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ANEXOS
ANEXO A
Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos.
Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é
a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos
atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação
económica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo
já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e
é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado
muito mais.
Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o
problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em
vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e
crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados
em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de
prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já
está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem
as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se
estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem
como meta a solução económica do problema da comida serão tão abençoados por nós como,
em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.
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ANEXO B
Eu própria não uso palavrões porque na minha casa, na infância, não usavam e
habituei-me a me exprimir através de outro linguajar. Mas o palavrão – aquele que expressa o
que uma palavra não faria - esse não me choca. Há peças de teatro, como A volta ao lar
(Fernanda Montenegro, excelente) ou Dois perdidos numa noite suja (Fauzi Arap e Nélson
Xavier, excelentes), que simplesmente não poderiam passar sem o palavrão por causa do
ambiente em que se passam e pelo tipo dos personagens. Essas duas peças, por exemplo, são
de alta qualidade, e não podem ser restringidas.
Além do mais, quem vai ao teatro em geral já está pelo menos ligeiramente informado,
por rumores até, da espécie de espetáculo a que assistirá. Se o palavrão lhe dá mal-estar ou o
escandaliza, por que então comprar a entrada?
E mais ainda: as peças de teatro têm censura de idade, e o mais comum é só permitir a
entrada de menores a partir de dezesseis anos, o que é uma garantia. Embora mesmo antes
dessa idade os palavrões sejam conhecidos e usados pela maioria da juventude moderna.
Qual é então o problema que o uso do palavrão adequado a um texto poderia suscitar?
E sem falar que, agrade ou não, o palavrão faz parte da língua portuguesa.
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ANEXO C
ANEXO D
Medo da libertação
ANEXO E
ANEXO F
A política em Clarice Lispector, por Silviano Santiago
uma jovem e talentosa artista que se cerca de intelectuais confessadamente católicos, como
Lúcio Cardoso, ou discretamente católicos, como Fernando Sabino, despertando num outro
católico, Antônio Callado, a ideia de que tinha morrido cristã. Isso está em depoimento do
escritor fluminense feito por ocasião do enterro do corpo de Clarice em cemitério judeu.
Esses dois pares de imagens, essas quatro imagens contraditórias talvez encontrem
uma primeira chave de leitura nas grandes polêmicas que começaram a sacudir, pouco antes
da Primeira Grande Guerra, o mundo judaico na Alemanha. Trata-se de uma coincidência?
Coincidência, ou não, tomemos a questão como hipótese de trabalho e continuemos a crônica
pelo lado religioso.
No início deste século, em reação ao anti-semitismo e ao espírito antiliberal que
começa a grassar na alta burguesia alemã, os intelectuais judeus colocam uma questão
candente: como continuar administrando a propriedade espiritual de uma nação, no caso a
germânica, que estava negando aos judeus o direito e a habilidade para o fazer? Surgem três
posturas básicas. Uma, de inspiração burguesa e tradicionalista, minimiza os recentes fatos
que acentuam o anti-semitismo. O judeu deve prosseguir silenciosamente seu caminho de
liderança espiritual, integrando-se mais e mais ao Estado alemão. A segunda, sionista,
questiona a infindável errância do povo judeu e luta resolutamente pela criação imediata de
um Estado nacional judeu, no caso Jerusalém. Defendida por jovens e rebeldes intelectuais
como Ernst Bloch e Walter Benjamin, a terceira postura vai ser a responsável por “uma nova
sensibilidade judia”, para usar as palavras do historiador e nosso guia Anson Rabinbach.
Trata-se do aprimoramento duma sensibilidade radical, secular e messiânica, que entraria em
evidente conflito com as duas primeiras posturas.
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Em que a descrição rápida dessas três posturas pode nos ajudar a compreender certa
coerência política na personalidade multifacetada de Clarice Lispector?
Vivendo num país de chocantes e incontornáveis problemas sociais, Clarice se
sustenta em valores espirituais fortes e universalizantes. Vendo que o país de adoção acolhe
simpaticamente os refugiados judeus que por aqui arribam, acaba por não ter de enfrentar no
cotidiano o preconceito religioso. Clarice minimiza o poder do judaísmo na sua formação
intelectual, ao mesmo tempo que se amolda suave e gradativamente aos contornos impostos
pela outra pátria cristã. Em várias e repetidas vezes, confessa-se brasileira e diz pensar e sentir
em português. Contraditoriamente, mais a imigrante judia se adapta sem rebeldia à nova
moldura nacional, mais indignada e pessimista fica quanto ao mundo tal como ele se lhe
apresenta.
O mergulho na especificidade brasileira é motivo para a crescente indignação contra a
miséria em que vive nosso povo, seja ele o pobre nordestino seja ele o marginal assassinado
pela polícia, como é o caso paradigmático do bandido Mineirinho (cf. A legião estrangeira).
Se essa indignação, alimentada pela fome de justiça social, não robustece a reflexão e o fazer