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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909
anpocs@anpocs.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

Tavares Correia de Lira, José


Naufrágio e galanteio: viagem, cultura e cidades em Mário de Andrade e Gilberto Freyre
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, núm. 57, fevereiro, 2005, pp. 143-176
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10705709

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NAUFRÁGIO E GALANTEIO:
viagem, cultura e cidades em
Mário de Andrade e Gilberto Freyre*

José Tavares Correia de Lira

O estímulo epidérmico, o exótico, o pitoresco Em fevereiro de 1929, à pedido do jornal A


prendem só o estrangeiro. Bem outra e mais profunda Província, Mário de Andrade publicou no Recife
é a inspiração que leva a representar uma cidade pela um depoimento sobre a viagem que encerrava
perspectiva de um nativo: é a perspectiva de quem se
pelo Nordeste. O jornal lhe pedira as primeiras
desloca no tempo em vez de se deslocar no espaço.
impressões de fim de percurso. “Isso por enquan-
Walter Benjamin
to é difícil”, respondeu Mário. “Impressões muitas,
às vezes desencontradas. Estou assim como quan-
do a jangada vira e a gente é sacudido ao mar: –
primeiro tenho que me salvar” (Andrade, 1929).
* Um primeiro ensaio de abordagem do material A imagem eleita para descrever o que vira
de viagem de Mário de Andrade do ponto de vista da pelo Nordeste certamente repercute o estágio de
história urbana, foi realizado com o arquiteto George
Dantas (cf. Dantas e Lira, 2001). Este artigo constitui
campo desta viagem etnográfica feita com total
uma versão abreviada do trabalho apresentado no GT disponibilidade e pouco método, de colheita pa-
Pensamento Social no Brasil, do XXVII Encontro ciente e sem preconceitos, bem diferente da pre-
Anual da Anpocs, Caxambu out. 2003, sob coordena- guiça criativa na viagem pela Amazônia em 1927.
ção de Fernanda Arêas Peixoto e Marcos Chor Maio.
Trabalho infatigável apesar de pouco esquemati-
Desde então, Fernanda Peixoto tornou-se para mim
uma interlocutora decisiva nesta tênue fronteira entre zado, o tour nordestino pedia cautela e muito es-
arquitetura, antropologia e história intelectual. tudo por fazer para julgar. Tanto que naquele
Artigo recebido em maio/2004 mesmo fim de tarde deste seu último sábado per-
Aprovado em novembro/2004 nambucano, às vésperas de embarcar de volta

