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Capitulo 1 O Mito da Sociedade Primitiva sociedade primitiva foi considerada inicialmente um Aivcnne para estudiosos do Direito. O pai fundador da antropologia britanica, E. B. Tylor, comentou em 1865 que a investigagao de questdes tais como a forma do matriménio primitivo “pertence propriamente a este tema interessante, mas dificil e praticamente pouco desenvolvido, da Jurisprudéncia Comparativa de racas inferiores; e ninguém que nado fosse versado em Direito Civil poderia lhe fazer justiga.”' Os estudos pioneiros foram escritos por juristas — Henry Maine, Johannes Bachofen, J. F. Mc Lennan, Lewis Henry Morgan. As questdes que eles investigaram — 0 desenvolvimento do matriménio e da familia, da propriedade privada e do Estado — foram concebidas em termos legais. Sua fonte inicial, seus estudos de casos comuns foram fornecidos pelo direito romano. Se ha um livro a ser colocado 4 frente dos estudos vitorianos sobre sociedade primitiva, é¢ provavelmente Ancient Law de Henry Maine, publicado em 1861, dois anos depois do A Origem das Espécies. ‘A maior parte das idéias especifieas de Maine foram logo descartadas; porém ele redefiniu uma nogao classica da condigéo humana original, e a fez parecer diretamente relevante para os interesses de seus contemporaneos. Maine supds que os primeiros seres humanos eram membros de um grupo coletivo familiar comandado por um pai des- potico. Gradualmente, os patriarcas mais poderosos atrairam parias da sociedade para se juntar a eles. A associagio local se tornou cada vez mais importante.’ Por fim, as sociedades baseadas no parentesco foram substituidas por sociedades baseadas no territério. Esta transicao do sangue para a terra, do status para o contrato, foi a grande revolugao na histéria humana. No mesmo ano em que Ancient Law foi publicado, um professor suico de direito romano, Johannes Bachofen, releu os mitos gregos como um documeto sociolégico e chegou 4 surpreendente conclusio que a estrutura original familiar nao era patriarcal, mas sim matriarcal. Em 1865, um jurista escocés, J. F. Mc Lennan, reagindo as teorias de Maine, obteve semelhante conclusao 4 de Bachofen, mas aparentemente sem conhecer 0 trabalho deste. A publicagao de Primitive Marriage de McLennan por sua vez inspirou um advogado americano, Lewis Henry Morgan, a desenvolver a mais influente destas imagens novas de instituigGes sociais primordiais. Seu livro mais conhecido, Sociedade Primitiva, apareceu dezesseis anos depois de Ancient Law. O livro ecoou 0 titulo de Maine e pertenceu ao mesmo universo de discurso. Esses nao eram textos convencionais de direito; mas o direito em si nao era, naqueles dias, um campo restrito. Ele incluia a histéria do direito, e prontamente deu espaco para histérias especulativas sobre a origem da lei na sociedade primitiva. Grandes questées filos6ficas foram levantadas para debates, os quais delineariam as recentes teorias sobre histéria e sobre a natureza humana. A presenga macica de Darwin-pairou sobre todas as discussdes a respeito do desenvolvimento humano na Inglaterra vitoriana, mas os juristas geralmente se sentiam mais em casa com as idéias de Herbert Spencer e dos utilitaristas. Macaulay, Stubbs, Freeman, e Froude os confrontaram com novas teorias sobre as origens antigas da constituigdo britanica®. Eles também reagiram as descobertas da filologia alema, mediadas na Gra-Bretanha por Max Miiller. E eles trocaram idéias sobre as origens e a evolugdo humana nas novas sociedades “antropol6gicas”. A Société d’Anthropologie de Paris foi fundada em 1859, ¢ iniciativas similares se seguiram em Londres em 1863 e em Berlim em 1869 (cada uma, naturalmente, com sua propria revista), 2 Ver J. W. Burrow, 1981, A Liberal Descent: Victorian Historians and the English Past. A medida em que a Antropologia comecou a ser profissionalizada no final do século XIX, E. B. Tylor e James George Frazer se estabeleceram como autoridades principais no assunto na Gra-Bretanha. Juntos eles arbitraram as disputas entre Maine, McLennan e Morgan, e definiram as caracteristicas mais gerais das sociedades humanas primordiais. A sociedade primitiva era originalmente um todo orginico, que entao se dividiu em dois ou mais blocos idénticos em construgao. (Esta idéia remetia a Spencer). As unidades constituintes da sociedade eram grupos descendentes associados, ex6gamos, geralmente denomina- dos clas ou grupos familiares [gents], que mantinham bens e mulheres em comum. Em torno de 1880 havia um amplo acordo (apesar da discordancia continua de Maine) de que estes grupos eram originalmente “matriarcais”, tracando uma descendéncia apenas pela linhagem feminina. O casamento se fazia em termos de trocas regulares de mulheres entre homens de grupos de ascendéncia diferentes. Estas formas sociais, nio mais existentes, foram preservadas nas linguas (especialmente em terminologias de parentesco) e¢ nas ceriménias de povos “primitivos” contemporaneos. E impressionante a consonancia que havia mesmo em termos de detalhe. Na década final do século XIX, quase todos os especialistas estariam de acordo com as seguintes proposigdes: 1. As sociedades mais primitivas eram baseadas em relagdes pautadas pelo sangue. 