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MEMÓRIA, HISTÓRIA ORAL E NARRATIVA: O ENCONTRO DO POSSÍVEL NA

MULTIPLICIDADE DE PONTOS DE VISTA

Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira – UFPI


teresinha.nogueira@uol.com.br

RESUMO
Objetiva-se com este estudo analisar a narrativa na interface com a história oral e a memória,
na reconstituição histórica. Partiu-se do problema: é possível a reconstituição da história por
meio da memória? Neste sentido, buscou-se inicialmente refletir sobre as obras que tratam
sobre a rememoração de histórias, uma em forma de filme, dirigida por Eliane Caffé (2003),
intitulada “Narradores de Javé”, e o livro “Memórias de Leitura e formação de professores”
(PINTO; SILVA; GOMES, 2008). Fez-se uma relação entre os protagonistas do filme, que
corroboram com as concepções e análises apresentadas pelas autoras do livro. Em seguida,
procura-se apresentar histórias orais e sua importância na reconstituição da trajetória de
interiorização da educação superior no Extremo Sul Piauiense, referente à dissertação de
mestrado em História da Educação (NOGUEIRA, 2006). Desta forma, nos depoimentos dos
protagonistas destacaram-se pontos de vista comuns, que possibilitaram a reconstituição da
história dessa interiorização na região supracitada, a partir de narrativas históricas de pessoas
da comunidade de Corrente-PI, ex-alunos e professores. Tem-se uma pesquisa qualitativa,
realizada por análise de conteúdo das obras mencionadas e da amostra constituída por 5
(cinco) narrativas coletadas por meio de gravação, durante a pesquisa de mestrado. Portanto,
foi possível reconstituir a história da interiorização da educação superior em Corrente, por
meio da memória de seus protagonistas. Procurou-se reconhecer que as histórias
desencadearam outras, e que a narrativa não tem interesse em transmitir o acontecimento de
forma pura, o que requer do pesquisador critérios de seleção, buscando os acontecimentos
comuns entre as narrativas, tendo consciência de que o narrador imprime na narrativa as suas
subjetividades, percebendo o resultado do trabalho daquele que narra e daquele que escuta
durante a entrevista (oral e escrito). Sumarizando, a subjetividade presente na memória é
indissociável da produção científica desenvolvida no campo da história oral. Destaca-se,
também, que a objetividade científica não está relacionada à neutralidade, pois esta não existe,
mas ao fato de o pesquisador assumir a tarefa da interpretação, com ética e compromisso com
a aproximação da verdade. No trabalho representado pela dissertação, observou-se a técnica
de triangulação dos dados ao se buscar a análise dos pontos de vista comuns, o que
possibilitou a reconstituição dessa história.
Palavras-chave: História. Memória. Educação Superior.

1 Introdução

Ao buscarmos a inter-relação entre memória, história oral e narrativa, partimos da