RBCS Vol. 20 nº. 57 fevereiro/2005


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para São Paulo, o turista apenas iniciado em an- damento de toda intervenção urbanística. Como
tropologia (Lopez, 1972, pp. 83-85) partiria para nos informa o cicerone local, não houve recanto
um fim-de-semana no engenho da família do pin- da cidade que Agache não insistisse em conhecer:
tor Cícero Dias, na Zona da Mata Sul, à procura becos, vielas, “os chamados quadros. Também as
das danças e das cantorias que o carnaval, o pile- mucambarias”, e a velha e já inusitada perspectiva
que e a ressaca haviam amortecido na capital. da cidade a partir do rio. Foi da embarcação que
A imagem é também eloqüente pela confis- o sociólogo anotou esta impressão: “Fixei o urba-
são de estupor do viajante. Um misto de excita- nista: a cidade vista do meio do rio principiava a
ção e encantamento que retinha o comentário e empolgá-lo... O urbanista tinha o ar, que não dis-
desnorteava o forasteiro ao se descobrir atolado farça, de um Don Juan deveras interessado por um
na terra estranha. “Descobri que sou nordestino” caso novo. Don Juan de cidades”.3
(Branco, 1971, p. 76); um pólo de sonho da exis- Do meio do rio, Agache parecia-lhe desco-
tência contra “a mecânica da vida pra S. Paulo” brir os véus da moura: cidade “a mais árabe das
(Mello, 1991, p. 92). A metáfora do naufrágio em que os portugueses criaram no Brasil”, mais lusita-
meio ao “dilúvio” de documentos e observações na que haussmaniana, mais feminina que masculi-
críticas que juntara remete a uma experiência fun- na, oriental e aquática.4 Pouco fotogênica, deixava
damental de deslocamento. A viagem não apenas de fora apenas metade do rosto, cheia de encanto
aprofundava a cisão primitivista na posição de e sedução de beleza recatada de viúva de Conde.
vanguarda (G. de M. e Souza, 1980), mas afirma- Bem diferente do Rio de Janeiro ou da Bahia – o
va uma descontinuidade cultural: a relatividade paralelo antológico –, capitais exibidas onde tudo
dos códigos impunha-se à experiência constituti- saía fácil e bonito como em cartão postal.5 Mas eis
va da divisão entre o colonizador e o colonizado, que perante o especialista em ciência urbana,
a civilização moderna e a tradição popular, o pon- obstinado encantador de tudo quanto era burgo
to de origem e o itinerário (Lévi-Strauss, 1987; Ri- velho e novo, a cidade seqüestrava os direitos do
coeur, 1955); algo mais do que mera mudança de sedutor:
lugar em um mesmo mundo, mas como “uma em-
preitada no tempo” (Cardoso, 1988), transforma- [...] começa na Rua da Aurora sendo fotogênico
ção e diferenciação de seu próprio mundo na im- para quem o vê do meio do rio; mas é descer a
possibilidade da experiência e do conhecimento gente o rio ou ganhar as ruas e os pátios de den-
tro de Santo Antonio e de São José e vê que a ca-
do outro (Peixoto, 1992).
pital de Pernambuco guarda valores característi-
Em agosto 1927, Mário retornava da Amazô-
cos a cujo encanto nenhuma lente de câmara de
nia. Em um passeio de lancha pelo Capibaribe, o cinema poderia fazer justiça. [...] Mestre Agache
recifense Gilberto Freyre apresentava um outro era agora quase um lírico a falar da necessidade
ângulo da cidade ao urbanista Donat Alfred Aga- de reconciliar a cidade com as suas águas tão lin-
che (Bruant, 1996). Este novo engenheiro francês, das por onde a lancha subia.6
recém-chegado ao Rio de Janeiro para estudar um
plano de extensão da capital federal, era cogitado Significativo para a história do urbanismo no
para projetar um plano de remodelação, embele- Brasil, o episódio sugere um triângulo interessan-
zamento e expansão também ali.1 Agache viera ao te entre a cidade, o estrangeiro e o nativo. Pois se
Recife a convite do governador Estácio Coimbra, o filho da terra repetia o Don Juan, conduzindo-
de quem Gilberto Freyre era chefe de gabinete. Ali o pela fisionomia local pouco visível, na corte ao
proferiria algumas conferências sobre o conceito visitante também lhe facultava o encantamento. O
de urbanismo, na linha organicista registrada em guia sentimental abolia a norma turística e intro-
seu plano para o Rio de Janeiro (Agache, 1930),2 duzia as balizas da evocação, da intuição e da
como de praxe reforçando as virtudes de um con- imaginação no acesso a um certo “caráter” sedu-
tato direto com o corpo da cidade, à procura de tor da cidade; não previsto, incerto, que atualiza-
suas particularidades e características locais, fun- va a alegoria da “viagem de um mundo a outro”.7
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Mais do que a transposição de uma distância, tra- sitor modernista de Gilberto (Azevedo, 1984; Re-
tava-se de suscitar no observador – estrangeiro ou zende, 1997),12 é até compreensível certa cerimô-
nativo – um novo modo de ver, uma mudança de nia deste para com Mário, mas o que ele anotou
perspectiva, pelo comércio entre o próprio e o ig- em seu diário de mocidade naquele ano sugere
norado, o seu mundo e o outro mundo. maior constrangimento:
As anedotas sugerem um encontro entre o
turista aprendiz e o aprendiz de cicerone. Ainda Má impressão pessoal de M. de A. Sei que sua
que improvável, afinal estes verdadeiros “irmãos obra é das mais importantes que um intelectual já
realizou no Brasil [...]. E sua pessoa é o que acen-
inimigos” (G. de M. e Souza, 2000, p. 74), chefes
tua: o lado artificioso de sua obra de renovador
de fila do modernismo paulista e do regionalismo das artes e das letras no Brasil. Seu modo de fa-
pernambucano, fixaram para a posteridade os de- lar, de tão artificioso, chega a parecer – sem ser –
sencontros e extremos entre Sul e Norte (Chacon, delicado em excesso. Alguns dos seus gestos tam-
1993), os perfis emblemáticos do homem urbano bém me parecem precários (Freyre, 1975, p. 207).
que surgia e do remanescente disponível à velha
ordem (G. de M. e Souza, 1980, pp. 109-110). Na Dois anos depois, quando da segunda viagem
verdade, na tarde do dia 12 de dezembro de 1928, ao Norte, Gilberto emendaria taxativo: “Mário de
no início de sua viagem pelo Nordeste, Mário já Andrade não me interessa” (Idem, p. 233). O que
havia se encontrado com Gilberto em um outro estava em jogo desta vez era a colaboração dos mo-
passeio de lancha pelo Capibaribe na companhia dernos talentos do Rio de Janeiro e de São Paulo ao
de Manuel Bandeira, amigo pessoal de ambos. jornal A Província, o mesmo que sob sua direção
Colaborador regular do jornal A Província,8 o au- convidara Mário para escrever sobre a região ao fi-
tor de “Evocação do Recife” chegara do Rio de Ja- nal de sua viagem. O fato é que na abertura do seu
neiro fazia um mês.9 Em seu diário de bordo, Má- elogioso artigo sobre o Nordeste, Mário não escon-
rio anotou: “Tarde M. Bandeira me busca no hotel deu o desconforto de paulista em tour:
e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um
passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, Gozei muito. Gente boa me tratando com carinho
com vista da cidade”.10 de mâno, às vezes um bocado de despeito pelas
grandezas de São Paulo, glozadas, aumentadas e
É verdade que o encontro não deve ter sido
servindo de pretexto pra muita queixa... Não te-
lá muito cortês. Pelo menos é o que se entrevê de nho a culpa das grandezas de São Paulo e não as
seus escritos privados, acessíveis em livro. O de- considero tão guassús. Algumas existem de fato,
sencontro é que ficou muito conhecido. A econo- outras são de pura fantasia (Andrade, 1929).
mia de Mário nas referências ao condutor ao lon-
go das cartas e notas de viagem é eloqüente.
Afinal Gilberto compartilhava com ele de inúme- Navegante de primeira viagem
ras amizades e naqueles anos era talvez a pessoa
mais instruída para conduzi-lo pelas coisas de et- Mário de Andrade foi talvez o primeiro, senão
nografia e folclore em Pernambuco. Se na corres- o único dos grandes intelectuais brasileiros a não
pondência com Bandeira é patente a indiferença realizar nem a projetar o grand tour tradicional
ante o terceiro, em carta a Cascudo de finais de pela Europa (Ciacchi, 1995, p. 9; Salgueiro, 2002).
1926, o ano do Congresso de Regionalismo no Experiência tardia, a viagem surgiu-lhe inicialmen-
Recife, Mário confessara indisposição para com a te marcada por circunstâncias pessoais, freqüente-
mentalidade recifense: “me parece gente sem sen- mente funcionando como instância de solidariza-
sibilidade nova, sem esta agilidade intelectual de- ção do grupo modernista a que pertencia.13 Ao
sabusada que é tão característica de nosso tempo congregado mariano, as viagens exortavam o estu-
e que você tem”.11 Inclusive Joaquim Inojosa, jun- do dos festejos religiosos, suas procissões, cortejos,
to com quem o poeta Ascenso Ferreira o recebe- autos, danças, mascaradas e luminárias (Andrade,
ra de passagem para a Amazônia em 1927. Opo- 1920b, pp. 5-12); ao professor do Conservatório
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Dramático e Musical, a ampliação das fontes popu- sua sobrinha Margarida e a filha de Tarsila do
lares de parlendas e cantigas (Lopez, 1983; Souza Amaral, Dulce. Também em detrimento de Mário,
e Schmidt, 1997). Viagens de arredores, desde a expedição seria marcada por um forte acento
cedo Mário as veria como uma posição: “Não cen- protocolar, certamente enobrecida pela ascendên-
suro o brasileiro que quer ver Paris, desejaria ape- cia inevitável desta ilustre dama da oligarquia ca-
nas que elle visse a Bahia, o Rio das vielas feeira desembarcando nesta parte do país de oli-
estranguladas que ladeiam a Avenida Central e garquia já saudosa da belle époque do látex (Sarges,
principalmente abrisse o Sésamo acolhedor e en- 1990; Masacarenhas, 1999).
cantado de Minas” (Andrade, 1920c, p. 108). Mes- Na interpretação da obra de Mário, a viagem
mo que as “lindas coisas” do país ainda não fun- ocupa um lugar importante, seja como momento
cionassem como alternativa às convenções de complementação das fontes folclóricas, míticas
acadêmicas (Moraes, 1999, pp. 79-80), e ainda não e lingüísticas do Macunaíma em redação (Lopez,
operassem claramente comprometidas no sentido 1972, p. 79),16 seja como principal ingrediente de
de um reaproveitamento culto da arte popular definição antropológica do herói sem caráter
(Fernandes, 1946), do nivelamento e desnivela- (Branco, 1971, pp. 59 e 67), seja ainda para a
mento estético (G. de M. e Souza, 1979, pp. 20-21). compreensão de sua biografia – a viagem paro-
Como sabemos, a histórica “viagem da des- diando um roteiro tornado folclórico na família
coberta do Brasil” através das cidades históricas (G. de M. e Souza, 1978), cristalizando um víncu-
de Minas em 1924 representou para o modernis- lo emocional com a cultura popular (Duarte,
mo brasileiro uma guinada dialética fundamental 1972, p. 28), e nele antecipando a figura do inte-
– porque travejada pelo influxo das vanguardas lectual engajado na política cultural e na etnogra-
contemporâneas – no enfoque do nacionalismo e fia na década seguinte (Lafetá, 2000, pp. 151-184;
da tradição no Brasil (G. de M. e Souza, 1980, pp. Sandroni, 1988; Raffaini, 2001). Ainda está por ser
256-259; Lopez, 1983, pp. 15-16). Transposto para melhor avaliada, porém, a experiência da viagem
a arte colonial barroca, com ela, definitivamente, como “descartografia” e utopia geográfica, como
o culto do primitivo tornou-se o lugar “do novo e reencontro da experiência civilizatória brasileira no
do mistério representado pelos moços” (E. M. de deslocamento, no desvio, na descoberta de seus ví-
Souza, 1999, p. 211); um encontro entre o primi- cios e nas possibilidades latentes.
tivismo das vanguardas e a sensibilidade brasilei-
ra, “a viagem consolida no poeta a comunhão
com a arte do povo” (Lopez, 1993, p. 109).14 Em As cidades amazônicas:
sua poesia doravante percebe-se o aflorar de uma artifício, mito e evasão
disposição para sair de casa: “Como será a escu-
reza/ Desse mato-virgem do Acre? (Andrade, É certo que a peregrinação à Amazônia não
1976, pp. 182-184). se deixou caracterizar como uma empreitada de
Foi dessa curiosidade, que, em 1927, surgiu proselitismo modernista. Em sua motivação fran-
para Mário de Andrade a viagem à Amazônia. camente amorosa, no registro diário da viagem,
Sabe-se que a idéia original era ir ao Nordeste; aspirando inclusive à condição de livro indepen-
que partira da milionária Olívia Guedes Penteado dente,17 a identidade de escritor seria vivenciada
a sugestão do Amazonas, imediatamente abraça- como incômodo à condição do viajante. E isto
da pelo escritor no afã de reescrever o Macunaí- também quanto à viagem ao Nordeste, onde o
ma, iniciado em fins de 1926; e que deveria ter contato de Mário com os jovens, bem maior que
sido realizada por um grupo semelhante ao do no Norte, por certo aprofundou a tendência à nor-
passeio por Minas Gerais: “resolvi ceder mandan- malização do espírito de vanguarda em cultura
do à merda esta vida de merda”.15 Ao final, a co- brasileira. Em ambos os casos a partida foi vivida
mitiva seria reduzida à mecenas do modernismo, como desenraizamento, malgré lui, foi “no exílio”
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que aprendeu o turismo (Meyer, 1993, pp. 34ss.), Norte, já de início, decepcionava – menos brasilei-
aprendizado não sem atropelos e vacilações. ra do que esperava, mais artificial, burguesa e bel-
Na partida de São Paulo, sua bagagem já foi le époque, pior, feita às pressas. Cioso por libertar-
um problema: o que levar? uma bengala? um ca- se da bagagem européia, flagra-se um Mário
nhão? um revólver? (O turista aprendiz, 7/5/1927). impaciente com seus pressupostos: com o aspec-
Afinal, ia de encontro a “tribos selvagens, jacarés to de civilização de epiderme, de macaqueação
e formigões”. O embarque no Rio de Janeiro foi tropical, em nome de camadas desperdiçadas da
cercado de inquietações (Idem, 11/5/1927), de- formação brasileira; com suas noções prévias so-
nunciando um viajante, até então, talvez, mais re- bre o primitivo, para sua infelicidade, surpreendi-
solvido a escrever a epopéia modernista do que a do in loco, ele mesmo, como um construto intelec-
navegar: “antiviajante que sou, viajando sempre tual. Chegando a Belém, confessa modestamente
machucado, alarmado, incompleto, sempre se in- a um repórter: “É um passeio sem heroísmo o que
ventando malquisto do ambiente estranho que fazemos”.18 Belém surge neste ponto da viagem,
percorre”, confessaria anos depois. No destino, antes de tudo, sensivelmente: a chuva, os calores,
constatou: “se vê que ainda não sei viajar” (Idem, o cheiro da carne-seca, as velas coloridas das em-
21/5/1927). E não porque muito preso à terra na- barcações, verdes de horizonte, o sabor do açaí.
tal: “É certo que não sou de psicologia tipo turis- Logo, porém, irá se revelar o acento protocolar
ta, isso já não tenho mais dúvida, mas também só que acompanharia a comitiva: o mundo cerimo-
umas três vezes terei sentido alguma saudade de nial “donoliviando-lhes” com flores e retretas em
São Paulo e dos meus. [...] Será uma falha minha?” cada embarque e desembarque, recepções e visi-
(Idem, 21/7/1927), escreveu ao retornar. tas oficiais: “Falei que tudo era muito lindo, [...]
Nessa viagem entediante pelo atlântico até que nos parecia que tinham se eliminado os limi-
Belém, dias “feitos de nada” que se alongavam tes estaduais!” (Idem, 20/5/1927). Diplomacia à
pelos rios, o desconforto da civilização se impôs: parte, o esforço de enraizamento é claro: no em-
baraço de saudações a antigeografia e o anti-regio-
[...] estou um bocado aturdido, maravilhado [...]. nalismo funcionavam. Essa circunstância é funda-
Há uma espécie de sensação ficada da insuficiên- mental na viagem à Amazônia: prefeitos,
cia, de sarapintação, que me estraga todo o euro- governadores, religiosos, chefes de polícia, profes-
peu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho soras públicas revezando-se “de bedéquer” (Idem,
dentro de mim. Por enquanto o que mais me pa- 16/6/1927). Tanto pior para Mário de Andrade, na-
rece é que tanto a natureza como a vida destes lu-
turalmente convertido em porta-voz e acompa-
gares foram feitos muito às pressas, com excesso
de castro-alves. E esta pré-noção invencível de
nhante da Rainha do Café na terra esborrachada
que o Brasil em vez de se utilizar da África e da economicamente. Em Iquitos, parece que ele já
Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando não agüentava mais as “caceteações [...]. Como os
com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, reis em Londres ou na Itália, viva o protocolo!”
sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulário, qui- (Idem, 22/6/1927); na volta da Bolívia, é a própria
tutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente Dona Olívia quem suspira: “Ah. Mário... essa his-
naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tória de todos os prefeitos se verem na obrigação
tudo, não poderá nunca ser, mas apenas maca-
de acompanhar a gente, levar na prefeitura, no
quear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único
grupo...” (Idem, 17/7/1927). Compreende-se o
grande (grande?) país civilizado tropical... Isso é o
nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pen- sentido de refúgio na vida de bordo, escape à con-
sar, sentir como indiano, chins, gente de Benin, de venção e à compostura; a própria preguiça ganha-
Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e ci- va prestígio no momento da criação ante as atri-
vilização próprias (Idem, 18/5/1927). bulações da vida civilizada (Lopez, 1972, pp.
110-118). A entrada na selva pela foz, entre revoa-
O senso de responsabilidade social era agu- das e jantares apetitosos, descrevem também uma
çado em busca de identidade. Mas a paisagem do apropriação estética do enfado.
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É também nesta circunstância que teremos que ele escapava dos hospitais e orfanatos, da As-
que procurar a composição de seus itinerários ur- sociação Comercial, da fábrica de borracha ou de
banos, em grande parte convencionais, haja vista cerveja. Fora isso, muito pouco. A despeito da ca-
os cicerones. Notemos nos desvios como modo maradagem especial ali com os moços, da hospi-
particular de mapeamento e desreferencialização talidade baré, de uma maneira geral a cidade não
da cidade. A estratégia de Mário passará pela fa- lhe agradou: além de tudo o calor sufocante tor-
miliaridade imediata: “já me acamaradei com nou Mário “alérgico à capital do Amazonas”. E de
tudo” (O turista aprendiz, 20/5/1927); “Belém foi fato escreveu algo assim,
feita pra mim” (Idem, 23/5/1927). O entusiasmo
com o distante que se reflete em estranhos mitos [...] toda essa falsificação de grandeza, todo esse
de origem: “mandaram vir u’a imigração de ma- mau-gosto exasperado e... morto de grandezas
laios e no vão das mangueiras nasceu Belém do passadas, toda a falta de caráter individual (San-
tarém tem mais caráter até Fonte Boa), os ficus,
Pará.” (Idem, 20/5/1927). Polinésia, Cairo, lugares
tudo isso e em ponto-pequeno, me desagradou,
remotos que apareciam em sensações, assim me irritou. E me entristeceu principalmente por-
como adiante Santarém: lá “os venezianos falam quê Manaus sendo um milagre jogado no sertão,
muito bem a nossa língua e são todos duma cor afinal das contas é um milagre feio, um milagre
tapuia escura. Fomos recebidos com muita cor- sem caracter e o que é mais horroroso ainda, um
dialidade pelo doge que nos mostrou a cidade” milagre já hoje sem razão.20
(Idem, 31/5/1927). Fábulas de cidade e imagens
arquetípicas da cidade oriental, que descontraíam Na confissão ao amigo poeta, prefeito de
e informalizavam o outro. Mas na cidade históri- Humaitá no Amazonas, seu fornecedor de folclo-
ca, além do patrimônio colonial, aliás ameaçado, re musical amazônico, a cidade surgia-lhe como
havia também o Goeldi e o Vêr-o-peso como refe- quintessência de um processo caricatural de urba-
rências. É verdade que não escondiam a Paris tro- nização; grandiloqüência civilizatória que mal dis-
pical das ciências naturais e etnográficas e da hi- farçava a destruição da natureza21 e a maleita. De
giene a Antônio Lemos (Sarges, 1999, pp. 49-74). promessa de aproximação aos sertões amazonen-
Mas a flora, a fauna e a cerâmica bem mostradas, ses, a cidade tornara-se prova mais visível da fal-
a biblioteca admirável e, no mercado, o melhor sidade, mau gosto e indiferença em nome de pre-
de Belém (O turista aprendiz, 20/5/1927), seus tensa integração nacional. O próprio teatro era
aromas, cores e sabores, traziam de volta a cida- uma “mistura agressiva de riqueza falsa e deslei-
de “mais gostosa deste mundo!”, entre refrescos xos de acabamento” (Idem, 20/7/1927), faltava ca-
róseos, roxos e verdes, gostosíssimos: “Vale mais ráter na arborização exótica. Ao ser questionado
que Melbourne ou Nova York” (Idem, 21/5/1927). pela imprensa local, o escritor não hesitaria em
Contra a plena identificação com a cidade, denunciar as ilusões do fausto, os adornos efême-
além do protocolo, gritava a mania a arborizá-la ros de um progresso inconstante, já bem distante
com plantas estrangeiras, insuportavelmente mo- dos anos de esbanjamento e cujas duras conse-
nótonas, destoantes do clima. “Imagine só uma ala- qüências já podiam ser sentidas na “miséria e ser-
meda arborizada com tufos de açaizeiros? [...] Apro- vidão de milhares de caboclos”: duro aprendiza-
veitando seu espírito de imitação, Belém será a do que se impunha aos contemporâneos. De
mais linda cidade equatorial”.19 Era preciso recupe- “virgem de luxo” a cidade passara a “mulher fe-
rar o parentesco com a singularidade regional. cunda”: os governos deveriam ser criativos para
Em 5 de junho, o cruzeiro chega a Manaus gerar “nova florada de empreendimentos de al-
e, de novo, à chatice de cortejo na recepção. Na- cance elevado”.22
quela tarde, guiado pelo comandante da polícia, O mesmo tipo de censura que viria a propó-
Mário vai ao bairro da Cachoeirinha “visitar o ar- sito quanto ao Álbum de Manaus, a ele presentea-
raial da igreja do Pobre Diabo, onde tinha festa” do pelo prefeito Araújo Lima, editado no afã do tu-
(Idem, 5/7/1927). Era nesses bairros populares, rismo para esta parte do país inviabilizada pela
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bancarrota precoce da goma elástica. Só uma obje- cios revestidos de granito e mármore, e a diferen-
ção, onde “a cidade salubre”? onde o clima muito ça local, a rede, as ruas cobertas de água de no-
tolerável? Por que estas “ruas largas e calçadas, pra- mes bem nortistas em alusão ao amor, ao pecado
ças ajardinadas e logradouros públicos encantado- e às companheiras de viagem. A paródia onírica
res”?23 O problema era que a prefeitura só tinha ressoava e amplificava o disparate da cidade euro-
olhos para o lado pitoresco da civilização: a pro- péia com a extravagante arquitetura de estilo em
moção turística não seduzia o turista aprendiz, e se plena floresta. O macio, o felpudo, o vermelho, o
o tour oficial era difícil de evitar, não era o caso de líquido, o peixe-boi, o boto e as mulheres, suas
recomendá-lo. Por sorte, a partir de Manaus a via- parceiras, com a “elegância discreta embora de-
gem mais e mais enveredava pelas selvas; os rotei- senvolta com que elas sabem ficar nuas, que dife-
ros oficiais, podendo ser evitados em favor de pas- rença das mulheres civilizadas” (Idem, 4/6/1927),
seios pelos arrabaldes populares e à floresta: à faziam da cidade o espaço do erotismo. Além de-
Cachoeirinha, ao Careiro, ao lago do “Amaniúm”, las, apenas o burocrata indiferente e o estrangei-
à cachoeira de Tarumã, à Vitória-régia, às embarca- ro, que, enamorado pelas nativas, se deixava le-
ções, às tribos e aldeias, aos ritos indígenas, às can- var a toda parte em prol do amor. Este urbanismo
tigas e festas populares, emancipando-se de vez do surrealista de Mário de Andrade levava ao extre-
itinerário diplomático e de suas companheiras mo as impressões paradisíacas de suas Venezas e
(Idem, 8/6/1927 e 17/7/1927), podendo perder-se Cairos amazônicos, antepunha à imagem séria e
pelas ilhas e matas, pela poesia. ascética do roteiro turístico, uma cultura popular,
Depois de Manaus, só cidadezinhas e luga- carnal, que promovia a liberação do riso, a vitória
rejos – Óbidos, Fonte Boa, Remate de Males, Iqui- do sexo sobre a oficialidade – Uraricoera vivida
tos, Humaitá. Uma delas apareceria em sonho, sem recalques.24
chamava-se Itacoatiara, não existia no mapa, mas Experiências de cidades que ao serem “des-
encenava parodicamente a cidade na floresta: geograficadas” macunaimicamente criam novas
geografias, mapas legendários, livres de contin-
É a mais linda cidade do mundo, só vendo. Tem gências regionais, embrulhados de propósito, mas
setecentos palácios triangulares feitos com um também livres das convenções e dos modelos de
granito muito macio e felpudo, com um porta só exportação,25 capazes de criar na pátria expatria-
de mármore vermelho. As ruas são todas líquidas, da um “itinerário fantástico, uma espécie de uto-
e o modo de condução habitual é o peixe boi e,
pia geográfica, que corrige o grande isolamento
pras mulheres, o boto. Enxerguei logo um bando
de moças lindíssimas, de encarnado, montadas em que os brasileiros vivem, substituindo-o pelo
em boto que as conduziam rapidamente para os elo fraterno da vizinhança” (G. de M. e Souza,
palácios, onde elas me convidavam pra entrar em 1979, pp. 38-39). Daí talvez a eleição das selvas e
salas frias, com redes de ouro e prata pra descan- confins, o recurso ao mito da Cidade Afundada (O
sar ondulando. Era uma rede só e nós dois caía- turista aprendiz, 4/7/1927).
mos nela com facilidade. Amávamos. Depois ía-
mos visitar os monumentos públicos, onde
tornávamos a amar porque os todos burocratas Cantos e recantos das cidades
estavam ocupados, nem olhavam. As ruas não se
chamavam com nome de ninguém, não. Tinha a
nordestinas
rua do Meu Bem, a rua das Malvadas, a rua Rai-
nha do Café, a rua das Meninas, a rua do Perfil A viagem ao Nordeste não tarda. A idéia vi-
Duro, a rua do Carnaval, a rua Contra o Aposto- nha sendo acalentada desde 1924, na correspon-
lado da Oração (Idem, 3/6/1927). dência com Luís da Câmara Cascudo.26 “Não tendo
coragem de mandar trabalho e todo o resto à mer-
A cena fantástica, ao lado de sua componen- da e ir viajando por onde me chama esta sodade
te utópica, revela a oscilação satírica entre o mo- misteriosa das coisas que inda não vi”.27 Algo até
delo oriental da cidade invisível, com seus palá- já planejado e quase orçado em 1926.28 Em 1928,
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a viagem seria tão longa quanto em 1927 (mais de Cascudo, companheiros contumazes de banho de
cem dias), sob um aspecto, mais livre; sob outro, mar, de passeio, de banzo, de pesquisa. Em toda
mais obrigada. Mário desta vez viaja só, portanto, parte, “gente suavíssima que me quer bem, que se
isento dos compromissos de cavalheiro e protoco- interessa pelos meus trabalhos, que me proporcio-
lo, porém a trabalho: chama a expedição de “via- na ocasiões, de mais dizer que o Brasil é uma gos-
gem etnográfica” e em parte ela será custeada pela tosura de se viver” (Idem, 2/2/1929). No embalo
função de cronista do Diário Nacional, em que da vida vivida na existência do amigo, o turista
era responsável pela coluna diária, que chamará abre caminho pelo outro.
durante a ausência de São Paulo de “O turista O encontro afetuoso compensava a sensa-
aprendiz”. Diferente no objetivo e na prosa, a via- ção desagradável de ingressar em “vida viajeira”.
gem sofre outra mutação fundamental: as media- As partidas de São Paulo e do Rio de Janeiro de
ções com o destino não se dão agora pelas auto- novo foram penosas: “está provado que não fui
ridades locais, mas pelos amigos, modernistas e feito pra viajar” (Idem, 27/11/1928); uma sensação
simpatizantes, seus anfitriões, cicerones ou condu- de estar em dois, de viagem interior, “o novo,
tores pelas coisas populares. A mudança de esta- ajuntado agora a mim, é um desconhecido até de-
ção também é decisiva. Se o inverno era no Nor- sagradável capaz de enfrentar a onda enorme do
te a melhor época para a colheita folclórica, Mário oceano. Vai viajar, vai pro Nordeste”. Mas bastava
desta vez viaja no verão para aproveitar em cam- botar o boné na cabeça que “era eu viajando”
po as festas do ciclo natalino ao carnaval, de en- (Idem, 3/12/1928). A viagem de navio até a Bahia
cenação das danças dramáticas.29 foi marcada por um misto de enlevo e semi-enjôo
A situação se antecipara nos dias de camara- (Idem, 6/12/1928). Pois se o Rio parecia quase ex-
dagem intelectual intensa no Rio de Janeiro (Idem, tensão da vida paulistana, cercado dos velhos
28/11/1928 a 3/12/1928); em Maceió, escreveu, companheiros de combate, Sérgio, Prudente, Gra-
“fui levado no embalanço dos amigos” (Idem, ça, Almeida e outros, Salvador lhe deu o primeiro
9/12/1928); no Recife, “com Ascenso me esperan- choque de deslocamento com a sonora visão da
do às 7hs” (Idem, 11/12/1928); em Natal, “me es- cidade: o amontoamento das casas, o estardalha-
peravam Cascudinho, Antônio Bento” (Idem, ço das janelas e telhados, as ruas que trepavam e
14/12/1928); no caminho de João Pessoa, me es- trombavam, os vários planos de movimento, a
peravam “José Américo de Almeida, Ademar Vidal sensação física de simultaneidade – “o barulho
e Silvino Olavo” (Idem, 27/1/1929); na despedida nem é tamanho assim porém dá impressão de
do Recife, “apareceu Dr. Gouvea de Barros, Aveli- enorme” (Idem, 7/12/1928). Sensualidade de pas-
no Cardoso, Ascenso, Stella, Jaime Gris, Cícero sagem na rota procurada da embriaguês. Também
Dias, Willy Lewyn, Rabelinho [Sylvio Rabelo], José de passagem, Maceió dá os primeiros indícios do
Pinto, Ernani Braga, Murilo Lagreca” (Idem, povo: acompanhado dos amigos escritores, en-
20/2/1929). Outra mudança: o viajante é recebido contra-o na feira de domingo de Fernão Velho
como escritor paulista (e não acompanhante da construindo a barcaça para a Nau Catarineta,
dama), autor de Macunaíma, introduzido à realida-
de nordestina pela geração mais jovem da intelec- [...] e a caboclada brasileira há-de repisar mais
uma feita sem consciência de heranças, brasileira
tualidade local. Entre os guias: artistas, jornalistas e
como alagoana, aqueles portugas do fastígio que
escritores da nova geração. Mário está quase sem- pra voltar das aventuras passava ano e mais ano
pre acompanhado e muito próximo dos da terra: a buscando terra de Espanha, areias de Portugal...
casa de Cascudo, sua morada e base de trabalho Tudo isso enche meu peito que nem posso respi-
em Natal; a casa de Ademar Vidal, apoio na Paraí- rar (Idem, 9/12/1928).
ba; os engenhos das famílias de Antônio Bento e
Cícero Dias, pontos avançados de pesquisa no in- É este povo que será figura onipresente na
terior. O amado Inojosa, o gozado Ascenso, Jorge viagem. Até mesmo no espaço coloquial da crô-
Fernandes, Barôncio Guerra, Cristóvam Dantas, nica que descreve o itinerário – publicadas cerca
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de quinze ou vinte dias após a redação – Mário 15/12/1928, 8/1/1929). Há anos Mário percebera o
encontrará tom adequado à confissão de seu as- conservadorismo das visões românticas e regiona-
sunto fundamental. Das setenta crônicas publica- listas do folclore (Lopez, 1972, pp. 75-84). O tédio
das pelo jornal desde a partida de São Paulo, mais com os levantamentos, evocação do gabinete, se
de vinte tratam diretamente de cultura popular.30 entrevê na rejeição aos dados pelos dados na pro-
Pontuam o itinerário do começo ao fim e freqüen- cura dos sentidos contemporâneos da produção
temente perpassam os outros temas da escrita, do povo. Investirá assim na compreensão crítica
como as condições de vida dos trabalhadores ru- das duras condições de vida das populações de
rais, a economia local, as paisagens e misérias dos pobres – suas casas, roupas, comida, trabalhos, sa-
sertões, a migração, a cidade, os bairros popula- lário, crenças, ânimo, saúde. Vêem-se ecos de um
res, a arte religiosa, os casos e anedotas, o cajú, contato do escritor com o marxismo latino-ameri-
os anfitriões, em tudo o escritor é permeado pela cano na defesa comovida e impaciente da rebeldia
personagem popular, sua tradição oral, o ethos do primitiva e do gangaço contra a incapacidade fe-
cantador. Também no pequeno diário manuscrito, deral de resolver as mazelas do campo e da seca:
as “Notas de viagem ao nordeste” que encerram “não é possível pregar revolução nesse país. Na
de maneira telegráfica o registro mais íntimo e as certa que haverá traidores. O que nós carecemos
anotações avulsas da jornada (O turista aprendiz, é dum gangaço secreto, matando friamente fulano
p. 37), os levantamentos quase diários: “Não saio que é gatuno, fulano que é burro, fulano que é
de casa. Colho melodias” (17/12); “Temas de che- abúlico, assim” (O turista aprendiz, 22/1/1929).
gança” (20/12); “De manhã os catimbozeiros me A chegada pelo mar se deu no Recife. Dali
dando cantigas” (22/12); “também que nem on- em diante seguirá por terra. Milhares de quilôme-
tem e anteontem dia completamente besta. Todos tros entre 10 de dezembro e 24 de fevereiro do
o homens combinados vir aqui em casa cantar, fa- ano seguinte. A mudança de veículo, do mar para
lharam” (2/1); “com um velho pernóstico que a terra, marca um corte. Nestas três cidades, dora-
sabe o Fandango” (4/1); “procurando um Maraca- vante aproximadas pelos trens, automóveis, pelas
tu” (8/2); “melodias de carregar piano” (14/2) etc. redes de amigos e manifestações do povo, os atri-
etc. as referências se multiplicam pelo diário. butos fundamentais da segunda viagem surgirão.
E se o roteiro era ditado pela pesquisa, indi- Em Natal, João Pessoa e Recife, cidades onde o
retamente outros cicerones se imporiam – canta- viajante demora e não apenas aporta, bases prin-
dores, rabequistas, coqueiros, emboladores, mes- cipais dos levantamentos, é dominante o interesse
tres, catimboseiros, marujos, turcos e pastorinhas pela música, dança, poesia e religiosidade popula-
dariam ritmo e rumo na viagem –; cicerones invo- res. Nelas, Mário partirá freqüentemente aos arre-
luntários de um turista resolvido a segui-los de dores e bairros pobres, assim como às praias e à
perto; cicerones imprevisíveis, às vezes intolera- hinterland, sertões e cidadezinhas do interior de
velmente atrasados, inconstantes, que encanta- onde provinham os migrantes. Também o patri-
vam e comoviam o turista aprendiz ao mesmo mônio histórico entrará nos seus circuitos: os cen-
tempo em que o levavam ao desespero e à impa- tros velhos, a arte sacra e a arquitetura colonial,
ciência, mestres que tardavam, falhavam, desper- nele ativando também o crítico, desde jovem dis-
diçavam-lhe o tempo, desviando-lhe, exibindo-se, ponível para a arte do passado. Em suma, cultura
escapando. Figuras às vezes irresistíveis, como o e festas populares, arte e história, mas também a
cantador Chico Antônio, verdadeiro trovador me- comida e a bebida locais, as praias e os banhos de
dieval na arte de chegar e de partir (Idem, mar, completariam este roteiro até então pouco
12/1/1929). O artista popular e os amigos reveza- usual de introdução às cidades nordestinas.
vam-se, assim, no papel de cicerones. Em Natal, terá como anfitrião Câmara Cascu-
Pelo inventário vê-se que o tempo principal do, cronista da cidade desde 1918. Com ele, as
foi dedicado à pesquisa. Não que o viajante se en- afinidades de correspondente já haviam se trans-
contrasse no profissional ou cientista (Idem, formado em forte laço de amizade. Além dos in-
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teresses pelas coisas de folclore, Mário nele en- Mais do que isso, em Natal, como em São
contraria um fiel companheiro de causa, que pu- Paulo, não havia impedimento ao crescimento e à
blicara meses antes do embarque do poeta pau- reforma: “cidade mocinha, podendo progredir à
listano para o Norte, na Revista de Antropofagia, vontade sem ter coisas que dói destruir”( Idem,
uma crônica modernista sobre Natal (Cascudo, 29/12/1928). Bem diferente da Bahia, por exem-
1928), logo também interessando-se pelo debate plo, tão abalada pelos prós e contras das demoli-
local do urbanismo.31 Passará na Vila Cascudo o ções (cf. Peres, 1987; Pinheiro, 2002):
período mais longo da viagem: “moro no bairro
alto do Tirol”. [...] creio que vou achando uma graça dolorida
Pelas crônicas e anotações de viagem, Natal nos partidários e antagonistas da destruição [...].
é onde o viajante melhor se encontrará: “é um en- O problema da Sé da Bahia está mas é enuncia-
do errado. É muito mais grandioso do que a der-
canto de cidadinha clara, moderna, cheia de ruas
rubada ou não derrubada dum casarão pra alar-
conhecidas encostadas na sombra de árvores for-
gamento de rua. O próprio centro urbano da
midáveis. De todas estas capitais do norte é a mais cidade alta é que se tem de resolver se é prático
democraticamente capital, honesta, sem curiosida- ou não ficar onde está. Todas aquelas ladeiras,
de, excepcional nenhuma”. Não possuía os encan- quedas de sopetão, torceduras de terrenos são
tos de Belém, do Recife, de Salvador “um bocado absolutamente contrárias a qualquer norma utili-
egoísticos. Coisa pra viajante visitar e gostar, origi- tária de urbanismo contemporâneo (O turista
nalidades que tornam estas cidades exóticas até aprendiz, 29/12/1928).
mesmo pra brasileiro” (O turista aprendiz,
16/12/1928). O seus encantos, ao contrário, recu- É o que lembra Mário naquele mesmo dia.
savam identidade de turista. Em Natal, mal desem- Em Natal, o modernista e preservacionista amplia-
barca e já se encontra “em plena city”: intimidade va o enfoque do patrimônio para o urbanismo,
imediata, embalada ao som dos cantadores, as forçando uma passagem da discussão do monu-
suas praças evocavam as praças florentinas – “des- mento para o centro histórico e dele para as fun-
tinada aos cantastorie, onde eles dedilhavam o ções de centralidade. Em Natal, ao contrário, a ci-
alaúde, a trompa marinha cantando sem mais fim. dade era campo aberto ao futuro:
Aqui também”. Liricamente democrática, na cida-
de nordestina “o vento canta, os passarinhos, a [...] o que é velho não é... antigo, pouco ou ne-
gente do povo passando. O homem que leva e nhum valor tem. Natal tem seu futuro enorme
como banco de riquezas fundamentais [...]. As tra-
traz as vacas daqui de perto, não trabalha sem
dições dela são todas móveis, danças, cantorias.
aboiar... Aqui em casa também. Todos cantamos”
Essa felicidade americana de Natal está se objeti-
(Idem, 15/12/1928). A imagem recorrente é mes- vando neste momento com a inauguração do
mo de uma cidade popular, psicologicamente de- Aero-Clube. [...] Os aeroplanos estão pintando o
mocrática com suas ruas abertas, muita luz e ven- sete no ar. [...] nenhuma Europa tradicional, te
to, “conforto praceano”, encanto honesto, “ar de dana! (Idem, 29/12/1928).
chacra que a torna tão brasileiramente humana e
quotidiana como nenhuma outra capital brasilei- Sem tradições imóveis, em Natal reencontra-
ra”. Dividida entre o moderno e o popular, mais va-se – nas manifestações populares, como vere-
do que qualquer outra, Natal seria mapeada urba- mos – o sentido positivo da tradição contra os ca-
nisticamente: o rio, as praias, os largos, as ruas e sos prejudiciais, como a carroça do rei da
as avenidas, a distribuição dos usos e das classes, Inglaterra e o estilo neocolonial na arquitetura. Na-
os bairros pobres, nunca miseráveis, “sem aquela tal era um sonho americano de cidade: sem passa-
presença forte de tristura dos mocambos recifen- do fixo, espraiando-se no espaço, campo aberto à
ses”, os bairros ricos sem “nenhuma nota de novo- aviação e à expansão. Com efeito, os diários reve-
rico”, que “têm aquela humanidade feliz de certos lam a importância do aero-clube e da praia nos ro-
bairros burgueses de S. Paulo” (Idem, 16/12/1928). teiros (Idem, 15, 25, 29/12/1928). De um lado, uma
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 153

