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CADERNO ESPECIAL
AFRORESISTÊNCIAS
Estética Negra e Novas
Narrativas
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Novas Narrativas
apresentação
Angélica Arcasi
Afroresistências - Estética Negra e Novas jetória de 200 anos da Escola de Belas Artes, no Rio
Narrativas foi um evento aberto que ocorreu de Janeiro? Qual será o impacto deste novo pro-
de 11 a 13 de maio de 2016 na Escola de Belas tagonismo na produção historiográfica e estética
Artes da UFRJ, e congregou estudantes, artistas, acadêmica? Arte que fazemos é para que(m)?
afroempreendedores, educadores, mestres, por-
tadores dos diversos saberes da cultura negra Abaixo seguem três artigos para apresentar uma
promovendo debates, apresentação de trabalhos pequena parte do que foi realizado nesses três
acadêmicos, oficinas, a economia criativa e uma dias de atividades. Simone Ricco com o título
mostra coletiva de arte. Mulher negra: corpo, memória e protagonismo
no audiovisual, Samuel Lima com PIXAÇÃO – a
Afroresistências, para nós, é o acúmulo presen- cultura Xarpi na cidade do Rio de Janeiro e Ellen
te da consciência imemorial vivida pelos corpos Mendonça Silva dos Santos com A face negra do
negros até hoje. O nosso objetivo era fortalecer poder constituinte originário brasileiro: a atua-
conexões com os conhecimentos e tradições - que ção interseccional das Mulheres Negras do Esta-
resistem e re-existem - da diáspora africana à re- do do Rio de Janeiro na construção das demandas
sistência dos povos nativos de nosso continente na constituinte 1988.
americano, estabelecer um espaço de diálogo e
trocas, de encontro. Boa leitura! Até o próximo Afroresistências!
O que propomos surgiu com a nova demanda no Angélica Arcasi, graduanda em História da Arte
contexto da recente entrada de estudantes ne- pela EBA/UFRJ e integrante da Comissão Organi-
gros e indígenas, periféricos e pobres na univer- zadora do Afroresistências.
sidade, uma instituição historicamente excluden-
te, a qual agora se converte em espaço de disputa email: afroresistenciasebaufrj@gmail.com
e resistência diária. Por isso, questionamos: qual Facebook: @afroresistencias
o lugar do conhecimento não eurocêntrico na tra-
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Novas Narrativas
O presente artigo foi elaborado a partir da comunicação realizada no Afroresistência, na mesa Mu-
lher negra: corpo, memória e protagonismo. As considerações tecidas propõem uma reflexão sobre
nuances do protagonismo feminino negro na recente produção audiovisual brasileira, analisadas a
partir dos filmes Elekô (2015), O dia de Jerusa (2014), Personal vivator (2014) e Kbela (2015).
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ajudam a consolidar a presença feminina negra Parte deste contexto mundial, o audiovisual bra-
entre os sujeitos atuantes na indústria cultural. sileiro não é um caminho fácil para as mulheres
negras. A matriz do poder colonial continua a
Percurso negro feminino ditar padrões eurocêntricos – elencos embran-
quecidos, nos quais ainda são raros corpos ne-
Ao ocuparem o lugar de produtoras de culturais, gros, sendo comum aos poucos corpos femininos
mulheres negras em ação no audiovisual brasilei- negros em cena a repetição de papéis estigma-
ro abriram espaço para o protagonismo feminino tizados – serviçais, amantes hipersexualizadas e
negro e desilenciaram discursos necessários no mulheres desqualificadas profissionalmente. No
cenário mundial descrito por Anibal Quijano e entanto, a partir da década de 1970, discursos
Ramon Grosfuguel afirmativos da identidade negra impulsionaram
a marcha de mulheres afro-brasileiras por dife-
Um dos mais poderosos mitos do século rentes espaços de formação e atuação, motivan-
XX foi a noção de que a eliminação das do algumas aproximações entre mulheres negras
administrações coloniais conduzia à des- e a experiência audiovisual.
colonização do mundo, o que originou
o mito de um mundo “pós-colonial”. As Com acesso limitado ao capital em circulação na
múltiplas e heterogéneas estruturas glo- indústria cinematográfica, mulheres negras em-
bais, implantadas durante um período de preenderam formas criativas ou fizeram uso de
450 anos, não se evaporaram juntamente ações afirmativas – editais para jovens produto-
com a descolonização jurídico-política da res negros, cursos de livres de formação e ofici-
periferia ao longo dos últimos 50 anos. nas, que viabilizaram a investida numa produção
Continuamos a viver sob a mesma “matriz audiovisual. Algumas das obras produzidas, têm
de poder colonial”. Com a descolonização sido importante ferramenta para os sujeitos im-
jurídico-política saímos de um período plicados com o projeto de implosão da hierarquia
de “colonialismo global” para entrar num colonial. As narrativas atingem às representa-
período de “colonialidade global”. Embora ções: “de incapacidade moral à incapacidade fí-
as “administrações coloniais” tenham sido sica e intelectual; de sexualidade exacerbada ao
quase todas erradicadas e grande parte mito da mulata sensual”. (GOMES, 2006, p. 137)
da periferia se tenha organizado politica- Na última década, posicionadas como sujeitos
mente em Estados independentes, os po- na criação audiovisual brasileira, algumas mu-
vos não-europeus continuam a viver sob lheres negras realizam um crescente processo
a rude exploração e dominação europeia/ de visibilidade dos corpos negros femininos em
euro americana. As antigas hierarquias atividades intelectuais e artísticas que, ao serem
coloniais, agrupadas na relação europeias realizadas, fortalecem reflexões necessárias para
versus não-europeias, continuam arraiga- a experiência de tornar-se negra e compreender
das e enredadas na “divisão internacional a complexidade do racismo brasileiro refletido na
do trabalho” e na acumulação do capital vida e reproduzido nas artes.
à escala mundial (Quijano, 2000; Grosfo-
guel, 2002).
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“Becos da memória” audiovisual brasileira sual têm feito da memória “este processo ativo de
criações de significações”. Unindo recursos visu-
Na semana anterior, a matéria estudada ais, textuais e sonoros, escrevem esta história a
em História fora a ‘Libertação dos Escra- partir de narrativas audiovisuais que percorrem
vos’ [...]. Fitou a única colega negra da sala registros históricos, ressignificam figuras históri-
e lá estava a Maria Esmeralda entregue à cas e configuram trajetórias femininas negras na
apatia. Tentou falar [...]. Pensou em Tio história do audiovisual brasileiro.
Totó. Isto era o que a professora chama-
va de homem livre? Pensou em Vó Rita, Pouco conhecida, essa história conta com figuras
na Outra e em Bondade [...]. Era diferen- que surgiram solitárias no território embran-
te de ler aquele texto. Assentou-se e, pela quecido e masculino do cinema, como a diretora
primeira vez, veio-lhe um pensamento: Adélia Sampaio, na década de 1970. A cineasta
quem sabe escreveria esta história um dia? foi a primeira mulher negra a dirigir um longa
Quem sabe passaria para o papel o que es- no cinema brasileiro – Amor maldito (1984), no
tava escrito, cravado e gravado no seu cor- entanto, mesmo sendo tão importante para a
po, na sua alma, na sua mente. (EVARIS- memória afro-brasileira, a cineasta é mais uma
TO, 2006, p. 137-138). mulher alvejada pelo apagamento das trajetórias
negras e invisibilidade.
