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REPRESENTATIVIDADES E IDENTIDADES EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE

CULTURA1

Luiz Augusto F. Rodrigues2


Marcelo Silveira Correia3

RESUMO: As práticas culturais e produção de significado são dimensões fundantes da luta


política, e - cada vez mais - essa associação assume centralidade e se externaliza, levando à
constituição de políticas culturais expressivas, em que o sentido da cultura desliza entre forma
de ação política, no sentido de intervenção no mundo, e forma de construção de
subjetividades e identidades pessoais e grupais. O artigo traz algumas reflexões e conceitos,
buscando contribuir e discutir questões de gênero, raça, identidade, representação e
representatividade que – entendemos – devem basear as políticas públicas de cultura, e aponta
alguns reflexos dessas questões em políticas culturais municipais do estado do Rio de Janeiro.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas culturais, Identidades e representatividades,


Interseccionalidades

As políticas nacionais de cultura implementadas a partir dos anos 2000 (em especial a
partir de 2003), com derivações nas políticas estaduais e municipais, vêm criando agendas no
campo cultural que demandam cada vez maior representatividade, política e identitária. A
cultura é parte constitutiva de toda prática social, fato que reforça sua centralidade na

1
Texto publicado em Anais do IX Seminário Internacional Políticas Culturais, organizadores: Lia Calabre,
Alexandre Domingues e Eula Cabral. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 192-205.
2
Doutor em História pelo PPGH/UFF. Professor Titular do Departamento de Arte da Universidade Federal
Fluminense/UFF. E-mail: luizaugustorodrigues@id.uff.br
3
Licenciado em Letras/ Português e Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. Mestrando
em Cultura e Territorialidades pelo PPCULT-UFF. Bolsista CAPES. E-mail: marcelonetcorreia@hotmail.com

1
contemporaneidade e que nos leva a afirmar que a questão da cultura é fundamental para
mapearmos formas de atuação política. Sujeitos sociais mais fortalecidos e reconhecidos em
suas dimensões identitárias terão, e nisso acreditamos fortemente, melhores condições de
participação política e representatividade. Como apontou Evelina Dagnino (2002, p. 10):
A redefinição da noção de cidadania [...] aponta na direção de uma sociedade mais
igualitária em todos os seus níveis, baseada no reconhecimento dos seus membros
como sujeitos portadores de direitos, inclusive aquele de participar efetivamente na
gestão da sociedade. [...] cidadania aponta para a importância de assegurar uma das
condições de existência da sociedade civil: a vigência de um conjunto de direitos,
tomados como parâmetros básicos da convivência em sociedade. (grifos do original)

Tem-se experimentado possibilidades inovadoras de maior participação social nas


políticas públicas de cultura, em especial quando se pensa o sistema nacional de cultura e os
sistemas estaduais e municipais dele decorrentes e com ele em necessário diálogo. Podemos
destacar que as demandas participativas acontecem em diversas perspectivas, das quais vamos
destacar apenas algumas. Reivindicações e disputas por representações de gênero, de raça, e
de participação política serão abordadas com maior detalhamento mais a frente, por ora
vamos destacar a busca por representação territorial.
O território como ação estruturante nos planos públicos de cultura:
O Brasil vem implementando ações no campo da cultura que se pretendem de cunho
mais sistêmico e estruturante. Uma delas é o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e
os sistemas estaduais e municipais que se articulam ao SNC.
O SNC se estrutura em várias ações e programas, dos quais destacamos a
implantação de Conselhos e das Conferências de Cultura, a formulação de Planos de
Cultura (que deve ser pensado em conjunto com a sociedade civil, a partir dos
conselhos e das conferências), e a implementação de Fundos de cultura, sistema
público de financiamento da cultura, necessário para a efetivação das metas dos
planos e fortalecimento das ações locais.
[...]
No município de Angra dos Reis ficou flagrante o interesse do envolvimento dos
residentes de Ilha Grande para o levantamento de demandas específicas daquele
território, estimulando, assim, a realização de conferência que desse conta de uma
política pública que incluísse as necessidades culturais daquela localidade.
(RODRIGUES; CORREIA, 2017, p. 219-220)