Natal copacabanizada, de outro, o “cais da Euro- Em Natal, os bairros onde param os proletários são
pa”,32 aberta aos raids internacionais: as observa- principalmente dois: o de Alecrim e Rocas. Tam-
ções faziam eco ao intenso debate urbanístico dos bém nas alturas da Lagoa Seca mora bastante ope-
anos (1924-1930) Omar O’Grady (Dantas, 2003), o rário que devido a careza do bonde, come areia
todo o dia pra atingir o centro da cidade, longe.
prefeito aviador, engenheiro formado nos Estados
[...] Não há mocambo. O mangue fica da outra
Unidos e inventor de Areia Preta.
banda do Potenji, onde ninguém não mora. No
Mas o fato é que o turista dedicaria poucas
Alecrim como em Rocas as casas são cobertas de
linhas à cidade oficial, civilizada, toda ela uma telha e muitas de tijolo. Se enfileiram pequititas,
conquista nova da década de 1920 (Idem). É fla- porta e janela de frente, em avenidas magníficas,
grante a sua predileção pela outra parte da cida- todas com o duplo de largura da rua comum pau-
de, baixa, menos visível, mais escura, que às ve- listana. [...] A comida é bem monótona. Farinha,
zes se imiscuía pelas ruas principais da Ribeira feijão e carne-seca. [...] A maioria trabuca no algo-
comercial, ou dos bairros novos da parte alta, dão e no açúcar. Descalços no geral, calça e pale-
com as brincadeiras populares – os cocos, os pas- tó de algodãozinho, às vezes sem camisa, que ca-
toris e as marujadas. No litoral, em Areia Preta ou lor! Cobrindo a cabeça com o chapéu de palha de
Redinha, encontrava “sambas, maxixes, varsas de carnaúba, muitas feitas de forma fantasista, muito
origem pura, eu na rede, tempo passando sem di- engraçada. Pronto: estão trabalhando. Quando se-
não quando uma cantiga (Idem, 2/1/1929).
zer nada” (O turista aprendiz, 30/12/1928). Nos
bairros populares, em Rocas, sem muita luz e co-
berto de coqueiros, antigamente tomado de casi- Resumo sociológico da vida pobre na cidade
nhas de palha, valhacouto de criminosos e facíno- que se completará em empatia com a visão das
ras da cidade; no caminho do Areal, condições de vida no campo. Se o embarque para
o interior se justifica pelo aprofundamento dos le-
[...] morro cheio de casas proletárias alinhadas vantamentos culturais, no contato com as regiões
numa rua bem larga rodamoinhando no vento. do açúcar, do sal e do algodão, a perplexidade irá
Por ali moram embarcadiços, catraieiros, operá- evoluir em revolta: “está com jeito da gente andar
rios das docas. [...] A rua está viva. Sons de pan-
turistando pelas Áfricas e Ásias do atraso inglês,
deiro, pessoal se chamando, um tambor mais pra
longe e na porta da venda um ajuntamento. Vão francês, italiano, não sei quem mais!... todos os
ensaiar a Chegança pro Natal (Idem, 18/12/1928). atrasos da conveniência colonial” (Idem, 8/1/1929).
Indignação anticolonial contra a exploração econô-
Eram nesses bairros pobres, “sem ilumina- mica do trabalhador eternamente forçado ao ir-e-
ção, sem bonde, branquejado pelo areão das du- vir do investimento capitalista e da seca. Se antes
nas”, que Mário encontrará o catimbó, seus mes- levavam o migrante para o Norte inundado de bor-
tres e feiticeiros. Centros de uma cultura alegre da racha, agora o impeliam para o Sul industrial. Se
cidade, exterior, informal, móvel, imperfeita, car- para os sulistas era bom, a seleção depauperava o
navalizada, sugerindo alteração nas relações entre Nordeste, alienando a região de seus moços fortes
o popular e o moderno, revelando uma arte viva,
e arranjados, que se desnudavam até do sentimen-
a comunhão com o público, prescindindo de ca-
talismo ao partirem. Na usina de sal, a remuneração
tegorias eruditas.
“custa bem a gente distinguir o que seja crime nes-
Encantamento estético que de resto não des-
ta sociedade em que vivemos” (Idem, 18/1/1929);
denha da crítica social: pois “se saúde, facilidade,
bem-estar fosse deduzível da alegria, o proletário nas estradas, retirantes; “a viagem virou desgraça-
nordestino vivia no paraíso” (Idem, 1/1/1929). E da” (Idem, 19/1/1929); Euclides da Cunha estava
se não é o caso, há que se conhecer melhor o seu errado, “não se trata de heroísmo não. Se trata de
mundo e não apenas as suas obras de cultura. Por miséria” (Idem, 21/1/1929).
vezes, a apresentação dos meios e dos quadros Também na Paraíba, a estadia foi prioritaria-
de vida da população pobre aos leitores paulista- mente dedicada ao trabalho. No dia seguinte à sua
nos será minuciosa: chegada, A União revelou saber os seus motivos:
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“Fiel ao seu programa de idéias o ilustre intelectual Quanto ao Recife, porto de desembarque e
paulista veio ao Nordeste com o fim de coligir mais de embarque no Nordeste, surgiu no roteiro na
documentação para sua obra do folclore musical do chegada e na saída. Já no dia 10 de dezembro de
Brasil”.33 E de fato, pelas notas de viagem, os pas- 1928, o poeta Ascenso Ferreira lhe esperava no
seios pela cidade, por Tambaú e o centro, quase so- cais. Ponto final da cabotagem, marcava reinício
mem meio ao trabalho intenso e reservado, alterna- de viagem de trem, de carro, em terra firme ou
do com algumas saídas de reconhecimento pelos pés no chão. Sem demora, deixava-se para trás a
bairros populares como o Róger e Cruz de Alma, lesma de vapor. Em nenhuma ocasião, a vista da
para ver lapinhas e caboclinhos. Demorou até to- cidade desde o mar mereceria comentário. Nem
mar contato com a cidade. A novidade desta vez foi agora, nem antes quando a caminho da Amazônia
o patrimônio histórico: em 1927. À diferença de Vitória, do Rio de Janei-
ro, da Bahia, à distância talvez a cidade não sus-
[...] chego no pátio de convento de S. Francisco e citava curiosidade (A. Costa, 1928). Já na viagem
paro assombrado. [...] Do Nordeste à Bahia não de 1927, resumira-se no horizonte a figura de As-
existe exterior de igreja mais bonito nem mais censo Ferreira, autor de Catimbó em pessoa, e de
original que este. E mesmo creio que é a igreja Joaquim Inojosa, promotor do futurismo no Nor-
mais graciosa do Brasil – uma gostosura que nem deste, conhecido de Mário desde os tempos de
mesmo as sublimes mineirices do Aleijadinho Klaxon, autor do manifesto A arte moderna pu-
vencem em graciosidade (Idem, 30/1/1929).
blicado no Recife em 1924. Com eles, foi “Recife
e mais Recife dia inteirinho, aliás muito prazer” (O
A edificação colonial desperta agora o críti- turista aprendiz, 15/5/1927). Sabemos que na-
co que lê a obra. Arquitetura, pintura, escultura, quele único dia de 1927 passou a manhã em Boa
talha, azulejaria, João Pessoa devolvia ao folcloris- Viagem, tomou água de coco gelada, almoçou no
ta a vocação do historiador crítico à procura da Leite, ouviu versos na casa de Ascenso, jantou
singularidade, da autenticidade, das atribuições, no Leite, “fatalidade recifense, como o Butantã
filiações, técnicas. paulista”, e de noite, “Boa Viagem, ao luar subli-
Bem maior do que Natal, a cidade lhe pare- me”. Pendulando entre a praia e o restaurante do
ceu bem menos compreensível: “das mais enig- bairro de Santo Antônio, no meio do passeio a
máticas que já encontrei, e não sei resolver se é poesia: o passeio, a companhia, a poesia e a fadi-
bonita se é feia”. Apesar de recebido e conduzido ga, a isso resumiu-se o primeiro dia do turista no
por intelectuais ligados à revista Era Nova, Joa- Recife. O segundo foi só na volta do Norte, e no
quim Inojosa, José Américo de Almeida, Ademar dia 8 de agosto Mário encontrou o Recife “num
Vidal, Silvino Olavo, a distância certamente inter- sol esplêndido”. Saiu com os companheiros de
feriu na fruição. Cidade velha e nova, colonial e bordo, entre os quais certamente Olívia Guedes
moderna, desmantelada e sem o aproveitamento Penteado e as duas adolescentes. Foi ver o peixe-
urbanístico das perspectivas. Observação perti- boi – no Parque Amorim, e não no Derby, como
nente de quem a visitava em tempos de sanea- se sabe – para despedir-se talvez das correntes do
mento e obras no porto, que atingiam desmesura- Amazonas. Jantou outra vez no Leite e, uma vez so-
damente o tecido tradicional, abrindo, alargando, zinho, pôs-se a buscar Inojosa. Nada dele, nada de
extendendo ruas e avenidas, desapropriando e Ascenso. Sabe-se que este também o procurou na-
demolindo prédios históricos e até igrejas como quele dia – que “teve a decepção de não ver você”,
a do Rosário dos Pretos e a de Nossa Senhora da escreveu-lhe Manuel Bandeira dias depois34 –, que
Conceição (Trajano Filho, 2003). O resultado era começou a chuviscar fino e frio e que, sem di-
visível ao turista: pouco verde, condução difícil, nheiro, desencontrando-se do amigo, deu com o
calçamento antiquado, antigüidades arquitetôni- rio. Voltou em sentido contrário e, de repente,
cas esplêndidas misturados a edifícios novos, mo- deu com o rio de novo. Já não sabia para que
cambos e bairros operários “desruados”. lado ir. Perdera-se no centro daquela cidade de
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quase 400 mil habitantes. O centro estava deser- do fazer nas diferenças de desenho e execução,
to, sentia frio, homens retardatários passavam: em suas marcas de contraste. Atitude emancipada
“Penso que vêm me prender. Não, vêm me roubar. do crítico que ali confirmava o interesse da arte
Dou uma risada alta. Os homens me olham meio franciscana do Nordeste, em contraste com o si-
assustados” (Idem, 8/9/1927). Típicas experiên- lêncio ante a pintura modernista então nascente.
cias de estrangeiro, o passeio tropical e a aflição Mais do que isso, fosse em Olinda, em Iga-
do extravio, não houvessem sido motivadas pelas raçu ou no Recife, a cidade era principalmente
afinidades modernistas anteriores à expedição et- pontuada pelos monumentos ainda mal cataloga-
nográfica. Turista recatado e dócil, a cidade não dos de arquitetura e arte sacra do período colo-
fazia sentido sem seus amigos. Cais e Leite, rio de nial. O admirável convento de São Francisco, o
um lado, rio de outro, água de coco e peixe boi, bem inferior mosteiro de São Bento e a Sé em
praia e rua deserta fundiam-se à experiência do Olinda, essa “merda exterior”, a pobrinha São
encontro fraternal, tanto mais nesta cidade tida, Cosme e São Damião e o maravilhoso São Fran-
como São Paulo para ele em 1920 (Lopez, 2004), cisco em Igaraçu, a Conceição dos Militares, com
por não se entregar imediatamente ao estrangei- o luxo barroco e notável painel historiado de
ro: seu melhor encanto consistindo “mesmo em Guararapes, a magnífica igreja do Carmo, os pai-
deixar-se conquistar aos poucos” (Freyre, 1964). néis magistrais da Madre Deus, no Recife, interes-
se menos de turista que de preservacionista, em
plena era de remodelação. Depois da escandalo-
O turista como crítico: sa demolição da Igreja do Corpo Santo do Recife
arte e sociedade (Lubambo, 1991) e da recente desfiguração da Sé
de Olinda e da matriz de São José – reformadas à
No dia 10 de dezembro de 1928 hospedou- “gótico de fancaria”, safadezas de restauração
se no modesto Hotel Glória, na rua Nova, bairro eclética no dizer daqueles que então se preocupa-
de Santo Antônio, plena cidade maurícia; almoçou vam com o caráter da cidade35 –, era de se preo-
com Ascenso e sua esposa Stella Gris, visitou igre- cupar com os velhos templos. O alerta vinha de
jas, tomou água de coco e encontrou Inojosa. O Manuel Bandeira, que dias antes saíra no jornal
jantar foi na casa do poeta, com Manuel Bandeira, dirigido por Gilberto Freyre em defesa da igreja
que chegara em Recife havia quase um mês. À da Madre Deus: “as ruínas apenas entristecem.
noite sairia em passeio pelas “partes velhas de Re- Uma restauração inepta revolta, amargura, ofen-
cife”, certamente acompanhado dos anfitriões per- de”; que se deixasse a Madre Deus em seu canti-
nambucanos. Já nesse primeiro dia, saltou aos nho de cais, “ela que não atrapalha o tráfego ur-
olhos as velhas igrejas e os conventos da cidade, bano, que não aparece aos turistas em trânsito”
que, até mais do que na Paraíba, iriam lhe roubar (Bandeira, 1928b). A questão tinha alcançado tal
muito tempo. Perambulando pelo centro histórico, repercussão que mesmo um engenheiro como
atravessando pontes e freguesias, becos e traves- José Estelita, desde cedo vinculado aos maiores
sas, entraria em cada largo, cada pátio, claustro e inimigos dos templos coloniais, à engenharia por-
interior de igreja, para ver seus azulejos, mobília, tuária e à técnica urbanística, que seria elevado na
altares, entalhes, imagens e principalmente sua década de 1930 à liderança profissional da impor-
pintura. Na Ordem Terceira de São Francisco, no tância do paulista Prestes Maia, no mês seguinte
Recife, no Convento de São Francisco, em Igaraçú, partiria contra os furores modernistas (Estelita,
no Convento de São Francisco de Olinda (O turis- 1929). A campanha jornalística no Recife era então
ta aprendiz, 19/2/1929) desde o início os pintores capitaneada por Freyre em A Província: Defender
lhe entusiasmaram: “talvez os melhores da Colô- as igrejas aliava-se à defesa do Recife “sujo de ve-
nia” (Idem, 11/12/1928). É notável como o conta- lhice”,36 de seus becos mouriscos, dos arcos da
to com o passado, ao lado da comoção habitual, Conceição e de Santo Antônio, do cais da Lingue-
foi traduzido nos termos de um reconhecimento ta, das velhas gameleiras. Tratava-se na verdade
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de preservar toda uma ambiência imaginária e ta e acolhedora da flâneurie tropical.40 Tratava-se