Com o título Becos da memória, Conceição Eva-
risto apresentou à sociedade brasileira uma obra No decorrer de quatro décadas, vários aspectos
literária marcada pelo protagonismo negro. Um referentes aos corpos negros projetados na tela
texto que alinhava presente e passado expostos ou ao perfil dos produtores de obras audiovisuais
em fragmentos de episódios pessoais que se en- evidenciam um continuum cultural. Os grandes
trecruzam para contar a história da comunidade filmes brasileiros seguem o padrão embranque-
negra brasileira, forjada na desagregação social cido, com pequena representação da maioria
resultante da retirada do negro africano de seus negra. Em alguns documentários e curtas estão
laços comunitários e seu posicionamento à mar- a maior a ruptura, que atualmente toma forma
gem da sociedade brasileira em formação. com elementos estéticos e com a perspectiva da
inversão, estabelecida com a “não-modificação
A reconstituição desta história fragmentada é um dos sinais diacríticos presentes no corpo que re-
caminho para (re) estabelecer laços comunitários metem à ascendência africana” (GOMES, 2006,
entre a população negra. Narrativas literárias e p. 126).
audiovisuais surgem desta motivação e com in-
tuito de produzir sentidos para as descobertas Na década em curso, documentários, ficções e
sobre a comunidade negra, pois “o realmente im- narrativas experimentais realizadas por mulhe-
portante é não ser a memória apenas um deposi- res negras aguçaram olhares para a trajetória dos
tário passivo de fatos, mas também um processo corpos negros na cena audiovisual. Neste perío-
ativo de criação de significações” (PORTELLI, do, destacamos as ficções O dia de Jerusa (2014)
2004, p.296-313). - dirigido por Viviane Ferrreira, Personal Vivator
(2014) – dirigido e roteirizado por Sabrina Fidal-
As mulheres negras em ação na criação audiovi- go, Kabela (2015) – dirigido por Yasmin Tainá e
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Elekô (2015) – direção coletiva das Mulheres de negra em uma sociedade que nega e pratica o
Pedra. racismo. Um dado levado em consideração foi a
grande incidência de problemas de saúde mental
Elekô: fragmentos, imagens, corpos, silêncios no contexto brasileiro em que
e falas
A população negra vive “encurralada” com
Ao abordar a criação do filme Elekô – um fio de pouca ou nenhuma chance de ultrapassar
poesia vermelha, este texto tece um relato sobre a barreira econômica que lhe é impos-
uma experiência guiada pela memória históri- ta, mantida através do imaginário social
ca, acessada para construir imagens tradutoras que lhe confere o lugar do destituído. Ao
do percurso negro feminino pela sociedade bra- internalizar atributos negativos, que lhe
sileira, da chegada das negras escravizadas na são imputados, instala-se o sentimento de
Pequena África Carioca aos dias atuais. A ficção inferioridade, causando constrangimento
ressalta a multiplicidade de fazeres individuais na relação com seus pares, e favorecendo
e coletivos de mulheres negras que alinham as o aparecimento de comportamentos de
funções elementares do passado e experiências isolamento, entendidos, freqüentemente,
mais complexas. como timidez ou agressividade. Essa pres-
são emocional pode ser percebida ou lida
Dedicadas à realização de saraus na periferia do como perturbação do pensamento e do
Rio, a vivência das Mulheres de Pedra na produ- comportamento. (SILVA, 2004, p. 131)
ção audiovisual representou a investida em uma
tarefa mais complexa. Aguçadas pela chamada O reflexo desta questão entre mulheres negras é
do Festival 72 horas, as integrantes vivenciaram visível nos atendimentos da rede de saúde. Como
uma experiência cujo sentido se reforça na ob- confirmam as figuras de Estamira, Stela do Pa-
servação de Victor Turner (1974) sobre o senti- trocínio e de muitas usuárias do sistema de saú-
do etimológico do vocábulo experiência, palavra de mental atendidas na Colônia Juliano Moreira,
que inclui os sentidos, riscos, perigos, provas e onde as Mulheres de Pedra realizaram um Sarau
aprendizagem por tentativa, rito de passagem. dedicado à abordagem da loucura. As mulheres
negras são tratadas como fortalezas capazes de
Risco, perigo, prova e aprendizagem envolveram resistir ao sistemático abandono, ao trabalho pe-
o processo de concepção de Elekô. Transformar sado e às constantes manifestações de racismo
o set de filmagem em um local exclusivamente que atingem sua corporeidade e questionam sua
feminino foi a prova inicial, importante para en- presença em alguns espaços privilegiados da so-
frentamento do sexismo. Um primeiro desafio ciedade.
estabelecido pela equipe de criação e vencido pela
produção. A equipe contou com as integrantes da Imagens registradas nas memórias das mulheres
Coletiva Mulheres de Pedra e profissionais de di- negras integrantes da coletiva foram convocadas
versas áreas técnicas. para criar poesias, performances e sonoridades
que ocupam os 6 minutos desta obra que venceu
A concepção do roteiro tomou como ponto de o Festival 72 horas.
partida a reflexão sobre a loucura de ser mulher
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Silêncios e falas dividiram espaço nas perfor- formada por guerreiras defensoras da justiça e
mances que compõem a narrativa. A tela revela soberania feminina.
questionamentos: o que calar, o que dizer, como
dizer, como reeditar as imagens de mulheres ne- Sob inspiração de Elekô, sociedade combatente
gras escravizadas? “Como pôr para fora” tantas da secular opressão do poder masculino, as cria-
reflexões? A resposta surgir em olhares, gestos doras do filme homônimo associam suas habi-
e dança inseridos em performances capturadas lidades na composição de poemas, cenas e sons
pelas lentes e editados em forma em sequência que jorram nas telas um curto e intenso fluxo de
narrativa de 6 minutos. Desse modo, os corpos reverência cinematográfica a todas as mulheres,
negros femininos protagonizaram um filme cur- especialmente às mulheres negras que resistiram,
to, mas marcado por reflexões de longa data, lutaram e militam por um mundo em que as mu-
provocadas pela vivência de ser e tornar-se negra lheres tenham igualdade de direito. Transposto
em meio ao racismo estrutural tornado invisível para as telas, o tom sagrado da dança convida a
pelo discurso da democracia racial. restituir a solidariedade feminina existente no
culto de Elekô e perdida com a opressão ao culto
Com uma câmera na mão e todas estas ideias na à mulher, operada pela sociedade patriarcal.
cabeça, a equipe de Elekô elegeu o Cais do Valon-
go como cenário para performatizar a chegada Corpo, território de novos caminhos
feminina negra no território brasileiro, dando
início a uma trajetória coletiva desenvolvida em Alguns aspectos observados em O dia de Jerusa,
meio a um conjunto de práticas que configura “a Personal vivator, Kbela e Elekô, colaboram com o
loucura negra feminina” traduzida poética e ima- esboço de um plano geral sobre o a experiência
geticamente nas telas por mulheres que, assim estética da corporeidade negra na recente produ-
como a sociedade sagrada de Elekô, protegem e ção audiovisual.
valorizam o sagrado fluxo feminino em suas vi-
vências nos diferentes territórios por onde circu- Os corpos das personagens expostas nas telas são
lam. territórios para o exercício da representação e
autor representação. Tal como na ideia de corpo-
Pisando firme nos diversos territórios da socie- território, criada por Muniz Sodré, as diretoras
dade patriarcal, em cujo imaginário a sexualida- negras trabalham no sentido pensado pelo teó-
de feminina foi postulada a partir da procriação, rico
a criação de Elekô privilegia a leitura do feminino
tal como na tradição dos orixás. A mulher tem di- todo indivíduo percebe o mundo e suas coi-
versas faces, sem que uma anule a outra. Fora do sas a partir de si mesmo, de um campo que
set, algumas das mulheres associadas ao projeto lhe é próprio e que se resume em última
atuam na pedagogia, docência, administração e instância, a seu corpo. O corpo é lugar zero
outros fazeres distantes da arte cinematográfica, do campo perceptivo, é um limite a partir
com os quais encenam a arte da sobrevivência. do que se define um outro, seja coisa ou
A outra face dessas mulheres transborda no mo- pessoa (Muniz Sodré, 2005, p. 68).
mento da criação, fazendo surgir um roteiro que
adota como título o nome da sociedade sagrada
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Novas Narrativas
Dia 21 de janeiro de 2016 foi marcado por mais uma infeliz situação contra as Juventudes brasi-
leiras, quando os chamados Apoios - trabalhadores que fazem a segurança nas ruas dos centros
dos bairros e cidades brasileiras, e que tem uma prática muito parecida com o que o Rio de Janeiro
conhece por milicianos - torturaram três grafiteiros que foram confundidos com pichadores, no
Centro da cidade do Rio de Janeiro1. Baseado neste ocorrido, este artigo fará uma breve análise sobre
o universo piXador.