Entretanto, e como vimos apontando em congressos e publicações conjuntas, a


questão territorial nas políticas públicas de cultura ainda necessita percorrer longo e
diferenciado caminho:
O que nossas pesquisas vêm elucidando aponta para certa uniformização de práticas
(sociais, urbanas, culturais...) assentadas no sentido de totalidade das produções
ideológicas (ZIZEK, 1996; 2014).
Como estudos de campo, vimos tratando políticas públicas de cultura em esfera
municipal e políticas municipais para as cidades que reforçam tônicas que precisam
ser postas em cheque, pois vêm se estruturando com base num binóculo que se
encontra invertido... Para tal, vem-se analisando desdobramentos e envolvimentos

2
territoriais acionados (ou não) nas formulações de alguns planos municipais de
cultura; vem-se, também, analisando a produção e divulgação de determinados
espaços de algumas cidades buscando-se perceber quais atributos urbanos e culturais
são ou não potencializados, pois se observa certa permanência de ideais
(neo)modernistas/progressistas cujos discursos e práticas se assentam em valores de
limpeza, amplidão, permeabilidade, planejamento pleno etc. Em termos gerais,
cultura e território precisam ser vistos sob lentes de aumento... permitindo que os
impactos sobre as práticas urbanas e sobre as produções culturais se voltem para
dimensões ampliadas, fato nem sempre ou mesmo pouco percebido. (RODRIGUES;
CORREIA, 2018, s.p.)

Caminho ainda maior é o que precisa ser trilhado pelas políticas públicas de cultura
quando se trata de questões identitárias e de representação, de gênero e de raça
principalmente. Alguns avanços podem ser observados, mas retrocessos e ausências
também...
Alguns conselhos de cultura apresentam configurações com representação de
representantes de culturas afro-brasileiras, de representações de grupos indígenas e
quilombolas, de expressões da cultura popular, entre outros. O Conselho Nacional de Política
Cultural (CNPC) é um exemplo 4; o Conselho Municipal de Cultura de Cabo Frio (RJ) tem
representação do Movimento Negro; o Conselho de Cultura de Niterói (RJ) tem, também,
representações importantes5 e por aí vai..., mas as questões de gênero ainda não encontram
ressonância. E pior. Pudemos acompanhar algumas reuniões para a construção de planos
municipais de cultura de municípios fluminenses e surgiram diretrizes específicas sobre
questões de gênero e em alguns municípios certas diretrizes foram extraídas dos planos finais
pelos titulares da própria pasta cultural do poder executivo local.
Tais constatações e disputas foram possíveis de serem observadas mais diretamente
por conta de termos acompanhado e mesmo contribuído com a construção de alguns sistemas
municipais de cultura no estado do Rio de Janeiro, através do PADEC, como passamos a
explicar:
PADEC é um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cultural dos Municípios,
desenvolvido a partir de parceria entre a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de
Janeiro com o Ministério da Cultura. Assenta-se em quatro linhas de apoio: 1)
Qualificação da gestão pública da cultura; 2) Preservação do patrimônio material; 3)
Fortalecimento da identidade cultural local; 4) Melhoria da infraestrutura para a
cultura local. Para a edição de 2015, o PADEC ofereceu três linhas de ação aos
municípios do estado:

4
Dentre os Colegiados do CNPC encontram-se: Culturas dos povos indígenas; Expressões artísticas culturais
afro-brasileiras; Culturas populares.
5
O Conselho de Política Cultural de Niterói tem, entre suas cadeiras de representação, três que merecem
destaque: Arte e culturas urbanas; Carnaval e festas populares; Cultura e religiões afro-indígenas, grupos étnicos,
comunidades tradicionais e capoeira.