compreensão de que a narrativa ressignifica a história, por meio da memória, contada de
forma oral ou escrita. Portanto, a narrativa está presente no simples ato do viver, agir e
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refletir, no contar histórias, tendo em vista que nós seres humanos somos contadores de
história, e de forma individual e social relatamos nossa forma de viver, em nosso cotidiano.
Neste sentido, este estudo tem por objetivo analisar a narrativa na interface com a
história oral e a memória, na reconstituição histórica. Assim, ao se perceber que a narrativa
apresenta características que contradizem o olhar positivista do pesquisador, contrapondo-se à
neutralidade, a objetividade em relação ao rigor científico de uma visão naturalista da
pesquisa, ela mostra que ao se reconstituir a história por meio da memória, também temos que
rever alguns conceitos, como por exemplo, o de objetividade, de neutralidade e de verdade,
tendo em vista que, ao narrar, o narrador não tem intenção de informar, mas por meio da
memória, eleger aquilo que ele considera importante, sendo a memória também falha,
passando a história a ser contada a partir de interesses do narrador, como se pode perceber no
filme: “Narradores de Javé”.
Diante das afirmativas apresentadas podemos considerar que a memória não pode ser
confiável. Portanto, como toda pesquisa, esta também partiu de um problema, sendo este: é
possível a reconstituição da história por meio da memória? Para responder este
questionamento, buscou-se, inicialmente, refletir sobre as obras que tratam sobre a
rememoração de histórias, uma em forma de filme, dirigida por Eliane Caffé (2003),
intitulada “Narradores de Javé”, e o livro “Memórias de Leitura e formação de professores”
(PINTO; SILVA; GOMES, 2008).
A metodologia seguiu os critérios da pesquisa qualitativa, elaborada por meio de uma
análise de conteúdo fundamentada em Bardin (1977), em uma relação entre os protagonistas
do filme, que corroboram com as concepções e análises apresentadas pelas autoras do livro.
Buscamos também apresentar histórias orais e sua importância na reconstituição da trajetória
de interiorização da educação superior no extremo Sul piauiense, referente à dissertação de
mestrado em História da Educação (NOGUEIRA, 2006).
Traçamos aqui uma discussão que não é recente, tendo em vista que o debate sobre a
pesquisa qualitativa, que considera novos caminhos da ciência, em detrimento a um olhar
estático traçado por uma ciência que defende um único caminho, historicamente reconhecido
pelo paradigma dominante é antigo. Richardson (1999, p. 29) afirma que no século XX as
ciências sociais fracassaram por se dedicarem “[...] a seguir um fantasma que resultou da
transferência acrítica da metodologia das ciências físicas e naturais ao fenômeno humano”.
Assim, ao buscarmos a narrativa na interface com a história oral e a memória,
seguimos a metodologia da nova história cultural, que possibilita rompermos com um
discurso científico que se nos impõe como uma normalização e uma forma exclusiva de
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pensarmos objetivamente, impondo uma neutralidade inexistente, como se o homem e a


mulher não fossem constituídos de sentimentos, de memória e de histórias.
Ao buscar romper com a forma de expressão do conhecimento distante das
subjetividades, descontextualizado de espaços e tempos, procuramos neste estudo demonstrar
“o encontro do possível na multiplicidade de pontos de vista”, ou seja, demonstrar que é
possível a busca por outras formas de conhecer e de se expressar o conhecimento, e isto “[...]
requer descobrir/inventar novos modos de ver/ler/ouvir/sentir o mundo e narrá-lo, e aos
diferentes fazeres/saberes/valores e emoções que nele circulam e dialogam” (OLIVEIRA,
2010, p. 19).
Apresentamos este estudo em seções, que partem inicialmente de uma análise da
memória como possibilidades e alternativas, seção intitulada: Memória e historia oral: a
narrativa na interface da construção de novos conhecimentos; temos outra seção: Processos
rememorativos: reconstituindo a história da educação superior e, por último, apresentamos as
considerações finais.

2 Memória e historia oral: a narrativa como interface na construção de novos


conhecimentos

A narrativa é percebida neste estudo como um meio, na interação entre memória e


história oral, que possibilita novos conhecimentos e expressões na reconstituição da história
individual e coletiva. Constitui-se em uma forma de materialização do dizer, sendo a narração
o próprio dizer, ou seja, a arte de dizer, de contar. A narrativa é uma “[...] „maneira de fazer‟
textual, com seus procedimentos e táticas próprias” (DE CERTEAU, 1990, p. 141).
Consideramos também que por meio da narrativa oral ou escrita é possível que o sujeito possa
“[...] experimentar a construção de uma nova percepção de si” (LECHNER, 2006, p. 171),
desta forma a narrativa leva também ao autoconhecimento de quem narra.
A narrativa apresenta diversas características, que muitas vezes a coloca em dúvida
como método de pesquisa. Neste sentido, realizaremos neste estudo uma análise comparativa
entre o filme e as características da narrativa.
Assim temos no filme “Os narradores de Javé”, os contadores de história que, de
certa forma, atribuem à história suas experiências. “Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. A exemplo do filme, confirmam-se as
afirmações do autor, quando coloca que a narrativa como forma artesanal de comunicação não
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transmite o “‟puro em-si‟ da coisa narrada como uma informação ou um relatório”


