu NO ambiente familiar, durante a sya ae ; Febrinio n- jndeléveis. Ao exame, deixa perceber uma eat! ee ue 1 materna, a par dé um complexo patcrno ( uada fixasdo ‘oedipo complexe) ", 15 is Nesta parte, entio, utiliza a Teclogia de Febtonio para e que 0 fato e pai asi mae fez com que Reba ae tendo para cla “cxageradas manifestagdes affectivas, [que] fica: a ram gravadas mo seu sub-consciente, mais tarde influindo nas Oo manifestagdes neurdsicas de sua psycho-degeneracio™, 1# : Passa, entac, para @ discussfo a considerar “as porversses instinctivas-de caracter sexual de que € portador o paciente”.*” Nessa seco, o relator chama a atengao para a conjungio de sadismo ¢ homossexualidade de Febrénio ¢ acrescenta como evi- déncia de seu sadismo o fato de que, como dentista, arrencat dentes, ©, como médico, amputava pernas © outras pequenas operagées. A quarta parte do relatério, “consideragoes clinicas”, pro- nuncia sobre a loucura de Febrénio: “Das manifestagdes mérbidas de sua mentalidade, trés sobrelevam no quadro clinico (...) 14 — amoralidade constitucional, revestindo a forma de ‘loucura moral’ descripta por Pritchard (...) 28 — perversdes instintivas sexuaes denunciadoras de um infantilismo do fim sexual ou atestando uma parada na evolugao da libido ‘forga com a qual se manifesta o instincto sexual’ ou a fixacio da mesma “a uma phase primitive pregenital” (Freud). 4 ‘ideas delirantes de caracter mystico, consistindo, sobre- ‘culto a um extranho: ‘Deus Vivo’ aes ie uma longa discussio sobre responsabilidade criminal, a demonstrar que Febrénio ¢ doenie ©, 1 criminalmente, mas também alta- j4 LINGUAGEM, ANTROPOLOGIA F CIENCIAS NATURAi5 mente perigoso. Conclui que Febronio “deve ficar segregado yy vitam para os elfeitos salutares da defesa social, em estabelec, mento aproptindo a psychopathas delingiientes”. 19 : A ACUSAGAO © 7° Promotor Piiblico Adjunto, Interino, Leonardo Smith de Lima, responde aos argumentos da defesa, refutando o laudo pericial, negando assim que FebrOnio seja louco. Também cit Krafft-Ebing pata indagar que mesmo pessoas sis podem cometer os mais hediondos crimes. Além disso, nfo concorda com recomenda¢ao de que Febrénio seja segregado ad vitam no Ma. nicémio, primeiro porque € uma “providéncia que o Dircito Penal brasileira desconhece” ¢, segundo, porque, como Febrinio ¢ “um delingiiente astuto e fraudulento, simulador e perverso, em pouco lograria voltar & liberdade por exame psychiatrico do seu estado mental”. *! Um aspecto interessante desta posigfo do Pro. motor € que salienta o conflito existente entre o dominio do Judicidrio e dos “peritos alienistas”, conflito também observado por Castel na sua andlise do caso de Pierre Rivitre. * © Promotor reconhece que geralmente o Ministério Puiblico acata as conclu s6es dos peritos, mas que o Juiz nao fica necessariamente “ads- tricto ao laudo dos peritos, podendo aceité-lo, no todo ou em parte”. ° Procede, entZo, a argumentar contra Heitor Carrilho e Leonidio Ribeiro, insistindo que a “loucura moral” apontada nao é nada mais nem menos que a cultura na qual Febrénio se eriou. “Nascido e criado até aos doze annos, em Sido Miguel de Jequitinhonha, nos confins de Minas; dali fugindo e atirado ao bas fond de uma grande cidade cosmopolita, a mercé dos instinc- tos, qual poderia ser o seu senso moral, depois da pratica de todos BL. Processo,p. 265 _ 22. Castel, R., “Os médicos ¢ os julzes”, in Michel Foucault (Coord. ‘Pierre Rividre, ‘minha mae, minha irma e¢ mew irmdo, 259-275, CAMINHOS CRUZADOS crimes?” Vai além © arguments ic © ee mic desmente os sintom: ae 8 forte afetivid a8 arrolados em ¢, ade para feo oe “loucura moral”, Sobre o mistics favor do diagnés. menia que € absolutamente normal entie ae © Promotor argu. jagio. “Entre individuos incultos, destitui eae Setores: da popu. we de livros