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cao tem i demontem estabelecer uma dicotomia a rigida entre fala e escr’ 6 que a lingua falada nao 6 re tem uma gramatica propria que os falantes cade no uso difrio ¢ cujas categorias de andaieallaa——n gramatica da lingua escrita. Assim, na organizacao textual e interacional da ionais, repeticoes e pardfrases, parentéticas, | sobreposices, anacolutos, hesita corregoes, freqiiéncia de construgoes: ppessoais de fundo atenuador, etc. Na sintaxe, a predominancia de perfodos 0, justaposicao, frases incompletas (frases mminimas, suficientes para a com= 4o do falante e que se interrompem quando isso acontece), baixa Ocor éncia de subordinasao, anacolutos (op.cit.:70). As estrutura sintaticas, segundo n conhecido estudo, nao ultrapassariam sete palavras ¢ dois segundos de Jo (Chafe, 1985:111). No vocabulario, o uso, cada vez mais generalizado scenos € injuriosos, como , © que existe no > continnum fala/esc! conversa distensa do dia a dia, até a exposigao cientifical Dino Paet! ue no problema das diferengas ¢ semelhancas tros pesquisadores, entre 0s quais, aq 08 para nfo nos alongarm ui ng tudadas por ou! dife fl ¢ an io Marcuschl (opt basa lembrar a dierenga ble. Brasil, Luts de comunicagao entre falante/ou © eScritory elda pela sitnagio fauséncia dos recursos da produgao lingitsticg . resenga, ‘; leltor de Outro, lane seme que a escrita nao pode ser, em momento al. * se, para face a face, pare absoluta e fiel da fala. ; um Pie eer ° didlogo com o leitor, por meio de uma carta, de um arg. ‘tardri as a pressuposicao de que um |e; go, de um. texto Mee . fom a tence co be itil — ante reeebend , oy vectativas desse mesmo leitor. A rigor, ninguém escreve “ sear ii ‘te que se trata de uma fala transcrita. iis eri € possivel fazer chegar ao leitor a ilusdo de uma realidade ora, desde que tal atitude decorra de um habil proceso de claboragao, privilégio do texto literirio. O escritor emprega, na escrita, ‘marcas de oralidade > que per- miten ao leitor reconhecer no texto uma realidade lingiistica que se habituou ouvir ou que, pelo menos, j4 ouviu alguma vez e que incorporou a seus esque- mas de conhecimento (‘Tannen & Wallat,1993), frutos de sua experiéncia como falante. Esses esquemias sdo os responsaveis pelas suas estruturas de expectativa (idem), isto &, 0 que o ouvinte (ou Ieitor) espera que o falante (ou escritor) fale (ou escreva) ¢ em que tipo de linguagem o faga. Sao elas que Permitem nosso stranhamento quando deparamos em um texto vocdbulos ou estruturas em jobads ewes desacordo con o esperado. Assim, ninguém esperaria encontrar numa man- chete jornalist ‘a um vocitbulo obsceno ou uma injuria que, no entanto, esta- riam dentro de suas expectativas num discurso oral exacerbado. Normalmente, é comum encontrarmos juizos sobre certos textos litera- ries, apontando sua ligacdo com a linguagem falada. Afirma-se, por exemplo, que os modernistas procuraram aproveitar a linguagem oral, quando escre- viam seus textos ou que, da mesma forma, autores contemporaneos tém utili- zado a fala expontinea, a giria ¢ até os palavr6es em suas obras de ficgao, ‘sss afirmacoes sempre permaneceram em limites vage nos didlogos literfrios, a reproducao da fala, em muitos escritores, certamente, iproxima-se do uso lingiiistico de su Se pensarmos ; ‘a €poca, nao s6 na literatura atual, mas também em outros tempos (Cf. Preti, 19843, 1997a, 1997b). i Mi S €m se tratando de narradores (em particular, de primeira pessoa), a stratégia ficcional « “i ns Stratégia ficcional Sempre encontrou sérigg problemas para elaborar a lingua lada e, ioria é hae " Maioria das vezes, é 0 