(BENJAMIN, 1994, p. 205).
Da mesma forma podemos perceber no livro “Memórias de Leitura e formação de
professores” (PINTO; SILVA; GOMES, 2008, p. 24-25), em sua relação com o filme, a
confirmação de que “o trabalho que desenvolvemos com narrativas em processos
rememorativos pode favorecer uma amplitude de sentidos, pois não se caracteriza pela busca
de acabamento, mas permite sempre interpretações múltiplas”. Neste sentido, as memórias
narradas permitem o desencadeamento de outras histórias, que de forma dinâmica e
imaginativa torna possível desencadear novas histórias em cada passagem da história contada.
O filme, “Narradores de Javé”, em todo seu percurso confirma essas peculiaridades da
narrativa. Para quem ainda não teve o privilégio de assistir o filme, vamos apresentar sua
sinopse:

O filme “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (2003), apresenta a narrativa


em que um viajante conta a história de um lugarejo denominado “Vale de
Javé”. Por meio da memória o viajante relata de forma casual toda a trama
do filme, descrevendo as diversas maneiras como os habitantes do Vale de
Javé, que diante da ameaça de o povoado submergir sob as águas de uma
represa que seria criada, decidem que a única forma de salvar a represa seria
organizar um livro por meio das memórias dos habitantes, reunindo-as em
uma única narrativa, que deveria ter um caráter científico que comprovasse o
valor histórico e a importância dos grandes acontecimentos passados no
lugarejo. Como toda a população era iletrada, só restava para escrever a
história o anárquico Antônio Biá (representado por José Dumont), o único
do vilarejo que sabia escrever. No entanto, não se chega a um acordo sobre
quais versões correspondem à realidade do lugar, muita poesia e criatividade
são narradas pelos contadores em suas histórias, muitas vezes fantásticas e
lendárias, de forma que não foi possível realizar a proeza de contar uma
história por meio da memória dos habitantes do Vale.

Como vimos, não foi possível Antônio Biá reconstituir a história do Vale de Javé.
Comparando com as características da narrativa, em várias cenas percebemos o que afirma
Pinto, Gomes e Silva (2008, p. 24-25) que “as explicações fornecidas não são definitivas, a
história permanece em aberto, disponível sempre a outras interpretações que se renovam [...]”.
Outra característica marcante apresentada pelas autoras, presente no filme, é que “a narrativa
não é só construída do que o sujeito diz, mas também pelo que os historiadores orais fazem
com o que ouvem, isto é, a partir dos objetivos de pesquisa daquele que realiza a entrevista”.
Temos, assim, que romper com mais um grande obstáculo, o da neutralidade científica. O
pesquisador não é neutro, ele participa na construção da história, sendo a narrativa o resultado
das inter-relações, em que a construção do conhecimento ocorre a partir daquilo que ambos
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(narrador e pesquisador - aquele que escuta) fazem juntos, no instante em que está ocorrendo
a coleta dos dados, neste caso, por meio da entrevista oral.
Diante do exposto, voltamos ao problema deste estudo: é possível a reconstituição da
história por meio da memória? Sobre esta reconstituição discutiremos na seção que segue,
mas antes apresentamos a multiplicidade de pontos de vista constituídos pelos significados de
alguns autores sobre memória e história oral, consideradas fundamentais à compreensão deste
estudo.

 Memória:

A relação da memória com a história vem sendo objeto de estudos constantes, em


pesquisas individuais e coletivas, cujos significados vão desde relatos de acontecimentos
passados, a outros pontos de vista. De acordo com os teóricos a memória aparece como arte,
construída por fragmentos e detalhes que são lembrados, relembrados, muitas vezes
esquecidos, ou apenas silenciados “longe de ser relicário, ou a lata de lixo do passado, a
memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita” (DE CERTEAU,
1990, p. 131).
Situada de forma dinâmica, apresenta mobilidade de tempo e espaço. Para Abrahão
(2011, p. 166), a memória “rememora o passado com olhos do presente e permite prospectar o
futuro”, portanto, ela se articula entre o passado-presente e o futuro, de forma tridimensional.
O tempo está sempre presente na memória, sendo esta, na concepção de Delgado
(2010, p. 9), “[...] uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente”.
A memória retém lembranças, evoca o passado como seu substrato, como forma de salvar o
tempo do esquecimento e da perda. Relacionando-se com a história de forma dinâmica,
história e memória são, segundo a autora, suportes na formação de identidades individuais e
coletivas, formadas no processo das vidas em sociedade. Neste processo de relações sociais,
mantemos as lembranças formando grupos de referências, “[...] ancoradas no vivido, na
experiência histórica” (OTERO, 1998, p. 42). Portanto, na rememoração “[...] a memória
assume a forma de „trabalho‟ e revela sua „dimensão cognitiva‟, seu „caráter‟ de saber”
(BRANDÃO, 2001, p. 3).
Para Le Goff (2003, p. 419), a memória é vista como “[...] propriedade de conservar
certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças
às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
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como passadas”. A memoria é para o autor um “elemento essencial” da identidade individual


ou coletiva, sendo a sua busca uma atividade fundamental na sociedade contemporânea.