2. As unidades basicas da sociedade eram “clas” ou “gentes” — isto 6, grupos de descendéncia formados pelos descendentes de um homem na linhagem masculina, ou de uma mulher na linhagem feminina. 3. A propriedade era comum a todos, e as mulheres eram mantidas coletivamente pelos homens do cla. 4. Os casamentos eram proibidos entre homens e mulheres que fizessem parte do mesmo cla. (Havia, no entanto, muito debate se teria havido ou naéo um periodo anterior de “promiscuidade primitiva”). 21 5. Cada cla era concebido como descendente de um deus animal ou vegetal, que era reverenciado. Isto era “tote- mismo”. 6. As “sobrevivéncias” destas instituigdes poderiam ser identificados nas ceriménias ou em formas de linguagem das sociedades primitivas contemporaneas. 7. Finalmente, depois de uma grande revolugao, talvez a maior na histéria humana, os grupos de descendéncia definharam, os direitos de propriedade privada foram estabelecidos, a familia moderna nasceu, e um Estado territorial emergiu. A rapidez com a qual os antropélogos desenvolveram a idéia de sociedade primitiva estarrece. No entanto, sua persisténcia é ainda mais extraordindria. As histérias convencionais da antropologia transpassam_ uma sucessao de teorias quase filos6ficas, mas todas estas teorias levaram 4 mesma idéia de sociedade primitiva. Este protétipo persistiu por bem mais de cem anos, apesar do fato de que a investigacéo empirica sistematica das sociedades “primitivas” remanescentes comegou a ser empreendida em todas as escalas apenas na tiltima década do século XIX. Nada disso seria particularmente notavel se a nogao de sociedade primitiva fosse substancialmente pontual. Mas ela nao o €. O conceito como um todo é fundamentalmente débil. Nao ha nenhuma via sensata na qual se pode especificar 0 que é uma sociedade primitiva. O termo implica algum ponto de referéncia histérico. Ele presumivelmente define um tipo de sociedade que antecede formas mais modernas, andlogo 4 historia evoluciondria das espécies naturais. Entretanto, as sociedades humanas nao podem ser tragadas retroativamente até um ponto singular de origem. Tampouco ha algum meio de reconstituir formas sociais pré- histéricas, ou de classificd-las e alinha-las eu uma série temporal. Nao ha fosséis de organizacao social. O ponto inicial do Alto Paleolitico Os seres humanos plenamente modernos se desenvolveram na Africa ha cerca de 150.000 anos. Os primeiros migrantes foram para 0 Oriente Médio ha mais de 40.000 anos e entraram na Europa ha cerca de 22 35.000 anos. Aqui eles gradualmente deslocaram a populagio de Neanderthal, que representava uma variacdo humana anterior, igual- mente de origem africana. Estes humanos plenamente modernos esto associados a uma grande revolugdo cultural. Os primeiros tragos desta foram achados no Oriente Médio. Ha cerca de 30.000 anos atras, chegou na Europa. Em termos arqueologicos, a revolucao marcou a transicao da longa era Paleolitica para o Alto Paleolitico. Nao foi uma revolugao veloz, e alguns arqueélogos sugerem que ganhou forca na Europa apenas 25-20.000 anos atras. Paralelamente, na Africa, a mudanga das sociedades da Média Idade da Pedra para as da Alta Idade da Pedra ocorreu ha apenas 20.000 anos. No entanto, apesar de lentas, modificagdes muito grandes aconteceram no modo de viver humano. Richard Klein julga que a transigao para o Alto Paleolitico “sinaliza a mudanga mais fundamental no comportamento humano que o registro arqueologico pode revelar” desde a invencdo das ferramentas de pedra ha 1.5 milhdes de anos atras3. Lewis Binford enfatiza particularmente “a elaboragao do enterro; a arte; Os ornamentos pessoais; os novos materiais, tais como o osso, os chifres e a pedra macia; o movimento de longa distancia e/ou a circulagao de bens; © uma variagdo crescente de tamanho, duracio e contetido de lugares”. Esta quantidade de inovacées levou Binford a concluir