Vocabulario a tinica marca da oralidade na 2 Marrativa (Cf, Preti, 1984b), Estuvos ve Lincua Orat & Esceira 127 Para demonstrarmos as experiéncias literéria de oralidade, na voz narrativa, seria necesséria w, textos, o que seria impossivel nos limites deste tr, nas o trecho de um conto de Joao Anténio, cont raremos comentar nele o trabalho de elaboraca S de incorporacao das marcas car Variac4o muito grande de a alho. Escolhemos, pois, ape- ‘sta contemporaneo, e procu- 10 da oralidade, na ficgao: “Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor come malandro, ganhar. Como todo infeliz comega, Ja cedinho batucava. —Vai um brilho, mogo? Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar fregué: ‘me mandar no brilho dos sapatos. Fazer um barulhao com o pano, aticar finos, esperto ali. paler Os dedos imundos nao tinham sossego. As veres, cobigava os pisantes dos fregue- ses; entdo, apurava mais 0 brilho. O tipo se levantava da cadeira, se arrumava todo; se empinava, me escorregava a gorja magra. Tudo pixulé, s6 caraminguas, uma nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia. Agiientava frio nas pernas, andava de ténis furado, olhava muito doce que nao co- mia, € 0s safandes que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negocio era ver & desejar. Parasse ai. Agitentei muito xingo, fui escorragado, batido e dormi de pelo no chao. Levei 0 nome de vagabundo desde cedo. La na rua do Triunfo, na Pensio do Triunfo, seu Hilério e Dona Catarina. Aquilo, aquele tempo, jd era 0 casarao descorado dos dias de hoje, j4 pensio de mulheres. Mas abrigava também, a noite, magros, encardidos, esmoleiros, engraxa- tes, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelés, gente de crime mitido, mas corrida da policia, safados da barra pesada, que mal e mal amanhecia, seu Hilério mandava andar. Cada um para a sua viragao. A gente cafa para a rua, Catava que catava um jeito de se arrumar, Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar cameld, passar retrato de santo, gilete, calcadeira.. Qualquer bagulho é esperanga de grana, quando 0 sofredor tem fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuga atrds de comida. ‘$4. Servindo para um, mais E depois 0s bragos Bem. Engraxando lés nas beiradas da Estacao Julio Prestes. Era um na fileira lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras virages € moleques como eu e até melhores, gente que tinha pai ¢ mae ¢ que chegava 14 da Barra Funda, da Luz, do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viragao muito direitinha. Nao é fres- cura nao. A gente vai ld, ao trambique da graxa e do pano, porque anda a faminta apertando, E é mais sério do que aquilo que os otdrios com suas vidas mansas, do que os bacanas e 08 mocorongos com suas prosas moles julgam. Aquela molecada farroupa com quem eu me virava, tirava dali uma casquinha para acudir Ié suas casas; e, engraxando, os velhos, sujos e desdentados, escapavam de dormir amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo no chao. Como bichos. Dino Pret! 128 lorados por UM $6. O jornale: vimento ¢ ramos exp! OOS J0rnaleirg io Prestes dava moviner raxar, do lugar e do dinheiro, e, Dong Ajilio Hos ona e das caixas de ene Spat da banca - ele 4 com seus jornais. . a grana, Engraxals nao; 30 da Luz. Também rendia l4. Fazia ajj maj is irar na Estaca to Eu bem pode Be ve tie outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiai_ Dae és de subir armiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do . dos dos trens, ™: de gravata que ganha mal, Mas — Me A ), todo esse povo tério da estrada aah ‘0 maldito, o tutu, o poror6, o mango, Iargava 0 carvi0, © ven; o