 História oral:

A história oral tem se constituído como um desafio dos historiadores, sociólogos e


antropólogos ao propor a reconstituição de histórias de vida, ou outro testemunho, utilizando
a história oral. Mas o que é a história oral? Segundo Delgado (2010, p. 15, grifo do autor):

A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção


de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e
estimuladas, testemunhos versões e interpretações sobre a História em suas
múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas,
consensuais. Não é, portanto, um compartimento da história de vida, mas,
sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida.

Para Meihy (2005), a história oral é um tipo de procedimento premeditado, de


produção de conhecimento, que se faz pelo envolvimento de um entrevistador, o entrevistado
e a aparelhagem de gravação. Assim, é por meio da narrativa, em oposição a práticas
positivistas das ciências sociais, que apresentamos na seção a seguir a possibilidade de se
reconstituir a história da educação superior no Extremo Sul piauiense, por meio da história
oral de vida dos protagonista que participaram da implantação da educação superior no Piauí
e em Corrente, em uma amostra total de quarenta e três (43) protagonistas, escolhemos 5
(cinco) narrativas orais, relatadas por meio de suas memórias.

3 Processos rememorativos: reconstituindo a história da educação superior

Na reconstituição da história da educação superior no Extremo Sul do Piauí, de


forma específica na cidade de Corrente, temos uma demonstração da narrativa como uma das
alternativas de reconstituição da história. Assim, consideramos que a narrativa possibilita
atender “[...] a necessidade de o historiador misturar relato e explicação [o que] fizeram da
história um gênero literário, uma arte, ao mesmo tempo que uma ciência” (LE GOFF, 2003, p.
12). Utilizamos a história oral reconhecendo que esta se constitui em um documento que
possibilita o registro e a análise da fala. Sendo para Meihy (2002, p. 13) como:

[...] um recurso moderno usado para a elaboração de documentos,


arquivamentos e estudos referentes à experiência social de pessoas e de
grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida
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como história viva. [...] é uma prática de apreensão de narrativas feita por
meio do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos,
promover análises de processos sociais do presente e facilitar o
conhecimento do meio imediato.

A História Oral como metodologias de apoio à pesquisa exige sistematização e


critérios, de forma que as falas passam por uma análise crítica, considerando a subjetividade
inerente à narrativa. Em que conforme Meihy e Lang (2004, p. 13), ao realizarmos uma
pesquisa “[...] o juízo crítico com compromissos teóricos extrai a vivência da história oral do
limite da aventura despretensiosa, do mero registro de grupos preocupados apenas com a
coleta de elementos mantenedores da questão que os levou ao uso da oralidade”.
Assim, por meio da história oral foi possível reconstituir como se deu o início da
implantação de uma universidade em Corrente, temos o relato de como tudo começou...

[...] no segundo semestre de 1987, na corrida à procura de terras em grande


quantidade e custo extremamente barato, eis que chega a Corrente um grupo
de gaúchos com esta finalidade, entre eles o vice-reitor da UPF, professor
Agostinho Both. Nos dias que esteve em Corrente, contatou com pessoas
ligadas à educação (IBC e São José), com agropecuaristas e várias outras
pessoas da comunidade. Sentindo a vocação da região e o desejo do povo
pela implantação do ensino superior em Corrente, nos procura, informado de
que éramos professor da Universidade Federal do Piauí. Deste primeiro
contato, recomendamos que ao retornar ao Rio Grande do Sul mantivesse
contato com o Dep. Jesualdo Cavalcante (PROF. JOÃO R.
MASCARENHAS apud NOGUEIRA, 2006, p. 163).