FOTO: Xarpi PIFIL, em um muro na Cidade Alta, favela de Cordovil (bairro que fica na Zona Norte carioca).
PICHAÇÃO, PIXAÇÃO, XARPI dades, sejam elas inscritas com pincéis, tintas,
sprays, giz ou qualquer outro material que mar-
Os estudos arqueológicos sobre as inscrições en- que, podemos dizer que a necessidade humana
contradas na Pompéia, as escritas que aparece- de “rabiscar”2 os lugares com antigas e/ou novas
ram com os movimentos estudantis da Europa e formatações estéticas não é um fenômeno novo.
nos protestos contra a Ditadura Militar na Améri- A pichação3 se manifesta nesse mesmo sentido,
ca Latina dos anos de 1960, as tags iniciadas pelas em variadas superfícies, advindas de novas ou
Gangues de Nova York em 1930 e que se estilizam experientes gerações, quase sempre (não que
com maior proporção na cultura Hip-Hop dos seja uma regra) em realizações feitas pelo público
anos de 1970/80, enfim, quando percebermos juvenil popular.
quaisquer grafias nas superfícies (muro, parede,
prédio, casa, transporte público, viaduto, ponte, PiXação4 é a denominação brasileira para definir
passarela) privadas ou públicas (que também aquela grafia enigmática e proibida, exposta em
se posicionam como privativas) nas grandes ci- uma superfície, a partir de um fenômeno que
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contém diversos signos linguísticos e de sociabi- Quem mora em um lugar de significados paisa-
lidade, o que leva a ressignificações próprias em gísticos estéticos como a Zona Sul, por exemplo,
cada território, seja ele algum estado, município, é beneficiado e assistido em detrimento das de-
região, bairro, rua ou lugar. No estado do Rio de mais regiões da cidade, ou seja, cria um dualismo
Janeiro, por exemplo, a prática da piXação pas- Zona Sul x ‘o resto do Rio’. O fato de pessoas de
sa a ser conhecida como Xarpi5: palavra piXar ao toda parte da cidade frequentarem as praias da
contrário, é usada entre os piXadores para iden- Zona Sul, traz desconforto aos moradores deste
tificar suas práticas e seus praticantes. local, que, muitas das vezes, acabam criminali-
zando estes sujeitos6.
Na cidade do Rio de Janeiro, o fenômeno da pi-
Xação é apresentado em seus “cartões postais”, A contemporaneidade das cidades exibe esse tipo
através da paisagem diversificada com belezas de realidade no campo da cultura, o que coloca
naturais, favelas, sabedoria carioca e malandra- emergência em debates sobre assuntos comple-
gem das ruas, numa “utopia romântica” que re- xos como a piXação, que há mais de quarenta
vela desejos de viver no maravilhoso. Isso acon- anos se posiciona na vida social urbana, em um
tece na imagem de uma estetização paisagística contexto de extremos que, quase sempre, obs-
abstrata que oculta desigualdades sócio espaciais truem as ações, logo, não se aprofundam sobre o
delicadas contidas na distribuição de bens (equi- sentido da cultura.
pamentos e serviços públicos) entre os diferentes
bairros e regiões do espaço urbano da “cidade Quando percebemos o que vale como cultura,
maravilhosa”. considerando o que as pessoas vêm criando e
interpretando no cotidiano, material e/ou ima-
Para Barbosa (2012), esta situação cria antissím- terialmente, em outras palavras, o que torna
bolos que se afrontam com os símbolos, e reve- possível as diversas existências das pessoas na
lam conflitos dados nas diferenças socioculturais sociedade - crenças, valores, práticas sendo tão
e econômicas: importantes quanto qualquer bem (casa, sapa-
tos, relógios, celulares) -, podemos trazer um
Os morros, planícies, manguezais e mar- olhar que não realiza separações dos significados
gens de rios e lagoas habitados pelas co- materiais e imateriais na cultura, e sim liga os
munidades populares, ganharam histo- dois à historicidade do contexto das múltiplas ex-
ricamente significados muito distintos periências de intersubjetividade, em relações re-
dos atribuídos à cidade maravilhosa. Eles cíprocas de tensão, que desafiam o próprio devir
representam uma paisagem a ser negada, do que significa cultura.
algo que macula o culto ao maravilhoso
da paisagem carioca. Os signos da natu- A cidade, a todo momento, é inserida nesse sen-
reza estilizada e os lugares da sociedade tido, em seus espaços de encontros contraditó-
desigual se encontram e se afrontam: são rios e conflituosos que trazem respostas por suas
símbolos e antissímbolos, em duelo na pai- tensões, estas de promoção de possibilidades en-
sagem urbana, revelando distinções de or- tre os diferentes sujeitos portadores de valores,
dem sociocultural e econômica. (BARBO- identificações gostos e práticas socioculturais. A
SA, 2012, p. 31). cultura seria resultado desses encontros de sabe-
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res e fazeres da diversidade dos modos de vida, de gerar vitalidade cultural e econômica na vida
sendo construída no movimento das relações so- urbana dos cariocas. Seu discurso é aquele que
ciais que promovem a significação diferente do diz acreditar na “voz das ruas”, oferecendo opor-
ser-no-mundo. Mas, a existência do mundo a tunidades, por exemplo, para grafiteiros, ativis-
partir do ser que o constrói, enfim, nas práticas tas culturais11 que foram/são convidados a par-
vividas que, se forem mortas, o mundo também ticiparem de suas ações , como a que aconteceu
morrerá. em 18 de fevereiro de 2014, quando esse perfil de
público participou da construção de um decre-
Entretanto, a aceitação das diferenças não pode to batizado de GrafiteRio12, assinado pela prefei-
ser confundida com a sensibilidade seletiva, em tura. O decreto13 dá alguns critérios e diretrizes
ações diretas que acabam se configurando em normativas para as intervenções dos grafiteiros:
uma realidade que mostra divergência no trata- “libera” postes, colunas, muros, pistas de skate
mento de alguns sujeitos em comparação a ou- e tapumes de obras; ao mesmo tempo em que
tros. Em uma melhor explicação, podemos per- proíbe a grafitagem em muros considerados pa-
ceber que o tratamento sobre certas atividades trimônios históricos, viadutos, fachadas de imó-
culturais em alguns corpos segue pelo lado da veis públicos e tombados. O decreto ainda traz a
dureza (por exemplo, para os Xarpi), enquanto ideia de revitalização de espaços públicos de “alto
para outros o tratamento mostra uma ação de potencial turístico”.
