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XEROY VALQR a. PASTA PROP. MATERIA ORIGINAL Francois Chatelet UMA HISTORIA DA RAZAO Entrevistas com Emile Noél Prefiicio: JEAN-TOUSSAINT DESANTI Traducao: LUCY MAGALHAES Revisilo técnica: CARLOS NELSON COUTINHO Academia Brasileira de Direito Constitucional R. XV de Novembro, 964 - 2° Andar - Centro CEP 80.060-000 - Curitiba - PR NPI: 04 475,157/0001-24 q Y ZAHAR Jonge Zaher Béitor Rio de Janeiro ‘Tiel original Une histoire de a raison (GEnoretiens avec Emile Noel) “Tradugdoautrizada da primeira edigto frances, pubicads “em 1992 por Editions du Seal, de Pars, Francs Copyright © 1992, tions du Sait Copyright dae em lingua portuguesa © 1994 Jorge Zahar Editor Lids. ra México 31 sobretojs 0031-144 Rio de Janeiro, RY 1 (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 : ‘email: jeo@zabarcom be sit: worwzaharcom.r “Todos os direitos reservados ‘A repredugio nfo-astorizada desta puicagto, no nde ‘owem part, consi viola de dieitasavtorais, (Lei 91098) profi, Jean-Toumsst Desai tradrdo, Lucy Magalies, ev se Conn. dee: re aa, 194 “radu de: Une his dea aso Enrtins aver mie No) Biogas ISBN97E8S-710-2828 1, Nosy iil, 1922-~ Entrevista. 2, Rardin, 3 Racine iso 1 Tinta cop: 149.7 COU: 141.132 94.0019 SUMARIO A Filosofia como Pat « 7 Apresentagiio — Emile Noél . ne 1, Alnvengio da Razio. 6... ss se 3 15 2, ARazioeaRealidade..........- 34 31 A Cigneja da Natureza . - SI 4. Politica... . 3 . ct 5. Kant, Pensador da Modernidade 2... 87 6. AHist6ria. 66.6. 106 7. Razo ¢ Sociedade . . : 123 8. 0 Futuro aeheeney 139 Bibliografia de Francois Chatelet sa es1ST we 159 Bibliografia Geral... - A FILOSOFIA COMO PARTILHA Certas presengas, talvez apenas por sua maneira de ocupar 0 ‘espago, nos fazem bem. Assim era Frangois Chatelet, onde quer que © encontrassemos: numa esquina, numa loja, numa sala de aula ou num auditério, Se ele estava presente, o espaco deixava de ser neutro, Nao sei bem como explicar. Com ele e perto dele, sempre tive @ sensagdo de que uma espécie de escudo se formava e nos envolvia a ambos em um “interior” compartilhado, algo como um abrigo. Li fora, © mundo seguia o seu caminho nada tranqUilo. Mas, por um momento, eu me sentia bem. E pensava que Frangois era dessas pessoas que sempre sabem como proteger os outros, apenas estando ali com seu modo singular de ocupar 0 mundo, ‘Também sabia como esclarecer as pessoas. Seu gesto e sua pala- vra eram sinais de boas-vindas. Entre ele e quem o escutasse, @ distancia estava sempre preenchida. Mais uma vez, a sensagao de escudo © envolvimento emanada de sua presenga. A palavra que ocupava esse vazio aparente institufa a urgéncia de uma partilha. O sentido daquilo que se podia pensar e dizer estava ali, exigindo ser possufdo: descobri-to era agora problema nosso, pois Frangois escla- recia sem coagir. Talvez, ele também se esclarecesse ao mesmo tempo, atingindo o outro apenas pela profusio da sua natureza, marca de uma generosidade nativa, a tal ponto que, s¢ eu tivesse de definir 0 seu “‘cardter"’, usaria a expresdo “‘prédigo por natureza"’. Para ele, nenhuma parciménia era possivel. Ndo guardava nada s6 para si, nem sua forga vital, nem seu pensamento, nem seu saber. Frangois era o homem da dozedo. Por isso, eu 0 chamo “‘filésofo", ro sentido primeiro da palavra. De fato, que é a filosofia, a nfo ser essa obstinagdo no dispéndio do pensamento, que reiine, exprime ¢ oferece em partilha, dando