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DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES:
Cultura, Comunicação e ORGANIZADORES
Diversidade no Contexto Ernani Cesar de Freitas
Juracy Assmann Saraiva
Contemporâneo Gislene Feiten Haubrich
2ª Edição
DIRETORA DO INSTITUTO
DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Marinês Andrea Kunz A revisão textual e adequação às normas ABNT
são de responsabilidade dos autores e orientadores.
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Cristina Ennes da Silva
Joelma Rejane Maino
© Editora Feevale –
EDITORA FEEVALE TODOS OS DIREITOS RESERVADOS -
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Graziele Borguetto Souza meio. A violação dos direitos do autor (Lei n.º 9.610/98) é crime estabelecido
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Adriana Christ Kuczynski
Vinícius Boff Flores Universidade Feevale
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Novo Hamburgo/RS - Brasil
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Graziele Borguetto
Sumário
126 Aforma
midiático sobre a saúde interdisciplinaridade e a totalidade como
Amanda Braga Silveira de superação da fragmentação do
conhecimento
139
Práticas discursivas e representação
191 OMundo,
imaginário poético de Vozes do Sul do
de Luiz de Miranda
271 espaços de sociabilidade em Pelotas na
A cidade como palco da sociabilidade:
Camilo Mattar Raabe
segunda metade do século XIX
7
325 Uma infância de luxo: discutindo
consumo, moda e criança nas páginas da 424 Amulher
representação da violência contra a
de jovens participantes do Projeto
Vogue Kids Brasil Pescar, no município de Canoas/RS
Débora Cristine Flesch Gislaine Cristina Pereira
Silvia Zuffo
436
identidade e interdisciplinaridade A mídia e a construção do ethos do
Eliana Cristina Caporale Barcellos professor grevista
Beatriz Alice Weyne Kullmann de Souza Gláucia Knob
Luciana Maria Crestani
463
A paisagem periférica como influência nas
Jaguarense (RS)
Larissa Bitar Duarte 638 Narrativas, técnicas e estratégias nas redes:
uma análise das coberturas do G1 e do
Daniel Luciano Gevehr Mídia Ninja nos protestos de 13 e 31 de
março de 2016
699 OFederal
direito de solidariedade na Constituição
de 1988, seus aspectos jurídicos, 781 Herança e errância em barba ensopada de
sangue, de Daniel Galera
sociológicos e pedagógicos e sua
Ricardo Postal
aplicabilidade no estado democratico de
direito
Patrícia Fontes Marçal
Dinora Tereza Zuccheti
793 Electra no circo
Roseli Bodnar
832 Aperspectiva
literatura no ensino médio sob nova
900 Cultura e audiovisual: o campo do cinema
contemporâneo e os desafios políticos da
Seli Blume Alles representatividade
Juracy Assmann Saraiva Vanessa Kalindra Labre de Oliveira
851 Suvenir
criativo
cultural: produto memorialístico e
861
Análise do processo criativo em uma
agência de publicidade e propaganda
Tais Bitencourt Valente
Cristiano Max Pereira Pinheiro
Dusan Schreiber
873 “Aviolências
Geni” mora aqui?!: feminismos e
11
Sumário
APRESENTAÇÃO
INTERDISCIPLINARIDADE: trata-se de um em Letras. Ancorado na tradição multi e in-
movimento, um conceito e uma prática que está em terdisciplinar da pesquisa e da pós-graduação
processo de construção e desenvolvimento dentro das na Universidade Feevale, o e-book contempla
ciências e do ensino das ciências, sendo estes dois textos que proporcionam leituras qualificadas
campos distintos nos quais a interdisciplinaridade se e fecundas para o diagnóstico e, principalmen-
faz presente. te, à busca por respostas às problemáticas con-
temporâneas no entorno da cultura, sua diver-
sidade e suas manifestações.
PROMOÇÃO INSTITUCIONAL ATRAVÉS Abstract: In this article, the Cia Zaffari of Super-
DA CULTURA markets and the cultural activities sponsored by the
company will be analyzed, considering the cultu-
INSTITUTIONAL PROMOTION THROUGH CULTURE ral sponsorship as means of communication. What
the outcomes of the image of this company are, and
Adriana Donato dos Reis (PUC-RS)1 what the benefits of the cultural actions are. The
object of analysis will be one of the main activities
Resumo: Neste artigo será analisado a Cia Zaffari promoted by the company, community concerts.
de Supermercados e as atividades culturais patro- The purpose is to understand how the image of this
cinadas pela empresa, considerando o patrocínio supermarket chain is built through the cultural ap-
cultural enquanto meio de comunicação. Quais os proach undertaken by the brand. The text seeks to
desdobramentos da imagem desta Cia e quais os reflect on the implicit code in the message between
benefícios das ações culturais. O objeto de análise the sender and the receiver, and the investment of
será uma das principais atividades promovidas pela institutional self-image sustained in the emotion.
empresa, os concertos comunitários. O propósito é The investigation objects for this reflection were 14
compreender como a imagem desta rede de super- two campaigns: Zaffari Community Concerts and
mercados é construída através do enfoque cultural Community Christmas Concert.
empreendido pela marca. O texto busca fazer uma Keywords: Communication. Promotional actions.
reflexão sobre o código implícito na mensagem en- Culture. Cia Zaffari.
tre o emissor e receptor, e o investimento da au-
to-imagem institucional sustentada na emoção.
O objeto de investigação para essa reflexão foram INTRODUÇÃO
duas campanhas: os Concertos Comunitários Zaf-
fari e Concerto Comunitário de Natal. Ao observar a promoção cultural e a linguagem
Palavras-chave: Comunicação. Ações Promocio- utilizada na publicidade das ações da Cia Zaffari,
nais. Cultura. Cia Zaffari. surgem algumas indagações. De que forma a cultu-
ra se relaciona com a comunicação e com as ações
1
Mestranda em Comunicação Social - PUCRS. Especialista em Economia da Cultura - UFRGS. Graduada em Artes Visuais -
UFRGS. Parecerista do Ministério da Cultura, e-mail: adriarte@gmail.com.
Sumário
promocionais? Será que esta estratégia, sustentada O objeto de investigação para essa reflexão foram
no consumo emocional, consegue contribuir para a duas campanhas da Cia Zaffari: os Concertos Comu-
imagem da empresa? nitários Zaffari e Concerto Comunitário de Natal.
O texto discorre sobre como se dá o código im- Foram observadas mídia televisiva, jornal e site da
plícito no discurso promocional e suas estratégias empresa, lançados entre os anos de 2014 e 2015.
para um discurso sustentado na emoção, através de
uma imagem que se constituiu em uma maneira de A CIA ZAFFARI E SUAS AÇÕES CULTURAIS
fazer crer, o que Charaudeau considera um discurso
de incitação. O Grupo Zaffari teve início em meados da déca-
Muitos críticos do patrocínio cultural acredi- da de 1930, quando Francisco José Zaffari e sua espo-
tam que esses são os principais motivos para que sa Santina De Carli Zaffari abriram um armazém de
uma empresa se interesse em investir em cultura. secos e molhados na Vila Sete de Setembro, interior
O presente artigo não tem a pretensão de analisar de Erechim, RS, Brasil. Em 1940, a família muda-se
o assunto sobre este aspecto, no entanto a análise para Erval Grande, também Rio Grande do Sul, e abre
também foi válida para tal reflexão. Pode-se com- uma nova casa comercial, mais ampla e com maior 15
preender que a imagem da empresa é construída variedade de produtos. Nos anos 1950, os negócios
pelo discurso com enfoque cultural empreendido prosperam e a família inaugura as primeiras filiais
pela marca. em localidades vizinhas. Na década de 1960, já em
Quando uma empresa se torna a promotora de Porto Alegre, é inaugurada a primeira loja de su-
um evento, o grande motivador não é somente à ise- permercado da rede, situado na Av. Protásio Alves.
nção fiscal obtida; se fosse só isso, o atrativo para Até a década de 1970, várias lojas são inauguradas
que uma empresa desenvolvesse patrocínios na área na capital gaúcha. O Zaffari Ipiranga, situado na Av.
cultural se reduziria. Entretanto, quando o desen- Ipiranga, trouxe uma grande inovação no conceito
volvimento cultural é visto de forma estratégica de autosserviço para Porto Alegre, enquanto o Zaf-
para a imagem da empresa, o reconhecimento da fari Higienópolis destacou-se com as seções de im-
marca frente ao seu público se faz relevante. portados, bazar e decoração. Em fins dos anos 1970
As estratégias destas ações serão analisadas sob e início dos anos 1980, surgem os hipermercados na
a hipótese da teoria empírica e teoria do agenda- região metropolitana de Porto Alegre. Em dezem-
mento. bro de 1991, é inaugurado o Bourbon Shopping da
Assis Brasil, um novo conceito de supermercado,
Sumário
com lojas e serviços. Estes empreendimentos são Os espetáculos são realizados em parques, igrejas,
encontrados hoje em várias cidades do Rio Grande praças e nos estacionamentos das lojas da rede.
do Sul e em São Paulo. Em 2001, surge o Bourbon Essa iniciativa obteve reconhecimento da socie-
Shopping Country que, além de supermercado, lo- dade, traduzido na forma de duas premiações. Em
jas, serviços e livrarias, abriga também o Teatro do 1995, a FEDERASUL conferiu à Companhia Zaffari o
Bourbon Country. Hoje, a Cia Zaffari possui uma prêmio Líderes e Vencedores, na categoria Destaque
rede de 27 supermercados e hipermercados no Rio Comunitário. No final de 1999, a Rede Globo e a RBS
Grande do Sul, além de 7 shoppings centers no Rio homenagearam a empresa com o troféu Construir,
Grande do Sul e o Bourbon Shopping São Paulo, na na categoria Destaque Cultural (www.zaffari.com.
capital paulista (www.zaffari.com.br, 2016). br, 2015).
Conforme a pesquisadora Maria Lília Dias de A promoção cultural tem a cultura como base
Castro (2004), em um estudo sobre companhias de e instrumento para transmitir determinada men-
redes de supermercados, a Cia Zaffari teve por ob- sagem a um público específico, sem que a cultu-
jetivo a construção de um estilo próprio. O desen- ra seja a atividade fim (REIS, 2003). O discurso é
volvimento deste estilo decorre da vontade de mar- construído pelo emissor (Zaffari) através da cultu- 16
car posição junto ao público e de obter sua simpatia. ra-produto (supermercado) para um receptor (pú-
Alinham-se as ações que vão da promoção de pro- blico). O produto principal neste tipo de ação apa-
jetos culturais até a confecção de encartes de pro- rece de maneira implícita, uma vez que as ações
dutos de distribuição gratuita entre as suas redes culturais estão em destaque, como se estas fossem o
(CASTRO, 2004). objeto principal. Contudo, existe uma marca que é a
Para tanto, a empresa tem sua própria agência protagonista dessas ações.
de publicidade, a Agência Matriz. Ela investe em Os espetáculos, como os Concertos Zaffari,
confecção de encartes de produtos contendo receitas apresentam obras de grandes mestres da música
gastronômicas, distribuídos gratuitamente em suas clássica, popular e contemporânea, interpretadas
redes, edição de revista própria, produção de CDs, pelo Coral e pela Orquestra do Instituto de Cultura
produção de campanhas publicitárias, institucionais Musical da PUCRS. Segundo informações da em-
e promocionais, em especial a promoção de projetos presa, cada evento mobiliza cerca de 300 pessoas,
culturais, estes com um caráter bem específico. que fazem parte da equipe de produção, entre músi-
Desde 1987, a Companhia Zaffari oferece à cos, maestros, arranjadores, coral, corpo de baile e
população eventos que ajudam a difundir a músi- pessoal de montagem dos espetáculos (www.zaffari.
ca erudita e popular de forma democrática e alegre. com.br, 2016).
Sumário
Observa-se que o tipo de atividade cultural, O Teatro do Bourbon Country é o mais versátil
com renomados artistas e maestros de música eru- espaço dedicado ao entretenimento e à cultura no
Rio Grande do Sul. Ele conta com uma configu-
dita, tem uma relação direta com a empresa, que se ração exclusiva, que permite diferentes opções
apresenta como uma rede de supermercados que de uso e de acomodação para os mais variados
vende a imagem de uma boa estética, com produtos formatos: poltronas, cadeiras, palco italiano,
de marcas confiáveis. Essa confiabilidade é também mesa, bistrô. E como não podia deixar de ser,
está instalado dentro do Bourbon Shopping
proposta nas redes de supermercados, em que a Country, um dos pontos mais frequentados de
música ambiente é sempre de boa qualidade, embo- Porto Alegre por contar, entre outras operações,
ra isso seja muito relativo. É antes o estilo musical como os cinemas, Livraria Cultura, Cervejaria
que se aproxima do tipo de público que a empresa Dado Bier, Bourbon Hipermercado (www.zaf-
fari.com.br, 2016).
espera manter ou a ser conquistado.
Em 2007, a rede de supermercados inaugurou A tradicional série Concertos Comunitários Zaf-
o teatro localizado dentro do Bourbon Country, em fari trouxe Gilberto Gil como artista convidado, em
Porto Alegre, com capacidade de 1.100 lugares. Este dezembro de 2015, em um espetáculo gratuito reali-
tem a parceria com a Opus Promoções, responsável zado no Parque Moinhos de Vento. O músico in- 17
pela sua produção cultural. Em 2009, é inaugura- terpretou sucessos da música brasileira ao lado do
do o teatro no Shopping Bourbon Pompéia, em São Coral e da Orquestra Unisinos Anchieta, regida pelo
Paulo. maestro Evandro Matté (www.zaffari.com.br, 2016).
O Teatro do Bourbon Country é considerado O jornal Zero Hora assim destacou: “Gilberto
o maior dentro de um shopping center no estado Gil participa de show no Parcão pela série Concer-
gaúcho. Ao todo são 4.100 m² distribuídos em qua- tos Comunitários”. Tanto a imagem, conforme a
tro andares. No site, a empresa enfatiza as quali- figura 1, quanto o texto da reportagem falavam do
dades deste espaço, que está implicitamente asso- estilo da Cia Zaffari, descrevendo que o show envol-
ciado à rede de supermercados. “O ambiente, as veria quase 200 pessoas em cena, mais o convidado
acomodações, o serviço, os recursos técnicos: tudo o Gilberto Gil, com entrada gratuita. “Como em ou-
que você imaginar está dentro do mais alto padrão” tras ocasiões, o programa da noite será diversifi-
(www.zaffari.com.br, 2016). Segundo a companhia, cado, ideal para agradar a um público que inclui
o espaço tem os mesmos moldes das grandes casas famílias inteiras” (Zero Hora, 11.12.2015).
de espetáculo do exterior:
Sumário
O concerto teve música clássica, com obras de Shostakovich e Puccini, apresentado o Intermezzo da
ópera Manon Lescaut e a Valsa de Musetta “Quando m’envo”. O evento teve ainda a participação da Orques-
tra e o Coro Unisinos, a Companhia H, com coreografia de dança, de Ivan Motta, o Coral Porto Alegre, o
Coral de Vez em Canto e o Grupo Vocal Gospel. O anúncio enfatizava que o espetáculo contava com músi-
cas clássicas e pretendia agradar a famílias inteiras, embora o público alvo fosse de fato um segmento mais
selecionado da população.
18
Dentre as estratégias promocionais, podemos eleger naturalmente qual se adapta melhor ao interesse
da empresa. O investimento em cultura, por exemplo, trabalha com a estratégia da emoção e da estética,
através de uma aproximação com a sociedade, despertando simpatia por parte do público.
Sumário
Cabe considerar, também, que estas ações culturais estão inseridas nas campanhas de responsabilidade
social, tendo como objetivo responder às necessidades sociais da comunidade onde as empresas operam,
incluindo funcionários, consumidores, prestadores de serviços e comunidades próximas. As ações culturais
têm alcançado uma boa atenção. No caso da Cia Zaffari, esta apresenta seus projetos e suas atividades cul-
turais na seção “Responsabilidade Social” de seu website. Observamos que há um investimento no social,
que também enaltece a marca, mas há sobretudo o redimensionamento das questões de satisfação, emoção
e estética.
Um bom exemplo desse tipo de ação promocional são os Concertos Comunitários Zaffari, figura 2, que
têm como slogan “Acreditamos que não basta assistir, é preciso também atuar”. Estes Concertos comple-
taram, em 2015, 28 anos de existência.
19
Este é o tipo de publicidade sustentada no consumo emocional. Segundo o linguista francês Patrick
Charaudeau, observa-se, nessa ação, que o emissor quer fazer o receptor acreditar que este ato será em seu
próprio benefício. Esta relação é percebida quando o discurso da publicidade é uma combinação de discurso
publicitário e promocional. Ela propõe gerar um benefício coletivo (o aspecto promocional) de modo a satis-
fazer seus interesses próprios (o aspecto publicitário) (CHARAUDEAU, 2010).
Sumário
Charaudeau (2010) entende que o fenômeno Pathos é o termo empregado por Charaudeau
da linguagem depende do ponto de vista dos atores para tratar da “emoção, sentimento, afeto, paixão”.
envolvidos no diálogo. Envolve conhecimentos, sa- O autor lança a hipótese de que as emoções se origi-
beres, experiências, signos, e outras condições. De nam de uma “racionalidade subjetiva”, ao contrário
acordo com este autor o discurso propagandista é da intencionalidade. Estes conhecimentos são rela-
uma tipologia, já que o uso da linguagem vale-se de tivos ao sujeito, ou seja, as informações que ele re-
estratégias. Em sua obra “O discurso propagandista: cebeu, de acordo com as experiências que teve e aos
uma tipologia” faz a análise das estratégias discursi- valores que lhe são atribuídos. Pode-se dizer que as
vas, e, em especial na propaganda, das expectativas emoções, ou os sentimentos, estão ligados às cren-
discursivas, trazendo exemplos dos tipos de discur- ças. Estas crenças, por sua vez, “se apoiam sobre a
so propagandista. observação empírica da prática das trocas sociais e
Em relação às estratégias discursivas, o autor fabricam um discurso de justificação que instala um
esclarece que a legitimidade não é o todo do ato de sistema de valores erigidos em forma de norma de
linguagem, mas que é preciso que os sujeitos fa- referência” (CHARAUDEAU, 2007).
lantes ganhem em credibilidade e saibam captar o Charaudeau, ao tratar sobre o discurso publi- 20
interlocutor ou o público. Ao tratar do tipo de dis- citário, suas características e organizações, faz uma
curso “propagandista”, termo intitulado pelo autor, descrição do contrato de fala e descreve algumas
considera ser um processo discursivo abrangente, estratégias discursivas. Nessa análise apresenta a
utilizado para averiguar sobre como se ligam a ele teoria das visadas, que, para ele, são as expectati-
diversos gêneros tais como o publicitário, o promo- vas na hora de criar uma estratégia propagandista,
cional e o político (CHARAUDEAU, 2010). A partir “a expectativa ou o que está em jogo para qualquer
dessa reflexão, ele considera a influência de algu- ato de linguagem pode ser descrito em termos de
mas estratégias discursivas: visadas”. Para ele, existe uma intencionalidade
que é orientada por “efeitos de sentidos visados”
(i) o modo de estabelecimento de contato com o
outro e o modo de relação que se instaura entre
(CHARAUDEAU, 2010, p.61).
eles; (ii) a construção da imagem do sujeito fa- Assim, conforme Castro (2003), o redimensio-
lante (seu ethos) ; (iii) a maneira de tocar o afeto namento das questões de desejo, de satisfação, de
do outro para seduzi-lo ou persuadi-lo (o pa- emoção e de estética traz uma publicidade sustenta-
thos) e (iv) os modos de organização do discurso
que permitem descrever o mundo e explicá-lo
da no consumo emocional, que envolve prazer, fascí-
segundo os princípios da veracidade (o logos). nio e encantamento.
(CHARAUDEAU, 2010, p.59).
Sumário
No Teatro do Bourbon Country não importa o emoção” (CHARAUDEAU, 2007, p. 02). Para ele, é
tamanho do evento. É sempre um grande acon- possível uma situação em que se encontra a prova
tecimento. Um dos princípios do Grupo Zaffari é
investir na Cultura como forma de participação de autenticidade do que se sente.
social e de interação com a comunidade. Edifica- Não se pode confundir, de um lado, o efeito que
dos por iniciativa da empresa, o Teatro do Bour- pode produzir um discurso em relação ao possível
bon Country (2007, em Porto Alegre) e o Teatro surgimento de um sentimento e, de outro, o sen-
Bradesco (2009, em São Paulo) sedimentaram
um conjunto diversificado de projetos ligados a timento como emoção sentida. Se ela é autêntica,
música, literatura, artes plásticas e entretenimen- surge de forma espontânea, sem nenhum discur-
to, que vêm sendo realizados ao longo dos 80 anos so, pois a razão não tem nenhum domínio sobre
do Grupo Zaffari (www.zaffari.com.br, 2016). a emoção. Por outro lado, “um discurso que visa a
produzir uma emoção é por si próprio refutável: por
A forma como a Cia Zaffari tem investido em
exemplo, podemos replicar a alguém que tenta nos
cultura tem revelado estas e outras possibilidades.
sensibilizar você pode se fazer de vítima, mas você
não vai me comover” (CHARAUDEAU, 2007 p.02).
IMAGEM INSTITUCIONAL ATRAVÉS DA
Palavras que suscitam sentimentos de “tristeza” 21
CULTURA
ou “angústia” etc. podem designar estados emocio-
nais, mas não provocam, necessariamente, emoção;
Ana Carla Fonseca Reis aponta um estudo
inclusive podem ter um efeito contrário, ou outro
desenvolvido pelo New and alternative mecha-
que não o esperado. Isso depende do ambiente em
nisms for financing the arte, de 1997, que propõe
que essas palavras estão, do seu contexto, da situ-
uma das respostas para esse tipo de estratégia: “o
ação na qual se inscrevem de quem as emprega e de
prestígio social atribuído ao incentivador de proje-
quem as recebe (CHARAUDEAU, 2007).
tos culturais” (REIS, 2003, p. 156 -157). Mas seria so-
Observa-se em algumas situações de comuni-
mente este o grande motivador para o investimento
cação que, para tocar o outro, é importante recorrer
em cultura?
a estratégias: as que focam a emoção e os sentimen-
Para as ações promocionais sustentadas no
tos do público, com o objetivo de seduzi-lo. Desta
emocional, Charaudeau fala em uma perspectiva
forma, são adotadas algumas estratégias de comu-
de análise do discurso, isto é, sobre os efeitos pos-
nicação, entre elas, a promocional, muito utilizada
síveis em torno do desencadeador de sentimentos
como um meio e não como um fim. Essa é uma es-
ou emoções: “um discurso que visa a produzir uma
tratégia em que se percebe o processo de identifi-
Sumário
cação, a construção de uma imagem que tenha certo Neste tipo de campanha, percebemos clara-
poder de atração sobre um público. mente uma publicidade de consumo emocional, “a
A agenda-setting theory (teoria do agenda- intimidade também produz encanto, emoção” (CAS-
mento), proposta inicialmente pelo jornalista TRO, 2004, p.11).
norte-americano Walter Lippmann, em 1922, pres- A teoria do agendamento nos ajuda a com-
supõe que os meios de comunicação geram notícias preender as diferentes formas e estratégias de atrair
e imagens, impregnando consciente ou inconsci- a atenção do consumidor. O agente, ao investir em
entemente a opinião pública. Nos anos 1970, os cultura, pode determinar sua imagem e seu público.
pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw O último relatório do Grupo Zaffari, publicado
apresentaram um estudo no qual se verificou que a em fevereiro de 2016, mostrou o reflexo das ações
mídia seleciona a pauta, destacando determinados culturais patrocinadas ao longo de 2014. Esta edição,
temas, omitindo ou ignorando outros, influencian- intitulada Relatório Social de Marca “Ser”, traz in-
do o leitor e direcionando sua opinião. Este estu- formações e números que destacam a trajetória do
do resultou na hipótese do agendamento. Consi- posicionamento da marca junto à sociedade, com
dera-se que uma hipótese é um sistema aberto, uma base em três pilares: sustentabilidade, assistência 22
experiência, um estudo a ser comprovado, e mesmo social e investimento em cultura. O resultado mos-
que não dê certo em uma determinada situação, não trou que houve “um crescimento pessoal e social,
invalida a teoria (HOHLFELDT, 2001). desenvolvimento intelectual e troca de ideias” atra-
Maria Lília de Castro concluiu sua análise afir- vés do patrocínio em projetos culturais.
mando que a Cia Zaffari “aposta na publicidade ins-
Em 2014, o Grupo Zaffari apoiou 308 espetácu-
titucional, de dimensão emocional, buscando adesão los, impactando a vida de mais de 600 mil pes-
pelo apelo a sentimentos de localidade e de proximi- soas. Proporcionou 12 apresentações totalmente
dade com o consumidor” (CASTRO, 2004, p. 12). gratuitas dos Concertos Comunitários. Durante
a 60ª Feira do Livro de Porto Alegre, patrocinou
“A estratégia da campanha é então a criação de a obra em formato de sino do escultor Bez Batti
um clima de relativa intimidade com o público. em homenagem a José Júlio La Porta – o “Xerife”
Partindo de um conhecimento partilhado, a em- da Feira (www.zaffari.com.br, 2016).
presa busca representações sociais de interação
dentro do imaginário sociocultural da socie- Segundo a Top of Mind 2016, evento anual de
dade. Sua força é colocar em cena um universo
de referência que seja característico do cenário
abrangência regional, que tem por objetivo destacar
gaúcho” (CASTRO, 2004, p.11). e premiar as marcas mais lembradas pelos gaúchos,
Sumário
entre as marcas que mais se destacaram na categoria Grande Empresa do RS, a Cia Zaffari ficou em 4º lugar,
perdendo para Gerdau, GM e Tramontina (www.topofmindamanha.com.br, 2016). Por outro lado, entre as
marcas que aumentaram sua popularidade entre os anos de 2011 a 2016, o Zaffari teve um crescimento signi-
ficativo comparado às outras, conforme o gráfico na tabela 1.
Tabela 1
23
Outro componente analisado pela Top of Mind foi a classe social atraída pela marca, segundo o qual
o Zaffari atinge 61% das classes A e B. Conforme analisamos a notícia vinculada na Zero Hora quando do
Concertos Comunitários no Parcão, o evento cultural, enquanto meio de comunicação, seleciona estrategi-
camente o tipo de música e o local do espetáculo, determinando o tipo de público pretendido. Mesmo gra-
tuito, nem todos se interessam por este tipo de evento. Ao promover um espetáculo com música clássica,
conforme o anúncio enfatizava, a companhia faz uma relação do clássico com sua marca, selecionando o
seu tipo de público.
Sumário
25
Sumário
GILDA E ESTRADA PERDIDA: AS tar que a femme fatale orienta as ações do protago-
MARCAS DO HEDONISMO NO nista, valorizando-se o hedonismo desde o período
clássico do noir no cinema.
CINEMA NOIR E NEONOIR
Palavras-chave: Cinema noir. Cinema neonoir. He-
donismo. Femme fatale.
GILDA AND LOST HIGHWAY: THE HEDONISM MARKS
AT NOIR AND NEONOIR FILM
Abstract: Hedonism is elected to contextualize the
Alexandre Rossato Augusti (UNIPAMPA) 1 noir film in his classic and contemporary period, in
order to evaluate it as essential to the noir element
Resumo: Elege-se o hedonismo para contextuali- and consider whether the productions neonoir ef-
zar o cinema noir em seu período clássico e con- fectively could compose a continuation of the clas-
temporâneo, a fim de avaliá-lo como elemento es- sic genre. Through an analogy between the film
sencial ao noir e considerar se as produções neonoir Gilda (Charles Vidor, 1946) and Lost Highway (Da-
efetivamente poderiam compor uma continuidade vid Lynch, 1997), considers the femme fatale from
do gênero clássico. Através de uma analogia entre a hedonistic logic, under which the work narrati- 26
os filmes Gilda (Charles Vidor, 1946) e Estrada per- ves of film noir and neonoir. Using methodological
dida (Lost highway – David Lynch, 1997), considera- strategies of film analysis, from Aumont and Marie
-se a femme fatale a partir de uma lógica hedonista, (2004), and Vanoye and Goliot-Lèté (1994), that per-
sob a qual funcionam as narrativas do cinema noir mits to confirm that the femme fatale orientates the
e neonoir. Utilizam-se estratégias metodológicas da actions of the protagonist, valuing the hedonism
análise fílmica, a partir de Aumont e Marie (2004), since the classic period of the film noir.
e Vanoye e Goliot-Lété (1994), que permitem consta Keywords: Film noir. Film neonoir. Hedonism. Fe-
mme fatale
1
Doutor em Comunicação Social (PUCRS, 2013); mestre em Comunicação e Informação (UFRGS, 2005); pós-doutorando (PPG-
COM/UFRGS); professor de Jornalismo (Unipampa); araugusti@gmail.com
Sumário
2
A proposta deste trabalho é sistematizada a partir de um recorte de minha tese, intitulada Cinema noir: as marcas da morte e
do hedonismo na atualização do gênero (AUGUSTI, 2013), realizada na PUCRS, com bolsa sanduíche Capes na Università degli
Studi di Salerno (Itália); e representa ainda uma ampliação do artigo desenvolvido para o XVII Encontro da Socine (AUGUSTI,
2016), intitulado As Marcas do hedonismo no cinema noir e neonoir.
Sumário
emancipação e garantia da autonomia individual encontraram cada vez mais flexibilidade. O neonoir
e da liberdade de escolha: “o sexo de plástico”, os permite os encontros sexuais de forma explícita, ao
“amores múltiplos” e “relações puras”. O sexo re- contrário do noir clássico, que muitas vezes apenas
sume hoje, de acordo com Bauman (2004), o “rela- os sugeria.
cionamento puro” que, segundo Giddens, tornou-se
o modelo ideal predominante da parceria humana. ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS
Decorrente do último autor, temos que um relacio-
namento puro se refere a uma situação em que se As estratégias metodológicas para a condução
ingressa em uma relação social apenas pela própria de meu trabalho são propostas a partir da análise
relação, tendo-se em vista o que cada uma das par- fílmica, objetivando oferecer maior atenção à narra-
tes envolvidas pode usufruir dessa união, e que ape- tiva e às personagens. As principais orientações são
nas se mantém enquanto ambas considerarem que dos autores Jacques Aumont e Michel Marie (2004),
extraem dela satisfações suficientes, para cada uma no livro A análise do filme, e de Francis Vanoye e
individualmente, para que nela possam permanecer. Anne Goliot-Lété (1994), em Ensaio sobre a análise
Essas observações a respeito das novas orienta- fílmica. As tipologias traçadas para o desenvolvi- 28
ções da sociedade ocorridas desde as últimas cinco mento da tese são formadas, por um lado, pela mor-
ou seis décadas pretendem oferecer algum entendi- te, a violência e o crime e, por outro, pelo hedonismo
mento para que se observem algumas nuances ou e a figura da femme fatale. No que se refere à pre-
mesmo diferenças marcantes que acompanham as sente demonstração, detém-se à segunda tipologia
fases compreendidas como noir e neonoir. para a condução dos objetivos do trabalho.
São evidentes as concessões perceptíveis e ca- O noir comporta, enquanto gênero particular,
racterísticas da sociedade que ampara o chamado características próprias no que diz respeito aos con-
neonoir, tornando-se claramente mais intensas à teúdos que apresenta, como personagens ambíguas
medida que as décadas avançam, diferentes daque- e cenários com influência expressionista; e no que
las que davam o tom do filme noir, que embora até concerne às formas de expressão, como iluminação
ousasse sua abordagem em uma determinada me- com contrastes, e música que desperta, sustenta ou
dida em relação à sociedade que o amparava, nem realça o suspense, etc. São características que o iso-
de longe assumia todas as possibilidades de reper- -lam dentro de uma determinada perspectiva tam-
cussão hedonista possíveis após seu encerramento. bém estética e que representam pontos-chave para
Tanto imagens quanto diálogos, a partir do neonoir, análise dos filmes que o compõem. Da mesma for-
Sumário
ma, o que comumente se compreende como neonoir Quanto aos instrumentos de análise orienta-
também é composto por algumas especificidades no dos por Aumont e Marie (2004), citam-se aqueles de
que se refere ao conteúdo e à expressão e às quais se maior interesse, ou seja, de descrição: pode-se afir-
deve atentar durante a análise. A respeito também mar que os elementos principais para descrição são
dessas considerações, é oportuno evidenciar a re- os de narração, realização ou determinadas caracte-
levância de se perceber que muitas vezes o cenário rísticas da imagem. A atenção a determinadas cenas
tem uma função até mais semântica do que estética, se dá no presente trabalho com sua descrição, um
o que interessa também a essa proposta. resumo do conteúdo da imagem, seguido da repro-
Pensando a narrativa como o lugar de encontro dução do diálogo, por exemplo.
e da associação sutil conteúdo-expressão (VANOYE; É necessária, a partir de um conjunto de filmes,
GOLIOT-LÉTÉ, 1994), em que reúne o conteúdo a busca de alguns elementos comuns a todos eles
– característico da história e da diegese – e a ex- para que se operacionalize a análise. Tais elemen-
pressão ou materialidade do filme – como conjunto tos e as opções analíticas aparecem a partir do que
específico de imagens, palavras, ruídos e música, é se objetiva descobrir. Então, tem-se a descrição de
que se propõe verificar alguns aspectos da narrativa determinados elementos dos filmes e, concomitan- 29
que, dependendo de cada situação particular favo- temente à decomposição dos dados, a interpretação
receriam um ou outro uma certa interpretação. “É sempre que se fizer necessária alguma explicação de
a narrativa que permite que a história tome forma, ordem elucidativa, de acordo com as perspectivas e
pois a história enquanto tal não existe. É uma espé- objetivos da pesquisa.
cie de magma amorfo. Contá-la com palavras, oral- Outra observação relevante e que diz respei-
mente ou por escrito, já é colocá-la em narrativa.” to às especificidades da análise proposta, é que a
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 41). Para Au- compreensão de um filme pode partir de sua cons-
mont et al (1995), a narrativa é o enunciado em sua tituição enquanto produto cultural relativo a um
materialidade, o texto narrativo que se encarrega da contexto social e histórico particular (AUMONT;
história a ser contada; mas enquanto no romance MARIE, 2004). A complexidade do noir é constru-
esse enunciado é formado apenas na língua, no ci- ída em muito devido a isso, incluindo as técnicas
nema ele compreende imagens, palavras, menções disponíveis no momento de produção. Salienta-se,
escritas, ruídos e música, o que torna a organização entretanto, que apesar de ser proposta também a
da narrativa fílmica mais complexa. compreensão do gênero, essa se dá também a partir
Sumário
de sua contextualização social e histórica, mas ain- quais funcionam as narrativas do cinema noir e neo-
da dos resultados que advém da análise dos filmes noir. Essa figura, que geralmente compõe o elemen-
proposta, sem que seja realizada uma efetiva análise to mais subversivo do gênero, pode ter como objeto
com foco social-histórico, o que desviaria do cerne de seu menosprezo o patriarcado masculino. A fe-
da proposta de trabalho, que é dar atenção maior à mme fatale do noir clássico representa ameaça ao
narrativa e às personagens. A expectativa aqui não patriarcado, mas ao final ela vai pagar por isso. Ao
é a de analisar a sociedade em que se inscreve o fil- contrário dessa femme fatale do noir clássico, que,
me e sim eventualmente compreender um gênero conforme Zizek (2009), permanece uma presença
e sua renovação também a partir de seu contexto espectral fugidia, a nova femme fatale do neonoir
social e histórico. apresenta uma agressividade sexual frontal também
física, além da verbal. Esse tipo de personagem ago-
GILDA E ESTRADA PERDIDA: A BELEZA E O ra mercantiliza e manipula diretamente a si mesma.
SEXO MOVIMENTAM AS NARRATIVAS NOIR No momento em que Gilda (Rita Hayworth)
E NEONOIR aceita o convite de outro homem para dançar e
afronta Johnny (Glenn Ford), olhando-o de forma 30
Em meio à ambiguidade, surge uma bela mu- provocante, enquanto dança belamente com o ho-
-lher disposta a seduzir e enganar para ascender so- mem, tem-se uma cena de sedução comum às narra-
cialmente. Suas vítimas, reféns da busca pelo prazer, tivas noir. Contudo, ela nega o beijo na boca que o
representado pelo encontro com a femme fatale, são seu parceiro de dança tentar lhe dar (figura 1), pois
punidas por tal envolvimento. Há um redimensio- sabe os limites de sua provocação, além da conve-
namento da perspectiva hedonista, com a erotiza- niência para os filmes do período de não exacerbar
ção presente nas narrativas do noir clássico assu- demasiadamente a evocação do adultério. Ao final,
mindo frequência e intensidade superiores ao que o filme esclarece que Gilda não traia Mundson (seu
se esperava do cinema na época. primeiro marido, interpretado por George Macrea-
Através de uma analogia entre os filmes Gil- dy), apenas fingia fazê-lo para provocar Johnny, uma
da (Charles Vidor, 1946) e Estrada perdida (Lost hi- outra adaptação às convenções, quase que exagerada
ghway – David Lynch, 1997), considera-se a figura até para o período clássico do noir, que apresentava
da femme fatale funcionando a partir de uma lógi- tantos filmes com declarações explícitas de traição.
ca hedonista, que apoia os parâmetros a partir dos
Sumário
31
Figura 1 - Gilda recusa o beijo do homem que usa para provocar ciúmes em Johnny
Fonte: print screen da imagem, captado pelo autor do artigo
A correspondência atualizada das investidas da femme fatale sobre o homem que objetiva seduzir pode
ser encontrada em Estrada perdida, na cena noturna em que Alice (Patricia Arquette) vai até a oficina em
que trabalha Pete (Balthazar Getty) usando um vestido curto, de alças, e que insinua suas belas curvas. Ela
sugere a ele que a convide para jantar e, em seguida, dirigem-se para o motel. Nas cenas seguintes – sempre
ocultadas em filmes noir clássicos – Alice conduz a mão de Pete à sua vagina (figura 2), mesmo que sobre
o vestido e, quando transam, os corpos são bem explorados e as cores, ajustadas para privilegiarem os tons
em vermelho, direcionam para a ideia de paixão e perigo que tal encontro sugere.
Sumário
32
Na cena que ocorre logo após o casamento de Johnny e Gilda, tão logo entram no hotel Centenário e
Gilda se depara com o quadro de Mundson, a narração em off de Johnny revela que a gaiola da femme fatale
estava fechando a porta, uma metáfora desta vez definitivamente forte para os padrões do período. Entre-
tanto, tal ousadia visa justificar o castigo ao qual ele objetiva sujeitar Gilda, já que a sequência da narração
assim informa: ela não fora fiel ao marido enquanto ele estava vivo, mas o seria agora que está morto. Após
ser abandonada, ela tenta uma reaproximação fortemente baseada no apelo sexual. Procura-o e, após tomar
um cigarro, pergunta-lhe se ele tem fogo, ao que Johnny responde com um isqueiro aceso e um sorriso ma-
licioso (figura 3). Defendendo sua virilidade, ele mantém o braço bastante baixo, o que a obriga a se abaixar
para acender o cigarro, numa simulação de sexo oral. Mas seguindo o castigo, rejeita-a.
Sumário
33
Figura 3 - Johnny, com um sorriso malicioso, garante sua virilidade ao empunhar imediatamente o fogo
Fonte: print screen da imagem, captado pelo autor do artigo.
No que concerne à referência da metáfora usada por Johnny sobre a gaiola de Gilda, destaca-se em
comparação a cena de Estrada perdida que em o Sr. Eddy (namorado de Alice, interpretado por Robert
Loggia) vai à oficina para ameaçar Pete. Ele comenta que se soubesse que alguém estivesse trepando com
Alice, sacaria a arma e a enfiaria tão fundo no traseiro desse homem que a faria sair pela boca, em seguida
estourando o cérebro dele (em uma aproximação imediata das marcas da morte, do crime e da violência,
além do sexo sádico – com exceção do último, todos os demais elementos são recorrentes no noir). As ex-
pressões aqui tomadas, mesmo que despertem sentidos similares aos pretendidos na fala de Johnny – suge-
rindo também traição, sexo sem regras e necessidade de se ater a elas – encontram na contemporaneidade
sua possibilidade de uso para que se alcance o adequado impacto sob a personagem de Pete. Uma metáfora
como a da gaiola para evocar a ideia de que nenhum outro passarinho (ou pênis) que não o de seu marido
poderia nela penetrar certamente não causaria o temor pretendido pelo Sr. Eddy.
A cena que representa o ponto alto de Gilda, quando a femme fatale aparece, no Cassino, extremamente
sensual num vestido preto e dança Put the blame on mame – incentivada por muitos homens excitados com
Sumário
sua performance – e começa um striptease (figura 4), representa um marco do erotismo no cinema, calcado
na figura de uma femme fatale muito ousada sexualmente, a ponto de provocar os homens para ajudá-la a
abrir o zíper do vestido negro. Embora bêbada, ela reage às investidas de Johnny para afastá-la do público
do Cassino e quase completa a frase em que pretende informar que agora todos sabem quem ela é e que
Johnny se casou com uma ... puta (ou vagabunda). Enfim, o contexto e a forma como foi impedida de com-
pletar a frase – ela leva um tapa de Johnny – permitem ao espectador perceber que viria uma definição do
tipo, ainda que não seja dito o adjetivo.
34
Já em Estrada perdida, tem-se uma perspectiva atualizada das marcas que apresentam a mulher que trai
ou que faz sexo com vários homens. Na cena em que Pete chega à casa de Andy (Michael Massee) para co-
locar em ação o plano de Alice, depara-se com a projeção de um filme (figura 5) em que ela aparece fazendo
sexo por trás (que poderia ser anal) com um homem negro muito forte. Pelo sofá e chão, estão espalhadas
as roupas de Alice, o que ainda remete à ideia de que ela está transando com Andy no presente momento.
Sumário
Tal referência é imediatamente confirmada, quando surge Andy, vestido apenas com uma jaqueta preta de
couro e uma cueca ou sunga vermelha. A morte encontra o sexo nesse exato momento, quando Pete o acerta
com um objeto na testa, supostamente o matando. Surge, então, Alice, de calcinhas e soutien, descendo as
escadas. Todas as marcas percebidas relacionam Alice ao sexo e à morte. É a evidência já clara do caminho
encontrado por Pete ao se deixar envolver pela femme fatale.
35
Figura 5 - Pete, após golpear Andy, olhando com ciúmes e raiva para Alice, que aparece de calcinhas e soutien (indicativo de
que transara com Andy), e a projeção na parede de Alice sendo penetrada.
Fonte: print screen da imagem, captado pelo autor do artigo.
Quando Pete, chocado com o cadáver, desabafa que o mataram, Alice o olha friamente e diz que ele o
matou, para espanto do primeiro. Ela lhe diz que devem pegar as coisas e sair de lá e, rápida e automatica-
mente retira a corrente e o anel do cadáver, enquanto Pete, atônito, observa-a, chocando-se com ambas as
imagens perceptíveis no plano: Alice roubando o cadáver e sendo penetrada por trás, o que ainda pode ser
visto no filme projetado na parte superior da parede.
Sumário
Na sequência, Pete e Alice se dirigem para o deserto, onde devem encontrar a cabana do receptador
que Alice conhece. É noite e a imagem da estrada escura é a mesma já mostrada por duas vezes na trama.
Em seguida, surge também outra vez uma imagem da casa em chamas tornando a sua integridade. Talvez
seja o prenúncio de Pete voltando a ser o que era (Fred – personagem correspondente, na primeira fase do
filme, interpretado por Bill Pullman). Enquanto esperam o receptador, eles transam iluminados pelos faróis
do carro roubado de Andy (figura 6).
36
Figura 6 - O casal transa iluminado pelos faróis do carro roubado. O reflexo do carro sugere a duplicidade dos espelhos e
remete à duplicidade das personagens. Logo, Pete será substituído por Fred.
Fonte: print screen da imagem, captado pelo autor do artigo.
Pete é obcecado por ela e repete que a quer. As imagens são apresentadas em câmera lenta e a luz muito
forte projetada no corpo de Alice enquanto ele revela seus desejos a torna quase um espectro, acentuando
o seu caráter independente e fugidio. De repente, ela sussura em seu ouvido: “Você nunca mais vai me ter.”
Ela o deixa deitado e segue nua para o interior da barraca.
Sumário
AUGUSTI, Alexandre Rossato. As marcas da morte e do HEREDERO, Carlos F.; SANTAMARINA, Antônio. El cine
hedonismo no cinema noir e neonoir. In: XVII ENCONTRO negro: maduración y crisis de la escritura clásica. Barcelo-
DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS DE CINEMA E na: Paidós, 1996. 298 p.
AUDIOVISUAL (SOCINE): A SOBREVIVÊNCIA DAS
IMAGENS, 2013, Palhoça. Anais... Palhoça: UNISUL, 2013. LOST highway. Direção: David Lynch. Intérpretes: Bill
Disponível em: <http://www.socine.org.br/anais/2013/Anais- Pullman; Patricia Arquette; John Roselius. EUA e França,
DeTextosCompletos(XVII).pdf>. Acesso em: 23 ago. 2016. 1997, 134 min, color. Versão do título em português: Estrada
perdida.
______. Cinema noir: as marcas da morte e do hedonismo
SILVER, Alain; URSINI, James. Film noir. Lisboa: Taschen,
na atualização do gênero. Tese (Doutorado) – Pontifícia
2004. 191 p.
38
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2013. 287 p.
VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a
AUMONT, Jacques.; MARIE, Michel. A análise do filme. análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994. 152 p.
Lisboa: Texto e Grafia, 2004. 216 p.
ZIZEK, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema mo-
AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Campinas: derno. São Paulo: Boitempo editorial, 2009. 180 p.
Papirus, 1995. 304 p.
1
Mestranda em Comunicação e Informação no PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul| rp.asilveira@gmail.com.
Sumário
of meaning in media discourse on health in order um, de outro e da formação social mais ampla que
to see how researchers are addressing and linking os abriga. Abordando campos sociais que constituem
these social fields. The literature review was taken um universo multidimensional no qual, agentes e
by Portal de Periódicos CAPES/MEC which were instituições desenvolvem estratégias, tecem alian-
selected 27 articles on the topic. The result showed ças, antagonismos e negociações. Essa concepção
the subjects most discussed by the researchers and implica colocar em destaque a existência de discur-
their inferences about the media discourse on heal- sos concorrentes, constituídos por e constituintes de
th. Surveys are based mostly by the power that the relações de saber e poder, dinâmica que inclui os di-
media has in the construction of realities and values ferentes enfoques teóricos acerca da Comunicação,
and influence behaviors and attitudes, justifying its Saúde e suas relações (ARAÚJO; CARDOSO, 2007).
monitoring. Desta maneira, pensar hoje nos campos da Co-
Keywords: Communication. Media. Health. Mea- municação e da Saúde não é apenas recortar um e
ning Production. outro e uní-los através de propostas e práticas in-
formacionais e comunicacionais instrumentais para
viabilizar a saúde. Mas sim, buscar refletir sobre os 40
INTRODUÇÃO alcances e limites de cada um a partir daquilo que
é demandado teoricamente e, principalmente, pela
O debate a respeito da ligação dos campos da prática informacional e comunicacional que atua
Comunicação e da Saúde que, se por um lado se nas políticas públicas de saúde, no cotidiano social
mostra como óbvia – a comunicação como forma de da saúde (relação paciente x profissionais da saúde
viabilização da saúde – por outro lado se mostra ex- x instituições públicas), na participação popular e
tremamente complexa, uma vez que os dois campos controle público, nas práticas midiáticas envolven-
apontam para questões epistemológicas e metodo- do a saúde (rádio, televisão, publicidade, propagan-
lógicas próprias e específicas que nem sempre são da, revistas, jornais, internet etc.), na divulgação
convergentes entre si e demandam reflexões tanto científica da área ou na investigação sobre os uni-
no campo institucional quanto no campo científico versos informacionais da população sobre a saúde
(ARAÚJO, 2008). Assim, ao tratarmos dos campos (percepção, imaginários) e sobre o universo institu-
da Comunicação e da Saúde estamos delimitando cional sobre a saúde (prática institucional), em um
um território de disputas específicas, embora atra- contexto de veloz convergência tecnológica envol-
vessado e composto por elementos característicos de vendo ambos os campos (ARAÚJO, 2008).
Sumário
Neste artigo, iremos tratar mais especificamen- grupo.” Ainda de acordo com a autora, pressupõe-se
te da relação entre Mídia e Saúde. Duas áreas te- que “o ser humano, como ser histórico-social, busca
máticas, amplas, autônomas e, ao mesmo tempo, compreender o sentido das coisas nos determinan-
que se invadem, pois, segundo Cavalcante e Lerner tes dos sistemas sociais, não somente nos compor-
(2013) ”a mídia está para qualquer assunto do mun- tamentos individuais” (MINAYO, 1992, p. 34). Por-
do como uma espécie de possibilidade de diálogo, e tanto, o objetivo deste artigo procura apontar as
a saúde tem em sua essência um interesse público, principais contribuições das pesquisas brasileiras
por nos envolver subjetivamente, arbitrariamente, de pós-graduação que tratam a produção de senti-
estatisticamente, por ser inerente à nossa condição dos no discurso da mídia sobre a saúde, a fim de
humana”. Desta forma, para as autoras, isso fortale- perceber como os pesquisadores estão abordando e
ce a nossa busca contínua por saúde e informação, relacionando esses campos sociais.
e de informação sobre saúde, para vivermos mais e
melhor (CAVALCANTE; LERNER, 2013). Para Oli- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
veira (2012), enquanto campo de disputas simbóli-
cas, a mídia cria uma relação tensa com o campo A revisão de literatura consiste em organizar, 41
da saúde porque ambos os campos estão ligados a elucidar e resumir as principais obras existentes,
diversas formas de poder, de dizer, de nomear e de bem como fornecer citações completas abrangen-
interpelar os atores e as situações sociais em que do o espectro de literatura relevante em uma área.
existem e, ao fazerem isto, articulam, significativa- Assim, esses estudos podem apresentar uma revi-
mente, os imaginários sociais a este respeito. são para fornecer um panorama histórico sobre um
Assim, abordaremos o discurso midiático sobre tema ou assunto considerando as publicações em um
a saúde tratando de um ponto relevante: a produção campo. Muitas vezes uma análise das publicações
de sentidos. Araújo (2002) analisa essa produção pode contribuir na reformulação histórica do diá-
de sentidos na forma de um “mercado simbólico”, logo acadêmico por apresentar uma nova direção,
em que espaços habitados por várias vozes concor- configuração e encaminhamentos. Desta forma, sua
rem entre si, buscando a hegemonia do seu próprio realização permite apontamentos, mapeamentos,
modo de perceber, avaliar e intervir sobre a reali- análises críticas, buscando colocar em evidência os
dade. Minayo (1992, p. 90), presume que “tanto o temas focalizados, as abordagens metodológicas, os
sujeito que comunica como aquele que o interpreta procedimentos e as análises, os aportes teórico-me-
são marcados pela história, pelo seu tempo, pelo seu todológicos, resultados que possam ser replicados
Sumário
ou evitados, bem como as lacunas que podem esti- Tabela 1 - Critérios Utilizados para Seleção dos Artigos
Analisados
mular a produção de novas pesquisas (VOSGERAU;
ROMANOWSKI, 2014). Para Alves-Mazzotti (2002), Critérios Utilizados Número de Artigos
a revisão de literatura teria dois propósitos: a cons- Busca “Mídia” + “Saúde” no Portal 469
trução de uma contextualização para o problema e
Artigos Disponíveis 294
a análise das possibilidades presentes na literatura
consultada para a concepção do referencial teórico Artigos Não Repetidos 261
da pesquisa. Artigos em concordância com o
27
Desta maneira, a primeira etapa deste trabalho Objetivo
se deu a partir da definição pela busca de artigos Fonte: Autor
publicados em periódicos impressos (com versão
eletrônica) ou eletrônicos disponíveis no Portal de Assim, restaram 27 artigos, que foram lidos na
Periódicos CAPES/MEC. Visto que, o Portal de Peri- íntegra, permitindo o mapeamento e a análise críti-
ódicos da CAPES é uma biblioteca virtual que reúne ca de uma possível relação entre a produção de sen-
e oferece a instituições de ensino e pesquisa no Bra- tido no discurso midiático sobre a saúde nos artigos
42
sil um acervo de mais de 38 mil periódicos com tex- científicos. Além de, colocar em evidência os temas
to completo, disponibilizando acesso livre e gratuito e assuntos mais discutidos pelos pesquisadores e as
ao conteúdo do Portal de Periódicos (PORTAL DE perspectivas teórico-metodológicas, viabilizando o
PERIÓDICOS CAPES/MEC). Logo depois, conforme objetivo deste artigo.
a tabela 1, determinamos e utilizamos as seguintes
palavras-chave: “mídia” + “saúde”; nesta busca fo- MÍDIA: O PODER E A PRODUÇÃO DE
ram encontrados 469 resultados no Portal de Perió- SENTIDOS
dicos. Após análise de todos os resumos disponíveis
na página principal do portal, eliminamos os artigos Iniciamos esta análise tratando do que nos pa-
não mais disponíveis nos sites de origem, as repeti- receu ser uma unanimidade em todos os textos li-
ções, e todos aqueles que não apresentavam concor- dos: a ideia de que falar sobre mídia requer, preli-
dância com o objetivo desta pesquisa. minarmente, falar sobre o poder que ela tem. Desta
forma, podemos aferir que a maioria dos artigos
traz a mídia como um poder, que vai se manifes-
tar a partir de diversas possibilidades e sob os mais
Sumário
variados pontos de vista. Este poder é simbólico falas, imagens e textos) veiculadas pelos meios de
e, conforme Cavalcante e Lerner (2013), é “invisí- comunicação (THOMPSON, 2007).
vel, não palpável, e por isso muitas vezes ignorado, Assim, a ampla circulação de mensagens vei-
desconsiderado nas relações de comunicação, que culadas pela mídia fez com que a comunicação de
são, em essência, relações de poder”. Assim, através massa se tornasse um fator importante de trans-
de seu enunciado, este poder é capaz de impor, de missão da ideologia nas sociedades modernas. Ide-
modo consensual, hábitos, crenças e costumes. Para ologia, que segundo Thompson (2007), refere-se às
Bourdieu, este poder está apto para: “maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas
simbólicas, serve para estabelecer e sustentar rela-
Fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de trans-
formar a visão do mundo e, deste modo, a ação
ções de dominação” (THOMPSON, 2007, p. 79).
sobre o mundo, portanto mundo, poder quase Desta maneira, este poder midiático, está rela-
mágico que permite o equivalente daquilo que cionado às práticas sociais, e o exercício de poder se
é obtido pela força (física ou econômica), graças afirma na própria organização simbólica de deter-
ao efeito específico de mobilização, só se exerce
se for reconhecido, quer dizer, ignorado como
minados aspectos da realidade, e na definição dos
arbitrário. (BOURDIEU, 1989, p. 14). lugares e modos de fala dos interlocutores (PINTO, 43
1978, apud OLIVEIRA, 2012). Neste sentido, para
Como diria Hall (1997), somos seres interpreta- Medeiros e Guareschi (2008), a cultura midiática é
tivos vivendo numa cultura midiática (CAVALCAN- como as práticas sociais, que ao adulterar sentidos
TE; LERNER, 2013, apud 1997). Para Thompson ganham efeitos de verdade, instituem modos de vi-
(2007), a midiatização da cultura é uma caracterís- ver, de ser, de compreender, de explicar a si mesmo
tica fundamentalmente típica das sociedades mo- e o mundo. Ou, de maneira mais objetiva, “a mí-
dernas. Trata-se de um processo através do qual a dia é uma prática social que atravessa o cotidiano
transmissão das formas simbólicas se tornou mais das pessoas, não apenas veiculando notícias, mas
realizada pelos aparatos das indústrias da mídia. Ela também atuando como co-produtora de sentidos e
provoca mudanças na forma como as pessoas se re- subjetividades” (MENEGON, 2008, p. 32). Já Serra e
lacionam e no conteúdo e na forma como as mensa- Santos (2003), acreditam que o poder da atual mí-
gens são transmitidas pela mídia, fazendo com que dia caracteriza-se como poder de produzir sentidos,
o conhecimento que temos dos fatos que acontecem projetá-los e legitimá-los, dando visibilidade aos
além do nosso meio social imediato acabe originan- fenômenos que conseguiram, em primeiro lugar,
do-se da recepção das formas simbólicas (ações e atrair os profissionais da mídia. O que consequen-
Sumário
temente, faz com que a função do jornalista não se de alguma forma, se dirigem à “educação” das
limite em estar entre o acontecido e o público. Uma pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na
cultura em que vivem. (MEDEIROS; GUARES-
vez que ele seleciona, reforça, interfere por meio CHI, 2008, p. 93).
de palavras e imagens na construção simbólica dos
acontecimentos. Contudo, ao longo de nossa pesquisa identi-
Em um dos textos, que trata da relação da mí- ficamos algumas resistências ao peso deste poder
dia e do crack, os autores criticam a falta de meios simbólico. Os autores Costa e Diniz, por exemplo,
de comunicação que proporcionem um olhar realis- não acreditam que a mídia cria realidades, mas que
ta e ponderado sobre o assunto, que evite cair nos “ela reproduz e redimensiona realidades que exis-
estereótipos mais comuns das visões romantizadas tiam antes e além dela” (COSTA; DINIZ, 2000, p.
ou associadas unicamente à violência. De acordo 157). Nesta lógica, ao compreender a relação entre
com os autores, por causa dessas visões, a socieda- a violência, enquanto uma questão de saúde públi-
de acaba demandando uma política de repressão, e ca, Minayo e Njaine (2004) enfatizam não ser pos-
não de saúde. Pois se entende que a mídia não ape- sível provar uma relação de causa e efeito entre o
nas registra e reproduz a realidade, mas também a aumento da violência e o aumento da exposição das 44
cria (GUARESCHI, 2003, apud ROMANINI & ROSO, pessoas à mídia, mas reconhecem o potencial infor-
2012), assim “pressupõe-se que são os meios de co- mativo da mídia como algo significativo. As autoras
municação que produzem essas visões distorcidas reforçam que a convivência com várias mídias faz
do tema quando estabelecem uma relação causal parte do cotidiano dos jovens. Sendo importante as-
entre violência e uso de crack” (ROMANINI; ROSO, sinalar que a televisão, a mídia de mais amplo aces-
2012, p. 94). so, não pode ser vista somente como um veículo de
Ainda concordando com o poder que a mídia comunicação, mas como um produtor de sentidos e
tem, mas em outra perspectiva, Medeiros e Guares- construtor de valores. Os valores que circulam na
chi entendem a mídia: mídia, são, portanto, expressões de sentido dadas
tanto pelo produtor quanto pelo receptor da men-
Como dispositivo pedagógico; particularmente a
televisão, no sentido de participar efetivamente sagem, e ocupam o mesmo espaço (SOUZA, 1995,
da constituição de sujeitos e produções de sub- apud MINAYO; NJAINE, 2004, p. 209).
jetividades quando, por exemplo, propõe o tema Um dos artigos analisados trata especificamen-
“ser brasileiro e o cuidado de saúde”. Ela pro- te da produção de sentidos entre adolescentes so-
duz imagens, significações, enfim, saberes que,
bre o cuidado de si na gravidez em comunidades de
Sumário
não sejam iguais. As notícias sobre saúde, influen- pela mídia. Deste modo, o campo da saúde, com sua
ciadas pelo ponto de vista das instituições cientí- pluralidade de ocorrências e suas múltiplas possibi-
ficas, governamentais, de pesquisa, e também pelo lidades de sentidos, torna-se uma fonte inesgotável
caráter político de sua abrangência, quase sempre de matéria-prima para a mídia, que fabula distintas
se convertem em conteúdos didático-educativos ou apropriações (CAVALCANTE; LERNER, 2013).
informativos, dirigidas às demandas de um público Esta fabulação jornalística, referenciada por
imaginado ou ideal. Público este que, sob o ponto de Cavalcante e Lerner (2013), no entanto, não se des-
vista da mídia, quer manter-se atualizado sobre pro- titui de uma semelhança com o fato real. Dizer que
moção, inovação e risco em saúde (CAVALCANTE; o jornalismo constrói fábulas não equivale a dizer
LERNER, 2013). Assim, que a notícia é falsa, mas que é um produto outro,
que já não é mais fato puro, “neutro”, mas a sua re-
o jornalismo se transforma em uma espécie de
amplo consultório público midiático caracteriza-
construção a partir de uma prática discursiva espe-
do por matérias centradas no aconselhamento e cífica. Esta prática, como sabemos, é resultante de
nas orientações dos indivíduos responsabilizan- mediações que preservam elementos que a caracte-
do-os pela qualidade de sua saúde mediante a rizam como credível, legitimando-a.
adoção de determinados comportamentos e ati- 46
tudes referenciados pelos avanços da ciência da
O artigo intitulado, A Construção Discursiva so-
saúde, tecnologias médicas, medicamentos ou por bre a Dengue na Mídia, traz um exemplo disto:
pessoas bem sucedidas na vida e na saúde cujos
exemplos devem ser seguidos em nome da busca A dengue encontra sempre lugar cativo na im-
do bem-estar individual (OLIVEIRA, 2012, p. 1). prensa, tornando a experiência da doença mais
comum para a população pela ampla divulga-
ção no assunto. Pela análise empreendida nes-
Este modo de perceber e interpretar o mundo te artigo, constatamos que a epidemia costuma
da saúde nem sempre se opera a partir das lógicas ser priorizada pela imprevisibilidade, novidade,
próprias do campo da saúde, mas a partir das lógi- peso social proximidade geográfica impacto
cas do próprio campo da mídia, de seus valores e sobre o público e perspectivas de evolução do
acontecimento, praticamente todos os critérios
seus modos de operação. Assim sendo, não é difícil que norteiam a noticiabilidade de um fato. Além
imaginar porque o fato sensacional, o emergencial, disso, a noção de epidemia resgata discursiva-
o pitoresco que tão facilmente se captura da saúde mente a memória de antigas pestes na consti-
(a doença, a dor, o acidente, o trauma, o sofrimento, tuição de sentidos, trazendo à tona nas matérias
noções como medo, mal, morte e risco, ligadas
a cura), é do mesmo modo tão facilmente difundido às moléstias que fizeram história no passado. A
Sumário
partir da ideia de proximidade do perigo, provo- Oliveira (2012), ao abordar a produção de sen-
cada a cada nova epidemia, a imprensa valoriza tidos no discurso midiático sobre a saúde, ressalta a
assim o descontrole como forma de conferir sig-
nificado à dengue. Talvez por isso mesmo o uso promoção e os fatores de risco como temas difun-
de metáforas bélicas – bastante comuns tanto didos em larga escala, e sobre os quais se ancora o
na fala dos gestores da saúde quanto no próprio processo discursivo midiático. Estes também foram
discurso midiático – é uma forma de correspon- pontos de destaque levantados nos artigos analisa-
sabilização da sociedade que é chamada a fazer
parte do “exército” nas “batalhas” contra a den- dos. Assim, Menegon destaca a prevalência do mo-
gue (FERRAZ; GOMES, 2012, p. 72). delo hospitalocêntrico como espaço de promoção
privilegiado pela mídia,
Desta maneira, o jornal acaba ocupando atual-
mente um lugar privilegiado do discurso autorizado em primeiro lugar porque as notícias analisadas
redescrevem a hegemonia do modelo hospitalo-
e o especialista é a pessoa escolhida pelo repórter cêntrico, reservando lugar periférico aos serviços
ou pelo veículo para garantir a segurança e a cre- de saúde que privilegiam a prevenção de doen-
dibilidade necessárias ao enunciado proposto. Estas ças e a promoção da saúde (Unidades Básicas de
alegações também foram percebidas em outros arti- Saúde, Programas de Saúde da Família, Centros
de Referência). O segundo aspecto está relacio- 47
gos em análise: nado aos repertórios utilizados nas notícias para
relatar a crise instaurada nos serviços de saúde
ele (o especialista) está capacitado a ligar estes naquele período e o jogo de posicionamentos dos
dois mundos, a academia e o povo, traduzindo diferentes atores sociais envolvidos e/ou afeta-
para este último o que a ciência sabe sobre ele, dos pela crise (MENEGON, 2008, p. 35).
que precisa ser esclarecido, referendando-se, as-
sim, a ordem da modernidade. Ou seja, só o es-
pecialista pode nos explicar o nosso cotidiano, E Diniz e Guedes (2006), em seu artigo que ana-
o que ele propõe como verdadeiro e universal lisa o discurso da mídia sobre a anemia falciforme2,
sobre a saúde do brasileiro, fabricações de iden- apontam a importância de como as informações ge-
tidade nacional que controlam e regulam subjeti- néticas são veiculadas pelos meios de comunicação.
vidades (MEDEIROS; GUARESCHI, 2008, p. 93).
