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A Antropologia e Os Dilemas Da Educação PDF
A Antropologia e Os Dilemas Da Educação PDF
3: 29-50, 1980
A A N T R O P O L O G I A E OS D I L E M A S D A E D U C A Ç Ã O
I. Margaret Mead e a Educação. II. A África convida a pensar
sobre a Educação. III. Repensando a Educação.
Silvia Maria Schmuziger de Carvalho *
Oswaldo Martins Ravagnani * *
Najla Lauand * * *
PERSPECTIVAS/17
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CARVALHO, S . M . S . ; RAVAGNANI, O . M . ; LAUAND, N . A Antropologia e os dile-
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turidade, a melhor maneira de se estudar conmoción, sino que Ias condiciones cul-
uma cultura. turales la hacen a s í . . . " (4:241). En-
E é nesta perspectiva que sempre tretanto esta era a situação do adoles-
orientou suas observações entre povos cente de sua sociedade. A o analisá-la
"primitivos", estabelecendo a seguir pa- descobre duas causas principais: presen-
ralelos entre as culturas estudadas e a ça de normas antagônicas e a crença de
cultura ocidental ou, mais particularmen- que cada indivíduo deve realizar suas es-
te, a cultura norte-americana. colhas e que estas lhe são de vital im-
Em 1924 voltava de Samoa, onde portância, como seleção de emprego, fu-
estivera durante 9 meses. Dois anos de- tura profissão, marido ou esposa, partido
pois começou a escrever seu primeiro l i - político, etc. E estas escolhas devem ser
vro, publicado em 1928 com o título feitas muito cedo, sem que tenham sido
Coming of age in Samoa. Neste livro preparados para fazê-los com liberdade.
estuda os problemas da adolescência em A família quase sempre impõe suas
Samoa. Em suas conclusões tece conside- idéias ao adolescente, ou pressionando-os
rações sobre as diferenças entre a menina através da concessão de dinheiro, caindo
samoana e a norte-americana. por terra esta autoridade quando obtém
Mead ficou impressionada com a a independência econômica (4:245-6),
homogeneidade da cultura nativa, homo- ou por pressões emocionais, ameaçan-
geneidade essa que, observa ela, resulta do-os de perderem sua simpatia e apoio
numa sociedade sem conflitos, enquanto caso sigam outros ideais (4:248).
a norte-americana, heterogênea, apre-
sentava tantos conflitos, frustrações, neu- Preocupada com esses problemas
roses, desentendimentos, etc. (*). No Mead procura uma maneira de educar os
entanto diz que 'nos hallamos frente a jovens tentando reduzir seus problemas
una encrucijada y debemos decidimos a e ao mesmo tempo preservando sua indi-
avançar hacia una heterogeneidad más vidualidade, baseada no que aprendera
ordenada, o retiramos assustados hacia em Samoa. Assim, escreveu que "es ne-
un padrón único que desperdiciará nueve cessário orientar todos nuestros esfuerzos
décimos de Ias potencialidades de la es-
educativos a adiestrar a nuestros niños
pécie humana para que podamos gozar
para Ias elecciones que deveran abordar.
una seguridad demasiado cara. Tenemos
oportunidad de concebir, y empezar a La educación, en el hogar aún más que
construir sobre la base de tal concepción, en la escuela, en vez de constituir la de¬
un mundo que será tan nuevo, por la fensa especial de um régimen, una tenta-
ordenada interación de los múltiples do- tiva desesperada por formar un hábito
nes del hombre, como lo es el actual por mental particular, que resista todas Ias
la utilización tecnológica de los recursos influencias exteriores, debe ser una
físicos" (4:27). preparación para esas mismas influen-
De seu estudo sobre os samoanos cias. Tal educacion debe prestar
concluiu que "la adolescência no es ne- mucha mayor atención de la que hasta
cessariamente un período de tension y ahora se ha concedido a la higiene men-
(*) "Si tomamos cinco sociedades como datos en todo el problema de la homo-
geneidad contra la heterogeneidad, de los modelos únicos para todos contra una tolerância
cultural de la diversidad, o qué descubrimos? Cuando una sociedad es homogénea, los
conflictos, Ias confusiones de una sociedad heterogénea están ausentes." (4:24)
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tal y física. L a niña, para poder escoger rigidez dos programas fascista e comu-
sensatamente, debe ser sana mental y nista, o primeiro como padronizador da
corporalmente, . . . Mas importante aún "personalidade de homens e mulheres
resulta el que esta niña del futuro posea como claramente contrastantes, comple-
un espiritu amplio . . . Debe enseñarse a mentares e opostos" (15:295), o segun-
Ias ninas como pensar, no qué pensar . . . do não reconhecendo "qualquer distinção
Debe enseõarseles que se los cuales es na personalidade aprovada de ambos os
sexos" (15:295).