mocé,a gordura, t 3 itolina, o capim, 0 concret; a granuncha. A seda, P} 0, 0 abre-cam;, a gaita, a grana, a gal sso vies 3 = ; ia inhao. \Sitivo, o an nho, ocobre, a nota, a mantelga, oagriao, 0 p! po: gum,o = Aqueleum de que eu precisava dinhe para me agtientar nas pernas sujas, almogandg j. nana, pastéis, san dufches. E com que pagava para dormir a um canto com os ai it: ; . pundos [é nos escuros da Pensao do Triunfo. Onde muita vez eu curti dor-de. thd sozinho, quieto no meu canto, 8 abafando o som da boca, para ndo perturbar {joao Antonio. Paulinho Perna Torta. In: Left de chdcara. Rio de Janeiro, Civilizg. ¢ao Brasileira, 1975, p.61-64. A repeticgo Varios estudos recentes tem mostrado, em profundidade, a importancia da repetigao na lingua falada, no processo de produgao e compreensao dos inter- locutores. (Cf. Marcuschi, 1992). Repetindo, o falante alivia a densidade das informagées, dando tempo ao ouvinte de compreendé-lo melhor e, por outro lado, reunindo condi¢ées de organizar ou reorganizar o seu préprio discurso. Além disso, a repeti¢do constitui um recurso enfatico que compreende nao ss in nr hi 86 0s vocdbulos, mas também as estruturas sintdticas, quando nao o uso de paréfrases, que acentua e especifica certos aspectos repetidos. A repeticao também contribui para o envolvimento entre os interlocutores numa conversacao, que se desenvolve num processo de colaboracdo entre 0s interlocutores (um discurso a dois). A ratificagao das idéias e até mesmo 2 dis- cordancia séo indices de que os falantes estao envolvidos no desenrolar do tema conversacional (Cf. Tannen, 1986). Estudando-se didlogos espontaneos, j pied aes fatores Tesponsaveis pelo ritmo que 0s interlocutor” fala do texto literério aay conversacional, caracteristica que aproximan idem): e chegou a conclusao de que 41°" ~“e problem, Sfivi i 'as COMO 0 Silvio Santos, como vocés entendem? ) Estupos be LINGUA Oral & Escrita 129 0 problema do Sflvio Santos é um.problema MUIto dificil de se SEN-tenciar so- bre ele como alids ¢ dificil de sentenciar sobre tudo... e ele especificamente porgue...em que se ter alia medida do homem... medida do::do industrial - que tie jé é um industrial em grande escala — a medida do comerciante... a do homem dle negécis... ¢ do profissional de TV....e do empresétio de TV... sobre esse aspecto do empresério de TV...todas as pessoas que trabalham com 0 Silvio Santos os artis- tas ¢ tudo... todas essas pessoas testemunham que ele é um:: um dos... melhores que ele paga na hora paga muito em... e é muito bom é ‘um:; sob qualquer ponto de vista... ele 6 uma boa pessoa” (NURC/SP D2 233) Esse texto nos mostra que a repeti¢ao, a retomada continua das idéias con- tribui para um ritmo de fala que, sem ser intencional, marca uma melodia espontanea que poderiamos até, se quiséssemos, distribuir em estrofes, a partir de certos paradigmas: tem que se ter a medida do homem a medida do industrial a medida do comerciante ado homem de negécios e do profissional de TV edo empresario de TV todas as pessoas que trabalham com o Silvio Santos os artista e tudo todas essas pessoas testemunham que ele é um dos melhores empresarios do mundo que ele paga na hora paga muito bem e é muito bom €um:: sob qualquer ponto de vista é uma boa pessoa Na lingua escrita, a repeticao pode ser um indice de estilo descuidado e as regras estilisticas recomendam que se use a sinonimia, que reflete um texto mais elaborado. Todavia, a repeticao pode ser um recurso intencional de estilo, desde que concorra para dar uma ritmo a prosa que lembraria, assim, ritmos proprios da lingua falada, Estudos tém sido realizados, no sentido de provar uma pottica da fala (Cf. Tannen, 1986), No texto literdrio que nos serve de apoio, encontramos: Dino Preti 130 ~-) Como todg j “Camecei por baixo, baixo, como todo sofredor comega.