combate (por exemplo, para os grafiteiros), den-
tro de um sentido de ações violentas justificáveis Ainda sobre a Prefeitura da Cidade do Rio de Ja-
para aqueles que não se mostram favoráveis as neiro e a suas legislações que (des)criminalizam
leituras do contexto hegemônico, ao mesmo tem- as grafias marginalizadas urbanas, podemos
po em que formam uma existência de orientação problematizar situações de tratamento desiguais
para aqueles que podem ser (ou não) potenciali- de iniciativas que acontecem antes da Lei Grafi-
zados dentro do quadro do poder do Estado e do teRio. No dia 6 de novembro de 2013, o cantor
mercado. internacional Justin Bieber foi autuado conforme
as leis daquele período, após ter feito um grafite
Não podemos esquecer que, na cidade do Rio de no muro do antigo Hotel Nacional, que fica no
Janeiro, projetos como os que restauraram as le- bairro de São Conrado (Zona Sul carioca). Mas,
tras do Profeta Gentileza7, em junho de 20108, antes da autuação e da suposta multa paga, o
surgem na esteira da investigação conduzida pela cantor foi convidado pela Prefeitura da Cidade
Polícia Federal sobre o piXo no Cristo Redentor9, do Rio para grafitar (ou quem sabe até pichar) o
que aconteceu em abril de 2010, e que pode ter muro da Vila Olímpica do Vidigal, já que, segun-
sido um tipo de manobra que o poder público do a grande mídia, na Zona Sul a prática da gra-
indiretamente empreende, em forma de “cura- fitagem seria comum14. É importante dizer que
doria”, com foco nos projetos artísticos e/ ou de para além do convite da Prefeitura para grafitar
conservação e limpeza na cidade. ou pichar em equipamentos públicos, e dentre as
variadas chacotas a partes sobre o cantor cana-
Essa cotidiana complexidade sociocultural e polí- dense “ser” um “rebelde”15, não podemos deixar
tica também pode ser vista em iniciativas como o de perceber o tratamento diferenciado sobre esse
Instituto EixoRio10, espaço construído com o fim tipo de figuração, pois ainda com a presença de
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seguranças particulares (que estariam ali para Outro caso de tratamento de comoção aconteceu
afastar os paparazzi), Bieber16 praticamente re- após uma irreversível tragédia. No dia 20 de julho
cebeu escolta policial para terminar seu desenho, de 2010, Rafael Mascarenhas, jovem rapaz, músi-
antes de ser autuado pela Polícia Civil. O cantor co, morador da Zona Sul carioca e filho da atriz
não chegou a ir à delegacia, e tão pouco sofreu Cissa Guimarães, morreu após ter sofrido um
algum ato contra seu bem-estar físico e/ ou men- acidente por atropelamento. Rafael recebeu ho-
tal. menagens de familiares e amigos no próprio lo-
cal de acidente – o Túnel Acústico da Gávea, tam-
Sobre o fomento dessa postura, não podemos bém na Zona Sul carioca19. Para além de músicas,
deixar de comentar sobre o brusco tratamento danças, orações, como mostrava afinidade com a
desigual midiático realizado pelos meios de co- cultura urbana, uma das homenagens feitas para
municações hegemônicos e de massa, que explo- Rafael foram em formas de grafites e pichações,
ram situações como esta do Justin Bieber para inclusive da própria Cissa20, num clamor comum
“afirmar” ideias contraditórias sobre os argu- a qualquer pessoa que perdeu alguém querido. A
mentos das “justiças sociais”. No dia 4 de feve- homenagem seguiu para algo duradouro, já que
reiro de 2014 a âncora do telejornal SBT Brasil amigos grafitaram e escreveram com sprays pelo
Rachel Sheherazade fez declarações que infrin- túnel mensagens para o jovem falecido.
gem os Direitos Humanos, quando defendeu a
ação de “justiceiros” que amarraram um jovem Tanto nos casos caprichosos de Justin Bieber,
que estaria furtando pela região do bairro do Fla- quanto na infeliz fatalidade ocorrida na família
mengo (Zona Sul carioca). A âncora chamou o de Cissa Guimarães, o que nos cabe a questio-
jovem negro e aparentemente morador de rua nar é a reação da Prefeitura carioca, que não só
de “marginalzinho”, e explicou que “a atitude prontamente cedeu as paredes para tais ações,
dos vingadores é até compreensível”17. A repórter mas também mobilizou a máquina pública com
ainda legitima o contra-ataque, como ela mesmo propostas e aprovações de mudanças (por exem-
argumenta, sobre a “legítima defesa coletiva”. plo, a do nome do túnel). Essa seletividade mos-
Ainda com o mesmo canal, telejornal e repór- tra que apenas para alguns sujeitos, por alguma
ter, em novembro de 2013, quando noticiou que razão e/ ou licença, tem ou ganham o direito de
Justin Bieber grafitou na cidade do Rio, Rachel ter sobre a cidade suas marcas, sejam estas esté-
Sheherazade disse que o “astro da música pop” ticas ou até epitáfios. Em outras palavras, quem,
é apenas um menino prodígio com problemas, por se expressar com grafias em algum muro que
e mesmo que esteja “irreconhecível” por suas não é convidado para fazê-lo, através de tintas
atitudes de “Bad Boy”, o cantor estaria apenas e/ ou sprays, deve sofrer humilhações físicas e
se encontrando e passando pela “Síndrome da moralistas? Quem por pichar o muro com tinta
Adolescência”, fase turbulenta que mexe com os spray deve ser assassinado? Quem, por ter fale-
“hormônios em ebulição, conflitos, agressivida- cido deve ganhar no mesmo muro, com a mesma
de...”, devido a busca da própria identidade. No tinta e/ ou spray, deve receber sua lápide, palmas
fim, Sheherazade ainda faz um comovente pedi- ou qualquer tipo de clamor, inclusive das institui-
do: “Peguem levem com Justin! O menino está ções públicas?
crescendo!”18.
Existem muitas histórias trágicas ao longo dos
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anos na cultura da piXação - podemos dar exem- que podem proteger jovens grafiteiros confundi-
plos das mortes de: Bloody, assassinado em Ma- dos com pichadores, e não lembra das denún-
dureira (Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro); cias feitas pelos piXadores, já que não entram no
Vuca, morto após cair do quinto andar de um sentido de paraíso, mas sim de caos, comumente
prédio no Centro do Rio; Caixa, assassinado em tratados como “caso de polícia”, em fundamentos
São Gonçalo (município da região metropolita- que nos levam a posicionamentos da existente
na) a tiros, após ser perseguido por ter piXado (mesmo que não oficialmente) “pena capital”, re-
em uma casa. Muitas homenagens para esses e alizada em nosso cotidiano, também fomentada
muitos outros já aconteceram e acontecem, en- pelo Estado24: reivindicador e monopolizador do
tretanto, sem receber nenhum consentimento da uso da força física (WEBER, 1967).
Prefeitura; pelo contrário, pois muitas dessas ho-
menagens a estes heróis de narrativas épicas já A principal ideia jurídica no GrafiteRio surge logo
tão esvaziadas em nosso tempo civilizado, foram no Parágrafo único do Artigo 1º do documento,
removidas, logo, são invisíveis em comparação a pois tem como objetivo a coibição das pichações:
cidadela-monológica-dos-licenciados e apagadas
pela conservação pública. (COELHO, 2015). Parágrafo único. O “PROJETO GRAFI-
TE” estimulado pelo Poder Público, imple-
Está nítido que a mesma instituição que per- mentará políticas educacionais e culturais
segue, bate, assalta e até mata um piXador, é a com a finalidade de inibir a prática de pi-
mesma que licencia uma “pichação do bem”. Não chações que criam no ambiente urbano a
podemos esquecer que a lei GrafiteRio dialoga poluição visual, transformando os espa-
sobre a ideia do “Graffiti Paradise21”, em uma ços pichados em locais para a pratica do
legislação para atender certo tipo de estética, grafite como arte urbana, possibilitando
a partir de uma curadoria, com a pretensão de a identidade artística e cultural aos seus
inibir a piXação, ou seja, legisla sobre o tipo de praticantes.
ação, o que pode parecer um sentido de julga-
mento sobre “o que está fazendo”, e até “quem A liberação de “vanguarda” feita pela prefeitura
está fazendo”; sendo mais nítido, podemos dizer apenas para algumas superfícies acaba não ama-
que o decreto legisla em qual superfície o artista/ durecendo a discussão sobre as estéticas gráficas
arteiro poderia ficar liberado a fazer. das paredes urbanas, e tão pouco descriminaliza
os praticantes da arte rueira com os sprays. A
Voltando a problematizar tais espaços de cura- ideia de que as piXações são simplesmente cria-
doria cultural da “sociedade civil da prefeitura”, doras de “poluição visual” no “ambiente urbano”
o Instituto Eixo Rio, que foi criado e articulado exibe um julgamento curatorial e não jurídico. O
pela prefeitura, e que diz estar junto ao conjunto decreto também deixa passar o questionamento
da movimentação cultural urbana (dando como sobre o que seria arte, e enxerga o grafite apenas
exemplo os grafiteiros), podemos dizer que essas como uma “arte urbana”. Essa falta de discussão
iniciativas transmitem ideias complexas e con- vem seguida de ausência de uso de conceitos, sem
traditórias, através de afirmações como “a Prefei- qualquer tentativa de realizar alguma muscula-
tura do Rio reconhece, valoriza e legitima a arte, tura teórica, pois afirma que o Xarpi não oferece
desde que com critérios”22, em atos civilizatórios23 “identidade artística e cultural ao seu praticante”.