chos caminos, ninguno de los cuales es
obliagtorio en sí, y que solamente a ellas
cabe la responsabilidad de elegir . . . pa- "Uma civilização . . ., aconselha ela,
gamos harto caro por la nuestra hetero- poderia evitar de guiar-se por categorias
génea y rapidamente cambiante (civili- como idade ou sexo, raça ou posição he-
reditária numa linha familial e, em vez
zación) . . . En tal lista de precios, debe-
mos contar nuestros benefícios cuidado- de especializar a personalidade ao longo
samente . . . y en primer lugar considere- de linhas tão simples, reconhecer, treinar
mos esta possibilidad de eleción,... e dar lugar a muitos talentos tempera-
(4:251-2) mentais diferentes. Poderia construir so-
bre as diferentes potencialidades que ela
tenta agora artificialmente extirpar em
Mesmo sete anos mais tarde (Sex algumas crianças e criar em outras"
and temperament in three primitive so- (15:301).
cieties (*), esta contribuição crítica é
ainda bastante formal e tímida. Em 1935
E conclui:
(por ocasião da primeira edição do l i -
vro), Mead sentia naturalmente sua pró-
"Se quisermos alcançar uma cultu-
pria cultura, ou melhor, a civilização
norte-americana a que pertencia, como ra mais rica em valores contrastantes,
revolucionária e libertadora (* *). Per- cumpre reconhecer toda a gama das po-
cebendo claramente o mecanismo através tencialidades humanas e tecer assim uma
do qual a sociedade molda a personali- estrutura social menos arbitrária, na qual
dade de seus membros, ela vê na socie- cada dote humano diferente encontrará
dade americana a inversão de certos pa- um lugar adequado" (15:303).
drões tradicionais europeus. Ela fala des-
ta sociedade com um misto de entusias- O prefácio à edição de 1950 nos
mo pela democracia, no estilo de "O pe- mostra a mesma atitude otimista e, em
queno Lord", e de crítica à ambigüidade 1963, o entusiasmo da autora é um re-
da situação americana, que ela opõe à flexo das recentes conquistas espaciais,
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( * ) "Desde que este livro foi escrito, passamos a considerar-nos, talo seriamente
quanto possível, uma espécie de criaturas vivas, num universo que pode conter outras
espécies de criaturas vivas, talvez mais inteligentes do q¡ue nós. Essa possibilidade acrescenta
novo sabor à exploração de nossas próprias potencialidades — como membros de uma
espécie, incumbida de preservar um mundo ameaçado. Cada diferença é preciosa e deve
ser cuidada com carinho." (Em fevereiro de 1962, o primeiro "astronauta" americano,
John Glenn, revidava as façanhas russas do ano anterior, realizadas por Gágarin e Titov.)
(**) Usamos a versão castelhana (11). Margaret Mead estudou os Manus (ilhas do
Grande Almirantado) logo depois de seu trabalho de campo em Samoa.
(***) Veja-se, na referida obra, o apêndice "El método etnológico em la Psicologia So-
cial" (11:175-182).
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(*) "But day after day, as the child is prevented from fighting, he sees magnificent
battles on the stage, and the children are part of the crowd that streams down to the
river bank to duck some character in the play. He sees the elder brother — who must
always be deferred to the real life — insulted, tricked, defeated, in the theater. When his
mother teases him in the eerie, disassociated manner of a witch, the child can also watch
the witch in the play . . .(6:44).