( todo og Observe-se que o autor utiliza nao apenas a repeticao de Yocébulog também a de estruturas sintaticas: May como todo softedor comesa [ infeliz comeca Acestratégia repetitiva apresenta feicao diferente ao lon; ticdo de estruturas sintaticas, por exemplo, cabulos diferentes, 80 do texto, pode acontecer, também, mas conservando um mesmo ritmo, nt comum a enumeracao de atividades Pela repeticao do in a nom. nal do verbo muito freqiiente em qualquer registro. Como acontece, também, NO texto que examinamos: A rene, com \. Na fala espontine” finitivo, for “Vender pente, vender 7 Jornal, lavar carro, gilete, calcadeira ayudar cameld, passar retrato de santo, E interessante notar que 0 escritor, como se Mente com 0 leitor nao se tia ter sido omitido, calgadeira passam a fj estivesse “conversando” livte. BOT, pode 40, em que santo, Silete, eto de passar, Na sua a enumerag Surar na mesma funcao de obj a Perspectiva discur 4 propria seqtiéncia tem ' de vocibulos repetidos; da repeticao mostraria que siva, o fenémeno matcada pelo preseng poral da Narrativa, vem “Agtientava frio na Pernas,” “Agiiente i muito xingo,,” Svocébulos cuja “iGnificacao expressa de maneira muito ne O autor Recessita, também, 840 repetidos, em classes gra ‘atlas MCFENLES OU NAO, Vejamigs, ° texto gira em torno da vida de um me- nino i see Profissao, preocupadg ©xclusivamente com a sua sobrevivén- dito cia dia de rua ou da Pensi0-bordel, Como tantos outros, seu amanha uma incdgnita, Portanto, sta vida Poderia ser resumida num vocabulo girigy Virasto. Qualquer ativi idade, ou meth "qualquer bagulho é esperanca de grt Precisa a idéia de que 101 —_— Estupos pe Lingua Orat € EscritA e na” Portanto, viragao constitui o tema central de todos os fatos mencionados na narrativa. Vernos, assim, 0 vocdbulo e suas variantes aparecerem repetidos em muitos momentos do texto, como, certamente, ocorreria numa narrativa oral: sebosos, aleijados, viradores...” “Cada um para a sua viragao.” “Entre velhos fracassados em outras viragi “Porque isso de engraxar é uma viragao muito direitinha” “Aquela molecada farroupa com quem eu me virava.. “Eu bem podia me virar na Estacao da Luz.” A repeticao de sinénimos é um indice inequivoco de elaboragao do texto literdrio. Pretendendo manter seu texto num registro coloquial (sem davida, elaborado) o escritor optou por uma seqiiéncia de repeticbes em forma de gradacao, utilizando vocabulos girios, quase sempre oriundos da linguagem marginal, 0 que o mantém na linha da oralidade. Num dos momentos mais expressivos do texto, o narrador passa a enumerar varios sinénimos do voca- bulo dinheiro, dividindo-os em trés segmentos: “Mas que me largava ocarvao —aseda 0 positive 0 mocé agaita oalgum agordura — agrana © dinheiro” omaldite a gaitolina 0 tutuo capim oporors —oconcreto omango —_oabre-caminho © vento ocobre agranuncha nota manteiga agriao @ pinhao Os marcadores conversacionais Uma das técnicas narrativas de envolvimento do leitor é 0 uso de marcado- res conversacionais, simulando uma historia oral: bom, pois é entdo, dai entao, veja, certo, bem, eu acho etc.”