assim, sempre ¢ sem cessar, “‘algo para pensar”” a quem quiser ouvir? Além disso, havia em Frangois alguma 7 8 UMA HISTORIA DA RAZA coisa a mais: 0 efeito de escudo e abrigo, que, insensivelmente, dispunha outro para a escuta. "Riguns dizem que isso € “‘talento pedagégico””. Mas 9 talento é apenas um efeito subalterno que deve ser sempre reforgado por um serio. No caso de Frangois, 0 atificio era instil; @ presensa do palavra viva bastava para produzir a escuta. E por caust desta, na proximidade desse tnico corpo, a Filosofia, expondo-se em discurso, exigia ser recolhida ¢ compartilhada. 'S que aprendemos com Chatelet € que a filosofia é no fando oma atividade corporal ¢ pritica. E & preciso que assim seja, pols & Hlésofo s6 pode atingir outro, com sua palavra, exponde-se 4 & rieepo como sujeito falante, sujeito visivel e, em wtima anélise, piiblico. ice ele tem que assumir os riscos dessa posigio. Isso significa acehar expor-Se diante das circunstineias e para o pablico, em pista ins Nads de retirarse comodamente para o gozo altivo de ire pensamento solitério. Exatamente o contrério: evar o pensaminis a raga pablica, onde vive todo 0 rude do mundo ¢ onde © valor do que pode ocorrer deve ser continuamente posto & Prova a comuni- cagho, para sobreviver. re diria, portanto, que Chatelet foi um fil6sofo “‘engajado” Nio gosto dessa palavra, que cheira 2 casera ¢ nlo constr a toccia Daria que ele foi um fil6sofo exposto, que assumi todos erFecos que iss0 comporta. Recusou-se a ser espectadar dos acon Cceimentos, Interferiu como sujeito pensante, o que necessariamenee tects a tomar partido e a lutar. E tomou partido conira (ode injustiga, no importa de onde viesse. O que. era dificil naquele tempo em que o mundo parecia dividido em dois campos © nenhum deles era, sozinho, portador de justica ¢ de verdade. ‘Dina que a sua paixdo principal era publicizar a verdade. “Publ czar’ deve ser entendido aqui em seu sentido forte: oferecer part gue 0 maior némero de pessoas compartilhe. E com isso; as vezes, see oia'o pessoal da ““corporaglo filoséfica"”. Nio creio que Cle iMtuss a menor importancia ao fato. Ele tinha raz, como Séeraies, se Sbedecer 20 seu *‘deménio", mesmo sob pena de revolucionar 2 ‘Rcariggo a0 multiplicar as ocasiGes de intervencio filos6fics, 'No campo do pensamento, a intempestividade ¢ sempre produti- va, justamente porgue perturba, mas desde que salvaguarde 9 eft" Sil a obstinagto no trabalho de esclarecimento. Chatelet permant” Seu sempre fiel a essa exigencia de esclarecimento, assim como 29 pi A FILOSOFIA COMO PARTILHA ° seu ‘‘deménio". Ena verdade era ele esse ““demOnio"” que habitava a presenga do seu corpo € a expandia como uma poténci a press do tu taro © & 6 pandia como uma poténcia de “Agora Frangois partiu e seu ‘‘deménio" mora somente nos textos que ele nos deixou, nos quais ele vive e fala, Vamos ouvi-lo neste Iivro, transcrigdo de uma palavra que foi viva. Ele nos conta algo como uma histéria da racionalidade, que ainda vivemos, desde as Suas origens gregas, através de suas crises, suas revolugdes, suas tensbes ¢ também scus impasses, que sfo, contudo, em cada oportu- hidade,-sempre superados. Decididamente, esse “‘dem6nio” gosta dda luz, Mas, acima de tudo, gosta de dé-la de presente. E era bem ‘com esse espitito que Chatelet amava e praticava a Hist6ria, Dizem ue a Matemética € a irma gémea da Filosofia. A Hist6ria também, bor aquilo que oferece para Ser compartilhado: o caminho, 0 longo percunso, as prometsas dg futuro que vivem nas pegadas do passado, embora mci dese prinente esquecidas. , roda rememoragio & apropriago, germe do pensamento qu i E a esse trabalho que nos convida o ““dem6nio"” que ainda fala nog textos de Frngts Chit Mais uma ofeena qu devernos revolher. 