3
a) Curso de Formação de Gestores Públicos e Agentes Culturais (em sua segunda
edição);
b) Implantação e modernização de espaços culturais;
c) Aplicação de Metodologia de Apoio para a organização dos Sistemas Municipais
de Cultura.
Esta terceira linha de ação foi construída com apoio técnico do Laboratório
de Ações Culturais da UFF. Inclui a proposição da metodologia acima, estimulada
junto aos municípios que conveniaram a ação PADEC, através de processo
denominado de Dinamização – Ação de Apoio aos Sistemas Municipais de Cultura.
Não se trata de consultoria para confecção de planos municipais, e sim de buscar
acionar e estimular o desenvolvimento dos planos de forma compartilhada entre
executivo municipal da área da Cultura e representantes da sociedade civil.
(RODRIGUES; CORREIA, 2016, p. 1325)

. Gênero e raça, identidade e representatividade


Pode-se apontar que o Brasil é um país estruturalmente racista, isto por conta das
restrições de cidadania imputadas – até hoje - tanto aos descendentes dos indígenas
originários de nossa terra quanto dos africanos para cá trazidos. Tais conjunturas, mesmo que
seculares, estão longe de serem sanadas. As lutas por reconhecimento identitário (na
perspectiva do multiculturalismo) se mesclam com oposições racistas e, quando muito, são
disputas absorvidas/aceitas, mas submersas em visões generalizantes e uniformizadoras.
Vivemos, de certa forma, uma volta ao pensamento único de base iluminista/racionalista que
endossa e embasa visões uniformizadoras sobre como deve e/ou o que se esperar de sujeitos
oriundos de povos indígenas, ou dos afro-brasileiros, ou dos sujeitos LGBT, e essa lista
poderia seguir com vários outros possíveis exemplos.
Acrescente-se às palavras de Charles Taylor6 as de Kwame Appiah (2016, p. 26):
Infelizmente, vivemos em sociedades que têm tratado muitas pessoas com desprezo
por serem, digamos, mulheres, homossexuais, negros, judeus. Como nossas
identidades são moldadas “dialogicamente”, segundo Taylor, as pessoas com essas
características as têm considerado essenciais – o mais das vezes negativamente
essenciais - às suas identidades. A política do reconhecimento começa quando se
percebe que isso é errado. Uma forma de remediar, buscada pelos detentores dessas
identidades, implica ver essas identidades coletivas não como fontes de limitação e
insulto, mas como partes valiosas de quem eles são. E, uma vez que uma ética
moderna da autenticidade (que provém aproximadamente do romantismo) requer
que exprimamos quem somos essencialmente, os detentores dessas identidades
avançam ao exigir que a sociedade os reconheça como mulheres, homossexuais,
negros, católicos e façam o trabalho cultural necessário para resistir aos estereótipos,
desafiar os insultos e eliminar as restrições.

6
Este trabalho faz referência direta a um texto que se tornou muito importante nas reflexões sobre o pluralismo
cultural, a saber: TAYLOR, Charles. Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition. Org. Amy
Gutmann. Princeton, Princeton University Press, 1994. Obra traduzida, neste mesmo ano, para a língua
portuguesa e publicada pelo Instituto Piaget (Lisboa): Multiculturalismo: examinando a política de
reconhecimento.

4
No contexto das disputas identitárias, podemos destacar as lutas por reconhecimento
das diferenças de gênero. Não se trata mais e somente das lutas feministas, mesmo que ainda
necessárias (ver as fortes desigualdades ainda existente em relação aos espaços sociais e
laborais entre homens e mulheres), mas também de disputas pelo direito a ter direito de
exercermos nossas diferenças de sexo, de identidade de gênero e de desejo sexual (ver
BUTLER, 2003).

Representação, significado, e linguagem:


É através do uso que fazemos das coisas, o que dizemos, pensamos, sentimos e como
representamos – que damos significado. Stuart Hall (2016) nos lembra que os significados
culturais não estão na cabeça, eles têm efeitos reais e regulam práticas sociais; destaca
também que a representação liga o significado e a linguagem à cultura. Para ele, representar é
usar a língua/linguagem para dizer algo significativo ou representar o mundo de forma
significativa a outrem. A representação é parte essencial do processo pelo qual o significado é
produzido e permutado entre os sujeitos sociais; tal processo caracteriza a noção de que a
representação é a produção do significado, do conceito em nossa mente através da linguagem,
muito adiante da existência de fato ou da observação empírica. Daí surge a construção de
signos - representando os conceitos e as relações conceituais - forjando em um sistema de
sentido de nossa cultura, de novos movimentos culturais e referência do mundo.
Faz-se necessário salientar que não cabe nesse artigo uma explanação mais profunda
quanto aos conceitos de linguagem, mas sua utilização está ligada diretamente à
representação, ou seja, envolve o uso de signos e imagens que significam ou representam
coisas; existem aí conexões com a cultura.
Destaca-se a importância de abordar a teoria do construtivismo, uma vez que a
exploração dessa abordagem mostra-se mais relevante para os estudos culturais recentes, pois
a teoria construtivista propõe uma complexa relação mediada entre as coisas no mundo
(conceitos em nosso pensamento e a linguagem). Existem duas variantes principais do
construtivismo: a semiótica (influenciada pelo linguista Ferdinand de Saussure), que estuda
todos os fenômenos culturais que levam em conta os signos sob todas as formas e
manifestações que assumem (linguísticas ou não), isto é, sistemas de significação; e a
discursiva (ligada ao filósofo e historiador Michel Foucault), que se preocupa mais com
significados e práticas significantes dentro do discurso, ou seja, as relações que são

5
estabelecidas na prática dando sentido às coisas. A abordagem semiótica se concentra em
como a representação e a linguagem produzem sentido, ao passo que a abordagem discursiva
se concentra mais nos efeitos e consequências da representação.
A abordagem discursiva da representação será em especial mais interessante para Stuart
Hall (2016) segundo os seguintes aspectos: o conceito de discurso, a questão do
poder/conhecimento, e a questão do sujeito, uma vez que Foucault atentou mais às
especificidades históricas do que a abordagem semiótica; mais às relações de
poder/conhecimento do que as relações de significado. O discurso, dessa maneira, tem a ver
com a produção de conhecimento através da língua, do falar, uma forma também de
representar o conhecimento acerca de determinado espaço e tempo, uma vez que todas as
práticas sociais transmitem significados e os mesmos podem moldar e influenciar o que
praticamos enquanto sujeitos sociais.
Nós começamos com uma definição bem simples de representação. Trata-se do
processo pelo qual membros de uma cultura usam a linguagem (amplamente
definida como qualquer sistema que emprega signos, qualquer sistema significante)
para produzir sentido. Desde já, essa definição carrega a importante premissa de que
coisas – objetos, pessoas, eventos, no mundo – não possuem, neles mesmos, nenhum
sentido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós – na sociedade, dentro das culturas
humanas – que fazemos as coisas terem sentido, que lhes damos significado.
Sentidos, consequentemente, sempre mudarão, de uma cultura ou período ao outro.
(HALL, 2016, p. 108)

Vale ressaltar que o discurso comporta formas de significação da realidade ao mesmo


tempo em que são produzidas pelas mesmas, não considerando os sujeitos sociais somente
como reprodutores dos significados presentes na cultura, mas também produzindo novos
sentidos. Segundo Hall (ibidem, p. 25), “Desde a ‘virada cultural’ nas ciências humanas e
sociais, contudo, o sentido é visto como algo a ser produzido – construído – em vez de
simplesmente ‘encontrado’.”
A preocupação com o “sentido” proporcionou uma reflexão mais ampliada no que se
refere ao funcionamento da linguagem, pois seu papel mais significativo refere-se à
abordagem discursiva:
Discursos são maneiras de se referir a um determinado tópico da prática ou sobre ele
construir conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e práticas
que suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas relacionadas a
um tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade. Essas
formações discursivas, como assim são conhecidas, definem o que é ou não
adequado em nosso enunciado sobre um determinado tema ou área de atividade
social, bem como em nossas práticas associadas a tal área ou tema. As formações
discursivas definem ainda que tipo de conhecimento é considerado útil, relevante e
“verdadeiro” em seu contexto; definem que gênero de indivíduos ou “sujeitos”

6
personificam essas características. Assim, “discursiva” se tronou o termo geral
utilizado para fazer referência a qualquer abordagem em que o sentido, a
representação e a cultura são elementos considerados constitutivos. (HALL, 2016, p.
26) (grifos nossos)