Para eles,
2
A anemia falciforme é uma doença hereditária que atinge as hemoglobinas. A prevalência média do traço falciforme, no
Brasil, gira em torno de 2%. Além da prevalência elevada, outra característica comumente associada à doença é o potencial de
morbidade. Considerando que a anemia falciforme não tem cura, uma das estratégias adotadas para impedir o crescimento da
doença é a prevenção (DINIZ; GUEDES, 2006, p. 1056).
Sumário
tão importante quanto promover o debate sobre momentos se carece de um olhar mais atento ao
anemia falciforme é a necessidade de os meios território para mapear as mídias, em outros, encon-
de comunicação atentarem para o modo como
fornecem as informações tendo em vista a in- tra-se uma desconfiança por parte da saúde coletiva
fluência que exercem. A mídia tem o poder de em considerar esses espaços potencialmente efica-
influenciar as pessoas a criar significados em zes para se trabalhar questões de saúde. Nesta linha,
torno da genética. O Estado também recebe in- os autores inferem que, “independente da natureza
fluência da mídia na elaboração de políticas pú-
blicas. Atualmente, no Ministério da Saúde, por de aproximação que possa acontecer entre a saúde
exemplo, existe um grupo de trabalho voltado à e a rádio comunitária, são necessárias habilidades
formulação de diretrizes destinadas a pautar o políticas e análise crítica de ambos os lados” (OLI-
uso da informação genética sobre traço e anemia VEIRA NETO; PINHEIRO, 2013, p. 535).
falciforme pelo Sistema Único de Saúde. Esse foi
criado principalmente em razão das reivindica- Assim, o campo da Comunicação deve ter aten-
ções de movimentos sociais por meio da mídia ção para não reproduzir discursos hegemônicos sem
impressa. No caso da anemia falciforme, este uma análise crítica, o que reafirmaria seu papel de
artigo mostrou que há um apelo no sentido de instrumento para viabilizar a saúde, reduzindo seu
chamar as pessoas a identificar a doença e bus-
car atendimento especializado. Mas há também discurso apenas aos critérios de noticiabilidade. E o 48
a ênfase na ideia de que as pessoas informadas campo da Saúde, deve ter o cuidado para não ver-
podem contribuir para prevenir o avanço da do- ticalizar conhecimentos, normas e práticas. Somen-
ença, uma vez que a análise revelou o destaque te desta maneira, os campos da Comunicação e da
dado aos cuidados reprodutivos a serem adota-
dos. Mediar essa tênue fronteira entre preven- Saúde tendem a se tornar mais dialógicos, nem sem-
ção e reconhecimento das liberdades individuais pre assumindo consensos, nem sempre produzindo
pode ser considerado um desafio não só para a um espaço harmônico, porém garantindo um espa-
saúde pública, mas também para os meios de co- ço plural potencialmente democrático. (OLIVEIRA
municação (DINIZ; GUEDES, 2006, p. 1061).
NETO; PINHEIRO, 2013). Nesta análise, vimos que
Por fim, não podemos deixar de fora as mídias em todos os artigos selecionados se destacam lin-
comunitárias que também apareceram nesta aná- guagens, discursos, formas de poder, intenções e lu-
lise. Conforme Oliveira Neto e Pinheiro (2013), o gares sociais onde diferentes atores exercem o seu
campo da saúde tem muito ainda a dialogar com as papel através de interações sociais que podem e de-
mídias comunitárias (exemplificado no artigo pelas vem ser avaliadas a partir da contribuição reflexiva
rádios comunitárias). Para os autores, em alguns destes dois campos.
Sumário
Portanto, ao buscar entender os sentidos da ARAÚJO, I. Mercado Simbólico: interlocução, luta, poder
saúde publicados pelo discurso midiático, devemos – Um modelo de comunicação para políticas públicas. 2002.
Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação, Universidade
levar em conta que este espaço discursivo é uma Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
arena de disputas simbólicas permeadas por deter-
minadas condições de produção e de enunciação ARAUJO, N. B de; MANDÚ, E. N. T. Produção de Sentidos
que, por sua vez, são atravessadas por variáveis entre Adolescentes sobre o Cuidado de Si na Gravidez.
socioculturais (LINDENMEYER; MARTINS, 2015). Revista Interface. Botucatu, v. 20, n. 57, p. 363-375, abr./
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A articulação destas condições são os principais Acesso em: 30 jun. 2016.
fatores de modulação do processo de produção e
recepção das mensagens midiáticas sobre a saúde. BOURDIEU, P. Sobre o poder simbólico. In: O Poder Sim-
Neste sentido, cabe uma observação importante, bólico. Lisboa: Difel, 1989.
as análises dos artigos selecionados quase sempre
CAVALCANTE, C. C; LERNER, K. Mídia e Saúde: do que
se restringem aos estudos de discurso e conteúdo. tratam os artigos científicos que percorrem e relacionam os
Os estudos de recepção são raros, fazendo com que dois campos. In: INTERCOM - XXXVI Congresso Brasileiro
poucos artigos expressem a visão do receptor, ele- de Ciências da Comunicação. Anais... Manaus, 2013. Dispo-
nível em: < http://goo.gl/Oy5CjN>. Acesso em: 21 jun. 2016.
50
mento tão significativo quanto o emissor e a mensa-
gem na produção de sentidos. COSTA, S. I. F.; DINIZ, D. Mídia, Clonagem e Bioética. Re-
vista Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 16, n.
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Sumário
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Resumo: O artigo é estruturado a partir do recorte Abstract: This paper is built upon a gender and
de gênero e cor e tece problematizações relevantes color profile that weaves relevant problematics to
para discutirmos a questão da representação da mu- discuss the black woman representation on the me-
lher negra na mídia. Nossa ênfase acerca das repre- dia. Analising how black women image was built on
sentações está em analisar como são construídas as the hegemonic media was our emphasis. So, demos-
imagens das mulheres negras na mídia hegemôni- trating how midiatic speeches are very often full of 53
ca. Logo, demonstrar como os discursos midiáticos, stereotypes, contributing on increasing the social
muitas vezes, calcados nos estereótipos, contribuem stigma that black women bear for years. The me-
para reforçar todos os estigmas sociais que as mu- dia has the power to sustain and disseminate social
lheres negras carregam há anos. Visto que a mídia representation that is historicaly prejudiced. In this
tem o poder de disseminar e sustentar representa- issue, exposing the triad between racism, the media
ções sociais historicamente preconceituosas. Nesse and the interference on the formation of black wo-
viés, expor a inter-relação entre a tríade do racismo, men identity. We perceived that midiatic represen-
da mídia e a interferência na constituição da identi- tation prefer to identify women only with the body
dade da mulher negra. Percebemos representações bias, hypersexualizating the black women body and
midiáticas que preferem apresentar as mulheres neglecting their other qualities, even intellectual.
apenas pelo viés corporal, ou seja, hipersexualizam The teoric mark contemplating the representation
o corpo da mulher negra e negligenciam suas de- issue, the media and identity. Methodologically, we
1
Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
rosieliamanda@gmail.com.
Sumário
used the speech analysis, the analized material were Problematizar a representação da mulher negra
“sexo e as negas” episodes, a tv show aired on Rede na mídia e as interferências nas suas identificações.
Globo in 2014. Portanto, demonstrar que os discursos midiáticos
Keywords: Black Woman. Speech. Media Repre- por meio de narrativas baseadas em estereótipos
sentation. Identity. produzem sentidos pejorativos em relação à mulher
negra que influenciam e interferem na constituição
da identidade negra. Segundo Alakija (2012, p.120),
INTRODUÇÃO “a mídia pode ser considerada um agente/fator fun-
damental na alteração do comportamento, interfe-
As discussões teóricas e analíticas partem de rindo inclusive no próprio processo de emergência
um recorte de gênero e raça para tecer problema- da identidade”.
tizações relevantes para debater a questão da re- Sendo assim, o marco teórico contemplou a
presentação da mulher negra2 na mídia. Sendo questão das representações e da identidade. Para
assim, objetivamos compreender de que forma as tanto, apoiamo-nos em autores Alakija (2012), Al-
representações da mulher negra, principalmente, na mada (2012), Borges (2012) e Ramos (2002) para tra- 54
grande mídia hegemônica, muitas vezes, calcadas tar as temáticas relativas às representações midiá-
nos estereótipos, contribuem para reforçar o racis- ticas. As questões de constituição identitária foram
mo, a discriminação, a subalternização, a exclusão abordadas com base nos autores Barbero (2006),
social, o preconceito, a objetificação e hipersexua- Castells (1999), Grimson (2010), Hall (2013), Sodré
lização do corpo da mulher negra. Logo, averiguar (1999), Woodward (2000). Metodologicamente uti-
como os estereótipos construídos nos discursos mi- lizamos a análise de discurso, partindo do viés que
diáticos contribuem para reforçar todos os estigmas os sentidos são construídos social e historicamente.
sociais que as mulheres negras carregam há anos. Sendo assim, tendo como objeto de análise o seriado
Nesse viés, expor essa inter-relação entre a tríade ‘sexo e as negas’ consideramos investigar e inter-
do racismo, da mídia e a interferência na constitui- pretar os sentidos construídos nos materiais ana-
ção da identidade da mulher negra. lisados dos episódios do seriado, exibido na Rede
Globo no ano de 2014.
2
A referência às mulheres negras engloba todas que se identificam desta forma, isto é, todas as pessoas negras que tem sua
identidade de gênero feminina. Neste sentido, essa concepção de mulher também engloba as mulheres negras transgêneras.
Sumário
cado” (CASTELLS, 1999, p.22). A partir do exposto, Já para Barbero (2006), as identidades moder-
partindo para a perspectiva da mídia como sistema nas constroem-se na negociação e reconhecimento
simbólico, podemos considerar que o processo de do outro.
construção de identidade constrói e desconstrói sig-
A identidade não é, pois o que é atribuído a al-
nificados por meio dos discursos midiáticos. Além guém pelo fato de estar aglutinado num grupo
disso, que a identidade pode ser considerada como – como na sociedade de castas – mas, sim, a ex-
o vínculo ou sentimento de pertença dos grupos so- pressão daquilo que dá sentido e valor á vida do
ciais em relação àqueles significados que são cons- indivíduo. Identidade vive do reconhecimento
do outro – identidade se constrói no diálogo, já
truídos para representá-los. que é aí que indivíduos ou grupos se sentem des-
Conforme Castells (1999), se os sentidos são prezados pelos demais. (BARBERO, 2006, p.65).
construídos a partir de atributos culturais e são os
atributos culturais que dão sentido às identidades, Castells (1999) e Woodward (2014) coincidem
existe a necessidade de negociar esse jogo de sig- ao afirmar que a construção da identidade pode ser
nificações, visto que é importante problematizar considerada um jogo de negociações simbólicas que
quem define os elementos/atributos que irão cons- se valem da história. Nesse viés, entendemos que 56
truir determinadas identidades. Assim como, Woo- muitas das representações e papeis sociais atribuí-
dward (2014) tenciona o porquê de alguns significa- dos às mulheres, principalmente as negras, são cal-
dos serem preferidos a outros. cadas na história do período colonial do Brasil, épo-
Partindo dos pressupostos de Alakija (2012, ca em que as mulheres negras tinham seus corpos
p.120) que entende “o processo de construção da violados e seus traços culturais tidos como exóticos.
identidade de um povo se dá através de aparelhos
sociais, como a educação e a comunicação”. A au- Padrões de representação: a quase face única da mídia
tora menciona que estes aparelhos são importantes
na disseminação de valores étnicos e estéticos e de- Conforme afirma Sodré (1999, p. 31), no contex-
mais elementos que auxiliam no processo de forma- to brasileiro existe “uma dinâmica múltipla de iden-
ção das identidades étnicas. Sendo assim, “o ato ou tificações, evidenciadas pela forte heterogeneidade
efeito de identificar-se implica no reconhecimento, sociocultural da realidade sul-americana”. Compre-
em si próprio, de algo que se percebe em alguém endemos que vivemos em um contexto social de plu-
(e vice-versa), funcionando esses aparelhos como ralidade e múltiplas identidades. Todavia, quando
espelhos refletores da sua imagem e semelhança” examinamos as produções midiáticas dos grandes
(ALAKIJA, 2012, p.120). conglomerados da mídia a realidade é bem diferen-
Sumário
te. No campo midiático, percebemos que existe um o discurso midiático institui modelos de vidas a se-
padrão de representação, principalmente, referente rem seguidos, significados do que é a normalidade,
à questão racial. Almada (2012, p.28), designa como apagando muitas vezes a possibilidade das diferen-
“dicotomia entre a identidade multirracial real da ças, auxiliando na constituição da imagem do outro
sociedade brasileira e a identidade virtual forjada como o “fora do padrão”. Nesse viés, Sodré (1999,
pelas mídias”. De um modo geral, percebemos que p.21) contribui ao examinar que “[...] é evidente que
apenas determinados grupos sociais são representa- em toda esta suposta pluralidade, permanece sem-
dos no discurso midiático. pre a decisão de que só o ocidental é modelo de de-
Sodré (1999, p.29), nos diz que “os meios de ver-ser. O não-ocidental pode apenas chegar a “sub”,
comunicação de massa, com suas elites logotécni- isto é, a cumpridor de normas, executor de modelos”.
cas [...] ignoram a questão identitária ou ainda são
Na busca de um quadro comum de referências,
atravessados por uma espécie de velha consciência a mídia institui padrões operacionais: falas e so-
eurocêntrica”. Williams (2003), ao abordar a manei- taques, vestimentas, modelos de beleza, modos
ra como as culturas e valores da sociedade se consti- específicos de escrever, filmar e fotografar, es-
tuem utiliza o termo tradição seletiva para designar tabelecendo sempre modelo e estilos de vida a
serem seguidos (BORGES, 2012, p.182). 57
o caráter seletivo das culturas. Para o autor, existem
elementos que são preferidos em detrimento de ou- A perversidade da exclusão do negro na mí-
tros, ou seja, a valorização a partir de uma seleção dia pode ser constatada ao observar a televisão na
de determinadas coisas. questão das novelas. São anos de exclusão dos ato-
A mídia se apropria das representações sociais res negros dos elencos. Atualmente, percebemos um
de determinadas identidades, mas também, por ou- avanço, mas ainda bem pouco, sendo que mais de
tro lado, traz nos seus discursos representações es- 90% do elenco ainda é composto por atores brancos.
tereotipadas. A escolha de determinados elementos De um modo geral, a imagem do Brasil é apresen-
“tradição seletiva” para representar é feita de forma tada pela perspectiva do branco. Além disso, nota-
a valorizar alguns elementos e excluir ou negar ou- mos que quando existe a participação dos negros, na
tros. Então, a partir do exposto, podemos conside- maioria das vezes, interpretam papéis subalternos. A
rar que a mídia afirma, silencia e nega determinadas ascensão social, ou seja, o topo é destinado aos bran-
identidades. Como nos alerta Grimson (2010), sob o cos. Essas representações nas novelas que situam os
rótulo de homogeneidade pode-se negar e silenciar negros como subalternos, mandados pelos brancos,
as diferenças culturais. Como disse Borges (2012), acabam por naturalizar essa situação como se fosse
Sumário
3
Programa exibido cotidianamente, segunda à sexta, na Rede Globo no horário da tarde, por volta das 17h30m pelo horário
oficial de Brasília.
Sumário
manecem atados a estigmas e estereótipos? Como te do tempo sambando, discutindo, leia-se xingando,
contribuem para a cristalização do racismo?”. Esses sua vizinha e com roupas justas ao corpo. A visão
questionamentos podem nos ajudar a entender a estereotipada da mulher negra como barraqueira e
partir da perspectiva da mídia de que forma o racis- fortemente associada a sua característica corporal.
mo é “retroalimentado” na sociedade pelo sistema Fator esse que reforça a imagem de que toda mulher
midiático. Nesse viés, negra sabe dançar, isto é, sempre associada ao sam-
ba. Logo, verificamos sua imagem muito vinculada
discutir as dinâmicas da mídia frente às questões
de raça e etnicidade é, em grande medida, discu-
ao corpo, contribuindo para reforçar o imaginário
tir as matrizes do racismo no Brasil. Os meios social da mulher negra como “símbolo sexual”. No
de comunicação são, por assim dizer, um caso momento que hipersexualiza e objetifica o corpo,
modelo de representação das nossas relações so- ressaltando o exotismo, exclui ou negligencia todas
ciais (RAMOS, 2002, p. 9).
as demais características e atributos da mulher ne-
Constatamos que as construções identitárias do gra, inclusive suas capacidades intelectuais.
discurso midiático reforçam padrões, estereótipos e
estigmatizações em relação à imagem da mulher ne- A representação da mulher negra no seriado “sexo e 59
gra. Recentemente, repercutiu, nas redes sociais on- as negas”
line, o caso do ator Paulo Gustavo que ao utilizar do
blackface4 para encenar a personagem denominada Em 2014, estreou na Rede Globo, uma das emis-
‘Ivonete’ caracterizada por ser negra, pobre e traba- soras de televisão aberta do país com maior índice
lhadora doméstica. O blackface é uma técnica que de audiência, um seriado intitulado “sexo e as ne-
cria e reforça estereótipos em relação à imagem do gas”. A série foi exibida todas as terças-feiras a par-
negro, pois ridiculariza ao considerá-lo como fanta- tir das 23h na mesma emissora. Segundo o idealiza-
sia que pode ser vestida, algo engraçado, às vezes, até dor e roteirista, Miguel Falabella, foi inspirada em
representado como exótico. Para, além disso, Ivone- “sexy and the city”5, sendo uma proposta que visava
te é uma personagem que afronta seus patrões, tem colocar as negras como atrizes principais. Em suma,
personalidade forte, todavia, aparece em grande par- as protagonistas são quatro mulheres negras e po-
4
Técnica de maquiagem em que pessoas brancas pintam-se de negras para imitá-las de forma caricata.
5
Seriado norte americano que é protagonizado por mulheres brancas e ricas, todavia, nesse programa a trama não gira em
torno da vida sexual das atrizes. Diferentemente do foco dado ao programa “sexo e as negas”.
Sumário
bres que moram em uma comunidade do Rio de Ja- nada contra a vontade. Soraia é a mulher que sabe
neiro, sendo elas: Soraia, Lia, Zulma e Matilde, mais o que quer. Resta-nos desvelar o que está escondi-
conhecida como Tilde. As personagens no início da do por trás desse discurso de independência e auto-
trama exerciam as profissões de empregada domés- nomia feminina e as contradições apresentadas nas
tica, recepcionista, camareira e atendente. cenas dos episódios.
Sendo assim, analisamos os 13 episódios da pri- Primeiramente, o título da série já remete ao
meira temporada da edição e os vídeos de pré-es- forte apelo sexual e contribui para que a imagem
treia para compreendermos as representações das da mulher negra seja associada diretamente à sexu-
mulheres negras nessa série. Para fins de análise, alidade. Para, além disso, a trama gira em torno das
partimos pelo viés da análise de discurso e direcio- aventuras sexuais das mulheres. Verificamos que o
namos nossas observações apenas para as represen- episódio de estreia fez jus ao título. A narrativa do
tações das protagonistas da série. primeiro episódio se desenrolou em torno de mui-
Um aspecto positivo notado foi o fato de que as tas cenas de sexo. Os telespectadores presenciaram
protagonistas mantêm suas características naturais, momentos de cenas picantes protagonizadas por
isto é, a identidade negra está presente na forma na- Zulma e Elder. Esse forte apelo sexual presente nas 60
tural. Logo, as quatro personagens têm os cabelos cenas reproduz e reforça todos os pensamentos pre-
naturais e não alisados. Todavia, a preferência pela conceituosos do senso comum que associam as mu-
estética negra não significa que a representação ao lheres negras com a imagem da ‘mulata fogosa’, da
longo da trama seja positiva. Pelo contrário, cons- ‘boa de cama’ que está sempre predisposta ao sexo.
tatamos que o seriado é carregado de estereótipos As narrativas são marcadas pelos conflitos que
preconceituosos e racistas. Neste aspecto, contribui afligem as protagonistas. Em sua maioria são refe-
com a proliferação do racismo e interfere na consti- rentes aos relacionamentos amorosos. A trama da
tuição da identidade negra. pouca ênfase para as questões profissionais e a ou-
Antes da estreia oficial foram lançados quatro tros aspectos da vida das mulheres negras. A repre-
vídeos com duração de um minuto que apresenta- sentação da mulher como um ser incompleto que
vam o perfil de cada protagonista da série. Zulma precisa da figura masculina para tornar sua vida
é a mulher que se diverte com os sapos enquanto plena é uma característica marcante no discurso da
o príncipe encantado não chega, afinal, ela só quer série. Parece existir a necessidade da vida das mu-
curtir a vida. Lia é apresentada como a objetiva que lheres estar associada à busca do homem perfeito.
se ‘vira nos 30’. Tilde é a independente que não faz Assim se perpetua a imagem de que as mulheres
Sumário
não têm outros sonhos e ideais de vida para além do como a acumuladora de homens. A mulher negra
casamento ou a constituição de uma família. insaciável que está sempre em busca de aventuras
Tilde é uma jovem sonhadora que idealiza se sexuais. Na mesma ocasião, aparece protagonizan-
casar com o atual namorado cujo apelido é ‘Vina- do uma cena de sexo. Soraia é a personagem que
gre’. Nos primeiros capítulos da série, Tilde é apre- aparece mais vezes em cenas de sexo. Ao longo dos
sentada como a acumuladora de sonhos. Esta per- capítulos da série, ela se envolve até mesmo com
sonagem apresenta uma representação relacionada seus patrões, tanto o primeiro chamado de Evandro,
às suas angústias amorosas, todavia, no decorrer quanto o seu segundo patrão e, neste caso, também
dos episódios vai mudando sua postura e começa inclui a patroa. Nas narrativas fica subentendido
a planejar outros sonhos, agora relacionados aos que Soraia participa e frequenta casas de swing com
estudos. Tilde pode ser considerada a representa- sua segunda patroa.
ção mais positiva da mulher negra presente na sé- Em uma cena com o primeiro patrão, este apa-
rie. Levando em consideração que no desenvolver rece na cozinha de camisa aberta aproximando-se
da narrativa vai ganhando visibilidade no espaço da dela. Soraia tenta resistir e desvia, todavia, acaba
Faculdade e começa a ser valorizada devido as suas cedendo às investidas do patrão branco. Interpre- 61
capacidades intelectuais. O ápice de sua valorização tando uma cena de beijo caloroso se direcionam a
aconteceu quando ela ganhou uma bolsa de estudos uma peça do apartamento. Neste momento, Soraia
para estudar na Índia durante um ano. Raramente, questiona o patrão ‘No quartinho?’ e o mesmo res-
teve uma representação muita marcante em relação ponde firme ‘É, no quartinho’. Nesta cena podemos
à sexualidade. Ainda que as roupas mais justas e ex- notar um clássico reforço do pensamento pejorativo
plorações sutis do corpo estivessem presentes em em relação à mulher negra e a sua completa desva-
algumas cenas. lorização. O patrão nesse caso estipula o papel social
Soraia é a personagem que tem mais marcada a que a mulher negra pode exercer, ficando restrito
questão da sexualidade e a utilização do corpo para a ela o lugar da empregada. Apesar de ter rompido
sedução. Ela é exibida no decorrer da série como com a relação de patrão e empregada e ele usufruir
uma caçadora de homens, visto que em todo lugar do corpo de Soraia, porém, a ela só é permitido fre-
que vai está sempre tentando seduzir alguém. A quentar o quartinho da empregada. Nunca virá a ser
exploração do corpo da personagem está evidente, algo mais do que isso apesar do patrão se relacionar
em várias cenas aparece somente de calcinha e su- sexualmente com ela. Assim, cria-se através dessas
tiã. No quarto episódio da série, ela é apresentada representações a categoria das ‘mulheres para casar’.
Sumário
Certamente, esta representação reforça o pensamen- rece na série como uma acumuladora de coisas que
to pejorativo de que as mulheres negras são boas de a prendem ao passado, impedindo-lhe de vivenciar
cama, mas não servem para casar, ou seja, são apro- o presente. Uma visível metáfora ao casamento mal
priadas somente para momentos de diversão. sucedido e a resistência da personagem em se envol-
Zulma também é apresentada pelo viés da sexu- ver com outros homens. Repetidamente, os aspectos
alidade. A narrativa em torno da personagem con- da continuidade da vida mulher estar associada ao
ta a história da mulher que se diverte mesmo não homem. Em vias de final da temporada da série, Lia
tendo encontrado o príncipe encantado. Em uma encontra um novo parceiro com quem passa a se re-
cena do quarto episódio, Zulma aparece de calcinha lacionar e pretende até mesmo casar. A postura ética
e sutiã conversando com sua amiga Jesuína. Ela está talvez seja o aspecto positivo na personagem.
tentando escolher um vestido que a deixe com ar de Notamos no seriado sexo e as negas a represen-
mulher séria para um encontro com Jorge. Na con- tação da mulher negra pelo viés corporal, ou seja,
tinuidade da cena exibida no quarto de Jorge, Zulma a sexualidade da mulher negra sendo explorada ao
aparece partindo para cima dele, porém, Jorge está extremo. Neste momento, cabe relatarmos sobre
mais recatado. Novamente percebemos a represen- uma cena em que a personagem da empregada do- 62
tação da mulher negra como a feroz, a ‘mulata fo- méstica aparece sendo assediada novamente pelo
gosa’, etc. Esse tipo de exibição só auxilia a reforçar patrão branco. Soraia está na cozinha vestida de
os estigmas sociais que as mulheres negras são as- uniforme fazendo almoço e o patrão chega por trás
sociadas. Essa frequente hipersexualização repercu- e a todo custo tenta agarrá-la. Ela numa atitude de-
te no cotidiano das mulheres negras que são alvos fensiva fica se esquivando de todas as formas, mas o
de cantadas infelizes e ficam constrangidas, muitas patrão é insistente e continua avançando nas inves-
vezes, ao escutar frases do tipo: ‘sempre quis saber tidas. Soraia sempre mantendo uma linguagem para
como é uma mulher negra na cama’ ou ‘mulher ne- sinalizar que prefere manter apenas uma relação de
gra é boa de cama’ e até mesmo na subjugação e empregada e patrão, com frases: ‘Seu Evandro, dá
associação das mulheres negras a prostituição. licença que eu tô cozinhando’, ‘Para com isso que eu
Lia não tem um apelo muito marcante à ques- preciso é trabalhar’ ‘Aí me solta, para com isso. Me
tão corporal. Esta é representada por uma mulher de solta, para com isso seu Evandro’. Mesmo assim, o
meia idade que já foi casada, porém, separou-se por patrão é cada vez mais invasivo, chegando a passar
não compactuar com a conduta do ex-marido com as mãos pelas suas pernas. A cena se finda com a
quem tem uma filha em fase de adolescência. Lia apa- patroa, Maria Inês, chegando ao apartamento e vi-
Sumário
sualizando o marido tentando agarrar a empregada tradição que se enraíza nos nossos modos de ava-
enquanto a mesma está se esquivando. Todavia, a liar, aceder, aprovar, reprovar códigos de conduta e
culpa recai sobre a empregada, como se ela tivesse formas de apresentação (estética e, às vezes, moral)”
se insinuado para o patrão. (BORGES, 2012, p. 184).
Essa cena é um típico reforço da herança do Logo, se a mídia concebe a imagem que temos
período escravocrata do país, em que os senhores do outro, nesse caso, colabora com os processos de
usufruíam livremente dos corpos de suas escravas. discriminação social. Sendo assim, prejudica o pro-
Logo, construindo e reforçando no imaginário so- cesso identitário das mulheres negras, pois ao apre-
cial a representação da mulher negra como a “dis- sentá-las pelo viés negativo ou estereotipado con-
ponível” sexualmente para os brancos usufruírem. tribui para a formação de “identidades negativas”
Por esse lado, Borges considera que (ALAKIJA, 2012, p.122). Segundo Oliveira (1976,
p.127) “a soma de todas aquelas identificações e os
os estereótipos decantados por um imaginário
racista e sexista sobre a mulher negra desde a es-
fragmentos de identidade que o indivíduo tem que
cravidão impediram que ela fosse vista além do reprimir em si mesmo por serem indesejáveis ou
seu corpo, impondo-lhe papéis fixos que circu- irreconciliáveis, ou pelo qual indivíduos atípicos e 63
lam recorrentemente e alimentam o sistema de minorias marcadas são forçados a se sentir diferen-
dominação patriarcal e racista (BORGES, 2012,
p. 196).
tes”. Assim como Borges (2012):
A temática mídia e representações do outro afi-
Tanto quanto na personagem Ivonete quanto gura-se como um nexo importante para pensar-
no seriado “sexo e as negas” as mulheres negras mos, em perspectiva ampliada, nos modos em
são estereotipadas. Permanece a homogeneização que o imaginário ordena-se em torno da ques-
tão, visto que envolve discriminações acerca do
das representações das mulheres negras que são in- certo ou do errado, melhor ou pior, belo e feio,
cessantemente associadas à baixa qualificação, aos normal e desviante, adequado e inadequado,
papéis subalternos, ao não o reconhecimento do próprio e impróprio, fornecendo a todos nós
seu intelecto, tudo isso são formas de construir a padrões com os quais constituímos nossos hori-
zontes identitários, ideais culturais de ser e bem
imagem da mulher negra na sociedade. Assim como estar no mundo (BORGES, 2012, p.179).
apura Borges (2012, p.184) “com as informações ad-
vindas dos tentáculos midiáticos, esculpimos o ou- Logo, percebemos que apesar de termos quatro
tro, traço por traço”. O autor salienta que tudo isso mulheres negras como protagonistas as represen-
reflete “nas formas de conceber o outro, criando tações delas podem ser caracterizadas como apre-
Sumário
mulheres negras sejam protagonistas nos inúmeros BORGES, Rosane da Silva. Mídia, racismos e representações
veículos de comunicação. do outro. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES,
Rosane (Orgs.). Mídia e Racismo. Petrópolis: Rio de janei-
Além disso, para combater essas representa- ro, 2012. p. 180-205.
ções negativas devemos fortalecer cada vez mais
os movimentos sociais negros para que possam CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo:
denunciar sempre que representações discrimina- Paz e Terra, 1999. p. 15-92.
tórias sejam realizadas, como foi o caso do seriado
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de
“sexo e as negas”, o qual chegou a ser investigado janeiro: Zahar, 2002.
pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial (SEPPIR), após denúncias. Além disso, a Globo. Sexo e as negas. Disponível em: <https://globoplay.
repercussão na internet em relação à série fez com globo.com/sexo-e-as-negas/p/8302/>. Acesso em: 03 de
Junho.
que o autor modificasse o roteiro de algumas cenas.
Estas são algumas alternativas viáveis para recons- Globo. Pela primeira vez em 21 anos, ‘Malhação’ terá prota-
truirmos nosso processo de constituição identitária. gonista negra. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cul-
tura/revista-da-tv/pela-primeira-vez-em-21-anos-malhacao-
-tera-protagonista-negra-19519723>. Acesso em: 28 de maio.
65
REFERÊNCIAS
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to Carlos da Silva; BORGES, Rosane (Orgs.). Mídia e Racis- notions. Social Identities, v. 16, n. 1, January 2010, p. 63-79.
mo. Petrópolis: Rio de janeiro, 2012. p. 108-153.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações cultu-
ALMADA, Sandra. Prefácio. Mídia e identidade negra. In: rais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p.428-450.
BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES, Rosane (Orgs.).
Mídia e Racismo. Petrópolis: Rio de janeiro, 2012. p. 24-31. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Identidade étnica, identi-
ficação e manipulação. In: ______. Identidade, etnia e
BARBERO, Jesús Martín. Tecnicidades, identidade, alteri- estrutura social. São Paulo, Pioneira, 1976. Disponível em:
dades: mudanças e opacidades da comunicação no novo <https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/912/1117>. p.
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Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p. 51-79.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas: Editora da Uni-
Fronteira, 1980. p.05-20. camp, 1997.
Sumário
66
Sumário
1
Mestre em Letras, na área da Linguagem, Discurso e Sociedade, pela UniRitter.
2
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora Titular da UniRitter.
Sumário
ponsible for the consolidation of memories, feelin- declarássemos nos lembrar dela” (RICOEUR, 2012,
gs it also contributes for building these memories. p.40). Por isso, “uma ambição, uma pretensão está
In order to comprehend the processes of memory vinculada à memória: a de ser fiel ao passado” (RI-
building, it is going to be necessary some support COEUR, 2012, p.40). Esse mesmo desejo, em vários
from Ivan Izquierdo (2011), who treats memory un- momentos, também é compartilhado pela narrado-
der the neuroscience perspective, Alan Baddeley ra-protagonista, ainda que a imaginação coabitasse
(2011) and their collaborators that research about nesse mesmo universo.
the memory building, Maurice Halbwachs (2015), Embora o foco narrativo alterne entre a primeira
who contextualizes memory acquisition and social e a terceira pessoa, a visão, mesmo que parcialmente
context. Through these theories interweaved, it is comprometida, sempre é a da personagem principal,
possible to foresee some formats of memory acqui- a filha do Walter. São as impressões, percepções e
sition and conservation. memórias que afloram, continuamente, seja por
Keywords: A manta do soldado. Individual and col- suas próprias lembranças, ou com a interferência de
lective memory. Space. Feelings. seus familiares. Estes, constantemente, estimulam
e fomentam essa faculdade mental. A partir de tais 68
intervenções, a sobrinha do Walter utiliza essa “ba-
INTRODUÇÃO gagem” como meio para construir e desconstruir as
lembranças, sua história de vida e a imagem que tem
A manta do soldado (2003) é uma obra impreg- de seu pai, porque “recorremos a testemunhos para
nada pela memória de sua protagonista e narradora. reforçar ou enfraquecer e também para completar
Trata-se de um romance que carrega em si uma es- o que sabemos de um evento sobre o qual já temos
sência memorialística e que tem como tônica as lem- alguma informação” (HALBWACHS, 2015, p.29).
branças trazidas pela personagem, a filha do Walter. Dessa forma, a protagonista conseguia tantas infor-
Essas memórias são sempre reveladas através de mações a respeito do pai, porque ouvia e agregava
sua ótica, porém, nem sempre se apresentam fiéis aos seus próprios conhecimentos, tudo aquilo que
à realidade do mundo romanesco criado. Às vezes, era dito pelos outros, aproveitando-se da memória
são deturpadas pela simples passagem do tempo; coletiva para abastecer suas próprias lembranças.
outras, por obra da imaginação. Mesmo assim, “não As recordações, constantemente, estão associa-
temos nada melhor que a memória para significar das a algum lugar específico e, por isso, o ambien-
que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que te exerce papel importante e diferenciador para a
Sumário
memória. Os espaços são memoráveis, mas, dentre pelo nível de consciência e pelos estados de ânimo”
todos os lugares da casa, a sobrinha do Walter ele- (IZQUIERDO, 2011, p.14). Essa habilidade essencial-
geu seu quarto para ser o refúgio ideal para viver mente humana é reelaborada na ficção, em que per-
e reviver momentos que considerava inesquecíveis, sonagens agem, sofrem, se emocionam, fazendo uso
especiais. A propósito, Paul Ricoeur (2012, p.59) diz dessa mesma possibilidade de memorização me-
que “os lugares habitados são, por excelência, me- diante os sentidos. Na leitura, é estabelecida uma
moráveis”. Entretanto, não é apenas o espaço um espécie de pacto entre o leitor e o texto ficcional,
elemento imprescindível para a consolidação das admitindo-se que a literatura é sinônimo de ativi-
memórias, pois, as sensações percebidas pelo corpo dade criativa que, de diferentes formas, representa
desempenham igualmente um papel promissor para realidades possíveis, desde que respeitados os limi-
a fixação das lembranças, mesmo que sejam as de tes de cada uma.
uma personagem. No caso do romance lusitano A manta do sol-
dado, a ambientação é na cidade fictícia de São Se-
A memória e os sentidos bastião de Valmares, no Algarve, no período que
corresponde à ditadura de Salazar, até a instaura- 69
Os cinco sentidos são os instrumentos de que ção da democracia. Nesse ambiente, permeado pela
o corpo se vale para captar informações, sinalizar memória e a imaginação da protagonista – a ino-
as emoções, promover sensações e provocar a ima- minada - o leitor é convidado a conhecer a vida e
ginação. Esses estímulos são conduzidos através a trajetória dessa personagem, que carrega junto a
dos neurônios e processados pelo cérebro, ficando si uma recordação significativa: a cena em que seu
registrados na memória. Esta, por sua vez, é ca- pai, Walter Dias, a visita em seu quarto. Essa situa-
paz de preservar e resgatar, a qualquer momento, ção representa um marco para a protagonista, que
as lembranças importantes, marcantes, oriundas sempre se reporta a esse momento com insistência e
de momentos particulares e específicos. Mas, para apresenta certa nostalgia. Essas lembranças são im-
que isso ocorra, é necessário que haja um estímulo pregnadas por estímulos sensoriais, presentes em
adequado a cada situação. Segundo Izquierdo (2011, toda a obra. Assim, a narrativa tem início a partir
p.14), “as memórias são feitas por células nervosas das lembranças da noite em que o pai a visitou em
(neurônios), se armazenam em redes de neurônios e seu quarto. Oportunidade única e, por isso mesmo,
são evocadas pelas mesmas redes neuronais ou por seria constantemente evocada pela memória da pro-
outras”, bem como “são moduladas pelas emoções, tagonista, ao longo de toda a sua história. Para a
Sumário
sobrinha-filha do Walter, uma noite de inverno me- as observações e as percepções são reveladas pela
morável. Lembrava-se daquele momento como um ótica da protagonista, que transita em “seu mundo”.
acontecimento especial. Sem identificação própria, precisa de uma persona-
Era a primeira vez que tinha a oportunidade de gem. Isso não significa dizer que, sobre esse aspecto,
travar contato com a figura que idealizava. Seu pai torne-se menos reconhecível. Muito pelo contrário,
era objeto de ilusões, construídas durante anos e que pois encontrava, apesar de tudo, um ambiente que
povoavam seus sonhos, suas obsessões. Chovia na- a abrigava, embora a propriedade rural, comanda-
quele primeiro encontro a sós e a protagonista já era da pelo avô da menina, não fosse propriamente um
uma jovem mulher. Tinha uma vaga lembrança de lar. Antes disso, a moradia era, principalmente, um
um encontro anterior, quando muito pequena, mas lugar de trabalho e do sustento de seus habitantes.
as informações eram imprecisas e, talvez, impregna- Viviam todos sob o regime autoritário de Francisco
das pela imaginação da inominada. Crescera fazen- Dias, que não dava voz a nenhum de seus subordi-
do parte de uma família patriarcal, que a ignorava, nados. Em meio a esse ambiente familiar conturba-
tendo como líder o avô Francisco Dias. Esse clã ia do, mas ao mesmo tempo impregnado pelos estímu-
sucumbindo, à medida em que seus habitantes dei- los exteriores, que determinavam sensações e modo 70
xavam a casa paterna. Porém, a inominada perma- de viver, a sobrinha do Walter tem a oportunidade
necia ali, mesmo excluída do seio familiar. Ia se apro- de crescer e identificar, por intermédio dos sentidos,
priando de informações a respeito de seu genitor e o comportamento de alguns integrantes do clã dos
da manta de soldado que, possivelmente, ele usasse Dias. Assim, o retrato dos personagens e seus con-
para fins menos nobres. Ouvia isso, nem sempre de flitos, suas dores, características e anseios são reve-
forma direta, mas fazendo uso dos sentidos para des- lados, pouco a pouco, pela personagem sem nome,
cobrir tudo o que se passava ao seu redor. Imaginava. que a tudo observava, de forma distanciada. Entre-
Dessa forma, a imagem do Walter ia sendo constru- tanto, esse distanciamento não significa necessa-
ída e desconstruída, assim como a sua própria iden- riamente alheamento ou desinteresse. Muito pelo
tidade. Já na maturidade, ciente das verdades, pôde contrário, seu olhar atento e seus ouvidos aguçados
finalmente se libertar das fantasias sobre seu pai, es- espreitavam a todos, demonstrando um minucioso
crevendo narrativas que o desmistificavam. exame da situação, inclusive emocional, dos envol-
Para o leitor, a princípio, o romance apresenta vidos na trama.
uma certa atmosfera nebulosa, carregada de inter- A memória é o recurso utilizado pela persona-
rogações, que vão se diluindo pouco a pouco. Todas gem protagonista para fazer um retrospecto de sua
Sumário
vida. São idas e vindas a um passado, nem sempre A atmosfera que envolvia pai e filha estava im-
com recordações prazerosas. Longe disso, é um tem- pregnada de elementos sensoriais que, naquele ins-
po que se apresenta obscuro, indefinido, mas que a tante, foram extremamente significativos, ao ponto
inominada pode, sempre que deseja, evocar, pois a de serem relembrados sempre que a protagonista
memória “significa aquisição, formação, conserva- assim o desejasse. Até mesmo porque ela não queria
ção e evocação de informações” (IZQUIERDO, 2011, esquecer. Justamente por isso, havia a necessidade
p.11). Assim, ela consegue lembrar a passagem mais de rememorá-la. A cena tinha para a inominada alta
marcante de sua vida, que foi a visita do pai biológi- relevância, pois significava um momento único de
co ao seu quarto de dormir. Naquela noite, em meio aproximação com seu genitor. A partir dessa ideia,
a um turbilhão de emoções, nada passou desper- percebe-se que “todos recordamos por mais tempo
cebido. Olhares, ruídos e odores ficaram gravados e em maior detalhe acontecimentos que ocorreram
na lembrança da protagonista: “Chovia nessa noite com um forte grau de alerta emocional” (IZQUIER-
distante de Inverno sobre a planície de areia, e o DO, 2011, p.75).
ruído da água nas telhas protegia-nos dos outros e O encontro representou uma forte carga emo-
do mundo como uma cortina cerrada que nenhu- cional, por isso observou a riqueza dos detalhes e 71
ma força humana poderia rasgar” (JORGE, 2003, p. recorreu a vários sentidos, para que nada se per-
7). Foi nessa noite nebulosa e inesquecível que seu desse. A sensação que a inominada tinha de ser ina-
pai “aproximou-a como se o bojo fosse uma lente, tingível, de estar protegida do mundo lá fora, a sós
e pôs-se a olhá-la, a observá-la de frente e de lado, com Walter, fora proporcionada pela chuva que caía
enquanto a chuva forte lutava contra as janelas de no momento desse encontro. O barulho da água so-
vidro” (JORGE, 2003, p. 7). Todas essas sensações, bre o telhado formava uma espécie de escudo, pro-
aguçadas pelos sentidos e o poder da imaginação, tegendo-os do restante da família, das adversidades
fazem parte da essência da trama, juntamente com e do perigo que essa aproximação representava. Era
a memória. É através dos sentidos que se percebe o como se a noite e a chuva, que molhava a areia da
clima que envolve cada passagem do texto, as emo- planície, também colaborassem para abrigar e pro-
ções e as relações nem sempre amistosas entre as teger os clandestinos, um ruído abafado e um “véu”
personagens. A partir desse entrelaçamento - me- de escuridão sobre os dois. Mas, ao mesmo tempo, a
mória e sentidos - são permitidas várias possibili- terra se apresentava quente e árida, parecida com o
dades de interpretação, com destaque ao encontro aspecto do deserto. Por certo, ambos tinham a mes-
entre Walter e a personagem sem nome. ma sensação de calor, provocada pela aproximação,
Sumário
ao mesmo tempo em que percebiam que havia ali, Novamente o sentido do olfato conduz a lem-
também, uma “terra” que não fora semeada, estéril branças de um tempo que ela insiste em não esque-
pela falta de cuidados e sentimentos. cer, mesmo que esse momento possa vir a ser ape-
O próprio olhar de Walter era um desnudar da nas fruto de sua imaginação, pois a “nossa memória
verdade que se apresentava: uma filha, quase desco- pessoal e coletiva descarta o trivial e, às vezes, in-
nhecida, que surgia em sua frente como uma jovem corpora fatos irreais” (IZQUIERDO, 2011, p.19).
mulher. Por isso, para ele, era necessário olhá-la Bem como “também vamos incorporando, ao lon-
atentamente. E também havia o cheiro do petróleo go dos anos, mentiras e variações que geralmente
queimado. Esse odor não era nenhuma novidade as enriquecem. Pessoas [...] que não foram, no seu
para a sem nome, mas assim como os demais ele- momento, mais do que comuns, adquirem um ver-
mentos presentes na narrativa, serviram ao mesmo niz heroico ou de alguma maneira brilhante” (IZ-
propósito: marcar com impressões sensoriais a me- QUIERDO, 2011, p.19). É o caso da figura de Walter,
mória da sobrinha do Walter. Izquierdo (2011, p. 21) que adquire esta forma idealizada, pelo menos para
afirma que em relação a essa situação, “as emoções, a protagonista. Essa possibilidade de existir uma in-
o contexto e a combinação de ambos influenciam a compatibilidade de cheiros, causa certa perturbação 72
aquisição e a evocação”. na sem nome, visto que até o aroma exalado pode
Assim, o encontro entre pai e filha era um acon- vir a interferir nessa relação.
tecimento memorável, do ponto de vista da prota- Um odor de criança, comparado ao “perfume
gonista. Seu pai se destacava dos demais, não pelo de homem” de seu pai, revela o distanciamento que
grau de parentesco, mas por ser uma figura idea- existia entre os dois, mesmo diante de sua relação
lizada, quase inatingível. Um homem de presença parental. Segundo Izquierdo (2011, p.11), “o acervo
forte e marcante, que estimulava a imaginação da de nossas memórias faz com que cada um de nós
inominada, mesmo quando se reportava ao perío- seja o que é: um indivíduo, um ser para o qual não
do da infância: “naquela noite de chuva, ela sempre existe outro idêntico”. A ideia que a inominada ti-
imaginou que o seu corpo teria ficado perto do seu nha de si era exatamente esta: eram apenas seme-
corpo, e durante um instante – mais que não fosse, lhantes. Por isso a procura pela identificação com
pelo menos o instante da fotografia – teria sido en- o pai, o zelo com a imagem de Walter, mesmo que
volvida pelo seu perfume de homem, e ela ter-lhe-ia isso significasse uma certa inferioridade em relação
contaminado o seu bafo azedo de criança” (JORGE, ao genitor.
2003, p. 31).
Sumário
O ambiente, associado aos sentidos, também provêm das experiências. [...] umas são muito visu-
apresenta inúmeras possibilidades de trazer à tona ais (a casa da infância), outras só olfativas (a do per-
lembranças. Justamente por esse motivo eram tão fume da flor), outras quase completamente motoras
vivos e presentes os lugares da casa em que vivia. ou musculares (nadar, andar de bicicleta). Algumas
Cada detalhe fora memorizado pela protagonis- dão prazer; outras são terríveis” (IZQUIERDO, 2011,
ta, que, ainda na fase adulta, conservava a mesma p.20). Os vários sentidos vão sendo usados pela sem
imagem do interior de seu lar: “Por dentro, porém, nome, em diferentes situações de sua vida, visto que
manter-se-ão as traves, o corrimão, a escada, a por- não pretendia perder qualquer assunto ou aconte-
ta do quarto do primeiro andar, o seu manípulo, o cimento, relacionado a seu pai. Era essa a intenção
seu limiar e o seu soalho. Talvez a mesma luz e o da protagonista. Em diferentes fases de sua vida
mesmo som dos passos no tabuado, o mesmo cheiro procurou memorizar os diversos sons da casa e do
a sabão e a cera” (JORGE, 2003, p.12-13). O aspecto ambiente, seus variados perfumes, observou atenta-
visual permaneceria o mesmo, ainda que aconteces- mente, também, os olhares que se cruzavam. Lem-
sem mudanças na casa. Isso era imensamente im- brava-se da colcha que a abrigava para dormir “e a
portante para a sem nome, pois, assim, ficaria mais filha de Walter Dias, embrulhada na colcha pegajo- 73
fácil recordar o tempo em que seu pai por ali estive- sa da humidade, pegajosa da combustão do petróleo
ra. Porém, houve um tempo em que a casa recendia e pegajosa ainda pela consciência da sua vontade”
a outros cheiros. (JORGE, 2003, p. 39).
Por ocasião da chegada de Walter Dias ao lar A colcha provocava uma sensação desagradá-
paterno, “a casa cheirava a alfazema, cheirava a mu- vel ao toque de suas mãos, por tudo o que pensa-
dança” (JORGE, 2003, p.99), e em outra circunstân- vam, supostamente, a seu respeito. Até recordava
cia, um tanto adversa, os aromas mudam, dando uma das súplicas de sua mãe, Maria Ema, para que se
reviravolta na trajetória das personagens. É Walter afastasse dos toques do Doutor Dalila:
que agora decide ir embora e “em frente, o lume ex-
Meu Deus, meu Senhor, faz com que o Dr. Da-
pande um cheiro a lenha, a carvoeira, a acidente, lila não toque na minha filha, que a minha filha
a objetos queimados, consumidos no ar” (JORGE, tenha nojo do Dr. Dalila, que não a leve de car-
2003, p.140). Assim, esse desdobramento da situa- ro, não tenha intimidade com ela, não lhe toque
ção familiar vem sofrendo alterações perceptíveis, nos braços, não lhe toque na pele, não lhe ponha
a mão no cabelo. Meu Deus, protege-a dele, da
através dos sentidos aguçados da inominada. Des- sombra dele do bafo dele – pedia, mas quando
se modo, “as memórias dos humanos e dos animais batiam as cinco horas da tarde, ficava a saber
que Deus não a socorria. (JORGE, 2003, p.153).
Sumário
Mas a imagem do mapa-múndi, que aparentemen- mem que vivia desenhando pássaros, que não havia
te poderia significar apenas uma mera ilustração, constituído uma família e que não sabiam, realmen-
para Walter e seus irmãos, talvez significasse a co- te, de que forma se sustentava. De acordo com seu
biça por liberdade. A começar pelo caçula, houve pensamento mundano, “o mundo é grande, mas há
uma debandada geral. A família Dias espalhou-se sempre aqueles que se apegam a um lugar. Ele, não.
por vários países, em busca de riquezas, mas, princi- Em todo o local se podia viver, desde que se possa
palmente, para se livrarem do autoritarismo do pai partir para o local seguinte” (JORGE, 2003, p.109).
e dos trabalhos forçados. Antes, seres submissos e Walter Dias era um homem do mundo, que não
sem voz, coabitavam em uma espécie de cativeiro. se prendia a nenhum lugar. Em toda parte, se sentia
Agora, donos de suas próprias vidas e de seus des- livre e bem à vontade. Porém, a mesma situação não
tinos adquirem personalidade e jamais retornam à se repetiu com os demais irmãos, que procuraram
antiga casa. Os únicos meios de manterem contato estabelecer residência e emprego fixo, provando
com os que ficaram era através de cartas breves e de um certo apego à estabilidade. Já para o casal Maria
telefonemas esparsos. Ema e Custódio, permanecer na mesma casa signi-
Somente Walter retornava ao antigo lar, porque ficava um apego às raízes familiares, pois estavam 76
“sabemos bem que estamos mais tranquilos, mais convictos de que aquele espaço estava povoado de
seguros na velha moradia, na casa natal do que na lembranças. Até mesmo a sem nome se comprazia
casa das ruas que não habitamos senão passagei- naquele lugar tão carregado de memórias, ao lado de
ramente” (BACHELARD, s/d, p. 47). Estava sempre Francisco Dias, mesmo havendo muitos desentendi-
em viagens, morou e trabalhou em vários continen- mentos. Mas, ao mesmo tempo, estavam tão pró-
tes, sem nunca fixar residência. Até sua irmã Ade- ximos e ligados às lembranças daquela casa, visto
lina Dias dizia que a manta de soldado que possuía, que “a casa materna é uma presença constante nas
havia se tornado um atlas, já que “a manta tem terra autobiografias. Nem sempre é a primeira casa que
de todos esses lugares [...] acrescentava – “Paizinho, se conheceu, mas é aquela em que vivemos os mo-
a esta hora devemos ter familiares espalhados por mentos mais importantes da infância” (BOSI, 1999,
todas as partes do mundo” (JORGE, 2003, p. 186- p. 435) e, por ser tão significativo, o lar é considera-
187). Eram esses os pensamentos que ganhavam do como “um refúgio seguro” (MASSEY, 2008, p. 25),
força e tomavam vulto, já que a fama e a expectativa pelo menos para alguns membros daquela família.
que todos tinham em relação a Walter se tornavam E, realmente, quase todos os Dias têm momentos
cada vez mais negativas. Desconfiavam de um ho- marcantes para lembrarem no período da infância,
Sumário
na casa materna, ainda que dolorosos. Mesmo que a solidão, são em nós indeléveis. E é o ser pre-
não desejassem, as memórias daquela propriedade cisamente que não quer apagá-los. Ele sabe por
instinto que os espaços da sua solidão são cons-
estariam sempre vivas e presentes em suas mentes, titutivos.
enquanto resistissem à passagem do tempo.
O quarto da filha do Walter era um ambiente Apreciava a solidão e mantinha guardado em
memorável, pois sempre lembrava do encontro que uma gaveta do quarto o “Álbum dos Pássaros de
tivera com seu pai. Ficava em um andar superior da Walter Dias” (JORGE, 2003, p.21), considerado seu
casa e “os andares mais altos, o sótão, o sonhador maior tesouro. Também poderia ser encontrado no
os ‘edifica’, e os reedifica bem edificados” (BACHE- armário
LARD, s/d, p.31). É nesse espaço que cresce e se de-
senvolve, imagina situações diversas e constrói sua a farda [...] encerrada no roupeiro do quarto
onde dormia. A geografia do tumulto e do acaso
vida. Entretanto, esse local adquire um significado acabara por colocá-la no quarto exacto, aquele
mais do que especial porque nele acontece o encon- quarto, da largura duma sala onde o roupeiro
tro entre pai e filha, na calada da noite. Momento então dançava na parede do fundo. E ela teria
único, mas seria lembrado para sempre. Chovia e enumerado peça a peça, a mochila, as botas, as
polainas, a farda, o capote, o bivaque, o cantil, 77
água da chuva batia forte no telhado. Assim, até o lenço e o cinturão, o que fora suficiente para
mesmo “o telhado revela imediatamente sua razão Walter ter ficado inteiro dentro do roupeiro”.
de ser: cobre o homem que tem medo da chuva e do (JORGE, 2003, p.36).
sol” (BACHELARD, s/d, p.37). Nesse caso específi-
co, não apenas os protegia das intempéries do tem- Nesse sentido, para a sem nome, “o espaço inte-
po, mas, particularmente, os defendia do contato rior do armário é um espaço de intimidade, um espa-
com o mundo exterior. A sem nome se sentia pro- ço que não se abre à toa [..] No armário, só um po-
tegida, pois pensava estar a salvo das tribulações, bre de espírito poderia colocar uma coisa qualquer”
do desconforto de se sentir uma intrusa no próprio (BACHELARD, s/d, p.70). Os pertences de seu pai,
seio familiar. Exatamente por isso que o quarto e os jamais poderiam ser considerados por ela um objeto
objetos que lá se encontravam adquiriam tamanha qualquer. Por isso, mantinha-os reservados somente
importância e, conforme Bachelard (s/d, p. 25): para seu deleite, pois “o verdadeiro armário não é
um móvel cotidiano. Não se abre todos os dias” (BA-
Todos os espaços de nossas solidões passadas, os CHELARD, s/d, p.71). Para mantê-lo trancado, ina-
espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos cessível ao contato alheio, usava uma chave e, assim,
a solidão, desejamos a solidão, comprometemos
Sumário
essa herança poderia ser usufruída somente por ela. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante, “o espaço caracterizador é em geral
restrito - um quarto, uma casa -, refletindo, na esco- A manta do soldado é um romance que se ca-
lha dos objetos, na maneira de os dispor e conservar, racteriza pela evocação das memórias da narrado-
o modo de ser da personagem” (LINS, 1976, p. 98). ra-protagonista. É através da própria lembrança,
Na verdade, o quarto ocupado por ela não era exata- auxiliada pela memória coletiva de seus familiares,
mente de sua escolha, muito menos os móveis e sua que ela constrói e desconstrói a imagem idealizada
disposição. Eles eram velhos, de uma outra época, do pai biológico, o Walter Dias. Ainda que ele viva
mas serviam para a inominada, que só ocupava seu afastado do convívio familiar. A inominada, nesse
tempo lembrando acontecimentos ou imaginando. contexto, busca resquícios do passado de cada um
Foi também nesse local que a imagem ideali- de seus parentes, mediante sua memória, que pode
zada do pai começara a ruir. Na fase adulta de sua ser evocada completamente, ou não, uma vez que
vida, passara a compreender o que realmente havia o tempo tem a capacidade de distorcê-la, compro-
acontecido, quem era seu verdadeiro genitor. Essa metendo as lembranças. Porém, a imaginação tam-
figura, agora, já não era mais idolatrada. Então, co- bém está associada à memória, e a personagem sem 78
meçou a escrever narrativas que desmistificavam a nome utilizou esse recurso em seu próprio benefí-
imagem de Walter, mencionando, inclusive, o meio cio, não só para fantasiar a imagem do pai, como
de transporte de que se utilizava para satisfazer os para superar o abandono sofrido. Na verdade, a
desejos sexuais: “a charrete de diabo”. Dessa forma, imaginação não rondava somente a menina. Ela se
o quarto da inominada não só servia para seus de- fazia presente na vida adulta, porque essa capaci-
vaneios, mas foi o local usado para refletir sobre a dade aumenta progressivamente com a idade, e a
imagem que ela própria construíra sobre o pai. Ain- personagem sem nome demonstrou esse potencial
da assim, os ambientes e os pertences da filha do imaginativo ao redigir seus textos libertários sobre
Walter adquiriam importância, justamente porque o pai. A protagonista apegava-se firmemente nesse
estavam relacionados com a figura dele. poder e, com isso, criava um mundo particular.
Convocava a imaginação e a memória para ter
a sensação de que fazia parte da família Dias, desde
a mais tenra idade. As memórias da primeira infân-
cia podem sofrer uma espécie de “apagão”, porque
não podem ser todas traduzidas em palavras, ine-
Sumário
xiste a socialização completa, a troca de memórias. mória, sendo perfeitamente evocadas a qualquer
Entretanto, elas estão lá, reservadas, mas somente tempo, provando que os sentidos também se aliam
algumas vêm à tona, ainda que fragmentadas. É por às memórias.
isso que a inominada tinha vaga lembrança de pas- O espaço, na narrativa, assume um papel sig-
sagens de sua vida e não podia afirmar, com certe- nificativo, pois ele deixa de ser caracterizado como
za, de que maneira teriam ocorrido. Mesmo assim, mero cenário para reverter-se de simbologias. A
essas bagagens serviam para construir sua história, Casa de Valmares é como se fosse o centro univer-
que estava ligada intimamente com seus parentes sal dos Dias, local do (des)abrigo. A começar pelos
mais próximos: Walter, Francisco Dias, Maria Ema e quartos, o ambiente revela um lugar nada acolhe-
Custódio Dias. Por intermédio dessa memória fami- dor, com móveis pesados, tal qual suas vidas, em-
liar, na qual o pai biológico é o centro das atenções, bora, para a inominada, esse ambiente se revelasse
a inominada pôde escrever a respeito do genitor, com outras características. É claro que compartilha-
mostrando ao próprio Walter como ele era reconhe- va a mesma sensação dos seus, mas o quarto dela
cido negativamente pelo grupo. era utilizado como um meio de recordar. As memó-
O início de vida da inominada, a adolescência rias e o imaginário afloravam, comprazendo-se com 79
e a maturidade são carregados de memórias ligadas a eterna visita imaginária do pai ao quarto do andar
aos sentidos. A percepção está ligada aos momentos de cima. Como se fosse o sótão, um local onde as
mais importantes da vida da protagonista. Tudo é memórias estivessem presentes e aptas a desenvol-
revelado e intensificado pelos cinco sentidos, agu- verem-se, convivendo com a solidão e o silêncio,
çados diante de situações especiais, principalmente, prontas para serem construídas, porque é ali o es-
quando relacionadas ao pai. Quanto maior o estado paço do “sonhador” (BACHELARD, s/d).
de alerta da personagem, mais ficava registrado na Simbolicamente, tanto os espaços internos
memória o acontecido. Isso é importante, também, quanto os externos da casa possuem uma represen-
para edificar essa história de vida, que vai se inter- tação particular, evocam memórias e estão ligados
ligando com a do pai e familiares. Através das sen- entre si, instigando e alimentando a memória fa-
sações, ficaram marcadas passagens significativas, miliar. Por isso, a Casa de Valmares é o espaço de
que não se apagaram, e basta que aqueles sons, o memória comum, pois a memória individual não
cheiro, o gosto, a visão ou o toque se repitam, para age sozinha, ela se une às outras para se perpetu-
que uma torrente de recordações aflore. O armaze- ar, e o ambiente favorece esse compartilhar de sen-
namento dessas percepções fica registrado na me- sações. Nesse conjunto, a memória da personagem
Sumário
inominada sofre interferências, não só do contexto IZQUIERDO, Ivan. Memória. 2. ed., rev. e ampl. Porto Ale-
familiar, que mantém entre si lembranças coletivas gre: Artmed, 2011.
dos fatos da casa, em especial da vida de Walter, JORGE, Lídia. A manta do soldado. Rio de Janeiro: Record,
mas também dos espaços comuns. A propriedade de 2003.
Francisco Dias e, principalmente, o quarto da prota-
gonista, serviram de palco aos acontecimentos me- LINS, Osman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São
moráveis. Mesmo na mais completa solidão do apo- Paulo: Ática, 1976.
sento, a protagonista jamais esteve só. Lá se faziam MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma nova política da espa-
presentes todas as experiências, as ideias coletivas cialidade. Trad. Hilda Pareto Maciel; Rogério Haesbaert. Rio
da família Dias e seus agregados. A fim de fortale- de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
cer esses elementos necessários à memorização, os
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimen-
cinco sentidos também exerceram importante papel
to. 5. reimpr. Tradução: Alain François et al. Campinas, SP:
para a edificação e conservação das lembranças, já Editora Unicamp, 2012.
que têm o poder de solidificar o elo existente entre
a memória e as sensações experimentadas pela per- 80
sonagem inominada.
REFERÊNCIAS
¹ Doutoranda em Memória Social e Bens Culturais e Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Centro Universitário La Salle
– UNILASALLE. Graduada em Biblioteconomia e Documentação na UFRGS e Especialista em Dança pela PUCRS. Bailarina,
coreógrafa e professora de Ballet.
² Doutora em Engenharia de Sistemas e Computação pela COPPE/Sistemas da UFRJ e Graduada e Mestre em Ciência da Com-
putação pela UFRGS. É professora do UNILASALLE/Canoas-RS, em Memória Social e Bens Culturais pertencendo à linha de
Memória e Linguagens Culturais
Sumário
still accompany dancers. The study will have two de- INTRODUÇÃO AO ESTUDO
fined aspects – the dancers’ training and their pro-
fessional performance, about which we will start a Reconhecendo aos poucos os espaços de tensões
discussion of a theoretical nature. The term identity que acompanham ainda hoje o profissional da dan-
can only be understood under an interdisciplinary ça, a pesquisa em andamento do qual emerge este
perspective, which includes the fields of Sociology, trabalho está em busca da compreensão da identida-
Psychology, Anthropology, History, among others. de profissional do bailarino no Estado do Rio Grande
Thus, professional identity can be understood as a do Sul. Um estudo que terá dois aspectos definidos,
continuous process that is linked to personal iden- formação e atuação do profissional bailarino, sobre
tity, also connected to the bonds and feelings of be- os quais visamos neste artigo iniciar uma discus-
longing to a certain category or social group. This são de cunho teórico importante para este projeto e
study inserts “identity” in the area of Social
Memory para demais pesquisadores da temática.
based primarily on authors like Michael Pollak, Zyg- Ao construir uma representação da profissão
munt Bauman, Claude Dubar, Joël Candau, Homi nos resguardamos enquanto grupo profissional.
Bhabha and Stuart Hall. The aim is to reflect on the Criamos uma identidade social para nós mesmos 82
perspectives of dancers’ professional identity pro- e para o coletivo de bailarinos, permitindo, desse
cess in RS, based on some theorists and their theore- modo, nos reconhecer como profissionais e desem-
tical frameworks, concepts and descriptions, and on penhar nossas atividades. Em outras palavras, são
their social constitution and cultural implications. construídas imagens e significados da profissão para
This study aims to provide a research basis to try to lhe dar concretude (LIMA, 2012). Essas imagens e
outline an image and identity considering the pro- significados, enfim, essas representações, são uma
fessional dancers’ training and performance. Due to forma de conhecimento socialmente elaborada e
the transient nature of the identity configurations partilhada, com um objetivo prático, e que contribui
and the dancer’s images, this paper does not have para a construção de uma realidade comum a um
the intention to reach a conclusion. conjunto social (JODELET, 2001 apud LIMA, 2012).