60
O resultado desse equivocado decreto se dá no outros que exibem outras cartografias, que per-
cotidiano da amputação e até genocídio sofrido maneceram por um, dois, dez, 20 anos, e foram
pelo público juvenil brasileiro. Podemos ver tal apagados pela conservação dos espaços públicos.
situação, por exemplo, na matéria “Grafiteiros Em outras palavras, podemos dizer que nenhum
apanham e são humilhados ao serem confun- mapa mapeia a totalidade da cidade, e no limite,
didos com pichadores” que logo no título já exi- a edita e invisibiliza outras compreensões.
be a ideia da justificação de uma “pena capital” se
o caso tivesse acontecido com pichadores; ou até Portanto, podemos dizer que o decreto GrafiteRio
mesmo algumas que seguem com o título “Rio: não problematiza a legitimação do pensamento
relógio da Central do Brasil sofre pichação”, comum sobre o almejo de tortura (e até a mor-
induzindo a entender que as paredes de certos te) da população para os sujeitos da cidade que
lugares padecessem, sangrem, deterioram-se, se percebem como ativos através do Xarpi. Ne-
enfim, valessem mais do que a vida das pessoas25. nhum modo de vida pode afirmar e/ou renovar
suas tradições sem a presença de novos modos
Também podemos voltar à introdução do respec- de vida, sejam eles “legitimados” como os grafi-
tivo artigo, e recomentar a situação que ocorreu teiros, ou até os altamente criminalizados como
com os três jovens que estariam grafitando, den- os piXadores26. Tanta um quanto outro exibem
tro do aparato legalista e esteticamente morali- grandes riquezas de desvendamentos do que so-
zador da lógica da “beautiful city”, que acontece mos, onde estamos e como vivemos, dentro de
(como já comentamos) junto a uma força epistê- diferentes redes de sociabilidade.
mica afinada para o capital turístico, que reforça
certos paisagismos da cidade, diminuindo ou até Através de legendas imaginárias, que definem
nem reconhecendo outros lugares, no melhor es- fronteiras e constrói identidades territoriais, em
tilo “graffiti sim” - pois é belo, colorido, mostra múltiplas configurações, experiências no espaço
o novo tipo de realizar artes plásticas, se mos- vivido, em ações que são criminalizadas27, o piXo,
tra como práticas de “astros da música Pop”, ou junto com sua rede, traz consigo um universo
até como um memorial urbano, no caso infeliz acolhedor, no fundamento que vai para além de
ocorrido na família da atriz Cissa Guimarães, - ao receber aqueles que estão à margem, pois cria
mesmo tempo que “piXação não” – porque é feio, um espaço de pertencimento, onde a prática tor-
sujo, não oferece “identidade artística e cultural na possível uma zona de invenção de mundo.
ao praticante”, não mostra informação/compre- Sobre esse sentido de acolher, iremos problema-
ensão para os estrangeiros de outros países e da tizar o maior público que é atraído pelo Xarpi, ou
própria cidade. seja, as juventudes cariocas negras, residentes de
áreas populares (favelas e subúrbios) e transeun-
Isso se consolida na ideia de que apenas um tes na manifestação cultural urbana que, para
mapa dá conta de explicar a cidade. Entretan- além da piXação, podem estar circulando e/ ou
to, antes do falecimento de Rafael Mascarenhas, participando de Torcidas Organizadas, Bate-Bo-
ou seja, antes de seus amigos e familiares dese- las, Bailes Funk, dentre outras atividades que tra-
nharem, grafitarem ou picharem as paredes do zem uma diversa obragem estética, ritualística e
Túnel da Gávea, já se mostravam presentes os gestual.
Xarpis de Nado’s, Tico, Hair, Wrangler e alguns
61
Em seus quarenta anos ininterruptos de existên- que também povoam as superfícies de nos-
cia – tanto pelo lastro geográfico que ocupa as sa cidade sem, por isso, convocarem seus
cidades brasileiras (como já dissemos no subca- desejos de extermínio. Objetarão que estes
pítulo anterior), quanto pelo nível de reverbera- não escreveram sobre os muros das casas
ção das irradiações coletivas sobre um corpo sem das pessoas, nem nas janelas dos aparta-
subalternização aos regimes da racionalidade mentos, apenas em muros das linhas dos
elucidada – o piXador pôde constituir a lógica da trens, viadutos, postes, tapumes. Tudo
sua escrita como uma cultura popular jovem, em bem, em todo caso, parece-me um tanto
que a piXação vira um depositário fértil, de sabe- pouco crível que um policial possa retirar
doria sem autoria, dispersa e eloquente. as roupas, pichar o rosto, violentar, alguém
que esteja escrevendo ‘LEIA A BÍBLIA’, não
Dentro dessa complexidade, podemos problema- importa onde. Ou seja, suspeito que as jus-
tizar sobre as revoltas disseminadas a cerca esse tificativas materiais sejam dissimulações
fenômeno, que repousa não somente nas justi- discursivas que mantém veladas as razões
ficativas mais repetitivas que, criminalmente, a epistemológicas mais decisivas. (COELHO,
legislação a enquadra (depredação do patrimô- p. 184, 2015).
nio público e particular, danos ambientais), mas
também no choque epistêmico que a subjetivi- Assim, podemos dizer que, na maioria das vezes,
dade da sua escrita nos impõe. Gustavo Coelho as aproximações sobre esse tipo de fenômeno se
(2015) faz uma leitura que nos coloca sobre essa colocam como contraditórias, logo, não enxer-
perda da propriedade do sentido, faculdade prio- gam as potencialidades epistêmicas e descoloni-
ritária para constituir o homem moderno no zadas dessas ações contemporâneas juvenis, ricas
mundo, e que, a partir daí, poderá empreender a em provocar e sobreviver ao mundo capitalista, a
cruzada de seus acúmulos. partir das cotidianas tensões com a “máquina”
de captura/colonizadora, impostas socialmente
A partir de alguns exemplos, Coelho faz uma crí- na educação, nas formações, no “reino da huma-
tica nos posicionamentos sobre alguns corpos nidade esclarecida”, que tem o objetivo de impe-
que, assim como os Xarpi, se manifestam em dir o agir sobre a dominação das lógicas civiliza-
superfícies das cidades, visto que não recebem o tórias das relações modernas. (COELHO, 2015).
mesmo autoritário tratamento:
Frantz Fanon, que refletiu acerca da natureza
Tal raciocínio, a meu ver, fica mais eviden- do processo colonial africano do século XX, nos
te, quando percebemos que não há qual- mostrou situações que podem ser debatidas so-
quer campanha de repressão contra as ins- bre a tal dominação capitalista contemporânea,
crições, tão ilegais quanto, que, movidas está (ainda) de argumentos totalitaristas, advin-
por uma vontade persuasiva, pretendem das de raízes coloniais. Segundo o autor, o colono
enunciar sentidos preciosos, como por deve ser combatido com a violência, pois aceitan-
exemplo os ‘SÓ JESUS EXPULSA O DE- do de forma passiva a perda de seus bens (mate-
MÔNIO DAS PESSOAS’, ‘LEIA A BÍBLIA’, riais e imateriais), o “homem de dentro” sofrerá
‘COMPRO SEU CARRO BATIDO’, ‘JOGA- com a tirania da colonização. Em suas próprias
SE BÚZIOS’, ‘TRAGO PESSOA AMADA’, palavras: “explodir o mundo colonial é doravante
62
uma imagem de: ação muito clara, muito com- ção da palavra reunião, é a gíria usada no univer-
preensível e que pode ser retomada por cada um so da pichação para identificar os encontros com
dos indivíduos que constituem o povo coloniza- dos Xarpi. A partir desse encontro entre Xarpis
do.”. (FANON, p. 30, 1968). de diferentes lugares28, o objetivo direto seriam
as trocas entre as diferentes assinaturas dos Xar-
Diante do fenômeno e o público alvo em foco, pis, principalmente com aqueles que alimentam
ou melhor, analisando-os como descendentes suas pastas no decorrer do tempo da prática29.