Sujeito e Identidade
Segundo Hall, a identidade é formada em diálogo com o outro, ou seja, com outras
pessoas importantes para “o sujeito”:
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para
ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos
mundos que ele/ela habitava. G. H. Mead, C. H. Cooley e os interacionistas
simbólicos são as figuras-chave na sociologia que elaboraram esta concepção
sociológica clássica da questão, a identidade é formada na “interação” entre o eu e a
sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas
este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
“exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2005, p. 11)

O sujeito (pós-moderno) passa por um processo de identificação, através do qual


existem múltiplas possibilidades quanto a sua “formação”, uma vez que esbarra num processo
composto de possíveis identidades. Na medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, outras possibilidades de identidade mostram-se
flexíveis e variadas. O sujeito social passa a desarticular a “identidade estável” buscando para
si novas possibilidades, articulando outros/novos conceitos de representação. A identidade é
formada ao longo do tempo, permanecendo sempre incompleta, sendo “preenchida” a partir
de fatores externos:
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inativo, existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasioso sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”. As partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas,
permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não
reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da identidade como coisa
acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em
andamento. A identidade surge não tanto de plenitude da identidade que já está
dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a
partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos
por outros. (HALL, 2005, p.38-39) (grifos do original)

Segundo Stuart Hall, o surgimento de novas identidades faz parte de uma mudança que
vem "abalando" as referências estabilizadas no mundo social:
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em
essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A

7
assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo
de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2005, p. 7)

A fragmentação das paisagens culturais de classe, gênero e sexualidade (embora no


passado os sujeitos sociais estivessem marcados dentro de uma classificação solidificada),
atualmente em plena transformação, estão mudando nossas identidades pessoais e
desestruturando o conceito que temos de nós mesmos como "sujeitos integrados".
Os processos de mudança representam de forma reflexiva, um processo de
transformações tão fundamental e abrangente que, de certa forma, nos deparamos com certa
multiplicidade, ou seja: uma fragmentação da identidade, composta não de uma única, mas de
várias identidades (contraditórias ou não). Tal processo produz o sujeito pós-moderno,
conceituando-o como não tendo uma identidade fixa, essencial e permanente, mas sim
assumindo identidades diferentes em outros tantos momentos.
As reflexões de Stuart Hall nos serão úteis para pensar questões das identidades de
gênero. Do ponto de vista da história do "sujeito", destaca-se de maneira peculiar o impacto
do feminismo, movimento social que trás consigo uma crítica teórica (marco da modernidade
tardia), questionando e tencionando o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e
sociológico, questionando a clássica distinção entre o "dentro" e o "fora", o "privado" e o
"público". Ou seja, abandonar a visão cartesiana sobre os sujeitos é passar a entendê-los de
modo mais complexo. A forma como os sujeitos sociais se representam e como são
representados.
O feminismo enfatizou, política e socialmente, o tema - como somos formados e
produzidos - ou seja a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (homens e
mulheres), surgindo então a "política de identidade". Vários movimentos surgiram durante os
anos sessenta, com fortes apelos às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas
raciais aos negros, entre outros. A contestação da posição social das mulheres (uma das
marcas mais emblemáticas do movimento) expandiu-se para incluir a formação das
identidades e de gênero, propiciando um avanço quanto às possíveis representações sociais.
Chamamos a atenção também, e fazendo eco às reflexões de Nancy Fraser (2006), que
as lutas por reconhecimento identitário e suas derivadas políticas multiculturalistas
compensatórias não podem obscurecer as lutas por maior igualdade de condições econômicas

8
– políticas de redistribuição. Trata-se, em verdade, de exclusões que se somam e que portanto
não devem, ser reivindicadas isoladamente:
Insistirei em distinguir analiticamente injustiça econômica e injustiça cultural, em
que pese seu mútuo entrelaçamento. O remédio para a injustiça econômica é alguma
espécie de reestruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda,
reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a
transformação de outras estruturas econômicas básicas. [...] O remédio para a
injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica.
Pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produtos
culturais dos grupos difamados. Pode envolver, também, o reconhecimento e a
valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver
uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas.
(FRASER, 2006, p. 232, grifos do original)