como « Biblia leva a manifestasges che ais extranhos ritos, sem restringir-thes a a ae ee Bsomalos portadores de desvios morues reponsablidade moral pode néo ser ‘detivacéo dos impulsos eee do Deus Vivo primitiva ou pathologica’; pode ser uma aan euros sentimento religioso no homem inteiramente z goes = OQ Juiz, contudo, aceita o ar ” ‘gumento pericia de Heitor Carrilho, e absolve ies tee lout da interné-lo no Manicémi pena et manda interné-lo no Manicémio Judiciério, Qs temores do Senhor Promotor de ; s i que Febrér - guise sair do Manicémio foram infundados. Em ee eee 4933, Febrénio escreve, de seu proprio punho, para o Sr, ee . de Direito da 6." Vara Criminal do Distrito Federal, ne ry om segundo cxame de sanidade mental. Continua o oficio, “requero mais 0 ex-oficio a bem da justica que V. Ex‘ se digne em mandar chamar-se a digna presenca de V. Ex*" para esclarecer 0 assumpto. “No meu querido Brasil a causa mais diffeil 6 um pobre filho da terra encontrar os seus direitos na justiga quando elle é pobre” A resposta & curta ¢ seca. “Bstd claro que ele, vivendo debai- xo de nte observagéo, 0 Diretor nfio deixaré de comunicar agéi com 0 juiz da execugao da jnternagao o estado de cura do paciente, se possfvel isto fosse ocorrer. Nestas condigoes opino pelo indefe- rimento da pretengéio dele.” * Bin 10 de maryo de 1934, dirige mais uma petisio se Julz, esta vez escrita por outra pessoa, pedindo novo exame © recla- eaedar Jo € te, Em 24 de agosto do mesmo ano, dois irmios de Febrénio, Jot Simdes 4° Oliveira e Agenor 24, Proceso, p. 272 (verso) 25. Processo, p. 293. 26. Processo, p. 294 € verso. 75 LINGUAGEM, ANTROPOLOGIA £ CIENCIAS NATURA\s Ferreira Mattos, oficiam ao juiz pedindo a liberdade de Febanie ¢ assumindo “inteira responsabilidade pelos seus actos, fora da. quele estabelecimento (0 Manicémio) inclusive, pela continuagae do tratamento, em minha residéncia, na cidade de Jequié»,2 Este offeio resulta em outro exame médico, feito pelo mesng Heitor Carrilho ¢ Armando Cabral Guedes, Num parégrafo de claram subsistir “as conclus6es clfnieas © medico-legaes™ do py; meiro Iaudo. Argumentaram que os irméos “nao poderiam, nas condigoes actuaes, deter as suas tendéncias anti-sociaes”, Agenor tenta de novo em outubro do mesmo ano. Atgumenta que scu irmio esté cite anos no Menicémio, que néo é mais violento, e que j4 foi atacado por pessoas mais fracas que cle sem reagir. Continua observando que Febrénio nunca foi pronun- ciado culpado, e termina dizendo: “porque existem pessoas Pode. rosas e influentes ém todas as nagdes e em todas as epochas, que comettem erros imperdoaveis © que pagam a justica e a outros infclizes que as vezes nfo comettem crime de especie alguma; morrem encarcerados na prisio”.” Esta petigao nao obtém me- Pois o Juiz se refere ao segundo laudo médico sugere por Febr6nio e assi- Thor sorte, que esta segunda peticao foi de fato escrita nada pelo irmao. Em 8 de fevereiro de 1935 Febrénio escapa, mas € captu- rado no dia seguinte. Em 5 de janeiro de 1936 entra com petigao de “habeas-corpus”, que The é negada. Uma nova tentativa de sair do Manicémio é uma carta, novamente da Pena de Febrénio ¢ assinada pelo irméo: “Baseado nos Principios de solidariedade hu- mana que ligam os lacos sagrados da Justiga e dos pobres filhos dos homens — depois de estar cansado de padecer na Priséo o meu pobre irmao Febrénio Ferreira de Mattos que foi internado no Manicémio Judiciétio Por ordem deste Juiz a cerca de 10 annos mais ou menos — venho muito humilde @ com o devido respeito Perante V. Ex. requerer um 2.