que uma revolugao mais profunda aconteceu. A linguagem se desenvolveu, linguagem no sentido moderno, um veiculo criativo e flexivel, e foi a linguagem que criou as condigGes para a “aparecimento da cultura”s. Tais mudancas fundamentais devem ter criado repercussées na maneira pela qual as comunidades estavam organizadas. No entanto, é muito dificil dizer como eram as sociedades do Alto Paleolitico. Eram claramente de pequena escala. Sua economia era baseada na caca e na coleta. Havia provavelmente pouca estratificagao. O fogo era controlado e utilizado para cozinhar, e ha sinais do que devem ter sido fogos domésticos, mas nenhuma conclusdo pode ser tragada sobre estes terem 3 Richard Klein, 1989, The Human Career. + Lewis Binford, 1989, ‘Isolating the transition to cultural adaptations’ in E.Trinkhaus (ed,) The Emergence of Modern Humans, pp. 35-6. 23 sido unidades domésticas; e, se o eram, quem as habitava, ou se mulheres e homens possuiam tarefas diferentes. As pessoas enterravam seus mortos, talvez uma indicagao de sentimentos religiosos. Alguns acadé- micos especulam que a arte das cavernas reflete crengas em um mundo espiritual. Entretanto, pode-se dizer pouco além sobre as idéias cosmo- légicas correntes durante o Alto Paleolitico com seguranga. Em todo 0 caso, nao se pode supor que todas as sociedades do Alto Paleolitico eram similares. Ao contrario, havia provavelmente variagGes locais em crengas e costumes. Afinal, havia diferengas tecnolégicas significativas entre assentamentos vizinhos, 0 que levou a troca de bens, em alguns casos através de longas distancias. Em suma, a evidéncia arqueolégica pouco pode nos dizer sobre a natureza das sociedades do Alto Paleolitico, tampouco sobre a extensao da conformacdo dessas a um padréo comum. £ apenas com o desen- volvimento da escrita, em torno de 7.000 anos atras, que uma pré- historia sociologicamente informada se torna possfvel. H4, no entanto, uma estratégia alternativa para a reconstrug%o do passado remoto. O préprio Darwin comparou variagées entre espécies vivas a fim de fazer dedugSes sobre seus ancestrais comuns. Os antropélogos sempre foram. tentados, em uma visio mais ingénua, a tratar populagdes vivas como substitutas das sociedades da Idade da Pedra. Para os antropélogos vitorianos, o povo mais proximo a Idade da Pedra eram ou os cacadores- coletores americanos ou os aborigenes australianos, mas os represen- tantes da Idade da Pedra mais famosos na antropologia moderna sao os bosquimanos !Kung do deserto do Kalahari. Estes devem sua proemi- néncia aos estudos conduzidos nas década de 1960 e de 1970 por Richard Lee e seus associados. Seu objetivo explicito era encontrar equivalentes vivos das primeiras populagSes forrageadoras nas planicies da Africa Oriental. Mas eles imaginaram estar descobrindo o estado natural da humanidade. “Nao podemos evitar a suspeita de que muitos de nés foram levados a viver e trabalhar entre os cagadores por sentir que a condicéio humana tendia a ser mais claramente delineada aqui do que entre outros tipos de sociedades”.s 5 Richard Lee and Irven DeVore (eds) 1968, Man the Hunter, p. ix. 24 A persisténcia de uma ilusaio Em termos claros, a histéria da teoria da sociedade primitiva a historia de uma ilusio. E nosso flogisto [phlogisto], nosso éter. Apersisténcia do modelo é particularmente problematica, uma vez que as. suas afirmagGes basicas foram diretamente contraditas pela evidéncia etnografica e pela propria légica da teoria evolucionéria. As dificuldades foram claramente colocadas por académicos notéveis no final do século XIX e infcio do século XX (marcadamente Maine, Westermarck, Boas ¢ Malinowski). Ainda assim, os antropélogos se ocuparam por mais de cem 28 anos com a manipulagdo de um mito que foi construido por juristas especuladores no final do século XIX. Uma maneira comum de justificar a persisténcia de um mito é supor que este possui fungdes politicas. Certamente a idéia de sociedade primitiva poderia e, de fato, alimentou uma variedade de posigdes ideoldgicas. Entre os seus mais celebrados protagonistas, estavam Engels, Freud, Durkheim, e Kropotkin, homens com agendas politicas muito diversas. Os comentadores britanicos e americanos da sociedade primitiva estavam também reagindo a uma variedade de eventos politicos. A rebeliio de Morant Bay na Jamaica e a Guerra Civil nos Estados Unidos reviveram debates anteriores sobre a escravidao. Os argumentos sobre a escravidio, por sua vez, levantaram a grande questo se os seres humanos tiveram todos uma origem comum ou se as racas era