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Tu, menino.
Deve ser filho de Exu.
Futriqueiro e brincalhão como o quê.
Orixá que gosta de fingir, que gosta de brincar igual palhaço.1
1
Trecho do espetáculo “Palhaço Negro: A história de Benjamim de Oliveira” produzido pelo NEPAA in LIGIÉRO, 2014.p.152
NTRODUÇÃO
Maurício Tizumba3
2
Texto retirado do vídeo “Benjamin de Oliveira por Maurício Tizumba” episódio da série “heróis de todo mundo”, programa do site a cor da
cultura, disponível em: http://antigo.acordacultura.org.br/herois/interprete/benjaminde-oliveira
3
Maurício Tizumba é ator, cantor e compositor, que desenvolve importantes trabalhos na área da cultura negra em Minas Gerais e no Brasil.
Representou o mestre de cerimônia (Benjamim de Oliveira) no episódio da série “heróis de todo mundo”.
muito menos, imputar àquela teatralidade a responsabilidade por uma
possível decadência do circo, como apregoam vários estudos e muitos
circenses em suas memórias (Idem, p.287).
Esta definição que Erminia Silva traz do fascínio exercido pelo circo nas pessoas
“comuns” ao nos apresentar os motivos - além dos maus tratos do pai - que teriam levado
Benjamim de Oliveira a fugir com o circo Sotero, podem nos dar uma ideia de como seria,
para um menino de doze anos, vender bolo na porta do circo e conviver com várias daquelas
figuras que deviam povoar seu imaginário durante todo o tempo em que a vida voltava ao
normal. Segundo a historiadora, seguir com o circo aguçava o imaginário em duas frentes
bastante poderosas: a do não querer ser o que se é, da insatisfação com a sua realidade; e a do
desconhecido. Esta, talvez, ainda mais arrebatadora. A possibilidade de, como ela nos diz:
“viver de uma nova maneira”. Ainda que, para isso, tivessem que desconsiderar um medo
bastante comum para a época:
Este mesmo fascínio pelo circo que foi capaz de arrebatar um jovem negro, alforriado
ao nascimento, a ponto de fazê-lo - aos doze anos - seguir com uma trupe e, apenas seis
meses depois, estrear como artista circense nos idos de 1882, também atingiu, sessenta e um
anos depois, a um garoto, também de doze anos, em Santa Cruz, último bairro da Zona Oeste
da cidade do Rio de Janeiro, nos idos de 1943.
Nascido em 1931, Moacyr Teixeira, aos doze anos de idade morava no número 80 da
Rua Macapá, casa de sua avó, para onde foi após a morte de sua mãe, em função de seu
complicado relacionamento com o pai, com quem tinha brigas constantes e de quem não
aceitava o segundo casamento. Da infância difícil uma lembrança traz riso ao enrugado rosto
do ex-policial de oitenta e cinco anos: Quando catava alumínio e ferro-velho para vender com
o único objetivo de assistir às apresentações do Circo Olimecha que, periodicamente, se
instalava na Rua Dom Pedro Primeiro, no Centro de Santa Cruz.
Mais do que a simples coincidência da conturbada relação paternal, pode-se dizer que,
indiretamente, Moacyr Teixeira passa a ser um admirador do trabalho de Benjamim de
Oliveira pois, durante o período em que foi sócio de Affonso Spinelli, Benjamim começou a
dirigir uma equipe de circenses, antigos empresários/artistas, entre os quais se encontravam
os Ozon, os Olimecha, a família Pery e os Temperani (SILVA, 2007, p.224 - Grifo meu).
Neste sentido, acredito caber a seguinte investigação: Pode-se intuir, a partir da observação
da atuação emblemática de Benjamim de Oliveira, que sua direção artística estabelecia uma
identidade tal que, ao assistir a estes espetáculos, Moacyr Teixeira teria, de alguma forma,
entrado em contato com a arte de Benjamim de Oliveira, ainda que pelo filtro do circo
Olimecha?
De toda forma, é certo que o circo-teatro, a manifestação popular do artista circense
forjou, dentre tantos, também os irrequietos Benjamim de Oliveira e Moacyr Teixeira que
tiveram também como um traço coincidente de suas trajetórias, aquilo que, aqui, trataremos
por peregrinação, que é o registro de uma necessidade forçada de deslocamento tanto de
Benjamim de Oliveira quanto de Moacyr Teixeira que acabaram por interferir em sua arte.
Em sua realização e sua forma.