evocativa de modo a impedir o desenraizamento de uma entre as várias heranças da boa cidade
dos nativos37 em favor dos urbanistas. Para estes, que as décadas pós-Vauthier e Pereira Passos ha-
o novo Recife era viam descartado. O fato é que Mário e Bandeira,
ao lado de Gilberto, empenharam-se em fotogra-
Uma delícia de regularidade. Um Recife geométri- far a experiência fluvial e as cenas ribeirinhas que
co como um jardim do Loire. Casas dispostas
dali descortinavam. As de Bandeira, sabemos que
como um menino dispõe soldados de chumbo
não prestaram. Das de Mário, conservam-se algu-
para batalhas de brinquedo: em fileiras regulares
e hirtas. Árvores aparadas igualmente como o ca- mas cenas urbanas, da rua da Aurora, no encontro
belo em escovinha dos órfãos e dos presos. As dos rios. Foram essas as impressões registradas:
ruas todas da mesma largura. Nenhuma rua torta.
Nenhuma igreja a quebrar a linha reta das ruas.38 [...] passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilho-
so, com vista da cidade, depois dos arrabaldes, o
Com “suas avenidas orgulhosamente moder- da Madalena, com os velhos cais das vivendas
nas”, a cidade estava ameaçada de perder a fisiono- das famílias ricas antigas, alguns deliciosos de
mia de origem: “não sei quais as linhas do plano monumentalidade simples, os coqueiros sempre
espantados. [...] Voltamos numa conversa mais
Agache para a remodelação da cidade. É de dese-
baixa, recontemplando em azul-negro de dese-
jar que não dêem gordura ao Recife. Ela deve con-
nho, a paisagem colorida de já-hoje (O turista
tinuar magra, reservada e difícil” (Bandeira, 1928a). aprendiz, p. 347).
Não obstante o intenso debate local do ur-
banismo (Moreira, 1994; Pontual, 2001; Outtes, A nostalgia que inspirava a expedição ali-
1991; Lira, 1995, 1997), afora o cuidado com as mentava a imaginação.
igrejas, Mário de Andrade não teria muito a dizer Mas, ao longo do Capibaribe, como em toda
sobre a cidade. Ao ar livre, foi quase lacônico. É parte, também os mocambos lhe desviaram a
verdade que fotografou muito: em uma das fotos atenção do trabalho e dos amigos para a cidade.
pôs a legenda – “Beco menor do mundo, Recife,
Posou na frente de algumas dessas casinhas de
12/12/1928”; na estadia de fevereiro registrou o
palha de Boa Viagem com Ascenso e Inojosa em
bairro do Recife, a praça do governo, a rua Nova,
1927. No ano seguinte, a caminho de Igaraçú, re-
o largo de São Pedro em Olinda, tendo conserva-
parou-as nas bordas da estrada, evoluções do mo-
do também inúmeros cartões postais com vistas
cambo (Idem, 11/12/1928), que produziam varie-
panorâmicas da cidade à beira-rio.39 Só uma vez,
dade e graça. Mas foi no passeio de carro em Boa
em Igaraçu, com Ascenso, é que se mostrou sen-
Viagem na noite seguinte que as luzes improvisa-
sível à forma urbana: “A gente desemboca num
das dos mocambos lhe causou sincera comoção:
passado evocador e segue mais ou menos assus-
reflexos
tado por aquelas ladeiras, ruas tortas, praças oca-
sionais, nascidas duma fantasia de arruamento,
[...] que nem fachos revirados. A imagem ficou
bem de gente com vagar” (O turista aprendiz, ruim... Não são fachos não; é mais a água doen-
11/12/1928). Contudo duas situações urbanas te chupando tudo, chupando a vida da luz, chu-
despertaram-lhe do passado: a vista da cidade pando o sangue das gentes habitando aquilo,
desde o rio, e os mocambos de praia, beira de es- como quem se aboleta no socavão da morte... pra
trada e beira de rio. Já na tarde do dia 12 de de- viver. É triste, bem triste... (Idem, 12/12/1928).
zembro de 1928, Mário foi levado por Bandeira
para um passeio de lancha pelo Capibaribe com Gil- A visão turvada pela cena, o fôlego dissipa-
berto Freyre. A bem da verdade, o passeio fluvial do pediam explicação. É notável que Mário tenha
tornara-se um gesto de resistência ao urbanismo de sabido nesse ponto se afastar das posições incen-
boulevares e avenidas, na mesma linha de valoriza- diárias e românticas assumidas localmente na
ção dos benefícios da sombra fresca e da rua tor- querela dos mocambos que atravessou a década
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 157

de 1920, mobilizando a opinião de homens da brisas, linhas de catimbó e Marias Joanas, Bois e
terra como Gilberto Freyre, Mário Sette, Salomão mãos de vaca, empadões de pitu e fortes verdes
Filgueira, Eduardo de Moraes, ou visitantes como e azuis. Tendo começado a estadia final de quase
Ribeiro Couto, Nestor de Figueiredo, Alfredo Aga- duas semanas no meio de frevo, serpentina, co-
che ou José Mariano Filho, que se dividiam na caína e éter, Mário agora se despedia da cidade
condenação e no elogio dos mocambos:41 “foi a com “um último passeio sentimental, a pé” por
atração da cidade, foi essa coisa infeliz”, Recife, “a suas pontes e cais. No dia 21, já acordava em Ma-
praça linda do nordeste abicada no entresseio do ceió. Uma notícia do crítico musical Ernani Braga
Capibaribe e Beberibe, contavam tanta coisa no Recife dá conta do peso de sua bagagem:
dela!... Tinha cada igreja, Deus! Era ouro só... [...]
Tudo fácil, médico, dinheiro, tudo fácil” (Idem, [...] volta a São Paulo levando mais de oitocentos
12/12/1928). Atrativos e facilidades de centro me- temas colhidos diretamente no rio Grande do
tropolitano na região das secas que tinham força Norte, na Paraíba e aqui em Pernambuco. [...] É
insaciável. Visita cidades e sertões, engenhos e
encantatória, sortilégios que iludiam os retirantes,
mocambos, igrejas e antros. Conversa com acadê-
forçados a se aboletarem “na barra da cidade” em
micos, ouve trovadores populares, discute com
mocambos tão desgraçados, nunca pitorescos, os intelectuais, observa os tipos de rua. Onde
quanto a seca e a miséria dos arranchados à bei- possa suspeitar um filão precioso, lá estará, firme
ra dos açudes federais. e atento, sem medir tempo, distância ou sacrifí-
É provável que a diluição das imagens urba- cio. É de uma resistência milagrosa.42
nas no universo pictórico das igrejas, na imobili-
dade dos claustros, altares e sacristias, no deslo-
camento de automóvel e lancha reverberasse em Itinerários de civilização e dois
sua atitude de contemplação e recolhimento. Si- contrários
nalizando talvez uma predileção na viagem etno-
gráfica pelo que contradizia e não resolvia o pro- Qual o fio condutor das viagens de Mário de
cesso de modernização e urbanização. No Recife, Andrade pelas cidades do Nordeste? O propósito
este humor chegaria ao abismo, e a entrega final etnográfico de estudo das danças dramáticas são
do turista ao carnaval, à embriaguês, à droga e ao o mote, e lhe conduzem em toda parte rumo ao
êxtase na cidade parece até um remédio, uma povo comum, às suas manifestações de cultura e
consolação. Pois o Recife para tal tinha alegria, mas também a seus lugares de moradia,
hábitos, meios de vida e formas de trabalho. Tal
[...] uma invenção maravilhosa: o frevo. [...] Caí o elemento mais contínuo ao longo de toda essa
nele. Aprendi o Passo (reparem a maiúscula). viagem: a coleta e o aprendizado junto ao povo.
Nunca me ri tanto e gozei a felicidade de reconhe-
Isso é particularmente evidente entre Natal e João
cer que ante o convite rítmico-dinâmico do Passo,
desapareciam até as conveniências do meu tradi- Pessoa, e nas incursões pelas matas e sertões fica
cional artritismo paulistano” (Idem, 16/2/1929). a impressão que o predomínio da razão etnográ-
fica também será responsável pelo tom lúdico,
A queda por demais na frevoeira, o entregar- afetivo e crítico do que relata. Mas a vivência das
se aos porres e às loucuras com Ascenso e Cícero cidades produz diferenças bem marcadas. Em
Dias, a busca frenética dos maracatus depois das João Pessoa, a herança artística e o patrimônio co-
cinzas, emergiriam inclusive nas mil fugas e entra- lonial se apresentam em seu itinerário e condu-
das pelos arredores do Recife e na Zona da Mata. zem o viajante de volta ao mundo europeu, que
Consolação e convalescença. Os engenhos Bata- se no Nordeste desperta algum interesse, ao con-
teira e Martinica, Escada e Cabo, Boa Viagem e trário da Amazônia, é ali posto entre parênteses
Olinda, idas e vindas que embaralhavam em pon- na ótica do erudito. Em Mamanguape, Igarassu,
to de despedida os sentidos dessa cidade miserá- Olinda e Recife, os marcos monumentais dão as
vel, redimindo-se do turista com seus cantares e principais balizas da viagem. É interessante perce-
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ber que entre essas cidades há uma gradação. Na- colonial e popular, que efetivamente cedia no
tal é aconchegante, democrática, aprazível, mo- avanço em toda parte ante os embelezamentos,
derna e popular. João Pessoa, indefinida entre o os melhoramentos, as higienizações e as moder-
antigo e o novo, pede ao visitante uma atitude nizações das poucas e grandes cidades brasileiras.
mais reservada, preventiva. Recife, metrópole re- O que devia ser um problema para seus promo-
gional abarrotada de riquezas de outras épocas, tores e visitantes. Não só numa Recife, onde ape-
tradicional, hierárquica, mais complexa, suscita ao sar de seus fundamentos serem “devidos ao gênio
mesmo tempo desnorteio e indignação, sentimen- marítimo dessa raça de amphibios, a gente hollan-
tos que apenas os dias de torpor, carnaval e in- deza” (Dias, 1904), a colonização portuguesa ha-
tensa confraternização pública poderiam abafar via sacrificado “toda noção de higiene arquitetu-
no viajante. É lógico que em toda parte é decisi- ral” (Orlando, 1908, pp. 58-59), mas também em
va a afinidade dos amigos cicerones, que selecio- uma Natal, onde no começo do século XX a his-
nam os lugares e objetos e ajudam a compor seus toriografia e a corografia da cidade revelavam
circuitos. Mas a atitude vagueante do estrangeiro atraso, acanhamento e mesmo irrelevância desde
escapa aos imperativos convencionais. Mário no- a colônia.43 É sintomático que ainda em 1924 um
vamente ataca as representações colonialistas, viajante potiguar na Paraíba tenha procurado na
ilustradas e românticas que se espalham pelo Bra- cidade justamente aqueles ícones de modernida-
sil civilizado, indiferentes aos sofrimentos reais de de celebrados pela administração Guedes Pereira,
seus habitantes. Incide também contra um concei- o “Pereira Passos paraibano”.44
to de viagem como regresso ao maravilhoso, ao O itinerário de Mário de Andrade no Nordeste
bárbaro pitoresco, aos exotismos tropicais até o fi- andava em outras direções, pois justamente ilumina-
nal do século XIX (Leite, 1996), praticando o à- va os objetos que as imagens oficiais e comerciais
vontade, a descontração, a liberdade na tentativa há muito vinham insistindo em suprimir das cida-
de confundir-se com o outro. Por isso foge tam- des. Ainda em 1927, 1928, 1929, o viajante precisa-
bém ao turismo em sua forma mercantil, tantas va aprender a driblar as boas maneiras turísticas, os
vezes ironizado ao longo da viagem, na sua pres- exemplos e guias de viagem disponíveis nessas
sa e fixação do estereótipo para inglês, na sua sa- cidades que apenas começavam a ingressar no cir-
nha consumista pelo que se dá por visto de pri- cuito comercial do turismo. Talvez porque a sua
meira, nos seus trajetos preestabelecidos, no seu viagem se situasse entre a missão cultural, a cam-
temor ao desvio, ao acaso, ao extravio, à entrega panha etnográfica, a visita aos amigos distantes e
às emoções, ao improviso e a solicitações locais. às terras inspiradoras, Mário tenha sido capaz não
De fato, desde o final do século XIX os iti- apenas de abarcar aquilo que bem depois se tor-
nerários turísticos na região ainda pareciam se naria mercadoria turística – a praia, as festas, o fol-
pautar pelos elementos de contemporização com clore, a comida típica, os coqueiros e a água de
a civilização européia, típicos dos circuitos habi- coco, a arte colonial e o monumento histórico –
tuais dos viajantes oitocentistas, avidamente pro- mas também de lograr, em sua fruição, transcendê-
curados ou lamentados quando não encontrassem lo na predisposição à aventura e à empatia com o
na terra estranha: “ni gondoles, ni gondoliers, ni outro, na prática do “despaisamento”. O que isso
doges, ni dogaresses” (Nery, s.d); “fortunatelly, significava para ele? Viajar incluía transitar descom-
there are forks manufactured exclusivelly for use promissadamente pelas rotas e lugares percorridos
in this process [de comer mangas] which would à procura das sensações e de incidentes peculiares,
else offer a problem to table manners and dignity” atentar para uma mudança na luz, um momento de
(Wright, 1901, p. 310). E oferecidos como atrati- cor, o brilho das coisas, as plantas e moitas, os ani-
vos pelos nativos: “um cunho europeu” (Dias, mais, um entardecer distinto, as manhãs, o vento,
1904); muito bem servida de todas as facilidades o bater do vento úmido, as frutas. Significava tam-
(Vianna, 1900). Interessante observar nesses rotei- bém compreender como viviam aqueles lá, sobre-
ros a rejeição e ao mesmo tempo a presença luso- tudo os que pareciam tão distantes de seu ponto
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de partida: sitiantes, camponeses, proletários, mi- seria marcado também pela forte presença de se-
grantes – observar como falavam, a maneira de tores urbanos,46 revelando ambigüidades no trato
contar e de sorrir, de cantar e de dançar, de andar das questões modernas de arquitetura e urbanis-
e trabalhar, de morar e cultuar. Despaisar-se era mo (Lira, 1997). A despeito, porém, da componen-
poder sentir-se em casa no outro. É verdade que te futurista (Joaquim Inojosa) ou modernizadora
Mário bem sabia que o cronista-turista do século (Amaury de Medeiros, Otávio de Freitas, Gouveia
XX não tinha mais terras a desbravar ou de que fin- de Barros, Antônio Jannuzzi) entre seus partici-
car posse. Mas, a alternativa pela incorporação do pantes, a interpretação predominante do movi-
Brasil à sua errância – pela via da cultura popular mento e de seu conceito de “tradição viva” não foi
subjacente às normatizações civilizatórias desta so- de todo estranha ao que pouco depois Mário de
ciedade profundamente desigual – tensiona as re- Andrade defenderia no Nordeste, por mais que
presentações de cidade dominantes ao longo de houvesse resistências à leitura modernista da cau-
toda a Primeira República: “civilização brasileira”, sa local: “como é que um nordestino de vida as-
pensava ele, que consistia “em impecilhar as tradi- sim vivida a poderá desprezar por um vago brasi-
ções vivas que possuímos de mais nossas” (O tu- leirismo?”,47 indagava Gilberto Freyre a Guilherme
rista aprendiz, 6/1/1929). de Almeida em sua marcha da brasilidade de 1925.
É verdade que, também na década de 1920, Sabe-se que Mário de Andrade não via com
ascendia por aquela parte do país uma atitude re- muito entusiasmo o regionalismo pernambucano,
gionalista aparentada, ainda que altamente mati- mas a julgar por seus interesses contemporâneos
zada em termos intelectuais, estéticos e políticos. uma intervenção sua no evento não teria sido in-
Algumas vezes em tênue contato com o moder- compreendida. De fato, em 1925, ele tomou co-
nismo da Semana e com as tendências mais re- nhecimento do programa do congresso e até se en-
centes em literatura e antropologia (Cardozo, tusiasmou, mas temia o aspecto desintegrante de
1985; Barros, 1975), manifestava localmente uma sua insistência nas diferenças e nas curiosidades lo-
inclinação para os valores cotidianos da cultura; cais em uma nação já tão esfacelada: “acho o pro-
tocada de pragmatismo e sentimento, e tendo grama um pouco acanhado e além de regionalista,
como pretensão resistir tanto ao ufanismo da pro- regionalizante o que é um perigo. [...] Porém de
víncia como à vaga uniformizadora da civilização, qualquer maneira que seja o Congresso é interes-
defendia a simplicidade e a diversidade dos valo- santíssimo e desejaria estar aí”.48 Não por acaso, em
res regionais brasileiros. Gilberto Freyre, nesta li- Maceió foi conduzido por José Lins do Rego; no
nha, foi o seu mais ilustre representante. Recife, por Ascenso Ferreira; na Paraíba, por José
Com efeito, entre os conteúdos programáti- Américo de Almeida; e em Natal, por Câmara Cas-
cos postulados pelo I Congresso Regionalista do cudo, o cicerone mais confiável, todos eles a seu
Nordeste, realizado no Recife em 1926, incluíam- modo integrariam o movimento. O próprio Freyre,
se coisas como o “aspecto turístico e valorização líder inconteste, desde o começo da década já vi-
das belezas naturais da região”, as “tradições da nha aprimorando a crônica regional sob o influxo
cozinha”, a “defesa da fisionomia arquitetônica das ciências sociais e do modernismo,49 afastando-
do Nordeste”, de “parques e jardins nordestinos”, se desde cedo da ótica provinciana.
do “patrimônio artístico e dos monumentos histó- Com efeito, nos “artigos numerados” publica-
ricos”, a “reconstituição de festas e jogos tradicio- dos no jornal Diário de Pernambuco entre 1924 e
nais”.45 Ou seja, muita coisa freqüentemente des- 1925, o cientista social formado por Columbia, re-
prezada parecia começar a merecer preocupação cém-chegado de seu grand tour pela Europa, bate-
oficial. Se essa nova opinião regionalista não era se por um conjunto de atributos característicos do
imune ao conservadorismo – e ao ânimo separa- torrão natal. “Venho revê-lo com outros olhos”,
tista – de uma elite que se via empobrecida e anotou no desembarque em 1923, os olhos de
abandonada à própria sorte, na nostalgia do pas- “adulto viajado”. O Recife a princípio não lhe de-
sado senhorial em decomposição, o movimento saponta, mas a viagem teria lhe custado muito
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caro, não apenas o desconforto com as mudan- lhendo muita nota de possível interesse sociológi-
ças, mas a pecha de estrangeirado: co e antropológico sobre a vida da gente das mu-
cambarias do Recife”. Era assim que o estrangeiro
[...] sinto é que sou repelido pelo Brasil a que em sua terra tornava-se porta voz da origem.
acabo de regressar homem, depois de o ter dei- Em abril de 1924, Gilberto Freyre escreveu
xado menino, como se me tivesse tornado um no Diário de Pernambuco: “parece que temos vi-
corpo estranho [...] um exótico, um meteco, um
vido em duas cidades diferentes”. A da infância,
desajustado” (Freyre, 1975, pp. 127-128).
com seus cais, arcos, quiosques e gameleiras, e a
modificada pela época de “aguda transição”:
A acusação já lhe vinha sendo antecipada
pelos mestres, protetores e amigos desde os Esta- [...] uma cidade que parece estrangeira. Eu por
dos Unidos e a Europa preocupados com o des- mim já me sinto um tanto estrangeiro no Recife de
perdício de sua inteligência no Brasil, e particular- agora. O meu Recife era outro. Tinha um “sujo de
mente no Recife. E de fato Gilberto hesitaria. Em velhice” que me impressionava, com um místico
1924, escreveu em seu diário, “Sinto que meu prestígio, a meninice. O tempo o esverdeara todo
ajustamento intelectual no Brasil é quase impossí- de um verde que tinha o encanto de uma unção.50
vel. Experimento às vezes enorme vontade de
voltar aos meus amigos de Columbia e sobretudo Poucos os pedaços de pitoresco, os becos
aos de Oxford – de Oxford e Paris” (Idem, p. amouriscados, casas de beira arrebicada, janelas
134). Se de fato havia muito de ressentimento e enxadrezadas nesse Recife simétrico e insolente,
rastaqüerismo nos seus críticos, há na queixa uma sem mistérios e furiosamente imitativo, hostil à
confissão de inadaptado: de um lado, não consi- memória: “o Recife novo me comunica um horrí-
vel mal-estar: o de estrangeiro na própria cidade
deravam a carga de sacrifício que lhe pesava; de
natal. Doloroso tipo de ‘deraciné’”.51
outro, denunciavam a atitude cética do conterrâ-
De fato, entre a infância e o presente, a cida-
neo expatriado quanto às transformações recentes
de passara por um amplo processo de transforma-
em sua cidade e seu país:
ção de sua paisagem e engrenagens urbanas: de
[...] se não me ponho em harmonia com o pro- saneamento, com a demolição e alargamento
gresso brasileiro, nas suas expressões mais mo- de travessas e becos (Brito, 1942); no porto e área
dernas, antes desejo voltar aos dias coloniais – central, com suas ramificações ferroviárias, desa-
uma mentira – se isto, se mais aquilo, porque não propriações, demolição de ruelas, pavimentações
volto aos lugares ideais onde me encontrava? e o início da construção das novas avenidas prin-
(Idem, ibidem). cipais da cidade, desenhadas como bulevares ra-
diais, de esquinas angulosas e arrematadas secu-
O fato é que tomou a decisão de ficar e iden- larmente de zimbórios e lanterins, partindo em
tificar-se com “o que o Brasil tem de mais brasilei- perspectiva do marco zero à planície (Lubambo,
ro” – em 1924, Gilberto anotaria, “minha decisão 1991). Em 1912 e 1913, já se haviam inaugurado
está tomada: é reintegrar-me completamente no os primeiros edifícios novos, quadras inteiras
Brasil” (Idem, ibidem). Familiarizando-se com a do bairro do Recife assumindo o ar beaux-arts do
produção intelectual e artística nacional, visitando Rio de Janeiro de Pereira Passos, esta cidade sem
proustianamente engenhos e arquivos de família, fisionomia própria, que se generalizava tiranica-
viajando a Igaraçú, Olinda, Palmares, Tamandaré, mente por todo o país; em 1913, seria demolido
adentrando matas e hospitais psiquiátricos, convi- o Arco da Conceição; em 1917 o de Santo Antô-
vendo com as mulheres e a gente do povo em nio, espécie de barrière do outro lado da ponte
aventuras boêmio-sexuais e investigações etnográ- Maurício de Nassau, ela mesma reinaugurada na-
ficas – “de bicicleta, venho fazendo meu field- quele ano em concreto armado (Lira, 1997). O
work de estudante de Boas (Antropologia) e de ecletismo arquitetônico das novas casas de co-
Giddings e Thomas (Sociologia) [...]. Venho co- mércio e finanças unificadas pelo baronato local
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 161