de colonizados, e que hoje realizam uma prática Outra ação interessante nas reu seria seu rom-
que não é capturada pelos novos colonos da con- pimento com fronteiras simbólicas, pois os piXa-
temporaneidade, o Xarpi é enxergado como uma dores moradores de bairros e/ ou favelas vincu-
violência, por mostrar uma percepção nada paci- ladas a diferentes30 facções armadas de comércio
fista (já que estamos falando de um crime), mas de drogas ilícitas31, encontram-se sem restrições.
também porque (talvez) possa levar à atividades
(des)colonizadas, ação que surge concomitante Esse “não saber muito bem”, coloca uma socieda-
com o sentimento de independência, que absorve de historicamente colonizada diante do choque,
a questão prática e imediata sobre as possibilida- quando o Xarpi pode iniciar uma fantasia dos
des de liberdade. homens colonizados: estes que desejam o fim do
colono, e passam a ter “sonhos agressivos”. (FA-
Essa independência provoca qualquer pensamen- NON, 1968). Esse sentimento surge com a ideia
to que siga para o colonialismo. A busca pela in- de coletividade, que abdica da sua escolha indi-
dependência se dá no processo de descolonização, vidual, e traz razões de sua condição de Xarpi –
edificado pelo colonizado, com sua própria parti- jovem, morador de favela, apreciador da cultura
cipação na libertação, momento que o reprimido urbana marginal (o funk e seus bailes; os espa-
se torna o ator principal, vira protagonista do ços de cultura hip-hop; o trabalho independente)
seu próprio processo histórico, em uma constru- –, em uma perspectiva para além das escolhas
ção conjunta, liberando uma angustia que existe conscientes32.
dentro de si, sem nenhuma compreensão amigá-
vel entre as duas partes (colono X colonizado). Empiricamente, podemos dizer que a prática do
Quando os Xarpi expõem na cidade suas obras, Xarpi é uma prática popular carioca, que habi-
geradoras da “desordem absoluta”, o processo de ta obras inconclusas, em atos simbólicos que se
independência se torna uma reparação moral e encontram em lugares antisimbólicos, corpóre-
consagra a dignidade do sujeito colonizado, ainda os, materiais, vínculos, de interpretações e per-
que deixe a sociedade em aberto, já que tais sujei- fis múltiplos na sociedade, mas principalmente
tos colonizados, agora, independentes por serem pelos sujeitos que sofrem com a subalternização,
Xarpi, ainda não construíram e nem afirmaram o que gera ações/fruições estéticas, com um ma-
seus valores. nancial de saberes, formas de vida e artes do fazer.
Talvez as possibilidades de construções podem Apesar de contribuir com toda diversidade iden-
ser ensaiadas nas iniciativas piXadoras que vão titária no ser carioca - através de obragens es-
para além do piXo, como os momentos de visita téticas e ritualísticas que desafiam as linguagens
entre seus participantes, as camadas reu: redu- existentes no esclarecimento, em atividades de
63
superação das visões segregatícias, acolhendo vi- uma questão fundamental na construção do pa-
das que, no Brasil, tem um elevado índice de ho- radigma moderno: a ideia do “Bem X Mal”, pro-
micídios (jovem, negro e pobre) -, o Xarpi acaba pagada pelos grandes meios de comunicações de
sendo criminalizado oficialmente pelo judiciário massa (patrocinados pelos econômicos espaços
em duas leis: na Lei Anti-Pichação e no Decre- empresariados) e na teologia cristã, no concei-
to GrafiteRio. A primeira segue pelo sentido de to de que a falha do bem resultaria o mal. Esse
limpar a cidade, a segunda segue pela moral gen- contexto acaba abordando a piXação como algo
trificadora, usando uma cultura da diversidade individual, e não problematiza a situação de que
urbana (o grafite) para argumentar a posição de as grandes cidades do mundo compartilham a
uma cidade positivista e igualitária no sentido do mais de quarenta anos práticas parecidas. Nesse
enquadramento de algumas regras. sentido, podemos problematizar as representa-
ções comuns das positividades sobre os bandidos
A “escrita fora da escrita” – como explicou Gus- de uma cidade, que para povo, segundo Fanon,
tavo Coelho (2015) sobre a filosofia da linguagem realizam guias e esquemas de ações “heroicas”:
trazida pelo filósofo Maurice Blanchot - exibe
todo esse jogo de visibilidade com invisibilidade, E é inútil, evidentemente, dizer que tal
em um enigma presente, a partir do drama da herói é um ladrão, um crápula ou um de-
mentalidade moderna onde tudo do mundo pre- pravado. Se o ato pelo qual este homem é
cisa ser esclarecido. Tudo precisa ter a certeza e perseguido pelas autoridades colonialistas
a convicção do que é. O que está fora desse regi- é um ato dirigido, exclusivamente contra
me de compreensão poderá justificar, o aniqui- uma pessoa ou um bem colonial, então a
lamento, o assassinato, o extermínio da mesma. demarcação é nítida, flagrante. O processo
Dar tiro, porrada, barradas de ferro nas pernas de identificação é automático. (FANON, p.
para “aprender”, ou a lógica de, como disse um 53, 1968).
dos agressores dos três jovens, identificados pos-
tumamente como grafiteiros: “Trabalhando o dia Mesmo com a opinião pública sendo gerada em
todo, seu arrombado! Tu acha que a gente é o torno da “manifestação gentil”/ “atos pacificado-
quê, comédia?”. res”, da lógica capitalista, que não enxerga com
as devidas ferramentas a precária vida cotidia-
A busca dos piXadores é por acolhimento, den- na, esta que reafirma o citado jogo dual (“Bem X
tro de um mundo pouco acolhedor, criando uma Mal”), acaba colocando a vida do jovem em ex-
zona de existência que seja possível ter reconhe- pansão como merecedores de castigos.
cimento, ter uma vida ativa, dentro do sistema
que tende a escravizar seus sujeitos. Esse regi- É importante reconhecer os antissímbolos da
me da existência, concomitante com a redução cidade, como as manifestações realizadas pelos
da vida à lógica econômica, os Xarpis acabam Xarpis, que territorializam e reinventam a cul-
agindo na mesma dinâmica de qualquer cultura tura urbana, estas que promovem expressões
popular, pois cria autonomamente um berço de legítimas de uma cidade contraditoriamente
acolhimento para existir. criativa e corajosa, onde o poder público deve se
empenhar em garantir que estas ações não se-
Também não podemos deixar de comentar sobre jam simplesmente criminalizadas, amputadas ou
64
exterminadas, em uma possibilidade de políticas te, práticas culturais que são diferenciadas por
que possa acontecer pelo conjunto dos próprios alguns autores (as) como Giathy (1999), Lara
sujeitos, em formulações e execuções capazes (1996), Lodi (2003) e Ramos (1994). Por exem-
de (re)conhecer estas práticas culturais em suas plo, segundo Lara (1996), a pichação, aos poucos,
múltiplas identidades e representações, claro, em São Paulo, foi deixando de ser “sinônimo de
fora do campo da colonização. graffiti” durante os anos de 1990, período em que
novos grupos com identificações próprias foram
Enfim, finalizaremos por aqui de forma incon- surgindo, e trazendo diversas inscrições.
clusa, afirmando a importância das representa- 4 Apesar de ser usada na língua portuguesa com
ções socioculturais das cidades - estas que, nas “ch”, iremos escrever a palavra pichação (e suas
suas múltiplas contendas, são valorizadas por derivações, por exemplo: piXar) com a letra “X”
suas diferenças, no encontro entre os distantes maiúsculo, em afinidade com o trabalho de Gus-
e os próximos -, a partir das possibilidades que tavo Coelho em PiXação: Arte e Pedagogia como
respeitam à alteridade de acontecimentos, em Crime (2009), onde submete a grafia de Massi-
mediações de sociabilidades transformadoras, mo Canevacci no livro Culturas eXtremas (2005).
adentro dos reconhecimentos do campo de dis- Esse modo de escrita geralmente é usado quando
putas de imaginário sobre o sentido do mundo e estamos falando do Xarpi ou da piXação como
das provocações das lutas simbólicas, estas que uma cultura coletiva. Sendo assim, a partir de
se legitimam na posição do iluminar, ou melhor, agora, muitas das vezes identificaremos esses
do denegrir sobre as iniciativas do devir. atores da cultura urbana como Xarpis.