espécies separadas, com ancestrais diferentes. Estas questdes dividiram os antropélogos vitorianos, e eles formaram entio duas associagées rivais, a Sociedade Etnolégica de Londres e a Sociedade Antropolégica de Londres. O desenvolvimento do Império Indiano e a colonizagao da Africa incitaram questées mais fundamentais, sobre a natureza do governo e da propria civilizacio, que foram calorosamente debatidas em circulos antropol6gicos. Na Alemanha, especulagdes sobre a cultura nacional e 0 Volksgeist alimentaram a crenga comum que as sociedades eram baseadas em sangue ou terra, mas estas idéias romanticas cram contestadas pelos antropélogos liberais em Berlim. Em suma, ao mesmo tempo em que a idéia de sociedade primitiva era relevante para um grande ntimero de grandes questées politicas, ela nio era necessariamente associada a uma tinica posicao politica. Além disso, 4 medida em que os intelectuais comegaram a se familiarizar com o desafio de Lyell e Darwin ao relato biblico autorizado da Hist6ria, um niimero de antropélogos decidiu que as questdes religiosas eram ainda mais urgentes. No fim, no entanto, pode ser que algo ainda mais fundamental que as preocupagées religiosas ou politicas tenha feito as sociedades primitivas parecerem tao boas para pensar. Os europeus na segunda "George W. Stocking, Jr, 1987, Victorian Anthropology, Capitulo 7. 29 metade do século XIX acreditavam que estavam testemunhando uma transigio revoluciondria. Marx definiu uma sociedade capitalista emergindo de uma sociedade feudal; Weber estava para escrever sobre a racionalizagao, a burocratizagiio, o desencantamento do velho mundo; Tonnies sobre a mudanca de comunidade para associacgo; Durkheim sobre a transformagao das formas mecanicas para as orginicas de solidariedade. Cada um concebia 0 novo mundo em contraste com a “sociedades tradicionais”, mas por detras desta “sociedade tradicional” eles discerniam uma sociedade primitiva ou primeva, a qual configurava a verdadeira antitese da modernidade. A sociedade moderna era definida, acima de tudo, pelo Estado territorial, a famflia monogamica e a propriedade privada. A sociedade primitiva deve ter sido, portanto, némade, ordenada por lacos de sangue, sexualmente promiscua e comunista. Houve também uma progressao na mentalidade. 0 homem primitivo era ilégico e supersticioso. As sociedades tradicionais eram submetidas religidio. A modernidade, por sua vez, era a idade da ciéncia. Mas, ainda que a sociedade primitiva fosse boa para pensar, produzia mais uma mitologia que uma ciéncia. Isto nao significa que nao houvesse desenvolvimentos na teoria, mas mesmo as mitologias também nao sao estaticas. “Um mito, assim que passa a existir, j4 ¢ modificado através da troca de narrador”, de acordo com Lévi-Strauss. “Alguns elementos saem, ¢ sao substituidos por outros, as seqiiéncias mudam de lugares, e a estrutura modificada se move em uma série de estados, variagSes das quais, no entanto, ainda pertencem ao mesmo conjunto”. Essas transformacées nao resultam simplesmente em mudancas peque- nas, em diferencas que podem ser reduzidas a “pequenos incrementos negativos ou positivos”. Antes, as transformagées sAo realizadas por manipulagGes sistematicas do mito como um todo, e elas produzem “relacionamentos distintos, tais como contrarios, contradigées, inversées e simetrias”, Nao havia nada particularmente primitivo sobre essa forma de pensamento. “O tipo de légica no pensamento mitico € tao rigoroso quanto o da ciéncia moderna’, insiste Lévi-Strauss, “e a diferenga reside 4% Claude Levi-Strauss, 1981, The Naked Man, p. 675, 30 nao na qualidade do processo intelectual, mas na natureza das coisas ao qual este aplicado”.s Em 0 Pensamento Selvagem, ele desenvolveu o tema de que a imaginacao “selvagem” (ou inculta, nao domesticada) trabalhava em formas compardveis a0 pensamento cientifico sofisticado, € aos processos que produzem grande arte. Até aonde ele esta correto, teorias cientificas podem ter muito em comum com os mitos amazénicos, cientistas podem pensar de algum modo como artistas, e talvez nés todos pensemos, ao menos as vezes, como os indios amaz6nicos. E, ainda assim, ha certamente uma grande diferenca entre 0 ideal estabelecido de pensamento cientifico e o que Lévi-Strauss chama de “a logica do concreto”. As teorias cientificas deveriam ser aperfeigoadas. O entendimento deveria avancar. Nao se volta atras na ciéncia. Mas, colo- cando de forma simples, se um argumento avanca virando um argumento anterior de cabeca para baixo, entio em algum momento alguém ira efetuar uma