do açúcar representa a mesma vocação de parisia- coloniais, ruas estreitas de doces sombras, a irre-
nismo de burguesia litorânea (Silva, 1987). gularidade expressiva de seus conjuntos urbanos:60
Não foi à toa que na década de 1920 o en- “isto não impede de gozar a beleza solene das
tusiasmo modernizador suscitou a prevenção e o avenidas e das longas retas; a questão, é que elas
lamento regional: não abusem do seu imperialismo”.61 O próprio
Centro Regionalista do Nordeste proporia encam-
[...] conservar uma cidade, seu pitoresco próprio, par as discussões em um tal “Mês da Cidade”, para
sua cor local, seu caráter, enfim, não quer dizer o qual Gilberto anteciparia um rol de proposições
fechar-se às exigências da engenharia sanitária sobre planejamento nos trópicos:
[...]: os reparos é que não devem exceder à cros-
ta para ferir os valores íntimos, essenciais, da
O Recife é das cidades do Brasil das que possuem
mesma paisagem”.52
maior riqueza de paisagem e de tradição local a de-
fender, a fixar, a desenvolver num tipo original de
Cosmopolitismo barato animaria essa tendên- cidade. E estamos precisamente no momento
cia de transição, diria o antropólogo; na febre do de planejar-lhe a expansão dentro das suas condi-
século despontavam o disparate, o arremedo, a ca- ções de cor tropical, dentro da sua paisagem toda
ricatura.53 Estética do “Progresso”, puro esnobismo de doces claridades, de água metendo-se familiar-
mente entre as casas, entre as ruas, em canais e
clownesco que acatitava casarões e imperava: “es-
rios; [...] ruas camaradas da gente. A necessidade
tética fazedora de mercúrios, pontes maracajadas,
delas é das primeiras urgências a conciliar com a
leões e lagoas fingidas”,54 “ramalhuda arquitetura necessidade que entre nós se aguça dos largos es-
bancária e comercial e oficial dos últimos anos [...]; paços para o tráfego pesado.62
a ganhar com vantagens de campeão irrivalizável o
“Grand Prix” de Mau Gosto”.55 Tratava-se de incorporar ao espírito de reno-
Tratava-se nitidamente de realinhar uma po- vação o zelo pelas tradições arquitetônicas, pelos
sição defensiva em sátira. Ainda que por bom sen- elementos de descontração, aconchego e adapta-
so: “sou de fato pela conservação de muita coisa ção tropical de ruas e praças; ora enfatizando o
velha do Recife [...]. Devo confessar que prefiro o patrimônio, ora os usos cotidianos em detrimento
“sujo de velhice” à tinta fresca”.56 Defesa do patri- do absolutismo da higiene e da circulação.
mônio arquitetônico colonial e da permanência
dos traçados urbanos em zig-zag; defesa dos valo-
res de espontaneidade, de acaso e intimidade con- Oriente etnográfico e a cidade
tra todo geometrismo, mas também das árvores moderna
tradicionais: “às árvores já tenho visto aplicado o
corte radical à la garçonne”57; defesa das plantas Nesse conjunto de representações que emer-
coloniais,58 das árvores próprias à região, contra a ge da atividade do cronista há, por certo, um ele-
terrível mania de reformismo, europeísmo, yankis- mento de convicção que perpassa o engajamento
mo: “Não é pois de admirar que se tenha derruba- no Centro Regionalista e no Livro do Nordeste, pu-
do tanta gameleira, para plantar figueira benjami- blicação comemorativa do centenário do Diário de
na – a indistinta, incaracterística figueira Pernambuco em 1925, no Congresso de 1926 ou
benjamina em que se vai tristonhamente estandar- no Mês da Cidade, e que antecipa muitas das
dizando a arborização do Recife”.59 O sentido ati- idéias, imagens e formulações de seu Guia prático,
vo e não puramente nostálgico de sua intervenção histórico e sentimental da cidade do Recife, publi-
na imprensa é patente no que escreveu acerca de cado em 1934. De fato a sua atuação jornalística
urbanismo. Gilberto exprimiu abertamente sua conduz o elenco de aspectos que irão constar de
oposição às máximas fundamentais da engenharia seus roteiros. Isto é patente, por exemplo, na coin-
urbana: contra o Recife da linha reta, da simetria, cidência com o temário cultural do jornal A Provín-
da regularidade, reafirmava o desleixo dos becos cia a partir de 1928: matérias encomendadas a Ma-
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nuel Bandeira sobre arte, literatura, cinema, arqui- Washington Square, em cujos sobrados de águas
tetura moderna e relíquias coloniais; a Agache, Es- furtadas, o holandês antigo dono de New York,
telita e Nestor de Figueiredo sobre urbanismo; a parece ter deixado um pouco de si próprio, como
Mario Sette, Ribeiro Couto, Eduardo de Moraes e no velho Recife. Vagando por lá imagina a gente
Salomão Filgueira sobre os mocambos; a Antônio que está no velho Recife” (Idem, ibidem). Não
Freire, Aníbal Fernandes, Estevão Pinto sobre patri- mais no Deep South que lhe evocara o Nordeste
mônio; a Ascenso, Ernani Braga, Luis Jardim sobre açucareiro, mas em plena Nova York: nem mes-
artes plásticas, música e literatura. Pouco a pouco, mo quando revisitada de passagem em 1926, sem
Gilberto Freyre ia elaborando uma nova cartogra- a nostalgia do exílio, iria perder um halo de “ci-
fia histórica e cultural da cidade. dade das mil-e-uma-noites”.65
A experiência pessoal de viajante63 não deve Foi na longa viagem pela Europa entre 1922
ter sido desprezada pelo cicerone maduro. Em e 1923 que se aguçou o estranhamento: “para um
seu diário de juventude,64 principalmente ao lon- brasileiro verdadeiramente outro mundo”. O tom
go dos cinco anos de ausência do país, Gilberto geral já era talvez de maior disponibilidade: a ma-
registrou sua aproximação ao estrangeiro para ravilhosa Paris com sua Sainte-Chapelle, o museu
além do cotidiano universitário e das leituras. No Rodin e os cafés da rive gauche amada; as carac-
Texas de 1918 a 1920, o contato com a cidade terísticas Berlim e Munique, expressionistas até na
fora motivo de indignação – pela degradação da arte de seus reclames e tabuletas comerciais; a
vida nos guetos negros de Waco – e interesse an- Londres com seu paisagismo pitoresco. Mesmo em
tropológico – pelos espanholismos e mexicanis- Oxford, onde demorou e se encontrou consigo
mos indígenas em San Antonio, por exemplo. O mesmo, “meu ambiente como em nenhum lugar já
fato é que nos breves registros de incursão ao meu conhecido”, entre chás aristocráticos e parties
mundo extra-acadêmico norte-americano, raça e a vinho do Porto, a atmosfera universitária atenua-
cultura surgiam recorrentes. Na “viagem macabra” va-lhe a matriz americana em sua formação. Em
a Dallas, a brutalidade assassina dos racistas pro- toda parte, o charme deste mundo tão profunda-
voca consternação; em Nova York, desde 1920, o mente aristocrático e tradicional quanto superbur-
clima cosmopolita o contagia – “quase a impres- guês e metropolitano o enfeitiça. Mesmo ali onde a
são de ser um tanto nova-iorquino”. E de tal passagem para o ambiente nacional se prefigura –
modo que já em janeiro de 1921 escreveu a Oli- na Paris de Vicente do Rego Monteiro, Brecheret,
veira Lima: Tarsila e Oswald; ou na Lisboa, onde circula a li-
teratura brasileira, às vésperas do retorno ao Bra-
New York está cheia de museus, bibliotecas, jar- sil – a expansão cosmopolita predomina (Freyre,
dins, monumentos, casas velhas, de eras desfei- 1975, pp. 22-125). Talvez porque a dimensão de
tas, cantos cheios de cor e interesse, onde a gen-
formação intelectual e moral do grand tour tenha
te imagina estar em terras distantes – como o
bairro árabe, com seus bazares e suas cores estri-
se imposto sobre a experiência do turismo. Talvez
dentes, o chinês com suas lanternas e os seus porque os próprios momentos de lazer, aventura e
amarelos, o judaico e outros (“Carta a Oliveira descontração tenham sido eternamente mediados
Lima, 17 jan. 1921”, em Freyre, 1978, p. 172). pela sociabilidade universitária de Baylor, Colum-
bia, Oxford ou Sorbonne. Se em suas andanças
Curiosas impressões da metrópole norte- pela Europa o viajante redescobre a diferença ét-
americana, moderna e pluricultural, que entrecru- nica e nacional como valor, o turismo ressurge em
zam bairros orientais com os roaring twenties sua dimensão de urbanidade, como aptidão cortês
desta Nova York plena de filistinismo e free love para viver no outro, como prática de deslocamen-
em tavernas, estúdios e cabarés. Oscilação entre a to cultural e aprendizagem, como entrega dioni-
paixão antropológica pelo outro e o eterno retor- síaca ao desconhecido.
no à terra natal que o conduz à referência fami- Das viagens pelo Brasil naqueles anos, pou-
liar: “Há Greenwich Village, no outro lado de co se sabe. Uma das viagens importantes neste
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 163