Temos o início da narrativa de uma história que aconteceu e pode ser comprovada ao
se realizar a triangulação dos documentos, fotos e outras fontes. Em um primeiro instante a
ideia de que um visitante de Passo Fundo estimulou a construção de uma universidade
comunitária na cidade de Corrente. Segundo o depoente, ele foi encaminhado para os políticos
da região:

O deputado se interessou pela ideia e imediatamente o fez chegar ao ministro


da Educação, senador Hugo Napoleão. O ministro convoca seu secretário,
Prof. Camilo da Silveira, discutem a questão e decidem levar o projeto a
termo. Nomeia uma comissão constituída por técnicos e professores da
comunidade de Corrente e determina que fizessem uma viagem a Passo
Fundo para verificar se o modelo educacional que aquela instituição
praticava era o que se desejava para Corrente. Com o decorrer do tempo toda
a população se mobilizou para a criação da nossa universidade. As igrejas
(Batista e Católica), os colégios (IBC e São José), agricultores, pecuaristas,
comerciantes, prefeituras, escritórios, enfim, houve uma mobilização geral.
No dia 26 de fevereiro de 1988, na Casa da Cultura, reunimos todas as
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pessoas e instituições representadas, quando passamos para a população o


relatório da viagem a Passo Fundo e discutimos o aspecto jurídico da
instituição a ser criada. Reconheço que foi o momento mais emocionante de
minha vida, quando via prefeitos, pastores, padres, pecuaristas e pessoas
mais humildes possíveis, fazendo as suas doações. Reconheço que foi o
primeiro e grande momento PRÓ-FESPI. Corrente, naquela época, como
hoje, congregava, através da educação e do comércio, todas as outras cidades
circunvizinhas da região, principalmente pela presença dos colégios IBC e
São José, tradicionais na região e no Estado. [...] Preocupados com a
seriedade e a extensão do projeto, uma das nossas primeiras providências foi
a capacitação do futuro corpo docente da instituição. Para tanto, a UPF foi
contratada para nos assessorar, oferecendo o curso de Pós-graduação Latu
sensu fora da sede, em Metodologia do Ensino Superior. Os nossos alunos e
futuros professores da época são hoje os professores da Uespi em Corrente,
nos seus mais variados cursos ou áreas (PROF. JOÃO
ROCHAMASCARENHAS apud NOGUEIRA, 2006, p. 164).

Apresentamos as primeiras informações sobre a história da Educação Superior em


Corrente. Uma característica importante da história oral é que por meio do contato com o
Prof. João Rocha foi possível o acesso a documentos, como a ata de reunião que foi
promovida para as negociações sobre a implantação da universidade e outros documentos que
corroboram o afirmado no relato supracitado, bem como a indicação de outros procedimentos
necessários e relevantes para a reconstituição da história.
Na visão de Halbwachs (1990, p.60), “não é na história aprendida, é na história
vivida que se apoia nossa memória”, nesse intuito buscamos investigar a memória de outros
protagonistas dessa história, em busca de confirmações dos depoimentos anteriores e a
procura de novos fatos, elementos que possibilitassem na confrontação dessas memórias, com
documentos escritos, pois o pesquisador, ao reconhecer o limite da memória, que ao se
tornarem experiências vividas se apresentam estreitamente limitadas pelo tempo e pelo
espaço.
Como toda fonte, a fala deve passar pelo critério de análise minuciosa, reconhecendo
que esta pode se apresentar problemática devido à imprevisibilidade ou pelo fato de que
muitas vezes não se tem um controle da situação, sendo necessário ao pesquisador muita
disposição e habilidade, para que possa empreender seu juízo crítico.
Para Thompson (2002, p. 25), “a história oral oferece, quanto à sua natureza, uma
fonte bastante semelhante à autobiografia publicada, mas de muito maior alcance”. O autor
realça ainda que, ao se fazer a pesquisa oral, pode-se escolher “[...] a quem entrevistar e a
respeito do que perguntar. A entrevista proporcionará, também, um meio de descobrir
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documentos escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sido localizados”. Percebeu-
se este fato durante a investigação, de maneira que uma entrevista levava a pesquisadora a
novas fontes, novos sujeitos.
Dando continuidade à história, com a Fundação já organizada foi providenciada,
junto ao Ministério, a viabilização da construção de uma estrutura física. Constatamos na fala
do Dr. Jesualdo Cavalcante Barros, na época deputado federal ,o desenrolar da história:

[...] nós já estávamos com tudo estruturado, isto é, o prédio construído com
uma área de três mil metros e devidamente mobiliado e também todo o corpo
docente, o futuro corpo docente já qualificado com o curso de Especialização
em Ensino Superior, Metodologia do Ensino Superior. Avançamos muito, o
azar que nós tivemos foi justamente a preocupação do governo de evitar a
proliferação de escolas no interior, então o Itamar Franco... ficamos com
tudo pronto, bibliotecas estruturadas, laboratórios instalados sem condições
de obter autorização para realizarmos o primeiro vestibular (DR.
JESUALDO CAVALCANTI apud NOGUEIRA, 2006, p. 168).

Por meio do depoimento oral observamos que não foi realizada a ideia da
universidade comunitária, buscando-se posteriormente a realização de outros convênios,
conforme a fala do depoente, professor da universidade e ex-diretor do campus:

[...] com o convênio feito com a Universidade Federal para a realização dos
dois primeiros cursos de ensino superior aqui em Corrente, que foram os
cursos de Agronomia e o curso de Pedagogia. Depois desse convênio foi
uma pressão da comunidade universitária da UFPI em Teresina, que
enxergava com maus olhos esse convênio, pelo fato da Universidade Federal
não estar se dando bem em Teresina, quer dizer, tem muitas deficiências,
então eles enxergavam isso como você tirar um pouco de quem não tem
nada. Então eu participei como líder estudantil da Uespi, acompanhei a
mobilização dos estudantes e dos professores em Teresina contra esse
processo de convênio da Universidade Federal com a Fespi aqui em Corrente
(a viabilização desses cursos). Posteriormente, isso foi feito com o convênio
entre Universidade Estadual, Fespi e Universidade Federal, que viabilizou a
conclusão dessas duas turmas (PROF. CARLOS OMAR apud
NOGUEIRA, 2006, p.181).

O depoimento supracitado permite compreendermos melhor as razões da quebra do


convênio por parte da UFPI, procuramos entender melhor esses motivos investigando o
Magnífico reitor da UFPI na época do convênio. Assim, temos a visão do professor Charles
Camilo da Silveira:

O convênio foi objeto de uma ação que anteriormente dirigia a criação de um


Campus em Corrente. Nós tivemos várias ações de reitores anteriores a mim,
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que buscavam implantar, ao expandir as ações da Universidade Federal do


Piauí, um processo de interiorização. Especificamente com relação a
Corrente, houve uma ação do agente político Jesualdo Cavalcante, no
sentido de que fosse levado para aquela cidade um curso superior. Foi criada
uma Fundação comunitária visando a administração de ensino de terceiro
grau, foram feitos os contatos com o Ministério da Educação, governo do
Estado e Universidade Federal do Piauí. A forma de atuação da
Universidade Federal do Piauí se restringia, no caso específico, ofertar as
vagas para que os cursos fossem ministrados, dois: que houvesse a
intermediação também do governo do Estado e três: os recursos existentes
como espaços e instrumental para ministração dos cursos pela Fespi. [...]

Esse convênio foi efetivado, os cursos aconteceram. Ao final da primeira


turma de Pedagogia e Agronomia, houve uma tentativa de continuação do
convênio e o Conselho Universitário da Universidade deliberou pela maioria
de seus membros de que não deveria haver a renovação, uma vez que se
caracterizava naquele momento a impossibilidade da administração de um
Ensino Superior de qualidade, por falta, principalmente, de professores
qualificados para administrarem as aulas. [...]

A Universidade Federal... o papel dela era de ofertar as vagas, possibilitar a


chancela de um diploma. E se verificou, na execução do projeto, a
impossibilidade de que nós mantivéssemos por tempo indeterminado. Essa
foi a grande discussão: nós vamos renovar os programas ou não vamos
renovar? O Conselho da Universidade deliberou pela não renovação dos
programas pela impossibilidade de um ensino de qualidade (DR. CHARLES
CAMILO DA SILVEIRA apud NOGUEIRA, 2006, p.181).