Trazemos, ainda, o conceito de “interseccionalidade”, sugerido por Kimberlé


Crenshaw - feminista e professora especializada nas questões de raça e gênero – que reforça-o
como conseqüência de diferentes formas de dominação ou de discriminação. Fato central no
Brasil, ainda um país sexista, racista e patriarcal. Como aponta Crenshaw (2002, p. 171):
Tanto os aspectos de gênero da discriminação racial quanto os aspectos raciais da
discriminação de gênero não são totalmente apreendidos pelos discursos dos direitos
humanos. O presente documento, baseado no crescente reconhecimento de que as
discriminações de raça e de gênero não são fenômenos mutuamente excludentes,
propõe um modelo provisório para a identificação das várias formas de
subordinação que refletem os efeitos interativos das discriminações de raça e de
gênero. Este documento também sugere um protocolo provisório a ser seguido, a fim
de melhor identificar as situações em que tal discriminação interativa possa ter
ocorrido e, além disso, defende que a responsabilidade de lidar com as causas e as
conseqüências dessa discriminação deva ser amplamente compartilhada entre todas
as instituições de direitos humanos.

Neste sentido, nossas práticas culturais, nossas representações sociais, nossas


projeções identitárias, enfim a vida em sociedade e a cultura que a envolve são eixos centrais
e estruturantes. O foco na cultura, no entanto, não deve se confundir ou ficar restrito às
práticas tidas como culturais stricto senso ou às práticas artísticas, mesmo que lato senso.
Fazemos eco às reflexões de Victor Vich quando cunha o termo “desculturalizar a cultura”:
Por descultutralizar a cultura, eu me refiro a uma longa estratégia de pensamento e
ação que vem sendo promovida na América Latina há algumas décadas, e que
deveria consistir em pelo menos duas proposições: posicionar a cultura como um
agente de transformação social e revelar as dimensões culturais de fenômenos
aparentemente não culturais. (VICH, 2015, p. 14)

Outro aspecto importante a se salientar é que os aparatos de representação existentes


não são suficientes para garantir equidade nas participações políticas dos diversos sujeitos
sociais, e que – neste sentido – os sujeitos menos fortalecidos em suas identidades e/ou menos

9
reconhecidos socialmente têm menos chances de participação efetivamente compartilhada e
de decisões co-responsáveis. Tal “subalternidade”, normalmente, se dá por razões de status
econômico e/ou sociocultural7, e também por discriminações geradas por ausências de
reconhecimento identitário, em especial dos grupos sociais aqui apontados (negros, sujeitos
LGBT, indígenas, pobres, sujeitos com pouca instrução escolar, representantes de expressões
artístico-culturais menos valorizadas esteticamente e por aí em diante).
Nos somamos às argumentações a seguir:
dentre essas diferenças culturais e sociais, existem aquelas que sofrem com os
seguintes modos de produção de inexistência e forma de fascismo social, que foram
apontados por Boaventura de Sousa Santos na primeira parte desse capítulo, os
quais, no âmbito municipal, se fazem presentes em correlação com as
especificidades locais: a monocultura da naturalização das diferenças, a monocultura
do saber e do rigor e o fascismo do apartheid social. O primeiro subsidia a lógica
que compreende como legítima a classificação social das populações – como, por
exemplo, racial, étnica, sexual -, naturalizando hierarquias. Assim sendo, a relação
de dominação não é vista como causa, mas como consequência. Aqui, a forma de
ausência é chamada como inferior, a qual é entendida como insuperável porque é
tida como natural. A monocultura do saber e do rigor - o modo mais poderoso de
produção de não existência - é a ideia que crê que a ciência moderna é o único saber
rigoroso e verdadeiro, a qual é compreendida, permeada por sua arrogância, como o
cânone exclusivo de produção de conhecimento. Assim sendo, tudo aquilo que esse
cânone não legitima ou reconhece – como, por exemplo, conhecimentos populares,
indígenas, camponeses e urbanos - é considerado inexistente, inválido, não rigoroso.
Desse modo, esses conhecimentos sofrem com aquilo que Boaventura de Sousa
Santos chama de epistemicídio – a morte de conhecimentos alternativos – e,
simultaneamente, os povos e os grupos sociais que têm suas práticas assentadas
nesses conhecimentos são descredibilizados. Aqui, a forma de ausência é taxada
como ignorância. (SOUZA, 2016, p. 59-60)