período foi ao Rio de Janeiro em março de 1926. [...] no Rio, o favor da natureza chega a ser um
Primeira viagem ao sul modernista, a motivação escândalo. Alastram-se os borrões da arquitetura
inicial foi política. Tratava-se de acompanhar Es- horrível. Mas vem a forte beleza da paisagem e os
tácio Coimbra, futuro governador de Pernambuco faz empalidecer, sugando-os, chupando-os, ate-
nuando-os, disfarçando-os com a indulgência ma-
e seu grande admirador e protetor, em sua despe-
ternal de um mata-borrão.67
dida do Senado. A estadia no Rio seria relativa-
mente longa, mês no qual conviveria intensamen-
Os claros azuis e verdes virgens, as praias
te com a elite política, os jornalistas e os críticos
voluptuosas e corpos morenos dos banhistas sua-
à volta de Assis Chateubriand e principalmente
vizavam os efeitos da concentração urbana e dos
com os modernistas, o mesmo círculo que acolhe
horrores arquitetônicos. Ante a publicidade hor-
Mário de Andrade em suas passagens pela cidade
rível da Avenida Central, as ruas estreitas tão va-
naqueles anos: Manuel Bandeira, em casa de
liosas em uma cidade tropical;68 ante a estética
quem eventualmente se hospedaria, Rodrigo Melo
Franco, Sérgio Buarque, Carlos Drummond, Pru- cinzenta,69 de fraque e asfalto dos engenheiros,
dente de Morais Neto, Vila-Lobos, Luciano Gallet os restos coloridos e festivos de antes de Pereira
e Jaime Ovale, “minha gente aqui no Rio, repito”. Passos, pendurados por cima do Rio novo, o
No caminho para o Rio, passou pela Bahia e es- Morro da Favela.70
creveu algo muito próximo das impressões que Se a base de sua formação de cicerone vem
Mário deixaria no percurso inverso: “Casas e igre- provavelmente dessa sua experiência de viajante,
jas trepadas umas por cima das outras – dir-se-ia o retorno ao Recife também se constitui em cui-
uma multidão a espremer-se diante de um fotó- dadosa elaboração de um roteiro pela cidade.
grafo”. Cidade tipicamente fotogênica como o Muito da plataforma regionalista será devido a es-
Rio, Salvador com seu ar mole e oleoso, era “ci- ses circuitos individuais pelo Recife e arredores
dade-mãe, cidade-ama de leite das cidades do nos anos de 1920. Seja como flâneur, seja como
Brasil, [...] de sugestões de fecundidade. Cidade etnógrafo ou anfitrião, Gilberto Freyre ia testando
gorda, de gordos montes, gordas igrejas, de casas acessos às dimensões profundas e adormecidas
gordas”, grávida de outras cidades. Bem diferente da cidade. O leitmotiv de uma história da criança
de São Paulo, onde também pouco demoraria: no Brasil ao mesmo tempo lhe animava o estudo,
“cidade feia mas simpática. Talvez se pudesse di- a introspecção e a pesquisa de campo: lia cronis-
zer com exatidão da capital paulista: feia e forte. tas e viajantes, pesquisava arquivos patriarcais,
Como o Recife, metrópole regional. Sente-se que entrevistava parentes velhos, contemplava a pai-
domina uma região e não apenas um Estado. Bre- sagem física e visitava engenhos de açúcar. Os
ve dominará o Brasil” (Idem, p. 192). field work de bicicleta sobre “a vida da gente das
Na capital federal, confirmou as impressões mucambarias”; as documentações fotográficas so-
de “sub-rococó” arquitetônico: bre tipos mestiços em diferentes bairros, subúr-
bios e interiores, sobre a vida de pescadores, so-
[...] faz pena ver o Rio – cidade de situação ideal bre as reminiscências mouriscas e ruas velhas da
– sob essa invasão triunfante de mau gosto [...]. cidade; os desenhos encomendados a Manoel
Em vez de se conservar a velha confraternidade
Bandeira, de becos, sobrados, janelas, portões, te-
da mata com a civilização, raspa-se agora o ver-
de para só destacar-se o horror de novos e inca- lhados, tipos populares; os almoços em mesas pa-
racterísticos arquitetônicos (Idem, p. 183). triarcais, restaurantes populares e banquetes de
babalorixá; a participação em sessões de xangô
A crítica fazia eco ao desprezo pela arquite- (Freyre, 1975, pp. 126, 143-144, 147, 152, 165,
tura eclética, napoleônica ou vitoriana, desde a 172, 175, 206, 224-225); tudo despertava a curio-
matriz: um “bric-à-brac” arquitetônico,66 já antevis- sidade do jovem etnógrafo desempregado. E de
to por cartão postal. O contraste entre a arquite- tal modo que Gilberto Freyre viria a dividir com o
tura e a natureza aludia à relação do borrão com irmão e amigos de boêmia uma garçonnière na
o mata-borrão: Camboa do Carmo, “nosso anexo urbano”, espé-
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cie de co-residência, de “barraca” no centro velho so cozinheiro – da toca – José Pedro tem capricha-
da própria aldeia. do em preparar para Bandeira quitutes dos mais
Ao mesmo tempo, entusiasmado com o saborosamente regionais”. Também acompanharia
exemplo de Columbia, essa dimensão de estudo naqueles anos Mário de Andrade e Ribeiro Couto.
se anuncia desde 1924 em um projeto de antro- Entre outros visitantes protocolares, recepcionou
pologia urbana que esboça no Recife: também o urbanista francês Agache, a quem ofe-
receu jantar em sua casa de solteiros, de novo
[...] um estudo total de uma rua típica do Recife. “preparado por José Pedro com sua melhor arte
[...] Um estudo da vida íntima da rua. Um estudo
de mestre-cuca. [...] Os Agache ficaram encantados
antropológico, psicológico, sociológico do seu
conjunto: casa por casa, sala por sala, quarto por
com nossos jacarandás. Já conheciam os da casa
quarto, habitante por habitante. Atitudes e relações da nossa família, na Rua do Cotovelo” (Idem, p.
com outras ruas. Observação, mensuração, inter- 220). É natural que a questão da hospedagem o
pretação através de uma participação intensa de preocupasse. Tanto que em 1929 diz ter guiado
observador na vida observada (Idem, pp. 160-161). Alfred Agache “ao lugar que ele aprovou como
ideal para o futuro Grande Hotel do Recife – es-
A partir de 1928, com a reforma do ensino colha minha” (Idem, p. 236). Em suma, na oscila-
na Escola Normal que introduziu a cadeira de so- ção entre a distância cosmopolita e o mergulho no
ciologia em Pernambuco – “eu preferiria que fos- local, entre a antropologia e o regionalismo, a dé-
se de Antropologia Social, [...] antigo aluno de cada de 1920 representara para Gilberto o desper-
Boas” –, o estudo da cidade ganhará em sistema- tar para o interesse turístico do Recife, o que é vi-
ticidade, base estatística e pesquisa de campo, sível na montagem do Guia.
ampliando-se inclusive as suas fontes metodológi-
cas para autores como Rivers, Thomas, Morgan,
Wissler, Tylor, Von Wiese, Simmel, entre outros
O cicerone como sedutor:
(Idem, pp. 207, 221, 225). Ao que parece, a moti-
vação na ocasião era, sobretudo, pedagógica, e se
cidade e cultura
aplicaria ao conhecimento de grupos ameríndios
Desde 1925, por ocasião da morte de Fritz
do interior, brasileiros negros do Recife apegados
Baedeker, Gilberto Freyre notara a insuficiência dos
à cultura africana, de meninos e suas brincadeiras
roteiros turísticos disponíveis: com sua morte, dizia
na cidade, grupos de vizinhança.
Se no início era freqüentemente acompanha- ele, desaparecia uma instituição, os Guias Baede-
do por cicerones em suas aventuras etnográficas – ker, “especie de numetutelar dos turistas. Uma
a boêmia jovem no caso da cidade, Pedro Para- como governante allemã em ponto grande dessas
nhos no interior – logo também surgirá o anfitrião. crianças ricas, também em ponto grande, que são
Em 1924, ou 1925, recebe Francis Butler Simkins, os viajantes. Principalmente os que viajam ‘não
colega de Columbia, nascido fidalgo na Carolina para ver mas para ter visto’”.72 Bom e fiel amigo
do Sul, que se hospeda com a família e é condu- para muitos, pai de numerosa literatura de viagem,
zido por Gilberto a engenhos do interior. Em 1926,
[...] vi Baedeker guiando turistas ruidosos atravez
recebe o alemão Rudiger Bilden e esposa, amigos
de cathedraes; vi Baedeker levando viajantes a
de Nova York, que se hospedam em sua garçoniè-
hoteis, a museus, á abbadia de Westminster, ás
re, a caminho do sul para uma pesquisa de um fontes de Versailles. Uma tarde na Sainte Chapel-
ano sobre a escravidão no Brasil. Também circu- le, surprehendi umas creaturas sul-americanas
lam com o Coronel Pedro Paranhos por canaviais que somente a tyrannia germanica de Baedeker
e casas-grandes.71 Sempre em casa, recebe também teria levado a similhante logar.
Manuel Bandeira, que antes o recebera em Santa
Teresa: em 1926 e em 1928, na “toca do regiona- Mas havia um tipo de viagem para quem o
lismo”, a casa de seu irmão em Casa Forte – “nos- velho Baedeker pouco ajudaria: a viagem que
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acabava de empreender, “de um mundo ao outro. tes: jornais pernambucanos, a revista do Instituto
E o “outro” não é nenhum dos da veneranda “Re- Arqueológico, crônicas históricas, livros de viajan-
vista dos Dois Mundos”. tes e diários de família.
Se a morte de Baedeker não passara desper- O destinatário é pronunciado: o viajante, o vi-
cebida, as diferenças na concepção da viagem tor- sitante, o turista ocupam cada página. Também a
nar-se-iam evidentes quando Gilberto iniciasse o atitude do cicerone se entrevê na maneira como
seu projeto de guias de cidades brasileiras: o pri- a ele se dirige: “o visitante não deixe de ir”, “o tu-
meiro, para Recife; em 1939, um outro para Olin- rista prove”, “lembre-se o turista que”. Abre-se a
da. Em pós-escrito ao Segundo guia prático, histó- ele já na ocasião do desembarque:
rico e sentimental de cidade brasileira, situou a
novidade de seu empreendimento, anterior inclusi- [...] o viajante que chega ao Recife por mar, ou de
ve à “magnífica American Guide Series” (Freyre, trem, não é recebido por uma cidade escancara-
1960). Também trabalho de escritor desemprega- da á sua admiração, á espera dos primeiros olhos
gulosos de pittoresco ou de cor. Nenhum porto
do, os seus Gilberto aproximava menos dos guias
de mar do Brasil se offerece menos ao turista.
de turismo convencionais,73 do que das monogra- Quem vem do Rio ou da Bahia, cidades francas,
fias de regiões e cidades, com a diferença de que scenographicas, photogenicas, um ar sempre de
o conteúdo histórico e sociológico era literariamen- dia de festa, as igrejas mais gordas que as nossas,
te trabalhado e acrescido de informação prática. casas trepadas umas por cima das outras como
A redação deve ter sido rápida, pois em de- grupo de gente se espremendo pra sair num re-
zembro de 1933, o mesmo ano em que disse tê-lo trato de revista, uma hospitalidade facil, derrama-
da – talvez fique a principio desapontado com o
redigido, havia publicado Casa-grande & senzala.
Recife. Com o recato quase mourisco do Recife,
De fato, as últimas páginas do Guia revelam pre-
cidade acanhada, escondendo-se para traz dos
cipitação. Se o ritmo geral é o da sedução, aco- coqueiros, e angulosa, as igrejas magras, os so-
lhendo e conduzindo o leitor vagarosamente pela brados estreitos. Cidade sem saliencias nem rele-
cidade, há uma visível aceleração da narrativa no vos que deem na vista, toda ella num plano só
final, que arremata o assunto impaciente, insolita- (Freyre, 1934).75
mente, como se soubesse a impossibilidade de es-
gotá-lo, inevitavelmente deixando algo de lado. As Apresentada à distância, o cicerone enuncia
dicas finais de locomoção – obrigatórias em todo um “caráter”: mourisca e recatada, plana e arbori-
guia anônimo – têm a graça de um assunto que se zada, com suas igrejas e sobrados magros, a sua
esvai em reticências. Decididamente é um guia de força de sedução é remetida ao mistério. Mas se a
autor, menos prático que histórico e sentimental, chegada por mar ou terra não tem nada de em-
que se dirige a um viajante culto e se exprime em polgante, a perspectiva aérea de avião ou Zeppe-
um estilo inconfundível para propor ao forasteiro lin é mais alegre, colorida pelas grandes manchas
uma determinada leitura do território descortinado. verdes e azuis de água. Cruzamento cubista de
Publicado no Recife em 1934, o guia é ilustrado ângulos que logo mostrará a relatividade das im-
por um rico conjunto de imagens74 e colorido à pressões. Fenomenicamente, no Recife, o “melhor
mão por Luís Jardim. Na capa já se anuncia uma encanto consiste mesmo em deixar-se conquistar
chave interpretativa: a aquarela retrata um pátio aos poucos. É uma cidade que prefere namorados
de igreja recifense, com seus sobrados multicolo- sentimentaes a admiradores immediatos”. Como
ridos, a linha do horizonte marcada por uma si- nas aproximações galantes, também do turista
lhueta de telhados e torres e o mar ao fundo; na exige-se vagar, medida, lento desvelar.
folha de rosto, a gravura situa o bairro de São José, Em sua primeira edição, o Guia é um ensaio
o cenário assobradado completando-se no punha- contínuo, de prosa ritmada, o vagar descontraído
do de mocambos e casas térreas em primeiro pla- e sinuoso por seus objetos sugere um percurso
no, típicas do bairro operário. Revisado por alguns variado pela cidade: da presença histórica france-
dos jovens discípulos, o autor informa as suas fon- sa, o autor nos conduz aos marcos da civilização
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européia fixados no século XIX; do refinamento rários pelo centro histórico da cidade: da igreja do
francês, leva-nos ao fausto das festas urbanas, Rosário à de São Pedro, daí à igreja do Livramen-
como as da Semana Santa, suas procissões, ando- to e à do Terço; do convento de São Francisco ao
res e confrarias, muitas das quais – avança o nar- da Penha, ao do Carmo e à igreja Madre Deus; da
rador – responsáveis por hospitais e instituições igreja da Conceição, a de Santo Antônio etc.: se
de assistência, algumas das quais podem ser úteis “não há no Recife nenhuma maravilha de arte re-
ao viajante conhecer; das obras de igrejas e dos ligiosa”, se “o barroquismo romântico exprimiu-se
sineiros negros de Domingo, o itinerário se alon- aqui nuns avontades deliciosos”, num “encontro
ga pelo circuito de arquitetura religiosa. É nos íntimo de espontaneidade”, “fácil de sentir mas di-
meandros da narrativa histórica que a cidade apa- fícil de interpretar”, compreende-se que a visita às
rece ao viajante, sensual, plástica, imprevistamen- igrejas seja entremeada de passeios por seus bair-
te. Em linhas gerais, poderíamos dividi-lo em al- ros tradicionais, populares como São José ou aris-
guns grandes roteiros que se escalonam e se tocráticos como Casa Forte, espécie de evasão
entremeiam na escrita. As primeiras páginas do rumo a seus entornos cotidianos e sentimentais.
Guia remetem à crônica da presença estrangeira Da história da arte à história da cidade, as igrejas
na cidade: do pirata inglês James Lancaster no sé- do Rosário e de São José do Ribamar, por exem-
culo XVI ao fitopatologista alemão Konrad Guen- plo, conduzem o visitante ao folclore. Talvez um
ther no século XX – para quem experimentar o terceiro itinerário, pelo qual Freyre leva o turista
cair da noite tropical “foi como se tivesse recon- ao africano brasileiro: a música, as festas e os ma-
quistado uma amante” – o cicerone cortês evoca racatus levam o turista aos subúrbios pobres e
a contribuição e as impressões históricas dos visi- xangôs, “uns, em mocambos a sombra de grandes
tantes. Recomenda o destino turístico pelo teste- gamelleiras ou entre coqueirais. Outras em casi-
munho autorizado dos antecessores e ao mesmo nhas de barro sumidas na mocambaria do Fun-
tempo acentua a heterogeneidade e o hibridismo dão”; aos lugares mal-assombrados, ao jogo do bi-
étnico, religioso, social e cultural da cidade. Tra- cho, à medicina caseira. É precisamente pelo
interesse cultural que se valoriza no Guia também
tava-se de facilitar ao visitante a apropriação da
a vida dos trabalhadores braçais: carregadores de
cidade, coisa que Freyre viajante conhecia muito
piano, de sacos e fardos com seus cantos de tra-
bem: “Cheguei a amar Munich por me lembrar
balho; pescadores e suas lendas de mar, sua ado-
dos nossos arcos diante dos seus arcos” (Idem).
ração às águas e aos astros, suas jangadas – “de
Do passado, o dado trivial, próprio aos deleites
uma simplicidade tal que só sendo de povo primi-
sem compromisso: um “Recife romântico” apre-
tivo – dos povos que os anthropologistas chamam
sentado ao turista sem a solenidade do compên-
primitivos”. Cultura como fator de mobilidade e
dio e da erudição, de que “todo viajante que se
hibridismo, não por acaso é neste ponto do livro
presa foge prudentemente, com as valises toma-
que surgem as praias, revelando a riqueza da mes-
das pelos objetos de uso, pelos frascos de saes,
tiçagem; que surge o carnaval, com seus traços
pelos romances leves”. Tece-se, assim, uma ge-
africanos misturados às brincadeiras européias.
nealogia do turista contemporâneo: herdeiros de
Presença européia que abre o livro, cenário
ingleses, “históricos viajantes”; de holandeses; de
colonial que perdura na arquitetura católica e su-
norte-americanos sempre em missões; de france-
burbana; cultura popular como sincretismo visí-
ses, pirateando e civilizando; de chineses, italia-
vel na religiosidade, na cor da pele, nas festas tra-
nos, alemães. De todos eles, retendo contribui- dicionais, o roteiro introduz um dos elementos
ções, ainda que perdendo muito “do seu mistério dominantes na caracterização lírica e geográfica
mourisco” à medida que urbanizava e europeiza- da cidade: oriental, recatada, mas também femi-
va, como notaria o autor em Sobrados e mucam- nina e aquática:
bos (Freyre, 1936) dois anos depois.
Um segundo roteiro leva à arte barroca e à [...] raras cidades como o Recife com tanta água.
arquitetura colonial, verdadeiras balizas aos itine- Dois rios, um deles vindo dos sertões aqui se en-
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 167