Keywords: Identity. Professional Dancer. Dance. O termo identidade não pode ser compreendi-
do senão por vias interdisciplinares. Assim sendo,
nos vemos envolvidos por áreas como a Sociologia,
a Psicologia, a Antropologia, a História, etc. Desta
forma, se compreende identidade profissional como
Sumário
trói-se em referência aos vínculos que conectam as marcante da contemporaneidade e que o fenômeno
pessoas umas às outras. da globalização contribui para o deslocamento das
Com interesse na identidade cultural, Hall identidades culturais desintegrando-as, homogenei-
(2006) entende que as condições atuais da sociedade zando-as e, consequentemente, enfraquecendo-as.
estão “fragmentando as paisagens culturais de clas- O autor afirma que a globalização inegavelmente
se, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade tem um efeito pluralizante sobre as identidades,
que, no passado, nos tinham fornecido sólidas loca- produzindo uma variedade de possibilidades e no-
lizações como indivíduos sociais” (HALL, 2006 apud vas posições de identificação, tornando as identida-
FARIA; SOUZA, 2011, p. 37). Identidade cultural é o des menos fixas e unificadas.
sentimento de pertencimento a uma cultura nacio- Quanto à relação memória-identidade, Pollak
nal, ou seja, aquela cultura em que nascemos e que (1992, p. 5) afirma:
absorvemos ao longo de nossas vidas. Esta identi-
se podemos dizer que, em todos os níveis, a me-
dade, segundo Hall (2006), não é uma identidade mória é um fenômeno construído social e indi-
natural, geneticamente herdada, ela é construída. vidualmente, quando se trata da memória herda-
Segundo o autor, uma cultura nacional é um discur- da, podemos também dizer que há uma ligação 84
so – um modo de construir sentidos que influencia fenomenológica muito estreita entre a memória
e o sentimento de identidade.
e organiza tanto nossas ações, quanto a concepção
que temos de nós mesmos. A identidade muda de Partindo disso, considerando o sentimento de
acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou identidade sendo tomado no sentido da imagem de
representado, ela não é automática. si, para si e para os outros. Isto é,
A identidade plenamente unificada, completa,
a imagem que uma pessoa adquire ao longo da
segura e coerente é uma fantasia. Ao invés dis-
vida referente a ela própria, a imagem que ela
so, à medida que os sistemas de significação e
constrói e apresenta aos outros e a si própria,
representação cultural se multiplicam, somos
para acreditar na sua própria representação, mas
confrontados por uma multiplicidade descon-
também para ser percebida da maneira como
certante e cambiante de identidades possíveis,
quer ser percebida pelos outros (POLLAK, 1992,
com cada uma das quais poderíamos nos identi-
p. 5).
ficar (HALL, 2006, p. 13).
Hall ainda alerta que o confronto com uma O autor afirma que existem três elementos es-
verdadeira gama de identidades culturais é traço senciais na construção da identidade: a unidade fí-
Sumário
sica individual (sentimento de fronteiras físicas) ou do possível confronto entre memória individual e dos
coletiva (sentimento de fronteiras de pertencimen- outros, portanto a memória e a identidade são valo-
to ao grupo); a continuidade dentro do tempo (no res disputados em conflitos sociais e intergrupais.
sentido físico, moral e psicológico); e o sentimento Identidade coletiva traz em si o sentimento de
de coerência (os diferentes elementos que formam o unidade, continuidade e coerência. Importante en-
indivíduo são efetivamente unificados). fatizar que
Desta forma, o autor considera possível afirmar
(...) quando a memória e a identidade estão
que “a memória é um elemento constituinte do senti- suficientemente constituídas, suficientemen-
mento de identidade, tanto individual como coletiva, te instituídas, suficientemente amarradas, os
na medida em que ela é também um fator extrema- questionamentos vindos de grupos externos à
mente importante do sentimento de continuidade e organização, os problemas colocados pelos ou-
tros, não chegam a provocar a necessidade de
de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua se proceder a rearrumações, nem no nível da
reconstrução de si” (POLLAK, 1992, p. 5). identidade coletiva, nem no nível da identidade
Partindo do que foi exposto e se passarmos a individual (POLLAK, 1992, p. 7).
considerar a relação de identidade social à imagem 85
de si, para si e para os outros, devemos também con- De um modo geral, existe certo consenso, en-
siderar um elemento óbvio que, conforme Pollak, tre os autores citados neste estudo, de que a iden-
escapa ao indivíduo e ao grupo: o Outro. tidade é uma construção social, permanentemente
redefinida em uma relação dialógica com o outro,
Ninguém pode construir uma auto-imagem isen- que também a memória é uma reconstrução conti-
ta de mudança, de negociação, de transformação
em função dos outros. A construção da identida-
nuamente atualizada do passado e que memória e
de é um fenômeno que se produz em referência identidade estão indissoluvelmente ligadas.
aos outros, em referência aos critérios de acei- Assim, a nossa identidade é constantemente co-
tabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, locada à prova por diferentes representações sociais
e que se faz por meio da negociação direta com
outros (POLLAK, 1992, p. 5).
que nos pressionam (HALL, 2006).
A identidade profissional pode ser entendida
O importante do exposto é que “memória e iden- como uma construção social assinalada por diver-
tidade podem perfeitamente ser negociadas, e não sos fatores como a nossa história de vida, as condi-
são fenômenos que devam ser compreendidos como ções objetivas de trabalho e o imaginário que per-
essências de uma pessoa ou de um grupo” (p. 5). Sen- meia a profissão que, ao interagirem entre si, tem
Sumário
como resultado uma série de representações que (...) o profissional que cria, interpreta ou execu-
fazemos de nós mesmos e das funções que exerce- ta obra de caráter cultural de qualquer natureza,
para efeito de exibição ou divulgação pública,
mos (LIMA, 2012). através de meios de comunicação de massa ou
Consideramos, portanto, a pressuposição (FA- em locais onde se realizam espetáculos de diver-
RIA; SOUZA, 2011) de que a identidade se constrói são pública (BRASIL, 1978).
no processo de formação continuada a ser desen
volvido pelo profissional, indicando que a constitui- Conforme o Ministério do Trabalho e Empre-
ção da identidade pessoal e profissional são proces- go (MTE) do Brasil, em uma classificação brasilei-
sos concomitantes que deveriam ser preocupação ra de ocupações (CBO), os “artistas da dança” estão
da formação em exercício. classificados sob o código 2628 e, resumidamente,
“concebem e concretizam projeto cênico em dan-
O PROFISSIONAL DA DANÇA ça, realizando montagens de obras coreográficas;
executam apresentações públicas de dança e, para
A dança como profissão abrange uma extensa tanto, preparam o corpo, pesquisam movimentos,
variedade de funções e, conforme Corrêa e Nasci- gestos, danças, e ensaiam coreografias, podendo en-
sinar dança” (BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABA- 86
mento (2013, p. 55):
LHO E EMPREGO, 2016).
(...) por sua característica prática, não se res- Além das atividades resumidas o MTE apresenta
tringe ao espaço da Licenciatura ou Bacharelado condições gerais de exercício, com o seguinte texto:
como opção formativa. A maioria dos profissio-
nais da dança tem a sua formação realizada atra- Trabalham nas áreas de criação, pesquisa e en-
vés do ensino não formal, em cursos livres, aca- sino. Suas atividades são sempre realizadas em
demias e grupos de dança, que fazem surgir no equipe e podem se desenvolver tanto em compa-
cenário artístico novos bailarinos, coreógrafos, nhias estáveis de bailado, em que predominam
ensaiadores, iluminadores, etc., todos os anos. os vínculos formais de trabalho, estabilidade no
emprego e possibilidade de construir uma car-
Segundo as autoras a regulamentação da pro- reira, como em cooperativas ou como autôno-
fissão de artista ocorre em maio de 1978, quando mos, realizando produções independentes. Esta
promulgada a Lei 6533/78, que disciplina o exercício última é a situação da grande maioria dos pro-
fissionais, os quais, em geral, se auto-financiam,
das profissões de Artistas e de Técnico em Espetá- costumeiramente, exercendo atividades como
culos de Diversões. Conforme a lei, o artista é... professores, terapeutas etc. concomitantemente
à dança (BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO
E EMPREGO, 2016).
Sumário
Também é apresentada a formação e experiên- ço cênico, luzes), trabalhar em equipe, Liderar equi-
cia exigidas: pes, desenvolver sensibilidade artística, desenvolver
habilidades para maquiagem, caracterização e uso
O exercício das ocupações da família não exige
escolaridade formal determinada, embora siga-
de adereços, manter corpo preparado e desenvolver
-se a tendência que vem ocorrendo no mundo capacidade de observação e percepção.
das artes em geral, rumo à profissionalização. Após a promulgação da Lei 6533/78, criou-se no
Nesse sentido, torna-se-á cada vez mais desejável Rio Grande do Sul, o Sindicato dos Artistas e Técni-
que o profissional tenha curso superior na área.
Para o exercício pleno das atividades, requer-se
cos em Espetáculos de Diversões (SATED)3, que teve
mais de cinco anos de experiência (BRASIL. MI- como origem a Associação Profissional dos Artistas
NISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2016). e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado
do Rio Grande do Sul (APATEDERGS), com objetivo
As atividades estão bem especificadas em “áre- de luta por melhores condições de trabalho para a
as de atividades” que estão divididas em categorias classe artística e oferecendo alguns serviços especí-
de A a G, sendo: (a) realizar apresentação pública ficos, como o registro profissional4 regulamentado
de dança, (b) conceber projeto cênico em dança, (c) pela Lei 6533/78. 87
concretizar projeto cênico realizando montagem da O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetá-
obra coreográfica, (d) ensaiar coreografia, (e) prepa- culos de Diversões do Estado do Rio Grande do Sul
rar o corpo para dança, (f) pesquisar movimentos, (SATED-RS) apresenta em seu site na Internet uma
gestos e dança e (g) ensinar dança. curta definição de alguns profissionais de dança
O MTE ainda aponta as competências pesso- com base no quadro anexado ao Decreto nº 82.385,
ais para a profissão, como desenvolver consciência de 05 de outubro de 1978, de títulos e descrições das
cinesiológica, conhecer seus limites psico-físicos, funções em que se desdobram as atividades de artis-
adaptar-se a situações imprevistas, demonstrar co- tas e técnicos em espetáculos de diversões. Dentre
nhecimento dos componentes do espetáculo (espa- todos os profissionais considerados artistas de tea-
³ Os SATEDs, Sindicatos dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões são constituídos para fins de estudo, coordenação,
proteção e representação legal da categoria dos Artistas e Técnicos, conforme estabelece a legislação em vigor sobre a matéria
e com intuito de colaboração com os poderes públicos e as demais associações no sentido da solidariedade social e da sua sub-
ordinação aos interesses nacionais (SATED-RS, 2016).
⁴ Para solicitar o registro profissional no Ministério do Trabalho (DRT), o artista deve cumprir alguns critérios estabelecidos
pelo Sindicato, apresentando currículo com comprovação para a área de registro pretendida.
Sumário
Entretanto, antes do reconhecimento do MEC, Contudo, concordando com Aquino (2001), po-
o primeiro curso Superior de Dança surgiu em 1956 demos considerar que o ensino da dança na história
na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, confor- da universidade brasileira ainda hoje (2016) é re-
me Aquino (2001), permaneceu quase três décadas cente, principalmente no Rio Grande do Sul, onde o
como único no País. Após sua abertura, somente a primeiro Curso Superior de Dança surgiu em 1998
partir da segunda metade da década de 1990, o en- em Cruz Alta, e teve suas atividades encerradas em
sino da dança começa a se consolidar nas universi- 2010. Conforme a autora a formação do profissional
dades brasileiras. de dança no Brasil ocorreu, anteriormente à criação
No ano de 2016, conforme o Ministério de Edu- de cursos superiores, quase que exclusivamente, nos
cação e Cultura, existem 29 Instituições Superiores teatros das grandes cidades, como exemplo Rio de Ja-
com Curso de Graduação em Dança oferecendo o neiro e São Paulo (CORRÊA; NASCIMENTO, 2013),
montante de 39 (trinta e nove) graduações em dan- desde a década de 1927, segundo Portinari (1989).
ça, nas habilitações de bacharelado e de licenciatu- Entretanto, mesmo que esta formação universi-
ra. No Rio Grande do Sul são cinco (oferecendo seis tária seja recente, com o crescimento no número de
cursos), sendo elas: Universidade Estadual do Rio universidades oferecendo Curso de Graduação em 89
Grande do Sul - UERGS (licenciatura); Universidade Dança, mais e mais profissionais formam-se todos
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (licenciatu- os anos, configurando um momento de “expansão,
ra); Universidade Federal de Pelotas - UFPel (licen- avaliação e criação de metodologias e pesquisa de
ciatura); Universidade Luterana do Brasil – ULBRA produção própria na área e, em especial, de preocu-
(licenciatura); e, Universidade Federal de Santa Ma- pação com a inserção desses novos profissionais no
ria – UFSM (licenciatura e bacharelado). mercado de trabalho” (CORRÊA; NASCIMENTO,
Além dos cursos livres, o artista da dança pode 2013, p. 57). Como consequência deste crescimento
se tornar um profissional através de um Curso Téc- de Cursos Superiores em Dança no Rio Grande do
nico (ensino médio, profissionalizante) ou em Curso Sul se constata uma maior preocupação com a for-
de Bacharelado e/ou Licenciatura em Dança (ensino mação destes profissionais (CORRÊA; NASCIMEN-
superior). O ensino técnico e universitário é con- TO, 2013).
siderado ensino formal, totalmente fiscalizado pelo Geralmente, nos cursos de graduação, o perfil
MEC. Após conclusão do ensino formal de nível su- do profissional formado bacharel em dança é for-
perior, o profissional obtém seu DRT. temente marcado pelo traço do intérprete de dança
(seja ele intérprete-criador ou apenas intérprete);
Sumário
nhecimentos de que se compõem estes locus, ali ensaiadores, fisioterapeutas e diversos outros
encontram oportunidade para a sua formação, profissionais muitas vezes à margem em termos
na prática da dança de todo o dia. A segunda: de oportunidades dignas de trabalho. No Rio
a formação que se dá em permanência nos cir- Grande do Sul, por exemplo, o reconhecimen-
cuitos da dança popular, onde os jovens e crian- to das pessoas que trabalham com dança como
ças “aprendem a dançar dançando”, em meio sendo profissionais é quase totalmente restrito
a extensas famílias de “brincantes”, o mesmo àqueles que atuam no ensino e, ainda, muitas ve-
ocorrendo nos locais da dança de devoção (por zes lecionar torna-se necessário para completar
exemplo, terreiros de candomblé) ou em danças um orçamento que permita autonomia (MENE-
cerimoniais de tribos indo-brasileiras (NAVAS, ZES, 2002, p. 78).
2010, p. 59-60).
Entretanto, levando em consideração a forma-
Navas (2010) afirma que apesar de, com a in- ção de profissionais dentro do meio acadêmico, em
trodução das artes, entre elas a dança, na academia/ cursos de licenciatura, conforme Corrêa e Nasci-
universidade, os artistas e professores estarem se mento (2013) o avanço em termos de mercado de
formando dentro desta “academia”, continuam a se trabalho pode ser comemorado. Segundo as autoras
formar para além dela, em grupos/companhias de vários editais de concursos públicos foram abertos
dança, nas escolas livres e em núcleos enraizados na 91
no Rio Grande do Sul requisitando professores de
cultura popular. dança para o ensino formal, nas cidades de São Leo-
Strazzacapa (2006, p. 13) destaca que a simbio- poldo (Edital 01/2005, Edital 01/2007, Edital 01/2008),
se entre academias/escolas e universidades “é mais Porto Alegre (Edital 159/2008), Horizontina (Edital
que salutar, é necessária, é fundamental”. 023/2008) e Esteio (Edital 01/2009). Ocorreram ain-
da dois concursos para o Magistério Estadual do Rio
Atuação profissional Grande do Sul, nos anos de 2012 e 2013. Foram edi-
tais que exigiram formação específica de Graduação
Conforme Menezes (2002, p. 79) “(...) a dança é em Dança, confirmando, desta forma, a crescente
uma atividade que ainda está em processo de reco- demanda de profissionais formados em Dança.
nhecimento enquanto campo de atuação profissio- Na atuação como bailarino, no Rio Grande do
nal”. Isso deve-se ao fato de que: Sul, começa a aparecer timidamente oportunidades
Exercer profissionalmente uma atividade que é
de editais para seleção de corpo de baile em Com-
entendida, na maior parte das situações, como panhias Municipais de Dança como as de Caxias do
recreativa ou apenas ilustrativa ao longo da vida Sul (1998) e Porto Alegre (2014).
dos indivíduos, deixa bailarinos, coreógrafos,
Sumário
Existe ainda toda uma possibilidade que se reve- contemporâneas. Homens modernos empregam
la aos poucos aos profissionais da dança: a carreira sua criatividade na configuração de ações que se
darão em um espaço já determinado de antemão;
acadêmica. Uma profissão que sempre se apresen- procuram portanto uma vaga. São estes homens
tou como fundamentalmente prática, atualmente que hoje não têm função. Por outro lado, aqueles
pode ser concebida no âmbito teórico. que aprenderem rapidamente a habitar o tem-
Segundo Terra (2010, p. 75) a... po, ou seja, a constituírem suas ações em uma
temporalidade contínua e semovente, saberão
(...) condição de artista da dança não se esgota inventar um seu lugar: estes são homens con-
no ser dançarino, coreógrafo ou professor. No- temporâneos de sua própria contemporaneida-
vos campos de atuação passam a significar uma de. A crise do lugar é contemporânea do tempo
continuidade de atuação na área: curadoria, pro- que surge como entidade definidora da função
dução, pesquisa, gestão, ação sócio-cultural. No (ROCHA, 2010, p. 101).
caso daqueles que detém uma formação univer-
sitária, existe a perspectiva de uma carreira aca- A profissão de bailarino(a), em um estudo re-
dêmica, devotada ao ensino e à pesquisa. alizado em uma companhia de dança de São Paulo,
foi considerado um ofício pouco reconhecido como
Para Terra (2010) os Programas de Graduação, profissão e que implica muitos sacrifícios. Sendo 92
os Cursos Técnicos, os Centros e demais espaços de uma carreira bastante concorrida e curta, por con-
formação devem considerar questões dessa magni- ta das restrições impostas pelo envelhecimento do
tude que redesenham a dança, como linguagem ar- corpo, e cujas recompensas materiais não são ex-
tística, como área de conhecimento, como profissão pressivas e sendo limitados os espaços que garan-
e, consequentemente, redesenham novos perfis para tem estabilidade de emprego (NEVES, 2013).
o artista-professor da dança, exigindo a revisão de
projetos artístico-pedagógicos, dos currículos, dos COMENTÁRIOS ESPECULATIVOS
métodos e das diferentes atividades previstas nos
processos de formação profissional. As considerações levantadas acerca de identida-
Rocha (2010, p. 101) problematiza a empregabi- de têm a finalidade de contextualização para estudo
lidade do graduado em dança. Porém a autora tam- que, se presume, deverá apontar para configuração
bém discorre que: de alguns perfis identitários que estão se formando,
Ao nos questionarmos acerca do depois da uni- sobretudo, com a diversificação que se apresenta na
versidade, é necessário cautela para que não formação e atuação do bailarino nesta primeira dé-
formulemos perguntas modernas para respostas cada do século XXI. Partindo do levantamento teó-
Sumário
FARIA, Ederson de; SOUZA, Vera Lúcia Trevisan de. Sobre PEREIRA, Marcelo de Andrade; SOUZA, João Batista Lima
o conceito de identidade: apropriações em estudos sobre de. Formação superior em dança no Brasil: panorama histó-
formação de professores. Revista Semestral da Associa- rico-crítico da constituição de um campo de saber. Inter-A-
ção Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, São ção, Goiânia, v. 39, n. 1, p. 19-38, jan./abr. 2014.
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das academias? In: TOMAZZONI, Airton; WOSNIAK, Cris- ZZONI, Airton; WOSNIAK, Cristiane; MARINHO, Nirvana
tiane; MARINHO, Nirvana (orgs.). Algumas perguntas so- (orgs.). Algumas perguntas sobre dança e educação.
bre dança e educação. Joinville: Nova Letra, 2010. p. 57-66. Joinville: Nova Letra, 2010. p. 67-76.
¹ Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS (2006). Atualmente, é Professora Adjunta IV da UFPel, ministrando disciplinas
de literatura nos cursos de Letras (licenciaturas e bacharelados).
Sumário
dente de cada uma delas e, além disso, a conhecer versas, fazendo da ficção terreno profícuo para suas
mais profundamente a si mesma. Nessa jornada, representações. Para Michel Maffesoli, o imaginário
são apresentadas ao leitor as tradições de Moçam- é algo que ultrapassa o indivíduo, que impregna o
bique do Norte e de Moçambique do Sul referen- coletivo, daí sua presença inequívoca na literatura.
tes ao amor, ao sexo e ao papel desempenhado pela Em entrevista à Revista FAMECOS número 15,
mulher na sociedade, diferentes principalmente em de agosto de 2001, Michel Maffesoli afirma, em res-
relação à conduta das mulheres e à poligamia. posta à questão “O que é o imaginário?”:
Este trabalho investigará a formação do ima-
Em geral, opõe-se o imaginário ao real, ao ver-
ginário feminino nesta narrativa, composto pelas dadeiro. O imaginário seria uma ficção, algo
‘regras’ do Sul e do Norte, relativas ao comporta- sem consistência ou realidade, algo diferente da
mento das mulheres na vida social e doméstica, ao realidade econômica, política ou social, que se-
que é esperado das mulheres e às mudanças que as ria, digamos, palpável, tangível. [...] demonstrar
como as construções dos espíritos podiam ter
mulheres de Tony resolvem colocar em prática. In- um tipo de realidade na construção da realidade
vestigará principalmente a mudança que a presença individual.
de Rami opera na ação dessas outras mulheres, que 96
se rebelarão e apresentarão condutas contrárias ao A noção primeira de imaginário seria, então,
que é pregado pela sociedade moçambicana. algo descolado da realidade, mas que exerce influ-
ência na construção da mesma. Encarado como fic-
DO IMAGINÁRIO E DA LITERATURA: ção, o imaginário se manifesta genuinamente na li-
BREVES CONSIDERAÇÕES teratura, forjando os liames entre realidade e ficção.
Quando tratamos de imaginário feminino pre-
A literatura reflete em suas produções o contex- sente e retratado em Niketche – uma história de
to histórico, social e cultural no qual foi produzida, poligamia, estamos nos referindo a um conjunto
fazendo assim uma releitura da realidade através da de ideias, conceitos e valores que perpassam a obra
ficção. Para tanto, ela usa, molda e estimula no mais literária e que instauram, no texto artístico, uma
alto grau a dimensão do imaginário. Wolfgang Iser espécie de pensamento coletivo sobre o papel da
refere-se ao imaginário como a dimensão última do mulher na sociedade moçambicana, sobre o peso
texto, assim como a origem do discurso ficcional, ou que a tradição exerce na formação desse pensamen-
seja, ele perpassa o todo da criação artística literária. to coletivo e sobre as transgressões operadas pelas
O autor ainda ressalta o caráter impreciso do imagi- mulheres em foco no romance – principalmente a
nário, que o torna capaz de assumir configurações di- protagonista, Rami.
Sumário
tionar sobre os ensinamentos que passa aos filhos, ção sobre seu papel, de acordo com as impressões
entre outras, não fazem parte da lista de ações que que tem das imagens que lhe são atribuídas em um
os mais velhos, por exemplo, esperam de uma espo- determinado momento histórico, mas também de
sa, seja o marido polígamo ou não. Rami correspon- como o outro a vê, de quais papeis o outro lhe im-
dia a uma imagem de mulher submissa e obediente puta. Cabe a ela rejeitar, modificar ou apropriar-se
que lhe foi conferida socialmente de acordo com as desses papeis, novos ou antigos.
tradições do sul de Moçambique. No entanto, após o Na primeira parte do romance, Rami se depara
choque da descoberta da poligamia de Tony, ela não com as angústias e as incertezas de sua vida, che-
a assume efetivamente, construindo-se a si mesma gando à conclusão de que sempre desempenhou um
por meio das brechas encontradas. papel neutro em relação às lutas diárias que preci-
Ao descobrir, uma a uma, as outras quatro mu- sou travar dentro da sociedade patriarcal em que
lheres de Tony, Rami decide unir-se a elas, na busca está inserida:
por direitos e deveres do marido polígamo, porém
Sou uma mulher derrotada, tenho as asas que-
seguindo as regras da poligamia tradicional, ou seja, bradas. Derrotada? Não. Nunca combati. Depus
ela subverte a tradição utilizando-se dela. Por exem- as armas antes mesmo de as empunhar. Sem- 99
plo, Rami manipula a tradição quando as mulheres, pre me entreguei nas mãos da vida. Do destino.
sob sua orientação, aceitam a poligamia de Tony e Nunca mexi nenhum dedo para que as coisas
corressem de acordo com os meus desejos. Mas
estabelecem regras para que a prática seja realiza- será que algum dia tive desejos? (CHIZIANE,
da de modo correto e tradicional e seja igual para 2004, p. 18).
todas: nos dias relativos a cada uma, ele terá à sua
disposição os melhores pratos e os melhores cuida- Mas diante de tais reflexões, uma nova Rami
dos. No entanto, também em comum acordo, elas começa a surgir, porque coloca em questão a sua
cobram de Tony seus deveres sexuais e econômicos. própria neutralidade:
Elas sabem que não há como legalizar a poligamia
A minha vida é um rio morto. No meu rio as
perante as leis oficiais, mas exigem que Tony aja de águas pararam no tempo e aguardam que o des-
acordo com as tradições. tino traga a força do vento. No meu rio, os an-
No caso de Rami, a subjetividade feminina tepassados não dançam batuques nas noites de
forma-se a partir do meio do qual faz parte. Esta lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e
nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser per-
é construída ao mesmo tempo de forma individual dido, encerrado na solidão mortal. (CHIZIANE,
e coletiva, pois depende não só de sua interpreta- 2004, p. 18).
Sumário
Ao questionar-se sobre os desejos que nunca ridas e vistosas, fazem-se esteticamente belas e atra-
teve (“Mas será que algum dia tive desejos?”), Rami entes. As mulheres do Norte exercem certo domínio
nos indica o seguinte caminho: algumas práticas sobre os homens, se colocam no centro da relação,
tradicionais da cultura moçambicana já não consti- possuem direitos e possibilidades de ação que lhes
tuem mais o seu imaginário (“No meu rio, os ante- confere um papel além do meramente acessório, ao
passados não dançam batuques nas noites de lua”). redor do homem, tanto na vida doméstica quanto
Nas citações acima, encontramos um desabafo de na vida social. Através das escolas de a aprendem a
Rami, em relação ao papel que as tradições desem- utilizar seus encantos físicos/sexuais para tomarem
penham em sua vida, para chegar à seguinte conclu- uma posição central diante do homem para, de al-
são: “Sou um ser perdido, encerrado na solidão mor- guma maneira, dominá-lo:
tal”. Pode-se apontar, então, certa ambiguidade em
- Refiro-me às escolas de amor e vida.
seu discurso: ao mesmo tempo em que diagnostica - Nunca frequentei nenhuma.
um desprendimento de suas raízes culturais, Rami - És mesmo criança, ainda não és mulher.
reivindica também um pertencimento a tais raízes. - O que aprendem então nesses ritos, que vos faz
Na sociedade moçambicana do sul, onde Rami sentir mais mulheres do que nós?
- Muitas coisas: de amor, de sedução, de mater- 100
leva sua vida, a existência das mulheres, enquanto nidade, de sociedade. (...) Na iniciação aprendes
seres sociais, só é possível através da ligação a uma a conhecer o tesouro que tens dentro de ti. A flor
figura masculina. O homem, em algumas regiões púrpura que se multiplica em pétalas interminá-
de Moçambique, é uma entidade centralizadora, ca- veis, produzindo todas as correntes benéficas do
universo. Nos ritos de iniciação habilitam-te a
bendo às mulheres o papel acessório de circundá- viver e a sorrir. Aprendes a conhecer a anatomia
-lo. Existe um grau de dependência da mulher em e todos os astros que gravitam dentro de ti (CHI-
relação ao homem que aniquila a liberdade de ação ZIANE, 2004, p. 37-38).
da mulher. Em uma sociedade patriarcal, o sujeito
feminino vive à mercê do homem, sua existência É em busca dessa nova concepção de si e do
é voltada para servir, sua razão de ser e existir no mundo que Rami parte em sua jornada de procura
mundo é em torno do “macho”. das outras mulheres de Tony. Ela quer saber por que
Mas em Moçambique do Norte a situação é ou- Tony precisou de mais mulheres além dela, precisa
tra. As mulheres são altivas, dominam o homem descobrir o que as outras oferecem ao seu macho
através de jogos sensuais, extravasam suas emoções para levá-lo de sua casa. É nas escolas de amor que
e estados de espírito por meio do uso de roupas colo- ela percebe o quão principiante é na arte de amar. A
Sumário
partir dessa experiência, Rami passa a compreender Fico desesperada com este sonho que se repete.
as outras esposas e a vê-las com outros olhos, não Consultei adivinhos que me contaram histórias
extraordinárias de feitiços de amor feitos por
mais de raiva, mas de irmandade. outras mulheres. Não acreditei em nenhuma. As
Rami quer descobrir onde está seu marido e minhas vizinhas falam-me de mudjiwas, esposas
onde estão sus amantes/esposas. A primeira mulher e esposos de outro mundo, que, nas vidas an-
de Tony que Rami procura é Julieta (a mais antiga teriores ou na outra encarnação, foram nossos
cônjuges e reclamam os seus direitos nesta vida
das quatro). A história de Julieta desperta em Rami (CHIZIANE, 2004, p. 30).
um sentimento de solidariedade, levando as duas
mulheres a se sentirem irmanadas no descaso que Apesar de os colonizadores terem tentado su-
Tony lhes dedica. O afeto que as une está expresso primir as religiões tradicionais africanas, substi-
no seguinte diálogo: tuindo divindades por um único Deus vingativo e
perseguidor dos infiéis, eles não obtiveram êxito
- Lutamos porque temos coisas em comum, sa-
bes? – diz ela. total. A sobrevivência dos elementos culturais reli-
- Não, não temos – digo eu -, tenho que reconhe- giosos das tribos autóctones foi garantida. As cren-
cer que és mais nova e mais bonita. Mais sofrida. ças em fantasmas e em espíritos revelam que as tra- 101
Para o Tony deixar-me a mim e amar-te a ti, de- dições populares continuam a orientar as práticas
ves ser mesmo melhor do que eu.
Fico emocionada. Esta mulher tem uma angústia cotidianas e a vida das pessoas, principalmente as
bem pior que a minha. Eu, pelo menos, conhe- mais velhas, representantes de um mundo menos
ci o sonho e o altar. Tive um marido sempre ao ‘civilizado’, cujo orgulho de suas práticas se mostra
lado em cada um dos cinco filhos que pari. Ain- na manutenção de suas raízes culturais. Nesse sen-
da tive o prazer de insultá-lo culpa-lo de todas
as minhas dores na hora do parto. A Julieta foi tido, o romance utiliza vocabulário proveniente das
enganada desde a primeira hora. Nada pior que várias línguas faladas em Moçambique, oferecendo,
uma eterna frustração. (CHIZIANE, 2004, p. 26). inclusive, para o leitor não familiarizado com tal lé-
xico, um glossário ao final do livro.
O romance traz também a questão da ociden- Através da focalização em Rami, Chiziane pin-
talização de Moçambique, encarnada num embate ta o quadro geral de uma situação opressora para
entre a visão de mundo advinda da modernidade as mulheres de Moçambique: a dicotomia tradição
ocidental e a tradição ligada às raízes culturais afri- versus modernidade. O imaginário feminino orbita
canas. Rami é cristã, frequenta a igreja de forma essas duas chaves interpretativas da cultura pratica-
eventual e acredita no Deus que lhe foi apresentado da e vivenciada por uma sociedade patriarcal onde
pelos missionários da época colonial, mas
Sumário
a maioria das mulheres vive e existe meramente em Tony é um polígamo que “ama mulheres de
função do homem. As mulheres de norte a sul pre- todo o país como se pudesse ser um marido nacio-
sentes no romance são, na verdade, representações nal”. Não há critérios excludentes “nem de raça,
diversas do mesmo feminino, trazendo aspectos his- nem grupo étnico, nem região, muito menos reli-
tóricos, memorialísticos e culturais de Moçambique. gião”, ele se desloca tranquilamente entre o norte
As mulheres de Tony acabam por revelar uma “va- e o sul, apesar de suas especificidades culturais, já
riedade em línguas, em hábitos, em cultura, pois, na que seus outros lares desconhecem limites territo-
verdade, elas formam uma amostra de norte a sul, o riais (CHIZIANE, 2004, p. 209). No entanto, há uma
país inteiro nas mãos de um só homem. Em matéria demarcação bem explícita:
de amor, o Tony simboliza a unidade nacional” (CHI-
No sul as mulheres são exiladas no seu próprio
ZIANE, 2004, p. 161). Nas palavras do próprio Tony, mundo (...) são tristes No sul a sociedade é habi-
tada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fan-
- A Mauá é o meu franguinho – diz -, passou
tasmas (...). O mesmo não se pode dizer do norte
por uma escola de amor, ela é uma doçura. A
onde as mulheres são mais belas e mais alegres.
Saly é boa de cozinha. Por vezes acordo de ma-
No norte, ninguém escraviza ninguém, porque
drugada com saudades dos petiscos dela. Mas 102
tanto homens como mulheres são filhos do mes-
também é boa de briga, o que é bom para rela-
mo Deus. Mas cuidado, no norte, o homem é
xar os meus nervos. Nos dias em que o trabalho
Deus também. Não um deus opressor, mas um
corre mal e tenho vontade de gritar, procuro-a
deus amigo, um deus confidente, um deus com-
só para discutir. Discutimos. E dou gritos bons
panheiro. (CHIZIANE, 2004, p. 175-176).
para oxigenar os pulmões e libertar a tensão. A
Lu é boa de corpo e enfeita-se com arte. Irradia
um magnetismo tal que dá gosto andar com ela Em relação ao papel desempenhado por Rami
pela estrada fora. Faz-me bem a sua companhia. frente às outras esposas de Tony, MENDES (2009)
A Ju é o meu monumento de erro e perdão. É assim coloca:
a mulher a quem mais enganei. Prometi casa-
mento, desviei-lhe o curso da sua vida, enchi-a Rami parece incorporar a representação alegóri-
de filhos. Era boa estudante e tinha grandes ho- ca de Mãe e de Território que aprende a conviver
rizontes. É a mais bonita de todas vocês, podia com as múltiplas paisagens culturais modernas
ter feito um grande casamento. Da Rami? Nem sem submetê-las a um absolutismo nacionalista
vou comentar. É a minha primeira dama. Nela ou preconceituoso. Acolhe, protege e cuida amo-
me afirmei como homem perante o mundo. Ela rosamente da diferença que constitui o outro não
é minha mãe, minha rainha, meu âmago, meu mais como ameaça para o eu, mas como espelho
alicerce. (CHIZIANE, 2004, p. 139). do eu que se (re)constitui agora como comunida-
de agregadora da alteridade. É capaz, portanto,
Sumário
de resguardar suas marcas originais sustentadas tural para se afirmarem numa sociedade patriarcal
não pelo fundamentalismo étnico, mas pelo di- e de costumes ainda arcaicos em relação à presença
álogo dinâmico e dialético com a história. (...)
Tendo como base esse papel de “coletora de al- ativa da mulher em sociedade.
mas amarguradas”, é a própria Rami quem pro-
tagonizará as veias abertas do preconceito, além FINALIZANDO...
de evidenciar as cicatrizes sociais, históricas e
culturais impressas no corpo feminino (das mu-
lheres e da África considerada mãe), degradado Como resultado de todas essas vivências le-
pela própria história e pelas suas tradições que vadas a cabo por Rami, cada uma das mulheres de
universalizaram-se e contaminaram, de forma Tony vai operando grandes transformações em suas
fragmentada e dualista, o cosmo feminino e afri- vidas: elas ingressam no mercado de trabalho e vão,
cano. (MENDES, 2009, p. 69-70).
aos poucos, construindo uma nova identidade, au-
Rami vive numa espécie de entre-lugar, visto tônoma e financeiramente independente.
que, se por um lado é a única mulher legítima de Há um episódio em que todas elas ‘cercam’
Tony, por outro é apenas mais uma a constituir o Tony e a ele se oferecem, ao mesmo tempo, numa
hexágono amoroso que é o coração do marido. Essa espécie de ritual-celebração de suas conquistas: 103
consciência a faz perceber que é preciso lutar para Observo o quarto. As paredes pintadas de azul.
que suas vidas (a dela e as das outras mulheres) não A luz acesa brilhando no teto é um sol afastando
tenham significado e sentido somente no momento a noite. O chão, sem colchão, tem a dureza das
em que giram em torno de um homem (no caso de- pedras. Saias, blusas, calcinhas formando montí-
culos espalhados ao acaso. À volta do Tony, cin-
las, do mesmo homem). co corpos cobertos com lençóis brancos, como
Em sua jornada, Rami conhece o lado fraco de cadáveres na morgue. Move o braço para virar
Tony (ele não consegue se movimentar em situa- à esquerda. Esbarra com uma muralha humana,
ções em que a mulher não cumpre o papel tradi- não há espaço para movimentar o corpo. Pede
licença respeitosamente, levanta-se de rosto co-
cionalmente destinado a ela, de submissão e depen- berto de lágrimas. A valentia foi quebrada. (...)
dência masculina), e faz uso dessa descoberta para Ele olha-me intensamente. Naquele olhar assus-
declarar a liberdade como valor a ser buscado por tado ele pede socorro. Treme num violento es-
ela e por todas as mulheres, irmanadas pela pressão pasmo e deixa a descoberto o terror estampado
na alma. (CHIZIANE, 2004, p. 144-145).
e submissão às regras culturais tradicionais de Mo-
çambique. Mesmo sendo vitimadas pela tradição, as
mulheres devem fazer bom uso desse elemento cul-
Sumário
Ninguém mais o quer, elas estão livres, afinal, PADILHA, Laura Cavalcante; MATA, Inocência (Org.). A
mulher em África: vozes de uma margem sempre presen-
de quem as subjugou ao seu poder falocêntrico. Sur- te. Lisboa: Colibri : Centro de Estudos Africanos – FLUL,
ge a consciência de uma nova mulher moçambicana. 2006.
Redefine-se o imaginário feminino em África, rede-
finem-se os papeis exercidos por homem e mulher
na sociedade de Moçambique, de norte a sul do pais
Sumário
A EDUCAÇÃO ESTÉTICA A SERVIÇO criança muito mais do que o desejo pelo prazer, pelo
DO ENSINO DE LEITURA DE TEXTOS belo ou pelo falso entendimento de que a literatura
precisa ter sua finalidade em ensinar ou moralizar.
LITERÁRIOS NA ESCOLA: DESAFIOS
Nesse contexto, este artigo propõe uma discussão
PEDAGÓGICOS sobre a função da escolarização da literatura, consi-
derando a estética a serviço do ensino.
THE AESTHETIC EDUCATION IN THE SERVICE OF Palavras-chave: Literatura. Educação Estética.
TEXTS READING LITERARY EDUCATION IN SCHOOL:
PEDAGOGICAL CHALLENGES Ensino.
Andrea Denise de Camargo (UNIRITTER)1 Abstract: This article proposes a reflection on the
literature teaching challenge, based on studies of
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão acerca do aesthetic education from Vygotsky, which point to
desafio do ensino da literatura, tomando por base the importance of involving emotions to learning
os estudos sobre educação estética, de Vygotsky, os resources, and on the teaching of reading literary
quais apontam para a importância de envolver as texts in school. The present of the present scenario 105
emoções aos recursos pedagógicos, e sobre o ensino has presented certain discomfort with regard to the
de leitura de textos literários na escola. O cenário formation of readers, which reinforces the need for
atual de ensino tem apresentado certo desconforto different pedagogical practices related to the litera-
no que diz respeito à formação de leitores, o que cy world, which are discussed in this article from
reforça a necessidade de diferentes práticas pedagó- Dalvi, Rezende and Faleiros. Literary reading is a
gicas relacionadas ao universo literário, as quais são living phenomenon but the paths that must be tra-
discutidas neste artigo a partir de Dalvi, Rezende versed to reach the reader are not simple. For this
e Faleiros. A leitura literária é um fenômeno vivo, reason the aesthetic education must be linked to the
mas os caminhos que devem ser percorridos para teaching of literature in order to develop the child
que ela alcance o leitor não são simples. Por essa much more them the desire for pleasure, the beau-
razão, a educação estética precisa estar associada tiful or the false understanding that literature must
ao ensino de literatura com vistas a desenvolver na have its purpose in teaching and moralizing. In this
¹ Mestranda em Letras - Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem, UNIRITTER-RS. -Graduada em Letras Português/
Inglês pela Universidade UNISINOS. Professora de Língua Portuguesa e Inglesa. E-mail: andrea.d.camargo@gmail.com
Sumário
context this article proposes a discussion of the lite- tem sido encontrar alternativas pedagógicas, pen-
rature school function, considering the aesthetic in sando nas relações entre literatura e escola em tem-
the education service. pos atuais. Diante dessas questões, Dalvi, Rezende
Keywords: Literature. Aesthetic Education. Teaching. e Faleiros (2013) propõem-se a pensar a respeito do
papel da literatura na educação, por meio de ques-
tões passíveis de diálogo com as relações entre arte
INTRODUÇÃO e imaginação no período da infância.
Vygotsky (2010) reflete acerca dos desafios da
Quando se adentra nas questões que envolvem educação estética como ferramenta de ensino nas
o ensino de literatura, percebe-se o grande esforço escolas, como um meio para atingir os objetivos de
que as instituições de ensino, pesquisadores e pro- ensino. Diversas são as discussões que já foram fei-
fessores têm destinado à legitimação da importância tas sobre a importância da educação estética e sobre
da formação de alunos leitores de literatura. Logo, a presença da arte nas escolas como forma de in-
põe-se em evidência o papel da escolarização da li- teração dos sujeitos com o mundo de forma críti-
teratura, tendo em vista que ela tem ocupado um ca e criativa. Refletir sobre a presença da literatura 106
lugar secundário na formação dos alunos, realçando como arte na escola sugere uma formação estética
a necessidade de reflexão acerca dos objetivos do do aluno através do refinamento da percepção e da
seu ensino e da presença dela nas escolas. sensibilidade, pois fomenta a criatividade e desperta
A literatura é capaz de abrir caminhos e desper- os sentidos. Porém, um dos obstáculos enfrentados
tar a sensibilidade do leitor, e o contato com ela des- pela pedagogia da educação estética diz respeito ao
de a infância fortalece o senso crítico e desenvolve a fato de que, no universo literário, os objetivos do
criatividade da criança. Os Parâmetros Curriculares ensino de literatura buscam apenas desenvolver na
Nacionais (1998, p. 26) explicitam que “o texto li- criança o desejo pelo prazer, pelo belo ou têm sua
terário constitui uma forma peculiar de represen- finalidade em ensinar ou moralizar.
tação e estilo em que predominam a força criativa Frente a isso, a educação estética não poder ser
da imaginação e a intenção estética”. A literatura é entendida como uma solução aos problemas pelos
uma arte e por meio dela é possível desenvolver as quais o ensino de literatura vem passando nas esco-
emoções e o pensamento crítico sobre o mundo. Po- las, mas como uma ferramenta de auxílio às práticas
rém, o grande desafio das escolas e dos professores pedagógicas.
Sumário
² O Instituto Pró-Livro é uma associação privada, criada em 2006, sem fins lucrativos mantida por contribuições de entidades
do mercado editorial, com o objetivo de fomentar a leitura e difundir o livro.
Sumário
e da língua” (PCN, 1998, p.26). Pelo contrário, ele A escola é o local que escolariza o ensino de li-
precisa constituir uma “mediação de sentidos entre teratura, compilando em um programa de ensino os
o sujeito e o mundo, entre a imagem e o objeto”, objetivos, conteúdos, habilidades e competências a
permitindo que o aluno reinterprete o mundo real e serem desenvolvidos no intuito de formar leitores, o
aquele que permeia seu imaginário, potencializando que, por vezes, torna o ensino fragmentado, desvin-
a expressão da subjetividade, da criticidade, da ima- culado da realidade do aluno. Logo, a liberdade de
ginação e da recepção e do texto. escolhas e a subjetividade do aluno correm o risco
Segundo o texto dos PCN (1998), a escolha cor- de estar comprometidas e precisam receber a aten-
reta das obras literárias deve levar o leitor a refletir ção devida, pois, como afirma Rezende:
sobre a leitura como experiência no curso do tem-
[...] a escola é menos livre que a sociedade: lida
po, como aquilo que o afeta por meio dos sentidos com objetivos e conteúdos inseridos num currí-
passados, das sensações do presente, incluindo suas culo ou programa. A literatura que ali adentra
projeções para o futuro. está submetida a essas necessidades escolares,
Assim como o ensino de qualquer disciplina, mas isso não significa que teorias e práticas
sejam imutáveis. Ao contrário: a escola, assim
ensinar literatura tem suas implicações. A identifi- como todo elemento de cultura, é histórica, e 108
cação com o texto ou com a obra lida faz com que o precisa mudar. (REZENDE, 2013, p. 109).
aluno tenda a fazer escolhas baseadas naquilo que
gosta de ler. Essas escolhas partem de várias fontes A autora ainda observa que, numa perspecti-
de indicação, dentre as quais se encontram a influ- va tradicional de ensino, caberia aos professores do
ência da família, a indicação por parte de alguém, o ensino fundamental despertar o gosto pela leitura
sucesso de uma obra e, por fim, a influência do pro- e aos do ensino médio proporcionar um aprendiza-
fessor. Embora sejam importantes as indicações es- do que inclui a execução das obras e a história lite-
colares de leitura, a leitura não obrigatória, ou seja, rária. Nessa perspectiva, a subjetividade do aluno
aquela que não é imposta pela escola e parte de uma seria deixada de lado ao alcançar o ensino médio.
vontade própria do sujeito, promove o desenvolvi- Possivelmente esse seja o motivo da resistência dos
mento do gosto pela leitura, pois considera a subje- alunos à leitura de literatura nessa etapa, pois falta
tividade do leitor. Porém, o caminho a se percorrer espaço para que eles vivam a experiência de fruição
para que o aluno desenvolva o hábito da leitura por e recepção do texto. Em contrapartida, a literatura
vontade própria inicia na escola. infantil na escola tem se voltado ao ensino e resgate
dos valores morais, por meio do lúdico e o ilusório.
Sumário
Segundo Vygotsky (2010), os livros voltados a esse Vale lembrar que, na medida em que as leituras
público são modelos de moralidade e lições que “se são impostas de forma descontextualizada ao aluno,
tornam uma espécie de estilo obrigatório de uma com o simples objetivo de cumprir um programa
falsa literatura infantil” (Vygotsky, 2010, p. 324). de ensino, a leitura passa a ser compreendida como
Dessa forma, o único propósito da leitura seria co- obrigação e as escolhas pessoais do aluno são co-
locar a ética acima do sujeito, pois a criatividade locadas completamente de lado. Deixando de lado
emotiva do aluno seria reprimida, como se a criança práticas de ensino idealizadas como método de ins-
não fosse capaz de compreender o texto além desses trumentalização de um ensino pronto, recomenda-
limites morais. Vygotsky afirma ainda que o adulto -se a possibilidade de troca de experiência do aluno
supõe que “o sentimento sério é inacessível à crian- com a obra estimulada por meio de práticas que o
ça” (p. 325), subestimando a capacidade dela. envolvam e o incentivem a ler.
Rezende (2013) retoma algumas dimensões do
processo de ensino leitura, reforçando a necessida- A educação estética como prática pedagógica
de de envolver o leitor em um processo afetivo que
envolve as emoções, considerando a leitura como A educação estética pode servir como um novo 109
um processo simbólico, onde o sentido que o leitor modelo educativo, tomando por base a arte como
dá à leitura se instala no contexto cultural em que atividade criativa e libertadora. Por meio dela, é
ele evolui, agindo no imaginário coletivo. Logo, a possível despertar os sentidos, a percepção senso-
metodologia da educação estética que peca ao re- rial e cultural do aluno. Para isso, é necessário que
lacionar a arte unicamente aos fins morais e éti- os envolvidos no processo de ensino tenham conhe-
cos precisa ser questionada. Ainda segundo ela, os cimento daquilo que esse tipo de pedagogia repre-
processos de leitura “são ‘escolarizáveis’ e não se senta e dos desafios que ela impõe.
opõem em absoluto a uma leitura letrada e mais es- Vygotsky traz à reflexão o conceito de educa-
pecializada” (p. 110), ou seja, por mais que se preze ção estética, mostrando a importância de dar à arte,
a subjetividade do aluno em formação, assim como aqui observada como literatura, objetivos de ensino
não se aprende gramática sem o estudo efetivo dela, que perpassam o efeito moral e estético. Motivado
não se aprende literatura sem que se estude as obras pelas falhas observadas no período em que viveu,
pré-definidas pelo programa escolar. A escola preci- apresenta argumentos que contestam a metodolo-
sa ser responsável pela formação do leitor ao longo gia de ensino na qual o professor direciona o aluno
dos anos, desenvolvendo suas capacidades leitoras a uma interpretação pronta, voltada à moral do tex-
durante todo o período escolar. to, o que ainda é observado nos modelos de ensi-
Sumário
no atuais. Segundo Vygotsky, é impossível prever o ensino de literatura não pode ter fim no ensino
quais preceitos morais serão observados quando as daquilo que moralmente se entende como certo ou
crianças recebem o texto, pois, como são sinceras, errado. Lajolo (1993.p. 24) ainda afirma que “Tanto
não se preocupam em dar ao professor a resposta criança à qual se destina a literatura infantil é uma
que ele pretende ouvir: construção, quanto o jovem ao qual se destina a li-
teratura juvenil é outra construção, ambas sociais.”,
[...] nossa escola, ignorando inteiramente o fato
psicológico da diversidade de possíveis interpre-
tomando essa afirmação como premissa para discu-
tações e conclusões morais, sempre procurou tir o papel do professor na mediação do ensino de
enquadrar qualquer vivência estética em um co- literatura.
nhecido dogma moral e se contentou com assimi- Segundo Vygotsky (2010), além da finalidade
lar esse dogma, sem suspeitar de que o texto ar-
tístico frequentemente não só ajuda a assimilá-lo
moral e ética, outro equívoco pode ser percebido
como [...] infunde uma concepção moral de or- quando transferem ao ensino de literatura a respon-
dem justamente oposta. (Vygotsky, 2010, p. 327) sabilidade de ampliação do conhecimento social e
cognitivo dos alunos, como ocorre no sistema es-
Dessa forma, a literatura perde seu valor, pois colar que separa as disciplinas em áreas de conhe- 110
tira a concentração do aluno sobre a obra e a joga cimento que não se conversam. É importante res-
para seu sentido moral, tornando secundária a emo- saltar que a literatura não serve como cartilha de
ção estética. A obra de arte, para o autor, “nunca ensino de valores éticos e morais, assim como não
reflete a realidade em toda sua plenitude e verda- é uma cópia da realidade, servindo somente como
de real, mas é um produto sumamente complexo da ferramenta de estudos sociais.
elaboração dos elementos da realidade, de incorpo- Outro equívoco dos modelos de ensino é reduzir
ração a essa realidade de uma série de elementos a finalidade da literatura ao simples prazer pela lei-
inteiramente estranhos a ela” (p. 329), ou seja, um tura. A leitura precisa ser motivada pelo prazer, mas
ensino que direciona o aluno a uma interpretação não pode ser entendida como ferramenta geradora
pronta e uma emoção oriunda do professor reprime de prazer, mesmo porque há diversos outros meios
a emoção estética e a criatividade do aluno. que despertam o prazer do aluno e que não neces-
A inclusão da literatura na infância escolar do sitam do esforço que o leitor investe na leitura, ou,
aluno surgiu como lição de moral e de bons cos- conforme Vygotsky, “quem pensa em implantar a
tumes, mas é necessário perceber que “a noção de estética na educação como fonte de prazer se arris-
criança altera-se com o tempo” (Lajolo, 1993). Logo, ca a encontrar na primeira guloseima e no primeiro
Sumário
passeio os mais fortes concorrentes”. (VYGOTSKY, é necessária na educação estética, pois a percepção
2010, p. 331). Isso ocorre porque, para as crianças, da obra não é uma tarefa fácil e exige uma atividade
a vivência real e concreta com um objeto é muito interior complexa, tendo em vista que os impulsos
mais significativa do que a emoção imaginária que primários ativados no leitor (as emoções agradáveis)
a leitura propõe. Logo, é necessário que o professor, são o despertar de uma atividade ainda mais com-
mediador do processo de leitura, através da educa- plexa de recepção do texto, o que inclui a expressão
ção estética, envolva o imaginário dos alunos em da subjetividade e o desenvolvimento da criticidade.
um processo de recepção do texto que desenvolva o Nesse sentido, o autor define que a emoção es-
hábito pela leitura. tética “se baseia em um modelo [...] que pressupõe
Obras literárias que tenham temas como idealis- necessariamente a existência de três momentos:
mo, sentimentos, incertezas e questões humanas po- uma estimulação, uma elaboração e uma resposta”.
dem propiciar ao aluno uma interação com o mundo, (VYGOTSKY, 2010, p. 333). A estimulação, trabalho
instigando-o à leitura daquilo que reflita sua condi- desempenhado pelo olho, é o momento inicial da
ção de indivíduo em desenvolvimento buscando seu vivência estética, que é constituída pelas interferên-
lugar no mundo. Além disso, quanto maior for o con- cias sensoriais que estimulam as reações do orga- 111
tato do aluno com os livros, maior a possibilidade de nismo do receptor do texto. A partir dessa vivência
escolha de obras pelo seu gosto pessoal, selecionadas inicial, surge a transformação do texto, ou seja, a
a partir da emoção despertada pela obra. Portanto, junção dos elementos, a ligação dos pontos, o que
revisitar obras literárias já lidas e estudadas permite Vygotsky chamou de elaboração. A resposta é “o
ao aluno alcançar outros níveis de significado dessa trabalho de memorização e associação de pensa-
leitura. A literatura precisa suprir os interesses dos mento” (p. 334), para entender as relações percebi-
alunos pela realidade e pelas relações sociais, para das no texto, reunindo os seus elementos.
que possam desenvolver sua criticidade. De fato, quanto antes o aluno for iniciado ao
Vygotsky (2010) afirma que os equívocos co- processo de educação estética, maior será seu de-
metidos no ensino de literatura não se relacionam senvolvimento como leitor literário.
somente ao desconhecimento dos responsáveis pela
educação nas escolas, mas ao fato de que a educação CONSIDERAÇÕES FINAIS
estética foi, por muito tempo, entendida como uma
atividade passiva, com foco unicamente no receptor O conhecimento que a literatura produz no su-
da literatura. O fato é que a passividade do sujeito jeito, bem como o processo que o gera ainda não
Sumário
tiveram suas discussões findadas. Esse é um estudo deixando de lado as séries finais do ensino funda-
que não parece ter sido esgotado. A leitura de uma mental, o que acaba fazendo com que o texto literá-
obra literária, em qualquer nível de ensino, permite rio fique em segundo plano na formação do aluno,
que o leitor reconheça aspectos culturais e sociais sendo usado como pretexto para o ensino de conte-
do contexto de criação da obra, por meio de uma údos escolares.
realidade inventada no imaginário. Além de auxi- O modelo de emoção estética de Vygotsky pode
liar a construção da identidade do aluno, a literatura perfeitamente ser utilizado na escola, pois a ela é
permite que ele reflita sobre sua própria condição transferida a tarefa de educar esteticamente a crian-
no mundo. ça por meio da vivência com as artes. O desafio pe-
O professor deve orientar o aluno para que ele dagógico está no desenvolvimento das habilidades
compreenda o papel estético da literatura e a fun- técnicas de percepção e vivência com a literatura. O
ção social que ela expressa como manifestação cul- papel do professor é identificar no aluno a emoção
tural. Não havendo relações entre o texto literário, original ao lidar com o texto literário, mostrando a
a realidade e o contexto social do aluno, a literatura ele a direção para que consiga desenvolver seu po-
não será entendida como espaço de construção de tencial criativo através da emoção estética. Mas é 112
conhecimento, de relações entre o mundo real e o preciso estar atento para que o professor não desor-
imaginário. A leitura de literatura na sala de aula dene a capacidade psíquica da criança, direcionando
consolida-se de forma a reconstruir mundos possí- a recepção do texto literário para uma interpretação
veis através da ludicidade e do prazer pela leitura. pronta, estabelecida a partir da recepção do profes-
Como mencionado no decorrer deste artigo, impor sor. É necessário considerar a liberdade de criação
a interpretação pronta e idealizada pelo professor da criança, renunciando “à tendência a equipará-lo
inibe a descoberta da leitura, permitindo ao aluno à consciência do adulto” (VYGOTSKY, 2010, p. 346),
pensar que sempre há uma resposta pronta para reconhecendo a originalidade e criatividade dela. Se
cada tipo de leitura, o que distancia a obra da sua o aluno compreende o texto lido de forma diferente
realidade. Além disso, a inadequação de práticas de do professor, isso não significa que ele cometeu um
ensino tende despertar a aversão do aluno pela lei- erro, pois seu universo psíquico não corresponde ao
tura literária. do adulto. Esta é a riqueza da educação estética.
Essas discussões remetem a necessidade de Assim como afirma Vygotsky (2010), o efeito
ações planejadas de leitura literária na sala de aula moral da arte existe como forma de elucidação do
da educação básica. A escolarização da literatura a mundo interior do sujeito, na “libertação de certas
coloca como disciplina individual no ensino médio, forças constrangidas e reprimidas” (p. 340), mas não
Sumário
¹ MBA em Marketing pela FGV. Mestranda em Comunicação Social pela PUCRS. Graduação em Publicidade e Propaganda pela
Unisinos/RS e em Gestão do Turismo pela UCB/DF. andreia.ramos@acad.pucrs.br.
Sumário
bloggers and the fact that they have affinity with finalidades, gostos e critérios individuais. O hiper-
the internet, leave next to the current profile of the consumidor certifica-se como informado e livre, que
tourist, connected and well informed, that requires vê suas opções aumentarem, que consulta portais e
quality and transparency in its relations. tabelas de preços e procura potencializar a relação
Keywords: Social Communication. Tourism. Blogs. qualidade/preço. “Assistimos agora à expansão do
Discourse Analysis. mercado da alma e da sua transformação, do equi-
líbrio e da autoestima” (LIPOVETSKY, 2010, p. 11).
A felicidade então se torna um segmento, um
INTRODUÇÃO “produto” que o hiperconsumidor quer ter pronta-
mente ao seu dispor, sem ter que envolver muito
No atual contexto comunicacional, os blogs têm esforço. É necessário ser feliz já, imediatamente.
importante destaque. Se antes eram considerados Para isso, novas preocupações começam a povoar
somente diários pessoais, hoje fazem parte de um as mentes dos consumidores. A era do consumo de
sistema multifacetado e dinâmico que os conecta a massa mudou de rosto (LIPOVETSKY, 2010).
milhões de pessoas no mundo. Sendo a internet um Nesta nova característica do indivíduo como 115
meio em que todos podem participar e gerar con- ser social, o tempo e o dinheiro direcionados às ati-
teúdo, os blogs se estabeleceram como significativa vidades de lazer aumentaram sua proporção . Esta
ferramenta de acesso à comunicação, democrati- predominância das atividades de lazer levou alguns
zando a produção de conteúdo online. autores a falar de um novo capitalismo focado, já
No turismo os blogs se estabeleceram como in- não na produção material, mas no divertimento e na
fluentes meios de acesso às informações turísticas, área da cultura (LIPOVETSKY, 2010).
contribuindo para o estabelecimento dos roteiros de Passa-se a dispensar mais atenção para o tem-
viagem de muitos turistas, principalmente daqueles po livre. Neste contexto o hiperconsumidor já não
que Lipovetsky (2010) afirma pertencerem à socie- procura tanto o “consumo por consumir”, mas, an-
dade do hiperconsumo. tes de tudo, a multiplicação das experiências, o pra-
Este hiperconsumidor busca experiências emo- zer das sensações e das emoções novas: a felicidade
cionais e de bem-estar, de qualidade de vida e saúde, das pequenas aventuras compradas para consumir,
imediatismo e comunicação. O comprador se mos- tudo isso, evidentemente, sem riscos nem incon-
tra cada vez mais informado, crítico e estético. O venientes. Esta geração de consumidores não quer
consumo constrói-se cada vez mais em função das barreiras difíceis de transpor em seu caminho. Quer
Sumário
a experiência, o prazer, ao seu alcance. E no lazer, Laranja, Conexão Paris, Jeguiando, Matraqueando
procuram alternativas que lhe proporcionem isto, e Viaje na Viagem. Além do levantamento biblio-
sem estresse. Em consequencia desta nova caracte- gráfico, a metodologia utilizada para este estudo é a
rística social, estes indivíduos hiperconectados dis- Análise de Discurso baseada nos princípios de Pa-
pensam atenção maior ao turismo. trick Charaudeau.
E é neste contexto que os blogs se destacaram
no segmento. Para se comunicar com o perfil atual O HIPERTURISTA
de indivíduo, os blogueiros precisam estar atualiza-
dos com tudo o que gira em torno do turismo. Mas Se o ser humano como ser social assume de-
quem são estas pessoas que dedicam o seu tempo terminadas características de acordo com o que foi
a compartilhar suas experiências de viagem nos debatido anteriormente, é natural que isto se ma-
blogs especializados em turismo? Este é o principal nifeste em diversos setores da vida, dentre eles o
objetivo que motiva esta pesquisa. Além disso, pre- Turismo. Se a atual sociedade é a do hiperconsumo,
tende-se identificar se estes indivíduos que produ- é possível dizer que, atualmente, observamos a exis-
zem informações em seus blogs de turismo possuem tência de “hiperturistas”, mais conectados, informa- 116
características comuns que poderiam identificá-los dos e individualistas.
dentro da blogosfera. O turista está cada dia mais exigente e certo do
Primeiramente, parte-se para a compreensão de que ele deseja. Já não fica satisfeito somente com
quem é este novo turista que busca os blogs de viagem um bom serviço e um bom atendimento. Ele quer
como fonte de informação e referência. Após passa- ser surpreendido, sentir emoções diferentes por
-se ao levantamento de informações que permitam meio de experiências vivenciais e isso abrange mui-
um melhor entendimento das principais caracterís- to mais elementos que simplesmente se hospedar
ticas do blogs de turismo para, depois, reconhecer em um hotel cinco estrelas.
quem são os blogueiros e quais suas motivações. Até mesmo as motivações para viajar modi-
Em seguida, para auxiliar na composição do ficaram. Antigamente a viagem era um sonho ali-
perfil destes blogueiros será observado como eles se mentado por muitos anos. Atualmente as decisões
apresentam em seus blogs. Para tanto, será realizada são feitas com menos antecedência e as motivações
a análise do perfil publicado em cinco blogs de via- são múltiplas. Segundo Swarbrook e Horner (2002),
gem que foram alguns dos fundadores da ABBV – existem distintas motivações de viagens para os tu-
Associação Brasileira de Blogs de Viagem: A Janela ristas, como por exemplo, pessoas que viajam para
Sumário
descansar, para fazer novas amizades, ir a festas ou volvimento no processo. “O consumidor estará ativa-
shows e que são diferentes também de acordo com mente envolvido no processo de compra e pesquisará
aspectos sociais e econômicos tais como: idade, ren- antes de chegar à decisão, o que significa um proces-
da, nível de escolaridade, entre outros. Mas o que so de decisão mais preciso” (SWARBROOKE, 2002,
une todas estas motivações ultimamente é a busca p. 110). Ele se utiliza de todas as informações dispo-
pela experiência. níveis em guias impressos, na internet e se utiliza da
Característica latente do hiperconsumista, a re- experiência de amigos para compor o seu roteiro.
lação do turista com o tempo também se reflete no A decisão da viagem não se condiciona mais a um
seu comportamento. Ele busca agilidade, economia agente de viagens. O turista atual, na maioria das ve-
de tempo e dinheiro, procurando as melhores com- zes, escolhe sozinho, todas as etapas da sua viagem.
binações de preço e produto, segundo sua necessi- Mas mesmo este tipo de turista também pode
dade e orçamento. O principal objetivo já não é ir se sentir inseguro no ato da sua decisão de com-
mais depressa, mas fazer com que o tempo de via- pra. A natureza intangível dos produtos no Turis-
gem passe mais rapidamente e permitir um melhor mo faz com que o consumidor possa apresentar al-
controle subjetivo do tempo (LIPOVETSKY 2010). guma insegurança durante sua compra. Já que não 117
A rapidez que as novas tecnologias imprimiram podem experimentar o produto ou serviço antes da
no mundo, mudou o hábito dos viajantes, tornando- compra, buscam meios de garantir suas escolhas.