4 JeAN-TOUSSAINTDESANTI APRESENTACAO Tragar uma hist6ria da filosofia em oito palestras era um desafio. Frangois Chatelet sorriu 20 ouvir 0 nosso pedido. Com gentileza, sugeriu um esbogo, “‘a rigor", das grandes etapas da racionalidade, uma espécie de répido percurso da razdo ocidental, para uso dos nio-fildsofos. S6 isso ja era um desafio ambicioso. Uma abordagem da raciona- lidade ocidental supée um novo enraizamento, um esforgo de rea- propriagdo da razdo a partir de uma origem que se designa tradicio- nalmente: a Grécia. Frangois Chatelet evita fazer equi uma hist6ria geral da raciona- lidade. Hé varias formas de racionalidade pelo mundo. Ele trata apenas daquela que subjaz a nossa maneira de pensar, nesta civiliza- go dita “‘ocidental”, através das etapas que lhe parecem pontos de inflexdo. Por exemplo, depois de falar da Grécia, salta 20 séculos e continua com Galileu. Exclama: “Que coisa escandalosa eu fiz! Mas, nesse desafio, tenho que me limitar aos objetivos fundamen- tais."” Assim, deve ir até 0 fundo das coisas, explicitar 0 seu préprio compromisso filoséfico. Na verdade, ele parte de um trago constitu- tivo do nosso tempa: a racionalidade técnica, a do mundo industrial. Ele pergunta: Como é que chegamos até aqui? Enraizar-se de novo, reapropriar-se do trajeto para compreender de onde tudo isso veio: esse é o projeto de Frangois Chatelet. Tarefa ambiciosa, mas que fixa, a0 mesmo tempo, seus préprios limites: 86 se tratard da razdo do Ocidente. ‘Surge entdo 0 problema da definigéo da razio ¢ do nivel de discurso que permita, no uma ‘‘divulgacao"” da filosofia, porém mais exatamente uma “‘publicizagao”, no sentido proprio. Tornar iblica a filosofia, fazendo com que ela fale a linguagem comum. "1 » 12 UMA HISTORIA DA RAZAO 0 discurso filoséfico piblico deve ser um discurso estimulante, ‘um discurso que fale da vida e suscite a participagao do ouvinte. Isso, Frangois Chatelet sabe fazer. Evita, na medida do possivel, os termos complicados, ou entio os comenta. Poderfamos dizer que ele fala da filosofia com as 2 mil palavras de Racine. omega portanto com Sécrates, Plato, Arist6teles, pois o come- go se designa em fungo do que sempre foi retomado na continuide- Ae do pasado. Ora, até Emmanuel Kant, havia Plato e Arist6teles, ymbém a hist6ria e a sombra de Socrates. A hist6ria da razdo ¢ ta dessas reanimagdes ‘9 nascimento da ds portincia da dias, para .a procura da verdade. Jé estamos em Galileu. Foi legitimo saltar 2 mil anos? Quando Galileu comega suas ligdes em Padua, explica Aristéte- les, 0 seu Tratado do céu. Critica a concepgio aristotélica de peso. Como? Utilizando taciocinios sobre a hidrostética, que foi procu- ‘em Arquimedes, no Tratado dos corpos flutuantes. A filiaglo se impSe, a0 mesmo tempo que a tomada de distancia. Quando o fnesmo Galileu afirma que a natureza fala a linguagem das figuras € dos nimeros, pode-se consideré-lo platGnico ou pitagérico. Mas a idéia fundamental que se anuncia, que vai fundar toda a cigncia ocidental, € que por trés da complicagao visivel do mundo hé uma Simplicidade invisivel. Com Galilen, Descartes, Kepler, a relagao