transformagdo seguinte colocando-o na posigao inicial. Uma série de transformagées estruturais tende a acabar onde se iniciou. E parece que modelos sucessivos de sociedade primitiva representam transformagées diretas, mesmo mecanicas, de seus predecessores. De fato, este livro é em grande medida uma consideracdo das transformacées de uma ilusao dentro de um discurso cada vez mais hermético. Entra Darwin E freqiiente ver a rejeigio da realidade da sociedade primitiva como uma negagao do Darwinismo. Nada poderia ser menos verdadeiro. As teorias darwinianas direcionam a atengio para variagio, para a adaptagio a condigdes locais e, conseqiientemente, para a diversificagio. Uma das poucas coisas que pode seguramente ser dito sobre as primeiras sociedades humanas é que elas devem ter representado uma variedade de adaptagdes. Uma vez que as variagdes ecol6gicas restringem a organiza- Go social, especialmente quando a tecnologia € simples, haveria dife- rengas considerdveis na estrutura social. Em base puramente teérica, um darwiniano poderia relutar em acreditar que as primeiras sociedades © Claude Levi-Strauss, 1963, Structural Anthropology, p. 230. 31 tiveram todas a mesma forma, muito menos que elas foram orientadas por alguma dindmica interna para gerar uma série comum de transformagées. Isto era ébvio para alguns dos antopélogos vitorianos. Foi por estas razdes que Henry Maine, um nio-darwiniano, rejeitou a idéia que todas as sociedades tinham passado pelos mesmos estégios. Até onde eu saiba, nao ha nada na historia registrada da sociedade que justifique a crenca de que, durante o vasto capitulo de seu crescimento, ‘© qual nao est ainda totalmente escrito, as mesmas transformacées da constituicao social sucedessem uma A outra em todos os lugares, de forma uniforme, sendo simultinea. Uma grande forca residindo nas profundezas da natureza humana, e nunca estagnada, deveria sem davida, ao longo do tempo, produzir um resultado uniforme, a despeito das grandes variedades que acompanham a luta inexordvel pela existéncia; mas é um tanto inacreditavel que a aco desta forca fosse uniforme do inicio ao fim.4 Aorigem do homem “Origem do homem agora provada. ~— A metafisica deve florescer. — Ele que entende baboon faria mais pela metafisica do que Locke."s. Darwin colocou esse famoso silogismo em seu “Notebook on the Man”, que ele expés em 1838. Seu tema central era que todas as atividades mentais podem ser reduzidas a processos neurais. Mesmo o amor divino era uma fungdo da organizagio do cérebro - “oh, seu Materialista!”'* Huxley havia demonstrado que os cérebros humanos eram estrutu- ralmente similares aos de outros primatas, embora fossem maiores presumivelmente mais complexos. “Se as varias faculdades mentais gradualmente se desenvolvessem, 0 cérebro quase certamente se tornaria maior’, concluiu Darwin. “Ninguém, eu presumo, duvida que a grande proporgio que o tamanho do cérebro do homem ocupa em seu corpo, comparado com a mesma proporgio no gorila ou no orangotango, esta claramente associada com seus poderes mentais maiores”!7 Henry Maine, 1883, Dissertations on Early Law and Custom, pp. 218-19. ‘s Howard E. Gruber, 1974, Darwin on Man, p. 281. Adrian Desmond and James Moore, 1991, Darwin, p. 250. Charles Darwin, 1871, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, p.81, A especializagio do cérebro foi uma conseqiiéncia da selegio natural. Os selvagens viviam nas mesmas condigdes que os outros animais. A sobrevivéncia era extremamente incerta. “Sabe-se que os selvagens sofrem severamente de fomes recorrentes; eles nao reforcam sua comida por meios artificiais. Eles raramente abstém-se do casamento, e geralmente se catam jovens. Conseqiientemente, eles devem estar sujeitos a ocasionais lutas severas pela existéncia, e os favorecidos sobreviverdo sozinhos"’. Estes individuos favorecidos também se reproduziriam fora do grupo. “Podemos ver que, neste estado mais rudimentar de sociedade, os individuos que eram mais sagazes, que inventavam e usavam as melhores armas ou armadilhas, ¢ que eram os mais habeis ao se defender, criariam um nimero maior de filhos, As tribos que inclufam 0 maior nimero de homens dotados dessa forma, cresceriam em niimero e suplantariam outras tribos."» desenvolvimento do cérebro também promoveria qualidades sociais e morais (as quais Darwin reconheceu serem de uma importancia maior que a simples inteligéncia). Um senso moral podia ser encontrado entre outros animais, mas seu alto desenvolvimento entre seres humanos foi o resultado de uma selecado natural “auxiliada pelo habito adquirido”.2° Inteligéncia e prinefpios morais se desenvolveram juntos. E, A medida em que as sociedades avancaram, elas ficaram progressiva- mente adeptas a assimilar valores morais. “As causas mais eficientes do progresso parecem consistir de uma boa educacio durante a juventude, quando 0 cérebro é inculeavel, e de um um alto padrao de exceléncia, impresso pelos homens mais habeis e melhores, incorporado nas leis, nos costumes ¢ nas tradigdes da nagio, € %8 Darwin, Descent of Man, p. 96. 