(Marcuschi, 1986: 68) Embora de uso limitado, no trecho que escolhemos (e para ficarmos nele), encontramos um marcador conversacional (bem) que nos recoloca no tempo da narrrativa. O narrador come¢a no passado, num momento em que o vemos 132 Dino Pret trabalhando como engraxate, entra em digress6es sobre sua vida. miseravel ¢ de seus companheiros de inforttnio. E, depois, retoma a cena Inici d: “Bem. Engraxando [4 nas beiradas da Esta¢ao Julio Prestes.” Os marcadores conversacionais, na voz narrativa de primeira pessoa (o narrador-personagem), constituem um recurso que nao é novidade dos con- temporaneos (até Machado de Assis os emprega), mas que foi usado intensa- mente por escritores como Joao Antonio, Rubem Fonseca, para criar a ilusio do relato falado, as vezes, de fundo confessional. As estruturas sintaticas E complexo o problema da estruturacao sintatica da lingua falada, confor- me reconhece Moraes (1997). No entanto, buscam alguns estudiosos simplifi- car as dificuldades, apontando certas caracterfsticas como mais comuns na con- versa¢ao. Assim, a presenca de frases minimas, interrompidas no momento em que o falante percebe que seu ouvinte j4 compreendeu o sentido que desejava comunicar; a auséncia de estruturas subordinadas mais complexas; a ocorrén- cia de frases justapostas e de periodos simples, as estruturas double bind, isso para nos limitarmos a organizagio interna do periodo. Se observarmos um pequeno texto falado, talvez possamos associar algu- mas de suas caracteristicas 4s observadas na narrativa literaria: (ro...0 que que a senhora 0 que que “dona I. a senhora costuma ir ao cinema a senhora mais gosta que tipo de filme... — eu... quase nao vou ao cinema teatro... as yezes eu vou... mais a teatro do que a cinema... filme eu gosto mais de comédia... nao gosto muito de filme muito triste ndo é comigo nao... eu tenho ido a teatro... tem um grupinho que nés.. um grupo assim: da minha idade que vai sempre ao teatro sao é uma assistente social MAS ela é formidavel sabe? (NURC/SP, DID 234) “Este texto nos revela um segmento de conversacao espontanea sobre as- suntos do dia a dia, sem formalidade, sem Processos argumentativos. A falante responde apenas a uma pergunta se val acinema 0U a teatro e que tipo de filme prefere. E a fala na sua despreocupagao trazida pelos assuntos que nao exigem reflexao. Trata-se de uma falante culta, mas seu nivel de linguagem identifica- se com 0 de uma falante comum, escolarizada. Estupos bE Lingua Orat € Escrita _ E claro que ndo podemos partir deste pequeno fragmento para extrairmos todas as caracteristicas da sintaxe falada, o que exigiria um corpus mais amplo, com variantes controladas. Mas 0 que se pode observar, pensando-se no fato dea lingua falada espontanea nao oferecer possibilidade de planejamento ¢ elaboragdo como a escrita e nem um processo de refeitura (a nao set pela repe- tigdo), € que ha, na sintaxe oral uma tendéncia para a simplificagao das estru- turas, evitando-se uma organizacao mais complexa, como, por exemplo, a dos periodos compostos por coordenacao ¢ subordinacao. Privilegiam-se a justa- posicao, os periodos simples, as subordinadas curtas, os segmentos aparente- mente desligados entre si, mas unidos pelos contexto. Numa divisdo, verfamos © texto acima assim: eu quase nao vou ao cinema teatro as vezes eu vou mais a teatro do que a cinema filmes eu gosto mais de comédias no gosto muito de filme muito triste nao é comigo eu tenho ido a teatro tem um grupinho que nds... &: um grupo assim:: da minha idade que vai sempre ao teatro so € uma assistente social MAS ela é formidavel ‘A divisdo nos mostra comportamentos comuns em fala espontanea: frases ‘odos simples, justapostos, um “mas” intruduzindo uma adversativa, to, uma estrutura double bind (“nao gosto muito de em que um elemento central pode ligar-se a direita ou a esquerda da frase; frases minimas interrompidas, abandonadas e retomadas posteriormente pela repeti¢ao (“tem um grupinho que nos. Ie: um grupinho assim:: da minha idade que vai