-os mais exigentes e aumentando sua necessidade Por isso, seus padrões comportamentais tornam-se
de informações em curto espaço de tempo. Os tu- bastante complexos, envolvendo blogs, amigos, pa-
ristas de hoje não permitem que as decisões sejam rentes, programas sobre férias na TV, entre outros
lentas e demandam soluções ágeis, o que pode ser (SWARBROOKE, 2002).
viabilizado mediante sistemas de informações ade- Uma destas pesquisas foi realizada pela Ama-
quados e de pessoal qualificado. O turista conecta- deus, fornecedor líder em soluções de TI para o Tu-
do é informado e atua como informante também, rismo global, em 2012. Foram entrevistados mais de
sendo protagonista em algumas vezes e espectador 43 mil turistas que viajam a lazer pelo menos três
em outras. Seu espaço foi multiplicado sem que ele vezes ao ano, nos seguintes países: Estados Unidos,
tenha precisado sair do lugar. Alemanha, Reino Unido, Brasil, Rússia e Índia2.
O comportamento dos turistas ao adquirir pro- Um dos assuntos abordados por este levanta-
dutos e serviços de Turismo revela um grande en- mento é sobre como os turistas estão escolhendo o
seu destino de férias. Atualmente esta é uma deci- mar decisões: buscar inspirações no planejamento
são complexa. Os turistas atuais estão considerando das viagens a lazer ou negócios, garantir as melho-
não apenas a viagem a ser feita, mas também as via- res reservas comparando preços, procurar indica-
gens anteriores. Muitos viajantes não querem visi- ções de locais para se hospedar e conhecer durante
tar o mesmo destino ou tipo de área diversas vezes a viagem, entre outros. Estas pesquisas atualmen-
seguida. Além disso, muitas vezes as interferências te ocorrem em vários dispositivos, antes, durante e
para a escolha do destino não seguem uma proposta depois da viagem, já pensando na próxima.
lógica como era anteriormente. Uma referência de Característica muito evidente do turista da atu-
um amigo que viajou recentemente e gostou muito, alidade é o uso de smartphones nas viagens permi-
ou um episódio de uma série de televisão, podem tindo que eles gerem novos conteúdos em imagens
ser inspiração para a escolha do destino. ou vídeos que são novamente compartilhados na
Todas essas características tornam a tomada rede através de blogs especializados e redes sociais.
de decisão mais complexa. A fonte de informações Super informado e conectado, este perfil de tu-
mais comum para escolha de destino é a internet, rista utiliza diversos dispositivos em sua viagem.
sendo seguida pelas referências “boca a boca”. Ou- A internet, acessada do computador, do notebook, 118
tro dado importante demonstrado nesta pesquisa é do tablet e dos smatphones, serve como fonte prin-
mais de 30% dos turistas pesquisados preferem usar cipal de pesquisa deste novo perfil de consumidor
os sites de viajantes sobre viagens, isto é, os blogs no Turismo. Em comparação com outros países, os
especializados. brasileiros também utilizam com mais ênfase a tec-
Em recente pesquisa feita pelo Google 3 identi- nologia para se informar sobre o planejamento de
ficou-se que o preço deixou de ser o item mais im- suas viagens. Quase 80% dos participantes conside-
portante na hora da “escolha” da viagem. Segundo a ram extremamente útil o uso de meios tecnológicos
pesquisa, 47% das pessoas que compraram um voo e na hora de buscar informações sobre acomodações.
74% das que reservaram hotéis o fizeram com base Além disso, 60% utilizam-se da opinião de outros
em outros atributos que não somente o preço. viajantes para tomar decisões em relação a seu des-
Segundo a pesquisa do Google, os turistas atu- tino e hospedagem.
ais estão à procura de conteúdo e informações on- As novas tecnologias adquirem papel importan-
line. Mais de 60% deles recorrem à internet para to- te no comportamento deste novo indivíduo social.
A internet, se torna o grande aliado na busca destas A estimativa é de que existam cerca de 600 blo-
sensações e, assim, surge o indivíduo entregue a si gs de viagem no Brasil, entre aqueles que são pro-
próprio, independente, livre de escolher, de demo- fissionais, ou seja, que sobrevivem com o retorno
rar o tempo que quiser, de examinar os produtos, de que recebem com a publicação e aqueles que são
comprar sem estar sujeito à pressão do vendedor. Já amadores e utilizam o meio apenas como distração.
não se está vendendo algo, mas é este indivíduo que Para dar conta de compreender quem são estes
está comprando. indivíduos e suas características, a ABBV4 realizou
uma pesquisa em janeiro e fevereiro de 2014, uti-
O PERFIL DOS BLOGS DE TURISMO E SEUS lizando seus associados como referência. Ao todo
BLOGUEIROS foram 91 blogs de turismo pesquisados. Conforme
os organizadores, este é um universo difícil de men-
Por ser uma ferramenta democrática, para ter surar, mas que as descobertas foram muito impor-
um blog é necessário ter um pouco de conhecimen- tantes para oferecer um panorama do mercado. A
to do meio e estar disposto a mantê-lo atualizado. pesquisa foi denominada como Perfil dos blogs de
Parece simples e , de fato, é. Mas isso somente isso viagem no Brasil5e representa uma radiografia sig- 119
não garante que seu blog vai ser visualizado pelos nificativa da blogosfera de viagem.
internautas e que vai ter conteúdo interessante que A pesquisa inicia com a identificação de quem
atraia o leitor a acompanhá-lo. Esta é uma tarefa é o blogueiro de viagem no Brasil. O estudo identi-
difícil mas desafiadora. Na blogosfera existem uma ficou que o blogueiro de viagem é jovem, pois 50%
grande quantidade de blogs com os mais variados têm entre 31 e 40 anos. Mas pode-se reconhecê-lo
conteúdos, mas somente alguns tornam-se referên- como um jovem adulto, pois nesta faixa etária o in-
cia em seus segmentos. No turismo isto também é divíduo já tem relativa formação intelectual e pro-
uma realidade. Nos últimos dez anos o mercado do fissional, conseguindo uma independência financei-
turismo verificou o crescimento dos blogs de via- ra para se dedicar a viajar. Isto pode diferenciá-lo
gem. Além de crescerem em número, aumentaram de outros segmentos onde os blogueiros são muito
sua influência junto aos viajantes. mais jovens e não precisam de investimentos muito
grandes para escrever sobre o assunto do blog.
⁴ A ABBV, Associação Brasileira dos Blogs de Viagem, foi fundada em maio de 2012 é a primeira da América Latina a regulam-
entar e defender os interesses dos blogs que atuam neste nicho no mercado nacional. Fonte:www.abbv.net.br.
⁵ O relatório da pesquisa “PERFIL DOS BLOGS DE VIAGEM NO BRASIL” está disponível em http://www.slideshare.com/
ABBV_Brasil/abbv-perfil-blogs.
Sumário
Além disso, a maioria são mulheres (73%), o que Quadro 1 - Inspiração dos blogueiros para suas viagens
pode ratificar a facilidade que as mulheres encon-
tram em falar e escrever e o gosto pelas viagens.
Residem, em maioria, na região sudeste, principal-
mente nos estados do Rio e São Paulo (41%). É im-
portante destacar que 19% dos autores de blogs de
viagem vivem fora do país. Com estes dados ini-
ciais pode-se identificar uma característica impor-
tante: os blogueiros possuem condições financeiras
adequadas para viajarem e se dedicarem aos blogs.
A maioria se identifica como jornalistas, seguidos
dos publicitários, empresários, professores e admi-
nistradores, entre outros. Fonte: Pesquisa PERFIL DOS BLOGS DE VIAGEM NO BRASIL6
Na sequência da pesquisa, encontram-se os da-
dos de como estes indivíduos fazem suas viagens. 55% viajam para conhecer um destino dos so-
120
Os resultados mostram que 100% dos blogueiros fa- nhos, o que costuma-se chamar no meio de wish
zem seus roteiros de viagem e 77% utilizam a inter- list. 26% viajam para conhecer melhor um destino
net para fechar suas reservas. 35% dos entrevistados já conhecido e escrever novidades no blog. Quando
viajam mais de quatro vezes por ano dentro do país eles decidem o destino, 95% consultam outros blo-
onde residem e 38% realizam viagens ao exterior gs e 76% revistas, guias impressos e suplementos de
anualmente. Somente 8% deles são inspirados pe- jornais para formar o roteiro.
las viagens oferecidas pelas empresas de turismo. 88% dos blogueiros tem domínio próprio e 90%
Um dado muito interessante que se apresenta é o de dos blogs são mantidos por 1 ou 2 pessoas. 65% dos
que 75% assumem que sua principal inspiração para blogueiros encaram seus blogs como um negócio,
decidir sobre qual vai ser a nova viagem são outros mesmo que ainda não ganhem dinheiro com eles.
blogs, assim como 67% utilizam os amigos como Entretanto, a “satisfação pessoal” é considerada a
fonte de motivação. No quadro 1 pode-se verificar principal dimensão do sucesso, seguida por “ter seu
as principais fontes de inspiração dos blogueiros conteúdo compartilhado pelos leitores” e ter seu
para suas viagens. blog “indicado por outros blogueiros”.
⁶ Disponível em <http://www.slideshare.com/ABBV_Brasil/abbv-perfil-blogs>
Sumário
A apresentação do blogueiro está na homepage, tagem atual. Pelos itens disponibilizados é possível
à direita, mas sem grande destaque. O texto com- perceber que o blog possui uma estrutura organi-
pleto é conciso e acompanha uma foto sem cores do zada, aproximando-se de uma empresa. O nome do
autor. Em um visual tão cheio de cores e informa- blog já deixa claro que ali se encontram informações
ções, esta estratégia parece favorecer a informação sobre Paris, mas também disponibilizam dicas sobre
do perfil. O sujeito enunciador (EUe) é o blogueiro, toda a França.
que não revela o seu nome, apesar do texto ser na A apresentação da criadora do blog não tem
primeira pessoas do singular. Ele inicia o texto se destaque, ficando em um item do menu que está co-
intitulando como blogueiro, fotógrafo e viajante. O locado na parte superior direita da imagem de capa.
blog tem 10 anos, mas o texto não revela a forma- Entrando no espaço do perfil, então, revela-se quem
ção do autor antes do lançamento. Após esta descri- é a pessoa por trás do Conexão Paris: Lina Haute-
ção ele cita ser pai de duas meninas, colocando os ville. Por mais que se fale na Lina, o texto está na
nomes. Desta maneira ele se aproxima do público terceira pessoa do singular denotando que se trata
que procura informação para viajar com crianças, de uma postagem institucional do blog e não uma
em uma estratégia de emoção. Ele conta que morou publicação autoral, pessoal da blogueira. Aliás, em 122
em dois países fora do Brasil e que a partir daí não nenhum momento ela se define como tal. Por conse-
parou mais de viajar. Isto revela uma das caracterís- guinte, pode-se interpretar que o sujeito enunciador
ticas observadas anteriormente de que os blogueiros e o sujeito comunicante são o blog Conexão Paris,
escrevem por prazer de viajar. Para finalizar o texto sem definição de autoria. As formações acadêmicas
informa quem o EUe define como o sujeito destina- e profissionais ficam em evidência, ratificando uma
tário (TUd) desta mensagem: quem quer desbravar das características dos autores de blogs do segmen-
o mundo, principalmente os pais e mães que que- to: bom nível de instrução. Diversas expressões uti-
rem viajar com os filhos. Desta forma quer estabe- lizadas denotam a estratégia de emoção colocada
lecer um contrato de confiança e segurança com os no discurso, tais como: sua paixão por Paris. Desta
leitores que possuem filhos. maneira, aproveitam da aura da Cidade Luz para
conquistar o sujeito destinatário que se revela aqui
Conexão Paris como aqueles apaixonados, também, por Paris. O
contrato estabelecido nesta apresentação é de que a
Com um design clean, as informações são bem Lina é a melhor referência quando se trata de Paris
distribuídas no menu e o destaque fica para a pos- e que se pode confiar nas postagens do blog, pois a
Sumário
sua fundadora está há quase três décadas na cidade equipe do blog, ou seja, os próprios autores. O per-
e se dedica a explorar cada canto e novidades, dan- fil do segundo autor segue a mesma linha eviden-
do dicas, inclusive, para nativos. ciando também o lado curioso e apaixonado pelo
que faz, característica importante dos blogueiros de
Jeguiando viagem. Possui, igualmente, formação acadêmica e
muitos anos de experiência profissional, além de se
Criado há oito anos pelo casal Janaína Calaça e dedicar às viagens.
Erik Araújo, o blog possui uma linguagem bem-hu-
morada com muitas ilustrações e um personagem de Matraqueando
pelúcia que remete ao nome do canal. Os nomes dos
autores aparecem em destaque na imagem de capa. O Matraqueando tem 16 anos. As publicações
A apresentação dos blogueiros está identifica- não são frequentes, mas quando acontecem são
da como a Trupe do Jeguiando, confirmando o tom muitos interessantes. O tom é bem informal, como
informal do blog. O primeiro perfil apresentado é o se a blogueira conversasse com um amigo, dizendo
do personagem tema do Jeguiando, o bicho de pe- realmente o que é bom e o que não é. Este pode ser 123
lúcia do casal, chamado de Jegueton, considerado a razão do seu sucesso.
pelo texto como filho deles. Após esta introdução A autora do blog tem grande representativida-
bem-humorada aos perfis, revela-se quem é a Janaí- de no segmento do turismo e na blogosfera turísti-
na. Uma das muitas mulheres blogueiras de viagem, ca. Ela é a atual presidente da ABBV e dirige uma
o discurso apresenta a autora como uma “alma livre empresa de comunicação. Seu nome, Silvia Oliveira,
e olhos cheios de imagens”, revelando novamente a está em destaque na home do Matraqueando. Na sua
característica de que o mais importante é o prazer apresentação no blog ela se coloca como a matra-
que se sente viajando e compartilhando o que se viu ca. Já de início ela demonstra sua formação como
e sentiu com os outros. Aqui também se evidencia jornalista e mestre em Turismo Internacional na
o alto nível de formação da criadora do blog, que Espanha. Seu currículo de expressão ainda recebe
possui três graduações na área literária, com livros destaque na apresentação quando ela cita suas ex-
publicados e fundadora de um selo editorial volta- periências profissionais em importantes empresas
do para publicações de viajantes. O discurso está de televisão brasileiras.
apresentado na terceira pessoal do singular, mas o O discurso é organizado de maneira descriti-
tom descontraído e criativo evidencia que o EUe é a va, que identifica e qualifica o sujeito comunican-
Sumário
Uma das características importantes verificadas em suas relações. Desta forma torna-se possível com-
na análise é que não se trata de amadores, que pen- preender porque alguns blogs se destacam no seg-
sam saber sobre turismo e que escrevem somente mento e permanecem no mercado por tantos anos.
porque gostam do assunto. A maioria possui forma- Enfim, por mais diferenciados que sejam os blo-
ção acadêmica, alguns com mestrado e doutorado gs de viagem é possível evidenciar características
que os habilitam a trabalhar com comunicação. São comuns em seus autores e o estudo alcança relevân-
curiosos e gostam de compartilhar informações. cia para quem pretende estudar o turismo nas mí-
Veem a internet e a ferramenta como meio de co- dias digitais, já que revela quem são os produtores
municação que deve ser confiável e honesta com dos atos de fala e, sabendo quem o discurso faz falar,
seus leitores. juntamente com as circunstâncias de produção, a
A idade dos blogueiros não é citada e não se tor- interpretação dos sentidos torna-se mais adequada.
na fundamental para os discursos. Mas pelos relatos
das experiências profissionais e de vida e pelas foto- REFERÊNCIAS
grafias, é possível perceber que estão na faixa dos 30
aos 40 anos em maioria. Assim como, também, pou- ABBV. ABBV. http://www.abbv.net.br (acesso em 26 de 12
de 2015). 125
cos mencionam onde residem, pois ser um cidadão
do mundo pode ser uma vantagem deste profissio- AMADEUS. Disponível em: <http://www.amadeus1a.com.
nal. A não ser no caso de um blog especializado em br/arquivos/empowering.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2015.
um roteiro, como o Conexão Paris, onde o autor es-
tar residindo no local tratado dá mais credibilidade. CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso, modos
de organização. São Paulo, SP: Contexto, 2010.
A maioria dos que trabalham nos blogs anali-
sados são mulheres e elas se autodenominam como LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal - Ensaio
curiosas, inquietas e amantes das letras. Além disso, sobre a sociedade do Hiperconsumo. Lisboa: Edições 70,
os blogueiros enfatizam o prazer que possuem em 2010.
viajar e em compartilhar suas descobertas com os
SWARBROOKE, John. O comportamento do consumidor
outros. no turismo. São Paulo: Aleph, 2002.
Estas características e o fato de que possuem afi-
nidade com a internet os aproximam do atual perfil Think With Google. Disponível em: <www.thinkwithgoo-
do turista, conectado e bem informado, que se man- gle.com>. Acesso em: 04 nov. 2011.
tém atualizado e que exige qualidade e transparência
Sumário
¹ Mestranda em Sociedade, Cultura e Fronteira da UNIOESTE-PR, advogada especialista em direito do trabalho e previdenciário
e professora. E-mail: annapaulapatruni@gmail.com
² Doutora e Mestre em Direito, advogada, professora da UNIOESTE-PR. E-mail: elacrisfr@hotmail.com
Sumário
A construção da ideia e do conhecimento, se- Conforme nos ensina Andery (1996, p.20), “o
gundo Andery (1996, p. 12), está diretamente rela- desenvolvimentos das técnicas e utensílios e sua
cionada com o processo das necessidades humana, melhor utilização levaram a produção do exce-
onde parte do conhecimento produzido por ele de- dente” e, estes novos meio de trabalho e produção,
riva do conhecimento do mundo e parte do sur- agregados ao desenvolvimento do escravismo dos
gimento das ciências deriva da satisfação de suas povos vencidos em guerras, propiciaram o início do
necessidades. Não sendo dessa forma a produção pensamento cientifico filosófico.
do conhecimento cientifico uma prerrogativa do No decorrer da história vários pensadores dedi-
homem moderno. A satisfação das necessidades caram-se ao estudo da filosofia como um fim em si
humanas e o conhecimento produzido atuam como mesmo, apartando-a do caráter religioso ou anímico
geradoras de ideias. anteriormente conferido. Porém o que faz com que
A interação homem e natureza levaram ao de- esse conhecimento racional se torne ciência e resis-
senvolvimento de meios de sobrevivência e mesmo ta à comprovação através de métodos científicos, é
que de maneira não intencional a humanidade pode a necessidade de explicar como esses processos e
desenvolver e reproduzir novas formas de conhe- esses conhecimentos empiricamente adquiridos na 128
cimento. Uma vez clara e presente essa simbiótica natureza se explicam.
relação do homem e a natureza e a inerente curiosi-
dade do homem em entender esse ambiente e seus O DESENVOLVIMENTO DO
fenômenos, cresce a vontade da busca do saber. Po- CONHECIMENTO E DA FILOSOFIA
rém para o desenvolvimento do pensamento faz-se
necessário tempo livre, o que na época o homem Diante da necessidade do homem de explicar
não possuía. e compreender o mundo ao seu redor, os filósofos
Nas sociedades primitivas o homem angariava destacam-se nessa função, e encontram na Grécia
sua sobrevivência de forma rudimentar e imediata, um berço para seu desenvolvimento em busca da
normalmente organizado em pequenos grupos fa- sabedoria. Segundo Reale (2003, p. 21), a busca para
miliares onde apesar de presente à divisão do traba- a clássica pergunta, “Qual é a origem de todas as
lho, a mesma não previa a produção de excedente, coisas?” será encontrada com plena consciência
muito menos a possibilidade de armazenamento ou através do estudo da totalidade da realidade e de
a troca de produtos (comércio). ser entendida como objeto da filosofia. Para Andery
(1996, p. 21), diversas foram às tentativas humanas
Sumário
em propor respostas racionais a physis, porém para tigação através do Arché, elemento primordial da
fins didáticos estudaremos essa evolução através qual derivam todas as coisas. Porém cada filósofo
dos períodos de divisão da história Grega, iniciando dessa época encontrou seu próprio Arché, afastan-
pelo período Homérico onde se desenvolve a base do-se dessa forma do místico, para as explicações
da civilização grega. através da natureza.
Esse período apesar de bastante conturbado por Para Tales de Mileto, o elemento primordial era
guerras, trouxe muitas alterações sociais para a Gré- a água, então compreendida como princípio concei-
cia (como mudança da monarquia para a aristocra- tual, que através de sua forma líquida, originária,
cia) alterando toda organização política social e por onde dela tudo deriva, sendo inclusive água igual a
consequência toda divisão do trabalho e de meios de Deus. Na explicação de Giovanni Reale:
produção ali existente, o que por sua vez influencia
Com efeito a sua água coincidia com o divino:
fortemente a vida social e a formação de ideias. dizia ele que “Deus é a coisa mais antiga, porque
Hesíodo e Homero representantes dessa épo- incriada”, ou seja, porque princípio. Desse modo,
ca apesar de possuírem pensamentos e concepções se introduz no pensamento uma nova concepção
socialmente diferentes, em seus textos ambos ao de Deus: trata-se de uma concepção na qual pre-
domina a razão, destinada, enquanto tal, a logo 129
referirem-se aos deuses, humanizava-os e aproxi- eliminar todos os deuses do politeísmo fantásti-
mava-os dos homens, minimizando a existência da co-poético dos gregos. (REALE, 2003, p.31).
dogmática e permitindo a liberdade do pensamento.
Já no período Arcaico, ainda segundo Andery Anaximandro de Mileto, discípulo de Tales, dis-
(1996, p.23), o grande destaque está no desenvolvi- corda de seu mestre, identificando seu Arché em um
mento da polis, no forte desenvolvimento do comér- elemento indeterminado, não encontrado na natu-
cio e na alteração política e social, gerando grandes reza, que denominou a-peiron, que segundo Reale
diferenças econômicas entre seu povo. Tal período é (2003, p.31) significa “aquilo que é privado de limi-
marcado pelo crescimento da escravidão, o que per- tes, tanto externos [...] quanto internos” ,dos quais
mitiu que os “ricos”, livres do trabalho diário, dedi- se derivariam todos os demais elementos de forma
cassem seu tempo à busca do pensamento racional. indeterminada”. Ainda citando Andery vemos que
Muitos filósofos surgiram nesse período e são esses pensadores de Mileto, mudaram sua maneira
classificados como naturalistas ou ainda filósofos de construção do pensamento, em suas palavras:
da physis. Seus estudos baseiam-se na natureza e na
formação do universal, utilizando para isso a inves-
Sumário
[...] foram capazes de, partindo da observação período destacam-se três filósofos: Sócrates, Platão
dos fenômenos da natureza, elaborar conceitos e Aristóteles, que sem duvida influenciaram todo
ou ideias abstratas, construindo, assim, as mar-
cas do primeiro momento de ruptura com o pen- desenvolvimento da filosofia e da ciência. Esses três
samento místico. (ANDERY,1996, p. 43). filósofos divergem em vários momentos, porém a
tríade foi uníssona na superação da natureza como
Já Pitágoras, tentou explicar o início de tudo base do estudo, e em concentrar seus esforços ten-
através dos números e de seus componentes. Ins- do o homem como objeto central da produção desse
pirado pela música e seus acordes, acreditava que conhecimento, e para tanto, todos propuseram no-
tudo era número e harmonia, onde a partir deles, vos métodos.
todas as coisas poderiam ser mensuradas, como o Sócrates acreditava no apriorismo, ou seja, que
tempo de colheita, ciclo de movimento dos astros, todo o homem pode conhecer a bondade e a sabe-
etc. Nessa teoria podemos ainda presenciar o mis- doria desde que bem orientados, porque todos os
ticismo, assim explicada por Andery (1996, p. 31) homens trazem a verdade dentro de si, em sua alma.
“[...] a teoria dos números iniciado por Pitágoras Acreditava ainda que a sabedoria do homem depen-
continha um aspecto místico: ao número era asso- dia do seu autoconhecimento, e do reconhecimento 130
ciado um poder extraordinário, pode-se dizer divi- dos seus limites, sendo o homem e suas virtudes, o
no.”. Vários outros filósofos explicaram o princípio centro de suas preocupações. Ademais o bem e a
de tudo em Archés diversos, como Heráclito de Efé- virtude eram por ele considerados como algo imu-
so que atribuiu ao fogo o princípio fundamental de tável e universal, sendo este o conhecimento a ser
todas as coisas, para Reale: almejado pelos homens, para seu aprimoramento e
de toda a sociedade, segundo Andery:
Todas as coisas são uma troca do fogo e fogo
uma troca de todas as coisas, [...] e Essa “har- Sócrates é importante também pelo fato de que,
monia” e “unidade dos opostos” é o “princípio”, indubitavelmente, respondendo às necessidades
e, portanto, Deus ou o divino: “Deus é dia-noite, de seu tempo, foi capaz de somar à preocupação
é inverno-verão, é guerra e paz, é saciedade e com o conhecimento da natureza a preocupação
fome. (REALE, 2003, p.37) com o conhecimento do homem e da sociedade e
seus aspectos éticos e políticos. (ANDERY,1996,
Chegando ao período clássico, algumas cidades p. 66).
da Grécia atingiram seu apogeu e a consolidação da
democracia tendo em Atenas seu destaque. Já do Platão continua a ideia e a preocupação de Só-
ponto de vista da produção do conhecimento, nesse crates em construir homens e uma sociedade me-
Sumário
lhor. Assim como Sócrates utilizou o diálogo para cendido ao mundo inteligível, por meio do co-
confrontar os homens em busca do conhecimento. nhecimento das ideias. O filósofo era que conhe-
cia contemplativamente o real. (ANDERY,1996,
Para Platão, vivemos entres dois mundos: O mundo p. 76).
sensível – onde encarnamos, e todas nossas experi-
ências são construídas através de nossos sentidos. Já a partir de Aristóteles, inicia-se o caminho
E o outro mundo, onde temos a verdadeira realida- para o desenvolvimento das ciências, é o momento
de, o Mundo Inteligível (das ideias). Platão difere de onde verificamos que a totalidade começa a se frag-
Sócrates ao detalhar e sistematizar o pensamento mentar. Aristóteles apesar de discípulo de Platão re-
filosófico, dentro de um pensamento de síntese ide- futa várias vezes seus conhecimentos, no entanto,
alista, mas ambos desprezavam o conhecimento que também segue a ideia do conhecimento universal,
temos através das coisas, pois estas não refletiriam não se contentando com o particular, mas alegando
a verdade, somente uma “sombra” da verdadeira que o universal pode não estar nos sentidos e nas
realidade, conforme ele narra no Mito da caverna, experiências, somente se iniciando através destes.
escrito em seu livro, A República. Acreditava no estudo do conhecimento partindo do
Portanto, somente através da dialética seria particular e objetivando alcançar o universal (onde 131
possível alcançar o conhecimento universal e imu- está o campo do verdadeiro conhecimento), através
tável, uma vez que, o conhecimento universal não do método Indutivo. Porém ressalta sempre que so-
se apresenta no objeto e sim na ideia do objeto, mente no campo universal podemos fazer a verda-
na racionalidade do pensamento que se expressa, deira ciência. Criou ainda o método dedutivo, onde
onde a universalidade dá origem à particularidade, parte-se do universal para alcançar o particular, a
porém, não está contida nela. Historicamente até especificidade, a especialidade, através do silogis-
Platão não há divisão conhecimento em discipli- mo, abrindo as portas para o particular, criando a
nas específicas. Já existia o estudo de matemática, segmentação das ciências e abandonando a totali-
mas ainda dentro da universalidade. Para Platão a dade, criando um problema que a interdisciplinari-
totalidade do objeto está na totalidade das ideias, dade atualmente busca resolver.
no mundo das ideias, ou seja, no mundo metafísico, Aristóteles ainda estudou a classificação de ani-
fora da physis, e nas explicações de Andery: mais e plantas, onde se pode observar a classifica-
ção partindo do particular para o universal e desse
Para Platão, filósofo era aquele que tivesse alcan-
çado esse estágio do conhecimento; que tivesse, conhecimento para um conhecimento superior. O
portanto, se desligado do mundo sensível e as que reforça o início dos estudos e desenvolvimentos
das ciências. Porém, segundo Andery:
Sumário
referencial, que por muitas vezes pode ser ignorado. conteúdos curriculares das faculdades conforme
Karel Kosik acerca da dialética e o processo do co- nos alerta Follari (2011, p.125).
nhecimento traz a luz a seguinte reflexão: Marx já fazia criticas ao formato disciplinar e
dissociado da praxis social adotado na modernida-
A dialética trata da “coisa em si”. Mas a “coisa em
si” não se manifesta imediatamente ao homem.
de e na pós-modernidade, para Carvalho, apud Go-
Para chegar à sua compreensão, é necessário fa- delier (1981, p.169), o método marxista consiste em
zer não só um certo esforço, mas também um dé- partir, não da divisão do trabalho no interior dos
tour. Por este motivo o pensamento dialético dis- diversos processos concretos de produção, mas dos
tingue entre representação e conceito da coisa,
com isso não pretendendo apenas distinguir duas
“meios de trabalho, isto é, das forças produtivas da
formas e dois graus de conhecimento da realida- sociedade, das pressões que impõem e das possibili-
de, mas especialmente e, sobretudo duas qualida- dade que oferecem a essa sociedade para extrair da
des da práxis humana. (KOSIK, 1976, p. 13). natureza sua condições materiais de existencial.
Segundo, Morin e Alvarenga (2011) as “tecno-
Na teoria marxista, o materialismo histórico ciências” passaram a comandar o futuro social, sem
busca ilustrar a historia da sociedade humana em ter comando de si próprias, isto é, incidindo sobre o
todas as épocas, sob a totalidade da vida em socie- 134
espaço social, sem a devida reflexão filosófica de sua
dade, as ideias, as concepções, a politica, etc. Mas natureza e do exercício de seu poder. Deste modo,
não era essa a visão predominante no auge do de- os efeitos negativos da produção (massificada) e a
senvolvimento das ciências modernas. Sem dúvida, aplicação (vinculada aos princípios de mercado) do
através da divisão das disciplinas e do surgimento conhecimento humano, gerou um cenário propício
de novas ciências como campos autônomos do co- para existir uma “ciência sem consciência”.
nhecimento, tivemos um salto em quantidade e qua- Ensinamento que nos remete a Bianchetti et al.
lidade nas mais diversas áreas, porém com o passar (2011, p. 25), onde após estudar outros autores a res-
dos anos, e com o afastamento da preocupação já peito da interdisciplinaridade, depreende-se destes
esboçada por Bacon, da utilidade do conhecimento estudos dois principais pressupostos para sua análi-
desenvolvido para melhoria da sociedade, ou como se. O primeiro que a fragmentação do conhecimento
diria mais tarde Marx, da falta da consciência sobre leva o homem a não ter domínio sobre o próprio co-
o conhecimento produzido e sua alienação das for- nhecimento produzido e que em decorrência disso
mas de produção, chegamos a um momento histó- (segundo) passa a ser considerada uma “doença” e a
rico onde se discute a falta da relevância social dos comprometer a produção do conhecimento. Porém
Sumário
acompanharemos o pensamento do autor que mais mento científico. Portanto, faz-se necessário consi-
a frente, na mesma obra, discorda do segundo pres- derar o pensamento do filósofo e humanista francês
suposto e acredita que “ [...] tanto a disciplinaridade Georges Gudorf, de modo a integrar o conhecimen-
com a interdisciplinaridade se impõe historicamen- to e humanização da ciência tendo como princípio,
te, ambas sendo filhas do tempo”. (BIANCHETTI, o homem como ponto de partida e chegada e enten-
2011, p. 31) e não uma doença. der que a fragmentação promove rupturas entre o
Porém para falarmos em ruptura da ciência mo- conhecimento da natureza e do mundo social.
derna para um pensamento totalitário para Alva- Porém, como já ensina Frigotto: a interdisci-
renga et al (2011, p.13) se faz necessário entender a plinaridade impõe-se como necessidade e como
primazia do método científico, que direciona toda problema no plano material, histórico-cultural e
a produção do conhecimento no mundo moderno epistemológico (2011, p.29). Uma vez entendida a
e contemporâneo. Logo, somente será possível que interdisciplinaridade como necessidade histórica
os conhecimentos produzidos, ainda que fragmen- social e não um ato de mera vontade, não se pode
tados pelas ciências, sejam incorporados à práxis esquecer que essa necessidade surgiu pela ruptu-
social, através da interdisciplinaridade. Porém esta, ra do conhecimento unificado e de uma sociedade 135
não deve nunca ser pensada sem o contexto histó- cada vez mais complexa e fragmentada.
rico social, caso contrário deixaria de considerar a Diante disso o estudo da interdisciplinarida-
materialidade histórica na relação entre produção de que seja afastado da totalidade, que entenda o
do conhecimento e produção da existência. homem como uma construção histórico-social, não
contempla e permite a compreensão do real. Ade-
A INTERDISCIPLINARIDADE E mais, como bem ensina Severino, para superar a
TOTALIDADE fragmentação não se faz necessária a destruição
das especialidades, mas trata-se, muito mais, de res-
A interdisciplinaridade surge como forma alter- taurar a perspectiva da totalidade numa dimensão
nativa para produção do conhecimento, para Alva- nova, a dialética. Para Karel Kosik a totalidade se
renga et al. (2011, p.20), é “percussora, não somente expressa da seguinte forma:
nas críticas, mas, sobretudo, na busca de responsa-
Na realidade, totalidade não significa todos os
bilidade aos limites do conhecimento simplificador, fatos. Totalidade significa: realidade como um
dicotômico e disciplinar da ciência clássica.” agindo todo estruturado, dialético, no qual ou do qual
como um modo inovador na produção do conheci- um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de
Sumário
fatos) pode vir a ser racionalmente compreendi- a reconhecer a totalidade como categoria impor-
do. Acumular todos os fatos não significa ainda tante e problemática, uma vez que normalmente a
conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos
em seu conjunto) não constituem, ainda, a totali- consciência dos indivíduos encontra seus limites no
dade. Os fatos são conhecimento da realidade se próprio indivíduo. Em Goldmann (1967, p.48) “a fi-
são compreendidos como fatos de um todo dialé- losofia da história de Kant é também, uma tentativa
tico – isto é, se não são átomos imutáveis, indi- de conciliação das duas categorias: a universalidade
visíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a rea-
lidade saia constituída – se são entendidos como racionalista e atomista e a totalidade concreta.”.
partes estruturais do todo. (KOSIK, 1976, p. 39). E é nessa totalidade concreta que devemos en-
contrar a síntese entre matéria e consciência, fazendo
Assim, a compreensão da categoria totalidade parte do ser social, ou seja, além de sermos regidos
concreta se faz importante para o estudo da inter- por leis físicas, químicas e orgânicas, somos influen-
disciplinaridade na busca pelo conhecimento social. ciados por leis sociais e de comportamento. Somos
Gaudêncio Frigotto na sua explicação a respeito da ao mesmo tempo regidos e regentes. Logo, apesar de
interdisciplinaridade e totalidade se aproxima do possuirmos liberdade, esta é somente impelida pela
conceito de Kosik, como podemos observar: necessidade da sobrevivência. Mas falar de liberda- 136
de para a satisfação das necessidades é retornar ao
Investigar dentro da concepção da totalidade
concreta significa buscar explicitar, de um ob- início desse trabalho, e entender sobre a busca de
jeto de pesquisa delimitado, as múltiplas deter- satisfação pessoal, a qual, de modo secundário, gera
minações e mediações históricas que o constitui. evoluções sociais. O trabalho nesse momento passa
A historicidade dos fatos sociais consiste funda- a ser o novo objeto ontológico da história.
mentalmente na explicitação da multiplicidade
de determinações fundamentais e secundárias Dessa forma para Lukács (1968, p.05) a consci-
que os produzem. (FRIGOTTO, 2008, p.44). ência é um produto tardio, mas que ainda assim, no
sentido gnosiológico do trabalho, o homem é levado
Frigotto por sua vez, ressalta a importância da a se deparar a certos conhecimentos pelo próprio
interdisciplinaridade para o estudo dos fatos so- trabalho, levado a conhecer as leis naturais e pro-
ciais, pois dessa forma garante a possibilita do es- cessos sociais que já existiam antes mesmo dele. E
tudo da totalidade, não como o todo real, mas sim na medida em que o homem transforma os obje-
de forma a analisar suas múltiplas determinações e tos e a sociedade, ele transforma a si mesmo, de-
mediações. Kant, segundo aponta Goldmann (1967, senvolvendo um papel crescente nas relações e atos
p.25), foi um dos primeiros pensadores modernos sociais, que dão significado aos atos humanos na
Sumário
sua totalidade. Verificamos dessa forma, o trabalho mento do mundo considerando o local e momento
como força plasmadora da totalidade ontológica e a histórico onde esse objeto estava inserido, retirando
relação desse objeto com o todo onde está inserido. sua característica social.
Vemos a importância do conhecimento inserido
CONSIDERAÇÕES FINAIS na sua utilidade social e também através do materia-
lismo histórico de Marx, como método científico, e
A totalidade sempre esteve presente no estudo como reconhecimento que o objeto só pode ser ple-
da filosofia, apesar de renegada durante certo perío- namente estudado dentro de sua concepção histórica
do histórico, foi a partir da totalidade que os primei- e social. A interdisciplinaridade surge como objeto
ros estudiosos buscaram a explicação para os fenô- histórico, uma vez que não ocorre por vontade dos
menos da natureza. Vários filósofos contribuíram de indivíduos e sim por necessidade social. Aparece
forma intensa na busca do conhecimento, sendo que como forma de denuncia moral da fragmentação das
em alguns casos seus ensinamentos perduraram por disciplinas, pois através da fragmentação da consci-
séculos, e para esse fim criaram teorias e métodos ência somos levados a uma visão caótica da realidade.
que pudessem entender e repetir esse conhecimento. Majoritariamente a interdisciplinaridade ainda 137
Com o desenvolvimento da ciência na moder- é compreendida como um conceito em aberto, não
nidade e a divisão do saber organizado em disci- tendo uma definição clara e sim diversas definições.
plinas distintas que estudavam objetos específicos, O desafio encontra-se no resgate da concepção de
testando-os e analisando-os através de métodos totalidade concreta para utilização da interdiscipli-
próprios, a quantidade de saber se expandiu de for- naridade para o alcance do conhecimento para a
ma grandiosa, fazendo com que a especialização compreensão das múltiplas mediações que sinteti-
fosse cada vez mais restrita e específica, tendo como zam determinado fato histórico.
consequência indesejada, a fragmentação do saber e A totalidade desde seu surgimento na forma
a alienação do conhecimento, assimétrica ao desen- mística, lida com a multiplicidade do real, e demons-
volvimento da sociedade contemporânea, comple- tra como cada um percebe a realidade de forma di-
xa e fragmentada. A busca primordial das ciências ferente dependendo da sociedade e do momento
sempre foi em busca de soluções para suas proble- histórico em que está inserido. Somente pode ser
máticas, onde suas respostas seriam obtidas através compreendida após a ação da ciência para um me-
de métodos racionais e possíveis de serem repeti- lhor entendimento do objeto, e da determinação de
dos. Dessa forma, a ciência abandonou o entendi- um método para seu conhecimento.
Sumário
Mas para escolha do método o cientista precisa BIANCHETTI, L.B FRIGOTTO, Gaudêncio. A interdisci-
conhecer o objeto, e esse conhecimento não advém plinaridade como necessidade e como problemas nas
ciências sociais. In. Interdisciplinaridade para além da
unicamente da ciência, mas sofre influencias exter- filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. p.34-59.
nas a ela, como as do contexto histórico em que es-
tão inseridas para alcançar o objetivo da totalidade CARVALHO, E.A. (Org.). Godelier: Antropologia. São Pau-
concreta. lo: Ática, 1981.p.169
¹ Graduada em Letras - Universidade da Região da Campanha (URCAMP). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras
– Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: arianeferre@hotmail.com
Sumário
the man (subject) in their natural and social reality, estudo, considerando o escopo de análise discursiva
consisting in a discourse community. On the act of a que leva o corpus.
enunciation, the ethos implies questions that take Quanto à organização das seções, apresentam-se
into account the recipient’s point of view in relation em primeiro momento, algumas breves considera-
to its utterer. It was found that by raising questions ções sobre o movimento literário Realismo/Natura-
concerning the behavior of some religious expres- lismo, tomando como referência Carlos Reis (2003).
sed in the corpus, the ethos is put into play, not to Fazer referência ao movimento literário é necessário
give a single “image” shaping up according to the na busca de compreender que esta representação li-
place where it is established discursively, conside- terária, empreendida pelo movimento, objetiva a va-
ring the speech condition of religion and the practi- lorizar observações dos costumes de seu tempo; por
ce of members of the oldest institution in the world, conseguinte, reporta-se aos planos constitutivos do
the Catholic Church. discurso; em seguida tomam-se as noções de ceno-
Keywords: Speech. Religion. Global semantics. Ethos. grafia e ethos; por fim algumas considerações acerca
do corpus, bem como a análise sob a luz do recorte
teórico de Maingueneau (2008a, 2008b). 140
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
REALISMO-NATURALISMO:
No proposto artigo, foi abarcada a temática MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA DE UMA
amparada nos estudos discursivos e enunciativos SOCIEDADE EM TRANSFORMAÇÃO
do teórico francês Dominique Maingueneau sobre
a dimensão discursiva voltada às extensões da se- Por ser considerado um país atrasado, e por não
mântica global, que oferecem um percurso teórico integrar-se às transformações industriais, Portugal,
metodológico, possibilitando verificar a constitui- nos meados do século XIX, encontra-se em retro-
ção da cenografia e do ethos discursivo. cesso, diferentemente do restante da Europa. Em
O objetivo aqui é mostrar um estudo relativo decorrência disto, o país, ainda ancorado naquela
à análise discursiva a partir dos pressupostos da circunstância, estava em condições declinantes em
Análise do Discurso Francesa, que, por meio dos es- razão da perda colonial. Conforme pontua Moisés
tudos dos postulados de Maingueneau, se faz esse (1994), era possível se ter uma mutação cultural, na
recorte teórico. Como corpus, uma obra Realista, O qual eram buscadas informações em centros mais
crime do Padre Amaro, para abrir possibilidades de desenvolvidos da Europa e trazidas para o meio aca-
Sumário
dêmico, sendo transformadas em temas para discus- Com o Romantismo, essa relação é de confronto
sões nos círculos dos jovens estudantes. e de superação, tanto no plano ideológico-dou-
trinário como, obviamente, no das práticas li-
Partindo de um ponto de vista intelectual, este terárias; com o Naturalismo, essa relação é de
século foi o mais produtivo no que diz respeito à convergência parcial, uma vez que o Realismo
literatura e história. Foi marcado também pelo li- funda e consolida procedimentos técnico-literá-
beralismo, mas, com tal liberdade, surge a própria rios depois reajustados e ideologicamente refi-
nados, em contexto e com propósito Naturalista.
contestação do sistema econômico-social, reivin- (REIS, 2003, p. 436).
dicando uma real democratização. Em decorrência
desses fatos, a produção literária cresce vertigino- Conforme Reis (2003), o Naturalismo insere-
samente na época. O homem cotidiano passou a -se neste quadro cientificista e determinista; como
buscar informações, consome jornais, revistas, ro- plano primeiro as experiências humanas calcadas
mances, transformando-se em um sujeito crítico, como produtos de leis naturais, englobando o con-
que passou a ver seus problemas representados nas texto histórico e características hereditárias. O autor
produções literárias. ainda retoma sobre tais aspectos num plano social.
O Realismo surge então, nesse momento, como Em uma carta destinada a Rodrigues de Freitas2, Eça 141
manifestação artística de uma sociedade em trans- de Queirós faz referências às concepções que o Re-
formação, focalizando o homem e as mazelas de alismo, enfatizando justamente que o movimento
uma sociedade que se ancora nos pressupostos so- literário estava destinado a ter na sociedade e nos
ciológicos, calcando a preocupação em retratar a costumes uma influência profunda:
vida como ela é, na busca das causas determinantes
da realidade social. Segundo Reis (2003), o Realismo Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições
em que ele é mau, por persistir em se educar se-
concentra-se em obervar a realidade, constituindo gundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia
assim um suporte metodológico de uma crítica so- quase a dizer a caricatura do velho mundo bur-
cial de convicções reformistas num quadro ideoló- guês, sentimental, devoto, católico, explorador,
gico. Este movimento tem procedência francesa, a aristocrático, etc.; e apontando-o ao escárnio, à
gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e
qual possui estreito vínculo com o Romantismo e democrático – preparar a sua ruína. (QUEIRÓS
Naturalismo: apud REIS, 2003, p. 437).
² Carta de 30 de Março de 1878, a respeito da obra O Primo Bazílio (REIS, 2003, p. 437).
Sumário
O Realismo passou a significar uma série de damento discursivo, um lugar onde o enunciado, ou
surgimento de novos temas na produção literária, até mesmo a enunciação, em sua especificidade, se
cultivando, coforme acentua Reis (2003, p.439), de- condensaria de maneira única e exclusiva.
monstrações gritantes da dificuldade que o escritor Os planos constitutivos do discurso, de acor-
realista experimenta quando se propõe a olhar e a do com Maingueneau (2008a), estão ancorados nas
descrever a realidade de forma efetiva e objetiva. possibilidades semânticas e na multiplicidade das
Tais escolhas vêm ao encontro a temas dominantes, dimensões discursivas:
resultando em episódios da vida doméstica, familiar,
Não constitui de forma alguma um modelo gené-
cultural; se expandido a questões mais profundas, rico em virtude do qual o enunciador escolheria
como o adultério, degradação do sentimento amoro- previamente um tema, [...] depois um vocabu-
so, ambição, corrupção, declínio moral religioso, en- lário [...] a própria lista desses planos conside-
fim, temas que certamente se decorrem daquela rea- rados não é objeto de uma elaboração teórica
suficiente para pretender definir um modelo de
lidade que Eça de Queirós propunha em suas cartas. textualidade. Sua única finalidade é ilustrar a va-
Ao considerar o contexto literário ao qual cor- riedade das dimensões abarcadas pela perspecti-
responde o corpus, pontua-se a seguir sobre os pos- va de uma semântica global [...]. (MAINGUENE- 142
tulados de Dominique Maingueneau (2008a, 2008b) AU, 2008a, p. 77).
acerca das questões de semântica global, cenografia
e ethos. Conforme tais pontuações do autor sobre os
planos constitutivos do discurso, serão aclarado, os
OS PLANOS CONSTITUTIVOS DO sete planos de Dominique Maingueneau (2008a),
DISCURSO: POR UMA SEMÂNTICA GLOBAL com propósito de uma nova abordagem ao estudo
sob a perspectiva discursiva. Como reflexos de lin-
Trabalhar com a semântica global é trabalhar guagem, os sete planos constituem-se em: a inter-
com o texto em uma visão global, não mais naquele textualidade, o vocabulário, os temas, o estatuto do
restrito numa frase, mas visando um sentido situado enunciador e do destinatário, a dêixis enunciativa, o
ao longo do texto. Mainguenau (2008a, p.22), confere modo de enunciação e o modo de coesão. Pondera-
isso a uma libertação de uma problemática do signo, -se cada plano a seguir.
ou mesmo da sentença, para apreender o dinamismo A intertextualidade pressupõe ao campo discur-
da significância que domina toda a discursividade. O sivo em que outros textos estão presentes no dizer
teórico recusa a ideia de que há, no interior do fun- de cada sujeito, no campo religioso, por exemplo,
trás ênfase sobre alguma ótica, a um marco social
Sumário
que irá remeter a características mostradas ou cons- plano discursivo a dêixis enunciativa, que determi-
titutivas. Maingueneau (2008a, p.78) pontua a inter- na a instância de enunciação legítima, demarcan-
textualidade em dois níveis: intertextualidade inter- do a cena e cronologia que o discurso constrói para
na, que remete ao trabalho da memória discursiva possibilitar sua própria enunciação.
e intertextualidade externa, que um discurso define A maneira de dizer, em um discurso tem haver
certa relação com outros campos citáveis ou não. com o modo de enunciação. Maingueneau (2008,
O vocabulário propõe que haja explorações p.92-93) alude que o modo de enunciação respeita
semânticas contraditórias que, para Maingueneu as mesmas restrições semânticas que regem o con-
(2008a, p. 80), a palavra em si mesma não constitui teúdo de um discurso, pois este conteúdo toma “cor-
uma unidade de análise pertinente, os enunciadores po” (corpo textual) graças ao modo de se enunciar
serão levados a utilizar, escolher, aqueles vocábulos que operam, por meio do enunciador, uma constru-
que marcam sua posição no campo discursivo. ção de “tom” (ênfase, maneira específica de se enun-
Em um discurso o tema é um delimitador do ciar), caráter (figura, características do enunciador)
que se pretende propor, aquilo de que o discurso e corporalidade ( a maneira de habitar seu corpo de
irá abordar. Conforme Maingueneau (2008a, p. 83) enunciador). 143
um tema desenvolvido por um só discurso estará Ao modo de coesão, Maingueneau (2008a), re-
logicamente em estrita conformidade com ele; os mete este plano à maneira pela qual um discurso
temas que não são impostos pelo campo discursivo, se constrói e se encadeia, conferindo a uma deter-
podem estar ausentes de um discurso, mas aqueles minada formação discursiva. O teórico afirma que
que são impostos podem estar presentes de manei- cada FD arquiteta seu discurso de modo condizente
ras muito variadas. a seu sistema global se sentidos.
Visto que os diversos modos de subjetividade É, portanto, nesses sentidos globais que o dis-
enunciativa são dependentes de uma competência curso vai se mostrando, deixando transparecer-se
discursiva, pontua Maingueneau (2008a, p.87) sobre por meio de pistas que efetivará e possibilitará a
o plano do estatuto do enunciador e do destinatário, uma análise e que viabiliza apreender as singulari-
que confere que cada discurso determina o estatuto dades do uso da linguagem, da atividade enunciati-
que o enunciador deve se atribuir e que deve atri- va/discursiva. Para tanto, segue na próxima seção
buir a seu destinatário para validar seu dizer. teórica as noções de cenografia e ethos.
Para localizar tempo e espaço em um ato de
enunciação, Maingueneau (2008a, p.89) compõe no
Sumário
natários irão confiar, produzindo, então, uma boa nas “Cenas da Vida Portuguesa”. É necessário
imagem deste que os fala, conferindo-lhe autorida- acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental,
o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo
de no discurso proferido. supersticioso - e, com todo respeito pelas insti-
Posto tais considerações sobre os estudos teóri- tuições de origem eterna, destruir as falsas in-
co-metodológicos do autor francês, encerra-se esta terpretações e falsas realizações que lhe dá uma
seção teórica que refletiu sobre esses recortes nas sociedade podre. Não lhe parece você que um tal
trabalho é justo? [...]. (QUEIRÓS, 2008, p. 312).
teorias a fim de contribuir para a análise deste tra-
balho. Segue na próxima seção, algumas considera- Eça de Queirós procura realizar uma denúncia
ções acerca do corpus em análise. sobre aqueles que julga fazerem parte de uma socie-
dade “podre”, era então criticar para corrigir. Neste
CRIME DO PADRE AMARO, UMA OBRA seu discurso, o autor já propõe uma cena que legi-
ICONOCLASTA tima seu dizer: e, com todo respeito pelas instituições
de origem eterna, destruir as falsas interpretações e
Uma obra curiosa, de caráter iconoclasta3 e so- falsas realizações que lhe dá uma sociedade podre.
cialmente desconstruidora de valores e morais éti- Não lhe parece você que um tal trabalho é justo? 146
cas de seu tempo (assim como outras obras de assi- Nesse recorte, Queirós, em carta para Teófilo
natura de Eça de Queirós)4, O Crime do Padre Amaro Braga ao escrever uma de suas grandes obras (O
rompe com os ideais e princípios da organização re- primo Basílio), também de cunho social/imoral, de-
ligiosa explicitada no corpus. signa não só a Teófilo, como a também a seus outros
[...] A minha ambição seria pintar a sociedade destinatários (leitores), sua pretensão a uma crítica
portuguesa tal qual a fez o Constitucionalismo direta a uma sociedade sem escrúpulos e à pequena
desde 1830 e mostrar-lhe, como num espelho que burguesia da província, desenhando largas críticas
triste país eles formam - eles e elas. É o meu fim da vida daquela gente.
³ Iconoclasta, pois esta referência é feita para “um destruidor de imagens religiosas”, como assim foi a obra O crime do Padre
Amaro, o primeiro livro em língua portuguesa a encarar de frente o problema do sexo; além de adultério, na sua banalidade quo-
tidiana, evidente muito aquém do crime fradesco da quebra do celibato [...] provocando horror a instituição religiosa [...] aspec-
tos marcantes da vida religiosa da província em contraste com a pobreza que campeava as aldeias[...]. (MOOG, 1977, p. 217-218).
⁴ José Maria Eça de Queirós tornou-se um dos maiores escritores em Língua Portuguesa, uma espécie de divisor de águas lin-
guístico entre a tradição e a modernidade. Com a publicação da versão definitiva de O Crime do Padre Amaro, inicia-se uma
importante carreira e passa a escrever em coerência com ideias aceitas, obras de combate às instituições vigentes e reforma
social. (MOOG, 1977, p. 21).
Sumário
DAS MARCAS DISCURSIVAS: ANÁLISE DO imagem, para determinada cultura e também ideo-
CORPUS logia5 de dada época.
Observa-se que o comportamento dos religio-
Visto que o vocabulário é um repertório lin- sos integrantes do clero, expresso no corpus, deveria
guístico em que o sujeito faz suas escolhas para ser exemplo para aqueles que seguem esta mesma
constituir seu dizer, seu discurso, sua obra, as cris- ideologia, pois é assim que o dito sistema se conser-
talizações de palavras, que fazem sentido, denotam va e compreende. Conforme Maingueneau (2015),
o peso de cada uma em um discurso. Quando o es- o enunciador, membro de uma comunidade discur-
critor se utiliza dos vocábulos sociedade podre, A siva, aqui representada pela religião, o catolicismo,
minha ambição, que triste país eles formam - eles e dirigi-se aos seus destinatários definindo seu estatu-
elas, por mais que cada um tenha sua significação, to, para legitimar seu dizer, em sua atividade discur-
farão sentido em um contexto. Então, quando se siva, nos sermões, enfim. Porém, os atos e práticas
tem a intenção de escrever algo, como Eça de Quei- de padre Amaro e de outros padres colidem com os
rós teve e anunciou isto, impôs e determinou seus princípios, discursos e ensinamentos do catolicismo,
propósitos em mais diversos contextos: familiar, po- bem como os Dogmas, Mandamentos, Leis e Docu- 147
lítico, religioso, sendo o último o intento de análise mentos que regem um ideal, um estatuto, uma ver-
neste artigo. dade única, que institui o certo e o errado para quem
Dessa forma, tal plano permitiu constatar que o os segue. Mesmo assim, em suas vidas, na prática, os
escritor faz uso de um vocabulário de afrontamento, membros religiosos, representados no corpus, con-
imoral, que não condizia com a condição do quadro trariam todo o discurso conservador da Igreja:
social pintado naquele século. Eça de Queirós faz
E se me vem agora com coisas de moral, isso fa-
uso de um repertório que faz sentido, mesmo um z-me rir. A moral é para a escola e o sermão.
vocabulário que visa construir ou desconstruir uma Cá na vida faço isto, o senhor aquilo e os outros
⁵ Pontuar a questão ideológica não é o objetivo neste artigo, apesar desta se fazer presente neste decorrer. O que é de suma
importância é ponderar que esta questão recebe um destaque na literatura, mais especificamente, nas produções literárias de
cunho Realista/Naturalista como no corpus aqui apresentado. Observa-se uma época marcada pela valorização da liberdade
e denuncia à sociedade, abordada intimamente a questão sexual no meio religioso, sendo esta a prática que rompe com os
princípios da Igreja Católica. São muitos os teóricos que abarcam essa questão de ideologia, visto que este ponto é inerente ao
discurso. A ideologia se faz presente em todos os tipos de discursos, com o objetivo de “relevar” as práticas de um determinado
grupo social. Possui razões muito determinadas para seguir e se conservar, é uma certa maneira de produção de ideias pela
sociedade ou por formas históricas e relações sociais.
Sumário
o que podem. O padre-mestre que já tem idade Por conseguinte, se observa que na própria
agarra-se com a velha, eu arranjo-me com a pe- enunciação de padre Amaro existe um discurso
quena. É triste, mas que quer? É a natureza que
manda. Somos homens. E como sacerdotes, para adversário, distintamente. No ato enunciativo de
a honra da classe, o que temos é fazer costas. Amaro, tem-se uma situação discursiva instável,
(QUEIRÓS, 1982, p.195). ora se é um padre dedicado à vida devota e a todos
os princípios cristãos, ora se é o “homem do mun-
O estatuto do enunciador e do destinatário alu- do” atrelado a todas as vicissitudes da vida terrena,
de que uma fala não é livre, segue-se um estatuto, se sujeitado a pecar, a cair nas paixões que vida fora
faz parte dessa comunidade discursiva, deve entrar da castidade oferece. Tudo isso em torno de uma
em questão o que e como deve ser dito, respeitando, temática, coexistindo no mesmo campo discursivo.
como já dito, tal estatuto. O que acontece, de fato, é que cada discurso da per-
Mas o que se tem nesse fragmento, é uma situa- sonagem será moldado conforme cada destinatário,
ção discursiva contraditória, que entra em questão a com cada espaço enunciativo, com cada parceiro de
subjetividade do “eu”, em que padre Amaro dialoga comunicação.
com o cônego Dias, justificando suas atitudes, di- A adequação do sujeito às práticas e formações
zendo que o padre-mestre não tem moral para ques- 148
discursivas, tem haver com os modos de coesão. É
tionar seu comportamento. neste plano que se inclui a maneira pela qual um
Visto que o tema faz alusão àquilo de que um discurso se constrói e se encadeia. Quando se diz
discurso trata, o que se tem, nesse caso é um tema que o pároco é representante de Deus na terra, com-
de cunho religioso, ao mesmo tempo desmoraliza- preende-se que ele é veículo, o porta-voz da palavra
dor. A trama em si, do corpus, gira em torno da te- do Senhor, pois trata de um discurso de autoria sa-
mática da religião, do catolicismo, porém esta noção bida, mas não estabelecida, uma vez que o discurso
basilar que opera tais questões religiosas se perde é construído como uma verdade não sua, mas sim
nesse percurso discursivo. Maingueneau (2008a) de Deus. Maingueneau (2008a, p.96) salienta que “a
reflete sobre essa contradição: dois discursos em consciência dos sujeitos aparece como uma cena na
conflito, mas que falem da mesma coisa. O teórico qual vêm inscreverem-se ideias produzidas alhures,
pondera que as restrições semânticas obram temas mais do que como uma instância dotada de um di-
de maneiras divergentes, e que é nessa divergência namismo próprio”.
que cada grupo discursivo se integra e é aceito por Ao consolidar a dêixis enunciativa a esta análi-
ambas as partes. se, pondera-se a seguinte passagem: “Cá na minha
Sumário
vida eu faço isto, o senhor aquilo...” ficam evidentes deste discurso, as circunstâncias em eu foi produzi-
as marcas discursivas que instituem e delimitam a do. O suporte confere ao romance, um texto literário.
cena a partir desses dizeres; o “Cá” marca este es- A cenografia é, conforme Maingueneau (2008a)
paço numa compreensão de que o que foi instituído “a cena de fala que o discurso pressupõe para poder
pela Igreja não tem valor na vida particular de cada ser enunciado”. As pistas que o texto deixa, eviden-
um, mesmo se tratando de padres. ciados na obra, recobrem a representatividade dos
Registra-se, nesse tipo de discurso, o religioso, religiosos, o que torna a cenografia agente impor-
uma forte marca persuasiva, isto é, busca-se conven- tante para a compreensão desse recorte, que, por
cer por meio da palavra, de argumentos dominado- sua vez, deve validar através de sua própria enun-
res. Tais argumentos inserem-se no plano de modos ciação. Qualquer discurso, por seu próprio desen-
de enunciação, ou seja, a maneira de dizer. O modo volvimento, pretende instituir a situação de enun-
de enunciação da instituição religiosa é autoritária ciação que o torna pertinente. “A cenografia, não
e irredutível. Segundo Maingueneau (2008a, p. 91), é imposta pelo gênero, ela é construída pelo texto”
o discurso produz um espaço onde se desdobra uma (AMOSSY, 2013, p.75). Uma carta de amor, fazendo
voz que lhe é própria. O autor salienta ainda sobre apologia ao sexo, desejo e afeição pode ser enun- 149
a questão do tom, a ênfase que se dá de maneira es- ciado, como no corpus, é evidente perceber, por um
pecífica ao dizer. E este tom incorpora o dizer e o padre, no caso em que Pe. Amaro se dirige à Amélia
adere, dando assim, credibilidade ao seu discurso. por meio de cartas:
[...] tinha-lhe dado uma noite, à mesa do quino,
A CONSTITUIÇÃO DO ETHOS: A um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a
REPRESENTAÇÃO RELIGIOSA EM tinta azul; — Desejo encontrá-la só, porque tenho
OPOSIÇÃO A SUA PRÁTICA muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconve-
niente? Deus proteja o nosso afeto [...]. Deve ter
compreendido que lhe voto um fervente afeto, e
As cenas enunciativas que compõem a ação dis- pela sua parte me parece, (se não me enganam
cursiva expressa no corpus, partem de uma cena en- esses olhos que são os faróis da minha vida, e
globante que confere ao tipo de discurso, um discur- como a estrela do navegante) que também tu, mi-
so religioso, que tende a efeitos retóricos, técnicas nha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto
te adora; [...] eu anseio por te exprimir todo o
argumentativas de persuasão, de sedução. A cena ge- fogo que me abrasa. (QUEIRÓS, 1982, p. 91-92).
nérica também corresponde ao suporte e finalidades
Sumário
Maingueneau (2015, p. 123) postula, citando sua própria posição social, a religiosa. Um ethos tal
carta de Pascal6, que é possível um afastamento da ou qual o destinatário constrói cujo peso respectivo
cena genérica efetiva de um texto, um texto que varia de acordo com os gêneros do discurso, obede-
de fato repousa sobre uma cenografia original. Um cendo a suas marcas.
homem religioso que escreve cartas em tom irôni- Porém, Pe. Amaro e outros padres levam uma
co, no caso de Amaro em tom amoroso, remetido vida mundana, individualista, plena de atos viciosos
à sexualidade. Segundo o teórico, a escolha desta e imorais, pensam em si mesmos. O cônego Dias,
cenografia é plena de sentido, esteja o enunciador por exemplo, só se preocupava com suas terras, em
consciente ou não disso. Portanto, Amaro modifica manter o conforto e os privilégios conseguidos gra-
o próprio estatuto, por sua própria enunciação. ças à sua posição, objetivos muito contrários aos en-
O corpus desencadeia uma cenografia plena de sinamentos sacerdotais que duramente atingida nas
sentido, propositalmente, a fim de levar, por meio figuras de Amaro e Dias, principalmente. Constrói-
de sua enunciação, uma leitura mais atenta da ma- -se aí um ethos amoral resultante de ações que de-
terialidade do corpus. Ao tomar como análise a re- sempenham um “desconstruir” do ethos moral que
presentatividade dos clérigos, em especial o Pe. a Igreja produz. Segundo Amossy (2013), o ethos se 150
Amaro, observa-se que a personagem se apropria modifica conforme as necessidades da causa. Pode,
de um processo discursivo, que joga com palavras ao mesmo tempo, ser o detentor da verdade, prega-
e imagens simbólicas que compõe preceitos estere- dor de moral e bons costumes, como também ser o
otipados calcados numa cultura dogmática com o pecador, manipulador e avesso à vida religiosa.
objetivo de causar implicações de sentido. A representação, a construção do ethos, irá se
O ethos que emerge desta cenografia antecipa moldar de acordo com a cena enunciativa, ou seja,
que a personagem de Amaro confere a um jovem ancorado no modo de enunciação. Padre Amaro e
padre ético, que prima pela religião e que segue com outros clérigos revelam claramente que não creem
afinco os propósitos do catolicismo. O que confe- nos Sacramentos da Igreja. Tal fato é evidente em
re, assim, a um ethos prévio ou pré-discursivo que um diálogo com o cônego Dias durante o almoço
pressupõe a ideia que o coenunciador constrói ou já percebe-se como o padre Natário revela sua falta de
preestabeleceu sobre o enunciador, observáveis em fé no que se refere ao Sacramento da confissão, se-
⁶ Em 23 de janeiro de 1656, Pascal escreve a primeira carta de suas “cartas a um provincial de seus amigos”, primeiro texto de
uma série conhecida pelo nome Provinciais. Nesta carta, Pascal informa a um amigo sobre pesquisa que realizou acerca do con-
flito em curso sobre jansenistas e a Sorbonne. (MAINGUENEAU, 2015, p.123).