9 Darwin, Descent of Man, p. 196. 2 Darwin, Descent of Man, p. 199. 33 reforcados pela opiniao piblica.”=' “Assim, as qualidades morais e sociais tenderiam a avancar lentamente e a serem difundidas pelo mundo.”*? Havia um paradoxo aqui. As “qualidades morais” se desenvol- veram e se espalharam através da selegio natural. Porém, ainda que clas tenham sido um sucesso para a comunidade, isto aconteceu com algum custo ao individuo. Nao deve ser esquecido que, embora um alto padrio de moralidade garanta pouca ou nenhuma vantagem 2o individuo e seus filhos sobre os ‘outros homens da mesma tribo, ainda assim um aumento no mimero de homens bem-dotados e um avango do padrao de moralidade certamente dara uma vantagem imensa de uma tribo sobre a outra. Uma tribo incluindo muitos membros, os quais, por possuir em alto nivel o espirito de patriotismo, fidelidade, obediéncia, coragem ¢ simpatia, estive-ram ‘sempre prontos a ajudar um ao outro, e por se sacrificar pelo bem comum, seriam vitoriosos sobre a maioria das outras tribos: e isso seria selecio natural.2} Mas isto é selegio natural? Parece mais com o que hoje é desdenhosamente descrito como “selegio grupal”. A doutrina de Darwin tratava da selecao natural funcionando sobre os individuos. No entanto, ele achava que os seres humanos haviam se tornado espécies domes- ticadas, e nas espécies domesticadas o reprodutor impée suas proprias exigéncias, selecionando por qualidades que podem nao funcionar muito bem na natureza. Darwin observou com preocupacaio que os ganhos da selecao natural estavam sendo dissipados inconseqiientemente nas sociedades modernas mais avancadas. Riqueza e poder eram herdados, mesmo se os herdeiros fossem inaptos. As pessoas protegiam seus parentes mais fracos e até os encorajavam a se reproduzir. Tampouco os individuos mais adequados eram necessariamente recompensados com vasta prole. Darwin lamentava que os homens agora escolhiam suas mulheres com critérios frivolos, e que homens ambiciosos e bem- 2 Darwin, Descent of Man, p. 220. Darwin, Descent of Man, p. 200. 23 Darwin, Descent of Man, p. 203. 34 sucedidos tendiam a adiar o casamento e ter poucos filhos, enquanto que 0s pobres reproduziam como coelhos. Darwin concluiu que, & medida em que a tecnologia avancava, a selegdo natural tornava-se menos decisiva. Sobre esse assunto, ele citou as visdes de Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da sele¢ao natural: Sr Wallace... argumenta que 0 homem, depois de ter adquirido par- cialmente aquelas faculdades morais ¢ intelectuais que os distingiie de animais inferiores, teria se tornado pouco propenso a modificacbes corporais através da selegdo natural ou quaisquer outros meics... Ele inventa as armas, as ferramentas e varios estratagemas para procurar ‘comida e se defender. Quando migra para um clima mais frio usa casaco, constréi abrigos e faz 0 fogo; e, com a ajuda do fogo, cozinha o alimento que seria indigesto de outra foma. Ele auxilia seus companheiros de muitas maneiras e antecipa eventos futuros. Mesmo em um tempo remoto ele praticava alguma divisao do trabalho.*+ “Evolucionismo” ou Darwinismo? Nas duas décadas que se seguiram a publicagéo da Origem das Espécies, em 1859, surgiram uma série de monografias que lidavam de uma maneira nova e urgente com a sociedade primitiva, a evolugo do casamento e da familia, e a elevacao da ciéncia em detrimento da magia e da religiéo. Os autores destes livros (que inclufam mais notavelmente Maine, Tylor, Lobbock, McLennan e Morgan) desenvolveram um discurso coerente novo. Referindo-se mutuamente aos seus trabalhos, e a despeito das diferencas sobre muitas questdes que pareciam ser para eles de importAncia decisiva, eles geralmente concordavam (embora Maine tenha tido suas dividas) que um avanco direto poderia ser estabelecido a partir da sociedade primitiva, através de varios estagios intermedidrios, até a sociedade moderna. Quando a antropologia se estabeleceu nas universidades no século XX, e as historias da disciplina comecaram a ser escritas, esses antrop6logos pioneiros