(**) "Just because we repuiate with all our strenghts the ideas that man's manners
or his moral, lor his IQ, or his capacity for democratic behavior, might be limited by
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( * ) Ela mesma confessa que, ao analisar a própria cultura, lhe é difícil manter a
mesma imparcialidade (um mínimo de envolvimento pessoal) com que estuda culturas
primitivas (5:4), pois "we are our culture" (5:21).
( ** ) Vale até a pena transcrever.
"But once let the light of freedom be put out all over the world, and there is
no garantee that it would ever spontaneously burst into lovely light again. Democracy is an
invention, like fire and language and marriage. We have no record of the thousand small,
unoted circunstances and usages which fathered it; we have no proof that it would
necessarily ever apear on the of the earth again."(5:191-2).
( *** ) A essência mesma do puritanismo: "God prospered the good man." (5:195).
( **** ) Parece também que o americano nega suas origens (de imigrante, todo ele sen-
do terceira geração, "third generation", como ela mesma observa) e que, a medida em que
galga posições, reproduz os ideais aristocráticos e "snobes" da velha aristocracia, justamente
contestados pela ideologia democrática, na origem.
***** Como não existe já outro ideal a não ser este sucesso, para os que fracassam
sobra a vergonha, o sentimento de frustração que — diz Margaret Mead — marcou toda
uma geração de pais americanos quando da depressão de 1929 (5:199). E Mead não
percebe que a tão decantada liberdade, a liberdade americana é, em última instância, a
mais vil dependência, a dependência de um status econômico que se conquista no "vale-tudo",
numa luta desigual.
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(*) "Nessa visão das possibilidades de que a educação infantil num sistema educa-
cional benigno possa eliminar grande parte dos distúrbios e maus funcionamentos encontrados
no mundo moderno deve ser temperado com exigências profundas de métodos cultural-
mente adaptados para conciliar e atender as discrepâncias biológicas". (13:13).
(* *) Finda a 2a. guerra mundial, o interesse dos E U A pelas ilhas do Pacífico, arreba-
tadas ao expansionismo japonês, torna-se naturalmente maior ainda.
*** Curiosa é a observação que a antropóloga faz, em nota de rodapé (14:154-155),
a respeito da alteração referente à expressão "comunal sentiments": "In the original this
word read "communistic" where I used the term in its old descriptive sense before it had
politically loaded".
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( * ) "In turn, ther is a persistent danger that, spawred from the experiences of psy-
chological warfase which were developed during World War II, tutored and advised in method
by deserters from the communist apparatus, we may adopt some of the same devices for
examples, offering the world health, education, and technical assistance, not because we
have a system within which we are willing to share all members of the human race,
but because it will provide us with allies against our enemies". (14:456-7).
( ** ) That the problem is still a lively one is attested to by the recent claims of such
an eminent biologist as H . J . Muller, that traits like cooperativeness are genetically deter-
mined, a claim which flies in the face of our available cultural evidence on the extend
to wrich such behavior is dependent upon socio-cultural forms". (7:525).
(***) "The task would have to be carried out by clusters of men and women with
fertile and imaginative minds, different kings of competency and experience, drawn from
the humanities as well as from the physical, biological, and social sciences, working in
cooperative situations, inculding field station in various parts of the world." (8:289).
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(*) Em Bali, M.Mead observa algo semelhante: 'Verbal directions are meager;
children learn form the feel of other people's bodies. . . " (6:43).
(* *) Na verdale, parece que em algumas tribos sua adoção se deve a contatos com
a população neo-brasileira.