Sumário
gundo o qual, a confissão sacramental dos pecados que não esquece sua posição como padre, não se
está prescrita por direito divino e é necessária para desprendendo da imagem que representa na socie-
a salvação da alma. Para isso, basta indicar a culpa dade religiosa:
da consciência, apenas aos sacerdotes, mediante a
Ameliazinha do meu coração, [...] era pela mui-
confissão secreta: ta necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as
minhas intenções eram puras, e na inocência
Pois o senhor toma a confissão a sério? [...] O
desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita
senhor, por exemplo, que acaba de almoçar, que
o pecado [...] tu apertaste a mão [...] até na cele-
comeu o seu pão torrado, tomou o seu café, fu-
bração da missa estou sempre com o pensar em
mou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no
ti [...] Se tu soubesses como eu te quero, querida
confessionário, às vezes preocupado com negó-
Ameliazinha, que até às vezes me parece que te
cios de família ou com faltas de dinheiro, ou com
podia comer aos bocadinhos! [...] Pois eu anseio
dores de cabeça, ou com dores de barriga, ima-
por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem
gina o senhor que está ali como um Deus para
como falar-te de coisas importantes, e sentir na
absolver? [...]. (QUEIRÓS, 1982, p.66).
minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo
caminho do amor, até aos êxtases duma felici-
Dentre algumas ponderações sobre a questão dade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a 151
de ethos, Maingueneau (2008b), citando A. Auchlin, oferta do coração do teu amante e pai espiritual,
pontua que nessa concepção há zonas de variação, Amaro. (QUEIRÓS, 1982, p.93).
dentre elas pode-se citar a percepção de um ethos
mais ou menos fixo; que exista em determinado gru- Padre Amaro vivia nesta formação incerta de
po social, que seja estável e respeite certas conven- identidade. Se fosse considerado que ethos é um com-
ções, que é o caso de um ethos construído, fixo que portamento que articulado para provocar no destina-
adentra na religião, por meio de postulados conven- tário efeitos que não decorrem apenas das palavras,
cionais. O que se pondera nessa passagem do corpus seria assim uma questão também de como se porta o
é um exemplo de que tais convenções fixas estão enunciador diante os seus coenunciadores.
sujeitas a serem desconstruídas, neste jogo discursi- Por fim, padre Amaro acaba por constituir um
vo, por meio de práticas sociais que desconstruirão ethos que escapa aos estereótipos que configuram
a imagem discursiva de autoritária e dogmática. o orador digno de fé, casto, cristão, conservador,
Amaro, em carta à Amélia, faz mescla de ideias concludente ao sistema religioso, um paradigma já
contraditórias ao se enunciar, pondo em jogo o seu consagrado no domínio deste tipo de enunciação. O
ethos, demonstrando seu amor ao mesmo tempo em que se sobressai é um ethos de um homem fraco que
cede aos desejos carnais, que rompe com os pro-
Sumário
pósitos das escolhas que fez, rompe com o modelo discursivo se molda aos modos de enunciação e ao
estereotipado de bom homem, de bom sacerdote. público que quer atingir. Assim como o autor Eça de
Por conseguinte, Amaro, neste conturbado de- Queirós, no caso “eu” enunciador responsável pela
sencontro discursivo, em busca daquilo que nem ele encenação, em um processo assimétrico, fez suas
mesmo saberia onde procurar, fosse na vida mundana encolhas a fim de atingir um público específico, di-
ou religiosa, deixando, muitas vezes, a constituição recionando em já citada carta, o seu propósito na
de seu ethos ficar a cargo de sua própria consciência, composição desta obra.
no sentido em que seus conflitos internos eram efei- Desse modo, da análise resultam hipóteses,
tos de seu comportamento, resultando em uma re- possibilidades de sentidos e significações; planos
presentação modulada e contraditória a todo tempo. constitutivos do discurso que permitem um estudo
dos elementos discursivos que vão se inferindo no
CONSIDERAÇÕES FINAIS universo discursivo.
E neste arcabouço teórico, calcado no estudo
O texto é visto não como um reflexo de uma “novo” de Maingueneau, conclui-se este artigo, de-
realidade concreta, mas como base simbólica sobre monstrando que estudos discursivos visam pensar 152
a qual se constroem significados a partir de marcas outros modos de apreensão do discurso. Sobre a
textuais que podem ser relacionadas a determinados questão de ethos, esse é o resultado de uma cena
discursos, levando em consideração as condições de e cenografia discursivas que possibilitam uma rela-
produção que abrangem desde a cena enunciativa ção interdiscursiva da imagem de si e constituição
até as determinações discursivas mais amplas, num desta representação por meio do destinatário num
sentido global. percurso que legitimam o lugar, dando consistência
Por conseguinte, trabalhar com a noção de à cena.
ethos no campo discursivo religioso, no qual já são Por fim, é na dimensão de uma semântica global
sacramentados alguns propósitos e ideologias, co- é que se abrem as possibilidades de se tomar o dis-
põe um quadro de especificidades de uma identida- curso num domínio global, isto é, situar no tempo,
de em acordo com uma dada comunidade discursi- no espaço, nos modos de se enunciar, em fim, as prá-
va. Estes desvios de comportamentos dos religiosos, ticas do homem, procurando apreender as singulari-
ancorados no corpus, fazem menção de como o ethos dades do uso da linguagem, da atividade discursiva.
Sumário
REFERÊNCIAS
¹ Mestra em Teologia/Religião e Educação. Doutoranda em Teologia/Religião e Educação na Faculdades EST. Bolsista CAPES.
Orientadora Profª Dr. Laude Brandenburg. beatrizalicedesouza@yahoo.com
² Mestra em Teologia/Religião e Educação. Doutoranda em Teologia/Religião e Educação na Faculdades EST. Orientador Prof.
Dr. Valério Schaper. eccbarcellos@hotmail.com
Sumário
digenous culture. The dynamics involved exposing âmbito de todo o currículo escolar” (BRASIL, 2008,
images of: customs, beliefs of Brazilian Indian tri- Art.26-A §2º). Cabe salientar que, principalmente,
bes, an overview of the distribution of these tribes em comunidades onde haja descendentes indígenas
in the early sixteenth century compared to today, dentre o público que frequenta a escola, trabalhar
Trunk Language, Linguistics Family, words deri- aspectos da cultura e da história indígena, vai além
ved from the indigenous language, eating habits de uma questão de obrigatoriedade legal, torna-se
and some empirical knowledge of physics. After uma questão de inclusão social. Entretanto, a maio-
the workshop, it was noticed that there was an em- ria docente não percebe-se capaz de desenvolver
powerment among Kaingang descendants, as well as uma abordagem interdisciplinar em relação a esses
a greater acceptance of other colleagues with them. conteúdos, pois, não vislumbram as conexões possí-
Moreover, it could be observed that the workshop veis entre eles e as áreas do conhecimento.
contributed to the development of effective citizen O presente trabalho propõe uma abordagem in-
education, the students could feel they are part of terdisciplinar que envolve o tema em questão. Con-
the scholl community. A participant research, based siste em uma oficina desenvolvida em uma Escola Es-
on the concepts of Paulo Freire, Rubem Alves and tadual, com as turmas do Ensino Médio Politécnico, 155
Urie Bronfenbrenner. situada na periferia de Porto Alegre. As educadoras
Keywords: Social Inclusion. Indigenous Culture. de Língua Portuguesa/Literatura e Física, nos perío-
Interdisciplinarity. dos de Seminário Integrado, propuseram-se a abor-
dar alguns aspectos da história e da cultura indíge-
na, visto que na escola havia descendentes da tribo
CONSIDERAÇÕES INICIAIS Kaingang, que pareciam deslocados no espaço esco-
lar. Nesse sentido, a proposta oportuniza a inclusão
A obrigatoriedade de retratar a cultura indíge- social e o desenvolvimento de pertença discente.
na e sua história nas escolas brasileiras, ao longo
da Educação Básica, apontada pela Lei de Nº 11.645 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
de 2008 (BRASIL, 2008, Art.26-A), representa um
desafio para a maioria de educadores e de educa- Segundo Programa Ensino Médio Inovador:
doras. Não se trata de incluir no calendário escolar Documento Orientador (2009, p.9) prevê como uma
uma data para celebrar o Dia do índio, a Lei estabe- das ações do projeto político-pedagógico:
lece que os conteúdos devem ser trabalhados “no
Sumário
Fomentar o comportamento ético, como ponto nhecimento pelos educandos e pelas educandas.
de partida para o reconhecimento dos deveres Por outro lado, para discentes da EJA, essa relação
e direitos da cidadania; praticando um huma-
nismo contemporâneo, pelo reconhecimento, constitui base fundamental da contextualização,
respeito e acolhimento da identidade do outro e uma vez que a maioria discente se encontra inseri-
pela incorporação da solidariedade. da no mercado de trabalho. Dessa forma, para esses
educandos e educandas, as possíveis conexões com
Entender e respeitar o outro e a outra em suas seus cotidianos estimulam o desenvolvimento da
particularidades em uma sociedade plural é buscar pertença, muitas vezes fundamental para mantê-los
promover relações mais humanas e justas. Por isso, e mantê-las na escola, uma vez que grande parte, há
é necessário entender “que existem princípios e va- muitos anos, está afastada dos estudos.
lores em cada povo ou sociedade, os quais orientam A escola é o espaço para construir conhecimen-
e definem as formas e modos próprios de ser, de vi- to, mas também espaço propício para estimular o
ver e estar em relação com o mundo.” (PALAZUE- desenvolvimento de comportamentos pró-sociais.
LOS, BALLIVIAN, 2013, p.137). Os temas transversais, os quais acolhem diferentes
Além disso, o modelo de ensino taylorista, que temáticas, nem sempre são vistos como oportunida-
fragmenta as diferentes áreas do conhecimento, 156
de para o trabalho interdisciplinar. Os educadores e
não mais se adequa às necessidades sociais da mo- as educadoras, muitas vezes, permanecem restritos a
dernidade. sua disciplina, o que os impedem de contextualizar e
Conforme previsto na Resolução 04/2010: relacionar os conteúdos. Em mundo onde a violência
O Ensino Médio deve ter uma base unitária so- acontece, diariamente, faz-se necessário a reflexão,
bre a qual podem se assentar possibilidades di- no intuito de minimizar a intolerância, “bem como
versas como preparação geral para o trabalho desenvolver a consciência de uma prática que te-
ou, facultativamente, para profissões técnicas; nha como objetivo a formação da cidadania”(SILVA,
na ciência e na tecnologia, como iniciação cien-
tífica e tecnológica; na cultura, como ampliação 2012, p.55).Observa-se também, que atitudes de into-
da formação cultural. lerância acabam por prejudicar os estudos daqueles
e daquelas que sentem excluídos. Por isso, cabe aos
Dessa forma, relacionar os conteúdos abor- educadores e educadoras perceber essas situações e
dados em sala de aula, nos diversos componentes se comprometam “com valores que reforçam a cida-
curriculares, com o mundo do trabalho, de manei- dania e a solidariedade”(SILVA, 2012, p. 30).
ra interdisciplinar, possibilita a apropriação do co-
Sumário
Ao se pensar em uma prática pedagógica inte- ma e macrossistema, nos quais a pessoa em desen-
gradora, deve-se levar em conta também, a integra- volvimento, através de processos proximais, forma
ção social dos discentes, pois a educação não deve sua identidade e se desenvolve.
se restringir ao espaço escolar, mas sim integrada
com a sociedade. Aos educadores e educadoras cabe
perceber as exigências que o espaço laboral assim o
faz e de suas relações. Desta forma, a educação ser-
ve a uma transformação social, segundo Paulo Frei-
re (1996, p. 84) “Educação não transforma o mundo.
Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o
mundo.” Parte-se da ideia que ao educar estimule
a reflexão crítica dos educandos e das educandas,
na qual constitui-se na postura de sujeito, aquele e
aquela que intervém e compõe a realidade.
Um dos grandes desafios da sociedade atual en- 157
contra-se na inclusão. A diversidade está presente
nas salas de aula e cabe ao educador e à educadora
pensar em atividades que promovam essa inclusão, Figura 1 - Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner
pois, Fonte: BRONFENBRENNER, 1996
A única maneira de formar pessoas capazes de As relações com a família, com amigos, na es-
transformar a sociedade, é através de uma for- cola, são categorizadas como pertencentes aos mi-
mação interdisciplinar, que desenvolve a capa-
cidade de perceber, de avaliar criticamente, de
crossistemas, enquanto que, as relações com a vizi-
propor soluções e de agir propositivamente fren- nhança, o bairro, a cidade, compõem os chamados
te aos problemas sociais. (SOUZA, 2016, p.56). mesossistemas. Quanto mais sólidas as relações
interpessoais e das pessoas com o meio, melhor a
Na perspectiva da bioecologia do desenvolvi- pessoa se desenvolve. Além disso, assim como a
mento humano, Urie Bronfenbrenner destaca as in- pessoa influencia o meio, sofre a influência deste.
ter-relações entre a pessoa e o meio ambiente no Essa inter-relação constitui-se basilar na formação
qual ela se insere. Subdivide essas relações em qua- do indivíduo, pois moldará seu caráter e fortalecerá
tro sistemas: microssistema, mesossistema, exossiste- sua identidade. Para o autor, “[...] a pessoa em de-
Sumário
senvolvimento não é considerada meramente como a ver... [...] A educação se divide em duas partes:
uma tábua rasa sobre a qual o meio ambiente provo- Educação das Habilidades e Educação das Sensibi-
ca seu impacto, mas como uma entidade em cresci- lidades. Sem a Educação das Sensibilidades, todas
mento, dinâmica, que progressivamente penetra no as habilidades são tolas e sem sentido.” as educado-
meio em que reside e o reestrutura [...]” (BRON- ras se sensibilizaram com o grupo de descendentes
FENBRENNER, 1996, p.18). Dessa forma, cabe à indígenas que parecia não se sentir acolhido pelos
escola, principalmente à pessoa docente, pensar na demais colegas. Resolvem, então, desenvolver uma
formação cidadã, que abrange buscar ações afirma- atividade que contemple e valorize essas pessoas e
tivas que promovam a inclusão da diversidade. seus conhecimentos prévios. Muitos são os desafios
que surgem ao desenvolver uma atividade interdis-
INTERDISCIPLINARIDADE E INCLUSÃO: ciplinar, entretanto, ao se ter o olhar voltado para
POSSIBILIDADES E DESAFIOS os interesses e às necessidades dos educandos e das
educandas, eles se tornam motivadores e surgem
Com a inserção do componente curricular de como possibilidades, apesar das dificuldades.
Seminário Integrado no Ensino Médio Politécnico, A formação acadêmica das licenciaturas em ge- 158
abre-se a possibilidade de trabalhar interdisciplinar- ral, não incentiva o trabalho interdisciplinar, pelo
mente os conteúdos das diferentes áreas do conhe- contrário, prioriza a fragmentação dos conhecimen-
cimento. No início do ano de 2011, as educadoras de tos. Por isso, torna-se extremamente complexo para
Língua Portuguesa e de Física, foram agraciadas a educadores e para educadoras pensar e executar
ministrar esse componente curricular. Frente a esse interdisciplinarmente. Além disso, existem as difi-
desafio, buscaram elaborar oficinas interdisciplina- culdades burocráticas a serem enfrentadas, pois o
res, entre elas aquela que chamaram de Cultura In- sistema educacional brasileiro fraciona a carga ho-
dígena. A presente oficina, tem por intuito o resgate rária dos componentes curriculares em períodos a
da identidade indígena muitas vezes perdida por serem cumpridos. Possibilitar a execução de oficinas
incidências culturais, processo conhecido por in- nas escolas, requer o apoio da gestão escolar, uma
culturação. Dessa forma, não se pretende analisar o vez que a carga horária de oitocentas horas letivas
cotidiano das comunidades indígenas atuais, que já por ano, previstas pela legislação, não deixa de ser
sofreram esse processo. cumprida. Nesse caso, apenas o enfoque passa a ser
Inspiradas nas palavras de Rubem Alves (2003, diferenciado, sem desrespeitar ou desvalorizar os
p. 56), “A primeira tarefa da Educação é ensinar componentes curriculares previstos para aquele dia
Sumário
letivo. Cabe ao corpo docente dedicar-se ao planeja- indígenas no Brasil, na época do descobrimento, em
mento coletivo das atividades, em reuniões pedagó- comparação com os dias atuais; apresentar a real
gicas disponibilizadas pela gestão, supervisionadas constituição da Língua Indígena e suas ramificações
pela coordenação pedagógica, a fim de organizar o linguísticas; refletir sobre as contribuições do voca-
tempo e os conteúdos contemplados em cada ofici- bulário indígena na formação da Língua Portugue-
na de maneira interdisciplinar. Sem dúvida, ativi- sa; identificar aspectos culturais e religiosos carac-
dades interdisciplinares requerem trabalho árduo e terísticos das tribos indígenas.
o comprometimento da equipe docente, pois, para Inicialmente, as educadoras convidaram as tur-
que as oficinas ocorram de maneira satisfatória, tor- mas a, juntas, deslocarem-se para o pavilhão, sala
na-se necessário o engajamento de várias pessoas. multiuso, onde expuseram aos educandos e às edu-
Um dos maiores desafios, talvez o maior, en- candas o porquê da oficina em destaque. Questio-
contrado pelas educadoras foi a falta de apoio dos naram se eles e elas sabiam da existência de uma
colegas e das colegas do corpo docente, justamente comunidade indígena nas proximidades da escola
por possuírem uma visão fragmentada do conhe- e se alguém já a havia visitado. Alguns discentes
cimento e não estarem dispostos a se envolverem sabiam da existência, mas nunca tinham entrado 159
na operacionalização das atividades. Essa situação, na comunidade. As educadoras expuseram, então,
inclusive, muitas vezes, gerou conflitos. Entretanto, que esse seria o tema da oficina: a cultura indígena
as educadoras abraçaram o desafio em prol dos edu- e teria por objetivo refletir sobre as inter-relações
candos e das educandas. entre a nossa comunidade e aquela nossa vizinha,
os Kaingang. Importante salientar que as turmas fo-
CULTURA INDÍGENA: A PRÁTICA ram surpreendidas pelo o fato de termos agregado
os primeiros e os segundos anos em uma mesma
A oficina foi realizada em cinco períodos con- oficina, entretanto, mostraram-se receptivas à ativi-
secutivos, com as turmas do Ensino Médio - regu- dade, demonstraram interesse, curiosidade e dispo-
lar e da EJA. No turno da tarde, participaram duas sição a participar.
turmas de 1º ano e uma turma de 2º ano do curso Percebe-se, aqui, a comprovação de que, quan-
regular, já no turno da noite, foram contempladas do se utiliza uma metodologia diferenciada, como a
as turmas da EJA, uma de 1º ano e uma de 2º ano do interdisciplinar, observa-se um retorno positivo das
Ensino Médio. A proposta tem por objetivos: des- turmas, uma vez que se desperta a curiosidade, fer-
crever um panorama geral da distribuição das tribos ramenta motivadora à aprendizagem. Em uma en-
Sumário
sonagens, nesse caso, um indígena da tribo Tupi, a dos hábitos alimentares sobre a saúde. A reflexão
qual representa a tribo que originalmente se esta- comparativa entre os hábitos indígenas e os nossos
beleceu no Brasil e foi capaz de se manter. A es- atuais, considerando desde o cultivo até o preparo,
colha do poema torna-se interessante, pois relata a impactou o grupo. Outro ponto de destaque foi a
disseminação da tribo e, anteriormente, a turma foi subdivisão do trabalho entre homens e mulheres,
apresentada a mapas que descreviam, também, uma que, entre os indígenas, não desqualifica ninguém:
disseminação dos indígenas, agora, pelo homem as mulheres cuidam do preparo da alimentação e das
branco. A priori, esse conteúdo faz parte da matriz crianças, enquanto os homens se dedicam à caça e
curricular do 2º ano do Ensino médio, entretanto, à pesca. Por outro lado, em nossa sociedade, os afa-
por estar inserido em uma proposta interdisciplinar, zeres domésticos e os cuidados com as crianças, não
pode, perfeitamente, ser abordado com turmas de 1º são considerados trabalho, o que coloca a mulher
ano, sem prejuízo de entendimento. em situação de desvantagem social. Entra-se, aqui,
Os tipos de habitações indígenas também foram nas polêmicas questões feministas, que buscam a
retratados: maloca, tapera, oca, taba e opy. Nesse equidade de gêneros. Esse discurso proporciona o
momento, se instiga a reflexão sobre as diferentes empoderamento das adolescentes da escola que, 161
maneiras de convívio em sociedade, diferenças e muitas vezes, são submetidas a cuidar dos irmãos e
semelhanças entre os indígenas e o homem bran- irmãs menores, dos afazeres domésticos e se veem
co. Questões sobre desenvolvimento sustentável, obrigadas a abandonar os estudos.
consumismo como resultado do sistema capitalista, A relação dos indígenas com a natureza, de ex-
relações familiares e valores, têm espaço. Ao anali- tremo respeito, evidencia um vínculo religioso. Sua
sar as habitações indígenas, puderam ser introduzi- identidade é construída com base nessas relações e
dos conceitos de Física, Química e Matemática, tais sua religiosidade traduz esse respeito. Para o indí-
como: correntes de convecção, condução/isolamen- gena, cada animal está relacionado a um espírito da
to térmico, propagação/reflexão da luz, materiais natureza, por isso os representam em seu artesana-
condutores/isolantes, combustão, geometria espa- to. A partir dessa discussão, as educadoras contex-
cial, Teorema de Pitágoras, entre outros. tualizaram o tema fazendo menção ao Brique da Re-
Os hábitos alimentares dos povos indígenas fo- denção, onde é possível observar tal artesanato em
ram citados, assim como sua maneira peculiar de confecção. Na sociedade indígena, a figura do pajé
trabalhar a farinha. Nesse momento, possibilita-se representa a liderança espiritual e aquele que detém
falar das questões referentes à saúde: a influência o poder de cura. O ritual da pajelança foi apresenta-
Sumário
164
Sumário
Resumo: Realizamos primeira aproximação empí- Abstract: We incur a first empirical approach to
rica ao objeto de estudo Empreendedorismo Cria- object of study Creative Entrepreneurhip. It is our
tivo. Nos interessa conhecer o uso que empreen- interest knowing the uses creative entrepreneurs
dedores criativos fazem de novas tecnologias na make of new Technologies in the production and
produção e consumo de conteúdo online. Aborda- consumption of online content. We consider the 165
mos as seguintes questões de pesquisa: a) quem são following issues: a) Who are the creative entrepre-
os empreendedores criativos ativos participantes neurs who actively participate in the group; and b)
do grupo estudado; e b) quais as plataformas onli- which online platforms these entrepreneurs use. As
ne utilizadas pelos empreendedores. Como campo fieldsite we use a closed Facebook group connec-
de estudo tomamos grupo fechado do Facebook li- ted to an entrepreneurship education online course.
gado a curso online de formação de empreendedo- Also, we establish field limits to identify the parti-
res. Também, estabelecemos limites de campo para cipant entrepreneur as creative. For that purpose,
identificar o empreendedor participante como cria- we define concepts of creative industries, entrepre-
tivo. Para tanto, definimos conceitos de indústria neurship and creative entrepreneurship. It is an ex-
criativa, empreendedorismo e empreendedorismo ploratory study of empirical approach, to identify
criativo. Trata-se de estudo exploratório de aproxi- participants, gather and analise data, and present
mação empírica, para identificação dos participan- results. We have found fourteen entrepreneurs who
meet the basic criteria, and who are possible future namos o grupo “Empreenda sua paixão – grupão”.
subjects. Also, we believe there to be a need for fu- Formado pelas alunas do curso online “Empreenda
ture studies on creativity, innovation and creative sua Paixão”, realizado pelo “Negócio de Mulher”, o
entrepreneurship in order to deepen the study. grupo se reúne em página de grupo fechado do Fa-
Keywords: Creative entrepreneurship. Creative in- cebook. É limite, também, a existência de um em-
dustries. Facebook. preendimento ativo, bem como sua inserção na in-
dústria criativa.
Acreditamos que o presente trabalho se justifica
CONSIDERAÇÕES INICIAIS pelo crescimento da indústria criativa (DCMS, 2008;
BENDASSOLI et al, 2009; HANSON, 2012); a cres-
Realizamos primeira aproximação empírica ao cente atuação do empreendedorismo na economia
objeto de estudo Empreendedorismo Criativo. Ex- nacional (SEBRAE, 2014); e a necessidade de com-
ploramos o modo como empreendedores atuantes preensão das características intrínsecas aos empre-
na indústria criativa fazem uso das novas tecnolo- endimentos criativos (DCMS, 2008). Também, por
gias em sua forma de produção. Particularmente, ser o uso intensivo de novas tecnologias uma das 166
como esses atores valem-se de ambientes virtuais - características da forma de produção da indústria
sites, blogs, e-commerces e redes sociais - para criar criativa (BENDASSOLI et al, 2009).
e manter seus empreendimentos.
Buscamos uma primeira aproximação ao grupo REFERENCIAL TEÓRICO
estudado, a fim de esclarecer entendimentos iniciais
e generalizações rasas que possam dificultar estu- Para a correta seleção dos atores do grupo ob-
dos futuros. Abordamos as seguintes questões de servado como participantes da pesquisa é necessária
pesquisa: a) Quem são os empreendedores criati- a definição do termo empreendedorismo criativo.
vos ativos participando do grupo selecionado como Por ser a bibliografia sobre o assunto escassa, cre-
campo de pesquisa? b) Quais as plataformas online mos necessário definir, primeiramente, os conceitos
utilizadas pelos empreendedores e suas marcas? geradores. Assim, nos preocupamos primeiramente
Quanto à metodologia, optamos pela observa- com os conceitos de indústria criativa e empreende-
ção silenciosa (RECUERO et al, 2015). Definimos os dorismo para, a partir deles, entendermos o empre-
passos metodológicos em função das questões de endedorismo criativo.
pesquisa propostas. Como limite de campo, determi-
Sumário
BIGIN, 2010). Também se pode dizer da economia em termos de liderança, com o objetivo de criação
criativa que é um conceito “baseado em ativos cria- e captura de valor” (IDEM, p.75). Seus resultados
tivos com o potencial de criar crescimento econô- afetam todos os participantes, não apenas os pro-
mico e desenvolvimento, sendo capaz de estimular prietários do empreendimento. Ainda, dizem que a
a geração de renda e empregos, enquanto promove a essência do processo está na “criação e/ou reconhe-
inclusão social, a diversidade cultural e o desenvol- cimento de oportunidades, seguidos da disposição e
vimento humano” (HANSON, 2012, p.224). Existem da iniciativa para aproveitar essas oportunidades”
produtores que, apesar de pertencerem à economia (IBIDEM). Os autores mencionam, também, a ne-
criativa, não se encaixam na indústria criativa. cessidade - e disposição - de correr riscos por parte
Resumindo, a indústria criativa apresenta qua- do empreendedor.
tro componentes: ter a criatividade como elemento Dornelas et al (2010) apontam as três caracterís-
central; ter valor atribuído pelo consumidor; gerar ticas básicas que definem o espírito empreendedor
propriedade intelectual transformada em valor eco- como: a necessidade de realização, a disposição para
nômico; e utilizar TICs em sua forma de produção. assumir riscos, e a autoconfiança. Segundo Birley &
Também, sua forma de produção se encaixa no mo- Muzyca (2010), empreendedores têm em comum a 168
delo proposto: a criatividade como recurso-chave “capacidade empreendedora”. Esta, de acordo com
da produção, os contornos específicos de produtos os autores,
gerados, e a forma particular de consumo.
denota o processo e as atividades realizadas por
empreendedores [...] indivíduos que organizam,
Empreendedorismo operam e assumem os riscos associados com um
empreendimento que criaram, visando à con-
O termo empreendedorismo é associado à cria- cretização de uma oportunidade que eles e ou-
tros identificaram. O processo empreendedor é
ção de empresas focadas na inovação, sendo este o dirigido à realização do valor associado com as
principal diferencial. Existem diversas definições oportunidades de negócios (BIRLEY & MUZY-
para o termo, apresentando algumas divergências CA, 2001, p.XIII).
entre elas. Procuramos, aqui, delimitar o empreen-
dedorismo no que cabe ao campo estudado. Esse processo, segundo eles, envolve a iden-
Para Dornelas et al (2010), o empreendedorismo tificação de oportunidades e a agregação de valor,
é uma maneira de agir a partir de uma oportunidade tanto no setor público, quanto no privado e nas
específica, com “abordagem holística e equilibrada grandes organizações. Ainda de acordo com os au-
Sumário
Baseado nos conceitos estudados acima, po- Como campo de pesquisa, utilizamos o grupo
demos definir empreendedorismo criativo como a “Empreenda sua Paixão - Grupão”, no Facebook.
criação de empresas baseadas na inovação atuan- Observamos seus participantes e estabelecemos
tes na indústria criativa. Sua principal preocupação quais, dentre eles, são empreendedores atuantes -
está na geração e exploração de capital intelectual, primeiro limite do campo. A seguir, analisamos as
estando seu investimento primário no talento - seu informações disponíveis sobre o empreendimento,
ou de outros. para categorizar - ou não - o empreendimento como
criativo - segundo limite do campo.
Procedimentos metodológicos A entrada no campo se deu de maneira orgâni-
ca, por havermos participado da primeira turma do
Optamos por realizar observação silenciosa curso “Empreenda sua Paixão”. Nos posicionamos
(RECUERO et al, 2015) do campo de pesquisa pro- como pesquisador insider, porém - no momento -
posto. Sendo o objetivo do presente estudo primei- silencioso (FRAGOSO et al, 2011), por propormos
ra aproximação empírica ao campo de pesquisa, os apenas a observação do grupo.
passos metodológicos são limitados aos relevantes No que compete a protocolos éticos, partimos 170
para tal objetivo. Como passos metodológicos, de- do princípio de que não existe expectativa de pri-
finimos: vacidade no conteúdo acessado e, por não se tratar
estritamente de pesquisa com seres humanos - não
1. identificação dos participantes com empre- existindo interação ou intervenção por parte do
endimentos ativos; pesquisador -, o consentimento se faz desnecessá-
2. coleta de dados referentes ao empreendi- rio (KOZINETS, 2014). Optamos pela camuflagem
mento; mínima, como colocada pelo autor, por o conteúdo
3. análise de dados para classificação do em- não apresentar possibilidade de danos.
preendimento como criativo ou não; A pesquisa não aborda perfis pessoais, não
4. apresentação dos resultados. apresenta riscos aos participantes - empresas -, por
serem seus blogs e perfis SNS públicos. Em caso de
Com os passos metodológicos definidos, passa- interações por terceiros, apesar de estas serem pú-
mos à delimitação do campo de pesquisa. Partimos blicas, optamos por proteger suas identidades. Iden-
de um grupo no qual já estamos inseridos, portanto tificamos apenas a empresa, utilizando informações
há familiaridade e a entrada já foi realizada. públicas, acessíveis por métodos de busca abertos.
Sumário
Os participantes são identificados de acordo com conquistas das alunas do curso Empreenda Sua Pai-
dados feitos públicos em seus blogs e perfis SNS, xão <http://www.empreendasuapaixao.com.br/>,
visando a garantia de seus direitos autorais. Tam- desenvolvido pela Negócio de Mulher <http://nego-
bém, foi tomado cuidado de não difamar, invadir a ciodemulher.com.br/>.
privacidade e/ ou prejudicar indivíduos ou marcas, O propósito da Negócio de Mulher é “inspirar
ou agir de forma negligente. e ajudar mulheres a transformar sonhos em realida-
Quanto ao estudo inicial no grupo “Empreenda de, paixões em negócios”. Descrevem o curso Em-
sua paixão”, o pesquisador participa do mesmo des- preenda Sua Paixão como
de sua concepção. Mesmo assim, a pesquisa foi apre-
O curso online para empreendedoras com men-
sentada aos administradores do grupo, e obtivemos tes inquietas: uma experiência de transformação,
permissão. Também, apresentamos a pesquisa para passo a passo para se reconectar com suas pai-
o grupo, obtivemos consentimento para a veiculação xões e habilidades e criar um negócio e vida que
da mesma, acatando quaisquer objeções individuais. você ame. Descubra um meio de trabalhar com o
que ama; transforme seus talentos em produtos
O uso do Facebook serve apenas para identi- e conquiste mais liberdade (FACEBOOK, 2015).
ficar os participantes, não sendo utilizado conteú- 171
do proprietário da empresa. Contamos aqui com o Além do curso, oferecem e-books, cursos téc-
princípio de uso justo do conteúdo, por se tratar de nicos, um blog com dicas sobre empreendedorismo,
pesquisa acadêmica, sendo a coleta de dados reali- e uma newsletter semanal. Assim como a empresa
zada manualmente. O mesmo vale para todo conte- desenvolvedora, o curso - e o grupo - têm como pú-
údo acessado, independente da plataforma. blico alvo mulheres empreendedoras.
O grupo “Empreenda sua paixão - grupão” é
Observações e análise formado por alunas de todas as turmas do curso
“Empreenda Sua Paixão” - até dez.2015, foram rea-
O campo da atual pesquisa está limitado aos par- lizadas cinco edições. O grupo possui, até dez.2015,
ticipantes do grupo no Facebook Empreenda sua pai- 159 membros. Destes, apenas parte interage com o
xão - grupão <https://www.facebook.com/groups/ grupo ou mantém seu perfil pessoal público - sendo
1596348240648847/>. O grupo é descrito como possível constatar se estão atuando como empreen-
“Grupo exclusivo para alunas e ex-alunas do cur- dedores.
so online Empreenda Sua Paixão”. Propõe ser um Portanto, o campo de estudo está delimitado
espaço para dividir experiências, aprendizados e pelos seguintes fatores:
Sumário
diferindo.com - blog
Diferindo Pri Batsoá diferindo diferindo Diferindo diferindo
elo7.com.br/diferindo - e-commerce
Dream Coaching Juliana Nunes dreamcoaching.com.br – blog Dreamcoa-chingjn jusouzanunes --- dream_coaching
Maria Lua Astrologia Maria Aguiar Marialuaastrolo-gia.com.br/ - blog marialuanova marialuanova --- ---
173
outromun
Outro Mundo Possível Coletivo outromundopossivel.com/ - blog outromundopossivel omundopossivel ---
dopossivel
Primeira à Esquerda Luh Testoni primeiraesquerda.com/ - blog primeiraesquerda luhtestoni Luhtestoni luhtestoni
Rockndazs Digital * Ana Paula Araujo rockndazs.com.br – blog rockndazsdigital rockndazs Rockndazs rockndazs
Sementinha de Gente Milena Luisa sementinhadegente.com.br - blog BlogsementinhadeGente SementinhaSG Sementinha sementinhadegente
Te alugo por uma hora * Ana Paula Araujo tealugoporumahora.com/ - blog tealugoporumahora --- --- tealugo
Toda-Moca-Tem-
Toda Moça Tem + Valcicleide todamocatem.com.br/ - blog --- --- todamocatem
628820740550773
No terceiro momento, categorizamos o empreendimento como criativo ou não. Para tanto, comparamos
os dados com os parâmetros colocados para atuação na indústria criativa. Consideramos as características:
Tem a criatividade como elemento central - criação de conteúdo de consumo online (informação) ou offline
(produtos); Tem valor atribuído pelo consumidor; Gera propriedade intelectual; Utiliza novas tecnologias,
especialmente redes sociais. Descrevemos os resultados na Tabela 3.
Diferindo
Dream Coaching
Primeira à Esquerda
Rockndazs Digital *
Sementinha de Gente
Você Rica
178
Sumário
¹ Especialista em Gestão de Instituições de Ensino, mestranda em Letras pela UniRitter. Email: brunahelenarr@yahoo.com
² Especialista em Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa, mestranda em Letras pela UniRitter. Email: fgruendling@hotmail.com
Sumário
sed on language beliefs and attitudes. This contribu- nos (RAJAGOPALAN, 2007, p. 195-196). Tal ideia de
tes to the weakening of a job class which requires a pureza está invariavelmente associada à nativida-
university degree. de do falante, caracterizando uma pessoa que tenha
Keywords: Linguistic Beliefs. Linguistic Attitudes. nascido e se criado em um dos países do inner circle
Nativity. English Teacher. (KACHRU, 1985) como native speaker.
Se levarmos em consideração o ensino de In-
glês, a crença de que o nativo é melhor ainda está
INTRODUÇÃO arraigada na mente do público que procura por au-
las de Inglês e nas escolas que oferecem tais cursos,
Vivemos em uma sociedade da era digital onde promovendo essa superioridade por meio de comer-
pessoas do mundo inteiro interagem, compartilham ciais que anunciam aulas com professores nativos, 24
informações e fazem negócios. A internet aproxima horas por dia, por exemplo. No entanto, o ensino de
populações em diversos campos do conhecimento, idiomas não é de tão fácil definição e, na concepção
o que possibilita que pesquisadores brasileiros di- de Firth e Wagner, conceitos de aquisição de segun-
vulguem seus achados para todos os continentes e da língua: 180
também aprendam sobre avanços e estudos publi-
(...) são aplicados e entendidos de maneira muito
cados pelo mundo. Toda essa troca acontece quase simplificada, levando, entre outras coisas, a um
que exclusivamente em Língua Inglesa e a influên- pensamento analítico que eleva um idealizado fa-
cia linguística e cultural dos povos sobre ela faz com lante ‘nativo’ para uma posição acima do esterio-
a ideia de pureza do idioma Inglês não se sustente. tipado ‘não-nativo’, à medida que vê este como
comunicador defeituoso, limitado por uma com-
No entanto, ao longo de vários anos muitos defen- petência comunicativa sub-desenvolvida (FIR-
deram a ideia da Língua Inglesa sem uma influência TH; WAGNER, 2007, p. 757-758, tradução nossa).3
externa de outras línguas e culturas, como Perren
(1956) demonstrando perplexidade e vendo com Diante desse cenário, este artigo tem como ob-
temor o tipo de Inglês que os professores do oeste jetivo fazer um levantamento de crenças e atitudes
da África falavam, por se afastar do Inglês padrão linguísticas existentes no recrutamento de profes-
e que, consequentemente, ensinavam aos seus alu- sores de Inglês, levando em consideração questões
3
Do original: “(...) they are applied and understood in an oversimplified manner, leading, among other things, to an analytic
mindset that elevates an idealized “native” speaker above a stereotypicalized “nonnative,” while viewing the latter as a defective
communicator, limited by an underdeveloped communicative competence”.
Sumário
de natividade e identidade linguística apresentadas por Kanavillil Rajagopalan e Vivian Cook. Para isso, foi
consultado o Site Nacional de Empregos (SINE), disponível na internet. Criado em 2000, o site se intitula
um serviço de utilidade pública, atuando como um classificado online para vagas de emprego brasileiras. Foi
desenvolvido pelo BNE - Banco Nacional de Empregos, e busca promover a integração entre empregador e
trabalhador, de forma gratuita. No site do SINE, é possível buscar vagas de emprego para diferentes funções,
filtrando as vagas por cidade. Para a função de professor de Inglês, na cidade de Porto Alegre, por exemplo,
estavam disponíveis 41 vagas na data do acesso ao site. Para a função de professor de Inglês, na cidade de
São Leopoldo, estavam disponíveis seis vagas. Desta forma, foram selecionados esses seis anúncios para ob-
jeto de análise deste estudo, compondo uma amostra de conveniência, pois é um corpus adequado à análise
em um trabalho de curta extensão como um artigo.
As instituições que recorreram ao SINE para anunciar suas vagas redigiram pequenos textos para ex- 181
plicitar o tipo de profissional que buscavam para atuar na sua empresa. Essas descrições estão permeadas
de atitudes linguísticas baseadas em crenças que ainda circundam o mercado de ensino de línguas. Na vaga
2654492 (FIGURA 1), o professor precisa “possuir certificado para dar curso”. Um certificado não é necessa-
riamente um diploma de graduação, portanto não fica claro se o recrutador procura um professor licenciado
em Letras, um professor com certificação de órgãos Internacionais como Cambridge, ou qualquer outro
tipo de atestado que o classifique dentro dos padrões do Common European Framework of Reference - CEFR
(COUNCIL OF EUROPE, 2009), por exemplo.
Na vaga 2320995 (FIGURA 2), uma escola de educação infantil solicita um professor que tenha Inglês
fluente de nível avançado. Ao contrário da vaga anterior, não está especificada a titulação acadêmica neces-
sária a esse profissional. A legislação prevê que os professores da educação infantil precisam ter no mínimo
formação em magistério ou curso graduação para atuar em sala de aula.
É relevante mencionar também que a questão salarial é colocada como sujeita a combinações entre o
empregado e o empregador. No entanto, existem leis trabalhistas e convenções coletivas que determinam os
pisos salariais da categoria. Pelo princípio legal da isonomia salarial, Lei no 1.723, de 8 de novembro de 1952,
que modifica o artigo 461 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), um trabalhador que inicie o seu con-
trato de trabalho em uma empresa não pode receber salário maior do que o último trabalhador contratado
para a mesma função. Portanto, a questão salarial não está aberta a negociações, existem parâmetros que
a norteiam. No entanto, muitos trabalhadores ainda se sujeitam a condições de trabalho contrárias às dis-
postas em lei por necessidades financeiras e razões pessoais das mais diversas. Esse tipo de comportamento
acaba desvalorizando a categoria profissional.
182
Nas vagas 1943701 (FIGURA 3) e 1856581 (FIGURA 4), sugere-se a necessidade de contratação de um
professor que atue em diversos segmentos de mercado, pois estão recrutando um profissional que ministre
aulas para diversos níveis e faixas etárias. É comum que professores, assim como outros profissionais, tenham
maior identificação com nichos de atuação que podem ser determinado por um nível de ensino ou uma faixa
etária específica. Um escopo de trabalho que compreende diversos níveis e faixas etárias provavelmente irá
Sumário
exigir desse profissional um grande tempo de prepa- anúncios de vagas para professores de Inglês na re-
ração de aula e elaboração de materiais, bem como alidade rio-grandense parecem não seguir essas re-
constante atualização pedagógica. Sendo assim, fica comendações: as vagas apresentam distinção entre
o questionamento: será que a empresa irá fornecer nativos e não-nativos e não descrevem padrões de
os subsídios que esse professor necessita? proficiência linguística iguais para ambos.
A associação de Teachers of English to Speake- É possível verificar que para essa empresa é
rs of Other Languages, Inc. (TESOL) emitiu em duas imprescindível que o professor seja fluente ou na-
ocasiões declarações repudiando a discriminação tivo. O termo “ou” sugere que os conceitos “fluen-
contra os professores não-nativos, incentivando te” e “nativo” seriam equivalentes: ser nativo é ser
o trabalho “na direção de criar e publicar padrões fluente, e que o não-nativo precisa ser fluente para
de proficiência de linguagem mínimos que possam concorrer igualmente com um nativo e poder lecio-
ser aplicados igualmente a todos os professores de nar a língua. Um não-nativo pode ter mais trabalho
inglês sem referência à natividade do seu inglês” para provar a sua fluência, enquanto que o nativo
(TESOL, 1991, tradução nossa)4. A associação tam- já carrega consigo a crença de que é fluente na sua
bém afirma que “o uso dos rótulos ‘falante nativo’ língua materna. Nesse sentido, possivelmente ha- 183
e ‘falante não-nativo’ nos critérios de contratação verá discriminação entre nativos e não-nativos no
é enganador, à medida que essa rotulação minimi- processo seletivo. Seria interessante que os critérios
za a educação formal, especialidade linguística, ex- de avaliação dessa fluência fossem estabelecidos de
periência de ensino, e preparação profissional de forma clara, o que estaria de acordo com a política
professores” (TESOL, 2006, tradução nossa)5. Esses do TESOL.
princípios são certamente muito válidos, porém os
⁴ Texto original: “To work towards the creation and publication of minimal language proficiency standards that may be apply
equally to all ESOL teachers without reference to the nativeness of their English”. Disponível em: <http://www.tesol.org/docs/
pdf/5889.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2016.
⁵ Texto original: “The use of the label's ‘native speaker’ and ‘nonnative speaker’in hiring criteria is misleading as this labeling
minimizes the formal education, Linguistic expertise, teaching experience and professional preparation of teachers”. Disponível
em: http://www.tesol.org/docs/default-source/advocacy/position-statement-against-nnest-discrimination-march-2006.pdf?s-
fvrsn=2 Acesso em: 06 Ago 2016.
Sumário
Na vaga (FIGURA 4), a questão dos diversos níveis dentro do escopo de trabalho do professor também
aparece na descrição. O anúncio sugere que a empresa irá ocupar a carga horária integral para o professor, 184
tornando possível a inferência de que talvez seja uma espécie de regime de dedicação exclusiva, o que pode
ser considerado positivo, pois com o trânsito crescente nas regiões metropolitanas, não ter que se deslocar
entre dois empregos é um benefício. O item “remuneração diferenciada do mercado” sugere que a escola em
questão paga mais do que o piso salarial previsto, o que pode caracterizar uma valorização do profissional.
Com relação à natividade, Rajagopalan (1997) riações linguísticas mesmo entre falantes profissio-
afirma que a natividade é um mito. O autor entende nais da língua. Muitos falantes nativos também não
mito como um tipo de visão de mundo carregada de são fluentes na fala, citando o exemplo de Stephen
crenças, e não como algo sem sentido. Ele explicita Hawking e Helen Keller, que se comunicam por vias
que a linguística moderna tem o mito da natividade alternativas, ainda na visão do autor.
como um elemento de fundação de seus conceitos e Cook (1999) adverte que, ao ensinar uma L2, o
que toda essa contradição linguística acerca da na- professor precisa ter claro o fato de que para um su-
tividade acabou contribuindo para que muitos lin- jeito que já tem uma L1 em seu cérebro é inevitável
guistas pudessem perceber as fragilidades de suas que essa outra língua seja aprendida com base na
estimadas categorias de estudo. Sendo assim, L1. Dessa forma, o falante nativo monolíngue não
seria o sujeito mais adequado para ser um profes-
“não é difícil perceber porque os falantes nati-
vos – com todos os atributos sobre humanos que
sor de língua, pois ele conhece a sua língua, mas
a linguística teórica os concedeu – são espécies não conhece a língua do estudante com o qual está
impossíveis no mundo real. Os falantes nativos trabalhando, língua sobre a qual se baseará a cons-
idealizados pelos Gerativistas são, por sua pró- trução de novo conhecimento. Cook (1999) define
pria confissão, usuários ideais da língua, que co- 185
nhecem sua língua perfeitamente (RAJAGOPA-
o termo multicompetente para o sujeito que possui
LAN, 1997, p.229, tradução nossa).6 conhecimento de duas línguas, conseguindo tran-
sitar entre elas. Nesse sentido, a multicompetência
Na mesma linha de pensamento de Rajagopa- é, na visão do autor, o conhecimento total que um
lan (1997), Cook (1999) preconiza que os falantes indivíduo tem de mais de uma língua.
nativos não necessariamente estão cientes de seu Para Cook (1999), o que é indiscutível em ter-
conhecimento de uma maneira formal, da mesma mos de definição do falante nativo é o fato de que
forma que não conseguiriam explicar como se anda um indivíduo é o falante nativo da língua que apren-
de bicicleta. O autor classifica como questões dis- deu primeiro, as características que vão além dessa
cutíveis o fato de que muitos falantes nativos não estão atreladas ao uso que se faz da língua e não
têm consciência de como o seu discurso se difere deveriam compor o conceito.
da variante padrão da língua, o que explica as va-
⁶ Texto original: “it is not difficult to see why native speakers – with all the supra human attributes that the theoretical linguist
has bestowed upon them – are impossible species in the real world. The native speakers dreamed up by the Generativists are,
by their own confession, ideal language users, who know their language perfectly well”.
Sumário
A vaga tem na sua descrição “ser nativo ou No entanto, Cook (1999, p. 186) passa a desmis-
fluente na língua” como requisito para ser professor tificar tais conceitos, e entre algumas das ideias que
de Inglês nessa empresa. O termo “ou” passa a ideia o autor apresenta está no conhecimento que um fa-
de que os requisitos se equivalem, pois se um ou o lante tem entre as diferenças do seu discurso e o
outro for preenchido é possível concorrer à vaga. “padrão”. Vamos tomar como exemplo os falantes
Sendo assim, ser nativo significa ser fluente? Todo de português. Ora, um brasileiro que não tenha con-
nativo é fluente? O que é ser fluente? Um não-nati- cluído o ensino básico, ou então que não tenha tido
vo pode ser fluente? oportunidades de desenvolvimento profissional,
Cook (1999) apresenta uma lista de fatores que talvez não use o português padrão na sua comuni-
definem o que é ser um falante nativo, iniciando por cação. Poderíamos considerá-lo, então, um falante
características apresentadas por Stern (1983). O au- nativo de português? Ele não preencheria o “requi-
tor considera que um falante nativo possui: sito” apresentado acima em (h), porém poderia ter
sucesso em sua criatividade no uso da língua, como
(a) um conhecimento subconsciente das regras,
(b) um entendimento intuitivo de significados,
mostrado em (e). Ele poderia sentir-se parte de uma
(c) a habilidade de comunicar-se em situações comunidade de língua descrito em (f), porém saberia 186
sociais, (d) uma variedade de habilidades lin- ele traduzir e interpretar para sua L1, como vimos
guísticas, e (e) criatividade no uso da língua.” em (i)? Ou seja, seriam todas as características apre-
[...] O Encyclopedic Dictionary of Applied Lin-
guistics (Johnson & Johnson, 1998) acrescenta
sentadas por Cook necessárias para a definição de
(f) identificação com uma comunidade de lín- um native speaker? Se este for o caso, acreditamos
gua. Davies (1996) acrescenta (g) a habilidade que milhões de pessoas seriam “desqualificadas” de
de produzir discurso fluente, (h) conhecimento seu status de falantes nativos por não estarem “ade-
das diferenças entre sua própria fala e a forma
‘padrão’ da língua, e (i) a habilidade ‘de inter-
quados” a um ou mais requisitos.
pretar e traduzir para a L1 da qual ele ou ela é Cook (1999) sugere, então, que o status de fa-
uma falante nativo’ (p.154) (COOK, 1999, p. 186, lante nativo está no fato de ele falar a língua com
tradução nossa).7 a qual ele cresceu, distinguindo-se dos falantes de
⁷ Texto original: “(a) a subcouncious knowledge of rules, (b) an intuitive grasp of meanings, (c) the ability to communicate
within social settings, (d) a range of language skills, and (e) creativity of language use. The Encyclopedic Dictionary of Aplied
Linguistics (Johnson & Johnson, 1998) adds (f) identification with a language community. Davies (1996) adds (g) the ability to
produce fluent discourse, (h) knowledge of differences between their own speech and that of the “standard” form of the lan-
guage, and (i) the ability 'to interpert and translate into the L1 of which she or he is a native speaker' (p. 154)”
Sumário
inglês como L2 nesse sentido, pois esses aprendem a língua inglesa já tendo outro idioma como o seu “nati-
vo”. O autor menciona a distinção feita entre “usuário de L2” e “aprendiz de L2” (1999, p. 187), porém seria
possível identificar a linha de separação entre essas duas categorias, ou mesmo estabelecer uma linha de
separação? Qualquer língua é uma entidade viva, que se modifica diacrônica e sincronicamente, então afir-
mar que há uma separação clara entre essas duas fases seria, no mínimo, questionável. Cook (1999) propõe
que o aprendiz de L2, ao sair de sua sala de aula (presumindo-se que seu aprendizado venha de um contexto
formal), seria um usuário de L2, mas perguntamos: será que ele precisa sair da sala de aula para ser usuário?
Não está ele fazendo uso do idioma com seus colegas, muitas vezes pessoas de outros países, ao realizar as
atividades propostas?
Rajagopalan (2007) sugere que a ideia do nativo puro (e consequentemente do falante nativo puro) é
uma invenção do século XIX, considerando a língua como uma entidade tudo-ou-nada, mas que historica-
mente até mesmo na longínqua Grécia os gregos precisavam distinguir-se dos bárbaros para cunhar sua
própria identidade e acreditavam que a língua era uma classe de diferenciação.
187
Na vaga 1679512 (FIGURA 6), há uma especificidade com relação ao método que o candidato à vaga pre-
cisa conhecer para poder trabalhar na empresa. Delimitar a metodologia pode ser um fator de diminuição
da autonomia docente diante do processo de ensino-aprendizagem. O fato de a função do professor estar
descrita como de auxiliar alunos sugere que há uma crença de que o professor tem um papel pequeno no
processo de aprendizagem: auxiliar o aluno, não é necessariamente a função de um professor, mas, como o
próprio nome diz, de um auxiliar, que poderia ser um professor em formação, um estagiário, um secretário.
Sumário
A atitude linguística de intitular pessoa pode sugerir que a empresa realmente esteja procurando qualquer
pessoa e não um profissional qualificado.
Além disso, o método audiovisual, baseado em repetições, também pode contribuir para o mito da nati-
vidade, se esse for o ideal perseguido pelos modelos de exercício de escuta. Cook (1999) traz para a discussão
o uso do conteúdo produzido por native speakers no material utilizado em sala de aula. O autor explica que 188
os livros didáticos acabam apresentando uma “visão normativa idealizada do inglês” (COOK, 1999, p. 189) o
que é diferente do real inglês que os aprendizes/usuários de L2 encontrarão no mundo real, e isso inclui não
somente a distinção entre o coloquial e padrão, mas também questões de variação linguística abordadas por
Labov (2008) e Crystal (2003).
Ao mesmo tempo em que há essa normatização no ensino-aprendizado, Cook (1999) reitera que as ideias
de sucesso e fracasso estão associadas ao aprendizado de L2 levando-se em conta tal normatização, mas que
isso conduz à falácia comparativa (comparative fallacy) trazida por Bley-Vorman (1983), onde há a compara-
ção entre um aprendiz de L2 e o falante nativo (ou talvez o ideal de falante nativo). Cook traz o argumento
levantado por Labov (1969) em que “um grupo não deveria ser mensurado em relação à norma de outro
grupo”8 (1999, p. 194), o que leva a crer, ainda na visão do autor, que a produção de aprendizes/usuários de
L2 não deveria ser comparada a do falante nativo, e que as diferenças na comunicação de ambos os grupos
são exatamente isso: diferenças, e não déficits. No entanto, Cook expõe que, mesmo que os dois grupos não
devessem ser comparados, eles o são. Seguindo essa linha de raciocínio:
⁸ Texto original: : “one group should not be measured against the norm of another”.
Sumário
⁹ Texto original: “(...) teachers, researchers, and people in general have often taken for granted that L2 learners represent a
special case that can be properly judged by the standards of another group. Grammar that differs from native speakers',
pronunciation that betrays where L2 users come from, and vocabulary that differs from native usage are treated as signs
of L2 users' failure to become native speakers, not of their accomplishments in learning to use the L2. Just as it was
once claimed that women should speak like men to succeed in business, Black children should learn to speak like White
children, and working-class children should learn the elaborated language of the middle class, so L2 users are commonly
seen as failed native speakers”.
Sumário
na maioria das escolas, rompendo também com as CRYSTAL, David. English as a global language. Cambrid-
expectativas que os alunos têm baseadas em cren- ge: Cambridge University Press, 2003.
ças linguísticas. FIRTH, Alan; WAGNER, Johannes. On Discourse, Commu-
Os dados demonstram que determinadas atitu- nication, and (Some) Fundamental Concepts in SLA Resear-
des acabam por contribuir para o enfraquecimento ch. The Modern Language Journal, n. 91, Focus Issue, p.
da classe como profissão de nível superior, quando 757-772, 2007.
atitudes linguísticas de redigir pessoa e não profis-
KACHRU, Braj. Standards, codification, and sociolinguistic
sional no recrutamento são dadas como naturaliza- realism: The English language in the outer circle. In: Quirk,
das. Ações mais consistentes com relação ao forta- R.; Widdowson, H. (eds.). English in the World: Teaching
lecimento da categoria deveriam ser empreendidas and Learning the language and the literature. Cambridge:
pelas entidades sindicais e também pelas patronais, Cambridge University Press, 1985.
pois o sucesso das empresas também passa pela
LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo:
qualidade de seus recursos humanos. Parábola Editorial, 2008.
COOK, Vivian. Going Beyond the Native Speaker in RAJAGOPALAN, Kanavillil. Revisiting the nativity scene.
Language Teaching. TESOL Quarterly. v. 33, n. 2, p. 185- Studies in Language. v. 31, n. 1, p. 193-205, 2007.
204, summer 1999.
TESOL. A TESOL statement on non-native speakers of
COUNCIL OF EUROPE. Relating Language Examina- English and hiring practices. Outubro, 1991. Disponível
tions to the Common European Framework of Refe- em: <http://nnest.moussu.net/docs/TESOL_PositionState-
rence for Languages: Learning, Teaching, Assessment ment(1991).pdf>. Acesso em: 3 Ago 2016.
(CEFR). The revised version. 2009. Disponível em:<http://
www.coe.int/t/dg4/linguistic/Manuel1_EN.asp>. Acesso em: TESOL. Position statement against discrimination of
19 Ago 2015. nonnative speakers of English in the field of TESOL.
Março, 2006. Disponível em: <http://www.tesol.org/docs/
pdf/5889.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2016.
Sumário
expressivity, organized peculiarly by the poet along dos acadêmicos mais aprofundados, hoje restritos a
extensive superposition of elements or through syn- resenhas, prefácios de obras, notas raras em livros
thetized and antithetical constructions, counting de história da literatura, um caderno sobre o autor
with strong and expressive semantics and imagery. editado pelo IEL em 1988 e, enfim, uma biografia
Keywords: Imaginary. Poetry. Luiz de Miranda. com um estudo de Eduardo Jablonski, de 2010, pela
EDIPUCRS. Observo que não encontrei nenhum ar-
tigo sobre o escritor em revistas científicas ou em
Abstendo-se de qualquer apelo de ordem sub- anais de eventos acadêmicos, o que reflete a neces-
jetiva, é preciso considerar que Luiz de Miranda, se sidade de estudar a obra poética de Luiz de Miranda.
não é “o melhor poeta gaúcho em atividade” e um Ao tratar de Vozes do sul do mundo deve ob-
“dos melhores da história do Rio Grande do Sul”, servar-se a estreita relação entre a poesia de Luiz
como afirma Juremir Machado da Silva no prefácio de Miranda e sua figura pessoal. O poeta vive de
de Vozes do sul do mundo, é autor de uma poesia de poesia – no sentido financeiro, é seu ofício e ga-
notável e peculiar qualidade, sujeito com o estilo de nha-pão – e, é lícito dizer, vive poesia, de modo que
vida próprio de um poeta maldito à moda de Bau- ele é considerado um poeta maldito: a “maldição é 192
delaire em pleno pampa gaúcho. Com traduções e um estilo de vida, uma visão de mundo e um jei-
premiações internacionais, com a obra poética mais to de ser”, afirma Juremir Machado no prefácio do
extensa já publicada ao longo de mais de meio sécu- livro, “maldito é quem não se dobra ao cânone da
lo, Miranda tem impressionante respaldo de críticos mídia ou quem larga tudo para assinar na ficha do
e escritores renomados, como mostram os depoi- hotel: poeta”. Essa relação entre sujeito biológico
mentos expostos na edição de Vozes do sul do mun- e o eu lírico, ganha forte proximidade na poesia de
do, primeiro volume da coleção Luiz de Miranda Miranda, quando a poesia torna-se o ar que o poeta
editado pela editora universitária da PUCRS. Único exala em sua épica do pampa ao mar, passando por
gaúcho a concorrer o Nobel de Literatura, conside- registros da memoria pessoal e cultural, relação que
rado por Raul Bopp, em depoimento de 1978, uma talvez contribua para explicar a obra poética publi-
“contribuição definitiva para a literatura brasileira”, cada mais extensa do mundo.
e apontado pelo acadêmico Antônio Olinto como O mito pessoal que o poeta sustenta, o de viver
autor de uma obra de vanguarda igualada apenas poesia, leva-o a associar-se ao cancioneiro andari-
a Gonçalves Dias, “dois ápices da poesia de língua lho, o que confere com sua biografia. A poesia tor-
luso-brasileira”, a poesia de Miranda carece de estu- na-se meio de ponderar a realidade pelo prisma da
Sumário
imaginação, pelo qual o poeta vive e escreve, cabe interna, subjetiva: “Ouço o que não sei / nos ouvidos
observar os diversos poemas em que homenageia do vento, no férreo labor / de quem vai / ao fim do
pessoas com quem tem relação – ou não -, assim mundo. / Sigo essa profecia / que me deu a poesia, /
como ambientes distintos em que o eu-lírico situ- não altero esse caminho / de mesmo sozinho / desco-
a-se. Assumindo a figura do cancioneiro sem para- brir os segredos / que cobrem o horizonte.” (p. 237).
deiro, sempre em viagem do pampa ao mar, ocorre A figura do andarilho, neste caso associada ao
um processo entre a observação do espaço e as su- cancioneiro tradicional do universo gaúcho, é cen-
gestões da memória biográfica, quando acaba por tral no desenvolvimento da poética de Vozes do sul
ser um porta-voz do povo, da multidão, desenvol- do mundo e nos trabalhos mais recentes da epopeia
vidas pela subjetividade do poeta tal sugere o início mirandiana. No excerto mencionado, o andarilho
da obra: “O que aqui se alteia / são vozes da mi- é impulsionado pela própria poesia a “descobrir os
nha aldeia / que levam para o futuro, / passando segredos / que cobrem o horizonte”, sendo o andar
os muros da cidade, / o começo do território / que seu paradeiro, uma vez que é nele que o novo se des-
desenrola o mar / e uma cortina azul / o esplendor dobra, é a sina do poeta determinada pela arte. No
da vida, / aquarela do que sentimos, / vela ao sul do trajeto pampa-mar-fim do mundo, o qual vai ser dis- 193
mundo” (p. 9)2. cutido em outro momento do estudo, cabe uma sutil
Em Vozes do sul do mundo é possível organi- referência ao trem, quanto ao “férreo labor”, quando
zar de modo simplificado o universo imaginário “Ouço o que não sei / nos ouvidos do vento”, ima-
que norteia a obra, o universo pessoal do andarilho gem complexa que merece maior aprofundamento.
que confunde o eu lírico ao autor: “De onde venho, Para Octavio Paz, “o sentido da imagem é a pró-
/ nasci para andar / os caminhos do sem-fim.” (p. pria imagem”, sendo algo indizível e inexplicável se-
232). Mesmo que a poesia esteja associada deveras não por si mesma (1976, p. 49), momento em que
a aspectos vividos pelo eu biológico, a imaginação sua significação é puramente simbólica, uma vez
ganha espaço, contando com elementos simbólicos que é dotada de um movimento antitético de modo
constantes na obra, enriquecendo a épica com o uni- com que “nos faça aceder ao domínio da expressão,
verso imaginário, sendo a metalinguagem um elo para lá do domínio da comunicação” (DURAND,
de conexão entre o universo externo e a linguagem s/d, p. 74). Ainda, tratando-se de poesia, a sonori-
figurada própria das ressonâncias com a dimensão dade também tem parcela importante na percepção
² No caso de citações de poemas de Vozes do sul do mundo, será apresentado apenas o número da página.