da Gbservagao © da experimentagio com a teoria se impGe de modo decisive. Essa idéia de experimentagao, jd presente em Arist6teles, desenvolvida por Bacon, torna-se no pensamento moderno, por seu rigor e Suas referencias, o proprio lugar da demonstragio. : ‘Mas, embora a demonstragio esteja acima de qualquer suspeita, como comunicar essas idéias? A verdade nao se impée por si $6. ‘Toda teoria cientéfica, por mais refinada, por mais precisa, fracassaré ‘se ndo se inserir na estratificagdo da’cultura em que aparece. Entao, Galileu se faz estrategista. Escreve 03 Discursos e demonstragdes, para o rigor, e 08 Didlogos sobre os dois principais sistemas do ‘mundo, para a persuasto. rat. Paralelamente, a estratégia politica esté em funcionamento com Maquiavel. No momento em que 0 trabalho de Galilew acaba com 0 mundo aristotélico do supralunar ¢ do sublunar e unifica 0 Universo, APRESENTACAO ia submetendo-o as mesmas leis da mecinica, como por um efeito especular Maquiavel instaura uma dissociago no mundo politico entre o poder divino e o poder temporal. Uma filosofia politica se funda, tendendo a que as relagSes entre os homens sejam regidas pela razio. A preocupaga0 com a eficiéncia nese dominio politico corresponde & verificago experimental na cin Outro salto: Emmanuel’ Kant. Um novo paralelo se desenha, Descartes fizera-se ‘‘administrador’” do pensamento de Galileu, Kant desempenha um papel semelhante cm face do trabalho de Newton. No fundo, entre Galileu e Kant, hé Newton, o impulso da mecanica racional, que vai desabrochar na mecéinica celeste de Laplace e na mecdnica analitica de Lagrange. ‘Apropriagéo do saber, apropriagdo explicita das Luzes, Kant ‘marca uma guinada. Nao € herdeiro de Descartes. Antes dele, diante do discurso da verdade do Deus perfeito criador, dizia-se: como pode haver erro? Kant pergunta: como pode haver verdade? Grande Ieitor, estabelece o princfpio da relagio de exterioridade da filosofia com 4 disciplinas sobre as quais ela reflete ¢ instaura 0 espirito critico como instrumento. O real € velado por natureza, esté io fendmeno. O objeto kantiano € fenoménico. ‘A filosofia alema do fim do século XIX se pergunta como pen- sar Kant. Ele esgotou a filosofia. Se for levado a sério, nfo haverg mais metafisica poss{vels Como superar 0 impasse? Hegel accita 0 desafio. Com a Revolugdo Francesa, 0 Império, todo 0 abalo da Europa, a histéria adquire uma densidade desconhecida até entdo. Hegel torna ‘a fundar um pensamento sobre um abismo do pensamento, inscre- vendo a filosofia nesse novo horizonte, 0 da histéria, para The escrever o fim, E simultaneamente 0 génio e 0 pecado de orgulho da filosofia. Ousar expor © saber absoluto em um livro no manifesta apenas falta de modéstia, mas, 0 que é mais grave, falta de humor. ‘Nessa construgio, viro ressoar 0 riso sarcastico de Nietzsche ¢ cavar-se 0 abismo do inconsciente freudiano. ‘A medida que nos aproximamos da época contemporinea, a filosofia teré que contar com as cincias humanas ¢ sociais. Assim, (© marxismo se infiltra no pensamento filoséfico, com a vontade, algumas vezes exorbitante, de esvazié-lo do seu contetido. Assim também a psicandlise, que, através da sua metapsicologia, tende a pensar que a filosofia como tal nfo tem mais razio de ser. 14 UMA HISTORIA DA RAZAO Os homens vivem na infelicidade; como salvé-los? A essa per- gunta, feita desde Platio, Nietzsche responde: com as ‘‘idéias* vocés talvez evitem a