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Maputo , 30 de Maio de 2018 Boletim Nº101

IDeIAS
Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social

DESCENTRALIZAÇÃO NO SECTOR DE SAÚDE EM MOÇAMBIQUE: “UM PROCESSO SINUOSO”

LÚCIO POSSE

INTRODUÇÃO der às dinâmicas do sector no âmbito da descen- sectoriais, a regulamentação, o financia-


tralização do Estado (Saide & Stewart, 2001: mento e a fiscalização, para além da ges-
No discurso oficial do Ministério da Saúde 259). tão quase-directa dos serviços públicos e
(MISAU), a descentralização é um processo em da respectiva supervisão” (MISAU, 2013:
implementação, dentro do sector, desde a pro- Não obstante este reconhecimento, no último 95).
clamação da independência do país em 1975, e Plano Estratégico do Sector de Saúde (PESS)
a saúde é considerado um dos sectores mais para o período 2014-2019 (com extensão até O excerto acima sugere que a perpetuação da
descentralizados do Estado em Moçambique 2023), a descentralização aparece apenas refe- gestão centralizada está a dificultar a descentra-
(Weimer, 2012a: 437-8). renciada na sua missão, tal como o extracto a lização efectiva do sector, o que se pode obser-
seguir ilustra: var através das limitações – implementar a agen-
Mas, o que significa descentralização para o da definida pelo nível central – que os níveis
MISAU? Que factores e dinâmicas estruturam o “Liderar a produção e prestação de mais e provinciais e distritais enfrentam neste processo.
processo? Que implicações a implementação do melhores serviços de saúde básicos, Mas é importante não perder de vista o facto de
processo têm para os cuidados de saúde? Com universalmente acessíveis, através de um que, na realidade, as dinâmicas do processo da
base em pesquisa em curso sobre Descentraliza- sistema descentralizado que privilegie as descentralização do sector da saúde resultam
ção no Sector da Saúde: Implicações para os parcerias, para maximizar a saúde e o dum contexto mais amplo do processo da des-
Cuidados de Saúde Primários, este IDeIAS pro- bem-estar de todos os moçambicanos, centralização do próprio Estado em Moçambi-
cura analisar a partir do discurso e das práticas que lhes permita levar uma vida produtiva, que, marcado por resistência e conflitos1.
do MISAU, as dinâmicas do processo da descen- rumo ao desenvolvimento pessoal e nacio-
tralização no sector. nal” (MISAU, 2013: XI). Retrocesso ou estagnação?

As entrevistas e discussões em grupos focais, Neste PESS não existe uma ideia clara sobre o A pesquisa em curso sobre o processo da des-
realizadas no âmbito do projecto acima mencio- entendimento que o sector tem de descentraliza- centralização no sector da saúde, levada a cabo
nado, mostram que o processo de descentraliza- ção, tendo em atenção as dinâmicas sociais, pelo IESE, mostra, entre outros aspectos, que a
ção no sector de saúde é lento – contrariando o políticas e económicas do país, mas sobretudo informação sobre o processo da descentraliza-
discurso do MISAU – devido, principalmente, à no contexto da saúde. Este facto, de alguma ção não chega aos níveis inferiores, neste caso
inexistência de instrumentos claros e específicos forma afecta as práticas do sector em matéria de às DPS’s e SDSMAS, deixando-os à margem do
para guiar o processo. Estes factores criam descentralização, particularmente no que se processo. Este aspecto mostra que o sector
condições para a perpetuação de uma gestão refere à transferência efectiva de funções e/ou continua centralizado.
centralizada e baseada na lógica top-down e, competências dos níveis centrais para os níveis
para a exclusão de outros actores – como, por provinciais e distritais. Aliás, o próprio MISAU A falta de informação sobre a descentralização
exemplo, as direcções provinciais de saúde reconhece o facto de as práticas de gestão den- nas direcções provinciais e distritais pode ilustrar
(DPS’s) e os Serviços Distritais de Saúde, Mu- tro do sector terem ficado aquém do que se que o processo é encarado como uma questão
lher e Acção Social (SDSMAS), de um lado, e os esperava no contexto da estratégia global da exclusiva do nível central, cabendo aos níveis
parceiros do sector, do outro. reforma do sector público, onde a descentraliza- inferiores, executar as decisões tomadas pelo
ção era assunto crucial. nível central. E isto contribui para a reprodução
Entre o discurso e as práticas das lógicas top-down, bem como a perpetuação
“Esperava-se que cada sector governa- da centralização do sector de saúde. As entrevis-
Diferentes documentos, como, por exemplo, mental propusesse as reformas específi- tas efectuadas revelam um certo sentimento de
políticas, estratégias, decretos, entre outros, cas para se adequar a este contexto exclusão dos níveis inferiores, nomeadamente
foram aprovados e implementados para guiar as [Estratégia Global da Reforma do Sector as DPS’s e os SDSMAS, no processo de tomada
acções do sector de saúde nas diversas áreas, Público, 2001-2011]. Porém, ao longo dos de decisão. Aliado a isso, está o alto grau de
mas não se tem conhecimento de documentos anos, a estrutura orgânica do Ministério da dependência de estes níveis inferiores em rela-
específicos que procuram guiar as reformas de Saúde foi-se adaptando apenas às cir- ção ao nível central na concepção e implementa-
descentralização neste sector. O próprio MISAU cunstâncias, mantendo sempre uma con- ção das suas acções. Como afirma um dos par-
reconhece a importância de um documento do centração de funções, nas quais se inclu- ceiros do MISAU, “nas reuniões de planificação,
género, pois acredita que pode ajudar a respon- em: a elaboração de políticas e planos dificilmente temos a presença dos representan-