Desta forma vem se reconstituindo a história narrada pelos protagonistas. Portanto,


uma história aqui, outra ali, temos a história oral da atual professora, que também foi diretora
do Campus de Corrente. Como vem sendo revelado nas falas dos depoentes, confirmamos
também que as duas primeiras turmas de ensino superior em Corrente formaram-se pela
Universidade Federal do Piauí:

E... apenas as duas turmas primeiras foram diplomadas pela Federal e mantidas pela
Estadual. A primeira turma diplomada pela Estadual foi a de 1997 [...] e que também me
legaram o privilégio de ser madrinha, oficiando a aula da saudade dessa turma. Então,
inicialmente, sobre esse convênio seria basicamente isso (PROFª. NEHANDEARA apud
NOGUEIRA, 2006, p.186).

Assim, por meio da história oral foi possível reconstituir a história da educação na
cidade de Corrente, bem como sua importância e expansão, como podemos perceber na
narrativa a seguir, a partir do ponto de vista do professor ex-diretor da Uespi em corrente:

[...] a expansão foi muito importante, Corrente sempre foi uma cidade muito
preocupada com a educação, e muitas pessoas, devido à distância, não
podiam sair de Corrente pra fazer um curso superior. E chegando a
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Universidade aqui em Corrente, foi muito salutar pra toda a região. Muitas
pessoas ingressaram na Universidade e houve com isso a melhoria de vida e
também pessoalmente para cada indivíduo que fez o curso superior. Foi uma
coisa muito boa [...] melhoria social, econômica para essas pessoas:
professores que foram preparados aqui na Universidade. Graças a isso, a
chegada da Universidade aqui em Corrente, teve esse privilégio, dos
professores cursarem aqui na sua própria região (PROF. CARLOS
ALBERTO R. DE ARAÚJO NOGUEIRA apud NOGUEIRA, 2006,
p.189).

Diante do exposto percebemos a narrativa na interface da história oral e da memória


como um método que se caracteriza de fundamental importância em seu uso na pesquisa
qualitativa. Sendo a história oral um procedimento do método qualitativo, possibilita
condições e alternativas de se reconstituir a história por meio dos depoimentos orais que
traduzem visões particulares de processos coletivos (DELGADO, 2010). Na pesquisa
realizada durante o mestrado utilizamos a técnica de triangulação dos dados, buscando
documentos diversos, escritos e icnográficos, que corroboraram com a análise dos pontos de
vista comuns, o que possibilitou a reconstituição dessa história.
A objetividade da narrativa está no reconhecimento de suas singularidades e
fragilidades e na potencialidade da história oral, que requer rigor em sua análise, revelando-se
não apenas como um instrumento de investigação, “[...] mas também, e sobretudo, um
instrumento de formação” diante de seu uso nas pesquisas relacionadas à formação de
professores e pelo seu caráter de promover a autorreflexão (NÓVOA; FINGER, 2010, p. 11,
grifo dos autores). Portanto, a narrativa, ao integrar a memória e a história oral, constitui-se
em um importante meio, que possibilita reconstituir a história a partir das multiplicidades de
pontos de vista.

4 Considerações finais

Não temos qualquer dúvida de que a narrativa, a memória e a história oral tornam
possíveis e geram alternativas para a reconstituição da história. No entanto, é necessário por
parte do pesquisador o reconhecimento e um novo olhar em relação a conceitos estabelecidos
por um olhar estático, na percepção de um objeto descontextualizado.
É necessário assumir que a narrativa é sempre a narrativa de um fragmento, a
experiência nunca cabe por inteiro em uma narrativa, ela se encontra na dinâmica da
organização da experiência, mas não poderá totalizá-la. A narrativa oferece leituras plurais e
torna possível o aparecimento de outros pontos de vista, requer integração na construção do
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novo conhecimento, na reconstituição da história. A análise das histórias individuais permite a


reconstrução das relações sociais, dos acontecimentos, requer conhecimento do contexto,
investigação e cautela.
Portanto, a subjetividade estará sempre presente na memória, bem como em toda
produção científica, pois é indissociável do ser humano. Desenvolvida no campo da história
oral, amplia as possibilidades e alternativas do pesquisador conhecer e “vivenciar” a realidade
narrada ao interagir com o narrador. A objetividade científica não está relacionada à
neutralidade, pois esta não existe, mas na compreensão do pesquisador, que a pesquisa requer
um compromisso ético na tarefa da interpretação das narrativas e dos vestígios encontrados
em busca de uma aproximação da verdade.

REFERÊNCIAS

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