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mo elas são", e este nível elementar (*) é tão desequilibrado, tão pouco humano
de conhecimento superficial ou "leve" é que, nas classes média e alta se tenta
exatamente o único conhecimento aces- proteger a criança contra o exterior, na
sível — assim dizem os Bantu — ao ho- casa e nas escolas, através de mitos e
mem branco. fantasias cuja realização ela não verá ao
Enquanto as nossas classes média e se tornar adulta. Estas fantasias se des-
alta idealizam o período da infância pedaçam, assim mesmo, ao menor con-
como uma vivência de lindas fantasias, tato com a realidade envolvente (até
a infância da criança na cultura bantu através da televisão dentro do refúgio
tradicional é a vivência real. Natural- domiciliar), muito antes de se atingir a
mente, antes da ocidentalização da vida, puberdade. A criança das classes des-
a criança não precisava recorrer a pro- protegidas e que, como a criança "primi-
gramas de televisão e a sofisticados l i - tiva" e camponesa medieval, vive o mun-
vros didáticos para saber que a vivência do do real, vive-o como ele realmente é,
do real pode ser tão ou mais maravilhosa entre nós: injusto, cruel, desequilibrado.
que outra qualquer. Os evadidos da Febem simplesmente re-
produzem a violência do mundo dos
É durante as longas cerimônias pu- adultos.
bertárias que rapazes e moças bantu
aprendem os valores sociais dos conhe- Nas escolas, há muito tempo que
cimentos que já adquiriram, como téc- se nota a indecisão de se saber o que en-
nicas da atividade cotidiana (**): apren- sinar. Deve-se simplesmente ensinar téc-
dem porque são importantes para o nicas, manter as crianças ocupadas, final-
bem-estar e a sobrevivência do grupo mente profissionalizá-las? Ou deve-se,
como um todo, no presente e no futuro. apesar de tudo, optar ainda (como se
Este é o conhecimento das leis (milayo) já nem valesse mais a pena . . . ) por um
e nele se espelha uma verdadeira Antro- conhecimento das Humanidades para que
pologia social nativa (***). O nível mais — numa ocasional e rara conjuntura fu-
alto da iniciação bantu, que pode ser tura — algum dia as novas gerações
definido como de compreensão filosófica consigam descobrir soluções para um
do Homem e da Natureza, busca respos- mundo a beira do abismo?
tas para questões de certa forma análo-
gas às formuladas pela própria Antro-
pologia filosófica (****). Parece que dilemas semelhantes en-
frentaram as nações africanas que, há
O que acontece, em vez disso, na pouco, obtiveram sua independência po-
nossa sociedade atual? O mundo do real lítica.
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filhos deste país obtiverem diplomas, afetavam a maior parte de nossas pala-
adotarem para se vestir uma moda es- vras e nossos atos. Em nossos dias, te-
trangeira, e fugirem para as cidades?" mos medo de não estarmos atualizados.
Esforçamo-nos em copiar os estrangei-
Por isso decidiu enviar seu segun- ros mas, enquanto não tivermos mais fé
do filho para uma escola de agricultura, em nós mesmos, não saberemos distin-
onde aprenderia modernos métodos de guir o que é bom do que é mau. Copia-
criação de animais e de cultivo. Este remos dos outros de preferência as más
filho não teve, portanto, a sorte de es- coisas ao invés das boas. Que tipo de
tudar, de obter um diploma, de aprender comunidade construiremos assim?"
a trajar-se segundo a "moda" européia.
Trabalhou, contudo, na escola de agricul- "Tuas idéiais são penetrantes- Que-
tura, e aí aprendeu como cultivar melhor res encarregar-te da educação de meu
o café e como conseguir maior produ- terceiro filho?", perguntou o pai.
ção de leite. Quando terminou seus es- "Sou incapaz de encher teu filho de
tudos, foi contratado por uma compa- conhecimentos e de muní-lo de um di-
nhia que vendia material agrícola aos ploma para ingressar na vida. E , se eu
cultivadores. Ficou contente por ter en- fosse capaz disso, eu não o faria; mas
contrado um bom emprego nessa firma contentar-me-ia com despertar nele pro-
estrangeira, mas seu pai lastimou que fundos anseios e um espírito criador."
não o ajudasse mais nos serviços da
roça. "Faze como te aprouver. Quero que
tuas convicções sejam as de meu filho",
"Que deverei fazer para que meu respondeu o pai entusiasmado.