contram, dividem a cidade em ilhas; e a maré pélago de culturas, o caráter de suas ruas e bairros
vem quase dentro das casas, aos quintais. [...] confirmando também o elogio do mocambo.
Irmã água. Não água parada mas água viva. Já O final do percurso conduzia à informação
Joaquim Nabuco notava que as águas do Recife
não eram como as de Veneza, doentias, porém
inevitável: serviços de assistência, instalações ur-
claras e saudáveis. E o recifense foi sempre um banas, museus, edifícios públicos, serviços de
camarada d´água (Freyre, 1934). transporte e comunicações, os horários de embar-
que, as companhias em operação, dados de po-
Até melhor do que Veneza: além de aquáti- pulação e de clima. No meio, o ensaísta insistiria
ca, ao menos depois da obra de Saturnino de Bri- em um velho tema, as árvores: “na República não
to, “o serviço d´água no Recife é ótimo”. Só lhe se sabe por que estranho sentido de arte ou de hi-
faltava reapropriar-se sabiamente de suas mar- giene tropical, os prefeitos do Recife deram para
gens, de seus leitos, de suas perspectivas.76 perseguir as árvores como quem persegue inimi-
Havia também um roteiro gastronômico: di- gos”. Como se para autenticar a assinatura regio-
tado pelos peixes e frutos do mar, pelos doces, nalista: “só nos últimos anos tem se feito reação
sorvetes, cremes e sobremesas; os melhores res- [...], pressão de campanhas jornalísticas e do Cen-
taurantes e os restaurantesinhos “com seu bocado tro Regionalista do Nordeste”. Imodestamente
de cor local”. Valia à pena visitar também os mer- anunciava a filiação do novo itinerário à platafor-
cados e orientar-se pelo calendário das frutas da ma crítica: a cidade desnudada pelo cicerone re-
época, que o guia gentilmente oferecia ao visitan- forçava os valores há anos defendidos. Valor não
te. Pelo paladar, Gilberto propunha reconduzir o puramente sentimental: se “ao estrangeiro inteli-
turista às partes velhas da cidade, cheias de ne- gente não atraem as avenidas novas nem as pra-
gras de fogareiro, vendedores de amendoim, de ças novas” (Freyre, 1975, p. 75), o passado e a
bolo, de caldo de cana, vendedores ambulantes
cultura logo se imporiam como capital simbólico.
de fruta, de galinha, de macaxeira, de peixe, de
ostra, e não apenas de vassouras e espanadores.
Às vezes homens e mulheres do interior, com A cidade do outro e a cidade
seus adereços e utensílios bastante rústicos. De
profunda
novo, era um caráter mestiço da cidade que o ci-
cerone percorria, pois
Ao final, o vasto itinerário parece breve, tal
[...] as ruas do Recife variam muito de fisionomia,
a contenção e a economia com que o cicerone
de cor, de cheiro. Parecem às vezes de cidades opera os seus quadros de valor. Apesar do foco
diferentes. Há ruas perfeitamente européias como na cidade, reúne ao crivo regionalista os princí-
a Avenida Rio Branco. Outras que dão a idéia de pios básicos do hibridismo e do tropicalismo fir-
se estar no Oriente como a Estreita do Rosário á mados em Casa-grande & senzala: a reabilitação
noite, como o beco do Cirigado, o Beco do Mar-
do oriental (Araujo, 1994, p. 47; Said, 1990, pp.
roquim, a Rua do Fogo; ainda outras que não têm
que ver as de Lisboa, com seus sobrados, suas va-
174-205) opera na ordem da pluralidade genealó-
randas, suas vidraças, seus verdes, seus encarna- gica a que se filia o caráter desta cidade em seu
dos, seus azuis. Tal a Larga do Rosário. E há as processo de civilização. De fato se, em Casa-
ruas silenciosas (do poema de Cardozo). Enquan- grande, Freyre havia proposto reinterpretar o pas-
to certos trechos da cidade dão a lembrar cidades sado ibérico, mouro e moçarabe herdado de Por-
do Senegal. Trechos com mucambos, casas de
tugal ao lado das contribuições indígenas e
palha – que, aliás, não são tão ruins, sob o pon-
to de vista da higiene, como os cortiços e as ilhas
africanas, no Guia, os valores pitorescos do mis-
feias, tristonhas, em que se ensardinha a pobreza tério, do recato e da simplicidade, a tonalidade
européia (Freyre, 1934). castanha da gente, sua sensualidade e misticismo,
remetidos à sua formação mista de distintas pro-
Nas relações e confrontos com outras civiliza- cedências, credos, raças e culturas (Freyre, 1933,
ções, o autor redescobria a cidade como um arqui- pp. 242ss.), devem surgir na paisagem e na cultu-
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ra como algo pulsante, visível, atraente. Do pas- O Brasil possui algumas cidades bonitas: O Rio,
sado ao presente, ao menos aqui, em 1934, não a Belo Horizonte, Recife, São Paulo: mas, a todas
“decadência” como claramente surgirá em Sobra- falta caráter. Belém é como Ouro Preto, como
Joinville, como São Salvador; possui beleza carac-
dos e mucambos, mas talvez a “transição” para a
terística. Este céu de mangueiras, filtrando sol so-
modernidade revela permanências do patriarcalis- bre a gente, produz uma ambiência absolutamen-
mo (Freyre, 1922, pp. 113-114) e recombina de te original e lindíssima.78
maneira nova aspectos meio-medievais, meio-ára-
bes, meio-levantinos, meio-andaluzes (Freyre, Belém, Ouro Preto, Salvador, Joinville, nú-
1925) com os traços afro-brasileiros e populares cleos fortes de colonização luso-brasileira, afro-
na cidade moderna.77 Pode-se objetar que o Guia brasileira e teuto-brasileira, respectivamente.
não tem o alcance de um ensaio de história social Também nisso, qual Gilberto, uma dimensão cul-
e cultural da cidade. Em todo caso, destinado a tural da cidade ganhava força: ao turista aprendiz
atrair o interesse do viajante ao revelar a mesma não devia passar despercebida a sua etnicidade.
simpatia regionalista pelo passado e pelo exótico, Os motivos são efetivamente os mesmos: o
não resta dúvida de que o Guia prático, histórico caráter das cidades, a arte e a arquitetura colo-
e sentimental insiste no valor da mistura e da di- niais, o clima e a praia, a comida e as frutas, a
ferença, dando-lhes prioridade em relação às re- música e as festas populares, suas crenças e valo-
presentações da ruína e da miséria que logo se res culturais. Mas o que os diferencia afinal na ex-
imporão em Sobrados e mucambos. periência da viagem, nos papéis que assumem ao
Seja como for, há um nítido parentesco com longo dela, nas estratégias de localização do ou-
as críticas à modernidade de artifício elaboradas tro e no seu rebatimento sobre o viajante? O inte-
por Mário. Ambos defendem as tradições vivas do resse de Mário pelo mundo popular, apesar de
povo, os aspectos de diferenciação e estabilização sua pouca familiaridade com a antropologia, era
cultural nas suas manifestações; em ambos, a mes- naqueles anos de 1920 mais consistente e decidi-
ma ironia em face da rejeição dos valores da sel- do do que no Gilberto recém-chegado de Colum-
va e do clima, que se exprimem objetivamente bia, chocado com as transformações de sua cida-
na crítica ao tratamento geométrico das árvores na de e inegavelmente comprometido com uma
cidade; nos dois, o mesmo desprezo às demoli- herança patriarcal. Não há de ser irrelevante o
ções de igrejas e ruas velhas em nome do tráfego, contraste entre a indignação e a revolta que res-
às reformas ineptas e restaurações descaracteriza- soam no diário do turista, e o absoluto silêncio no
doras. O próprio sarcasmo com que se referem ao guia do cicerone ante as condições de vida do
ecletismo também os aproxima na complacência povo pobre do Nordeste. Se o Mário da Lopes
diante da retomada estilística da arquitetura colo- Chaves é filho dos salões aristocráticos da cidade
nial, ainda que menos programática no Mário de mais industrializada do país, o que apanhou da
fins da década (Andrade, 1928). O fato é que, as- vida do seringueiro e do cantador nas expedições
sim como Gilberto, o escritor paulista estava aten- ao Norte e ao Nordeste não ganhará o selo de cu-
to ao caráter e à perda de caráter das cidades bra- riosidade folclórica; a sua etnografia encaminhan-
sileiras. Havia por certo cidades incaracterísticas do-se para a arte de vanguarda e a crítica social.
como Manaus, Belo Horizonte, e até o Rio de Ja- Já o Gilberto da Camboa do Carmo é ainda um tí-
neiro e o Recife, que denunciavam o irreconciliá- pico flâneur dos trópicos, as suas experiências et-
vel entre a natureza e a civilização, o novo e o ar- nográficas na cidade limitando-se ao experimento
caico, a modernidade e a miséria; cidades ainda pedagógico, expressão idiossincrática ou auto-ex-
moças, inteiramente abertas ao futuro como Na- pressiva, misticismo metodológico voltado para
tal, como São Paulo (Lopez, 2004), mas havia outros tempos e outros mundos; as suas melhores
também aquelas onde era possível surpreender e realizações de fato concentrando-se na maneira
se comover com uma personalidade característica. criativa como reúne história íntima, psicologia so-
Belém era uma delas: cial e antropologia da cultura na interpretação da
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 169

vida urbana das camadas privilegiadas da socie- sua jornada não é aquele que o turista reencontra
dade imperial (Freyre, 1922, 1925, 1936). Não por no extravio ou na procura deliberada do que se
acaso, entre as últimas estampas encomendadas sonega em todo guia de turismo? Ou se, antes ao
para seu Guia, na seqüência de uma imagem de contrário, o turista aprendiz não estará inviabili-
mocambos, acrescentou narcisicamente “um ca- zando em sua jornada a própria hipótese de um
sarão patriarchal (Estrada de Dois Irmãos)”. Era a guia, com seus roteiros prévios? Em favor de uma
mesma casa de Apipucos na qual, recém-casado, concepção do livro de viagem como texto que se
o cicerone definitivamente viria a se estabelecer. move na experiência imediata, única, singular, in-
Não é irrelevante que na experiência de via- transferível do deslocamento? Que transforma o
gem Mário se apresente como aprendiz e Gilber- viajante, que nele desnuda o que há de estranho
to como cicerone. O turista que não segue qual- na sua própria identidade de origem? Que é inse-
quer guia, mas apalpa o território, de um lado; de parável de seus interesses subjetivos, sentimen-
outro, o guia que escapa aos roteiros previsíveis tais, de seus humores, de seus guias afetivos –
para desviar o viajante das impressões de superfí- amigos, discípulos, informantes, homens e mulhe-
cie, da cenografia urbana, da aparência imediata. res comuns – passo a passo desviando-se do per-
Se os itinerários trilhados pelo primeiro são de curso previsível? Que não sonega as indicações
evasão, de distanciamento espacial, de desloca- do sonho, do cansaço, do sono, da embriaguês,
mento no outro mundo e, ao mesmo tempo, de da fantasia, da audição, do olfato?
passagem de uma configuração a outra do senti- Se os dois escritos revelam um outro rumo
do, ou seja, de temporalização do sentido, os ro- nas cidades brasileiras, ao menos esta grande di-
teiros sugeridos pelo segundo acompanham um ferença nos permite compará-los: se O turista
movimento de enraizamento, de deslocamento no aprendiz descobre a personalidade anônima
interior de seu próprio mundo. Se, no primeiro como traço ao mesmo tempo distintivo e humano
caso, temos um mergulho decidido nas divisões nos itinerários que vai trilhando, é porque o seu
internas do eu-viajante, um extravio voluntário; destino é a transformação de si mesmo; se o Guia
no segundo, trata-se de redespertar a cidade pro- sentimental revê a sua origem como ponto privi-
funda, diversa, colorida, no lirismo do escritor. legiado de visão do mundo, é porque se funda
Mas se o Gilberto Freyre bem instalado nau- nas confirmações da própria identidade quando
fraga em seu próprio universo perdido, o janga- dela se afasta. Mário volta profundamente trans-
deiro Mário de Andrade não escapa à sedução, na formado da viagem; Gilberto cada vez mais bem
rapsódia convertendo-se no amoroso cantador da instalado no seu porto seguro.
terra vista. Amor cortês e resistência à norma civi-
lizada reaproxima cicerone e viajante na procura
de uma contribuição singular do país junto ao Notas
passado, ao mito, à brincadeira infantil, à vida po-
pular. Mais difícil é perceber o que os separa nes- 1 “Informações: o urbanista Agache e o plano de re-
ta empreitada, o que separa os seus escritos na li- modelação do Recife”, Boletim de Engenharia, ano
teratura de viagem (Guagnini, 2000, pp. 13-27). V, III (1): 21-23, Recife, out. 1927.
Afinal, auto-consciente do poder de seus itinerá-
2 Em sua primeira conferência no Rio de Janeiro, em
rios, o regionalista não evita as dimensões som-
junho de 1927, Agache definiria o urbanismo tam-
brias da cidade que percorre; do mesmo modo,
bém como uma disciplina da polidez. O urbanista
fugindo à identidade e aos valores de partida, o
era a um só tempo artista, cientista e filósofo social,
modernista descreve um norte muito próximo aos
dotado de experiência visual e prática acumulada
desvios propostos pelo outro. Não seria de inda-
nas obras e gosto apurado em viagens pelo mundo.
gar, ao fim e ao cabo, se o turista ideal do guia
prático não é o próprio turista aprendiz? Se não é 3 G. Freyre, “Mestre Agache no Recife; trecho de uma
este que o primeiro tem em mente? Se ao final de reportagem para jornal, ampliada em conferência,
170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

1927”, em Freyre (1964, p. 116). Freyre provavelmen- Clã do Jaboti, “já se pode ver que domina uma ra-
te se refere à reportagem “Um urbanista, o Rio e o zoável informação sobre tradições brasileiras”. Exa-
Recife”, Jornal do Comércio, Recife, 15/7/1927, p. 3. tamente em 1925, Mário se interessava por folclo-
re, “lia e procurava autores que lhe dessem base
4 G. Freyre, “Artigos numerados: 99”, Diário de Per-
para estudos de Folclore. Assim sendo, pode-se su-
nambuco, 8/3/1925 (apud Freyre, 1979, pp. 128-
por que Sílvio Romero, Pereira da Costa, Mello Mo-
130). Praticamente todos os artigos de Gilberto
raes Filho e Couto de Magalhães estavam sendo
Freyre publicados no Diário de Pernambuco aqui
freqüentados por Mário de Andrade depois de
citados foram extraídos desta compilação.
1922” (cf. Lopez, 1972, pp. 77-78).
5 G. Freyre, “Mestre Agache no Recife”, op. cit., p. 119.
15 “Carta a Manuel Bandeira, São Paulo, 6/4/1927”,
6 Idem, pp. 117-118. em M. A. de Moraes (2000, pp. 340-341).

7 G. Freyre, “Morreu Fritz Baedeker”, em Freyre 16 Em seu ensaio de interpretação de Macunaíma,


(1935, p. 133). Gilda de Mello e Souza reencontrou via Bakhtin a
matriz satírica, popular e carnavalizada na monta-
8 Em 24 de julho de 1928, Manuel escreveu para Má-
gem da rapsódia brasileira. “Mário de Andrade – à
rio, “Gilberto me convidou para escrever duas ve-
semelhança dos cantadores nordestinos, que estu-
zes por semana sobre atualidades cariocas”. Em 29
dara com tão aguda compreensão – “desmancha-
de setembro de 1928, Manuel afirma produzir para
va” a linha melódica européia, para que, rejuvenes-
o jornal quatro artigos mensais (cf. Marcos A. de
cida pelas acomodações locais, fecundada pelo
Moraes, 2000, pp. 397-398, 407).
riso popular, ela ascendesse novamente ao nível da
9 Cf. “Carta de Bandeira à Mário, Rio de Janeiro, grande arte” (G. de M. e Souza, 1980, pp. 12, 14,
9/11/1928”, em M. A. de Moraes (2000, p. 409). 22-23, 26, 32, 79-80, 83-84, 103).

10 M. de Andrade, “Notas de viagem (11/12/1928)”, 17 “Pretendo escrever um livrinho sobre a viagem”


em Andrade (1983, p. 347). (“Carta a Cascudo, São Paulo, 30/4/1927”). Cf. Ve-
ríssimo de Mello, 1991, p. 78; Andrade, 1983, edi-
11 M. de Andrade, “Ano bom de 1926”, em Mello
ção de Lopez, pp. 35-36.
(1991, p. 72).
18 “Uma palestra com um espírito culto”, Folha do
12 Testemunho de estranhamento entre os dois antes
Norte, Belém, maio 1927, em Andrade (1983, p.
do Congresso de Regionalismo é o artigo de J. Ino-
332).
josa, “Tradição e tradicionalistas” (1925).
19 Idem, p. 333.
13 Em 1905 conheceu o mar de Santos, em que sua
mãe se tratara; em 1913, foi a Araraquara, em luto 20 “Carta de Mário a Sérgio Olindense, São Paulo,
pela morte do irmão; em 1918, a Poços de Caldas, 2/11/1929”, em Branco (1971, pp. 92-93).
acabado o luto do pai, com a mãe e os irmãos; em 21 Desde cedo denunciada pela topografia médica, a
1919, depois de se ordenar, pela primeira vez a Mi- mudança da paisagem urbana incluía o aterro de
nas Gerais, “passando pelas cidades históricas, des- igarapés e a derrubada de árvores, que os sanita-
cobre o barroco e o Aleijadinho”; ao Rio de Janei- ristas de Manaus julgavam um agravante epidêmi-
ro, foi antes de 1920, ver arte religiosa, em 1921 foi co (cf. Costa, 1999, p. 93).
se encontrar com Manuel Bandeira e em 1923, com
22 Diário Oficial, Manaus, 8/7/1927, apud A. M. de
o carnavalesco carioca (cf. Lopez, 1993, p. 109,
Figueiredo (2001, pp. 273-276).
111; Lopez, 1993; “Carta a Manuel Bandeira, São
Paulo, fevereiro 1923”, em Moraes, 2000, p. 84; An- 23 Álbum, 1929. Um exemplar foi pessoalmente doa-
drade, 1920, pp. 292-293). do pelo prefeito a Mário em 1929.

14 Em 1924 e 1926, quando Mário compôs o “Notur- 24 Ver interpretação do episódio proposta por G. de.
no de Belo Horizonte” e a maioria dos poemas de M. e Souza (1979, pp. 93-96).
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 171

25 “Carta a Câmara Cascudo, São Paulo, 1/3/1927”, 37 G. Freyre, “Acerca do Recife”, Diário de Pernam-
em Mello (1991, p. 75). buco, Recife, 7/6/1925.