Embora compreenda que foram deslocamentos diferenciados tanto no que tange a
questões de estímulos quanto de espaço, acredito relevante a percepção desta dificuldade para
identificação do valor de suas conquistas artísticas, uma vez que, reféns de suas situações
sociais, e mesmo sem um espaço próprio ou fixo de experimentação, conseguiram atingir
resultados extremamente relevantes em suas práticas.
Por parte de Benjamim de Oliveira, três deslocamentos que compõem sua
peregrinação foram fundamentais para sua formação e, segundo podemos deduzir a partir dos
apontamentos de Ermínia Silva, devem ter tido um impacto profundo na formação de sua
personalidade: O primeiro, aquele que ultrapassa as razões do encantamento circense, um
deslocamento que compreendia que o:
Sua segunda peregrinação, que também diz respeito a maltratos sofridos, desta vez no
circo Sotero deve, além do desalento natural, ter causado uma certa mágoa em Benjamim,
pois:
Depois de quase três anos trabalhando no Circo Sotero, percorrendo o
sertão mineiro, fugiu pela segunda vez na vida. Duas razões distintas
são relatadas por ele para esta fuga: a primeira, porque o dono o
espancava muito, e a segunda era uma “suspeita infundada” de
Sotero, de que sua mulher o estivesse traindo com Benjamim. Ambas
as versões eram plausíveis, sendo que a do espancamento é a mais
utilizada quando a história de sua vida é mencionada. (SILVA, 2007,
p.96)
Mesmo que Benjamim não fale como era o seu cotidiano entre os
ciganos, é de se supor que tenha vivenciado uma relação escrava, pois
descobre, através de uma moça do grupo, que iriam vendê-lo, ou
melhor, trocá-lo por um cavalo. Mas ele consegue, por meio de uma
combinação com a menina, fugir dos ciganos, fato na época, segundo
a bibliografia, tão ou mais difícil e perigoso do que fugir de
proprietários não nômades (SILVA, 2007, p.98).
Já Moacyr Teixeira, que ainda não teve seus textos4 avaliados com tal profundidade,
sempre teve como força motriz de sua escrita retratar os costumes de Santa Cruz e, em suas
montagens, sempre optava pela manutenção do discurso cênico do Elenco Teatral Amantes
da Arte - ETAA como uma espécie de arauto daquele local.
Segue o texto “O poeta do Bodegão”5, cena integrante do espetáculo “Santa Cruz na
4
“Santa Cruz na lona”, “Santa? Cruz!!!”, “Santa Cruz em marcha... à ré!”, revistas que retratavam o cotidiano do bairro, “E a história não
contou”, uma revista histórica, o religioso “Ressurreições”, além dos infantis “A abóbora de ouro” e “O Bicho-Homem”, que aqui não
levaremos em consideração por não poderem ser comparados aos textos de Benjamim
5
Referência ao Largo do Bodegão que fica localizado em Santa Cruz, no encontro das avenidas Areia Branca e Isabel com as ruas Ferreira
Nobre e Álvaro Alberto, além da estrada Vítor Dumas. Tem esse nome porque havia no local uma grande "bodega", que significa armazém.
lona”, de 1994, que questionava o porquê de não se ter instalado ainda, em Santa Cruz, uma
lona Cultural como a de Campo grande, que foi instalada em 1993, fruto de uma luta conjunta
de Ives Macena, diretor do Teatro de Arena Elza Osborne, em Campo Grande, Moacyr
Teixeira e diversos outros artistas da Zona Oeste do Rio de Janeiro desde 1986.
O POETA DO BODEGÃO
Moacyr Teixeira
Três supermercados8.
Cada qual vendendo mais barato.
Fui fazer as compras do mês,
Levei todo o meu salário
Mas o dinheiro não deu.
Voltei durinho, sem um centavo.
Carregando em um só dedo
Um saquinho, menor que o meu.
No Largo do Bodegão, está localizada a Capela de São Jorge e é onde ocorre, todo ano, a tradicional festa do Santo Guerreiro.
6
Referência ao palacete Princesa Isabel que levou mais de vinte anos para ser restaurado e transformado em Centro Cultural.
7
Realmente, estas praias foram um recanto de lazer. Tanto que algumas novelas foram gravadas nessa região. A mais famosa foi O Bem
Amado, de Dias Gomes, com Paulo Gracindo como Odorico Paraguaçu, gravada em Sepetiba. Hoje estas praias foram aterradas, fizeram
calçadões, mas o banho continua proibido.
8
Casas da Banha, Disco e Rainha.