foram convencionalmente agrupados como “evolucionistas”. No entanto, J.W. Burrow protestou contra a invocagdo 4 Darwin, Descent of Man, p.195-196 35 ritual do nome de Darwin para explicar a natureza da antropologia vitoriana. Em termos de profissio, os antropélogos pioneiros eram juristas, classicistas e tedlogos. Eles estavam mais suscetiveis a influéncia de historiadores e fil6sofos do que aos achados dos cientistas naturais, e estavam mais impressionados pelas ligdes de filologia comparativa que pela biologia darwiniana. “Darwin foi sem divida importante”, concluiu Burrow, “mas é um tipo de importancia impossivel de estimar precisa- mente. Ele nao foi certamente o pai da antropologia evolucionaria, mas possivelmente foi seu tio rico."*5 Admitamos, um tio rico nao deve ser desconsiderado. No entan- to, a teoria darwiniana ofereceu um nimero de pistas distintas, e foi possivel selecionar dentre elas. A tese de que os seres humanos tinham evoluido dos macacos africanos perturbou profundamente muitos contemporaneos. “Meu querido e velho amigo” escreveu o capitio aristocratico Robert Fitzroy, outrora do HMS Beagle, para o companheiro de um das suas viagens, Charles Darwin, “eu, a0 menos, nao posso achar nada ‘enobrecedor’ na idéia de ser um descendente mesmo do mais antigo primata”.*° Fitzroy estava suficientemente preocupado a ponto de comparecer ao famoso debate sobre A Origem das Espécies de Darwin, o qual ocorreu em Oxford, em junho de 1860. O Bispo Wilberforce quis saber se Huxley descendia de um macaco pelo lado da famflia de sua av6 ‘ou da de seu avé. “O Senhor o entregou em minhas mos”, Huxley murmurou ao seu vizinho, e respondeu: “Se eu tivesse que preferir um primata miseravel como avd ou um homem altamente dotado pela natureza e possuidor de grandes meios e influéncia, mas que emprega estas qualidades com um mero propésito de trazer o ridiculo para uma discussao cientifica séria - eu afirmaria sem hesitagao minha preferéncia pelo primata”. Houve uma comogio na sala, durante a qual Fitzroy se levantou, agitou uma cépia da biblia, implorou a audiéncia para acreditar na palavra sagrada de Deus, e expressou seu arrependimento por ter dado a %5 J.W.Burrow, 1966, Evolution and Society, p.114 % Janet Browne, 2002, Charles Darwin: the Power ofthe Place, p.94 36 Darwin a oportunidade de coletar fatos para basear uma teoria tao chocante.” Darwin, por sorte, estava muito doente para comparecer & reuniao em Oxford (problemas estomacais). No entanto, ele nao estava otimista com a recepcao de suas idéias. Ele hesitou por uma década antes de se expor novamente. Porém, quando ele publicou The Descent of Man em 1871, a doutrina da descendéncia comum havia sido amplamente aceita pelos bidlogos e antropélogos britanicos. Até mesmo os antropélogos mais simpaticamente inclinados trataram o restante da teoria darwiniana como um menu a la carte. Afinal, o principio da selecdo natural foi contestado por bidlogos que estavam proximos a Darwin. Mesmo o fiel Huxley era cético. Os antropélogos em geral ignoraram a questio, embora gostassem de citar o mote de Spencer sobre “a luta pela sobrevivéncia”. “Nem Maine, tampouco Tylor ou McLennan fizeram muito uso da teoria da selegio natural”, escreve Burrows, “e Spencer a utilizou apenas como um adomo para uma teoria que ele jé havia desenvolvido”.:* O considerado pai da antropologia britanica, E. B. Tylor foi um ortodoxo suficientemente darwiniano “sempre quando ele deve se pronunciar sobre os problemas fisicos relacionados a descendéncia humana” observou seu biografo; mas, caso contrario, seu darwinismo nao foi tao longe. “Embora ele usasse ocasionalmente a preferencialmente sonora frase ‘evolucao', a qual Darwin tomou de Herbert Spencer, talvez sem prestar muita atengio As suas implicagées filoséficas, Tylor prefere decididamente falar simplesmente em ‘desenvolvimento’ da cultura.”9 © antropélogo vitoriano mais amplamente lido, James George Frazer, nao mostrou interesse algum pela teoria darwiniana.%° O antropélogo de Oxford R. R. Marrett admitiu, em seu livro Antropologia, publicado em 1911, que a “Antropologia é o filho de Darwin”; mas assim como Tylor, ele enfatizava a teoria da descendéncia comum e nao tinha nada a dizer sobre selecdo natural. 2 Para uma narrativa completa da famosa reuniio de Oxford, Ver Janet Browne, Charles Darwin: the Power of the Place,p.94 Burrow, Evolution and Society, pais R.RMarrett, 1936, Tylor, p.19 indice para a biografia oficial, J.G.Frazer, de Robert Ackerman (1987) possui apenas trés breves referéncias a Darwin. ese 37 Qual é a verdade que o darwinismo supde? Simplesmente que todas as formas de vida no mundo esto relacionadas. E que as relagdes manifestas no tempo e no espaco entre as diferentes vidas sio suficientemente uniformes para serem descritas sob uma formula geral, ou lei, ou evolugio.