° exame de sanidade mental para de a : 27. Processo, p. 304, 28. Proceso, p. 310, 29. Processo, Pp. 314, CAMINHOS. CRUZADOS cordo com © parecer i et mandar fazer Jocarepagud. ie J “Assim pede Justiga para o internado o si f seu im | porque ndo pode existir Deus sem misericondig eed a or 'm Justiga sem de dois medicos d, : ‘© estabelccime; a transferencia do mesmo para s Cok wate fonia de Rio de Janeiro 8-3-1936 ‘Agenor Ferreira Mattos (ass.) Febronio Ferreira de Mattos (ass.) Exofficio por ser pobre”. Esta vex © Juiz ordena um novo laudo médico, que ¢ emitido em 31 de marco de 1956, pelo Dr. Heitor Carilho novamente. Neste laudo. Heitor Carrilho confirma que nada mudou no pa: ciente desde o primeiro, actescenta que continua com “idéias de imaginagao, de feitio paranoide, também consignadas no laudo, em virtude das quais elle se julga um instrumento dos deuses ¢ de forgas ocultas para a realizagdo de reformas e transformagdes sociaes”. #1 Parece que Febrénio depois de 8 anes de Manicémio tornata-se “subyersivo”, acrescentando uma raz&o a mais para néo adquirir sua liberdade e, de fato, Carrilho termina dizendo: “Quanto 4 sua transferéncia para a Colonia de Psychopathas de Jacarepagud, nfo me parece aconselhavel, dado caracier aberto daquelle estabelecimento, que offerece, pela sua propria natureza, grandes possibilidades de evasiio aos doentes nas condicoes de Febrénio [ndio do Brasil". ** Em 6 de abril de 1936, Agenor tenta transferir o irmao para a Ilha de Dois Rios, mas esta derradeira tentativa também fracassa. Proclama o Juiz: “O scu lugar é no Manicémio Judi- ciario, de onde j4 poderé sahir quando a sciencia tomar a res- ponsabilidade da sua completa cura”. 4 ‘TROPOLOGIA E CIENCIAS Ny. LINGUAGEM, ANTROPOL Tks, f em diante nem Febrénio nem Agenor sees s De proceso. De vez em quando aparece = sujeltos po Pre confirmando a periculosidade de ran co; ocumentando sua gradual decadéncia, Manin mo 78 lauudg mé docume: ; fae de eletrochoque © Cardiazol, FebrOnio transform, pateras da onto dretor €o ManitOio, Dr. Ulysses de carey era relfquia do Manicmio Judieidrio Heitor Carrilhor, 1. ANALISE Esie esboge da histéria de Febronio Indio do Brasi aponta para varias diregdes de andlise. Uma seria certamente para a Teces. sidade de aprofundar a analise dos discursos do advogado da de. fesa, dos peritos médico-legais e 0 da Promotoria. Cada um tem seus interesses definidos pelas suas posig6es nesta batalha Juridica de tal forma que a iniciativa de Jansen tentar comprovar a loucura de seu cliente automaticamente obriga o Promotor a entrar em choque com os tecnocratas.da ciéncia psiquiatrica. Neste drama em especial, estes Ultimos ao ganharem o pdreo certamente saem for. talecidos. Jansen continuard sua carreira nao no Diteito Criminal, mas no Direito Civil até atingir considerdvel fama no Forum do Rio de Janeiro. Heitor Carrilho continua diretor do Manicémio Judiciario, que acaba assumindo seu nome, e assim imortalizando-o, Leonidio Ribeiro continua no seu trabalho de identificagao; além de ser uma figura-chave na implantagao do sistema de identifica. ga brasileiro, contribui para aumentar a hegemonia da ciéncia Psiquidtrica na construgio do “homossexual” moderno. No seu li- vro Homossexualismo e Endocrinologia * dedica um capitulo intei- ro ao caso de Febrénio, a fim de demonstrar a suposta relagio entre homossexualidade ¢ sadismo, Se Leonfdio Ribeiro, Heitor Carrilho e Letécio Jansen sairam fortalecidos profissionalmente a partir de seu envolvimento com © drama de Febrénio, afinal este era o primeiro caso de “grande =e Feb Tad gy, Rodrigo Ulysses de, Relatério sobre a satide mental de Ho do Brasil, sem data. | 3. Ribeiro, 1. op. ci CAMINHOS cRUZADOS sadismo” a aparecer no Brasil (como Se , yimento), o grande perdedor da Bee Se sintoma de desenvo No ultimo laudo medico de que eal. © préprio Febrinio, jutho de 1956, isto & depois de 29 anos § Late data de 5 de reatores Dr. Rodrigo Ulisses de Carvalho ¢ Ge confinamento, os [Lemos citam: “Tratando-se da Cadeia que exons nth Pests acabou ttinta anos de prisio; pouco aes, ‘ava