terceiro filho tenha vontade de perma-
necer em casa e de melhorar a vida em "Jamais", exclamou o sábio, "ten-
nossa aldeia?" perguntou a seus amigos. tarei fazer uma pessoa partilhar de mi-
"Se todo o resultado da instrução é tão nhas convicções. Isto seria destruir seu
somente ensinar a nossos filhos a buscar espírito, moldá-lo como um oleiro molda
o êxito pessoal, sem jamais se preocupa- a argila. Formando as pessoas desta ma-
rem com a prosperidade da comunidade, neira, nós lhes damos uma alma de es-
podemos perder todas as nossas esperan- cravo, qualquer que seja o mérito das
ças de que nosso país algum dia pro- idéias das quais nós os tornamos escra-
grida. Quando nossos antepassados vi- vos. A liberdade não tem nada a ver com
viam em tribos, a ajuda mútua ocupava a independência política. A liberdade é
um grande lugar na vida. Não havia, uma maneira de "viver".
então, mendigos e ninguém roubava o
"Mas então, se ninguém exerce
que fosse dos seus!"
controle sobre mim, eu sou livre, não
é?", perguntou, curioso, o pai.
Um dia, um sábio oriundo de uma
aldeia vizinha explicou ao referido pai: "Tu tens tua terra e a exploras
— "Não é uma cabeça cheia de conhe- como te apraz; declaraste, contudo, que
cimentos que decide a conduta da vida gostarias que um filho teu te ajudasse a
de um homem; é a sua maneira de ser, fazê-la prosperar. Desejadas também ver
suas crenças, suas esperanças, seus re- teus filhos contribuírem para a prosperi-
ceios. Antigamente temíamos os feiticei- dade da aldeia. Se fosses livre, terias dito:
ros e os maus espíritos. Esses temores posso fazer tudo isto sozinho. É somen-
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te quando se tem a certeza íntima de viver segundo suas convicções mais ele-
possuir ou de poder conhecer o que é vadas."
necessário para que a vida seja tal qual O sábio incumbiu-se, então, da edu-
se deseja, sem ser obrigado a aprender cação do terceiro filho. Não recorreu
coisa alguma dos outros, que se pode nem à palmatória, nem aos exames. Co-
dizer que se é realmente livre. Quando meçou por contar ao menino casos
pensares por ti mesmo, quando não mais relativos à história de sua tribo, aventu-
absorveres com avidez todas as idéias ras apaixonantes e belas lendas. O ra-
dos outros, quando fores incapaz de re- paz descobriu, admirado, quanto se orgu-
jeitar idéias de outros simplesmente por- lhava da coragem e da sabedoria de seus
que não te agradam, e souberes examinar antepassados. O sábio ensinou ao menino
cada idéia com um espírito aberto, jul- que muitas ervas e remédios empregados
gando-a segundo o melhor sistema de re- pelos seus, tinham sido adotados pelos
ferência que conheças, retirando dela o médicos de países industrializados. Ele
que ela oferece de aproveitável para tua o ensinou a fabricar uma flauta de bam-
vida, então, e somente então, começarás bu e a tirar dela música, assim como
a ser verdadeiramente livre." faziam os antigos. Como o menino co-
meçasse a pensar que descendia da maior
'Eis aí algo bem difícil", replicou tribo de toda a África, seu preceptor pôs-
pensativamente o pai. "Há muitas coisas se a lhe falar da grandeza das outras
de que não estou seguro- Quando eu era tribos. O menino sentiu-se orgulhoso de
estudante, meus professores me ensinavam pertencer ao conjunto dos povos africa-
que todas as pessoas de nosso povo ti- nos de culturas diversas-
nham modos de pensar e de agir errados
e atrasados. Não sei mais o que devo crer Quando o menino começou a pen-
nem a que santo recorrer". sar que os Africanos eram muito supe-
riores a todos os outros povos, o sábio
"Eu sei", respondeu o sábio, sonha- narrou-lhe as histórias dos povos da Eu-
dor. "Desse mal sofre a nossa gente. ropa e da Ásia. Pouco a pouco, o me-
Estamos perdidos entre dois mundos. nino compreendeu que todas as tribos,
Nosso mundo de outrora está deslocado. todas as comunidades possuem sua
Ele não está de acordo com a vida atual grandeza peculiar. Quando começamos a
que muda rapidamente demais; os sis- crer na grandeza dos outros, ganhamos
temas e os modos de vida estrangeiros em sabedoria e em profundidade, pois à
não correspondem de maneira alguma às nossa própria força juntamos a dos
nossas necessidades. De certa maneira, outros.