9
Sociedade Musical Francisco Braga, Sociedade Musical Carlos Gomes e Grêmio 24 de Fevereiro.
Que juntas não fazem uma.
Lutando desesperadas, tentando sobreviver.
Bons músicos...
Com muito talento ritmo e aptidões.
Hoje, por ironia do destino
Só destacam nas portas das lojas
Nas liquidações.
O segundo,
Administrado por forças religiosas,
Também fechou.
Depois de muitos perdes e ganhas
Acabou virando reduto de ratos, morcegos e aranhas.
10
Nova citação das três Sociedades Carnavalescas
11
Como André Villon, Moacyr Teixeira também eleva o bairro ao status de cidade.
12
Cine Santa Cruz, Cine Fátima e Palácio Santa Cruz.
13
Distinta Atlético Clube, Esporte Clube Guanabara e Oriente Atlético Clube.
Tivemos também três deputados
E três vereadores14.
Todos eleitos pelo povo de Santa Cruz.
Mas vamos poupar-lhes as críticas
Porque o povo já lhes disse
Tudo a que fizeram jus.
Baseado nos mesmos critérios adotados por Daniel Silva para análise dos textos de
Benjamim de Oliveira, podemos estabelecer um quadro simplificado dos textos de Moacyr
Teixeira, exemplificando como os temas utilizados pelos dois autores é de uma proximidade
significativa15:
14
Conseguimos identificar os vereadores Julio Cesário de Melo e Itagoré Barreto e os deputados Pedro Ferreira e Willer Brilhante.
15
Reconhecendo a necessidade de me debruçar com mais minúcia sobre os textos de Moacyr Teixeira - tal como Daniel Silva debruçou-se
sobre os de Benjamim de Oliveira - para não deixar qualquer fresta de dúvida sobre o diálogo existente entre o teatro praticado por eles,
acredito estar dado o primeiro passo em direção ao estabelecimento desta relação que, em meu entendimento, se configura quando os dois
artistas questionam sua época e sua sociedade, aprimoram-se por seus meios, motivam seus pares e se tornam fundamentais na trajetória que
decidiram traçar e que permanece, ainda hoje, como um caminho aberto à foice para os que continuam vindo por essas trilhas.
O APRENDER FAZENDO
Esta pequena apresentação de João Siqueira por Zeca Ligiéro já traz, em si, para este
trabalho, a afirmação de que, de um jeito ou de outro, o estabelecimento de um artista popular
real, verdadeiro, pode se dar, ainda que em diferentes lugares e situações, de um mesmo
modo.
Morei por dezessete anos em Salvador e fiz, dentre tantos amigos, um amigo/mestre
muito especial, uma espécie de preto velho branco (na linha direta de xangô. Saravá!), um
dos maiores professores, diretores e atores do Brasil, Harildo Déda. Em seu carinho
sarcástico, sempre sarcástico, Harildo repete a mesma frase todas as vezes que alguns bons
amigos se encontram ao acaso: “Deus faz, o vento espalha e o diabo junta”. E, como “Mestre
João Pereira diz que Exu é o diabo” (idem p.152), me permito a brincadeira de iniciar
esta parte final observando que não tem jeito: Deus faz, o vento espalha e Exu, o “grande
Orixá, senhor do tempo, dono das encruzilhadas, senhor da palavra entre os homens e
os Orixás” (idem), junta.
Iniciei a leitura de Benjamin de Oliveira: o Palhaço Negro no salão do branco,
(2014) no intuito de conhecer seu processo de montagem do espetáculo sobre a vida de
Benjamim de Oliveira para compará-la com os processos de Moacyr Teixeira e os possíveis
processos de Benjamim de Oliveira.
Acontece que me deparei com um daqueles sujeitos que Erminia Silva chamou de
“Benjamins”, um daqueles artistas que, como Benjamim e Moacyr, teve que peregrinar por
seu espaço, que pensar, construir, adaptar, planejar, escrever, seu próprio espetáculo, sua
própria arte. Assim como Zeca Ligiéro nos conta que o grupo formado para montar o
espetáculo no NEPPA sentia que:
16
João Reinaldo de Siqueira (1941-1998) é dramaturgo, ator e diretor e pesquisador teatral. Tornou-se um dos maiores entusiastas de
um teatro de forte penetração popular, unindo-se nesse esforço aos teatrólogos Amir Haddad, Augusto Boal e Luís Mendonça,
promovendo encenações em espaços abertos e não-convencionais com temáticas que discorriam sobre o cotidiano popular com forte
conteúdo de crítica social. (idem)
já bem idoso, quando já estava praticamente cego. Interessava-nos o
personagem e, claro, o contexto vivido por ele: como conseguira
impor-se, ainda durante o período escravocrata, na indústria de
entretimento no circo sendo negro, filho de escravos, e nos dois
primeiros governos republicanos consagrar-se como um dos palhaços
mais famosos do Brasil (LIGIÉRO, 2014.p.145-146).