Sumário
do leitor: no presente caso, ao tratar do vento, a re- O vento acompanha o poeta ao longo de sua
corrência do fonema [s] mimetiza o próprio som do epopeia, em mar ou em terra, é o ser mítico - tal-
vento, para o qual também contribui o [v]. Nesse vez resquício da herança indígena do Rio Grande do
caso, deve ser pontuado que o poeta ouve o que não Sul -, padrinho – ou seja, pai espiritual - e guia que
sabe, mas pelos ouvidos do vento, personificação protege e “inspira” o poeta: “Sou ouvinte do meu so-
que contribui para a abertura semântica da imagem nho, / habito o que não sei. Severo no que escrevo,
poética, quebra ainda mais o sentido, impossibili- / pois a linguagem / é minha raiz / e minha pátria.
tando qualquer tipo de apreensão racional: uma Dou ouvido ao vento, / e rumo por campos desco-
construção imaginária de forte potencial simbólico. nhecidos” (p. 56). Esse trecho retoma a ideia anali-
O vento é uma constante na obra, mencionado sada a alguns parágrafos, quando ouvia nos ouvidos
algumas vezes como padrinho ou pai do eu lírico; o do vento, a profecia que a poesia lhe tinha dado,
vento, tanto em terra como em mar, acompanha o aventurar-se no mistério do horizonte. O vento, a
viajante, é inconstante, livre e rebelde, o único ele- poesia e o sonho estão relacionados no imaginário
mento da natureza ao qual ainda a sociedade moder- do andarilho, impulsionando-o a seguir seu rumo,
na não conseguiu tachar alguma espécie de tributo. desbravar “campos desconhecidos”, quando habita 194
No entanto, como bem sugere a imagem constru- o que não sabe, a dimensão onírica, inconsciente,
ída por Miranda, “o vento é sinônimo do sopro e, um segundo sentido sobre as coisas, a dimensão
por conseguinte, do Espírito, do influxo espiritual simbólica de sua linguagem, sua pátria e raiz.
de origem celeste. Essa é a razão porque os Salmos, Comentei a referência ao trem como meio de
assim como o Corão, fazem dos ventos mensagei- transporte da viagem, algumas vezes presente na
ros divinos, equivalente aos Anjos” (CHEVALIER; obra, quando não diretamente, indiretamente, como
GHEERBRANT, 2009, p. 935). Tal referência de co- em menções a janelas que possibilitam ao viajan-
notação espiritual cabe à obra em análise, quando o te vislumbrar a paisagem: “Cidades passam, / como
eu lírico também faz menção a estrelas – em espe- uma viagem de trem, / janela de espanto / em cada
cial a Aldebarã - e a anjos protetores em seus poe- lugar.” (p. 82). A janela tem um sentido especial, en-
mas; a qualidade do vento como mensageiro é algo quadra uma cena da paisagem, ou uma sequência
que é próprio também do poeta, cancioneiro de sua delas, como um filme, conferindo outra percepção
terra: “O sul do mundo chega a todo lugar / na voz ao viajante. Se os olhos são as janelas da alma, o
alta e lúcida do meu pai chamado vento” (p. 201). quadro composto amplia a dimensão da imagem, é
um elo entre o interior e o exterior do poeta, sendo a
Sumário
poesia o espanto - em outros poemas “flor de espan- soais, menções à sua biografia e ao seu paradeiro ao
to” -, espécie de “disposição anímica” (Stimmung), escrever -, mas no diálogo constante que trava com a
termo da fenomenologia de Steiger, quando o ser vida cotidiana por meio da poesia, um deslocamento
vive a experiência artística numa fusão entre o su- de ponto de vista, um prisma lírico sobre a vida cor-
jeito e o objeto em expressão (1997, p.59). riqueira. Nos últimos anos, Luiz de Miranda escreve
O viajante, mesmo sem morada fixa, carrega seus poemas com muita velocidade e assiduidade,
consigo determinados utensílios, comentados pelo numa espontaneidade que sugere a escrita em um
eu lírico em diversas ocasiões, por vezes num sen- jorro, o que confere com seus depoimentos e com os
tido mais simbólico do que factual. Seguindo a de- poemas datados em suas obras: tais questões apro-
senvolver o tema da criação literária, a poesia como ximam o eu lírico do eu biográfico, quando se vive
um espanto, cabe citar o excerto de outro poema, o poesia e por meio de uma dimensão poética relacio-
qual também anuncia outros elementos do comple- na-se com o mundo, inclusive profissionalmente.
xo imaginário de Vozes do sul do mundo: Consigo o andarilho leva uma caneta e papel
em branco, numa nova modalidade do cancioneiro
Carrego pouca coisa comigo, papel em branco, gaúcho, no entanto também tem como companhia o 195
uma velha caneta sem nome que ganhei de presente, cavalo e o cão, referências constantes na obra e que
e que já pressente o poema quando ele ilumina ganham conotações especiais ao longo da jornada.
minha cabeça, sempre pronta para o seu espanto O cavalo e o cão são animais típicos do universo
que me dá a vida em alimentos vários e diários.
gaúcho, o primeiro como meio de transporte – sinô-
nimo de sobrevivência em determinados contextos,
Só isto espero de Deus, meu cavalo, o cão e o canto. (p. 217).
dada a extensão desértica do pampa – e o segundo
como companheiro amistoso, que participa da vida
Além de enfocar alguns instrumentos do alforje
e das lidas campeiras. Miranda, segundo Affonso
do andarilho, o trecho citado ilustra que o poema
Romano de Sant’Anna, em 2002, como aponta a
“ilumina” a cabeça do poeta antes de sua escritura,
orelha de Vozes do sul do mundo, é um “Orfeu dos
momento em que é tocado pelo espanto da poesia,
Pampas”, sendo que o poeta leva consigo o pampa,
a relação entre o mundo interno e externo, moti-
com seu cavalo e o cão, independente se em terras
vado pelos “alimentos vários e diários” que a vida
estrangeiras: “Estarei em Dublin até o fim deste ano.
dá. É notável a aproximação entre o eu lírico e o eu
/ Passarei as portas sagradas com meu cão e o cava-
biográfico, quando não apenas a vida do poeta está
lo, com o sul do mundo às costas” (p. 251).
bastante presente na obra - com homenagens pes-
Sumário
O cavalo e o cão estão associados ao universo mundo, abre a possibilidade de ultrapassar os limi-
do gaúcho, do pampa, que o eu lírico leva consigo. tes da consciência humana, mensurando o tempo a
Ao dizer que espera de Deus apenas “o cavalo, o cão partir das distancias percorridas e pelas memórias
e o canto”, parece que tais elementos vão tornan- acionadas de acordo com os estímulos do ambiente.
do-se mais carregados semanticamente, ganham É o pampa, é o veículo e o guia na dimensão em que
outra conotação no discurso do andarilho. Os dois habita com a poesia, a dimensão simbólica relacio-
animais, além da sugestividade própria em relação nada ao inconsciente: “Meu cavalo é de tiro longo,
ao universo gaúcho, têm forte potencial simbólico, / Não se detém / nos desvãos da estrada, / tudo ele
possibilitando uma leitura mais profunda do imagi- enfrenta / e também chega / onde o sonho me tra-
nário da obra, enriquecida por recorrentes símbolos duz / na amplidão da luz / da última estrela” (p. 75).
teriomórficos. Enquanto o cavalo serve como veículo, o cão
Ao abordar o universo mítico da antiguidade, acompanha o eu lírico em sua jornada, animal as-
Durand (2012) aponta que “o cavalo é isomorfo das sociado ao “mundo subterrâneo, aos impérios invi-
trevas e do inferno”, sendo tal atributo possível de síveis regidos pelas divindades ctonianas ou selê-
ser justificado pelo “medo diante da fuga do tempo nicas” (CHEVALIER ; GHEERBRANT, 2009, p. 176) 196
simbolizada pela mudança e pelo ruído” (p. 75). En- . Sobre o cão, “há milhares de anos que estamos
quanto para ele o “cavalo é, portanto, o símbolo do intimamente ligados a este nosso amigo e aliado
tempo” (p. 78), para Jung o cavalo é o símbolo do fundamental”, talvez pela “superioridade dos seus
psiquismo inconsciente ou da psique-não humana, sentidos”, a capacidade para detectar um cheiro a
e para Diel representa a impetuosidade do desejo distâncias enormes, a firmeza do seu sentido de
(CHEVALIER ; GHEERBRANT, 2009, p. 203). Che- orientação, a sua penetrante percepção da sinceri-
valier e Gheerbrant (2009) apontam que o cavalo dade, atributos que “permitiram-nos abranger do-
“é montaria, veículo, nave, e seu destino, portan- mínios onde não nos poderíamos aventurar sem a
to, é inseparável do destino do homem”, enquanto sua ajuda” (RONNBERG; MARTIN, 2012, p. 296).
o homem guia o cavalo quando em pleno dia, no Em inúmeras mitologias, uma vez dotado de uma
domínio da noite “o cavalo torna-se vidente e guia. devoção incondicional e com a qualidade de comun-
A partir daí, é ele que comanda, pois só ele é ca- gar com o mundo dos espíritos, o cão assume o pa-
paz de transpor impunemente as portas do mistério pel de “guia entre os mundos da vida e da morte,
inacessível à razão.” (p. 203). O cavalo, ao qual está do conhecido e do desconhecido, do humano e do
associado o destino do eu lírico em Vozes do sul do animal, e, simbolicamente, entre a mente consciente
Sumário
e a selva da pisque inconsciente e da alma” (RON- Sonhar o que não pode, eis a trilha no rebrilhar do
NBERG; MARTIN, 2012, p. 296). caminho, levando sempre para um horizonte intan-
“Lembro mais / o que não conheço, / pois lhe gível o andarilho sem paradeiro, sendo sua busca
invento a face, / cidade vizinha, / caminho do meu sonhar o que não pode alcançar, sempre rumo ao
cavalo / e do meu cão / e de tudo o que falo” (p. desconhecido, ao onírico e imaginário, ao mar e ao
34). Num sentido mais utilitário, o cavalo é o meio fim do mundo.
de locomoção do gaúcho, sendo o cão seu aliado e É possível dizer que “a paisagem exprime o su-
protetor; no entanto a poesia habita a ordem do não jeito, mas ultrapassa-o e abre-o, assim, a uma di-
utilitário propriamente dito, abrindo uma dimen- mensão desconhecida dele mesmo e do mundo”
são imaginária fortemente simbólica, polissêmica, (COLLOT, 2013, p.83), “é o lugar de uma troca em
quando a construção poética usa da ambiguidade duplo sentido entre o eu que se objetiva e o mun-
inerente ao símbolo para ultrapassar os horizontes do que se interioriza” (COLLOT, 2013, p.89). Nesse
semânticos que caracterizam o uso ordinário da lin- sentido, a paisagem é dotada de um estado de alma,
guagem. O cavalo e o cão simbolizam, além do sul o Stimmung, contribuindo para ler a dimensão do
do mundo às costas do andarilho, o ofício poético de imaginário de acordo com a especificidade de cada 197
desbravar os caminhos obscuros da arte, espaço em caso, dada a infinita abertura para a construção de
que a dimensão inconsciente assume o proscênio novos sentidos. O pampa e o mar, espaços simbóli-
sob a direção da imaginação. cos mais constantes e expressivos do imaginário de
Em sua jornada de deslocamentos geográficos Vozes do sul do mundo, acabam com conotações pró-
constantemente ponderados pelo canto, o poeta prias, às quais proponho uma leitura mais elaborada.
tem um rumo que lembra o mito de Sísifo, o deslo- Palco do imaginário gaúcho, o pampa, bioma
camento do pampa ao mar, desembocando no fim típico do sul do Brasil e da América, é dotado de
do mundo: “Sonho o que não posso, / essa é minha um carinho maternal, seguindo a flexão de gênero
trilha / no rebrilhar do caminho. / Sozinho na longi- próprio da língua espanhola, familiar ao escritor de
tude da pampa, / o sul é essa estampa / marcada de Uruguaiana: a pampa. A pampa é seu berço, espaço
verdes imensos, / é engenho intenso / rumo ao altar associado algumas vezes ao deserto no sentido que
das águas / que morrem no mar sagrado” (p. 165). corresponde à imagem construída por Miranda, pela
Luiz de Miranda é um poeta do pampa, levando-o solidão de sua longitude e imensidão monocolor. A
mesmo em poemas sobre boemia e centros urbanos, solidão - tema recorrente, pois caro ao andarilho e
como se no pampa habitasse o tino lírico do poeta. ao poeta - é uma ressonância da própria paisagem
Sumário
livre em períodos extensos, contando com a naturali- nosidade do raio, comunicação entre o céu e a terra,
dade da língua falada e com artifícios como assonân- o inconsciente e o consciente, linha ténue em que
cia, aliterações, paralelismos estruturais, desenrolar habita a poesia.
de imagens e argumentos lembrando um fluxo de Se a superfície do mar é comumente associada
consciência, a espontaneidade da escrita. Parece que à dimensão consciente da psique, afetada pelas cor-
o poeta pensa com o lápis, o que confere com seus rentes profundas do oceano bem como pelas moti-
depoimentos em que alega que escreve muito rápido vações externas do vento, nela o poeta segue seu
(JABLONSKY, 2010), poemas datados, sem revisões, rumo ao fim do mundo, num sentido eminentemen-
construindo uma sintaxe particular, segmentos de te simbólico, com a recorrente menção ao galeão e
tirar o fôlego pela sobreposição de imagens ou pela ao lenho. A ideia da barca, em geral, “é o símbolo da
narrativa que se desenrola sem pausas. Seu universo viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos,
imaginário tem determinados lugares-comuns, sen- seja pelos mortos”, também sendo considerada o
do em Vozes do sul do mundo bastante presente a tra- “símbolo e o meio de passagem para o Outro-Mun-
jetória do andarilho pampiano rumo ao mar e o fim do” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 121), o
do mundo, trajeto em que passa por centros urbanos qual pode ser associado ao fim do mundo da poesia 199
da América Latina e da Europa. mirandiana, o outro lado de nossa realidade sensí-
Motivado por uma “vontade louca / de partir”, vel palpado na imaginação.
por “o que a paixão desata / chegar ao fim do mun- “Assim eu sou, / esta engrenagem / que na lin-
do”, segue com seu cavalo rumo ao mar, sempre guagem / navega o mundo inteiro” (p.108). Mesmo
motivado pela busca ao desconhecido, carregando contando com a ideia de movimento de um polo ao
“o mapa, / da minha vida / e dando guarida / a um outro, do pampa ao mar, ambos os espaços têm em
sonho / de não voltar”. Seguindo a jornada rumo ao si consonâncias simbólicas em paralelo, a vastidão,
mar, que também é o símbolo da psique, com a tur- a onipresença do vento e dos astros, o horizonte
bulência superficial e as dimensões impenetráveis inalcançável, limiar do fim do mundo, meta deter-
de sua intimidade inconsciente, arma seu “galeão minada pela poesia ao eu lírico, então apenas uma
azul”, frequentemente referenciado na obra, para “engrenagem”, a impessoalidade pronunciada por
singrar o que não conhece, e amanhece – no caso Mallarmé. “Escravo me dou, / por amor à palavra,
a si mesmo, verbo transitivo, um renascimento, rito / nele estou / na dor e na alegria, / na magia notur-
de iniciação – no lugar em que o trovão, tradicional- na da linguagem, / que nestas paragens / são o mar
mente associado ao verbo, materializa-se na lumi- e pampa” (p. 224). É por meio da linguagem que o
Sumário
eu lírico – ou o poeta – viaja ao longo das para- “Sou o ontem / sagrado e azul, / mas trouxe os
gens típicas do sul, o universo do pampa, sendo no amanhãs / nos braços de Aldebarã, / vazando as noi-
domínio da noite que seu verbo pode libertar-se da tes / eternas do poema” (p. 48). Entre o passado e
realidade mundana e adentrar o mistério, o desco- o futuro, entre a memória e o incógnito, o poema
nhecido geográfico e psicológico: “A noite é imensa transcende o espaço-tempo: a partir do presente e
/ para quem sonha. / Aí coloco / os lírios do adeus / suas sugestões, recorrentemente o eu lírico busca
e as alfombras / do que toco / quando teço a aurora. elementos de sua memória e mergulha no imaginá-
Tudo se ilumina / na escuridão / mesmo as coisas / rio, quando a referência à noite e à estela Aldebarã
do quarto da solidão” (p.239). remete ao mistério do “quarto escuro” em que habi-
O “quarto da solidão” tem possível associação ta a memória e no qual o poeta traça suas andanças
ao mundo interior, as dimensões psicológicas do imaginárias. Cabe salientar a palavra azul, cor de
ser, que naturalmente tende a um processo de in- predileção do poeta dentre outras significativas e
trospecção durante a noite, quando o mundo telú- recorrentes, como o verde e o dourado. O azul assu-
rico desperta e o lado oculto da noite se manifes- me diferentes conotações simbólicas, como no caso
ta. A noite também é o momento da boemia, caro citado no começo do parágrafo, frequentemente as- 200
ao poeta, conhecido como o Secretário da Noite de sociado ao mistério noturno e à viagem imaginária
Porto Alegre, cargo conferido por Lupicínio Rodri- – logo interior - do eu lírico: “Outros dias chegarão
gues: “As noites pesam / no alerta das horas. Vinho / por estas noites / claras de véus azuis / que cobrem
tinto seco / entre as alfombras do adeus / leva meus nossa alma” (p.117).
passos. No breu e na luz, o que me conduz / vem A cor azul, frequentemente associado à alteza
do véu da alma, / e habita o escondido / do secreto celestial bem como ao mar e suas profundezas; tam-
coração” (p.45). À luz do dia a superfície das coisas bém é a cor da melancolia, do isolamento e da tris-
fica aparente, enquanto durante a noite a dimensão teza (RONNBERG; MARTIN, 2012, p. 652). De certo
oculta, profunda e íntima emerge, pois o que o con- modo, o azul simboliza um pouco da dualidade em
duz habita seu interior, quando a alusão a véus mi- que o poeta transita em sua vida, é o spleen et idéal
metizam a própria ideia de alma assim como pode baudelairiano, figura a quem o poeta gaúcho faz
ser associado ao véu de maya das tradições hindu- referência em intertexto no livro em questão e de
ístas, o véu que ilude os seres humanos da realida- quem herda a atitude maldita de sua vida e poesia. A
de condicionando apenas ao material acessível aos presença da palavra azul é estimulada por quadros
cinco sentidos. do pampa, bem como do mar, quando a imponência
Sumário
celeste habita a parte superior do horizonte; mas é te simbólicas e antitéticas, alcança maior nível de
também o manto da noite, suas emoções, e com o expressividade e originalidade, deslocando o leitor
frequente uso vai ganhando tonalidades sutilmente para uma dimensão inacessível pela linguagem or-
distintas, como no caso surrealista do “galeão azul”. dinária. Tais construções imagéticas merecem estu-
“Poeta telúrico”, para Moacir Scliar, no prefá- dos mais aprofundados.
cio de Luiz de Miranda: o senhor da palavra (2010), Cancioneiro, o eu lírico não deixa de cantar suas
de Eduardo Jablonsky, “tradutor do imaginário do andanças, acompanhadas pelo cão e o cavalo, bem
pampa”, segundo Juremir Machado da Silva no pre- como pelo galeão ou o lenho, elementos do imagi-
fácio de Vozes do sul do mundo, “Miranda fala de um nário que ganham destaque em sua busca constante
mundo, entre mítico e real”. A construção do imagi- pelo “fim do mundo”, o desconhecido, orientada por
nário na obra em questão tece uma intricada rede, seu padrinho vento. O universo do pampa é bem re-
arquitetada pelas andanças do eu lírico em sua rota presentado por Vozes do sul do mundo, sem precio-
“da pampa” ao mar, por vezes passando por cidades, sismos de linguagem regionalista, mas com a pers-
quando os ambientes importam mais em suas co- pectiva de um ser um tanto cosmopolita – mesmo
notações simbólicas, sugeridas segundo complexas que nascido em Uruguaiana - que leva o pampa em 201
construções de imagens poéticas, de caráter trans- suas andanças como modo de observar o mundo,
cendental. Espaços da vivência de Luiz de Miranda, como um prisma que converge a realidade externa
andarilho segundo consta sua biografia, sua memó- segundo as estruturas do imaginário do poeta.
ria pessoal e andanças contribuem para uma apro-
ximação do eu lírico do eu biográfico, que parece REFERÊNCIAS
acionar suas lembranças a partir de espaços revisi-
tados, fisicamente ou imaginariamente. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janei-
ro: Livraria Eldorado Tijuca Ltda, s/d. 176 p.
Viajante da poesia, parece que o poeta pensa
com o lápis em mãos, quando escreve num ritmo CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
diário, como alega em seus depoimentos e afirma símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 2009. 996 p.
em poemas datados, bem como reflete a espontanei-
dade de sua escrita, por vezes com longos períodos COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Rio de
Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2013. 204 p.
adotando a estratégia de sobreposição de imagens
ou a narrativa de sua jornada. Entretanto, cabe DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo,
salientar que em suas imagens concisas, altamen- Cultrix, 1988. 284 p.
Sumário
¹ Doutora em Comunicação Social na PUC/RS. Mestre em Desenvolvimento Regional na UNISC e graduada em Relações Públi-
cas na UFSM. Professora dos Cursos de Comunicação Social da Universidade Feevale – Novo Hamburgo / RS. carolinecolpo@
gmail.com
² Graduada em Relaçoes Públicas na Universidade Feevale – Novo Hamburgo / RS.
Sumário
was created and implemented by Prefeitura Mu- senvolver, era necessário que estivesse integrado
nicipal de Novo Hamburgo, RS for the purpose of aos capitais nacionais e internacionais, ou seja, para
organizing catador activity in the city, and in this uma região ser desenvolvida, necessariamente pre-
sense, seeks to provide them working conditions, cisava estar ligada ao mercado capitalista mundial.
fair remuneration and consequent improvement in Este crescimento se deu, principalmente, no
quality of life. The study, qualitative and quantita- âmbito econômico, deixando de lado as dimensões
tive exploratory, we used bibliographic research te- sociais e culturais que existiam nestas regiões. Al-
chniques, documentation, participant observation, meida (1996) se refere a este desenvolvimento como
questionnaires and interviews. The questionnaires sendo universal e para todos os lugares e diz que:
were applied to 67 pickers and interviews were con-
É por isso que foi pensado e aplicado de manei-
ducted with 12 scavengers belonging to the organi- ra uniformizante. Ao invés das originalidades
zation. Among other results, it was found that cul- se exprimirem e se fortificarem, aparecem as
ture and organizational communication Programa características singulares dos povos e das cultu-
Catavida influences the formation of a new identity ras. É um modelo idêntico que se propaga em
detrimento de todas as diferenças de situação, de
to collectors, since today feel valued as professio- regime e de cultura. (ALMEIDA, 1996, p.11). 204
nal grooming. As for the Programa contribution to
the life of the collectors, it can be seen that income Este modelo único de desenvolvimento levou
is the most important element in the formation of muitos países a escolher, de um lado, a separação
their identities. funcional do domínio econômico e da vida privada,
Keywords: Regional development. Culture. Orga- colocando entre os dois um espaço político aberto
nizational communication. Identity. Programa Ca- e um mercado forte e, de outro lado, um aprofun-
tavida damento no antidesenvolvimento, ou seja, recusou
o modelo desenvolvimentista imposto na defesa
pura e simples de identidades culturais (ALMEIDA,
A COMPREENSÃO DE DESENVOLVIMENTO 1996, p. 12).
REGIONAL Hoje, o conceito de desenvolvimento também
se dá por dois lados. Para Becker (2000), por um
A concepção de desenvolvimento que existiu lado existe um movimento geral de transnacionali-
no cenário mundial, no pós-guerra, baseava-se na zação, que continua se caracterizando pelo primado
premissa que, para um país ou uma região se de- econômico, considerando as demais dimensões da
Sumário
vida humana como meio para o desenvolvimento. No Relatório Brundtland (1987) a ideia de de-
No outro lado reaparece um processo de regiona- senvolvimento sustentável aparece nos seguintes
lização sociocultural, que se caracteriza pela defe- termos: é aquele “capaz de garantir as necessidades
sa dos recursos ambientais e culturais e pela busca das gerações futuras” (ALMEIDA, 1996, p.15). Esta
de alternativas para sobreviver ao processo de glo- expressão nos remete à ideia de uma integração en-
balização. Este processo se dá em dois momentos. tre os diferentes níveis de necessidades: naturais,
O primeiro se caracteriza pela resistência e defesa humanas, sociais, econômicas, políticas, que se pro-
criando estratégias defensivas. O segundo momen- põe a eliminar desigualdade social através de uma
to é de ações cooperadas, que poderão configurar ideia de igualdade e equidade dos indivíduos e o sis-
estratégias baseadas nos recursos naturais e cultu- tema social e econômico. A partir disto, o desenvol-
rais de cada espaço (localidade, municipalidade, re- vimento sociocultural da sociedade e dos indivíduos
gião, entre outros). começa a ser levado em conta e Almeida (1996, p.16)
Deste modo, nota-se que a dimensão socio- refere-se a tal quando afirma que:
cultural entra no processo de desenvolvimento, na
o caminho que me parece ser ideal a ser segui-
busca de crescimento através de suas potencialida- do é aquele em que as necessidades dos grupos 205
des, dos seus diferenciais, levando em conta o capi- sociais possam ser atendidas a partir da gestão
tal humano que é o intermediador deste processo e democrática da diversidade, nunca perdendo de
valendo-se destas potencialidades para se defender. vista o conjunto da sociedade. A direção, pois, do
desenvolvimento sustentável deixa de ser aque-
Com isto ressurge a concepção de desenvolvimen- la linear, única, que assumiu o desenvolvimento
to regional que possibilitou também o surgimento dominante até nossos dias; não mais a marcha
da expressão desenvolvimento sustentável, que de de todos em uma só direção, mas o reconheci-
acordo com Almeida (1996, p. 14) tem como uma mento e a articulação de diferentes formas de
organização e demandas como base, sustentácu-
das suas premissas fundamentais o reconhecimento lo a uma verdadeira sustentabilidade. O “mode-
da “insustentabilidade” ou inadequação econômica, lo” de desenvolvimento buscado seria então um
social e ambiental do padrão de desenvolvimento modelo rico em alternativas, capaz de enfrentar
das sociedades contemporâneas. Esta noção nasce com novas soluções a crise social e ambiental. É
preciso conceber um desenvolvimento que tenha
da compreensão da finitude dos recursos naturais nas prioridades sociais sua razão-primeira, trans-
e das injustiças sociais provocadas pelo modelo de formando, via participação política, excluídos e
desenvolvimento vigente na maioria dos países. marginalizados em cidadãos. Esta me parece uma
verdadeira chance para a reorganização conse-
quente da sociedade, visando a sustentação da
vida e a manutenção da sua diversidade plena.
Sumário
³ A organização aqui estudada será entendida com uma organização cooperada e posteriormente apresentada a seguir.
Sumário
local onde diferentes agentes contribuem com seus formado, ao longo do tempo, através de processos
recursos para a produção de objetos e serviços. É inconscientes e não algo inato. Ela permanece sem-
também o lugar que cada indivíduo explora, adapta pre “em processo”, sempre sendo “formada” (HALL,
e habita, a fim de realizar seus objetivos”. 2001, p. 38).
Estas organizações só conseguem se tornar lu- Com isto, a formação da identidade é algo que
gar de referência para os indivíduos que as integram, ocorre ao longo do tempo, através de processos
quando desenvolvem processos comunicativos que inconscientes, permanecendo sempre incompleta
gerem significados nas identidades dos sujeitos or- (HALL, 2001). O autor sugere, assim, que em vez de
ganizacionais. Segundo Hohlfeldt (2001) a comuni- falar em identidade como algo já acabado, deve-se
cação, ao permitir a troca de mensagens, concretiza falar de identificação, e vê-la como um processo em
uma série de funções sociais importantes, tais como andamento. Freitas (2006) ressalta que é necessário
informar, persuadir, convencer, prevenir aconteci- distinguir identidade de identificação, sendo:
mentos e até construir identidades.
A identidade é um resultado, um estado social
Assim, a comunicação organizacional tenta psicossocial que pode variar no tempo, ou seja,
abranger todas as possibilidades de comunicação não é fixa e depende de seu ponto de definição, 207
utilizadas e desenvolvidas pela organização para se pois pode dizer respeito ao indivíduo, ao grupo
relacionar e interagir com seus sujeitos. Segundo e à sociedade em geral. [...] A identificação, por
sua vez, é um processo que apresenta duas acep-
Freitas (1991) as organizações são vistas como fenô- ções: a) o reconhecimento de algo ou de alguém;
meno de comunicação sem o qual inexistiriam. Neste b) o reconhecer-se em algo ou alguém. (FREI-
sentindo, entende-se que é a comunicação possibili- TAS, 2006, p. 40).
ta maior sinergia nas relações das organizações com
seus diversos públicos sendo capaz, inclusive de pro- Conforme a autora, os sujeitos possuem diver-
mover a constituição da identidade de seus sujeitos. sas identidades e são essas diversas identidades que
A identidade é composta por diferentes fato- fazem com que o sentimento de identidade seja ex-
res, e, apresenta-se de forma bastante peculiar em perimentado. O sentimento pode ser composto por
cada indivíduo. A identidade está sempre sofrendo sentidos de singularidade, coerência, filiação ou
ações de transição, portanto, pode-se afirmar que a pertencimento. Esses fatores se constituem como
identidade não é estática, e sim um processo que se fonte de coerência interna para os sujeitos, criando
modifica a medida em que os sujeitos se comuni- assim uma auto categorização que pode variar de
cam. Hall diz que “(...) a identidade é realmente algo acordo com sua nacionalidade, sexo, idade, profis-
são, cultura etc.
Sumário
A identificação é conceituada pela autora base- dos entre ambos ultrapassam a questão puramente
ado no conceito que aparece na psicanálise, ou seja, econômica. Neste sentido, a autora descreve a cul-
como um processo psicológico “através do qual o tura organizacional como um conjunto de represen-
sujeito assimila um aspecto, uma propriedade ou tações imaginárias sociais construídas e reconstru-
um atributo de outro e se transforma, total ou par- ídas nas relações cotidianas dentro da organização,
cial, segundo o modelo daquele” (FREITAS, 2006, p. que são expressas em termos de valores, normas e
40). Esse processo influenciará a personalidade do significados e interpretações, colocando a organiza-
sujeito, essa sendo constituída e diferenciada por ção como a fonte de identidade e reconhecimento
uma série de identificações. Para a autora, é por para seus membros.
meio desse processo de identificações que a identi- Assim, pode-se afirmar que a identidade dos in-
dade dos sujeitos é constituída. divíduos está associada à sua identificação com o
Assim, os sujeitos, ao integrarem organizações, meio no qual está inserido, inclusive com a cultura
carregam consigo seus elementos de identidade, da organização da qual faz parte. Nesta perspecti-
que são muitas vezes, constituídos em outros espa- va, também se pode inferir que com o decorrer do
ços de cultura, e, na menor relação que estabelecem tempo esses sujeitos passam a adotar, como suas, al- 208
com o outro, tudo pode ser alterado e (re)criado pela gumas características culturais da organização, fa-
identificação. Neste sentido, compreende-se que zendo com que essas características passem a fazer
os indivíduos, quando chegam às organizações, já parte de sua identidade individual, da mesma forma
trazem consigo uma série de características oriun- em que fazem com elementos de sua identidade e
das da cultura no qual faz/fazia parte. Diante dessa cultura passem a fazer parte da identidade e cultura
perspectiva, entende-se que os sujeitos não ocupam organizacional.
um lugar de passividade dentro das organizações,
mas que interagem com as organizações, e da mes- APORTES METODOLÓGICOS E O OBJETO
ma como são afetados pelo sistema organizacional DE ESTUDO: PROJETO CATAVIDA UMA
interferem/contribuem nesse sistema através da co- ORGANIZAÇÃO COOPERADA
municação organizacional estabelecida.
De acordo com Freitas (2006), para pensar as Segundo dados do Ipea (2013), existem no Bra-
organizações, a cultura e as identidades, se faz ne- sil pelo menos 387.910 catadores; na região Sul,
cessário atentar para a relação de cultura entre indi- 58.928. Pode-se dizer que muitos destes indivíduos
víduo/organização, visto que os vínculos estabeleci- encontram na atividade de catador a única alterna-
Sumário
tiva possível para realizar a sobrevivência por meio As ações desenvolvidas pelo Programa, de-
do trabalho, ou seja, a alternativa mais viável dian- monstram que há preocupação em trabalhar não
te do contexto, muitas vezes de miserabilidade, em somente a organização dos catadores, infraestru-
que estão inseridos. tura, como também questões relacionadas ao meio
Neste cenário, surge o Programa Municipal de ambiente e demonstra a intenção de ter a sociedade
Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos da Prefeitura como uma parceira do Programa. Nesta perspectiva,
Municipal de Novo Hamburgo, denominado Catavi- se pode concordar com o autor Stuart Hall (2009)
da. O Programa Catavida é uma ferramenta pública quanto à sua proposta de que as identidades estão
de enfrentamento dos processos de desigualdades dentro e não fora do discurso.
sociais numa cidade onde, em 2010, estimava-se ter
É precisamente porque as identidades são cons-
cerca de 2 mil catadores de materiais recicláveis . Ela- truídas dentro e não fora do discurso que nós
borado no ano de 2009 e concluído em 2010, antes da precisamos compreendê-las como produzidas
publicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em locais históricos e institucionais específicos,
o Programa Catavida é uma iniciativa da Prefeitu- no interior de formações e práticas discursivas
específicas, por estratégias e iniciativas específi-
ra Municipal de Novo Hamburgo, juntamente com cas. (HALL, 2009, p. 109)
209
uma antiga cooperativa de catadores da região, por
isto é entendida como um organização cooperada. Para a realização desta pesquisa exploratória
O Programa Catavida surge com o objetivo de obteve-se um nível quantitativo, que apresenta da-
desenvolver ações integradas, com base nas dimen- dos estatísticos com questionário aplicado à 67 cata-
sões que abrangem a sustentabilidade social, eco- dores do Programa Catavida, e um nível qualitativo
nômica e ambiental, considerando todas as medidas que utilizou entrevistas com questões subjetivas
envolvidas no enfrentamento da questão social do não puderam ser reveladas em números. Quanto
lixo, desde a geração dos resíduos até o destino final, aos procedimentos técnicos, foram utilizadas ain-
potencializando o trabalho dos catadores de mate- da, as técnicas de pesquisa bibliográfica, pesquisa
riais recicláveis. Segundo Becker (2000) trata-se de documental, observação participante, questionário
ações cooperadas baseadas nos recursos naturais e e entrevista. As observações foram realizadas nas
culturais de cada espaço (localidade, municipalida- Centrais do Bairro Centro e Bairro Roselândia4. A
de, região, entre outros). etapa da realização das entrevistas, que ocorreram
após a aplicação do questionário, foi realizada com Os respondentes tiveram seu grau de escola-
4 catadores e 8 catadoras escolhidos por acessibili- ridade formado por, principalmente, o ensino fun-
dade e proximidade com as pesquisadoras durante damental incompleto (53 respondentes). É possível
as observações participantes. afirmar que esse dado pode ser relacionado às ca-
racterísticas encontradas no exercício da ativida-
ANALISANDO OS RESULTADOS de de catador. Esse dado despertou o interesse em
questionar, durante a realização das entrevistas, al-
O Programa Catavida, desde sua criação, em guns catadores sobre a razão pela qual não haviam
2010, já capacitou 270 pessoas. Desses, em torno de concluído o ensino fundamental. A maioria apon-
80 pessoas atualmente são atuantes no programa. tou a necessidade de ingressar no mercado de tra-
Na Central Centro, atuam cerca de 25 cooperados balho como o principal motivo para não ter dado
e os demais atuam na Central do Bairro Roselân- sequencia nos estudos, conforme se pode perceber
dia. O Programa capacitou 270 pessoas, pois havia em relatos como: “Trabalhava em casa de família,
a pretensão de que no município de Novo Hambur- daí tinha que posa, daí não dava pra estudar” (En-
go teriam sete unidades de triagem e não apenas as trevistada E)5, “Porque comecei a trabalha com 12 210
duas hoje existentes. A razão colocada pelo Progra- anos. Com 12 anos comecei a trabalhar no calçado”
ma para a não existência das cinco novas unidades (Entrevistada J), “Tive que trabalhar para ajudar em
é de ordem orçamentária. casa” (Entrevistada L),
Dos 80 cooperados, 67 responderam ao ques- Questionados sobre o exercício de outra profis-
tionário de perfil para este trabalho. Os dados são, 57 respondentes disseram já ter trabalhado em
mostram que há um equilíbrio quanto ao gênero outras áreas. O setor com maior representatividade
dos catadores que atuam nas centrais. Do total de é o setor coureiro calçadista, no qual 27 catadores
respondentes, 37 (55%) são homens e 30 (45%) são já afirmaram ter trabalhado. A pesquisa quantita-
mulheres. Quanto à faixa etária, os dados mostram tiva não buscou saber as razões pelas quais houve
a maioria dos respondentes se encontram na faixa essa migração da indústria calçadista para o setor
dos 26 aos 55 anos. Essa faixa etária representa 77% de reciclagem, porém muitos dos respondentes fi-
dos respondentes. Quanto ao estado civil, 67% dos zeram questão de informar que a empresa fechou e,
respondentes, 45 catadores, ou são casados ou vi- que, por não terem escolaridade se viram obrigados
vem em união estável. a irem pra rua trabalhar como catador. Conforme
⁵ Os entrevistados não serão identificados pelos nomes originais. Neste trabalho optou-se por usar letras.
Sumário
dados do Ministério do Trabalho e Emprego, o setor estudo”. “Pela renda. Daí eu pensei vou lá fazer o
viveu entre os anos de 1994 e 1998 uma crise que curso, né? A gente trabalhava lá (Cooperativa an-
ocasionou o fechamento de mais de 200 empresas e terior), mas a renda era muito pouca. Trabalhava,
40 mil empregos foram eliminados, apenas nos se- enchia os caminhões, mas dava R$ 200,00 por mês”
tores diretamente envolvidos com a transformação (Entrevistada L). O Entrevistado F disse que a moti-
do couro em calçado. vação foi “pelos ganhos”. Conforme o autor Morgan
A presença de mais de um membro da família (1996, p. 43), “o processo de motivação depende de
no local de trabalho, também foi questionado, pois, se permitir às pessoas atingirem recompensas que
para muitos catadores, a escolha por trabalhar nas satisfaçam a suas necessidades pessoais”. É possí-
Centrais também se deu pela influência de algum vel perceber que a possibilidade de ter uma fonte de
familiar. Conforme Baldissera (2009, p. 152), “a iden- renda foi o principal motivo pelo qual houve o inte-
tidade é a tessitura e, ao mesmo tempo, a força que resse na realização do curso de capacitação. As cir-
mantém juntas as várias identificações possíveis de cunstâncias de vida, como o desemprego e a baixa
um indivíduo-sujeito”. Neste sentido, se pode inferir escolaridade também são fatores que influenciaram
que os catadores optam por trabalhar num local no a decisão dos catadores. 211
qual seja possível se identificarem com os demais Outros aspectos, como a inclusão, foram citados
indivíduos, nesse caso, optam inclusive por atuar na apenas pela Entrevistada K: “Eu acho que o que eu
mesma central em que atua o seu familiar. mais gosto é assim essa inclusão das pessoas onde
Quanto às motivações para a realização do cur- não se distingue assim é branca, é preta, é gorda, é
so de capacitação, necessário para participar do Pro- preto é magro. Eu acho que isso, esse é o intuito do
grama Catavida, para a maioria dos entrevistados Catavida, esse negócio assim, essa inclusão mesmo.
essa se deu por questões pessoais, como a necessi- Porque às vezes as pessoas sofrem preconceito pela
dade de trabalho e renda. Considerando as dificul- gordura ou pela cor, pela raça, às vezes porque tu faz
dades de inserção formal no mercado de trabalho, mais devagar uma coisa”. Essa mesma entrevistada,
muitos catadores buscaram na capacitação a possi- quando questionada sobre como se sente na coope-
bilidade de significar positivamente a profissão de rativa, disse: “Me sinto bem. Me sinto muito valori-
catação. Conforme é possível verificar no relato da zada”. Essa mesma entrevistada, quando questiona-
Entrevistada E: “Porque eu não consegui mais em do sobre a importância do Programa Catavida em
firma (Indústria Calçadista), tavam exigindo assim, sua vida, respondeu “Eu gosto de trabalhar aqui no
com se diz, também por idade não aceitavam mais, Catavida. De manhã a maior alegria minha é levan-
Sumário
tar e vim trabalhar aqui”. Esse relato demonstra não seu poder aquisitivo e sua participação como con-
só um sentimento de pertencimento, mas um sen- sumidor no mercado de produtos, bens e serviços”.
timento de orgulho em trabalhar como catadora na Nesta perspectiva, a renda pode ser considerada um
organização. O que permite crer que o Programa, en- dos principais fatores de identificação dos catado-
quanto organização, para essa entrevistada em espe- res com o Programa Catavida e que esta obtenção
cial, é capaz de lhe conferir significação e identidade. de renda possibilitou uma mudança de cultura. Es-
Para Cadinelli; Calheiros; Lopes; Silva (2013, p. 3), ses relatos que deixam explícito o quanto a renda é
relevante na vida do catador, podem contradizer a
a busca do indivíduo por um sentido que lhe faça
explicar o seu “estar no mundo” será, então, em
proposta de Freitas (2006) no que se refere ao per-
boa parte, construída através das relações de tencimento aos espaços organizacionais
identificação/significação que ele vai estabelecer
no ambiente das corporações. A própria relação (...) não há como retirar o indivíduo do campo
de trabalho permitirá ao indivíduo o contato social e da dinâmica das instituições aí existen-
com novos e diferentes espaços e agentes capa- tes. Os laços que os indivíduos desenvolvem em
zes de conferir significação e identidade. suas relações com as organizações são mais do
que simplesmente econômicos; na verdade, são
carregados de afetos e, portanto, também de na- 212
A renda também aparece com frequência nas tureza psicológica. (FREITAS, 2006, p. 11).
respostas que se referem à contribuição do Progra-
ma para vida do catador e motivação para perma- Uma proposta que vai ao encontro dos relatos
necer atuando na profissão. Conforme as respostas relacionados às questões financeiras é a proposta
descritas a seguir podem confirmar: “Pro sustento trazida por Baldissera (2014) quando o autor cita,
da família, né? Antes a gente não podia quase da novamente, as organizações como lugares onde os
nada porque não tinha a renda boa” (Entrevistado sujeitos além de se sentirem satisfeitos, tem a pos-
C). “Olha, assim, pra mim é muito. Até eu pega aqui sibilidade de se sentirem pertencentes ao sistema.
eu não tinha renda nenhuma no caso” (Entrevistada
H). Essas questões trazem relatos que comprovam A atual configuração sociocultural e estrutural
torna as organizações um dos mais importantes
o quanto a renda é significativa para os catadores lugares para que os sujeitos, mediante seu tra-
e, neste sentido, corroboram com a proposta do au- balho, consigam demonstrar sua potencialidade
tor Lisboa (2013, p. 140) quando este cita o catador criativa e produtiva, desenvolver suas habilida-
como “um trabalhador excluído de outras possibili- des e competências e, nessa direção, sentirem-se
social e culturalmente pertencentes ao sistema.
dades de inserção profissional, desejoso de ampliar Nas organizações, os sujeitos encontram a pos-
Sumário
sibilidade de realização profissional, o que tende Mesmo o Programa Catavida tendo entre seus
a gerar satisfação e bem-estar. (BALDISSERA, objetivos a conscientização em relação às questões
2014, p. 7).
ambientais, é explicita a ausência dessa consciência
A ausência de normas formais na cultura da entre alguns catadores, constado através de entre-
organização pode ser percebida nas intervenções vista. Nas observações realizadas aos dois locais foi
realizadas no local assim como na fala de alguns ca- possível perceber que nem mesmo os resíduos gera-
tadores. Alguns catadores citam a liberdade e, que dos pelos usuários do local são devidamente separa-
a rotina de trabalho parece já estar entendida pe- dos. Nas duas centrais não há lixeiras que possibi-
los catadores, pois se notou que todos sabem con- litem o descarte correto dos resíduos, fazendo com
duzir suas tarefas sem necessidade de supervisão. que os resíduos gerados pelos catadores acabem sen-
Essa questão apareceu na observação da Entrevis- do depositados no mesmo recipiente. Nessa perspec-
tada H: “Aqui cada um tem suas responsabilidades. tiva, é possível afirmar que, nem sempre o sujeito
É um serviço bom, não é dentro duma firma aonde cria as suas teias de significação ou produz sentidos
tá toda hora alguém em cima de ti te cutucando”. convergentes com a cultura das organizações, na
Neste sentido, se constata que a transmissão de nor- medida em que seus valores simbólicos e culturais 213
mas da cultura se dá através de sistemas informais não condizem com os valores simbólicos e culturais
de comunicação organizacional, ou seja, pela comu- da organização com que mantém relações sociais.
nicação que ocorre espontaneamente entre os indi- As questões que envolvem o tema sustentabili-
víduos da organização. Conforme Grando (2008, p. dade parecem estar presentes somente nos materiais
11), “na rede informal prevalece o sistema complexo impressos (folder) de comunicação organizacional
adaptativo, no qual os colaboradores comportam-se e na fala dos responsáveis pelo programa quando
como seres humanos reunidos em rede cooperativa”. esses participam de palestras, eventos privados e
Esta comunicação interfere na identidade, liberdade eventos abertos à comunidade, reuniões, visitas às
e responsabilidade, possibilitando que os indivíduos escolas, empresas privadas etc. Neste sentido no-
se sintam mais à vontade para realizar as tarefas a ta-se que, para com o público externo, o Programa
si designadas, o que não quer dizer que não haja opta por uma comunicação formal, através de ins-
responsabilidade, pois se pode verificar que, apesar trumentos de comunicação bem definidos.
de não haver formalidade, o trabalho não deixa de
ser desenvolvido.
Sumário
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Resumo: Discute-se sobre os processos de comuni- Abstract: It discusses about the communication
cação entre organizações e empregados intermedia- processes between organizations and employees in-
dos por gestores de equipe, com base no Interacio- termediated by team managers, based in Symbolic
nismo Simbólico (MEAD, 1980; GOFFMAN, 1996) Interaction (MEAD, 1980; Goffman, 1996) and from
e a partir de pesquisa empírica realizada por Silva empirical research by Silva (2016), which interpre- 216
(2016), a qual interpretou relatos de gestores de ted reports management teams, and ranked distinct
equipes, e, classificou distintas características das characteristics of communication interactions that
interações de comunicação que eles realizam com they perform with their subordinates, revealing im-
seus subordinados, desvelando implicações sobre plications for power relations (Foucault, 1979) and
relações de poder (FOUCAULT, 1979) e sobre aspec- on aspects of organizational culture (BALDISSERA,
tos da cultura organizacional (BALDISSERA, 2010; 2010; 2014). These concepts are collated with the
2014). Esses conceitos são cotejados com a noção de notion of work activity (SCHWARTZ, 2004; 2011)
atividade de trabalho (SCHWARTZ, 2004; 2011) vi- targeting a reflection on the potential of these inter-
sando uma reflexão sobre as potencialidades desses mediated communication processes by managers,
processos de comunicação intermediados por ges- that is, on the one hand can be workers’ resistance
tores, ou seja, por um lado podem ser espaços de re- spaces and subjectivity of work, materializing the
power of actin (CLOT, 2010) and the humanization
¹ Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS (PPGCOM), membro do
Grupo de Pesquisa em Comunicação Organizacional Cultura e Relações de Poder (www.gccop.com.br), professora substituta
na Fabico, da UFRGS. lopes.cassia.a@gmail.com
Sumário
of organizational environments and, on the other dão entre eles, existem em função do trabalho, são
hand, also provide control by managers/organiza- abordadas implicações acerca do trabalho contem-
tions, updating the notion of employee as a mere porâneo, mais especificamente no contexto pós-in-
resource organizations. dustrial – Antunes (2009), Corsani (2003), entre ou-
Palavras-chave: Organizational communication. tros –. Nessa direção, este texto acrescenta à reflexão
Employees. Manager. Work activity. sobre comunicação entre organizações e emprega-
dos intermediada por gestores (já realizada na pes-
quisa dissertação referenciada) as ideias pertinentes
INTRODUÇÃO à noção do trabalho como atividade (SCHARTZ,
2011; 2004), especialmente a crítica sobre a norma-
Este texto considera a noção de comunicação tividade e a racionalidade técnica imposta ao traba-
organizacional, a partir do Interacionismo Simbóli- lho (CANGUILHEM, 2001); e a concepção sobre o
co (MEAD, 1972; BLUMER, 1980), como “processos poder de agir (CLOT, 2010), posto que essas aborda-
de disputa de sentidos no âmbito das organizações” gens parecem relacionadas à perspectiva de comu-
(BALDISSERA, 2009, p. 117), os quais são transacio- nicação organizacional que assumimos. 217
nados por meio de representações de papéis (GOF- Assim, este texto se propõe a cotejar aspectos
FMAN, 1996) e relações de poder (FOUCAULT; 1989; que contornam a noção de trabalho como atividade
1987). E o que tange especificamente à comunicação com a noção de comunicação como processo intera-
entre organizações e empregados, tem como foco os cional – abrangendo cultura e relações de poder – e
processos de comunicação que são intermediados com os achados da pesquisa realizada (Silva, 2016).
pelos gestores de equipe, com base em relatos de Além disso, ponderamos sobre as seguintes ques-
gestores de equipes entrevistados para nossa pesqui- tões: 1) De que maneira a concepção do trabalho
sa de mestrado2, os quais são interpretados através como atividade colabora para a compreensão e a
da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011). análise dos processos de comunicação entre orga-
Além disso, em virtude de acreditarmos que as nizações e empregados? 2) Pode haver conexões en-
organizações, os empregados e as relações que se tre o entendimento da comunicação organizacional
² Dissertação apresentada ao PPGCOM/UFRGS, em janeiro de 2016, intitulada “Comunicação organizacional na gestão do tra-
balho: papéis dos gestores de equipe e natureza da comunicação”.
Sumário
como processo que se realiza a partir dos significa- – conforme Corsani (2003), pautada por uma nova
dos atribuídos pelos sujeitos3 em relação e a mate- concepção de mercadoria que transfere o valor do
rialização do poder de agir dos trabalhadores? 3) É produto em si (físico) para a informação –, a comu-
possível pensar em possibilidades de escape, pelos nicação mostra-se essencialmente presente em todo
trabalhadores, em relação à ordem posta, a partir o processo produtivo e em todos os níveis (hierár-
das naturezas de comunicação identificadas na pes- quicos) de trabalho, posto que a nova dinâmica de
quisa abordada (SILVA, 2016)? produção pós-industrial exige dos trabalhadores,
Acerca dessas questões, não esperamos (nem segundo Dantas (1996, p. 59), capacidade de inter-
consideramos possível, num texto como este) en- pretação e transmissão de informações: “cada indi-
contrar respostas, mas buscamos entrelaçar e des- víduo inserido na produção capitalista não passa de
tacar as relações pertinentes às macroperspectivas um elo informacional que recebe, processa e trans-
– comunicação organizacional e trabalho como ati- mite algum subconjunto de informações necessário
vidade – e suas respectivas bases teóricas e implica- às atividades de outros indivíduos, ou do conjunto
ções, o que começamos, a seguir. do subsistema social no qual interage.”
A essencialidade da comunicação no âmbito das 218
COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DO organizações pós-industriais – essas marcadas pela
TRABALHO E A NOÇÃO DE TRABALHO alta competitividade e velocidade – se evidencia
COMO ATIVIDADE pela alternância constante das características téc-
nicas dos produtos, das demandas, das estratégias,
Para iniciar essa reflexão, é necessário situar das rotinas de produção, indicando a necessidade
que o tipo de trabalho coerente com nossa discussão de que as descrições das tarefas de trabalho e dos
é o formal4 e vinculado a uma organização. Além fluxos de informação que envolvem essas tarefas
disso, no contexto da sociedade do conhecimento estejam em atualização contínua e, por isso mesmo,
³ Destacamos, dentre os possíveis significados para o termo, de acordo com distintas correntes teóricas, que neste texto, a pa-
lavra “sujeito” é utilizada para representar uma noção de ser agente, que participa ativamente das interações e processos que
envolvem a si mesmo e seu entorno.
⁴ Não desconsideramos a existência de outros tipos de trabalho, a exemplo das proposições de Offe (1989) e Schwartz (2011),
tais como o trabalho doméstico e o informal (fora de situação de emprego). Porém, essas formas não são aderentes ao nosso
problema de pesquisa, que abrange processos de comunicação materializados no âmbito das organizações, os quais envolvem
as pessoas formalmente vinculadas.
Sumário
permanentemente desatualizadas. Isso evidencia mentos sobre as normas antecedentes que regem o
a necessidade de se compreender o trabalho além respectivo trabalho. Debate que se situa no âmbito
da racionalidade técnica (descrição e prescrição de do trabalho, mas que não se resume a ele, pois, de
tarefas), a qual é criticada por Canguilhem (2001, acordo com Schwartz (2011, p. 33), a atividade de
p.111) como uma concepção que simplifica a ideia trabalho “não cessa de ligar um vaivém entre o mi-
de homem no âmbito do trabalho, ao considerar a cro do trabalho e o macro da vida social cristaliza-
razão algo externo a esse homem. da, incorporada nessas normas.” E continua, “[...] É,
Também parece corroborar para contestação da portanto, toda vida social que é surdamente recolo-
racionalidade técnica do trabalho a perspectiva de cada em questão na oficina, no serviço, no canteiro
flexibilização do trabalho, implantada primeiramen- de obras, para ser (re)disseminada pelos milhares
te nas fábricas toyotistas5 e cada vez mais presente de canais de sociabilidade com os outros espaços da
no contexto de transformação da atividade produ- vida social.”
tiva em prestação de serviços, uma vez que pare- Amador (2014) propõe que a noção de trabalho
cem inatingíveis as incumbências de prescrever e como atividade remete à subjetividade do trabalha-
de medir o resultado de tarefas que se tornam mais dor, mas não uma subjetividade individualizada, e 219
subjetivas como as de pensar “diuturnamente na- sim “uma subjetividade pela via dos processos de
quilo que é melhor para a empresa e seu projeto” subjetivação” (AMADOR, 2014, p. 258 e 259), ou
(ANTUNES, 2009, p. 128), de comunicar-se com a seja, dos processos configurados na gestão do pró-
equipe para avaliar os processos de trabalho, de ser prio trabalho durante “situações concretas vividas
proativo e sugerir melhorias. pelos trabalhadores”, e que é compreendida como
Nesse sentido, dada a simplificação do enten- um conjunto de saberes compartilhados num devir.
dimento sobre trabalho humano a partir da ideia Assim, a ideia de que o macro da vida social
de tarefas (prescritas e/ou) realizadas pelos traba- atua com o micro do trabalho, bem como de que
lhadores, Schwartz (2004; 2011) considera trabalho a subjetivação seja um processo conformador de
a partir da noção de atividade. Para o autor, uma saberes a partir de práticas dos trabalhadores em
atividade de trabalho é uma experiência em que se convívio, percebemos relação entre o conceito de
dá uma infinidade de debates, contestações e julga- trabalho como atividade, especialmente em sua ca-
⁵ Fábricas toytistas seguem um sistema de organização do processo produtivo, originado na indústria automobilística Toyota,
influenciado pelas teorias japonesas de administração, o qual supõe, entre outros aspectos, a participação dos trabalhadores em
decisões sobre a qualidade do produto, os fluxos e os processos de produção.
Sumário
racterística de subjetivação, e as noções de cultura 2016, p. 51 ), “aportando a essas relações seus signi-
e de comunicação organizacional que acionamos, ficados próprios, seus valores e regras oriundas de
Isso porque as práticas de comunicação realizadas seu convívio social em diversos núcleos, tais como
no âmbito das organizações materializam a tran- o familiar, de amigos, das associações e clubes em
sação de saberes que são (re)significados, às vezes que participa, e, mesmo, das experiências de traba-
explicitados, renormalizando as formas de agir no lho anteriores”. Por conseguinte, esses significados
contexto do trabalho. transacionados, disputados, compartilhados, atuam
Cabe destacar que consideramos a comunica- na conformação da cultura organizacional, formada
ção que permeia o âmbito das organizações não não apenas pelos pressupostos da alta administra-
apenas como fluxos informativos, pois assumimos ção da organização, como também pelos sujeitos
como lente de análise o Interacionismo Simbólico que ali atuam e se relacionam (BALDISSERA, 2014).
(MEAD, 1972; BLUMER, 1980), que permite conce- Assim, ao abordarmos as implicações entre cul-
ber comunicação, de acordo com Baldissera (2004; tura e comunicação no âmbito das organizações e
2009) como processos nunca acabados, mas reconfi- no que diz respeito ao trabalho, parece possível de-
gurados de acordo com o contexto. Assim, essa no- pararmos com a ideia de subjetivação proposta por 220
ção subentende implicações de cultura6 – conforme Amador (2014) amparada na noção de trabalho como
Geertz (1989), pois os sentidos disputados nos pro- atividade, uma vez que admitir a noção de cultura
cessos de comunicação se originam nos significados organizacional como algo (re)tecido pelos membros
dos objetos que os sujeitos reconhecem desde seus da organização (a alta administração, os gestores e
universos simbólicos. Portanto, no que tange aos os empregados) significa, para Baldissera (2014, p.91)
processos de comunicação que ocorrem no âmbi- “dizer que interagindo na/sobre a forma de cultura,
to das organizações, cada um dos interagentes (in- os sujeitos transformam-se e a transformam.” Nesse
clusive os empregados) atribui significado ao que é sentido, parece possível compreender que as vivên-
transacionado nas interações não necessariamente cias e a teia de significados individuais dos emprega-
(ou apenas) seguindo os objetivos de comunicação dos, bem como aquela tecida por eles em relações de
da organização e as diretrizes formais estabeleci- comunicação no ambiente organizacional, atuem no
das, mas também, conforme já destacamos (SILVA, processo de subjetivação sobre o trabalho e sobre os
⁶ Para Geertz (1989, p.15) “o homem é um animal amarrado às teias de significado que ele mesmo teceu” e a cultura é “uma
ciência interpretativa à procura do significado”, que consiste nessas teias e sua análise.
Sumário
objetos transacionados no contexto da organização. relações mais diretas e frequentes com maior parte
Portanto, as relações de comunicação e os significa- dos trabalhadores, dedicamos nossa pesquisa de dis-
dos essas fazem circular podem ser pautados pela sertação (SILVA, 2016) a esse tema, buscando com-
organização, mas também, à revelia dela. Sobre essas preender os processos de comunicação materializa-
relações de comunicação no ambiente organizacio- dos entre gestores e seus subordinados.
nal, seguimos no próximo item. Nossa pesquisa é fundamentada, também, pela
noção de representação como “toda atividade de um
COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL NA indivíduo que se passa num período caracterizado
GESTÃO DO TRABALHO por sua presença contínua diante de um grupo par-
ticular de observadores e que tem sobre estes algu-
Sobre a comunicação das organizações com ma influência” (GOFFMAN, 1996, p. 29). Nesse sen-
seus empregados, importa ressaltar que as organi- tido, ao se comunicarem com os trabalhadores (seus
zações têm dedicado cada vez mais espaço e recur- subordinados), os gestores de distintas áreas, mes-
sos em seus planejamentos de comunicação7 para mo que não tenham conhecimentos sobre comuni-
ações e ferramentas que envolvam os gestores de cação, tendem a se exercer sobre os empregados, 221
equipes, em virtude de acreditarem que as relações desempenhando papéis que levem (os segundos)
entre esses gestores e seus subordinados (os empre- a realizar tarefas, tomar decisões e agir de modos
gados) influenciem o cumprimento dos objetivos específicos em situações de trabalho, muitas vezes,
organizacionais. preferencialmente, almejando que isso ocorra sem
Portanto, reconhecendo a relevância da interme- questionamento da ordem posta.
diação realizada pelos gestores de equipes na comu- Ressaltamos que essas interações são interpes-
nicação entre organizações e empregados, bem como soais entre os gestores e seus subordinados, mas,
a carência de pesquisas e publicações, principalmen- sendo os gestores porta-vozes da organização pe-
te considerando a atuação dos gestores de mais baixa rante os trabalhadores, esses processos são, ao mes-
hierarquia (tais como supervisores, coordenadores, mo tempo, representativos das relações entre as or-
chefes, encarregados e gerentes), os quais mantém ganizações e os empregados.
⁷ Nesse sentido, a pesquisa Comunicação Interna 2012, realizada pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Ab-
erje) evidencia o esforço das organizações em criar ferramentas destinadas aos gestores. Além disso, o estudo Tendências da
Comunicação Corporativa no Brasil para 2015, realizado pela mesma instituição (Aberje), apontou a comunicação interna como
uma das subáreas da comunicação organizacional que mais receberiam investimentos naquele ano.
Sumário
Para essa pesquisa, de natureza qualitativa, fo- metas, argumentos) para que os processos pro-
ram analisados e interpretados, por meio da técnica dutivos sejam realizados. Essas práticas tendem a
de análise de conteúdo (BARDIN, 2011), os relatos reduzir os processos comunicacionais a fluxos in-
de entrevista de 12 gestores8 de equipes que atuam formativos, contemplando a ideia de comunicação
em níveis intermediários de hierarquia, em áreas como algo já dado, pronto, materializado na emis-
como controladoria, contabilidade, enfermagem, se- são. Além disso, esses processos tendem a desvelar
cretaria, atendimento ao cliente, produção fabril, en- uma noção de empregado como mero receptor de
tre outras, de diferentes organizações do Rio Grande informações, ordens e solicitações.
do Sul. A análise desses relatos permitiu evidenciar Por sua vez, a natureza da comunicação discipli-
os principais papéis9 que os gestores assumem nes- nar mostra-se útil para manter o sistema produtivo
sas interações, bem como – aspecto destacado neste enquadrado nos parâmetros idealizados pela orga-
texto –, as naturezas características desses processos nização. Assim, os gestores esclarecem e reforçam
de comunicação, classificadas como: a) comunicação os direcionamentos estratégicos e a cultura corpo-
informativa; b) comunicação disciplinar; c) comuni- rativa (ou seja, a cultura organizacional a partir do
cação opressiva; e d) comunicação participativa, os ponto de vista da alta gestão) para os subordinados, 222
quais descrevemos a na sequência. instigando-os a empregar suas habilidades e compe-
tências – ou restringi-las, se não interessarem à or-
Sobre as naturezas dos processos de comunicação en- ganização – de modo a atingirem os objetivos orga-
tre gestores e subordinados nizacionais. Cabe ressaltar o paralelo entre este tipo
de comunicação e a noção de disciplina segundo
Inicialmente descrevemos a comunicação infor- Foucault (1979; 1987)10, como um exercício de poder
mativa, que se mostrou hegemônica na atuação dos que não é necessariamente negativo ou repressivo,
gestores, praticada para orientação e fornecimento uma vez que essas práticas podem proporcionar aos
de informações aos empregados (regras, objetivos, trabalhadores sensações de prazer por meio da mo-
tivação e da satisfação.
⁸ Consideramos gestores os empregados possuidores de cargo formal que os responsabilize pela gestão de uma ou mais equipes.
⁹ A pesquisa realizada identificou como principais papéis desempenhados por gestores na comunicação subordinados os de:
transmissor, repreensor, controlador, persuasor, legitimador e auscultador.
10
Poder disciplinar, conforme Foucault (1979), um dispositivo de controle que torna os indivíduos mais produtivos e capazes
de buscar sempre a superação de suas potencialidades. Exercício de poder invisível, que “modela os comportamentos e faz os
corpos entrarem numa máquina, as forças numa economia” (FOUCAULT, 1987).
Sumário
A gente tentou implementar o comemorar quando te muito a desconfiança. Eu acho que a comuni-
atinge uma meta, trazer o sentimento de reali- cação é feita de uma forma muito genérica, então
zação. Mas a gente não conseguiu desenvolver isso faz com que as pessoas tenham muitos ques-
isso. [...] a gente criou um troféu: a melhor fábri- tionamentos, e aí quanto mais tempo de indefini-
ca do mês ganha um troféu e ele vai pra ilha da ção, mais ansiedade.12
fábrica, e a ideia é que quando o pessoal fosse lá
na frente receber o troféu, a gente desse um grito Transparece, no trecho acima, uma certa preo-
de comemoração. Mas isso não pegou como natu-
ral, não entrou no sangue do pessoal.11
cupação do gestor quanto ao sofrimento (ansiedade)
pelo qual pode passar o empregado que permanece
Em continuidade, constatamos a intenção do com as dúvidas. No entanto, quer parecer que o tra-
trabalhador em reivindicar informações que consi- balhador (ou pelo menos alguns membros da equipe
dera seu direito mas que lhe são omitidas. Essa or- desse gestor) tente pleitear seu direito.
ganização havia anunciado uma importante fusão Outro tipo de situação que evidencia fissura nas
com outra empresa do mesmo segmento, mas não relações de poder verticalizadas é o reconhecimen-
forneceu explicações a seus empregados sobre as to, pelo trabalhador, das investidas da organização
possíveis consequências dessa fusão para o trabalho no sentido de manipular a circulação de informa-
225
e para a vida de cada um. (Demissões estariam a ca- ções e de significados pertinentes ao mundo do
minho? Haveria transferência de empregados para trabalho. Apesar de essas investidas se mostrarem
outras cidades ou estados?) O entrevistado relata cada vez mais sofisticadas,13 há indícios de que nem
ser cobrado por notícias: sempre seja possível bloquear diferentes pontos de
vista, como no relato a seguir, no qual o entrevis-
Por que as pessoas [os seus subordinados] de vez tado reproduz a conversa de um subordinado com
em quando te perguntam: “tem uma novidade so-
bre isso?”. Porque as pessoas não sabem exata-
ele, a respeito da forma como a empresa divulgou
mente. [...] Porque tem coisas que ficam restritas o resultado de uma reunião de negociação com o
a nível de direção, de vice-presidência. Então, exis- sindicato da categoria: “[Ela me disse]: Não é nada
11
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada com gestores de equipes publicada em Silva (2016, p. 126, grifo da autora).
12
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada com gestores de equipes publicada em Silva (2016, p. 129, grifo da autora).
13
Um dos entrevistados, por exemplo, informou ser prática comum na organização o hábito de, poucos minutos após o término
de uma reunião entre a empresa e o sindicato, todos os gestores receberem um resumo com as informações e versões que in-
teressam a empresa e terem como dever reunirem imediatamente com sua equipe para transmitir verbalmente o ponto de vista
da organização, antes que a versão do sindicato circule.