condenado, jé ou ndo cometeu: trata-se que {4 acabou o mica de cee crime na Imposta a qualquer criminoso: em ni a qualquer crime 6 de 30 Hor dota en fess gragas ao seu atual médico, Dr. Anténio Pedro astees dee Febrénio, este ano, no Manicémio Judiciéio do ice de vida ¢ 55 anos de confinamento, ha de ser rae : ae vethos presos do Brasil ¢ aquele que mais tempo ficou ards das grades, Embora nunca julgado pelos erimes d eae: tendo-os negado sistematicamente, o mia i a e ae f cura moral” foi mais do que Saticiente i mes ae para afastar o “monstro” definitivamente da vida social. Nesse sentido, quem sai verdadeiramente vencedor da bata- tha € a Psiquiatria como instituic&o, pois esta se consolida como instrumento legitimo de controle social. Tal observagio nfo con- tém em si nenhuma novidade, considerando os trabalhos de Michel Foucault, Thomas Szasz, Roberto Machado ¢ outros. *7 O interes: sante, mesmo assim, € que, neste caso em particular, 0 conceito de “loucura moral” € seus sinénimos, arrolados por Heitor Carrilho, loucos morais (PRITCHARD), débeis morais, invélidos morais (MAIRET ¢ EUSIERE); cegos morais (SCHULE); anestesiados ao senso moral (GILBERT BALLET) ; loucos licidos (TRELAT) ; delirio (PINEL); anor- semi-loucos (GRASSET); maniacos scm Foucault, M.. Microfisica do Poder, Sio Paulo, The or Mental Hines: oonatine af theory of personal conduct Revised Balto, New York: Harpe of ion one 4 Ss pdnapo) da Norma: Medicina Social oe ae oc Graal, 1978, Foucwult, Insanity in the Age of Reason, a0 LINGUAGEM, ANTROPOLOGIA E CIENCIAS NATURAIS mais constitucionais, perversos instintivos, alienados dificeis (}, COLIN); alienados de seqiiestracdes miltiplas (CHARPENTIER), desequilibrados insocidveis de internagdes descontinuas (BO. NHOMME) * nfo escondem esse jogo. O conceito de loucurg moral é téo abrangente que cabe nele toda e qualquer pessoa que aja contra as normas estabelecidas como “normais” pela Justica oy pela Psiquiatria. No caso, loucura ndo é nem metdfora de desor- dem, ® € a sua prépria definigfo. EB por isso que o Promotor, ao tentar a condenagdo criminal de Febrénio, é levado, em vo, a separar de loucura os conceitos de comportamento anti-social, Mas, voltando ao inicio desta comunicagao, queria terminar ressaltando que, embora a consolidagao da Psiquiatria como ins- trumento de controle social seja o elemento mais fundamental desta histéria, isso se dé, no caso, no palco pablico da imprensa e do debate ptiblico e tem, portanto, uma importincia didatica | notavel. Pessoas daquela época da sua infancia no Rio de Janeiro | lJembram até hoje que a palavra Febrénio foi usada como elemento | da giria carioca para se referir a qualquer pessoa que mostrasse sinais de vicléncia ou homossexualidade. As ligagOes feitas pela Psiquiatria entre homossexualidade/ misticismo e sadismo, erigindo a figura de Febrénio ao status de um principio universal, atingi- tam em cheio a consciéneia dos individuos ¢ conquistou seu lugar no senso comum dos cidadaos. Foi, sem dtivida, um momento im- portante na produgfo da figura doente e agressiva do “homosse- xual” que sobrevive até o presente, apesar dos trabalhadores con- testadores dentro da ciéncia e fora dela. Talvez seja primeiramente por esta razio que me rendo ao fascinio de Febrénio agora em 1982, Se, para Leonidio Ribeiro, Febrénio foi peca fundamental da sua teoria sobre homossexualidade, crime e endocrinologia, torna- Se, agora, pega fundamental no combate a essas mesmas idéias, a 7 38. Carrilho, H., “Laudo do exame médico-psychologico procedido no | acusado Febrénio 1. do B”, Archivos do Manicémalo Judiciirio do Rio de | Janeiro, Anno 1, 1930, p. 92. | . 39. Ver Albuquerque, J. A. G., Metéforas da Desordem: O Contexto Social da Doenga Mental, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Você também pode gostar