sempre ao teatro”), ‘A natural elaboracao da lingua escrita, ¢ ainda mais, da literdria, para dar a revelar algumas dessas caracteristicas, como curtas, peri s6 identificavel pelo cont filme muito triste nao é comigo”), idéia de uma narragao oral, pode podemos ver no texto de apoio: “Bem, Engraxando la nas beiradas da Estagao Julio Prestes.” “14 na rua do Triunfo, seu Hilario ¢ Dona Catarina.” “Como bichos.” a oragio subordinada reduzida de gertindio vem desli- No primeiro caso, com brevidade, um contexto que po- oragao principal. Ela retoma, gada, sem “Bem, voltemos ao momento em que estavamos engraxando 14 nas deria ser: beiradas da Estagao Julio Prestes.” ee eee 134 No segundo, uma frase nominal isolada é um recurso que 9 nattag , 10) introduzir o tema que vai desenvolver. Aparentemente desligada . Us para ii ituacao de miséria em, daege na ive verdade, se liga ao contexto do discurso (a > seguir, as condicées do bordel em Via g narrador), para descrever, a seg que ae No terceiro, uma frase comparativa, breve, vem destacada do Periodg ant jor, porque a sua separagao acentua o seu significado e resume todo 6 Petiog, rior, anterior. ~ bém Jembra 0 processo oral i A justaposicao das frases também Jem Processo oral na sua simplig. dade: “Agiientei frio nas pernas, andava de ténis furado, olhava muito doce que nao Comia,,” “Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camel6... Outra marca da oralidade é a insisténcia de um déitico de reforco (“1a”), que aparece como um elemento expressivo na linguagem falada: “Lana rua do Triunfo...” “Engraxando IA nas beiradas...” ente que tinha pai e mae e que chegava 4 da Barra Funda...” “A gente vai li, a0 trambique da graxa e do pano...” “Engraxar, nao; ele lé com seus jornais.” para dormir a um canto com os vagabundos ld nos escuros da Pensao do Tri unfo.” Insistimos: nao estamos pretendendo afirmar que o modelo que estamos analisando represente um texto construido com sintaxe da lingua falada, mes- mo porque ha trechos em que se nota uma elaboragao sintatica bem mais com- Plexa, o que ¢ natural, tratando-se de um texto literario. Apenas estamos mos- trando algumas marcas da oralidade, na sintaxe, que contribuem para essa ilusdo de um depoimento oral espontaneo criada pelo escritor, O léxico Um exame rapido do texto de apoio NOs mostra uma caracteristica muito comum ¢m autores que tentam criar 4 Tealidade de um narrador popul. Vocabulario comprometido com a fala simples. Os adjetivos dizer oa. te landro, mundo, infeliz, vagabundo, encardido, seboso, dleijado, safad. aie 6, otdrio, Sujo, desdentado etc, : * Fracassa- Ao lado deles, um uso intensivo da 8iria. Conforme sabemos « «ibe aces ‘©mo um vocabulario identificador, nao raro criptolégico e que se Siria surge "VE a0 falante Estupos ve Lincua Orat € Escrita _ para reafirmar seu signo de grupo. Isto é, um elemento de auto-afirmacao, que compée a simbologia social do grupo, como o vestuario, a aparéncia fisica, 0 comportamento especifico etc. Usando a “sua” giria, a de seus companheiros, 0 individuo se integra no grupo, comunica-se melhor com os interlocutores que também conhecem seu cédigo vocabular, como acontece, por exemplo, nas prisdes ou entre grupos de risco, como os do t6xico, do crime organizado, dos travestis e homossexuais, dos malandros etc. Ou entre grupos socialmente dis- tintos, como os ligados & mtisica popular, aos clubes noturnos, as danceterias, as escolas etc. A divulgacao irremediavel dos cOdigos restritos, conhecidos como giria de grupo, obriga seus componentes, com o passar do tempo, a renovi-los, do que decorre a dinamica da gfria, sua efemeridade, Ha um momento em que