Sumário
daquilo que o sindicato fez acordo com [a empresa]. Um dia alguém [da equipe] falou no grupo [de
Botaram tudo ao contrário [no site da empresa]! A WhatsApp16]: ‘Ah, mas eu falei isso no grupo, que
eu não ia [participar daquela reunião].’ E eu dis-
gente faz um acordo aqui e eles mudam completa- se: mas eu não acompanhei isso no grupo. Daí a
mente pros funcionários ali.”14 outra pessoa falou ‘não, mas foi aquele grupo que
Por sua vez, o trecho que segue demonstra a [tu] não tá’. E eu não sabia que eles tinham esse
capacidade do trabalhador se exercer no âmbito da outro grupo.17
organização, algumas vezes desconfigurando lógi-
Nesse excerto sobressai um esforço de resistên-
cas hierárquicas, como expõe o gestor entrevistado:
cia do trabalhador ao controle, assim como se desta-
“[Os boatos da rádio corredor] são eficientíssimos!
ca um espaço para o exercício do poder de agir (na
Eu chego a ficar sabendo coisas pela rádio corre-
perspectiva de comunicação) com a criação de um
dor, sim, e geralmente estão certas e eu não sabia. De
novo meio para se comunicar, liberado da vigilância
vez em quando não são tão precisos. Mas estão cer-
do gestor.
tos.”15 A partir desse excerto, podemos inferir que,
Sobre a reflexão acerca da análise proposta nes-
se a comunicação formal, realizada “pela” organi-
te artigo, cabe ainda elucidar que as ponderações
zação “para” os empregados, não atende as deman- 226
neste subitem (4) se dão pela apropriação de con-
das de informação e/ou são atrasadas, ou ainda, se
ceitos dos autores que estudam o trabalho como ati-
não existe comunicação “com”, de forma integrada e
vidade em tensionamento com os aspectos desses
participativa, os próprios trabalhadores se encarre-
conceitos que consideramos pertinentes aos proces-
gam de fazer a informação e os sentidos circularem.
sos de comunicação organizacional e à influência da
Outro exemplo de oposição à ordem posta, que
cultura nesses processos. Nesse sentido, inferimos
se concretiza por meio de processos de comunica-
que, se tomarmos as práticas de comunicação em
ção, pode ser observado no excerto de gestor que
perspectiva de serem (também), tarefas de trabalho
conta ter descoberto um fluxo de comunicação pa-
(fato cada vez mais viável no trabalho pós-industrial,
ralelo que foi criado, usado e instituído pelos seus
como abordamos no item 2 deste texto) os exemplos
subordinados. Fluxo do qual ele não participa, e
aqui analisados tendem a elucidar a prática (ou pelo
provavelmente não é bem-vindo:
14
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada com gestores de equipes publicada em Silva (2016, p. 128, grifo da autora).
15
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada com gestores de equipes publicada em Silva (2016, p. 129, grifo da autora).
16
Rede social destinada a troca de mensagens instantâneas, via acesso à internet por meio de telefone celular.
17
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada com gestores de equipes publicada em Silva (2016, p. 99, grifo da autora).
Sumário
menos a tentativa) do poder de agir do emprega- nas das versões da empresa contadas pelos meios
do. Poder de agir na medida em que, as tarefas que de comunicação institucional (jornal interno, mu-
envolvem comunicação (inclusive aquelas criadas ral, etc) e recontadas pelos gestores. Assim, a partir
pelos trabalhadores, em revelia às regras da organi- desses entrelaçamentos entre os distintos conceitos
zação) deixam indícios de que os empregados bus- e campos (da psicologia do trabalho e da comunica-
quem, eles mesmos (pelo menos em algumas situa- ção organizacional), tecemos nossas considerações
ções), se ocupar da atribuição dos significados que a seguir.
lhes interessam nas práticas comunicacionais (em
detrimento da aceitação passiva dos significados CONSIDERAÇÕES SOBRE COMUNICAÇÃO
instituídos pela organização), além de se ocuparem ENTRE ORGANIZAÇÕES E EMPREGADOS
em processos comunicativos com quem desejam se INTERMEDIADOS POR GESTORES NO
comunicar, escapando do controle e resistindo em CONTEXTO DO TRABALHO COMO
algum nível à opressão e à manipulação. ATIVIDADE
Dessa forma, essas situações demarcadas nos
excertos analisados evidenciam conquista de espaço Nesse artigo, buscamos cotejar os conhecimen- 227
– em algum nível, e/ou em algumas situações – pelo tos já estudados a respeito das relações de trabalho
trabalhador para a manifestação de sua subjetivi- – em contornos pertinentes à concepção de comu-
dade (suas significações a partir de suas vivências). nicação organizacional conforme Baldissera (2004;
Esses exemplos também sugerem subjetivação do 2009) – com as noções relativas ao trabalho como
trabalho, na medida em que as possibilidades de atividade (SCHWARTZ, 2011) e ao poder de agir
contraposição ao poder exercido pelas chefias e pela (CLOT, 2010). Essas ponderações entre os diferen-
organização são representadas como transações, sa- tes campos e perspectivas revelaram relação entre
beres, significações compartilhadas. Nessa direção, o entendimento sobre o trabalhador como sujeito
parece possível admitir que os excertos demons- ativo (dotado de poder de agir) e as práticas comu-
trem alguma possibilidade de ampliação dos usos nicacionais no âmbito das organizações, bem como
de si por si dos trabalhadores (SCHWARTZ, 2011), entre a interferência dos traços culturais oriundos
pois que esses, em algum nível, criam (ou recriam) dos convívios sociais dos trabalhadores na confor-
seu meio de produção, ressignificam o trabalho, a mação de saberes e nos processos de significação
organização e os objetos simbólicos que nela circu- sobre os objetos simbólicos pertinentes ao mundo
lam, a partir de sua própria experiência e não ape- do trabalho/da organização.
Sumário
A luz dessas reflexões e partir da pesquisa BALDISSERA, Rudimar. Comunicação, cultura e interação
empírica realizada para a dissertação de mestrado nas organizações. In.: MARCHIORI Marlene (Org.). Cultura
e interação. São Caetano do Sul/SP: Difusão/ Rio de Janei-
(SILVA, 2016), assumimos que as organizações se ro/RJ: Ed. Senac Rio de Janeiro. 2014, p. 87 – 99.
mostram ainda orientadas em seus instrumentos de
comunicação (e agora, na intermediação da comu- ______. Organizações como complexus de diálogos, subje-
nicação realizada pelos gestores) para práticas he- tividades e significação. In.: KUNSCH, Margarida. Comu-
gemônicas de controle e manipulação sobre os em- nicação como fator de humanização nas organizações.
São Caetano do Sul: Difusão, 2010. p. 61-76
pregados. No entanto, parece haver possibilidade
resistência dos trabalhadores, os quais, em alguns ______. Comunicação organizacional na perspectiva da
aspectos, atuam para ampliar as suas oportunidades complexidade. Organicom (USP), v. 10-11, p. 115-120, 2009.
de manifestação. Essas possibilidades evidenciam
______. Imagem-conceito: anterior à comunicação, um
as organizações como espaço de disputa de senti-
lugar de significação. Tese (Doutorado). Pontifícia Universi-
dos, bem como de subjetivação sobre o trabalho, na dade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, 2004.
medida em que abrem algumas brechas para uma
compreensão sobre o trabalho que faça sentido não BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo/SP:
Edições 70, 2011.
228
apenas para o atingimento dos objetivos organiza-
cionais, mas também, para a vida dos empregados. BLUMER, Herbert. A natureza do interacionismo simbólico.
Dessa forma, parece possível inferir que, apesar de In.: MORTENSEN, C.D. Teoria da comunicação. São Pau-
as organizações atuarem na atualização das formas lo, Mosaico. 1980, p. 119 – 137.
de controle, pode haver espaço para a conquista de
ambientes organizacionais mais humanizados. CANGUILHEM, Georges. Meio e normas do homem no tra-
balho. Pro-posições, v.12, n.2-3 (35-36), jul-nov, 2001.
DANTAS, Marcos. A lógica do capital informação: a frag- SILVA, Cássia A. Lopes da. Comunicação organizacional
mentação dos monopólios e a monopolização dos fragmen- na gestão do trabalho: papéis dos gestores de equipe e
tos num mundo de comunicações globais. Rio de Janeiro: natureza da comunicação. Dissertação (Mestrado em Comu-
Contraponto, 1996 nicação e Informação). UFRGS, 2016.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: TENDÊNCIAS da Comunicação Corporativa no Brasil para
Graal, 1979. 2015. Associação Brasileira de Comunicação Empresa-
rial. Disponível em: http://www.aberje.com.br/ebooks/pes-
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: quisa_de_tendencias.pdf. Acesso em: 14 mai. 2016.
Vozes, 1987
(IN) TOLERÂNCIA, LAICIDADE E das diversas confissões deveriam ser dirigidas ape-
DIREITOS HUMANOS: nas aos fiéis, e não colocados para todo o conjunto
da sociedade. Desta maneira, a prerrogativa pública
O LUGAR DA RELIGIÃO NOS DEBATES
da laicidade é a de assegurar para todos os cidadãos
PÚBLICOS DA CONTEMPORANEIDADE e cidadãs uma perspectiva comum na qual possam
exercitar a sua plena cidadania. É essa finalidade
(IN) TOLERANCE, LAICISM AND HUMAN RIGHTS: THE que cabe resguardar de modo que a religião não
PLACE OF RELIGION IN THE PUBLIC DEBATES OF
CONTEMPORANEITY normatize as questões do espaço público, algo que,
entrementes, tem se tornado um desafio na agenda
Celso Gabatz1 política contemporânea.
Palavras-chave: Religião. (In) Tolerância. Laicida-
Resumo: Assistimos ao ressurgimento do papel de. Direitos Humanos.
da religião na vida política. No Brasil, a presença
da atividade política baseada e dirigida por princí- Abstract: We witnessed the emergence of the role
pios de fé nunca foi tão marcante. Nesse contexto, é of religion in political life. In Brazil, the presence 230
oportuno retomar a questão da laicidade, seu papel of political activity based and directed by principles
na vida da democracia e dos direitos humanos, seus of faith has never been marked. In this context it
nexos com a secularização e a tolerância. O princi- should take up the issue of secularism, its role in
pio da laicidade é uma das formas de responder ao the life of democracy and human rights, its links
problema da intolerância. O apelo para que a demo- with secularization and tolerance. The principle of
cracia e os direitos humanos sejam resguardados, secularism is one way to address the problem of
pois o mercado religioso, como no caso brasileiro, intolerance. The call for democracy and human ri-
tem impactado no recrudescimento das disputas re- ghts are safeguarded, for the religious market, as
ligiosas opondo diferentes denominações eclesiás- in Brazil, has impacted the resurgence of religious
ticas com desdobramentos na esfera pública, espe- disputes opposing different church denominations
cialmente na arena política e na mídia. Num Estado with developments in the public sphere, especially
laico, como no caso do Brasil, as normas religiosas in the political arena and the media. In a secular
¹ Doutorando em Ciências Sociais (UNISINOS). Mestre em História (UPF). Pós-Graduado em Ciência da Religião e Docência no
Ensino Superior. Graduado em Sociologia, Teologia e Filosofia. E-mail: gabatz12@hotmail.com
Sumário
state, as in the case of Brazil, the religious norms of O caráter laico do Estado, que lhe permite sepa-
various denominations should be directed only to rar-se e distinguir-se das religiões, oferece à esfera
the faithful, and not put to the whole of the society. pública e à ordem social a possibilidade de convi-
In this way, the public prerogative of secularity is vência da diversidade e da pluralidade humana. Per-
to ensure for all citizens a common perspective in mite, também, a cada um dos seus, individualmente,
which they can exercise their full citizenship. I It a perspectiva da escolha de ser ou não crente, de
is this purpose that fits guard so that no religion associar-se ou não a uma determinada instituição
will regulate the issues of public space, which, me- religiosa (MAFRA, 2002). E, decidindo por crer, ou
anwhile, has become a challenge in contemporary tendo o apelo para tal, é a laicidade do Estado que
political agenda. garante, a cada um, a própria possibilidade da liber-
Keywords: Religion. (In)Tolerance. Laicism. Hu- dade de escolher em que e como crer, ou simples-
man Rights. mente não crer, enquanto é plenamente cidadão, em
busca e no esforço de construção da igualdade.
A atuação dos grupos conservadores faz com
INTRODUÇÃO que a arena política torne-se um espaço de dispu- 231
tas reforçando a pergunta pelos limites aceitáveis
Hoje, há um inevitável crescimento da força da liberdade religiosa nem sempre associada à ple-
pública da religião. Isso tem feito com que a influên- na conformidade dos direitos humanos a todos os
cia de algumas tradições religiosas na esfera públi- grupos sociais (VANEIGEM, 2004). O exercício de
ca seja controvertida e, por vezes, ambivalente em direitos envolve as liberdades pessoais que, por sua
uma sociedade cada vez mais marcada pelo plura- vez, estimulam a perspectiva das obrigações sociais.
lismo e pela complexidade. Diante da impossibili- Estas envolvem o âmbito público, uma vez que é o
dade de respostas definitivas ou adequadas a muitas Estado que deve garantir as condições adequadas
questões pertinentes, o debate religioso tanto no e capazes de assegurar que os direitos sejam exer-
âmbito do Judiciário, do Legislativo e até mesmo do cidos de maneira segura e equitativa por todos os
Executivo, vem desafiando para uma reorganização seus cidadãos e cidadãs.
de demandas com o intuito de garantir a equidade,
a tolerância, alteridade e a perspectiva de que não
sejam exacerbados os conflitos socioculturais.
Sumário
QUESTÕES ACERCA DA LAICIDADE E deixa de ser uma definição arbitrária que não deve-
LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL ria ser privilegiada pelo Estado em detrimento de
outras compreensões. A laicidade incumbe o Estado
A laicidade diz respeito a uma separação entre para que este se mantenha neutro diante de diferen-
religião e Estado. O Estado se apresenta como neu- tes concepções religiosas sem tomar partido, favore-
tro em termos confessionais. As instituições do Es- cer ou dificultar qualquer crença (FONSECA, 2013).
tado também são autônomas em relação à religião. A laicidade pode ser diretamente relacionada
Elas não devem ser submissas aos valores, desejos e a dois direitos fundamentais do constitucionalismo
interesses religiosos. O Estado deve garantir o mes- contemporâneo: igualdade e liberdade de crença.
mo tratamento a todas as confissões religiosas e ga- (CANOTILHO, 1993). Em uma sociedade pluralista
rantir a liberdade de expressão também aos que não como a brasileira, com tantas crenças e opções reli-
creem. De acordo com o jurista Daniel Sarmento, a giosas, o princípio da igualdade converte-se em um
laicidade adotada na maioria das democracias con- instrumento indispensável ao tratamento de todos
temporâneas opera em duas direções: os seus indivíduos com respeito e equidade. Já em
relação à liberdade religiosa individual, ainda que 232
Por um lado ela salvaguarda as diversas confis-
sões religiosas do risco de intervenções abusivas
haja garantia constitucional, a laicidade caracteriza-
do Estado nas suas questões internas, concer- -se como uma diretriz capaz de interditar a promis-
nentes a aspectos como os valores e doutrinas cuidade entre os poderes públicos e algumas doutri-
professados, a forma de cultuá-los, a sua organi- nas religiosas (MARTINS FILHO e NOBRE, 2011).
zação institucional, os seus processos de toma-
da de decisões, a forma e o critério de seleção
Rui Barbosa (1877), por exemplo, considerou
de seus sacerdotes e membros [...]. Mas, de ou- a liberdade religiosa como a mais importante das
tro lado, a laicidade também protege o Estado liberdades sociais. “De todas as liberdades sociais,
de influências indevidas provenientes da seara nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e
religiosa, impedindo todo tipo de confusão en-
tre o poder secular e democrático, em que estão
tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e
investidas as autoridades públicas, e qualquer tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”
confissão religiosa, inclusive majoritária (SAR- (p. 419). A liberdade religiosa enquanto direito fun-
MENTO, 2008, p. 190-191). damental supõe a complexidade de vertentes subje-
tivas e objetivas, individuais e coletivas, de dimen-
É importante observar que a laicidade não sig- sões negativas e positivas, vinculando-se aos entes
nifica a adoção pelo Estado de uma posição ateísta públicos e privados com manifestações de crença e
ou resistente à religiosidade. O ateísmo também não culto, de ordem institucional e procedimental. Por
Sumário
se tratar de um direito fundamental, deveria ser in- igual dignidade e liberdade de todos os cidadãos
terpretado sob o prisma da liberdade e não sob o e grupos de cidadãos, religiosos ou não (MA-
CHADO, 2013, p. 146).
enfoque teológico de uma ‘verdade’ (WEINGART-
NER, 2007, p. 61). A inexistência de um princípio universalista
Discutir questões relativas à liberdade religiosa e de tratamento igual e uniforme que abrangesse
no Brasil passa por alguns assuntos como a questão todos os sistemas religiosos inviabilizou o pleno
da presença dos símbolos religiosos nos espaços pú- reconhecimento dos direitos de certas matrizes re-
blicos, a presença do ensino religioso nas escolas pú- ligiosas, promovendo o acesso particularizado e de-
bicas, feriados religiosos e respeito aos dias de guar- sigual de determinadas religiões ao espaço público
da, assistência religiosa confessional no âmbito de brasileiro, como se um sistema religioso fosse mais
instituições públicas, imunidade tributária, coopera- legítimo que o outro (DAMATTA, 1986). Desta ma-
ção entre igrejas e Estado e, de forma especial, a in- neira, mesmo com o movimento de laicização do Es-
fluência política de alguns grupos religiosos nas ins- tado brasileiro, “em nenhum momento ou lugar, as
tâncias deliberativas de poder (RODRIGUES, 2014). religiões deixaram de ser uma ‘questão de Estado’”
De acordo com Jónatas Machado a liberdade (MONTERO e ALMEIDA, 2000, p. 326). 233
religiosa situa-se no discurso jurídico-constitucio- Danièle Hervieu-Léger (2008) se vale da teoria
nal tendo como premissa e valor de igual dignida- weberiana para explicar o novo papel da religião.
de e liberdade de todos os cidadãos, procurando Para a pesquisadora francesa, as crenças teriam afi-
apresentar um conceito de religião e de liberdade nidades eletivas em relação ao ethos econômico e
religiosa dotado de um grau de inclusão compatível social. O que acontece na contemporaneidade seria
com aqueles valores que afastem dos domínios das uma aceitação de afinidades eletivas entre a indivi-
opções de fé e da vivência religiosa qualquer forma dualidade religiosa e a individualidade da vida mo-
de coerção e discriminação jurídica ou social. derna. Hervieu-Léger parte do reconhecimento da
O exercício da liberdade religiosa individual e dificuldade em delimitar com clareza o conceito de
coletiva supõe a proteção do exercício da liber- religião tendo em vista o dado de uma fragilização
dade de associação religiosa em sentido amplo, das separações entre sagrado e profano nas socieda-
incluindo a constituição de pessoas coletivas de des modernas.
natureza e finalidade religiosa dotadas dos ne-
cessários direitos de auto definição doutrinal e Na mesma direção delineada por Hervieu-Lé-
autodeterminação moral e auto governo institu- ger, um dos precursores da ideia da construção so-
cional [...]. O Estado tem que ser garantidor de cial da realidade, Thomas Luckmann, (2014) refere
Sumário
que a religião se torna invisível na contemporanei- paço público por uma religiosidade historicamente
dade e se dissemina de forma difusa, fazendo com consolidada (ORTIZ, 2001)? Qual o papel ocupado
que suas manifestações extrapolem os limites restri- pela religião em meio às transformações da socie-
tos dos espaços convencionais, deslocando-se para dade moderna (MARTELLI, 1995)?
outras áreas da vida humana em sociedade como a
política e a mídia. Neste sentido, múltiplas são as O ATIVISMO CONSERVADOR NO ESPAÇO
possibilidades de expressão sem seguir os contor- PÚBLICO BRASILEIRO
nos demarcados pelas instituições.
Os desafios, demandas e possibilidades entabu-
Nas sociedades contemporâneas não há mais
campo religioso estável, e os compromissos de
ladas no âmbito do pluralismo religioso na realidade
longa duração deixaram de ser norma. Diversos brasileira contemporânea, reforçam a articulação de
tipos de opções religiosas e múltiplos produtos grupos “conservadores” que embasam as suas ações
religiosos são oferecidos dia a dia nos templos sublinhadas pelo entendimento de que a moderni-
e nos meios de comunicação. Religião exclusi-
va é coisa do passado. O sagrado apresenta-se
dade fez emergir a decadência moral, social, cultu-
multiforme, pouco hegemônico e, sobretudo, em ral e política. Esta decadência estaria diretamente 234
constante movimento (RIVERA, 2003, p. 438). ligada a um “liberalismo teológico” dos movimentos
de esquerda, a suposta subversão promovida pelo
Uma das questões pertinentes na discussão em feminismo, o crescimento da “libertinagem sexual”,
pauta é a partir de quais referências poderia ser a ameaça das fações políticas “comunistas”, o afrou-
possível compreender com maior clareza as profun- xamento das autoridades, das leis, punição aos in-
das mudanças no campo religioso brasileiro (FIS- fratores e o aumento da criminalidade.
CHMANN, 2008)? De igual forma, qual o sentido As identidades “conservadoras”2 articulam-se no
das repercussões nos usos e as apropriações do es- lastro de algumas premissas de restauração de um
² Há uma dificuldade teórica em classificar estes grupos. Em algumas abordagens são chamados de fundamentalistas por uti-
lizarem, com frequência, critérios bíblicos, por vezes, literais, para sustentar suas posições. No entanto, as referências a estes
grupos são cada vez mais seculares, pois é comum utilizarem também terminologias ligadas ao direito, economia, ciências mé-
dicas e biológicas. Percebe-se que não há tanto empenho em argumentar publicamente com base apenas em razões teológicas,
mas muito mais a partir de um sentido de preservação moral e dos bons costumes. É um discurso que apela mais para os valores
civis e a democracia, ainda que esta seja interpretada de forma bastante particular. A pesquisadora Jaris Mujica refere que: “O
ativismo conservador que defende as tradições, [...] penetrou estrategicamente no secular. Isso obriga a pensa-lo de maneira diferen-
te e a repensar a figura do fundamentalismo religioso. É preciso considerar que o olhar que se teve sobre o fundamentalismo criou
imagens essenciais desses grupos e evitou o registro de suas práticas e estratégias, gerando estereótipos. Diante dessa situação, o uso
da categoria ‘grupos conservadores’ aponta a uma posição compreensiva [...] e permite entender as referidas estratégias práticas à
luz das transformações” (MUJICA, 2011, p. 94-95).
Sumário
movimento mítico original, quer seja, a “cristanda- à tona uma reflexão e uma disputa, muitas vezes ve-
de”, a “sociedade”, as “comunidades autênticas” ou a emente, sobre o lugar, os direitos, as representações,
“igreja fiel ou heroica” (BEATY, 2014). Também faz a vez e a voz das minorias. A diferença não pode
alusão à emergência de ditaduras totalitárias que ser compreendida apenas como conceito filosófico
levariam à perseguição e martírio dos cristãos, dos ou semântico (SEMPRINI, 1999, p.11). A diferença é
“homens e mulheres de bem”. Daqueles e daquelas antes de tudo uma realidade concreta, um processo
que “sentem-se chamados” a defender a “verdadeira humano e social que insere os indivíduos em suas
família” (MALAFAIA, 2012). Uma defesa intransi- práticas cotidianas a partir de um processo histó-
gente com rescaldos de belicosidade. rico. É, pois, necessário pensar, entender, refletir a
É importante destacar que a articulação de gru- partir da diferença assumindo uma nova postura.
pos conservadores nas últimas décadas é uma refe-
O indivíduo ou o grupo não são sujeitos quando
rência imprescindível para compreender os contor- pairam sobranceiros acima das condutas práti-
nos das sensibilidades religiosas contemporâneas cas. O sujeito é mais forte e mais consciente de
na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos si mesmo quando se defende contra ataques que
(CATROGA, 2006). A multiplicação dos espaços de ameaçam sua autonomia e sua capacidade de
perceber-se para reconhecer-se e ser reconheci- 235
atividades religiosas, o espetáculo das massas, a pe- do como tal [...]. O sujeito não é apenas aquele
netração de agentes religiosos em todos os níveis que diz eu, mas aquele que tem a consciência de
do estado, acabou por criar novas demandas em re- seu direito de dizer eu. É por isso que a história
lação à força persuasiva da imagem do Brasil como social é dominada pela reivindicação de direitos:
direitos cívicos, direitos sociais, direitos cultu-
nação católica, além de conferir novos instrumen- rais, cujo reconhecimento é exigido hoje de ma-
tos de poder e de influência na formação da opinião neira tão premente que constituem campo mais
pública, modificando a percepção sobre o que cor- delicado no mundo em que vivemos (TOURAI-
responde ao interesse coletivo (SANTOS, 2003). NE, 2006, p. 112-113).
Cabe ressaltar que a realidade brasileira con-
temporânea tem repercutido inúmeras situações A diversidade cultural e religiosa traz à tona
marcadas pelos dilemas das diferenças. O apareci- as contradições da sociedade brasileira que tantas
mento de reivindicações com base na diferença traz vezes se professou universalista e igualitária3, mas,
³ Gilberto Freyre (2001) foi um dos pioneiros do “mito da democracia racial” apregoando que existiria, no Brasil, a igualdade
de oportunidades para brancos, negros e mestiços. A disseminação desse mito permitiu esconder desigualdades raciais, que
podem ser constatadas nas práticas discriminatórias de acesso ao emprego, nas dificuldades de mobilidade social da população
negra e que recebe remuneração inferior à do branco pelo mesmo trabalho e tendo a mesma qualificação profissional. A falta de
conflitos étnicos não caracteriza ausência de discriminação, mas este silêncio favorece o “status quo” que, por sua vez, beneficia
a classe dominante.
Sumário
que diante dos questionamentos multiculturais, da expansão dos direitos das mulheres indicaram
descobre-se profundamente marcada pelas desi- que novos valores se fazem presentes na socie-
dade contemporânea (MACHADO, 2008, p. 243).
gualdades. Em última instância, o que está em jogo
nesta dinâmica é o projeto de uma sociedade cons- O grande desafio é o de pensar a religião no
truída de acordo com as premissas da globalização contexto dos conflitos da contemporaneidade. Com-
e da modernidade. Infelizmente a “análise monocul- preender que a cultura e as identidades acabam se
tural [...] garante que a verdade existe e que é pos- articulando de forma estratégica com a democracia,
sível conhecê-la, que existe uma solução para cada a diversidade e os direitos (BOFF, 2006). A religião
problema e que é a ciência quem dará tal solução” acaba sendo parte da emergência de uma cultura e
(SEMPRINI, 1999, p. 89). condicionada pelos embates e conflitos decorrentes
Ao se defender a existência de uma verdade im- do pluralismo, da intolerância e da consolidação de
posta a toda coletividade mesmo sabendo que exis- políticas democráticas.
tem direitos absolutos, princípios jurídicos muito
relevantes são desconsiderados. (EMMERICK, 2013, A questão não é mais, pelo menos num futuro
278-279). Os direitos somente podem ser garanti- próximo, se ‘a religião’ deve estar presente na
esfera das instituições públicas, mas como dar 236
dos com a proibição de imposições de moralidades sentido a esta presença, como perceber suas di-
religiosas hegemônicas. A forte atuação de grupos ferentes modalidades, impactos e fontes e como
religiosos conservadores no parlamento brasileiro avaliar as distintas implicações das relações en-
busca garantir algumas prerrogativas morais e teo- tre esses atores (e mesmo projetos) religiosos e
seus interlocutores e adversários não religiosos
lógicas na regulação jurídica no tocante aos direitos (BURITY, 2008, p. 93).
relacionados à família, sexualidade, reprodução e
aborto. O reconhecimento da sexualidade e da re- É preciso sublinhar que a reconfiguração da de-
produção como direito humano, por exemplo, ainda mocracia no Brasil, ainda que de forma incipiente,
é algo bastante recente. Tal fato redunda em uma produziu avanços e gerou modificações importan-
prevalência do senso comum e de tabus na socieda- tes nas estruturas políticas. Houve mobilização e
de em geral. abertura para que surgissem novos agentes. Neste
contexto, foram sendo demarcados fluxos, instaura-
O crescimento dos movimentos feministas e os
ganhos na criação de leis que regulamentam o dos intercâmbios e ampliados domínios. Foram sur-
aborto e a implementação de politicas publicas gindo novas vozes que estenderam a repercussão de
referidas a direitos sexuais e reprodutivos, ao lado temas concernentes à diversidade de gênero, sexu-
Sumário
al, cultural, ética e, também, souberam repercutir as co visando consolidar determinadas leis, subjugar
demandas pela garantia de políticas de convivência políticas públicas de inclusão das minorias, criticar
e alteridade, consolidação de direitos e tolerância materiais educacionais produzidos pelo Estado de
(SORJ, 2001). modo a garantir e ampliar o horizonte dos direitos
As mudanças ocorridas no âmbito do processo constitucionais.
político brasileiro com modificações nas estruturas
Em suma, os grupos conservadores se trans-
do Estado induzindo para uma relativa descentrali- formaram. Reconstruíram-se politicamente em
zação dos capitais, a expansão da democracia e dos uma reação diante da secularização. No entanto,
direitos humanos forçou os grupos conservadores a esta transformação não foi única. Esses grupos
construir um discurso público tendo como premissa têm [...] reconstruindo seus discursos e seus
conceitos para se adaptarem às mudanças polí-
os ideais em torno da defesa da vida. Houve uma ticas e econômicas nos últimos séculos [...]. A
mudança estratégica de ação e discurso que tem inserção na política partidária, nas direções, nos
consolidado: movimentos político-sociais de base mostra que
são grupos dinâmicos, diferentes das sociedades
A participação de novos atores políticos [...]. Um herméticas que se têm imaginado regularmente.
interesse dos meios de comunicação no tema dos O ativismo conservador inseriu-se no debate da 237
direitos, exclusão, democracia, justiça em que as democracia formal utilizando seus procedimen-
formas clássicas de exclusão [...], apesar de ser tos. Nessa inserção formou agrupamentos laicos
uma prática que não foi eliminada dos imagi- e aprendeu a ser estrategicamente secular. O as-
nários e das relações sociais, já não são legiti- sunto é que é preciso reconhecer que o ativismo
mados pelos discursos políticos. Produz-se uma conservador também é parte da democracia, de
fenda na correlação entre as elites, isto é, entre seus procedimentos e de seus mecanismos de
o controle dos grupos conservadores e o Estado. demanda. (MUJICA, 2011, p. 95-96).
[...] Novos atores, novos processos e um sistema
diferente, diante do qual tem de elaborar novas Esta adequação contextual dos grupos conser-
maneiras de penetração e controle. (MUJICA,
2011, p. 91).
vadores traz à tona um deslocamento dentro da so-
ciedade civil organizada. Consolida-se uma agenda
Há uma efetiva preocupação não apenas em re- de trabalho e de incidência pública através de gru-
lação ao discurso, mas, sobretudo, com estratégias pos profissionais especializados e de forças políticas
práticas e ações efetivas nos espaços de interação que embora não se valham explicitamente das refe-
social. Desta maneira, o que ocorre é uma perma- rências do conservadorismo religioso, manifestam-
nente e obstinada busca por influir no espaço públi- -se contrários a determinados temas.
Sumário
A defesa da vida aparece como uma estratégia constituir meios adequados para incorporar os con-
política e discursiva moralmente efetiva, mas flitos inerentes às lógicas culturais e religiosas nos
tem problemas quando se aproxima da prática
concreta das pessoas. Não pode superar o pro- debates públicos (ROSADO-NUNES, 2008, p. 67-81).
blema da mortalidade materna, os problemas de
debate sobre a vida digna, a demanda no uso de AS AMBIVALÊNCIAS E CONTORNOS DA
contraceptivos, a tendência à descriminalização (IN) TOLERÂNCIA NA ATUALIDADE
do aborto. (MUJICA, 2011, p. 98).
ticos, conforme postulado no Iluminismo. Nos diais lecimento de ações conjuntas que proporcionam a
atuais, de acordo com Hall, as identidades seriam garantia de liberdade e o respeito pela diversidade
cada vez mais descentradas, múltiplas, descontínuas religiosa (ORTIZ, 2001).
e plurais. Diante desta realidade, o grande desafio é Segundo levantamento do Disque 100, da Secre-
a ampliação e o respaldo de alternativas que plenifi- taria de Direitos Humanos da Presidência da Repú-
quem o entendimento, o diálogo acerca da diversida- blica, as denúncias de intolerância religiosa cresce-
de, as abordagens que sublinhem a tolerância. ram mais de 600% de 2011 a 2012 (INTOLERÂNCIA
A tolerância é o alicerce dos direitos humanos, RELIGIOSA, 2013). A ONG Safernet Brasil recebeu
do pluralismo, da democracia e do Estado de Direi- de 2006 a 2012, quase 300.000 denúncias anônimas
to. Implica em toda e qualquer rejeição de princí- de páginas e perfis em redes sociais com teor de into-
pios que estejam alinhados com o dogmatismo e o lerância religiosa, direcionadas, principalmente con-
absolutismo. É com base na tolerância que é possí- tra as religiões de matriz africana (SAFERNET, 2013).
vel fortalecer as normas enunciadas nos instrumen- Os grupos conservadoras articulam-se no las-
tos relativos aos direitos humanos (PNDH-3, 2010). tro de algumas premissas de restauração de um mo-
A tolerância necessita ser fomentada pelo conhe- vimento tido como original, quer seja, a “cristanda- 239
cimento, pela abertura dialogal, pela liberdade de de”, a “sociedade”, as “comunidades autênticas” ou a
pensamento, de consciência e de crença. Representa “igreja fiel ou heroica” (BEATY, 2014). Também há
a harmonia nas diferenças. Não se consolida ape- uma clara alusão à emergência de ditaduras totalitá-
nas enquanto um dever suscitado pelas premissas rias que levariam à perseguição e martírio dos cris-
éticas, mas representa uma necessidade política e tãos, dos “homens e mulheres de bem”. Daqueles e
jurídica (FISCHMANN, 2008). daquelas que “sentem-se chamados” a defender a
A possibilidade da convivência entre as dife- “verdadeira família” (MALAFAIA, 2012). Trata-se,
rentes religiões através do respeito mútuo em meio na maioria das vezes, de uma defesa intransigente e
às diferenças, incluindo os cidadãos que não profes- capaz de convergir para reforçar atitudes belicosas.
sam qualquer confissão religiosa, faz-se através de Para o pesquisador Joanildo Burity (2007) ope-
caminhos que permitam indicar meios para respal- ra-se, nos dias atuais, uma espécie de incorporação
dar a paz e a democracia a partir de uma cultura dos da religião por parte do Estado à cultura e à ordem
direitos humanos. Ainda que seja necessário am- ideológica, econômica e política. As reconfigura-
pliar esta perspectiva no Brasil, este aspecto parece ções políticas e sociais impostas a partir do pro-
ser possível tão somente pelo diálogo e pelo estabe- cesso de redemocratização da sociedade brasileira
Sumário
assim como a imposição de uma ordem neoliberal que são incorporados temas como os direitos eco-
estariam vinculadas a redesenhar as fronteiras en- nômicos, sociais e culturais, ao lado dos tradicionais
tre o público e privado. direitos civis e políticos. Neste cenário, é primor-
De acordo com o jurista Roberto Blancarte (2008), dial agregar os direitos humanos, com base nos pa-
os Estados modernos deveriam pautar suas políticas râmetros internacionais e constitucionais. Há que
públicas numa “moral pública decidida por vontade se deixar de lado extremismos religiosos ou laicos
popular em função do interesse público”. Neste sen- em detrimento da tolerância, do diálogo e do mútuo
tido, atores religiosos tanto sob a perspectiva indi- aprendizado entre os diversos protagonistas que ar-
vidual ou coletiva poderiam opinar nos assuntos de ticulam o debate.
interesse público, mas sem a pretensão de influenciar A atuação de atores religiosos no espaço pú-
a constituição de políticas públicas e nas ações do blico em relação a temas controversos do ponto de
Estado. Para o autor, compete à representatividade vista da moralidade religiosa tem sido paradoxal e
política, aos parlamentares constituídos pela vontade ambígua. Numa sociedade diversa, multicultural e
popular mediante o modelo democrático representa- democrática como a brasileira, a participação de di-
tivo, o pleno exercício das políticas de Estado. ferentes grupos na consolidação de políticas públi- 240
cas e na regulação jurídica pode ser legítima e posi-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tiva, desde que sejam estabelecidas regras nas quais
os argumentos religiosos sejam traduzidos para o
As reflexões acerca do fundamentalismo, into- âmbito constitucional de modo a orientar a defesa e
lerância e laicidade à luz dos direitos humanos no a preservação dos direitos humanos.
contexto brasileiro contemporâneo são permeadas Por fim, o efetivo exercício dos direitos sob a
pela complexidade que envolve a construção de um perspectiva dos direitos humanos, demanda ações
ambiente onde os paradigmas religiosos servem políticas, jurídicas, emancipatórias, criativas e
como instrumentos de influência política no Estado transformadoras para assegurar aos indivíduos o
através de hierarquias organizadas e com poder de exercício de sua plena autonomia e dignidade. A
barganha junto aos legisladores e membros do exe- transformação das mentalidades é um processo es-
cutivo ou como forma de instrução capaz de disci- sencial à vivência de direitos. Estes, por sua vez,
plinar a opinião pública. trazem consigo a prerrogativa de construção de um
No Brasil, vive-se um momento de redefinição novo imaginário social sobre os temas dos quais
e reformulação da agenda de direitos humanos, em eles tratam.
Sumário
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out. 2001. 1999
Sumário
243
Sumário
1
Doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pós-Graduação em Informática na Educação, Desenvolve estudos
e pesquisas sobre a Interdisciplinaridade e Redes Sociais na Educação. https://ufrgs.academia.edu/Cl%C3%A1udioDeMusac-
chio. claudiodemusacchio@gmail.com.
2
Andréa Moraes é docente de Língua Portuguesa e Literatura na ETE Bernardo Vieira de Mello no município de Esteio. Possui
Especialização em Literatura Infanto-juvenil pela Universidade de Caxias do Sul. E- mail: andrea.moraes97@yahoo.com.br.
Sumário
duals surveyed, and the results point to possibilities educacional (público ou privado) do Brasil (da edu-
for improvement in student motivation. The use of cação básica ao ensino superior). Como se trata de
social networks has brought new perspectives in um modelo fragmentado de ensino, onde as disci-
the affective state of students’ interest in research plinas não discutem seus temas comuns, torna-se
and publication on Facebook, where everyone could difícil para o docente demonstrar como as relações
see the attractiveness of the environment and the comerciais, sociais e humanas são por excelência,
will of the students want to participate. Production interdisciplinares.
of audio and video was also considered a significant Se por um lado a legislação outorga possibili-
advance for research because students were able dades de tornar o ensino mais interdisciplinar, por
to expose physics in front of the cameras, losing outro lado, a praxiologia docente não contempla
shyness and allowing greater reflection and critical melhores espaços em seu fazer diário. Quase sem-
of themselves. Interdisciplinary provided motiva- pre os docentes estão direcionados ao cumprimento
tion in students to studies, encouraging scientific das ementas curriculares que por não contempla-
research, reflection, interaction and collaboration rem metodologias de pesquisa e interdisciplinares
between them, the production of program content não conseguem desenvolver adequadamente seus 245
by the students and the constant view of the stages projetos de pesquisa. Desta maneira, segundo Mu-
of research through a social networking tool. sacchio (2012a):
Keywords: Interdisciplinarity. Social media. Audio
... se numa perspectiva, a escola, através de suas
and video in the classroom. Social networking in oficinas, pode oportunizar a interdisciplinarida-
education. Dispossession in education. de, através de atividades práticas e científicas,
numa abordagem mais profunda, já em sala de
aula, e tendo os docentes compreendido as prá-
ticas pedagógicas interdisciplinares e a inten-
INTRODUÇÃO cionalidade da ação interdisciplinar, os temas
podem aproximar as áreas de conhecimento,
A principal crítica ao modelo atual de ensino descobrindo novos vieses sobre as ciências (MU-
tradicional, exercido pelas escolas, é que os currí- SACCHIO, 2012a, p. 9).
culos não exercem o papel que de fato e de direito,
constam nas Leis de Diretrizes e Bases. A Lei de Di- A experimentação cientifica em sala de aula
retrizes e Bases da Educação Brasileira, Brasil (LDB proporciona a construção gradual do desenvolvi-
9394/96) é a legislação que regulamenta o sistema mento interdisciplinar, pois oportuniza a aprendi-
zagem significativa. E para empregar a metodologia
Sumário
para a construção da interdisciplinaridade e pes- Para isto, é necessário, através das oficinas e de
quisa cientifica em sala de aula, segundo Japiassú exercícios interdisciplinares, buscar entender como
(1976), é necessário construir cinco etapas distintas: as ciências podem-se locupletarem, através de pro-
• Construção da equipe interdisciplinar cons- jetos de pesquisa, de experimentações científicas
tituída pela escola como grupo de estudo e em sala de aula, e da publicação de trabalho que de-
pesquisa, o ideal é que ela seja instituciona- monstrem estas relações.
lizada; O uso pedagógico da mídia de áudio e vídeo in-
• Estabelecimento de conceitos comuns às vá- sere o estudante no contexto interdisciplinar, pro-
rias disciplinas; movendo atividades de pesquisa escolar, construção
de roteiros e gravação de áudios e vídeos. Além do
• O estabelecimento de pesquisas e projetos
aspecto da pesquisa escolar, o estudante realiza re-
em todas as disciplinas com estudo da pro-
flexões sobre as informações coletadas e constrói
blemática da pesquisa;
análises nos debates de estudo em grupo.
• A divisão de tarefas entre os atores dos proje-
tos de pesquisa; PRÁTICAS PEDAGÓGICAS 246
• A confrontação dos resultados apurados. INTERDISCIPLINARES
O grande desafio para a praxiologia docente
são as aplicações em sala de aula que permitam res- Nos cenários internacionais, muitos pensado-
gatar as proposições da interdisciplinaridade que res, discutindo a teoria da complexidade, e moven-
são as ações integradoras que culminam num pro- do-se em direção a interdisciplinar visão contempo-
jeto de educação que potencialize o ensino-apren- rânea da interpretação dos fenômenos observáveis,
dizagem, fortaleça as relações entre os saberes, per- tem promovido um movimento cientifico que pri-
mita que as ciências trabalhem juntas, integradas e vilegia, senão o nascimento de novos paradigmas,
inter-relacionadas. pelo menos, a retomada de velhos ideais não linea-
Dessa forma, a experimentação científica em res de se fazer ciência.
sala de aula propicia as condições necessárias para Entre os teóricos, Edgar Morin ( pensamento
as atividades interdisciplinares, tendo em vista o complexo e os Sete Saberes necessário à educação
seu caráter fortemente baseado na busca de solu- do futuro), Edward Norton Lorenz ( 1917-2008) (
ções por diversas ciências, não se prendendo a ne- efeito borboleta), Ilya Prigogine (1917-2003) ( teo-
nhuma delas. ria das estruturas dissipativas), Karl Ludwing Von
Sumário
Bertalanffy (1901-1972) (teoria geral dos sistemas), desenvolvimento paulatino e crescente da noção de
unanimemente acreditavam que o todo seria maior especialização, privilegiando a “perfuração vertical”
que a soma das partes, isto é, que uma visão inter- e epistemológica em detrimento da abertura das
disciplinar de se fazer ciência levaria o Homem a re- análises e sínteses mais abrangentes e totalizadoras
conhecer qualidades, que não são vistas na composi- nos estudos dos fenômenos observáveis.
ção da visão disciplinar e unilateral de cada ciência. Na contramão do movimento de criação cada
No cenário nacional, desde a década de 70, se vez mais delimitado das ciências, os grandes cien-
discute as interdisciplinaridades e transdisciplina- tistas, tanto na fase renascentista (Da Vinci), quan-
ridades no contexto do surgimento das novas ciên- to no período iluminista do enciclopedismo ( mo-
cias e nas mudanças de paradigmas educacionais. vimento filosófico cultural que buscava catalogar
Alguns expoentes como os trabalhos de Ivani Fa- conhecimento humano) onde se permitiam for-
zenda (2006), PUC-SP, Hilton Japiassu (1976), PUC- mações tão adversas quanto contraditórias como
-RJ, e em Portugal, Olga Pombo (1993), Universida- filosofia, química, matemática, astronomia, biólo-
de de Lisboa, deixam bem claro que a discussão está gos, artistas plásticos, e até literatos, serviam como
apenas começando, embora alguns frutos já estejam exemplo e como os saberes podiam ser vistos como 247
sendo colhidos. parte de uma totalidade mais ampliada da produção
O conceito do que é indisciplinar é tão antigo o conhecimento (SILVA, 2001).
quanto cartesiano, e implicava necessariamente em Entretanto, no século XIV, com o surgimento
fragmentar a realidade em segmentos, onde a ciên- das primeiras universidades, sobre forte contexto
cia pudesse se tornar objeto de observação cientifi- escolástico (religioso), instituíram o conceito de dis-
ca cada vez mais fragmentada e consequentemente ciplina, designada como matéria, que mais tarde se
o objeto do conhecimento erigido por leis e teorias chamaria de ciência. O avanço científico, portanto,
epistemológicas cada vez mais reduzidas. das ciências foi o modelo epistemológico reducio-
E este conhecimento racional, sob o ponto de nista cartesiano que passou a tratar ciência como
vista da análise e da síntese, segundo Locke (1988), uma corrente especifica do pensamento e a observa-
numa simplificação reducionista, concebera o co- ção dos fenômenos reduzidos a um objeto simples.
nhecimento como uma especialização, caminhan- Esse reducionismo atravessou toda a fase indus-
do contra a ideia da visão totalizadora das ciências. trial e cada vez mais, diminuindo cientificamente o
Desta maneira, a estratégia utilizada pela metodolo- foco do objeto de estudo. Colaboraram mais ainda
gia baseada fundamentalmente na experiência foi o as sucessivas descobertas científicas nos campos
Sumário
das tecnologias e metodologias para um novo para- é trazer o estudante para querer aprender, depois
digma que se instalaria por todo o Ocidente - disci- é buscar um método ou mídia a que ele se adapte,
plinaridade. Quanto mais especialista for o estudo goste, contemple e participe.
ou o estudioso, mais credibilidade teria um trabalho O grande avanço das metodologias e práticas
científico (MINAYO, 1992). pedagógicas para o uso de experiências científicas
Sua institucionalização transcorreu sem ne- em sala de aula está no cerne das discussões da in-
nhum trauma paradigmático, até que as proposi- terdisciplinaridade e transdisciplinaridade enquan-
ções de tais especializações começaram a não mais to abordagem sistêmica, não mais como discurso,
dar conta do objeto observado, necessitando reco- posto que já se conheça suas implicações, mas como
nhecer que para determinados casos seriam neces- praxiologia urgente para continuar avançando, a
sários a prognóstica colaboração de duas ou mais velocidade cada vez maiores no entendimento das
ciências a serviço da análise e da síntese, ainda mais ciências e das sociedades, exigindo dos pesquisado-
se considerar que tudo o que está no mundo social- res um tratamento mais sintético, totalizante, holis-
-histórico é indissolúvel e entrelaçado com o simbó- ta e globalizante.
lico (CASTORIADIS, 2000). O que se busca nesta pesquisa é a transforma- 248
Tudo começou a ser esclarecido, quanto certo, ção do docente em um ser pesquisador, e o ser in-
que ciências advindas do hibridismo ou mestiçagem terdisciplinar é uma qualidade inerente ao pesqui-
começassem a provocar mudanças em seus enun- sador docente, que busca alternativas, cruzamentos,
ciados epistemológicos fundamentais, recorrendo ideologias, problematizações, considerações e pare-
aos fundamentos da abordagem analítica (MUSAC- ceres, ampliando sobremaneira seu leque de possi-
CHIO, 2012b). bilidades de respostas. Mas também o estudante é
Nesta perspectiva, produzir conhecimento não privilegiado nesta pesquisa, pois sua participação é
era mais possível tendo em vista que a fragmenta- fundamental, tendo em vista que o principal obje-
ção exposta, cartesiana, disciplinar, não permitiria tivo é transformar o estudante em pesquisador e a
composição ou montagem de seus construtos epis- sala de aula, através de metodologias que coloquem
temológicos MORIN (2000). o estudante como pesquisador e o docente como
Por outro lado, encontrar razões que levem os questionador das outras áreas do conhecimento,
estudantes a se interessar pela pesquisa científica e buscando ajuda noutros saberes, através dos outros
pela aprendizagem significativa é o grande desafio docentes em sala de aula.
docente da nossa era. O maior desafio à docência
Sumário
permitir a construção dos conteúdos escolares pelos • Incentivar docentes a serem pesquisadores e
próprios estudantes. publicarem em revistas e periódicos especia-
Foram elencadas as seguintes premissas para a lizados, os artigos produzidos pelos estudan-
pesquisa de campo: tes e docentes sobre os conceitos da interdis-
• Elaborar práticas educativas que contemplem ciplinaridade e as pesquisas em sala de aula
docentes de várias áreas do saber, a fim de utilizando o ambiente Facebook;
promoverem a construção do conhecimento, • Incentivar o desenvolvimento do pensamen-
correlacionando às disciplinas e buscando to lógico-matemático, análise e reflexão dos
entender como cada uma delas ajudaria a en- conteúdos produzidos pelos estudantes e me-
tender as demais, no contexto interdiscipli- todologia de avaliação 360º, isto é, estudantes
nar; avaliando a participação dos colegas nas ati-
• Introduzir práticas educativas que busquem vidades em grupo.
apoiar o currículo escolar através de experi-
ências em sala de aula, ajudando os estudan- DESCRIÇÃO DETALHADA DOS MATERIAIS
tes a produzirem pesquisa científica escolar UTILIZADOS 250
com o rigor científico necessário;
• Introduzir o Facebook como ambiente inte- Para a pesquisa realizada foram escolhidas três
grado e naturalmente colaborativo, auxilian- turmas do segundo ano do Ensino Médio e cada tur-
do e mostrando aos estudantes a importância ma teve um tema geral. Os temas foram: contos de
do trabalho colaborativo com o uso dos seis fada, contos de terror e mitologia. A turma foi divi-
letramentos multissemióticos existentes na dida em grupos de estudantes com quatro ou cinco
ferramenta de rede social Facebook (leitura, participantes, onde cada grupo escolheu uma temá-
escrita, figuras, fotos, áudios e vídeos); tica.
• Relatar como estes encontros interdisciplina- A turma 201 ficou com os contos de terror en-
res contribuem para um ensino mais holísti- fatizando o terror psicológico, o filme Annabelle, A
co e significativo. Esta significação será ex- Lenda de Tomino’s Hell e o Exorcismo. A turma 202
plorada através do incentivo à resolução de escolheu os contos de fada trabalhando com os se-
problemas, pesquisa na Internet, discussão guintes contos: Cinderela, Pequena Sereia, Chapeu-
dos conteúdos e exposição dos estudantes às zinho Vermelho, A Bela e a Fera, Rapunzel e Branca
ideias compartilhadas; de Neve. E a turma 203 desenvolveu a pesquisa so-
Sumário
bre a mitologia dividida em: Celta, Persa, Egípcia e • Passo VI - Cada grupo e temática construíram
Romana. um texto técnico sobre a pesquisa realizada,
Para cada grupo foi apresentado o seguinte cro- segundo as normas técnicas da ABNT. Foi
nograma de atividades: publicado o primeiro caderno técnico de pes-
• Passo I - Pesquisar na internet informações quisa escolar na Instituição de Ensino.
sobre sua temática. • Passo VII - Foram escritos três artigos cien-
• Passo II - Enquanto pesquisavam, os grupos tíficos, um para cada tema (Contos de Fada,
publicavam post com as informações pesqui- Contos de Terror e Mitologias).
sadas. Foram trabalhados os seis letramentos • Passos VIII - Na pesquisa foram considerados
multissemióticos: escrita, leitura, fotos, figu- três aspectos para avaliação, tanto do ensi-
ras, áudio e vídeo. Todos os estudantes leram, no, quanto da aprendizagem. No ensino, os
curtiram e aprenderam sobre as temáticas de estudantes avaliaram a metodologia adotada
todos os grupos. na pesquisa, utilizando os conceitos de In-
• Passo III - Realizaram entrevistas com outras terdisciplinaridade. Na aprendizagem, os es-
áreas do conhecimento. Docentes da escola tudantes puderam avaliar suas participações 251
foram convidados a dissertar sobre as temá- nos estudos e pesquisas em grupos, todos os
ticas. estudantes puderam avaliar todas as partici-
• Passo IV - Foram realizados três encontros pações nas postagens, curtindo e comparti-
interdisciplinares com dois ou mais docentes lhando. E a prova tradicional, sobre o tema
em sala de aula, debatendo e discutindo con- estudado, onde os estudantes puderam ter
teúdos comuns às disciplinas presentes. resultados significativos
• Passo V - Aprendizagem de recursos tecnoló-
gicos como editores de áudio e vídeo, realiza- Materiais Tecnológicos
do com docentes e estudantes participantes
da pesquisa. Os vídeos foram publicados na Foram disponibilizados os seguintes materiais
plataforma YOUTUBE e postados os links no tecnológicos:
GRUPO DE ESTUDOS no Facebook. O en- • Format Factory – permite alterar os tipos de
dereço de acesso público pode ser encontra- arquivos de áudio e vídeo para trabalhar no
do no link a seguir: <https://www.facebook. editor MOVIE MAKER.
com/groups/lingua.portuguesa.literaratura/> • Movie maker – editor de vídeo.
Sumário
CRONOGRAMA DA PESQUISA
A pesquisa iniciou em março de 2015 e terminou em junho de 2015. Os trabalhos de conclusão ainda
estão sendo executados pelos grupos. As publicações dos artigos científicos ocorrerão nos meses de julho a
setembro. A seguir o cronograma:
Posts no Facebook e
Publicação do vídeo no YOUTUBE X X
ção tradicional de ensino x educação proposta com Interdisciplinaridade, pois realizavam os projetos
o uso da metodologia apresentada. interdisciplinares sem a comunicação ativa, em sala
Para o levantamento das informações foram de aula, com os estudantes, ferindo a principal pre-
utilizados instrumentos de coletas de informações missa da interdisciplinaridade que é a interseção
através de questionários e entrevistas com os pes- dos saberes na ação e reflexão. (FAZENDA (2006).
quisados. Foram utilizados três eixos para a pesqui- Entretanto, os 22% que sabiam do uso conceitu-
sa: aspecto interdisciplinar, aspecto da comunicação al e correto da interdisciplinaridade não a pratica-
e aspecto tecnológico. vam porque as escolas não estão fisicamente prepa-
radas para este modelo educacional, tendo em vista
Aspecto Interdisciplinar que a maioria dos docentes trabalham em diferentes
escolas e não podem estar nas salas de aula com ou-
Dois ou mais docentes em sala de aula – Foram tros docentes, pois estariam em outras escolas.
apresentados aos grupos analisados três experiên-
cias de aulas interdisciplinares, e segundo os depoi- Aspecto da Comunicação
mentos de estudantes e docentes, as aulas se tor- 254
naram palcos de embates epistemológicos sobre os Uso das redes sociais – no ensino tradicional, a
assuntos transcorridos, demonstrando aos presen- maioria das instituições pesquisadas, não possuem
tes que as discussões dialógicas propiciadas pelos um instrumento de comunicação adequado para os
encontros, aproximaram as disciplinas, diminuíram estudantes, dentro e fora da escola. 92% dos docen-
as lacunas existentes entre elas, abordando, inclusi- tes alegaram utilizar o Moodle para apoio logísti-
ve, as fronteiras de ciência. co e estratégico, isto é, para se relacionar com os
O resultado, conforme preenchido nos instru- estudantes no que diz respeito a disponibilização
mentos de coleta de informações, “trouxe mais mo- dos materiais pedagógicos como textos, atividades,
vimento e reflexão possibilitando espaços para dis- exercícios e até mesmo provas, e que os recursos de
cussão, perguntas e respostas”, conforme salientou comunicação e atividades assíncronas não são bem
estudante (A) do ensino médio de um dos grupos vistos pelos estudantes, tornando-se inócuos e con-
pesquisados. traproducentes.
2% dos docentes tinham algum conceito sobre Como resultado da pesquisa, o uso pedagógico
a metodologia interdisciplinar de ensino e aprendi- das redes sociais como ambiente de comunicação,
zagem. 78% diziam saber o conceito errôneo sobre interação e colaboração se mostrou bastante efi-
Sumário
ciente, sob diferentes aspectos: aumentou a rapi- taram de realizar entrevistas com outros docentes
dez nas comunicações (88%), é um ambiente onde da escola e fora dela.
os estudantes desejam estar constantemente (92%),
as postagens foram consideradas fontes de estudos CONSIDERAÇÕES FINAIS
(78%), a rede social permitiu espaços de relaciona-
mentos que não haviam presencialmente em sala de Com a pesquisa, espera-se introduzir práticas
aula (81%), apresentação de posts com fotos, figuras, pedagógicas interdisciplinares na escola, mostran-
áudios e vídeos de atividades que ajudam a melho- do tecnologias criativas, capacitando e habilitando
rar o entendimento dos conteúdos escolares (94%) e, docentes e estudantes às técnicas e metodologias do
trabalhos em grupo (77%). uso do Facebook na sala de aula e mídias de áudio
e vídeo na construção dos conteúdos disciplinares,
Aspecto Tecnológico realizados pelos próprios estudantes.
Também se espera já nos primeiros trabalhos
Uso de mídias de Áudio e Vídeo – no ensino publicados que a Escola privilegie ações sobre as
tradicional, a maioria das instituições pesquisadas, metodologias adotadas no currículo para que con- 255
utilizam, em geral, vídeos em sala de aula. Mas são templem mais momentos de pesquisa em sala de
vídeos prontos, criados por entidades educacionais aula e, em especial, o uso das mídias sociais na edu-
ou empresas especializadas. A configuração propos- cação, privilegiando as técnicas e didáticas interdis-
ta pela metodologia foi que os próprios estudantes ciplinares, aproximando docentes e disciplinas, po-
desenvolvessem as pesquisas sobre os temas disci- tencializando o uso de tablets e celulares.
plinares, agrupassem em pequenos grupos de 4 a 5 Os resultados apurados na pesquisa demons-
estudantes, realizassem as pesquisas sugeridas pe- traram números expressivos quanto a melhoria na
los docentes e gravassem vídeos das reflexões reali- aprendizagem, produzindo motivação, melhoria
zadas sobre o assunto. nos trabalhos em grupo, preferência pela adoção de
O resultado foi que 94% dos docentes afirma- pesquisa escolar como forma de melhorar a busca
ram que os próprios estudantes preferem construir das informações, permitir que os estudantes sejam
os conteúdos disciplinares, só não sabiam como fa- protagonistas na busca das informações e na cons-
zer isso. 84% dos estudantes estavam mais motiva- trução dos conteúdos programáticos. E, por fim, a
dos a realizar trabalhos em grupo com o uso das metodologia adotada, segundo os resultados apu-
redes sociais e das mídias de áudio e vídeo. 97% gos- rados, permitiu avanços significativos na melhoria
Sumário
das práticas pedagógicas, mudanças nas estratégias __________. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São
e didáticas docentes, maior velocidade nas comuni- Paulo: Paulus, 2003.
cações com o uso de ambientes de redes sociais em JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do
sala de aula, aumentando substancialmente a inte- saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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disponível em: http ://www.pucsp.br/ecurriculum acesso
em: 10 mar. 2015.
Cléa Coitinho Escosteguy (Feevale)1 Abstract: This study is themed cultural events pro-
Daniel Conte (Feevale)2 duced in the village quarry, peripheral area of the
Magna Lima Magalhães (Feevale)3 municipality of Esteio (RS). It is noteworthy that
the study specifically addresses the carnival and the
Resumo: Este artigo tem como tema as manifesta- Hip-Hop as cultural elements present and valued
ções culturais produzidas na Vila Pedreira, área pe- by the community under study. The choice of hip
riférica do município de Esteio (RS). Destaca-se que hop and the carnival was not an easy task, since
o estudo aborda especificamente o carnaval e o Hi- all manifestations of Vila are important and involve 257
p-Hop como elementos culturais presentes e valo- the residents, however, for the sake of better direct
rizados pela comunidade em estudo. A escolha pelo the research, these were selected. The paper analy-
hip hop e o carnaval não foi uma tarefa fácil, posto zes the relationship between the town quarry and
que todas as manifestações da Vila são importan- its cultural production and its relationship with the
tes e envolvem os moradores, no entanto, por uma Trinity Education Centre Incentive space such ma-
questão de melhor encaminhar a pesquisa, foram nifestations as the school.
estas as selecionadas. O trabalho analisa a relação Keywords: Culture. Pedreira Village. Esteio. Edu-
entre a Vila Pedreira e sua produção cultural, bem cation Center.
como sua articulação com o Centro de Educação
Analisar a escola e, neste momento o Centro A partir da perspectiva da associação entre es-
de Educação Trindade, como espaço sociocultural, cola e cultura, vemos suas relações intimamente li-
4
significa compreendê-la na ótica da cultura, sob um gadas ao universo educacional. Cabe questionar por
olhar mais detalhado, que leva em conta o dinamis- que hoje essa constatação parece se revestir de no-
mo do fazer cotidiano, levado e feito por homens vidade, sendo mesmo vista por vários autores como
e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negros especialmente desafiadora para as práticas educati-
e brancos, adultos e adolescentes, enfim, alunos e vas. Como diz Gimeno Sacristán (2001), a educação
professores, deste espaço-sujeitos sociais e histó- está para trazer uma qualidade de vida e devemos
ricos, presentes na história, atores na história da ter fé em relação a ela.
comunidade da Vila Pedreira. Falar da escola como
A educação contribuiu consideravelmente para
espaço sociocultural implica, assim, desvelar o pa- fundamentar e para manter a ideia de progres-
pel dos sujeitos na trama social que a constitui, en- so como processo de marcha ascendente na
quanto instituição. História; assim, ajudou a sustentar a esperança
A discussão das relações entre escola e cultura em alguns indivíduos, em uma sociedade, em
um mundo e em um porvir melhores. A fé na
é inerente a todo processo educativo. Não há educa- educação nutre-se da crença de que esta possa 258
ção que não esteja envolvida na cultura da humani- melhorar a qualidade de vida, a racionalidade,
dade e, particularmente, no momento histórico em o desenvolvimento da sensibilidade, a compre-
que se situa. Não se pode conceber uma experiência ensão entre os seres humanos, o decréscimo da
agressividade, o desenvolvimento econômico,
pedagógica “desculturizada”, em que a referência ou o domínio da fatalidade e da natureza hos-
cultural não esteja presente. A escola é, sem dúvida, til pelo progresso das ciências e da tecnologia
uma instituição cultural. Portanto, as relações en- propagadas e incrementadas pela educação (SA-
tre escola e cultura não podem ser concebidas como CRISTÁN, 2001, p. 21).
entre dois polos independentes, mas sim como uni-
versos entrelaçados, como uma teia tecida no coti- Quando vemos o Centro de Educação Trindade
diano e com fios e nós profundamente articulados – desde o ano de 2010 com o Programa Mais Educa-
(MOREIRA, 2003). ção, nos anos que se seguiram as oficinas do Progra-
ma Integrado de Inclusão Social e, em 2015, o Projeto
⁴ A escola é uma instituição construída historicamente no contexto da modernidade, considerada como mediação privilegiada
para desenvolver uma função social fundamental: transmitir cultura, oferecer às novas gerações o que de mais significativo
culturalmente produziu a humanidade.