infelicidade, mas nao vivem. A pergunta certa nio é: serd que isso é verdade?, mas: qual € 0 valor disso? ‘Atualmente a filosofia estaria retomando terreno diante das cién- ccias humanas e sociais, ou seus dias estariam contados? Que é uma filosofia que nao tenta pensar 0 seu tempo? Resposta: a filosofia nfo tem objeto proprio. Ela deve questionar a sua época em ligagdo com os saberes que sc constituem, inclusive com as aproximagSes ¢ as incertezas que isso comporta. E preciso assumir essa posi¢ao. Na medida em que nossa cultura esté em estado de inacabamento, por natureza, sempre haverd esse modo de insergdo no inacabado que € a filosofia. Quanto A questo do ser, nunca rninguém tratou do ser stricto ‘sensu. De qualquer forma, depois de Freud ndo se pode mais fazer filosofia como antes; 0 conceito de inconsciente é uma contribuigo incontorndvel da psicandlise para a filosofia, que no pode mais coasiderar 0 pensamento "puro", cortado do afeto... ‘Assim também, acontega 0 que acontecer com o marxismo hoje, ndo se pode negar a sua contribuicdo. Se nos lembrarmos de que estas entrevistas com Frangois Chitelet datam de 1979, ficaremos impressionades com o significado stual das suas palavras. Hé 13 anos, nada disso era evidente. ‘A razio nfo deve ser confundida com o entendimento, ov faculdade de compreender. Essa faculdade solicita, em Francois Chatelet, 0 descjo de transmit. Era isso que movia esse intelectual, esse jomalista, esse panfletirio, esse professor que consagrou todos, 0s dias de sua vida ao seu compromisso: a transmissao da filosofia. Tinhamos a voz de Frangois Chételet, seu timbre, 0 ritmo de sua fala, que tornavam to sedutoras as suas palestras radiof6nicas irradiadas pela France Culture para ouvintes ne6fitos. ‘Temos este texto, em que tentamos conservar a sua presenga calorosa, tanto quanto nos permite a transcriggo, para o leitor nio- fildsofo. Isso néo quer dizer que 0 filésofo ndo encontraré prazer neste livro, ¢ talvez até descubra novamente 0 deslumbramento do despertar para a filosofia. ‘EMILE Nos Agradecemos a Thierry Marchaisse pela preciosa ajuda no estabele- ccimento das citagoes. 1. AINVENGAO DA RAZAO EMILE NOEL: A filosofia € um objeto excessivamente vasto para que possamos percorré-la em um projeto de dimensoes to limitadas quanto © nosso, Assim, vamos limitar-nos 3 azo, 0 que ja € um programa muito ambicioso. O essencial da nossa filosofia ocidental, evropéia, nio se resume nessa rogressio em diregdo & racionalidade? Antes de mais nada: a razdo é inerente ao pensamento ou foi “‘inventada""? A humanidade teria feito aparecer, em certo momento de sua hist6ria, um género. cultural desco- ahecido até ento, cujo prinefpio seria o pensamento racio- nal e que definiria 0 que chamamos filosofia? FRANCOIS CHATELET: Creio que se pode falar de uma invengo da razio. E, para compreender como a filosofia péde surgir como género cultural novo, vou referir-me a uma situagao privilegiada: a Grécia cldssica. Nao quer dizer que eu pense que toda filosofia seja grega. Mas é claro que a Grécia viveu, por motivos contingentes, hist6ricos, determinados acontecimentos que levaram os homens a Produzir esse género original que ndo tinha cquivalente na época. Esse género se impds em um debate com outros géneros culturais que também buscavam a preeminéncia. E acontece que, por outros motivos contingentes — veremos como, depois —, cle teve um sucesso surpreendente. Sucesso cultural, mas