1 Para mais detalhes sobre o processo de descentralização do Estado em Moçambique, consulte-se, entre outros: Weimer (2012b).

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Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
tes das províncias [e dos distritos]... o Ministério relação à alocação de recursos financeiros, os sim, a falta de clareza sobre o seu significado, “o
[da Saúde] não deixa que as províncias [e os entrevistados consideram que o sector de saúde quê” e “como” descentralizar ou seja, o que se
distritos] ajam por si próprias”2. Este sentimento tem sido marginalizado no processo de elabora- pretende alcançar com o processo.
de exclusão também se observou ao nível dos ção do orçamento, o que deixa o nível distrital
parceiros do MISAU. Para estes, uma das razões sem recursos, ou muito dependente do adminis- Referências
para a sua exclusão tem que ver com o facto de trador para a execução das suas actividades.
o governo considerar a descentralização, de uma Como afirma um dos entrevistados, responsável Collins, C. & Green, A. (1994), “Decentralization and
forma geral, uma questão política muito sensível duma das Direcções Provinciais de Saúde, primary health care: some negative implications in
que mexe com a soberania do Estado. developing countries” International Journal of
“O governo do distrito […] solicita o serviço Health Services, 24, 459-76.
Para além do sentimento de exclusão identificado distrital [Serviço Distrital de Saúde, Mulher
acima, também foi possível observar outros fenó- e Acção Social] para uma reunião onde McIntyre, D. & Klugman, B. (2003), “The Human Face
menos, como, por exemplo, o controlo dos comi- fazem um único plano onde se tiram as of Decentralisation and Integration of Health
tés de saúde – órgãos que deviam ser constituí- actividades da saúde […], e no final há um Services: Experience from South Africa”,
dos por membros eleitos e/ou escolhidos pela orçamento […] que está centralizado no Reproductive Health Matters, 11 (21), 108-119.
comunidade, mas que são dominados por mem- distrito, não é específico para o serviço
bros do partido Frelimo e dos governos distritais distrital de saúde […] [isto é] quem decide MISAU (2013), Plano Estratégico para o Sector de
representando por isso, interesses deste partido o que vai ser feito com esse orçamento Saúde (2014-2019), Maputo, MISAU.
e não os das comunidades locais. Em conse- praticamente é o governo do distrito”5.
quência disto, a participação das comunidades Omar, M. (2003), “Health sector decentralization in
na resolução dos problemas de saúde – por via Em relação à gestão dos recursos humanos, os developing countries: Unique or universal!”,
destes órgãos – torna-se quase inexistente3. entrevistados têm a percepção que as transferên- unpublished manuscript.
Importa referir que os comités de saúde foram cias são feitas na base da simpatia
concebidos com objectivo de representar a comu- (favorecimento) e não com base nas necessida- Saide, M. & Stewart, D. (2001), “Decentralization and
nidade na resolução dos problemas de saúde, des do sector de saúde ao nível do distrito. human resource management in the health sector:
participando tanto nos processos de tomada de a case study (1996–1998) from Nampula province,
decisão como na sua implementação. Conclusão: por onde (re) começar? Mozambique”, International Journal of Health
Planning and Management, (16), 155-168.