* Sua contrapartida em Cambridge, Alfred Haddon, que iniciou a carreira como biélogo, fez apenas duas breves referéncias a Darwin em seu History of Anthropology, publicada em 1934. Ele concluiu, assim como Marett, que a contribuicdo principal de Darwin era estabelecer a origem natural das espécies humanas. Além do mais, o darwinismo perdeu espago entre os biélogos na iiltima década do século XIX, mesmo na Inglaterra. Julian Huxley chamou este momento de “eclipse do darwinismo” ¢ isto durou até a sintese evolucionaria das décadas de 1930 e 1940 ter unido a teoria darwiniana e a genética mendeliana.s? Uma teoria lancada em 1800 por um biélogo francés, Jean-Baptiste de Lamarck, voltou a ficar em voga. De acordo com Lamarck, todas as espécies tinham um desejo inato de progredir e, a medida em que progrediam, elas se tornavam cada vez mais complexas e eficientes. Nao apenas espécies inteiras mudaram e melhoraram, mas cada individuo devia adquirir caracteristicas novas e melhores em seu proprio curso de vida, e que eram transmitidas a seus descendentes. Esta nogdo de que os tracos adquiridos em uma geragdo poderiam ser passados as proximas foi compartilhada pela maioria dos bidlogos ainda no fim do século XIX e inicio do XX, incluindo, ao menos algumas vezes, o proprio Darwin. Lamarck também acreditou que as mudangas evoluciondrias eram de fato revoluciondrias. Os avangos tomavam forma de grandes saltos. O lamarckismo tinha seus altos e baixos. O grande bidlogo francés Cuvier havia denunciado o lamarckismo logo apés a morte de seu autor (usando a ocasiao da discurso finebre formal, a qual ele teve que proferir em seu papel de secretario permanente da Academia Francesa de Ciéncias). No entanto, muitos biélogos notaveis na Franga se descre- veriam como lamarckianos até o final do século XIX e, na Alemanha, 3 RR, Marrett, 1911, Anthropology, pp. 8-9 2 Ver Peter J. Bowler, 1983, The Eclipse of Darwinism. 38 Ernst Haeckel era tio darwiniano quanto lamarckista. Um movimento neo-lamarckista floresceu nos Estados Unidos durante a década de 1880, quando adquiriu uma tendéncia fortemente teolégica. Na Gra-Bretanha, o mentor de Darwin, Charles Lyell, havia publicado toda uma critica a respeito de Lamarck, e o proprio Darwin olhava a teoria com desprezo. “Que os céus me protejam”, escreveu ele devotamente, “do absurdo de Lamarck da 'tendéncia ao avango', ‘adaptagdes a partir da lenta disposigao dos animais’, etc”ss Mas 0 tratamento de Lyell foi tao suave que ele converteu 0 filésofo social Herbert Spencer ao Lamarckismo, e Spencer por sua vez influenciava um niimero de pensadores sociais, incluindo varios dos antrop6logos vitorianos. Burrow esta certamente correto: a influéncia direta da teoria darwiniana sobre o pensamento das primeiras duas geracées de antropélogos foi difusa e freqiientemente superficial. Para Tylor, Morgan, Frazer e Marret, Darwin oferecia a garantia de que a histéria dos seres humanos era uma, mesmo se pudesse ser conferida maior ou menor importanciase a diferenciagdo racial. Ele também propiciou uma explicago biologica para o progresso gradual de racionalidade — na medida que os seres humanos se desenvolviam, seus cérebros se tornavam maiores. Mas ele nao perturbou as idéias sobre progresso cultural que os vitorianos herdaram dos filésofos do século XVIII.34 Ao contrario, Darwin estava confiante que a civilizagao havia progredido, e a moralidade junto com ela. Nés deveriamos olhar para tras e exultar: Dificilmente poderia haver divida de que os habitantes de... quase todo 0 mundo civilizado, estiveram alguma vez em uma condigéo de barbarie, Acreditar que o homem foi civilizado de forma aborigene e depois sofreu degradacao completa em tantas regides, é ter uma baixa e desprezivel visio da natureza humana. £ aparentemente uma visio mais verdadeira e mais animadora a de que o progresso tem sido muito mais amplo do que 0 retrocesso; de que o homem tem emergido, ainda que em passos lentos e interruptos, de uma condi¢ao baixa para um padrao mais alto até agora obtido através do conhecimento, na moral e na religiio.%5 2 Citado em L.J. Jordanova, 1984, Lamarck, p.106 George W. Stocking, 1987, Victorian Anthropology, Capitulo 5 38 Darwin,Descent of Man, p.224 39

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