com que impacto sobre a realidade! Nas Teses sobre Feuerbach, Marx diz que a filosofia vé 0 mundo, mas ndo o transforma. Pois bem, acho que ele disse uma bobagem. Os fil6sofos transfor- ‘maram 0 mundo. Quiseram e conseguiram transform4-lo. Nao dire- 1s 16 UMA HISTORIA DA RAZAO tamente, € claro, mas porque suas idéias influenciaram as elites e as, massas. As idéias filos6ficas passaram para 0 real. Daf o interesse de se saber como 0 projeto filoséfico nasceu ¢ como se consolidou. Vamos visitar 0 solo primeiro da cidade grega ou, mais exatamente, da democracia ateniense, para ver em que condig6es essa idéia apareceu. Estamos no século V antes de nossa era. A Grécia esté dividida ‘em méltiplas cidades, algumas muito pequenas — do tamanho da ‘comuna de Montmartre, por exemplo —, outras maiores — com a superficie do departamento de Seine-et-Mame. A mais extensa é Esparta, Essas cidades tém em comum os deuses, uma cultura, uma ingua, Mas so rivais. Guerreiam entre si, apesar da ameaga da invasio bérbara, que pesa constantemente sobre elas. Essas cidades criaram coldnias que logo conquistaram a independéncia ¢ fazem agora circular um espfrito novo. E preciso elaborar todo um urbanis- mo, construir cidades, instituir constituigdes, ¢ 0 pensamento tradi- ional est sendo submetido a duras provas. Pata essas colénias, @ tradigo no basta mais. Esse espftito remonta até o centro; ¢, j4 no século VI, todas essas cidades so varridas por um vento de renova- gio. Isso vale principalmente para Atenas, onde alguns homens véo inventar o que seri chamado de ““democracia’”. Na época a demo- cracia se define essencialmente pela igualdade. Todos os cidadios, quaisquer que sejam, quaisquer que sejam sua fortuna, sua origem, a antigtidade da sua familia, todos so iguais perante a lei. Tem o mesmo direito de intervir diante dos tribunais e de tomar a palavra nas assembléias em que se decide o destino coletivo. Imagine-se o impacto dessa mudanga sobre a cultura tradi- ional... Na verdade, na democracia a palavra se‘torna rainha. Até entZo as decisées eram geralmente tomadas em segredo pelos aristocratas. As famflias nobres deliberavam e depois anunciavam 20 ptiblico a decisio tomada para 0 conjunto da coletividade. Nessas cidades tradicionais, a educagao era principalmente moral ¢ militar. Dava-se pouco valor & palavra. Falava-se pouco e, quando se falava, recita- vam-se os velhos poemas tradicionais, que glorificavam as origens iisteriosas da cidade. Na democracia, a palavza vai impor-se, © quem dominar a palavra dominaré a cidade. A INVENGAO DA RAZAO Estamos ento em Atenas, no comego do século V. A cidade assumiu uma importincia considerdvel. Os bérbaros vindos da Pérsia invadiram por duas vezes, em 490 ¢ em 480, a peninsula; ¢ por duas vezes foi a jovem cidade de Atenas que travou 0 combate mais decisivo contra essa invasio. Até entdo Atenas nao tinha a menor importéncia. Quando os b4rbaros foram definitivamente re~ chacados — depois de Salamina —, Atenas se tornou um poder importante, para o qual todos os olhiares entdo se dirigiram. A democracia ateniense, a partir daf, aparece como um modelo. Pode- se dizer que, partindo de Atenas, o gosto pela palavra conquista a Grécia inteira. Ao mesmo tempo nascem técnicas ¢ artes. Vou ser um pouco pedante e usar a palavra grega tekhné. Nessa palavra, hé simultaneamente a idéia de técnica, de um saber aplicado, ¢ a idéia de arte, de invencio, de produgo original. Vou