5 O Xarpi é a piXação, e ser Xarpi é ser piXador.
Assim como a rua diz, o Xarpi é sempre no singu-
Samuel Lima é mestrando em Educação, Cultura lar, significando fazer parte da cultura da piXa-
e Comunicação em Periferias Urbanas (Faculda- ção no Rio de Janeiro.
de de Educação da Baixada Fluminense/ UERJ) 6 Segue o link de uma notícia sobre um momento
e também é produtor e idealizador da Fortaleceu de conflito, trazido pela mídia apenas com foco na
Produções. criminalização dos atos de rebeldia dos banhistas
que não moravam na Zona Sul. Disponível em:
http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/
NOTAS
nos-anos-90-arrastoes-nas-praias-da-zona-sul-
do-rio-levaram-panico-aos-banhistas-10838744
1 Link da matéria “Vídeo mostra grafiteiros sen- (acessado em 01/08/2015). Pouco antes desse pe-
do torturados no Centro do Rio” - http://oglobo. ríodo, a Rede Manchete realizou um documentá-
globo.com/rio/video-mostra-grafiteiros-sendo- rio no fim de 1980, que mostra bem esse quadro
torturados-no-centro-do-rio-18550712#ixzz- dual da cidade https://www.youtube.com/wat-
3zkMFXipM (acessado em 30/01/2016). ch?v=w7yXtKxDBgU (acesso em: 01/08/2015).
2 No sentido de demarcar. 7 Figura conhecida na cidade do Rio de Janeiro
3 No Brasil, deixando de lado o campo publici- nos anos de 1980, José Datrino, mais conhecido
tário, com seus grandes comerciais em outdoors, como Profeta Gentileza, escreveu frases de amor
prédios, etc, as duas inscrições de rua de maior ao próximo em 56 pilastras. Segue link com um
destaque acontecem pela pichação e pelo grafi- pouco mais de informações - http://noticias.
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espaços públicos abertos (praças, quadras espor- ser humano – por exemplo, apesar de falarem a
tivas, embaixo de viadutos), para favorecer a cir- mesma língua, pessoas da mesma nacionalidade
culação de praticantes de diversos lugares. não se entendem. O autor mostra esse olhar quan-
29 Existem pastas com mais de 30 (vinte) anos do recupera o conceito de Weber, e acredita que o
de idade. Alguns destes acervos pessoais são co- homem é um animal amarrado a teias de signi-
mercializados, pois a cada alimentação, conco- ficados que ele mesmo teceu. O comportamento
mitante com o passar do tempo, mais preciosa a é uma ação simbólica, e a ação social (fluxo do
pasta fica. O documentário de 2011 “Luz, Câmera, comportamento) faz com que as formas culturais
PICHAção” (de Gustavo Coelho, Marcelo Guerra se articulem. O significado das culturas (no plu-
e Bruno Caetano) comenta um pouco sobre es- ral) surge no papel que elas desempenham. Esse
ses, digamos, patrimônios materiais do universo significado é público, porque a cultura é pública.
da piXação carioca (em 42 min. e 29 seg. para
47 min. e 7 seg.). Segue o link do filme - https://
REFERÊNCIAS
www.youtube.com/watch?v=b_MB_CmhjUQ
(acessado em 11/04/2016). AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: A História
30 Na história das facções, o Comando Vermelho Secreta do Crime Organizado. 5° Edição. Rio de
(CV), Amigos dos Amigos (ADA) e o TC (Terceiro Janeiro: Record, 1993.
Comando) são rivais devido a disputas dos domí-
BARBOSA, Jorge Luiz. A favela na cena da política
nios das áreas de favela, locais escolhido para a
cultural urbana. Nº 36. Rio de Janeiro: Espaço e
venda de drogas. (AMORIM, 1993). Cultura Nº 36. P.217-234, 2014.
31 Para nós, a denominação tráfico de drogas é
uma interpretação que não traduz os elementos BARBOSA, Jorge Luiz. Considerações sobre a re-
materiais que os significam, e os “conceitos” (for- lação cultural, território e identidade. In: GUEL-
MAN, Leonardo Caravana (org.). Interculturali-
mados pela grande mídia e reforçados nas ações dades. EDUFF: Niterói, 2006.
do poder público) acabam se tornando estereóti-
pos. Entretanto, já existem trabalhos que reali- COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Bate
zam um contraponto sobre estes olhares. Dentro -Bolas e Funkeiros: Poéticas do Enigma no Reino
da Humanidade Esclarecida. In: Revista Visagem
do campo da criminologia crítica, Zaccone (2011)
– Antropologia Visual e da Imagem. Rio de Janei-
penetra no universo da política de drogas e revela ro: UERJ, 2015.
a problemática sobre o combate do comércio de
drogas ilícitas. O autor reflete sobre o preconcei- COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Ba-
to da sociedade com os pobres, estes que quando te-Bolas e Funkeiros: doses do enigma do reino
da humanidade esclarecida. TESE (Doutorado em
são envolvidos com o “tráfico”, acabam presos e
Educação) UERJ. Rio de Janeiro, 2015.
estigmatizados, diferentes dos ricos que, quando
envolvidos na mesma situação, são considerados CRUZ, Valter do Carmo. Itinerários Teóricos so-
como usuários e (muitas das vezes) não são de- bre a relação entre território e identidade. In:
tidos. BEZERRA, Amélia Cristina Alves; GONÇALVES,
Claudio Ubiratan; NASCIMENTO, Flávio Rodri-
32 Muitas das vezes a cultura confunde mais do gues; ARRAIS, Tadeu Alencar. Itinerários Geográ-
que esclarece. Nessa observação, seguiremos na ficos. Niterói: EdUFF, 2007.
teoria de Geertz (2008), pois para ele, um ser hu-
mano pode ser um enigma completo para o outro DOWDNEY, Luke. Crianças do Tráfico: um Es-
tudo de Caso de Crianças em Violência Armada
68
Organizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 LEFEBVRE, Henri. O direito a cidade. São Paulo,
Letras, 2003. SP: Moraes, 1991.
WEBER, Max. A política como vocação. In: En-
FRANTZ, Fanon. “Os condenados da Terra”. Rio saios de Sociologia. H. H. Gerth e C. Wright Mills
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. (ORGs). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Cientí-
ficos, 1967.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.
Salvador: EDUFBA, 2008. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Sobre a adesão juvenil
às redes de criminalidade em favelas. In: Vida Sob
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Aspectos da cultura Cerco – Violência e rotina nas favelas do Rio de
popular antiga: Apresentação, tradução e discus- Janeiro. MACHADO, Luiz (ORG.). Rio de Janeiro:
são de alguns graffitis pompeianos. Revista Estu- Nova Fronteira, 2008.
dos de História, 4 (1/2), p. 143-150, 1999.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. Pichando a Cida-
FURTADO, Janaína Rocha. Inventi(cidade): Os de: apropriações “impróprias” do espaço urbano.
processos de criação no graffiti. Dissertação de In: MAGNANI, J. G. C.; SOUSA, B. M. (orgs.) Jo-
mestrado da Universidade Federal de Santa Cata- vens na Metrópole: etnografias de circuitos de la-
rina, Florianópolis, 2007. zer, encontro e sociabilidade. São Paulo: Terceiro
Nome, 2007.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma
teoria interpretativa da cultura. Rio de Janeiro: RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, Pichação
LTC, 2008. & Cia. São Paulo: Annablume, 1994.
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FAUSTINI, Marcus. O Novo Carioca. Rio de Janei- Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Ja-
ro: Mórula, 2012. neiro: Editora UFRJ, 1999.