26 “Cartas a Câmara Cascudo, São Paulo 26/9/1924” e 38 G. Freyre, “Da tirania da Pedra Azul, livra-nos, ó
“Araraquara, 26/6/1925”, em Mello (1991, pp. 34-35). senhor”, Diário de Pernambuco, Recife, 19/3/1926.

27 “Carta a Câmara Cascudo, São Paulo 4/10/1925”, 39 A coleção fotográfica de Mário de Andrade encon-
em Mello (1991, p. 42). tra-se no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

28 “Carta a Cascudo, São Paulo, 3/2/1926”, em Mello 40 G. Freyre: “Artigos numerados: 53”, Diário de Per-
nambuco, 20/4/1924; “Do bom e do mau regiona-
(1991, p. 53).
lismo”, Revista do Norte 5, Recife, out. 1925; “Ruas
29 “Carta a Cascudo, São Paulo, 22/1/1928”, em Mel- de doces sombras”, Diário de Pernambuco,
lo (1991, p. 85). 5/9/1926; “Acerca do Recife”, Diário de Pernambu-
co, 7/6/1925. A proposta de reaproximação da Ve-
30 Os cantos e o coco (15/12/1928, 29/1/1929), a che-
neza com as águas não seria de todo ignorada nos
gança e marujada (18/12/1928), o cantador
anos subsequentes, o plano do arquiteto Nestor de
(20/12/1928), os ritos de feitiçaria e o catimbó
Figueiredo, de 1931, debatido longamente no inte-
(22/12, 26/12, 27/12, 28/12/, 3/1/1928), as músicas
rior da Comissão do Plano da Cidade, entre idas e
e as danças na praia (30/12/1928), as orações e os
vindas reduzido ao limites da reforma do bairro de
cantos religiosos (31/12/1928), a alegria do povo Santo Antônio reservava para as margens fluviais
(1/1/1929), as festas de Reis (6/2/1929), o coquei- um tratamento viário e paisagístico especial (cf. Fi-
ro Chico Antônio (10, 11 e 12/1/1929), o cangaço gueiredo, 1933; Lira, 1997, pp. 261-262, 272-285).
(23/1/1929), os santos afro-brasileiros (25/1/1929),
41 S. Filgueira, “Os mocambos serão menos pitores-
os Congos (26/1/1929), o Boi Tungão e o ganzá
cos que os chalets de Boa Viagem?”, A Província,
(27/1/1929), os Caboclinhos (5/2/1929), que arre-
Recife, 15/3/1929; R. R. Couto, “Cartas da França”,
matam o seu roteiro para o leitor do jornal.
A Província, Recife, 8/5/1929; E. de Moraes,
31 L. da C. Cascudo, “O novo plano da cidade – I – a “Como acabar com o mocambo no Recife”, A Pro-
Cidade”, A República, 247, Natal, 30/10/1929; “O víncia, Recife, 16/5/1929; M. Sette, “Mocambos da
novo plano da cidade – II – a Ribeira no ‘Master pobreza do Recife”, A Província, Recife, 2/2/1930
Plan’”, A República, 252, Natal, 7/11/1929 (apud (cf. Lira, 1997, 1998).
Dantas, 2003, pp. 159-162). Em outra ocasião, tra- 42 Ernani Braga, “Vida musical: Mário de Andrade”, A
tei com Dantas dos contrastes e dos encontros de Provincia, Recife, 21/2/1929 (transcrito em O turis-
Mário com as cidades de Natal e Recife (cf. Dantas ta aprendiz, p. 378).
e Lira, 2001, pp. 636-650).
43 Ver os trabalhos de figuras como Henrique Castri-
32 Carmem Portinho, “Os progressos constantes da ciano, Manoel Dantas, Augusto Tavares de Lyra,
aviação”, A República, 85, Natal, 16/4/1929 (apud Rocha Pombo e Eloy de Souza, este último autor
Dantas, 2003). de um artigo sobre os cantadores populares para o
Livro do nordeste, organizado por Gilberto Freyre
33 Cf. “Intellectuaes illustres”, A União, 24, Paraíba,
em 1925, recentemente revisados por Dantas
29/1/1929. (2003, cap. 2).
34 “Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 22 44 Joaquim Ignacio, Notícia de uma viagem à Paraí-
de agosto de 1927”, em M. A. de Moraes (2000, p. ba, em 1924, Mossoró, 1987 (apud Almeida, 2003).
348).
45 Teses incluídas no “Programa-convite” do Congres-
35 Cf. G. Freyre, “Artigos numerados: 52”, Diário de so conforme Azevedo (1983, pp. 180-181).
Pernambuco, Recife, 13/4/1924.
46 Entre os quais intelectuais e artistas como José
36 Idem, 20/4/1924. Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Ascenso Fer-
172 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

reira, Joaquim Cardozo, Otávio Brandão, Mário Set- 59 G. Freyre, “O Recife e as árvores”, Diário de Per-
te, Joaquim Inojosa, Alfredo Fernandes, Samuel nambuco, Recife, 12/11/1924.
Campelo, José Maria de Albuquerque e Mello; ar-
60 G. Freyre: “Da tirania da pedra azul, livra-nos ó Se-
quitetos e engenheiros como Nestor de Figueiredo,
nhor!”, Diário de Pernambuco, Recife, 25/2/1926;
Salomão Filgueira, Francisco Boulitreau, Antônio
“Ruas de doces sombras”, Diário de Pernambuco,
Jannuzzi; empresários como Carlos Lira Filho, Júlio
Recife, 5/9/1926.
Bello, Odilon Nestor; políticos, sanitaristas oficiais
e altos funcionários como Luíz Cedro, Samuel 61 G. Freyre, “A propósito de urbanismo”, Diário de
Hardman, Amaury de Medeiros, Alfredo de Moraes Pernanbuco, Recife, 14/11/1926.
Coutinho, Octávio de Freitas, Gouveia de Barros.
62 G. Freyre, “O mês da cidade”, Diário de Pernam-
47 G. Freyre, “A propósito de Guilherme de Almeida”, buco, Recife, 31/10/1926.
Diário de Pernambuco, 15/11/1925.
63 No sentido oposto ao itinerário antropológico por
48 “Carta a Luís da Câmara Cascudo, 6/9/1925”, em excelência, rumo a alguns dos centros universitá-
Veríssimo de Mello (1991, pp. 39-40). rios mais importantes na década de 1920 (cf. J. Clif-
49 Muitos dos artigos publicados por Freyre naqueles ford, 2000, pp. 51-79).
anos foram reunidos em Tempo de Aprendiz 64 Seu diário de juventude, organizado por anos em
(1979). Sobre as relações entre modernismo e ciên- 1975, cobre o período de ausência do país entre
cias sociais no autor, ver Araújo (1994). A este res-
1918 e 1923, incluindo muitas de suas experiências
peito, ver a conferência realizada pelo sociólogo
de viagem.
em São Paulo, após sua eleição para o Congresso
em 1946 (Freyre, 1946). 65 G. Freyre, “New York”, Diário de Pernambuco, Re-
cife, 29/4/1926.
50 G. Freyre, “Artigos numerados: 53”, Diário de Per-
nambuco, Recife, 20/4/1924. 66 G. Freyre, “Artigo numerado: 64”, Diário de Per-
nambuco, Recife, 6/7/1924. A alternativa de estilo
51 G. Freyre, “Artigos numerados: 64”, Diário de Per-
regional, brasileira e americana, surgindo-lhe na fi-
nambuco, Recife, 29/6/1924. Cf. G. Freyre, “Acer-
gura do colonial, das missões e do georgiano, com-
ca do Recife”, Diário de Pernambuco, Recife,
binado ao material arqueológico indígena ou po-
7/6/1925.
pular. Cf. “A vitória dos coretos”, Diário de
52 G. Freyre, “Artigos numerados: 53”, Diário de Per- Pernambuco, Recife, 19/7/1925; “Reação do bom
nambuco, Recife, 20/4/1924. gosto”, Diário de Pernambuco, Recife, 24/11/1925.
53 G. Freyre, “Artigos Numerados: 60”, Diário de Per- 67 G. Freyre, “Sugestões do Rio”, Diário de Pernam-
nambuco, Recife, 8/6/1924. Cf. também o “Artigos buco, Recife, 25/3/1926.
numerados: 83”, Diário de Pernambuco, Recife,
15/11/1924. 68 G. Freyre: “Ruas de doces sombras”, Diário de Per-
nambuco, Recife, 5/9/1926; “A cidade da febre cin-
54 G. Freyre, “A vitória dos coretos”, Diário de Per- zenta”, Diário de Pernambuco, Recife, 17/10/1926.
nambuco, Recife, 19/7/1925.
69 Como notou Ricardo Benzaquen de Araújo, o tema
55 G. Freyre, “Reação do bom gosto”, Diário de Per- do desbotamento do mundo na paleta de Freyre
nambuco, Recife, 24/11/1925. aparece no enfoque da decadência da hybris colo-
56 G. Freyre, “Artigos numerados: 68”, Diário de Per- nial sob o imperialismo civilizador (cf. Araujo,
nambuco, Recife, 3/8/1924. 1994, pp. 134-136ss.).

57 G. Freyre, “Artigos numerados: 72”, Diário de Per- 70 G. Freyre, “Sugestões da favela”, Diário de Per-
nambuco, Recife, 31/8/1924. nambuco, Recife, 3/10/1926.

58 G. Freyre, “Acerca de jardins”, Diário de Pernam- 71 G. Freyre, “Impressões de Pernambuco”, Diário de


buco, Recife, 3/5/1925. Pernambuco, Recife, 20/1/1926.
NAUFRÁGIO E GALANTEIO 173

72 G. Freyre, “Morreu Fritz Baedeker”, Diário de Per- BIBLIOGRAFIA


nambuco, Recife, 26/4/1925.

73 Sobre a especificidade do gênero, ver Adamo


ADAMO, S. (2000), “Os guias de viagem”, in L. de
S. Caprara (org.), Brasil e Itália; viajan-
(2000, pp. 105-118).
do entre duas culturas. São Paulo, Le-
74 Algumas delas, históricas: paisagens e panoramas; mos Editorial.
outras foram especialmente encomendadas pelo
AGACHE, D. A. (1930), “O que é o urbanismo”,
autor a Luís Jardim num total de 28 imagens. Além
in PDF, Cidade do Rio de Janeiro: exten-
delas, 16 fotografias detalham as cenas desenha-
são, remodelação e embelezamento,
das, além de retratos de família. O Guia é comple-
1926-1930, Paris, Foyer Brésilien.
mentado por dois mapas: um, de toda a planície
recifense, com a indicação das linhas de transpor- ALMEIDA, M. C. F. de. (2003), Viajante, cronista
te; o outro ampliado ao Bairro do Recife e à parte e aprendiz de Turista: olhares sobre a
de Santo Antônio, situando o porto, a estação de cidade da Parahyba na década de
hidroaviões, os ancoradouros, cais, as docas e todo
1920. São Carlos, (mimeo.).
um conjunto de monumentos e pontos de interes- ANDRADE, M. (1920a), “A arte religiosa no Brasil:
se para o visitante. triumpho eucharístico de 1733”. Revista
do Brasil, 13 (49): 5-12.
75 A primeira edição do Guia prático, histórico e sen-
timental da cidade do Recife não apresenta nume- _________. (1920b), “A arte religiosa no Rio”. Re-
ração de páginas; tanto quanto possível as citações vista do Brasil, 13 (52): 289-293.
que se seguem estão sincronizadas com a tempo- _________. (1920c), “A arte religiosa no Brasil: em
ralidade interna do texto. Minas Gerais”. Revista do Brasil, 14 (54):
76 Gilberto Freyre fazia eco à discussão contemporâ- 102-111.
nea da reapropriação urbanística das margens de _________. (1928), “Arquitetura colonial”. Diário
rio. Já em 1930, o arquiteto Nestor de Figueiredo Nacional, 23-26 ago., São Paulo.
viria a incorporar a referência fluvial no desenho
_________. (1929), “O que o sr. Mario de Andra-
da cidade. No anteprojeto que encaminhou à mu-
de viu pelo Nordeste”. A Província, 16
nicipalidade alguns anos depois, defendeu o trata-
fev., Recife.
mento das margens do rio em um sistema de par-
ques urbanos: nos trechos centrais, como áreas de _________. (1976), Poesias completas: Clã do Ja-
apoio a eventos náuticos, esportivos, de exposi- boti. São Paulo, Círculo do Livro.
ções e feiras; na altura dos arrabaldes, como bos- _________. (1983), O turista aprendiz. 2 ed. São
que com funções recreativas (cf. Figueiredo, 1933). Paulo, Duas Cidades (edição de T. A. P.
Lopez).
77 Claramente posto na ordem do dia de suas preocu-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 209

NAUFRÁGIO E GALANTEIO: SHIPWRECK AND GAL- NAUFRAGE ET GALANTERIE:


VIAGEM, CULTURA E CIDA- LANTRY: TRAVEL, CULTURE, VOYAGE, CULTURE ET VILLES
DES EM MÁRIO DE ANDRADE AND CITIES IN MÁRIO DE AN- DANS L’ŒUVRE DE MÁRIO
E GILBERTO FREYRE DRADE E GILBERTO FREYRE DE ANDRADE ET DE GILBER-
TO FREYRE
José Tavares Correia de Lira José Tavares Correia de Lira
José Tavares Correia de Lira
Palavras-chave Keywords
Mário de Andrade; Gilberto Mário de Andrade; Gilberto Mots-clés
Freyre; Viagem; Cidades; Mo- Freyre; Travel; Cities; Brazilian Mário de Andrade; Gilberto
dernismo brasileiro. modernism. Freyre; Voyage; Villes; Moder-
nisme brésilien.
Na literatura de viagem, dois gêneros In the literature of travel, two traditional
tradicionais se destacam: o diário e o orders come up, the journal and the gui- Dans la littérature à propos des voyages,
guia; e dois personagens: o viajante e de, as well as two characters, the trave- deux genres traditionnels apparaissent : le
o cicerone. O objetivo deste artigo é ler and the cicerone. The objective of journal de bord et le guide ; et deux per-
avançar na compreensão das cidades this article is to advance in the compre- sonnages : le voyageur et le cicérone. L’ob-
hension of cities as some cultural field jectif de cet article et d’avancer dans la
como campo cultural na perspectiva
on the perspective of both the travel and compréhension des villes en tant que
da viagem e dos viajantes. Para tal, champ culturel dans la perspective du vo-
the travelers. In order to do so, I propo-
proponho repensar a distância entre yage et des voyageurs. Dans cet article,
se the rethinking of the distance between
Mário de Andrade e Gilberto Freyre, nous proposons de repenser la distance
Mário de Andrade and Gilberto Freyre,
figuras centrais do modernismo e da entre Mário de Andrade et Gilberto Freyre,
central figures of Brazilian modernism
antropologia no Brasil, a partir do exa- figures centrales du modernisme et de
and anthropology, by examining their
me de suas experiências de viagem. l’anthropologie au Brésil, à partir de l’exa-
travel experiences. More specifically we men de leurs expériences de voyage. Plus
Mais especificamente, trata-se de en- show a meeting between these two di- spécifiquement, il s’agit de mettre en scène
cenar um encontro entre estas perso- verse personalities, sometimes antago- une rencontre entre ces deux personnalités
nalidades diversas, às vezes antagôni- nistic, in a common topos to access the distinctes, parfois antagonistes, en un topos
cas, em um topos comum de acesso à Brazilian culture: Northern and Nor- commun d’accès à la culture brésilienne:
cultura brasileira: as cidades do Norte theastern Brazilian cities caught in the les villes du Nord et du Nordeste du Brésil,
e do Nordeste do Brasil, surpreendi- crisis of the agro-exporting and patriar- surprises par la crise du régime agro-expor-
das na crise do regime agro-exporta- chal regimes with their remains of lands- tateur et patriarcal, avec leurs résidus de
dor e patriarcal, com seus resíduos de cape and character, peoples and ways of paysage et de caractère, de peuple et de
paisagem e caráter, povo e modos de life, memories, urban setup, architecture, modes de vie, de mémoire, de forme ur-
folklore, art. The reading bases are the baine, d’architecture, d’art et de folklore. La
vida, memória, forma urbana, arquite-
journals and chronicles written by the base de lecture sont les journaux de bord
tura, arte e folclore. A base de leitura et les chroniques rédigées par l’écrivain
são os diários e crônicas redigidos writer from São Paulo state along his two
paulista tout au long de ses deux longs
long ethnographical journeys to the
pelo escritor paulistano ao longo de voyages ethnographiques en Amazonie
Amazonian (1927) and to the Northeas-
suas duas longas viagens etnográficas (1927) et au Nordeste (1928/1929); le jour-
tern (1928/1929) regions as well as youth nal de jeunesse, les chroniques de journal
à Amazônia (1927) e ao Nordeste
journals, newspaper chronicles, and the et le Guide Pratique, Historique et Senti-
(1928/1929); o diário de juventude, as
Guia Prático, Histórico e Sentimental da mental de la Ville de Recife (1934), de
crônicas de jornal e o Guia Prático,
Cidade do Recife (1934) – “Practical, His- l’anthropologue originaire du Pernanbouc.
Histórico e Sentimental da Cidade do torical, and Sentimental Guide of the City Si l’option pour ces écrits – d’importance
Recife (1934), do antropólogo pernam- of Recife (1934),” by the anthropologist mineure dans l’ensemble de leurs œuvres,
bucano. Se a opção por estes escritos from Pernambuco state. If the option for mais qui constituent, néanmoins de solides
– menores no conjunto de suas obras, such writings – less important in their au- positions par rapport aux genres dans les-
é verdade, porém sólidas posições nos thorship but constituting solid positions quels ils s’incluent – instiguent le touriste et
gêneros em que se incluem – instiga o in the genre – instigates the tourist and le cicérone à une relation de proximité, il
turista e o cicerone a uma relação de the cicerone towards a relation of proxi- est possible de constater, à côté d’un voya-
mity, it is possible to take a snapshot of,
ge plaisant, une dimension exploratrice et
proximidade, neles é possível flagrar,
ethnographique de la société moderne.
ao lado da viagem prazerosa, uma di- together with the pleasurable travel, an
mensão exploratória e etnográfica da exploratory and ethnographic dimension
sociedade moderna. of the modern society.

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