ter que empregar essa palavra para marcar bem esses dois aspectos simultdneos de prética ¢ de invencio individual. Esse desenvolvimento da palavra acarretara 0 nascimento de técnicas especificas que serao chamadas depois de “‘retérica’’. Para ocupar um lugar numa cidade assim, € preciso saber falar, saber convencer, Como aconteceu muitas vezes em outras civilizagées, 0 aparecimento de uma tekhné gera o nas mento de uma profissio. A democracia ateniense tem necessidade le “‘professores’’, de pessoas capazes de ensinar a falar bem, a manejar habilmente os argumentos de modo a convencer nos tribu- nais, que tratam dos assuntos privados, ou nas assembléias, que tratam das questdes publicas. Saber convencer de que essa posigao 6 melhor do que aquela é de importéncia capital. Platio — que aparece-pouco depois,-no-fim-do-século — nos. fala desses “‘professares"* da democraciaBie-os-chama, com um — termo que por causa dele tomou uma conotasio pejarativa, de wsofisas [é verdade que para n6s, hoje, a palavra “‘sofista’” designa ) um individuo suspeito, que utiliza artificios duvidosos para (nfo ter que tratarseriamente dos problemas. Etimologicamente, “sofista’’ quer dizer apenas “intelectual que sabe falar'', que domina a linguagem. Alids, essa geragho de sofistas- ‘vem principalmente do exterior. Platio diz. que so pessoas que tém © sotaque do Sul. (Isso me faz lembrar dos grandes figurdes da 18 UMA HISTORIA DA RAZAO ‘Terceira Repablica, antes da Primeira Guerra Mundial, que eram todos sulistas.) $30 pessoas de linguagem sonora, diz Plato, que se instalam em Atenas, abrem escolas de elogiéncia que sio a0 ‘mesmo tempo — sublinho esse fato — escolas de politica. Assim, depois da segunda guerra contra os persas, quando © problema da invasio barbara estd praticamente resolvido, Atenas se torna uma cidade poderosa, forma um império ¢ reforga 0 seu regime demo- cratico. Um nome estd ligado a esse perfodo, o de Péricles. Falamos do “‘séoulo de Péricles””. Lembro que, por ironia da hist6ria, esse “'século" durou 30 anos. Mas € certo qualificé-lo de ‘‘século”’, j4 que tantas coisas acontece- ram em apenas 30 anos. Na Atenas de Péricles, produz-se uma verdadeira acelerago da histéria. Na realidade, hé duas forgas que se confrontam, Diante dos sofistas, mantém-se a velha tradigio. Falando apenas dos aspectos culturais, certo niimero de afistocratas que amam Atenas pensa que a cidade esté tomando um caminho perigose. Na opinifo deles, ela esté promovendo uma orgia de gastos ¢ um imperialismo algumas_vezes cruel, Pratica com esfagatez o comércio e a caca ao lucro. Ffetivamente, nessa demo- cracia ateniense, 0 gosto do poder pelo poder inguieta alguns cida- Gos. A tradigao encontra eco nos grandes poctas trégicos. De certo modo, Esquilo, embora modernizando a tradigdo, conserva a chama da velha concepso do mundo em que os deuses so onipresentes € & preciso tomar cuidado para nao chocé-los. Contra essa tradigio, portanto, desenvolve-se 0 pensamento sofistico, o pensamento des- ses homens que bem poderfamos chamar, hoje, de ‘‘progressistas"” — embora isso, evidentemente, seja um anacronismo —, com a ressalva de que 0s gregos no tém a idéia de progresso. Pensam que ‘a humanidade repete sempre 0 mesmo ciclo, Voltaremos a falat dessa problemdtica quando tratarmos de Aristételes. Entre essas duas forgas que combatem entre si — uma tradigdo envelhecida ¢

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