estamos perdidos na noite, sem que a Um dia, o rapaz formulou esta
lua ou as estrelas possam nos guiar queixa: "Gosto de tuas histórias. Elas
numa direção que tivéssemos escolhido me dão vontade de compreender o mun-
livremente, sem sabermos que direção se- do inteiro e de simpatizar com ele. So-
guir. Se desejares que eu me ocupe da mente, não posso me lembrar de todos
educação de teu filho, eu o ajudarei a os fatos. Sem eles, como poderei ter ins-
encontrar o caminho que seguirá em sua trução? Preciso anotá-los."
vida. Não lhe indicarei meu caminho, "Não te atormentes, meu jovem.
mas ajuda-lo-ei a descobrir o que con- Quando enterras na terra uma semente
vier à sua natureza, o que o levará a ela cresce, mesmo se não deixas um mar-
desenvolver o melhor de sí mesmo e a ca no lugar onde a plantaste. Se eu se-
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meio em ti sementes vivas, elas germi- Um dia, chegou aos ouvidos deles
narão. Se estiverem mortas, todas as no- a notícia de que uma viúva que possuía
tas, todas as marcas do mundo, de nada três filhos e vivia numa aldeia vizinha,
te adiantarão. Muitos alunos armazenam havia recusado se casar, segundo o cos-
fatos, para passar nos exames e os es- tume, com o irmão mais novo de seu
quecem logo depois. É o que se chama falecido marido. Ela quase não recebia
— erradamente — instrução, em certos ajuda de seus vizinhos. No dia seguinte,
países." ao nascer do sol, o sábio e o aluno se
puseram em marcha, em direção ao sítio
O sábio pediu ao pai um pequeno
dela, munidos de enxadões e sementes,
pedaço de terra e, com a ajuda do filho,
pois estava na época de semear. No ter-
ele o semeou. Estudaram os livros em
ceiro dia, duas novas pessoas chegaram
que estavam consignados os novos méto-
para ajudar. Á noitinha, o sábio e o
dos de cultura, e fizeram experiências
menino foram convidados a partilhar da
com mais e menos sombra, com água e
refeição na aldeia. Terminada a ceia, o
estéreo. Observaram todas as transfor-
sábio se pôs a narrar histórias sobre o
mações, o desenvolvimento de suas plan-
passado de suas tribos; contou como seus
tas, e tomaram notas a respeito. O meni-
antepassados haviam socorrido a todas as
no aprendeu a medir com precisão, a
pessoas na necessidade, mesmo aos que
fazer gráficos e a utilizar a aritmética pa-
não respeitavam os costumes.
ra estabelecer comparações. Quanto mais
observava, mais se admirava de constatar
quantas coisas lhe haviam escapado, no Antes que ele tivesse acabado a se-
seu ambiente costumeiro. Com o peque- gunda história, um dos mais prósperos
no pedaço de terra, o menino começou agricultores exclamou: "Vou ajudar a
a pensar de maneira científica, a se disci- viúva a explorar sua terra até que seus
plinar no exame das coisas, a criticá-las e filhos estejam na idade de fazê-lo. Já é
a analisá-las. tempo de fazermos renascer o que há de
bom nas nossas tradições. Do contrário
Graças às descobertas que o sábio ficaremos cada vez mais fracos. Este há-
o fez realizar, percebeu que poderia co- bito de esperar que estrangeiro e governo
nhecer, decifrando os mecanismos secre- resolvam nossos problemas, impede nosso
tos da vida que o cercava, aventuras desenvolvimento."