Os estudos de mestrado de Ana Clarissa Souza (2016) corroboram e ilustram tais


assertivas também em relação a algumas políticas públicas de cultura.. A pesquisadora
acompanhou, durante os anos de 2015 e 2016, reuniões de conselhos de cultura de alguns
municípios fluminenses, e esclarece:
compreendi que, por um lado, esse rito formal - que permite que os conselheiros
municipais de cultura exerçam seu direito à voz, preferencialmente, quando
inscritos, ou seja, respeitando o momento em que o Presidente do Conselho
Municipal de Cultura concede a fala ao respectivo inscrito -, garantiu a esses
conselheiros o exercício do direito à voz e a voto, entretanto, por outro lado,
fomentou em conselheiros o sentimento de acanhamento – especialmente, em
conselheiros representantes da sociedade civil, diante da postura segura do
Presidente do Conselho Municipal de Cultura, funcionário da Fundação de Cultura e
Turismo de Petrópolis há dezesseis anos, o qual é detentor de conhecimentos a
respeito do universo da gestão pública petropolitana de cultura, que não fazem parte
da gama de conhecimentos da maioria desses conselheiros representantes da

7
Interferem decisivamente nessas desigualdades sociais as questões de distinção social conforme apontadas por
Pierre Bourdieu, e os diversos “capitais” (escolar, cultural, social, político etc.) que este autor descreve. Para
melhor compreensão das ideias bourdianas ver, especialmente: BOURDIEU (2007) e BOURDIEU (1996).

10
sociedade civil - e/ou de passividade – tendo em vista a quantidade de conselheiros
que não se expressaram verbalmente durante essas reuniões, mesmo quando se
expressaram corporalmente discordando de uma fala do Presidente do Conselho
Municipal de Cultura, participando dessas reuniões, desse modo, somente, nos
momentos de votação -, intervindo de maneira a promover uma atuação menos
propositiva por parte dos conselheiros representantes da sociedade civil, já que esse
rito formal proporcionava, nesse caso, ao Presidente do Conselho Municipal de
Cultura, que era um conselheiro representante do poder público, exercer seu direito à
voz - e, consequentemente, de exposição da perspectiva da gestão pública municipal
-, em termos de tempo, de forma muito mais intensa. (ibidem, p. 150)

Conclusões preliminares:
Muito já se tem apontado sobre o alargamento da noção de cultura, que a articula com
práticas que ultrapassam a dimensão da arte. Mesmo assim isso não é questão superada, pois
ainda se percebe grupos sociais que se queixam que com tal alargamento de perspectiva a
Arte em si perdeu espaço. Esta queixa se refere normalmente em relação às expressões
artísticas mais elitizadas e ditas eruditas...
Se por um lado experimentamos um maior reconhecimento das expressões culturais e
artísticas de diversos novos grupos sociais, com expressivo alargamento de repertórios
simbólicos antes rechaçados, ainda assim vivemos diversas restrições em relação a muitos
sujeitos sociais, em especial por conta de suas identidades de raça e gênero. Estamos
caminhando a passos ainda muito lentos, e vivenciando retrocessos bem atuais.
A Cultura dos Povos e Comunidades Tradicionais, a Cultura Alimentar, o Hip Hop, a
Capoeira e a Cultura LGBT passaram a integrar os Colegiados Setoriais do Conselho
Nacional de Política Cultural (CNPC) a partir de decisão tomada nas reuniões do conselho,
realizadas em dezembro de 2013. Em 2015, através da Portaria 94 de 30 de setembro, o
Ministério da Cultura criou o Comitê Técnico de Cultura de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis (LGBT) e, no, mês seguinte, o projeto de decreto legislativo nº 235, dos senhores
Eduardo Bolsonaro e Marco Feliciano, buscou sustar a aplicação desta portaria. Avanços e
retrocessos é o que vimos experimentando nas políticas governamentais de cultura nos
últimos anos...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIAH, Kwane Anthony. Identidade como problema. In: SALLUM Jr., Brasílio [et al.] (orgs.).
Identidades. São Paulo: EdUSP, 2016. p. 17-32.

11
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk,
2007.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


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