A reprodução dessas lógicas – top-down e cen- Independentemente do tempo em que as refor-
tralização – deve ser enquadrada no esforço dos mas de descentralização no sector de saúde Weimer, B. (2012a), “Saúde para o povo? Para um
decisores em controlar e concentrar o poder, sob estão a acontecer, é possível perceber que este entendimento da economia política e das dinâmi-
o pretexto que o sector de saúde é muito sensível processo tem sido lento e com fraco envolvimen- cas da descentralização no sector da saúde em
para ser descentralizado. Como afirma um dos to dos níveis inferiores, nomeadamente as DPS’s Moçambique”, in: Weimer, B. (Org.), Moçambique:
parceiros do MISAU, entrevistado, e os SDSMAS. Nesse sentido, consideramos Descentralizar o Centralismo? Economia, Política,
importante, por um lado, que os decisores come- Recursos e Resultados, Maputo, IESE, 423-456.
“Parece que até 2008/2009, o sector esta- cem a envolver os diferentes actores no processo
va a ser mais descentralizado […] as pro- de descentralização, a começar pelo momento da Weimer, B. (2012b), “Para uma estratégia de descen-
víncias tinham acesso aos recursos [tanto concepção dos instrumentos, sob o risco de eles tralização em Moçambique: ‘Mantendo a falta de
financeiros como humanos] e tinham man- não se reverem nos instrumentos e oferecerem clareza?’: Conjunturas, críticas, caminhos, resulta-
dato [para] tomar decisões sobre como resistência na implementação das reformas. dos”, in: Weimer, B. (Org.), Moçambique: Descen-
usar os recursos disponíveis. [Mas] dá-me Como se referem McIntyre & Klugma (2003), a tralizar o Centralismo? Economia Política, Recur-
a entender que de uns tempos para cá partir do exemplo sul-africano, os processos de sos e Resultados, Maputo, IESE, 76-102.
essa decisão mudou. Tudo ficou mais tomada de decisão, no âmbito da descentraliza-
centralizado. As decisões sobre como ção no sector de saúde, não envolviam as lide-
alocar os recursos ficaram mais centraliza- ranças locais, convidando-as somente para a
das [...]. O sector é muito centralizado, e fase de implementação. Em consequência disso,
há quem quer que continue assim ao nível essas lideranças locais se distanciavam do pro-
central”4. cesso de descentralização. Por outro lado, os
processos de descentralização no sector de
Este aspecto associado ao sentimento de exclu- saúde em Moçambique devem procurar ter em
são tem contribuído para a emergência da per- atenção às dinâmicas, sociais, económicas,
cepção – entres os entrevistados – de que os políticas e de saúde do país, para além da clare-
interesses e vontades dos administradores distri- za sobre o que se procura alcançar com a des-
tais e dos governadores provinciais têm obstruído centralização. A negligência destes aspectos
os processos de descentralização do sector. Para pode levar a resultados negativos, contribuindo
tal, os entrevistados recorrem à sua experiência para a diabolização da descentralização. Como
no processo de gestão dos recursos financeiros e afirmam Collins & Green (1994) e Omar (2003),
humanos ao nível das províncias e distritos. Em não é a descentralização que é diabólica, mas,

2 Entrevista com E. P., Maputo, 17/04/17.


3 Entrevista com P. M., Maputo, 23/05/17.
4 Entrevista com E. M., Maputo, 22/05/17.
5 Entrevista com S. M., Inhambane, 09/11/16

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