tão apaixonantes quanto as que conhece-
ria percorrendo o mundo. As proezas
arquitetônicas das formigas, a vida comu- III. REPENSANDO A EDUCAÇÃO
nitária das abelhas, e a maneira como Nas sociedades "primitivas" a soli-
as coisas na natureza agem umas sobre dariedade se estende pela rede do pa-
as outras — plantas, climas, terra, ani- rentesco, de tal forma que, no final das
mais e homens — tudo isso representava contas, a aldeia inteira é abrangida (ou
o mesmo que viagens a reinos desconhe- por laços de sangue ou por alianças).
cidos. O termo "parente" refere-se, assim, a
Quando o menino descobriu as ma- um número muito maior de pessoas que
ravilhas e o mistério da natureza, e da na nossa concepção ocidental.
comovente beleza desta, passou a fazer Contudo, o autor do conto propõe
sua arte e sua música, ele começou a uma extensão maior ainda da solidarie-
visualizar o passado, através dos grandes dade, reforçando a passagem da tribo pa-
sábios de diversos países. ra nação.
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CARVALHO, S . M . S . ; RAVAGNANI, O . M . ; LAUAND, N . A Antropologia e os dile-
mas da E d u c a ç ã o . Perspectivas, S ã o Paulo, 3: 29-50, 1980
ainda que não o seja por cerimônias e encontramos nas ruas congestionadas,
ritos ou prescrições religiosas. apesar dos minhocões, anéis e avenidas
Não é só um corpo de bailarina ba- largas, se apresentam já nas calçadas
linesa que sabe tecer a ordem universal. limpas frente às mansões e casas da clas-
Se percorrermos os setores diferenciados se alta e média: jardins cuidados, grama
do nosso próprio modo de produção e certinha, aparada, plantas ornamentais
atentarmos para os pequenos detalhes obrigadas a crescerem dentro de normas
do cotidiano, teremos a surpresa de cons- pré-estabelecidas.
tatar que o equilibro aparece dramatiza-
do nos mínimos detalhes em todos eles. Enfim, a ordem se encontra no se-
Nas empresas modernas, agro-pe- tor de consumo em toda sua plenitude,
cuárias, fábricas, a arquitetura revela um a nível doméstico; a dona de casa se
cuidado imenso em modelos harmonio- esforçando para que seu pequeno uni-
sos e repetitivos e, mais do que isto verso particular seja, não só o "repouso
ainda, justamente no equilíbrio em ci- do guerreiro", "um refúgio contra a inva-
mento e metal do própro desequilíbrio. são do mundo", mas também e princi-
Ao ver pela primeira vez Brasília ou palmente um mundo em que as coisas
qualquer maquete de uma maravilha ar- estão em equilíbrio, cada qual em seu
quitetônica moderna, quem não se es- lugar. Em oposições neutralizadas de-
panta ao ver como massas tão grandes e frontam-se, num canto da sala, a repro-
pesadas (que, pela lógica, pela lei da dução de uma Madona de Luini e um
gravidade, deveriam desabar) se mantêm profeta em pedra sabão; no outro, flores
graciosamente equilibradas como aves de Hong-Kong e uma garrafa de areias
petrificadas ao alçarem vôo? coloridas do Ceará, obras perfeitas que
substituem quem as produziu, A pre-
Por jardins e canteiros floridos pas- sença do artesão, se tolerada, mascara na
sam operários limpos e uniformizados, uniformidade dos barros de Vitalino, a
tudo certinho, funcional, como deve ser fome e a sede: a miséria se torna inócua
num universo em equilíbrio. e não agride mais ninguém . . .
Harmonia e equilíbrio também espe-
lham as lojas, a propaganda, os vende- A ordem se preserva.. . mas estes
dores- Harmonia e equilíbrio, se não os não são os caminhos da educação.
PERSPECTIVAS/17
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CARVALHO, S . M . S . ; RAVAGNANI, O . M . ; LAUAND, N . A Antropologia e os dile-
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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