69
Novas Narrativas
O presente estudo realiza em seu marco teórico os debates: racial, filosófico, histórico e jurídico do
Movimento de Mulheres Negras do estado do Rio de Janeiro no período da Constituinte de 1988,
evidenciando suas participantes, pautas políticas e a efetiva contribuição no exercício pleno da
cidadania por intermédio da lei. A partir disso, busca-se visibilizar a bibliografia de intelectuais
compromissados com a luta antirracista, como também desconstruir o ideário do senso comum de
que a ciência jurídica não tem interesse nas reflexões e produções das ciências humanas e nas pautas
dos movimentos sociais.
70
71
dadora do MNU – Movimento Negro Unificado e “As Aqualtunes estudavam para conhecer
militante do movimento de mulheres negras na e avaliar os processos usados pelas ideo-
época revela: logias (no plural) de dominação, crian-
do, paralelamente, uma contraideologia
“No meio do movimento das mulheres e uma postura de combate, que ajudasse
brancas, eu sou a criadora de caso, por- a desmitificar valores equivocados, que a
que elas não conseguiram me cooptar. No sociedade reproduz sobre as mulheres ne-
interior do movimento havia um discurso gras. A Reunião de Mulheres Aqualtune
estabelecido com relação às mulheres ne- era um encontro de preparo, de formação,
gras, um estereótipo. As mulheres negras de formulação de estratégia de combate
são agressivas, são criadoras de caso, não à dominação de raça e sexo. A tática era
dá para a gente dialogar com elas, etc. E ‘infiltrar-se’ nas entidades reivindicativas,
eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí, para dar fundamento às reinvindicações e
porque para elas a mulher negra tinha que aos discursos, algumas vezes somente de
ser, antes de tudo, uma feminista de quatro palavras bonitas e frases de efeito.” (DEUS
costados, preocupada com as questões que Apud PEREIRA, 2014, p. 211)
elas estavam colocando.” (JORNAL NACIO-
NAL DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICA- No ano de 1980 surge o grupo Luiza Mahin, o
DO, 1991, p. 09) mesmo estava relacionado com o Movimento
Negro Unificado (MNU) e foi idealizado por Lélia
Referente à militância das mulheres negras no González e Zezé Motta. Em 1982, Lélia González
estado do Rio de Janeiro, no ano de 1978, desta- deixou a comissão executiva do Grupo de Traba-
cava-se o REMUNEA, que significava Reunião de lho Luiza Mahin (PAULA, 1986), para fundar em
Mulheres Negras Aqualtune, o mesmo se reunia junho 16 de junho de 1983 o NZINGA: Coletivo de
inicialmente no Instituto de Pesquisas das Cultu- Mulheres Negras/RJ. Ao tratar da sua relação com
ras Negras (IPCN). O grupo tinha como objetivo o Movimento Negro, Lélia Gonzalez (JORNAL DO
“fortalecer a consciência crítica e gerar conteúdo MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, 1991) relata:
sobre a questão racial e feminina”. (DEUS Apud
PEREIRA, 2014, p. 211) “Precisamos ter paciência revolucionária
para verificarmos o seguinte: olha, sabe,
As mulheres que faziam parte desse movimento não queira abraçar o mundo com pernas e
eram: Azoilda Trindade, Cecília Luiz de Oliveira, braços, porque não dá jeito e, a partir daí,
Cristina Daniel da Cruz, Édila Silva das Virgens, você tem a consciência histórica da tempo-
Estela Costa Monteiro, Irani Maia Pereira, Jure- ralidade, do processo, o que vai te permitir
ma Gomes da Silva, Léa Garcia, Suzete Paiva dos ter muito mais tranquilidade no que diz
Santos, Oir Nascimento, Shirlei P. da Silva, Vera respeito a tua inserção no movimento. Você
Lúcia de Nova Iguaçu, Pedrina de Deus, dentre adquire uma sabedoria. Você verifica a sua
outras. (DEUS Apud PEREIRA, 2014) temporalidade, seu tempo de inserção, o
que você pode fazer, e tem a humildade de
Pedrina de Deus (DEUS Apud PEREIRA, 2014) em dizer: eu não posso dar essa contribuição
entrevista concedida a Amauri Pereira explicita: e darei com todo o carinho, mas não sou o
72
único, não sou o salvador da pátria. Porque medida em que os debates, as reflexões e
entra muito aí aquela visão centralista, eu o embasamento que norteiam nossa atua-
diria até fascista de quem se acha o dono ção devem estar centrados em dois eixos: o
da verdade. Graças a essa visão distorcida primeiro – a questões do Gênero: SOMOS
da realidade tem ocorrido lutas internas MULHERES – e como tal submetidas à dis-
terríveis, cobranças absurdas (...). criminação sexual por que passam todas
as mulheres, independente de raça etnia,
Eu vejo meu próprio caso, eu fui muito as- classe social ou credo religioso. O segundo
sim, é uma autocrítica o estar em todas, me – a questão da Etnia: SOMOS NEGRAS – e
jogando loucamente, e meu projeto pesso- o que nos diferencia das demais mulheres
al se perdeu muito, agora eu estou catan- não é só a cor da pele mas a IDENTIDADE
do os pedaços para poder seguir a minha CULTURAL. E é para resgatar esta identi-
existência enquanto pessoinha que sou. E a dade de MULHER NEGRA, que precisamos
gente sai muito ferido e machucado dessa nos organizar a parte sim. Aprofundar as
história toda.” (JORNAL DO MOVIMENTO questões específicas, perceber onde, como e
NEGRO UNIFICADO, 1991, p. 9) quando somos oprimidas e partindo deste
específico participarmos mais fortalecidas
O NZINGA: Coletivo de Mulheres Negras/RJ ti- da luta geral.” (NZINGA INFORMATIVO,
nha como objetivo a discussão de gênero e raça 1988, p.02)
entre mulheres negras pobres de classe média,
alcançando enorme expressão nacional. O mes-
mo assumiu um posicionamento feminista e era
formado por: Ana Garcia, Elizabeth Viana, Ge-
ralda Alcântara, Ivonete, Jurema Batista, Jurema
Gomes da Silva, Lélia González, Helena Maria de
Souza, Mariza Martins Pereira, Miramar Corrêa,
Rosália Lemos, Jurema Gomes, Regina Coeli, Pe-
drina de Deus, entre outras.
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Periferia era “dar visibilidade aos trabalhos de- dora pelo Partido dos Trabalhadores, no Rio de
senvolvidos pelas mulheres das comunidades, Janeiro, as convidou para serem assessoras. É im-
contribuindo para a sua autonomia”. (ROLAND, portante salientar que nas eleições de 1982, o sis-
2000, p. 241) Sua área de atuação era nas áreas tema de voto era vinculado; quem votasse para
de saúde e educação, privilegiando o combate à governador de um partido deveria votar para os
discriminação contra a mulher e o combate ao outros cargos na mesma legenda para não ocor-
racismo. rer a anulação do voto.
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“a criação do Conselho Nacional de Mulhe- Ellen Mendonça Silva dos Santos é graduan-
res Negras em maio de 1950, a ocorrência da em Direito, PUC-Rio e orientanda da profes-
do Congresso Nacional de Mulheres Ne- sora Doutora Thula Rafaela de Oliveira Pires, a
gras no mesmo período – inseridos no âm- qual fomentou a pesquisa pelo Núcleo de Estu-
bito do Teatro Experimental Negro (TEN) dos Constitucionais em parceria com o Núcleo de
-, sob a coordenação de Maria de Lurdes Direitos Humanos, ambos do Departamento de
Nascimento, nos alicerça no debate de que Direito da PUC-Rio. Outros aspectos dessa rela-
já éramos mulheres e negras, do ponto de ção entre movimento de mulheres negras e Cons-
vista argumentativo e da construção iden- tituinte 1987/88 foram desenvolvidos por Ellen
titária, antes mesmo das altercações com o Mendonça em sua monografia de final de curso,
Movimento Feminista e o Movimento Ne- intitulada: “Movimentos de Mulheres Negras do
gro. Rio de Janeiro: amefricanidade, interseccionalida-
de e políticas públicas na Constituinte de 1988”.
A luta, portanto era por direitos iguais, 2015. Departamento de Direito, PUC-Rio.
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