Assim, também fascinado pela história, agora entendo que esta parte de meu trabalho,
mais do que de um modo de fazer do Benjamim, de Moacyr, ou de quem quer que seja,
deveria tratar de “Benjamins”.
Agora percebo que a ligação que busco sustentar entre Benjamim de Oliveira e
Moacyr Teixeira é uma grande rede engendrada por Benjamins Haddad, Benjamins Siqueira,
Benjamins Ligiério, Benjamins Krugli, Benjamins Déda, Benjamins Aderne, Benjamins
Chocolat e tantos outros.
“Tal constatação nos trouxe a certeza da forte ligação de Benjamin com o ofício de
dramaturgo, de ator, diretor e produtor de teatro no circo” (LIGIÉRO, 2014.p.148). Esse,
me parece, é o modus operandi. Há aí um elemento que precisa ser percebido de
transformação para além da técnica e do fazer artístico que se traduz na prática teatral. É
possível, depois de determinado tempo de estudo e pesquisa, estabelecer quais foram as
alterações, as adaptações, as opções estéticas que levaram Benjamim a conceber seu Peri.
Essas escolhas fazem parte do dia-a-dia do fazer teatral. Do trabalho do artista.
Mas o que levou aquele negro Benjamim a ousar ser Peri, Otelo, artista e ainda pago?
O que levou um policial militar a reunir um grupo de jovens debaixo de uma mangueira e
sustentar por quarenta e nove anos um grupo de teatro, sem quaisquer condições, e ainda
denunciando os desmandos do local? O que levou um Professor Doutor, de uma das mais
respeitadas instituições acadêmicas de artes cênicas do país a olhar nos olhos dela, por dentro,
e perguntar cadê seus negros?
CONCLUSÃO
Acredito nisto. Formado em um grupo de teatro amador que foi fundado por um
policial militar, sem qualquer formação artística, não poderia desacreditar. Acredito na
prática teatral como forma de conhecimento e acredito no conhecimento pela prática mais do
que em qualquer outro.
Acho que é, fundamentalmente, este aprender fazendo, que junta Moacyr Teixeira e
Benjamim de Oliveira. Acho que é a descoberta do novo no desdobramento do fazer que
junta o Zeca Ligiéro aos dois primeiros e milhões de outros “Benjamins” a esses três.
E, honestamente, também me sinto um desses milhões de “Benjamins”, afinal...
É claro que projetei a minha história pessoal no texto, mesmo sendo
muito diferente. Tive também uma preta velha em minha vida,
chamada Sá Antonina, e que me contava histórias quando eu era
muito pequeno, mas ela não era minha parente, vinha de tempos em
tempos e se hospedava na grande casa da minha família no interior de
Laje do Muriaé (LIGIÉRO, 2014.p.153).
BIBLIOGRAFIA
- DUARTE, Cristiane Braz de Souza. ETAA: Um Projeto Político Cultural na Zona Oeste
da Cidade do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro: Dissertação (Pós-Graduação) apresentada à
Coordenadoria de Pós-graduação em História do Brasil da FEUC - Fundação Educacional
Unificada Campograndense, 2004.
- LIGIERO, Zeca. Outro Teatro: Do ritual à performance. UNIRIO - Rio de Janeiro: Tese
(Obtenção da progressão ao nível E - Professor Titular em Estudos da Performance), 2014.
- TELLES, Sérgio Roberto dos Passos. Elenco Teatral Amantes da Arte - ETAA: Reflexões
sobre o caráter pedagógico de uma experiência com o Teatro Amador - Escola de Teatro da
UFBA - Salvador, Trabalho de Conclusão de Curso, 2011.
- SILVA, Daniel Marques da. O palhaço negro que dançou a "chula" para marechal de
ferro: Benjamin de Oliveira e a consolidação do circo-teatro no Brasil-Mecanismos e
estratégias artísticas como forma de integração social na Belle Èpoque carioca. UNIRIO -
Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em Artes Cênicas), 2004.
- SILVA, Erminia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil -
São Paulo: Altana, 2007.
ANEXOS