os vocabulos girios de grupo divulgam-se na linguagem comum, nao mais identi- ficadora, nao mais signo de grupo ¢ se tornam giria comum. Diferentes falan- tes, de varias classes, de idade variada a usam, como um tipo de moda lingitis- tica que se torna coletiva. O texto que estamos examinando é a histéria de um gigolé da antiga zona do meretricio paulista. No trecho aqui focalizado, 0 narrador fala de sua ori- gem como garoto de rua, engraxate. F natural, pois, que 0 autor, para melhor caracterizar sew'narrador, utilize com freqiiéncia a giria dos marginais (giria de grupo, portanto) que aparece, por exemplo como um original recurso literério na enumeracao dos sindnimos de dinheiro, antes citada. Mas a voz narrativa nao se limita apenas & giria de grupo. Ao longo do texto, a giria comum participa também do discurso do narrador: mandar os olhos, me mandar no brilho dos sapatos, pisantes, goria, pixulé, caraminguds, vi- racao, viradores, virar-se, barra pesada, bagulho, trambique, bacanas, tirar casquinha, etc, Percebe-se que a giria constitui marca caracteristica e original da voz nar- rativa e sua auséncia descaracterizaria a autenticidade da narragao. As redes seménticas populares Mesmo utilizando vocabulos tipicos da lingua oral, até mesmo desgastados pelo seu uso constante na linguagem espontanea popular, o autor consegue uma surpreendente valorizacao de seu significado, ligando-os numa rede se- mantica que progride com o correr do texto, para dar a idéia de que o narrador, pelas condicdes de vida como menino de rua, da mesma forma que os fre- qiientadores da Pensdo do Triunfo, nao poderia sequer ser considerado um ser Dino Preti 136 i hemos a construc¢ao dessa idéi humano: era um bicho. Acompani ugh - essai a comas pa, yras desse campo lexical, marcado pelo sema “nao humano”: «os safandes que levei no meio das ventas...” fui escorracado, batido e dormi de pelo no chao.” “A gente nas ruas parecia cachorro, enfiando a fuga atras de comida,” « escapavam de dormir amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo no chao? “Como bichos.” Consideracées finais O texto que nos serviu de apoio mostrou-nos que até as marcas mais co- muns da linguagem oral espontanea, como a giria, podem compor um discur- so literario original. Trabalhamos com um documento literdrio contempora- neo, mas os exemplos dessas relagGes entre fala e escrita podem ser encontrados em todos os tempos (Cf. Preti, 1984a). Na voz narrativa de primeira pessoa, o artificio resulta fundamentalmente de uma empatia entre linguagem do narrador, linguagem da personagem que ele representa na historia e contexto social. A metamorfose se completa, quan- do o leitor se sente envolvido por essa ilusao de estar acompanhando uma nat- rativa falada que, na verdade, conforme vimos, s6 conserva algumas marcas da oralidade. Mas 0 arranjo reflete um arduo e coerente processo de elaboragao da lin- guagem pelo escritor, que resultou, no texto estudado, num depoimento hu- Mano e comovente. Referéncias bibliograficas Lingiistica CHAFE, Wallace (1985). Linguistic differences produced by differences between speaking Cal Writing. In: DOLSON et al. (eds) Literacy, Language and Learning: the Nature ar msequences of Reading and Writing. Cambridge: Cambridg University Press, P-105-125. HORAES. LgiaC, de (2003), sintaxe na lingua falada. In: PRETI, Dino (org) An f text0s orais, 6.8 ed. Sao Paulo- Humanitas Publicagoes FFLCH, P-169-187. Marcuse Atica. HL LAntonio (1986). Andlise da Conversayao. Sio Paulo: Estupos Dé LinGuA ORAL € ESCRITA sd (1992). A repetigao na lingua falada ~ formas e fungoes. 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