Sumário
Construindo um novo caminho –, temos a certeza de (1981), é a experiência vivida que permite apreender
que este espaço está intimamente ligado com a cul- a história como fruto da ação dos sujeitos. Podemos
tura popular, oferecendo aos educandos uma edu- relacionar o estudo do autor com a reflexão do Ti-
cação sociocultural, já que não conseguimos vis- mão em relação a sua música e o que ela traz.
lumbrar a educação separada da cultura. Assenta-se
Na música tu tem que falar o que tu vive, tu tem
sobre a ideia da igualdade e do direito de todos e que mencionar na tua letra, tu não pode se van-
todas à educação e à escola, proporcionando através gloriar, ou cantar de pegar mulher, falar coisas
das oficinas socioeducativas e culturais, possibilida- que tu não faz [...] ali tudo acontece precoce-
des de participação para que tenham voz e vez tro- mente, as festas vêm mais cedo, a droga vem
mais cedo, as mulheres vêm mais cedo [...] (TI-
cando com seus pares, a experiência e trazendo para MÃO, 2014, informação verbal).
dentro dos muros da escola. Sacristán (2001), mais
uma vez, subsidia a reflexão: É a partir das manifestações culturais, através
Graças a ela, tornou-se possível acreditar na
da música, que o rapper conta as suas vivências,
possibilidade de que o projeto ilustrado pudesse traz à tona a sua realidade de vida e também dos
triunfar devido ao desenvolvimento da inteli- habitantes da comunidade. Eles experimentam suas 259
gência, ao exercício da racionalidade, à utiliza- situações e relações produtivas como necessidades,
ção do conhecimento científico e à geração de
uma nova ordem social mais racional (SACRIS-
interesses e antagonismos e elaboram essa experi-
TÁN, 2001, p. 21). ência em sua consciência e cultura, agindo confor-
me a situação determinada. Assim, o cotidiano se
O que não pode ser esquecido é que os alunos torna espaço e tempo significativos porque expres-
chegam à escola marcados pela diversidade, refle- sa sentimentos, frustrações e sonhos em todas as
xo dos desenvolvimentos cognitivo, afetivo e social, ações culturais.
evidentemente desiguais em virtude da quantidade A escola, nesse contexto, mais que a transmis-
e qualidade de suas experiências e relações sociais, sora da cultura, da “verdadeira cultura”, passa a ser
prévias e paralelas à escola. concebida como um espaço de cruzamento, confli-
O que cada um deles é, ao chegar à escola, é fru- tos e diálogo entre diferentes culturas. Pérez Gómez
to de um conjunto de experiências sociais vivencia- (1998) propõe que entendamos hoje a escola como
das nos mais diferentes espaços sociais. Assim, para um espaço de “cruzamento de culturas”. Tal pers-
compreendê-lo, temos de levar em conta a dimensão pectiva exige que desenvolvamos um novo olhar,
da “experiência vivida”. Como lembra Thompson uma nova postura, e que sejamos capazes de iden-
Sumário
tificar as diferentes culturas que se entrelaçam no que é bastante marcante é o Hip Hop, pela lingua-
universo escolar, bem como de reinventar a escola, gem que aborda, falando da realidade de vida, das
reconhecendo o que a especifica, identifica e distin- injustiças, do amor, além do carnaval que está re-
gue de outros espaços de socialização: a “mediação lacionado ao grande número de seres musicais, que
reflexiva” que realiza sobre as interações e o impac- apresentam uma prática com instrumentos e bate-
to que as diferentes culturas exercem continuamen- rias e também com as terreiras que se encontram
te em seu universo e seus atores. Conforme Gómez no espaço. Contudo, a escola abriu ainda mais o seu
(1998), a vida escolar traz um intercâmbio cultural. espaço para a cultura popular, após a municipaliza-
ção, pois, a partir daí, iniciou-se um novo trabalho,
O responsável definitivo da natureza, sentido e
consistência do que os alunos e alunas aprendem
focado no interesse dos alunos e da comunidade,
na sua vida escolar é este vivo, fluido e complexo oportunizando as manifestações culturais de todos
cruzamento de culturas que se produz na escola os tipos e dando oportunidades da comunidade es-
entre as propostas da cultura crítica, que se situa tar inserida nas atividades cotidianas, sem qualquer
nas disciplinas científicas, artística e filosófica;
as determinações da cultura acadêmica, que se
tipo de preconceito. O Marcelo faz uma reflexão
refletem no currículo; as influências da cultura bastante pertinente sobre este tema. 260
social, constituídas pelos valores hegemônicos
do cenário social; as pressões cotidianas da cul- As pessoas pulavam o muro, existiam os dro-
tura institucional, presente nos papéis, normas, gaditos que pulavam o muro e a gente abria o
rotinas e ritos próprios da escola como insti- portão, botava pra fora, por cima do muro, fazia
tuição social específica, e as características da subir, depois que eles estavam do outro lado a
cultura experiencial, adquirida por cada aluno gente abria o portão e dizia: olha essa é a manei-
através da experiência dos intercâmbios espon- ra correta de entrar. Então isso eram simbolis-
tâneos com seu entorno (GÓMEZ, 1998, p. 17). mos, atos pedagógicos que significavam alguma
coisa (OHLWEILER, 2015, informação verbal).
Nesse sentido, a cultura se moderniza e se tra-
duz em linguagens reatualizadas que são comuns Houve uma aceitação do diferente e de sua cul-
aos diversos sujeitos em idade escolar. Além disso, a tura, não marginalizando suas manifestações e tra-
escola aparece como um espaço privilegiado de prá- zendo para dentro dos muros da escola aquele que,
ticas coletivas, sociabilidades, representações, sím- muitas vezes, é esquecido e excluído da cidade. O
bolos e rituais que os jovens buscam para demarcar processo de humanização resultou em uma apro-
uma identidade. Na comunidade da Vila Pedreira, o ximação de grupos com diversas práticas culturais
como o Hip Hop, que, no ano de 2009, fez parte da
Sumário
lista de oficinas do Programa Integrado de Inclusão fins foi um grande desafio porque houve indivíduos
Social com o segmento da dança e esteve inserido contra esta abertura dos portões. O trabalho só se
no Centro de Educação com uma grande adesão por concretizou pelo simples fato de que a equipe direti-
parte dos jovens. va acredita na educação com uma das possibilidades
Cabe ressaltar a reflexão feita pelo Diretor Mar- de transformação social. A escola precisa escorrer
celo, quando comenta sobre a relação da escola, com para a rua. Por sua vez, a rua quer e precisa invadir
a vida da comunidade, onde este espaço passa a ser a escola (MARTINS, 2008).
coletivo, na medida em que é usado para atividades Assim, todos aprendiam e conheciam o foco
familiares e dos órgãos públicos. cultural que estava sendo desenvolvido e vivido
naquele momento. Dessa forma, não há como não
Então reuniões de igreja, secretarias, reuniões
da associação, a quadra, foi um acordo, porque
afirmar que o espaço da escola se torna muito im-
eles tinham este espaço para brincar, todo o ter- portante porque promove e difunde a cultura, bem
reno da escola que antes era um campo de fute- como o conhecimento e as manifestações culturais
bol muito famoso, na cidade de Esteio, muitos populares. As manifestações culturais, quando in-
amigos do Prefeito que contam que aqui tinha
um campo que era bem legal, bom, precisou
tegradas com todo o sistema de ensino, podem 261
abrir mão deste campo para fazer a escola, fez-se revolucionar este espaço. O Centro de Educação
a escola e aí ficou um cantinho do lado da esco- Trindade, concebido como um espaço onde pudesse
la que era o campo deles. Todo mundo brincava vicejar uma multiplicidade de linguagens, permite
no horário escolar, a gente entrava, o pessoal
saía, mas não tivemos problemas, política da
florescer, também, uma pluralidade de sentidos do
boa vizinhança. [...] Então a quadra pra mim é o humano, pois está apto a fazer do ensino um instru-
maior exemplo de escola aberta, porque ela abre, mento sustentador de valores e não é mais pura e
está sempre funcionando nos finais de semana simplesmente reprodutor de aprendizado técnico e
(OHLWEILER, 2015, informação verbal).
mecanicista (SILVA, 2008).
Com isso, vê-se que a escola não ficou distante As cenas descritas evidenciam que a escola é
do contexto social e que compartilha do desejo de essencialmente um espaço coletivo, de relações gru-
integrar famílias e culturas e estabelece um diálogo pais. O pátio, os corredores, a sala de aula e a qua-
entre diferentes manifestações culturais, levando dra esportiva materializam a convivência rotineira
em conta as necessidades de cada um. Romper essas de pessoas. No momento em que os jovens cruzam
barreiras de permitir o uso da escola para todos os o portão gradeado, ocorre um “rito de passagem”,
pois passam a assumir um papel específico, diferen-
Sumário
te daquele desempenhado em casa, tanto quanto no Palavras. Já foi afirmado também que as três letras
trabalho, ou mesmo no bairro, entre amigos. Neste poderiam corresponder a “Ritmo, Amor e Poesia”
sentido, os comportamentos dos sujeitos, no coti- (TEPERMAN, 2015). Mais do que explicações, essas
diano escolar, são informados por concepções gera- são interpretações.
das pelo diálogo entre suas experiências, sua cultu- O Hip Hop, se tratando do elemento dança, é
ra, as demandas individuais e as expectativas com a um destes rituais que se expressa através de gestos
tradição ou a cultura da escola. e que o corpo reproduz o sentimento da letra e a
Podemos dizer que a escola se constitui de um entonação. Atividade bastante realizada dentro do
conjunto de tempos e espaços ritualizados. Em cada espaço do Centro Trindade, pois se identifica com
situação, há uma dimensão simbólica, que se ex- os jovens, pela letra impositiva e que busca falar ao
pressa nos gestos e posturas acompanhados de sen- mundo das injustiças e desamores. Este gênero mu-
timentos. Cada um dos seus rituais possui uma di- sical é um forte estruturador de movimentos pela
mensão pedagógica, na maioria das vezes, implícita, valorização da identidade negra: a música, a dança
independente da intencionalidade ou dos objetivos e o estilo de vestir são por si sós produtores de sig-
explícitos da escola (DAYRELL, 1992). nificado. 262
Antes de apresentar o trabalho do Hip Hop de- O Hip Hop faz parte da Vila Pedreira. Ele pul-
senvolvido no interior do Centro de Educação Trin- sa em todos os becos e vielas. Quando se entra na
dade com crianças e adolescentes, é essencial trazer comunidade, é possível escutar em alto e bom som
à tona a trajetória do movimento Hip Hop, desde rappers cantando sua música, nas esquinas das ruas
o seu nascimento até os dias atuais, assim como os sem saída. O estilo passa verdade e o MC exala con-
elementos que o compõem para que possa ficar cla- fiança enquanto canta as estrofes com quadrinhas
ra a sua manifestação no interior da comunidade da rimadas. Outro ponto a ressaltar neste gênero mu-
Vila Pedreira. sical é a ausência de refrão porque, ao evitá-lo, o
A interpretação consagrada da etimologia da rap se mantém constantemente em tensão e essa é a
palavra rap é que seja uma sigla para rhythm and maior marca do Hip Hop (TEPERMAN, 2015).
poetry (do inglês, ritmo e poesia). O mito de origem Portanto, o Hip Hop está presente nas ativida-
mais frequente sobre o gênero é que teria surgido des do Centro de Educação Trindade pelo fato de es-
no Bronx, bairro pobre de Nova York, no início dos tar impregnado neste espaço, isto é, nas ruas e becos
anos 1970. Outros MCs brasileiros defendem a ideia e no interior da escola e por ser reconhecido como
de que rap é a sigla para Revolução Através das música. Nos musicais de Natal que a escola organi-
Sumário
za, o rapper Timão se faz presente. Timão represen- da oficina do Projeto, construiu uma identidade para
ta este lugar e fala da Vila Pedreira em muitas das a quadra esportiva, já que é o espaço caracterizado
letras dos seus CDs porque se sente pertencente. como o coração do Centro de Educação. Este é mais
O Hip Hop sempre esteve presente na comuni- um lugar em que a cultura flui, transborda pelos mu-
dade e, em 2015, vem em forma de oficina do Projeto ros da escola e “contamina” a Vila Pedreira. O grafite
Construindo um novo caminho. A escolha se justifica foi planejado pelas crianças e pelo educador Timão.
pelo número de rappers que moram na comunidade e Realizaram vários esboços até chegar à ideia final.
agradam as crianças e adolescentes porque a lingua- Com este trabalho e a revitalização da quadra, o
gem é conhecida e reconhecida pela maioria dos jo- espaço foi novamente colocado à disposição da co-
vens, moradores deste espaço. Dayrell (2003) faz uma munidade. Neste dia, foi lembrado como era a qua-
reflexão sobre estes jovens que são sujeitos sociais. dra esportiva há alguns anos, onde ocorriam, além
de jogos, festas e ensaios da escola de samba. Não
Mas representa o momento do início da juventu-
de, um momento cujo núcleo central é constituí-
havia muro e o espaço era bastante degradado, mas,
do de mudanças do corpo, dos afetos, das referên- mesmo assim, muito usado. O atual diretor ressalta
cias sociais e relacionais. Um momento no qual isso na sua fala: 263
se vive de forma mais intensa um conjunto de
transformações que vão estar presentes de algum Então a gente sempre empresta, emprestamos
modo, ao longo da vida (DAYRELL, 2003, p. 24). porque a verdade esse prédio tem contrato com a
prefeitura, o prédio é deles na verdade, eles ado-
Dessa forma, se torna evidente o livre trânsito ram isso aqui, então a gente devolve este prédio
nesta condição de ser do coletivo, de ser algo do
dos jovens rappers pelo interior do Centro de Edu- para o bem comum. Então assim, uma reunião
cação porque são jovens da comunidade, se desen- da associação de moradores, ok, uma reunião do
volvendo e se constituindo como indivíduos parti- pessoal da saúde, ok, uma campanha de vacina-
cipantes e a escola é o espaço que deve fomentar ção, ok. Essas coisas que são para eles, que são
para o coletivo, não é um favor pessoal, então a
esta mudança e, acima de tudo, fomentar a cultura. gente empresta e eles cuidam. Festa por exem-
Quando o MC canta, ele debate, por meio das letras plo, a Mara aqui da frente, uma vez fez festa das
e também pelo discurso, temas como preconceito, crianças, no dia das crianças, daí se empresta a
violência e segregação racial e seus efeitos devasta- estrutura da escola, uma sala para ela poder pre-
parar as coisas e se organizar. E vou dizer uma
dores na sociedade, como a violência urbana. coisa, não tenho queixa nenhuma, nenhuma,
No entanto, o grafite também é uma das mani- não tem um parafuso fora do lugar, então há um
festações do Hip Hop e, juntamente com os alunos respeito em relação ao prédio (OHLWEILER,
2015, informação verbal).
Sumário
A comunidade da Vila sempre participava mento de diversão, mas também de ostentação, pois
dos mutirões de limpeza da quadra porque, como buscavam espaços fechados com bailes elitizados.
o trânsito era livre por não ter muros, havia certo Na ritualização do carnaval, os elementos se des-
descaso por parte de alguns usuários, prejudicando locam. As ruas, antes locais que direcionavam para
o uso. Foi neste espaço que a escola de samba nas- a pesada rotina do trabalho e das disputas sociais, se
ceu, primeiro Beija Flor, depois, Império Serrano da abrem em um espaço receptivo para os que agora se
Vila Pedreira. deslocam num movimento consciente que estão em
Antes de falarmos sobre o carnaval produzi- busca do divertimento. Consoante DaMatta (1997), o
do na Vila Pedreira e nas dependências do Centro carnaval é um momento de permissividade.
de Educação Trindade, é importante trazermos um
No carnaval as leis são mínimas. É como se tives-
pouco da história do carnaval para que possamos se sido criado um espaço especial, fora da casa e
situar de onde surgiu tamanho movimento popular acima da rua, onde todos pudessem estar sem es-
de tanta grandeza e participação. sas preocupações de relacionamento ou filiação
A história do carnaval no Brasil começa no perí- a seus grupos de nascimento, casamento e ocu-
pação. Estando, de fato, acima e fora da rua e da
odo colonial. Uma das primeiras manifestações car- casa, o carnaval cria uma festa do mundo social 264
navalescas foi o entrudo, uma festa de origem portu- cotidiano, sem sujeição às duras regras de perten-
guesa que, na colônia, era praticada pelos escravos. cer a alguém ou de ser alguém. Por causa disso,
Estes saíam pelas ruas com seus rostos pintados, jo- todos podem mudar de grupos e todos podem se
entrecortar e criar novas relações de insuspeitada
gando farinha e bolinhas de água de cheiro nas pes- solidariedade (DAMATTA, 1997, p. 121).
soas. Tais bolinhas nem sempre eram cheirosas.
Ao longo do século XX, o carnaval se populari- Nesses moldes, nasceu a escola de samba da
zou ainda mais no Brasil e conheceu uma diversida- Vila Pedreira. Antes da criação da escola, os habi-
de de formas de realização, tanto entre a classe do- tantes da Vila eram convidados a participar de es-
minante como entre as classes populares. As escolas colas criadas em outros bairros da cidade por serem
de samba eram o desenvolvimento dos cordões e muito envolvidos e bons na bateria. No entanto,
ranchos. A primeira disputa entre elas ocorreu em pensavam em ter a própria escola, que pudesse ser
1929. A partir da história do carnaval, se torna evi- chamada de Escola da Vila. Como antes referimos,
dente que sempre foi um movimento popular. No a primeira escola de samba foi a Beija Flor, formada
entanto, fora copiado pela elite brasileira a fim de por moradores da cidade de Esteio e alguns habitan-
que pudessem invadir as ruas e concretizar um mo- tes da Vila. Isto porque muitos gostavam de samba e
Sumário
pagode e queriam participar, mas não sabiam tocar Nesta reunião, quem esteve presente à fren-
nenhum instrumento. Em entrevista, Alex Santos, te do processo organizativo foi o presidente Wal-
morador da comunidade e participante da Beija Flor dir Ferreira, que coordenou a escola de samba do
faz o relato. ano de 2001 a 2003. A partir da aceitação das regras
apresentadas, o grupo começou a se fortalecer e ini-
Como tinha um pessoal que gostava de música
afro, o que que aconteceu? Todo mundo gostava
ciou a caminhada de sedimentar a Escola Império
de pagode, samba. Daí, quando começou a se de- Serrano. Em primeiro lugar, envolveram o Centro
senvolver o Carnaval lá dentro com a Beija Flor, de Educação Trindade na criação das fantasias, com
vários queriam se envolver, mas não sabiam um pequeno concurso de desenhos. Alguns jurados
tocar. Tudo começou ali. Começou uma ala de
cacheta, tocava maracanã, que é aqueles tambor
escolheram os melhores. Sendo assim, no ano de
grandão, até os cara tocam até hoje (SANTOS, 2002, em um almoço no Trindade, foi feita a escolha.
2015, informação verbal). Os desenhos foram expostos em uma sala de aula
e os próprios autores do desenho podiam explicar
Por conta de problemas internos da escola, o e justificar a criação. O Presidente Waldir Ferreira
trabalho foi enfraquecendo e os participantes fi- relata que foi um momento muito rico, pois a escola 265
cando desmotivados, mas o “povão”, como diz Alex se abria para o samba e os alunos participavam de
Santos, participante da Beija Flor da Vila Pedreira, uma das partes mais importantes: as fantasias que
não queria deixar morrer todo o trabalho desen- embelezam a avenida. Alex ressalta que o Centro de
volvido. Assim, foram convidados a estruturar um Educação sempre foi e continua sendo o ponto de
novo grupo que pudesse levar a comunidade nova- encontro da cultura da Vila.
mente às ruas do carnaval.
Então, no dia 1º de maio de 2001, reuniram-se Então aí foi indo. Eu comecei como mestre
de bateria da Império Serrano da Vila Pe-
na Escola Trindade e estruturaram o Império Ser- dreira, nós ensaiávamos na quadra aqui. Na
rano da Vila Pedreira. O grupo de carnavalescos e quadra de esporte, todos os nossos ensaios
moradores que tinham interesse em participar de eram ali e tinha o cara que levava o equi-
algum segmento da escola se fizeram presentes e pamento de som para nós, é um conhecido
muito velho nosso. Então era ele que levava
receberam todas as instruções através de um infor- o equipamento de som. Como a bateria era
mativo que trazia como lema A união de todos, nos alta e tinha muita acústica, o equipamento
levará a vitória. que ele levava era grande. Às vezes a gen-
te tinha que fazer duas viagens (SANTOS,
2015, informação verbal).
Sumário
Após a escolha, partiram para a confecção das movimentos de cultura popular no início da década
fantasias, organizando um mutirão dentro da Vila de 1960, mais precisamente entre 1960 e 1964.
Pedreira com as mulheres que tinham máquina de A partir do ano de 2000, o Centro de Educação
costura. Foram divididos os figurinos e foi dado o inicia um novo olhar para a comunidade. A equipe
início. diretiva se mostra aberta às manifestações culturais
A escola seguiu no propósito de não desistir e, que caminham pela Vila Pedreira e abre, não só o
em 2008, trouxe para a avenida a história das religi- espaço, mas o portão e as salas de aula para que a
ões afro-brasileiras, encantando o público e emocio- cultura entre pela porta da frente e dê um maior
nando os componentes da escola – pela superação. significado para as vivências de sala de aula. A edu-
A escola seguiu em frente, apesar das dificuldades cação, na visão de Paulo Freire (1970), deve reali-
no que diz respeito à prestação de contas e orga- zar- se como prática da liberdade. Os caminhos da
nização. Em 2015 traz como tema as diferenças. Os libertação só estabelecem sujeitos livres e a prática
alunos do Centro de Educação participaram mais da liberdade só pode se concretizar numa pedagogia
uma vez, já que este tema foi trabalhado também em que o oprimido tenha condições de descobrir-se
nas salas de aula. e conquistar-se como sujeito de sua própria desti- 266
A comunidade está sempre tão envolvida no nação histórica. Quando se pensa em Educação Po-
carnaval que participou na escolha do rei Momo pular, logo se recorre às ideias de Paulo Freire, pois,
2015 com o candidato Jean Rodrigues da Rosa, que durante toda a sua vida, ele se dedicou à questão do
foi o vencedor e representa além da cidade de Es- educar para a vida, através de uma educação preo-
teio, a Vila Pedreira, levando o nome da comunida- cupada com a formação do indivíduo crítico, criati-
de para muitos municípios. Jean é figura importante vo e participante na sociedade.
na Vila, pois, além de ser morador antigo, faz parte Nestes termos, é importante observar que o
de um centro de umbanda, uma das quatro casas da ser humano, nesta educação, é um sujeito que não
comunidade. deve somente “estar no mundo, mas com o mundo”,
Contudo, é importante salientar o trabalho que ou seja, fazer parte dessa imensa esfera giratória,
é desenvolvido no interior do Centro de Educação não apenas vivendo, mas construindo sua própria
Trindade, envolvendo as manifestações culturais da identidade e intervindo no melhoramento de suas
Vila, ressaltando o Hip Hop e o carnaval. A cultura condições enquanto cidadão e buscando o direito de
popular, conforme Brandão (2002), tem a sua ori- construir uma cidadania igualitária e justa.
gem nas práticas pedagógicas desenvolvidas por
Sumário
Portanto, a melhor forma de ensinar é defender, tantemente, que educar não é a mera transferência
com seriedade, apaixonadamente uma posição, esti- de conhecimentos, mas sim a conscientização e o
mulando e respeitando, ao mesmo tempo, o direito testemunho de vida, se não, não terá eficácia. Para
ao discurso contrário. Estará ensinando, assim, o de- Freire (1970), o homem e a mulher são os únicos se-
ver de brigar por nossas ideias e, ao mesmo tempo, o res capazes de aprender com alegria e esperança, na
respeito mútuo. Este modelo apresenta uma educa- convicção de que a mudança é possível. Aprender
ção construída sobre a ideia de um diálogo entre edu- é uma descoberta criadora, com abertura ao risco
cador e educando, em que ocorra sempre partes de e à aventura do ser, pois, ensinando se aprende e
cada um no outro, que não poderia começar com o aprendendo se ensina.
educador trazendo pronto do seu mundo, do seu sa- Este é o foco de trabalho do Centro de Educa-
ber, o seu modelo de ensino e o material para as suas ção Trindade: abrir-se para todas as manifestações
aulas baseados na sua cultura e valores. Dentro desta culturais, respeitando e aceitando e nunca fechando
percepção é que um dos pressupostos do modelo se os olhos para o novo e o desconhecido. O Marcelo
fundamenta na ideia de que ninguém educa ninguém Ohlweiler, traz esta questão e salienta a valorização
e ninguém se educa sozinho (FREIRE, 1970). que devemos ter com a cultura do outro: 267
O diálogo consiste em uma relação horizontal,
Eu fui daqueles que pensou: Bah será que vai co-
e não vertical, entre as pessoas implicadas, entre as lar. E eles adoram. Mas eu sempre valorizo aquilo
pessoas em relação. No seu pensamento, a relação que é deles, o Hip Hop, o funk de certa forma, e
homem- homem, homem-mulher, mulher-mulher e mesmo assim, tem funks maravilhosos, tem funk
homem-mundo são indissociáveis. “Os homens se gospel. [...] Eles acabam curtindo, e a gente não
pode fechar os olhos e dizer que não tem nada
educam juntos, na transformação do mundo” (FREI- haver (OHLWEILER, 2015, informação verbal).
RE, 1970, p.71). Nesse processo todos. O saber dos
alunos não é negado. Todavia, o educador também É muito importante, neste processo, abrir possi-
não fica limitado ao saber do aluno. O professor tem bilidade para que as manifestações culturais popula-
o dever de ultrapassá-lo. É por isso que ele é profes- res fiquem integradas com o sistema e processo do
sor e sua função não se confunde com a do aluno. ensino formal, para que possam revolucionar o tra-
Ensinar é algo profundo e dinâmico. A questão de balho e trazer para a escola uma visão mais ampla e
identidade cultural, que atinge a dimensão indivi- mais humanizada de estratégia de educação. O Cen-
dual e a classe dos educandos, é essencial à prática tro Municipal Trindade conseguiu realizar: organi-
educativa progressista. Freire (1970) salienta, cons- zou e reestruturou o espaço onde pudesse vicejar
Sumário
trado no Hip Hop e no carnaval porque, quando se entrelaçam no universo escolar, bem como de rein-
reúnem na escola para as oficinas e ensaios, estão ventar a escola, reconhecendo o que a especifica,
também servindo de canal de expressão de questões identifica e distingue de outros espaços de socializa-
juvenis. Os educandos e demais habitantes que, de ção: a “mediação reflexiva” que realiza sobre as in-
uma forma ou de outra, estão envolvidos com estas terações e o impacto que as diferentes culturas exer-
manifestações se apropriam destes conhecimentos cem continuamente em seu universo e seus atores.
produzidos no interior da escola e iniciam uma nova Em vez de preservar uma tradição monocultural
forma de olhar o outro. Trazer para dentro da escola e uníssona, a escola está sendo chamada a lidar com
os excluídos é aprender que é possível construir algo a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes
novo, algo que já se via perdido. O Centro de Educa- sujeitos socioculturais presentes em seu contexto,
ção Trindade é o exemplo da inovação, da democra- abrir espaços para a manifestação e valorização das
cia, da busca de uma educação mais participativa e diferenças. É essa, a nosso ver, a questão hoje pos-
aberta a todos os segmentos culturais, respeitando a ta. A escola sempre teve dificuldade em lidar com
vida e as escolhas dos habitantes da Vila que circu- a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e
lam no interior do Centro de Educação. Esse talvez neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a ho- 269
seja um dos maiores retornos de um trabalho que foi mogeneização e a padronização. No entanto, abrir
realizado com seriedade e perseverança. O espaço da espaços para a diversidade, para a diferença e para o
escola se abriu para a cultura e mudou o comporta- cruzamento de culturas constitui o grande desafio,
mento e a vida de muitos habitantes da comunidade mas também o grande desenvolvimento e sucesso
da Vila Pedreira. Os “outros”, os “diferentes” os de do Centro de Educação Trindade.
origem popular, os afrodescendentes, os pertencen-
tes aos povos originários, os rappers, os funkeiros, REFERÊNCIAS
etc., mesmo quando fracassam e são excluídos, ao
penetrarem no universo escolar, desestabilizam sua ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3.ed. Rio de
lógica e instalam outra realidade sociocultural. Janeiro: FGV, 2005.
Pérez Gómez (1998) propõe que entendamos BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a
hoje a escola como um espaço de “cruzamento de imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
culturas”. Tal perspectiva exige que desenvolvamos
um novo olhar, uma nova postura, e que sejamos ______. A Poética do Espaço. Tradução Franklin Leopoldo
e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
capazes de identificar as diferentes culturas que se
Sumário
¹ Doutora em História – UNISINOS; Mestre em Turismo – UCS. Docente do Curso de Bacharelado em Turismo e do Programa
de Pós-Graduação em História da UFPel. E-mail: dalilam2011@gmail.com.
² Doutora em História – PUCRS; Mestre em Turismo – UCS. Docente do Curso de Bacharelado em Turismo da UFPel. E-mail:
dalilahallal@gmail.com.
Sumário
scales. We noticed that, in the second half of the tabelecimento da Freguesia, a população cresceu,
nineteenth century, the city began to appreciate the surgiram fábricas e casas comerciais, ruas foram
urban areas, revitalizing itself through urban refor- traçadas. Esse crescimento populacional, econômi-
ms. As the city of Pelotas modernized, its residents co e urbano de Pelotas foi importante para a sua
have been expanding and creating new spaces of elevação à condição de vila, em abril de 1832 e de
sociability. Among them, the confectioneries, the cidade de Pelotas, em 1835.
hotels, urban parks, social and sports clubs, theater, A charqueada utilizava mão-de-obra essencial-
squares. The city is the preferred setting for «seeing mente escrava, pouco solicitando a presença dos
and being seen», displaying pomp, showing the charqueadores; era uma atividade sazonal, cuja sa-
opulence of Pelotas’ elite. fra era curta, de novembro a abril/maio, ou seja, a
Keywords: City. Pelotas. Sociability. Nineteenth atividade charqueadora era um trabalho escravista
century e sazonal.
Em função destas características, os charquea-
dores dispunham de tempo livre durante os outros
INTRODUÇÃO meses do ano e, mesmo durante a safra, os proprie- 272
tários não participavam ostensivamente das ativi-
Durante o século XIX a cidade de Pelotas, loca- dades, o que possibilitou uma ociosidade aos char-
lizada no sul do Rio Grande do Sul, se desenvolveu, queadores.
principalmente pela exploração das charqueadas. Para Veblen (1965, p. 50):
Esta atividade iniciou na cidade no final do sécu-
[...] uma vida ociosa é o mais simples e o mais
lo XVIII, com a instalação da primeira charquea- patente modo de demonstrar força pecuniária
da com objetivo comercial, e cresceu, atingindo 22 e consequentemente força superior; a condição
charqueadas em funcionamento em 1820 e 35 em essencial é que o homem ocioso possa viver sem
1873 (MÜLLER, 2004). dificuldade no conforto. Neste estágio, a riqueza
consiste principalmente de escravos; [...].
Com o início da exploração da charqueada
a população de Pelotas começou a aumentar, for- Assim a elite pelotense gozava de um tempo
mando-se um povoado. Com este crescimento, os livre, que era “a recompensa e o privilégio de um
moradores solicitaram a criação de uma freguesia, nascimento nobre, a marca de uma superioridade
a qual se estabeleceu em 1812, com a denominação pessoal”. (PORTER, 2001, p. 21). A disponibilidade
de Freguesia São Francisco de Paula. A partir do es- de tempo livre possibilitou que se dedicassem a ati-
Sumário
vidades socioculturais, entre elas as relacionadas à De acordo com Maurice Agulhon (1992) a so-
sociabilidade, demonstrando e exibindo sua riqueza ciabilidade é a qualidade do ser sociável, estando
e distinção social através do consumo de bens ima- relacionada ao comportamento coletivo em espaços
teriais, da educação, da polidez, das boas maneiras, formais ou informais definidos. Nestes espaços, o
fatos esses observáveis, principalmente, nos espa- homem estabelece vínculos, busca os aspectos agra-
ços públicos. dáveis das relações humanas, a fruição da presença
Assim, o objetivo deste trabalho é compreender, do outro, a reciprocidade. Os estudos da sociabilida-
a partir do estudo da sociabilidade, de que forma a de procuram compreender as diversas maneiras pe-
cidade de Pelotas foi vivenciada e ocupada pelas eli- las quais os homens se relacionam, as expressões e
tes pelotenses na segunda metade do século XIX. manifestações, mais ou menos formalizadas, da vida
Busca-se verificar como esta elite demarcou seu lu- em sociedade, de coletividades definidas no tempo,
gar e suas posições sociais nos espaços e formas de no espaço e na escala social.
sociabilidade da cidade. O palco da sociabilidade é a cidade de Pelotas
Considera-se elite como o “grupo que possui na segunda metade do século XIX. Não é possível
não só influência, mas poder de decisão na socieda- pensar uma cidade sem atores, sem relações sociais, 273
de a que pertence, e que serve de modelo social pelo sem interação, por isso ela é o espaço privilegiado
seu modo de vida”. (RAMOS, 2000, p. 5). da sociabilidade.
Simmel (1983) considera a sociabilidade como A cidade é o lócus da sociabilidade, pois, seus
uma forma autônoma ou lúdica de sociação. Os in- espaços são:
teresses e necessidades específicas fazem com que
Órgãos essenciais à vida urbana [...]. A rua, a
os homens se unam, as quais se caracterizariam praça, o templo, o mercado, o foro, o circo, o the-
pelo sentimento de estarem associados e pela satis- atron (literalmente, “o lugar em que se olha ... e
fação provocada por isto. se é olhado”), isto é, a cidade são os canais que
Os estudos da sociabilidade procuram compre- levam o homem à presença dos outros homens, e
os recintos para todas as formas de convivências
ender as diversas maneiras pelas quais os homens que aplacam a angústia de ser só, a estreiteza de
se relacionam, as expressões e manifestações, mais ser particular e curam a sensação da insuficiên-
ou menos formalizadas, da vida em sociedade, de cia da casa, do círculo doméstico e dão a oportu-
coletividades definidas no tempo, no espaço e na nidade a que cada homem faça de sua vida uma
tangente de outras vidas. (OMEGNA, 1971, p. 80)
escala social. [Grifos do autor]
Sumário
Estudar a sociabilidade da elite pelotense per- A população começou a retornar antes mesmo
mite entender a sociedade na qual esta elite está do término da Revolução, por volta de 1843, coinci-
inserida, uma vez que o surgimento de novas e di- dindo com o declínio da mesma. O aumento da po-
ferentes formas de sociabilidade indicam novas for- pulação também ocorreu pela chegada de imigran-
mas de vida e novos usos para o espaço da cidade. tes europeus, uruguaios e argentinos.
Para o desenvolvimento deste trabalho, as in- Após a Revolução, as charqueadas foram rea-
formações foram obtidas nos jornais de Pelotas e tivadas e se instalaram na cidade indústrias com-
de Rio Grande, que relatavam, com riqueza de deta- plementares, como curtumes, fábricas de sabão e
lhes, o cotidiano da cidade de Pelotas. velas e adubos, diversificou-se a aplicação do capi-
Foram pesquisados sistematicamente os se- tal em outras atividades, intensificaram-se as ope-
guintes jornais: Diário do Rio Grande e o Rio-gran- rações de crédito e as transações bancárias (MA-
dense, da cidade vizinha Rio Grande, que divulgava, GALHÃES, 1993).
quase que diariamente, informações sobre Pelotas, A partir da instalação de fábricas e casas comer-
e os jornais periódicos que circulavam na cidade de ciais, da reativação das charqueadas e do aumento
Pelotas, entre eles, O Pelotense, Diário de Pelotas, da população, houve uma maior preocupação com a 274
Correio Mercantil, Onze de Junho, Opinião Pública melhoria do espaço urbano através dos serviços de
e Diário Popular. infraestrutura, que visavam transformar a cidade de
Pelotas em um espaço mais aprazível para se viver.
SOCIABILIDADE EM PELOTAS NA A preocupação com a abertura de novas ruas,
SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX a iluminação, o nivelamento e o alinhamento das
vias e dos edifícios, o escoamento das águas, o des-
Como afirmado anteriormente a atividade char- pejo das imundícies, a localização das fábricas e
queadora em Pelotas se desenvolveu durante todo o manufaturas eram constantes na Câmara Municipal
século XIX e, a partir dela, a cidade se desenvolveu (MÜLLLER, 2010).
econômica, política, urbano, social e culturalmen- Em 1846 iniciou-se a iluminação da cidade com
te. Em 1835 Pelotas atingiu a condição de cidade, a colocação de lampiões na área central da cidade.
porém, neste mesmo ano se iniciou a Revolução Já em 1848 a iluminação foi estendida para o Porto
Farroupilha, período de 10 anos em que Pelotas es- da cidade (GUTIERRES, 1999). Em 1875 os lampiões
tagnou, com a diminuição de sua população e das a azeite foram substituídos por combustores a gás
atividades econômicas. hidrogênio líquido. No ano seguinte foi suspenso o
Sumário
lação, [...] em poucos anos deve converter-se em noites na estação calmosa. O público deve receber
um jardim pitoresco, em um lugar aprazível, re- com agrado mais esse estabelecimento, que lhe ofe-
pleto de variedades para entreter a atenção dos
concorrentes e atrair a curiosidade e elogios dos recerá variadas diversões”. (DIÁRIO DE PELOTAS,
que visitem a cidade [...]. (CORREIO MERCAN- 04.12.1878, p. 2).
TIL, 14.09.1877, p. 1) No final da década de 1870 a elite pelotense co-
meça a buscar outros espaços vinculados à nature-
Sob a égide da modernização, a Praça Pedro II za, os parques campestres, construídos nos “arra-
tornou-se, principalmente aos domingos, local fa- baldes” da cidade. Esses parques apresentavam uma
vorito da elite pelotense para o lazer ao ar livre, não variedade de atrações vinculadas à natureza, ou
só durante o dia, mas também à noite, quando os seja, proporcionavam atividades “higiênicas”, como
lampiões em torno do chafariz, localizado no centro passeios ao ar livre, passeios em lagos, jogos, cor-
da Praça, foram acesos. ridas, entre outras atrações. Também neste espaço
PRAÇA PEDRO II Esteve muitíssimo concor- havia música e alimentação.
rido e animado o passeio da praça na noite de
Domingo. A excelente banda de musica Santa Construídos a partir de uma concepção em que
Cecília, executou algumas belíssimas peças de se procurava compatibilizar a natureza com a in- 277
seu variado repertorio, desde as 8 ás 9 horas da teligência humana, estes parques – repletos de
noite, conseguindo conservar sempre um nume- vegetação e vida animal – atraíam cada vez mais
roso auditório e corresponder perfeitamente á as famílias que os procuravam para a realização
sua expectativa. [...]. (CORREIO MERCANTIL, de caminhadas e picnics, e também desfrutar das
04.02.1879, p. 2). atrações que porventura neles se apresentam,
como bandas, fanfarras, acrobatas, malabaristas,
espetáculos de fogos de artifício, etc. (SOARES,
A Praça da Regeneração também foi palco de 2004, p. 28).
circos itinerários, como o circo do Sr. Albano Pereira
(CORREIO MERCANTIL, 11.11.1875, p. 1); a “Gran- Dois Parques se localizavam no Fragata: o Jar-
de Companhia Equestre Inglesa” (CORREIO MER- dim Ritter e o Parque Pelotense. O Jardim Ritter
CANTIL, 09.03.1878, p. 4) e o “Circo Franco-Portu- ocupava uma extensa área arborizada, ideal para as
guês” (DIÁRIO DE PELOTAS, 06.04.1883, p. 3). “tardes da estação calmosa”, fazendo parte da fábri-
Além dos divertimentos itinerários, foi inau- ca de cerveja dos Srs. Ritter & Irmão e era “um dos
gurado no local um rinque de patinação, o “Skatin- passeios prediletos da elite pelotense”. (DIÁRIO DE
g-Rink”, possibilitando que “[...] a praça Pedro II PELOTAS, 26.01.1885, p. 2).
[seja] um agradável ponto de reunião nas tardes e
Sumário
Este Jardim fechava no período do inverno O Parque apresentava diversos tipos de diver-
e abria em outubro, para a estação do verão. Nele timentos, sendo um ponto bastante frequentado
havia, aos domingos e dias santos, concertos ins- pela elite da cidade: eram realizados bailes ao ar
trumentais: “Ouvem-se ali os acordes melodiosos livre; passeios em lagos, em velocípedes ou a ca-
da banda de música Apollo; trocam-se olhares amo- valo; aparelhos de ginástica eram disponibilizados,
rosos com as belas e gentis representantes do belo para “higiênicos exercícios”; restaurante; concertos
sexo, e saboreia-se uma excelente garrafa de cerve- com bandas de música locais, entre outras atrações
ja Ritter, o que não é pior”. (DIÁRIO DE PELOTAS, (CORREIO MERCANTIL, 14.12.1883, p. 2-3)
29.03.1885, p. 2). Logo após a inauguração do Parque Pelotense
O Parque Pelotense, também localizado no Fra- foi inaugurado o prolongamento da linha de bondes
gata, era um dos principais “pontos de recreio” em até a entrada do parque, demonstrando a importân-
Pelotas. O Parque foi construído no lugar denomi- cia destes espaços na cidade. “Por esta forma, tere-
nado Villa do Prado, junto ao Prado Pelotense, a mos daqui em diante completa facilidade e rapidez
mais ou menos três quilômetros da cidade. Foi inau- de transporte para os divertimentos que se oferecem
gurado no dia 02 de fevereiro de 1883, com o objeti- no ponto terminal da linha, sem o inconveniente 278
vo de proporcionar divertimentos junto à natureza das demoras e atropelamentos que se notaram por
para a população de Pelotas. ocasião de grande concorrência”. (CORREIO MER-
CANTIL, 01.04.1976, p. 1).
[...] um extenso jardim, maior que o da praça
Pedro II., com bosques, lagos navegáveis em pe-
Outros dois parques que estavam em funciona-
quenos barcos, ilhas, morros de grande elevação, mento na segunda metade do século XIX se loca-
grande praça arborizada, caramanchões, chalets, lizavam no bairro da Luz: o Bosque de Bolonha e
kiosques, estufa de aclimação, pontes, e assentos Campos Elysios. Também nestes parques o atrati-
por toda à parte! Uma fonte de riquíssima água,
só comparável á melhor da serra! Mais de dois
vo principal era a natureza, “a deliciosa sombra e
mil pés de arvores frutíferas, de primeira quali- o canto ameno dos passarinhos” (CORREIO MER-
dade, havendo entre elas muitas larangeiras de CANTIL, 23.12.1877, p. 2). Como atrativos, os pro-
10 anos, com toda sua copa primitiva! Grande prietários ofereciam fiambres, líquidos e refrescos
horta; grandes lavouras dos principais e mais
necessários cereais. [...] (ONZE DE JUNHO,
de todas as qualidades, superiores petiscos e ex-
18.04.1883, p. 2, Pelotas). travagantes comidas; jogos diversos e, em todas as
ocasiões, uma excelente banda de música.
Sumário
Além dos espaços ao ar livre, a elite usufruía dos radas e não se caracterizasse como atividade perma-
espaços comerciais, entre eles, os hotéis e as confeita- nente e meio de sobrevivência (CAMARGO, 2007)
rias. Visando atender seus frequentadores, os hotéis, Nos salões dos hotéis também eram realizados
além da hospedagem, diversificaram suas atividades, bailes, principalmente, os “bailes masqués”:
através do oferecimento de espaços para jogos, ven- Grandes e esplêndidos bailes á fantasia nos vas-
tos salões do Hotel Garibaldi [...] (sábados e
da de bebidas e alimentação, ceias e banquetes. domingos). Os jardins do hotel convertidos em
Uma das principais atividades de sociabilidade florescentes bosques, serão iluminados a giorno.
dos hotéis durante o século XIX foi o jogo, inicial- Uma excelente banda de música provocará os
mente o bilhar. A importância deste jogo nos hotéis frequentadores ao can can e á folia [...] (ONZE
DE JUNHO, 20.12.1882, p. 3)
é demonstrada pela existência de bilhares em quase
todos os hotéis identificados no século XIX e pela A disponibilidade de refeições nos hotéis pro-
preocupação em disponibilizar locais adequados porcionou o agrupamento e a conversação entre
para o jogo. O Hotel Aliança dava ênfase para a sala as pessoas que compartilhavam o espaço para reu-
de bilhares: “está se edificando um lindo sobrado niões políticas e formação de sociedades e clubes,
para este fim, [com] espaçosas salas para bilhares” durante todo o século XIX. As reuniões para orga- 279
(DIÁRIO DO RIO GRANDE, 11.02.1857, p. 2). nização de uma sociedade abolicionista na cidade
À medida que novos hotéis foram se estabele- foram realizadas no Hotel Abolicionista (ONZE DE
cendo, os tipos de jogos oferecidos foram se diver- JUNHO, 21.08.1881, p. 2); as reuniões para a orga-
sificando. Jogos de bola à italiana, francesa e alemã nização do partido republicano foram realizadas
estavam disponíveis no Hotel Garibaldi (ONZE DE em uma das salas do Hotel do Universo (ONZE
JUNHO, 05.12.1882, p. 3); dominó, xadrez, cartas e DE JUNHO, 15.02.1882, p. 2); a Sociedade Italiana
jogo de bagatela eram jogados no Hotel de Gêno- Unione e Philantropia foi inaugurada em outubro
va (CORREIO MERCANTIL, 28.11.1883, p. 3); ou de 1873 no Hotel Aliança (CORREIO MERCANTIL,
ainda, jogos de tiro ao alvo, do sapo, da argolinha, 04.07.1876, p. 1).
roda da fortuna, espingardas de salão eram jogados O sucesso no oferecimento de refeições fez com
no Hotel das Quatro Nações (DIÁRIO POPULAR, que os proprietários expandissem seus serviços, dis-
03.06.1899, p. 3). ponibilizando espaços para a realização de ceias e
O jogo era admitido desde que não envolvesse banquetes. Os primeiros banquetes realizados nos
apostas de grandes quantias, se destinasse apenas espaços hoteleiros aconteceram no início da década
para a recreação, fosse realizado em residências hon- de 1850, quando os hotéis já estavam mais organi-
Sumário
zados estruturalmente. Os banquetes realizados nos terças, quintas, sábados e domingos” e “o excelente
hotéis estavam relacionados, principalmente, com doce e fruta cristalizada” e aceitava “qualquer en-
as festas cívicas, fossem elas nacionais ou estran- comenda de doce em bandejas com todo o esmero
geiras e com homenagens a personalidades cívicas, e asseio, e tudo por preços razoáveis” (DIÁRIO DO
religiosas ou artísticas. RIO GRANDE, 18.09.1859, p. 2).
Nas áreas, nos pátios e nos caramanchões, as Somente no final do século XIX que as confeita-
famílias pelotenses realizavam várias atividades de rias começam a disponibilizar espaços para o consu-
entretenimento, onde era possível almoçar ou jan- mo de seus produtos no próprio estabelecimento. A
tar, participar de concertos ou, simplesmente, con- Confeitaria Florença oferecia “Café e chocolate du-
versar. Desse modo, se constituíram em importan- rante o dia e à noite, bem como – conhaques, whisky
tes locais de “recreio”. Os principais hotéis, como e doces” (A OPINIÃO PÚBLICA, 13.04.1898, p. 3).
o Hotel Aliança, o Hotel Grindler, o Hotel do Co- O anúncio da inauguração da Confeitaria No-
mércio e o Hotel Brasil, ofereciam várias atividades gueira destaca os salões para refeições:
nesses locais, principalmente no verão:
INAUGURAÇÃO Na noite de sábado, á rua 15
Caramanchão Brasil Previno ás Exmas. famílias de Novembro (ex-S. Miguel) sobrado próximo 280
e cavalheiros, que a toda a hora da noite há sor- à praça da Republica, será inaugurado a con-
vetes, cerveja gelada de todas as marcas, vinho feitaria e armazém de comestíveis que abro à
de todas as qualidades e águas minerais. Preços concorrência publica, sob o titulo de CONFEI-
razoáveis. Hotel Brasil. (CORREIO MERCAN- TARIA NOGUEIRA. [...] Para bem atender ás
TIL, 18.12.1885, p. 4). conveniências sociais, tenho um salão especial,
para atender ás Exmas. famílias que me honra-
rem com sua preferência, e um outro salão, em
As confeitarias possibilitavam o encontro da que só serão admitidas as pessoas bem aceitas
elite pelotense que iam para estes espaços para to- pela sociedade. [...] (A OPINIÃO PÚBLICA,
mar café ou chá, comer doces, bolos, mas principal- 15.07.1899, p. 3).
mente para conversar com os amigos, ouvir música,
discutir questões políticas e intelectuais. O Teatro Sete de Abril, em funcionamento na
As primeiras confeitarias apenas vendiam seus cidade desde a década de 1830, apenas suspenden-
doces, frutas cristalizadas e ofereciam seus produ- do suas atividades durante a Revolução Farroupilha,
tos para encomenda, não disponibilizando espaço foi um importante espaço de sociabilidade da elite
para o encontro entre as pessoas. A confeitaria do pelotense durante todo o século XIX. Pois, além de,
“tio Mascarenhas” vendia “pasteis quentinhos nas ou mais importante que assistir aos espetáculos, o
Sumário
teatro era um espaço de congregação da elite e de 1850 foram fundadas três sociedades de baile: a So-
ostentação da riqueza. ciedade Harmonia Pelotense, a mais “aristocrática”
Desde o final da Revolução Farroupilha, o Te- (O RIO-GRANDENSE, 10.12.1851, p. 3); a Sociedade
atro Sete de Abril era a única casa de espetáculos Recreação Pelotense (O PELOTENSE, 28.04.1852,
em funcionamento na cidade de Pelotas. Porém, na p. 1-2), a mais democrática; e a Sociedade Distra-
década de 1880 imigrantes, tanto italianos como ção e Beneficência, mais plebeia (O PELOTENSE,
alemães, criaram duas novas casas de espetácu- 31.08.1852, p. 1).
lo. A “Sociedade Philo-dramática Dante Alighieri” O êxito das três sociedades de baile e do Teatro
era um espaço teatral que se estabeleceu antes por Sete de Abril era explicado pelo fato de combinar
iniciativa dos italianos aqui residentes (CORREIO dois elementos importantes: “que seus habitantes
MERCANTIL, 24.09.1885, p. 3). Outro espaço tea- tenham muito gosto em divertir-se e muita delicade-
tral, também fundado na década de 80, era o “tea- za em suas maneiras sociais” (O RIO-GRANDENSE,
trinho” particular do Clube Germânia, onde havia 26.01.1853, p. 1-2), ou seja, a elite pelotense buscava
a apresentação de amadores uma vez por mês (DI- novos espaços de sociabilidade para uma sociedade
ÁRIO POPULAR, 15.12.1890, p. 2). Este clube, bem que estava se tornando civilizada. 281
como o teatro, era um espaço de sociabilidade for- As sociedades tinham como principal objetivo
mado basicamente por alemães. o divertimento, como mostra os estatutos da So-
Esses espaços teatrais além de serem locais de ciedade Recreação Pelotense: “[...] seu único fim, é
representação de dramas, entremez, vaudevilles, promover o honesto divertimento, que oferecem as
óperas, eram espaços de concertos, conferências, reuniões para bailes, e jogos lícitos.” (O PELOTEN-
sessões cívicas e de bailes. O Teatro Sete de Abril, SE, 26.04.1852, p. 1).
juntamente com alguns hotéis, foi palco dos primei- Estas três sociedades de baile permaneceram
ros bailes “masques” em Pelotas. O redator do jor- em funcionamento na década de 1850. Nas décadas
nal O Pelotense destaca que, com esta atividade se seguintes novas sociedades são criadas, como a So-
estava introduzindo costumes de localidades mais ciedade Recreio Pelotense, a Sociedade Phenix Pelo-
adiantadas (O PELOTENSE, 29.01.1853, p. 2-3), ou tense e a Sociedade Terpsichore.
seja, que Pelotas estava se modernizando. Os clubes esportivos começam a ser criadas na
Além dos espaços já citados, a elite pelotense cidade a partir da década de 1870. Dentre eles, des-
se divertia em associações recreativas e esportivas. taca-se o Jockey Club, o Clube de Regatas, o Clube
As primeiras associações recreativas da cidade de de Tiro ao Alvo.
Pelotas foram as sociedades de baile. Na década de
Sumário
Verifica-se que a elite começa a utilizar a de- mentos e locais especializados para seu desempe-
nominação clube para designar suas associações, o nho e tem um alto custo para sua admissão (NEE-
que demonstra que visava acompanhar o modelo DELL, 1993).
europeu, principalmente inglês e francês. “O ter-
mo ‘club’ originava-se diretamente dos clubes que CONCLUSÕES
surgiram em Londres no século XVII e chegaram
ao apogeu em Paris e Londres no século XIX, como Depois da Revolução Farroupilha, com o re-
locais onde se reuniam os cavalheiros refinados.” torno da população, com os estrangeiros que aqui
(NEEDELL, 1993, p. 95). chegaram e o desenvolvimento econômico e social-
O Jockey Club foi fundado em Pelotas no início -urbano, a cidade estava recomeçando seu desen-
do ano de 1876, por “vinte distintos jovens da so- volvimento e também reorganizando sua vida so-
ciedade pelotense”, estava localizado no Fragata, no cial e cultural. A vitalidade retornou, os encontros
final da linha de bondes (CORREIO MERCANTIL, e as diversões públicas floresceram na cidade, com
01.04.1876, p. 1). a fundação desses novos e variados espaços de so-
O Clube de Regatas Pelotense foi fundado em ciabilidade. 282
5 de agosto de 1875, pela mocidade pelotense. As Conforme visto, é desse período a preocupação
competições de remo eram realizadas no canal São com o asseio das ruas e praças, a iluminação públi-
Gonçalo (CORREIO MERCANTIL, 19.08.1875, p. 2). ca a gás, a rede de esgotos, o sistema de transporte
No final do século XIX foi aberto o “Clube de Rega- público, o fornecimento de água, a construção da es-
tas Alemão” (OPINIÃO PÚBLICA, 26.09.1898, p. 3). trada de ferro. A cidade estava se tornando moderna,
O “Clube Recreativo de Tiro ao Alvo” foi funda- começando a ser pensada como uma grande vitrine
do em março de 1876, composto “unicamente de sú- da riqueza e do luxo dos pelotenses, um espaço por
ditos alemães”, com o objetivo do “recreativo exer- excelência da reunião social, da sociabilidade.
cício do tiro ao alvo”, abrangendo também “outros A infraestrutura e os serviços urbanos estavam
divertimentos, como ginástica, dança, etc.” (COR- diretamente relacionados com a sociabilidade da
REIO MERCANTIL, 30.03.1876, p. 1). Já o “Clube população de Pelotas no século XIX. As boas con-
Alemão de Atiradores” foi organizado no final do dições das ruas da cidade eram importantes para os
século XIX (DIÁRIO POPULAR, 30.04.1901, p. 1). passeios, as procissões, e também para a chegada
A formação destes clubes é uma característica a espaços fechados de sociabilidade, como ao tea-
típica da elite, pois a maioria deles requer instru- tro. A iluminação da cidade era importante para a
Sumário
¹ Doutora em História – PUCRS; Mestre em Turismo - UCS. Docente do Curso de Bacharelado em Turismo da UFPel. E-mail:
dalilahallal@gmail.com.
² Doutora em História – UNISINOS; Mestre em Turismo - UCS. Docente do Curso de Bacharelado em Turismo da UFPel. E-mail:
dalilam2011@gmail.com
Sumário
Municipal Parque da Baronesa for leisure activities compreendidos como esferas capazes de promover
by Pelotas’ community. To do so, we conducted a a participação social. Nessa perspectiva, os espaços
documentary research on newspapers available in museais são transformados em locais de (re)inter-
museum collections and field research conducted pretação e de novas leituras do mundo.
from observations. We are faced with the challenge A crescente produção literário-acadêmica no
of keeping alive not only the architectural and cul- campo de investigação sobre lazer demonstra que
tural heritage, but also the access to all the history a atividade tem sido objeto de estudo e interesse
of the city and public spaces for leisure. We found em muitos países, dado o papel social e econômico
that the Museu Municipal Parque da Baronesa is que vem assumindo ao longo dos anos. Por perme-
used as recreational space mainly by Pelotas’ popu- ar diversas áreas do conhecimento, o lazer não se
lation. We have identified a variety of activities that estabelece num corpo teórico independente, único
are developed in that space, such as playing with e com dinâmica própria, o que de fato tem gera-
children, reading, walking animals, playing guitar, do confusão e dificuldade, principalmente no meio
drinking chimarrão with friends, among others. acadêmico, de evidenciar sua natureza científica. O
Keywords: Leisure. Museu Municipal Parque da presente estudo surgiu do interesse e necessidade 286
Baronesa. Pelotas. de aprofundar o conhecimento sobre os espaços
públicos de lazer em Pelotas, tema que atualmente
vem sendo discutido em diferentes parcelas da po-
INTRODUÇÃO pulação, devido a sua relevante contribuição para
o desenvolvimento de uma sociedade, importância
Como ponto de partida para essa discussão é esta que tem sido cada vez mais reconhecida, fazen-
importante destacar que, cada vez mais, é premente do com que o mesmo assuma maior espaço e rele-
a necessidade de aprofundar os estudos que rela- vância nas pesquisas cientificas, nos debates acadê-
cionem o lazer aos museus. Tal articulação é rele- micos e políticos.
vante pela contribuição para a elaboração de polí-
[...] novas formas de lutas e resistência que per-
ticas públicas capazes de torná-los mais acessíveis mitam tanto frear os efeitos discriminatórios da
e inclusivos. Um exemplo dessa tendência são os dinâmica de injustiças e exclusão aberta pelo mo-
museus que, desde o século passado, vêm ganhando delo de gestão macroeconômico enraizado em
maior notoriedade, sendo considerados, em muitos nosso país pelo avanço neoliberal, contribuindo
assim, para a formulação de políticas públicas e
casos, como lugares propícios para o aprendizado, projetos sociopedagógicos verdadeiramente in-
Sumário
clusivos que afirmem o lazer como direito social O MUSEU MUNICIPAL PARQUE DA
e pressupostos de bem-estar e desenvolvimento BARONESA - MMPB COMO ESPAÇO DE
humano (MASCARENHAS, 2007, p. 18).
LAZER EM PELOTAS
Um dos espaços de lazer com grande valor his-
tórico no município de Pelotas-RS é o Museu Mu- O lazer, entendido como espaço privilegiado
nicipal Parque da Baronesa - MMPB, lá encontra-se para manifestação e produção culturais vai além
relíquias que remetem a época em que Pelotas vi- da mera transmissão de informações referentes aos
veu o auge da sua economia com as charqueadas e conteúdos culturais, tema específico desses escritos.
uma extensa área verde aberta ao público, fazendo Não se trata, como já apontou Marcellino (2002), da
com que a comunidade esteja intimamente ligada consideração de um instrumento leve e eficaz, faci-
ao mesmo. Trata-se também de um dos pontos tu- litador do processo de ensino-aprendizagem, para
rísticos da cidade bastante procurado tanto pela po- a adequação conformista de sujeitos a uma inques-
pulação pelotense, por cidades vizinhas, visitantes tionável sociedade estabelecida. É, na verdade, uma
de fora do Rio Grande do Sul e do Brasil. questão de participação cultural efetiva – uma das
O MMPB caracteriza-se dentro de sete hectares bases do exercício da cidadania, visando à autono- 287
de área verde, destinado ao lazer cultural, onde são mia dos sujeitos. Portanto, no contexto das múltiplas
encontrados jardins, bosques e lagos que embele- transformações do cotidiano, no qual vivemos, as
zam a paisagem do bairro Areal, aberto ao público atividades humanas são frequentemente alteradas.
diariamente. Para grande parte da população o lazer está as-
Sendo assim, neste estudo busca-se analisar o sociado a atividades recreativas, no entanto o con-
Museu Municipal Parque da Baronesa enquanto es- ceito de lazer é mais amplo, como afirma o sociólo-
paço de lazer para comunidade pelotense. go Joffre Dumazedier.
Para o desenvolvimento deste trabalho foram O lazer é um conjunto de ocupações às quais o
utilizadas as informações coletadas nos jornais dis- indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja
poníveis no acervo do Museu Municipal Parque da para repousar, seja para divertir-se e entreter-se,
Baronesa; documentos da internet em jornal e site ou ainda para desenvolver sua informação ou
formação desinteressada, sua participação social
informativo da mídia local, com matérias sobre o voluntária ou sua livre capacidade criadora após
tema em diferentes épocas. Também foram realiza- livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações
das observações sistemáticas no período de junho e profissionais, familiares e sociais. (DUMAZE-
julho de 2016. DIER 2001, p.34).
Sumário
De acordo com Dumazedier (2001) o lazer pode Neste contexto afirma Vasconcellos (2006):
ter três funções que normalmente estão ligadas
O museu é algo muito mais que um mercado de
umas às outras, sendo elas: descanso, divertimento tempo livre, posto que trata de preservar traços
e desenvolvimento. Já as atividades de lazer estão da memória da humanidade para que as gera-
classificadas em físicas, manuais, intelectuais, artís- ções presentes e futuras possam deleitar-se com
ticas e sociais. o gozo e o aprendizado de sua contemplação.
(VASCONCELLOS, 2006, p.37)
Nesse bojo de discussões, Castilho (2013) ao se
referir ao lazer ressalta que: O lazer está presente Vasconcellos (2006, p.35) aponta o papel social
em todas as fases da existência humana e vai muito dos museus, pois eles são capazes de inserir turistas
além do simples brincar de uma criança ou de uma e moradores em atividades culturais que estimulam
atividade distrativa e sem importância. “É uma ca- as trocas de experiências. O autor destaca o papel
racterística fundamental da condição do ser humano educativo que o museu desempenha com a finali-
e correlaciona-se, diretamente, com a cultura, por- dade de contribuir para o despertar da consciência
tanto, tem sido analisada a partir de diversas pers- do indivíduo em relação ao patrimônio do qual é
pectivas disciplinares [...]”. (CASTILHO, 2013, p. 56). herdeiro e do seu potencial em termos de ensino e 288
Para Zamora et al. (2003) e Zanin et al. (2005) o aprendizagem. Os museus preservam e conservam
lazer, atualmente, é uma necessidade da sociedade e parte de nossa história que por si só tem a capaci-
assim se fez a partir do momento que as jornadas de dade de educar. O reconhecimento da comunidade a
trabalho foram determinadas e o tempo ócio passou este patrimônio torna-se importante, pois garante a
a ser indispensável para o bem estar humano. Nes- permanência do patrimônio e ao mesmo tempo re-
se contexto, os espaços urbanos funcionam como força a identidade cultural. Outro ponto importante
centros que possibilitam a prática do lazer como em relação aos museus é o fato de ser considerado
esportes, brincadeiras, danças, teatro, dentre outras um ambiente de lazer.
formas de realizar a prática. O Museu Municipal Parque da Baronesa –
Um destes espaços que podem funcionar como MMPB é um espaço público de área verde da cidade
centros de lazer são os museus e podem assumir o de Pelotas que possui uma área de aproximadamen-
papel de poderosos meios educativos ao alcance da te sete hectares. Está situado na região leste da ci-
atividade turística e recreacional. Geralmente os dade, no Areal.
museus são localizados em prédios também de valor O MMPB está localizado na antiga residência
histórico, o que acaba sendo mais um atrativo. da Família Antunes Maciel. O terreno em que hoje
Sumário
está localizado o Solar3 da Baronesa foi comprado Sinhá e Lourival tiveram o total de doze filhos,
em 1863, pelo Coronel Aníbal Antunes Maciel, para dos quais seis faleceram ainda bebês, não chegando
presentear seu filho Aníbal Antunes Maciel Junior, à idade adulta (MPB, 2016). Desse modo, a terceira
em virtude de seu casamento com Amélia Fortunata geração a habitar o Solar foi à filha mais nova de
Hartley de Brito (SCHWANZ, 2011). Destaca-se o Sinhá, neta da Baronesa, Déa Antunes Maciel.
fato de que neste período, o centro urbano da cidade Déa foi a última moradora da casa, permane-
era afastado da chácara, portanto era possível ser cendo na mesma até meados de 1960, posteriormen-
comparada a uma casa de campo ou um Solar. te usava a casa apenas nos verões, passando a maior
Os Barões dos Três Serros, Aníbal e Amélia ca- parte do tempo no Rio de Janeiro (MMPB, 2016).
saram-se em 1864, e logo se estabeleceram na chá- Logo toda família Antunes Maciel fixou residência
cara. Foi a primeira de três gerações que habitou a no Rio de Janeiro, deixando a casa abandonada du-
residência (MUSEU MUNICIPAL PARQUE DA BA- rante dez anos.
RONESA, 2016). Com o distanciamento da família surgiram bo-
A família costumava passar os invernos no Rio atos de que o Parque poderia ser vendido e trans-
de Janeiro, período de abril a outubro, e ficar em formado em loteamento, sendo o prédio demolido. 289
Pelotas no verão, de novembro a maio. Uma prati- Especulações a respeito da propriedade saiam com
ca comum entre a elite pelotense, que aos invernos frequência em manchetes nos jornais da cidade.
buscavam cidades com clima agradável. Déa Antunes Maciel é citada na reportagem do
Annibal morreu aos 49 anos de idade (SCHWA- jornal Diário popular (07. 07.1968, s/p) onde a mes-
NZ, 2011). Da união dos Barões, foi concebido um ma diz que acredita que o Solar não será demolido
total de quatorze filhos (PAULA, 2008) sendo que e que a família ainda não tem um ponto de vista
destes apenas oito chegaram à idade adulta. formado sobre o futuro da chácara.
Sinhá – assim chamada carinhosamente por re- Na mesma reportagem aparece o papel da Pre-
ceber o mesmo nome da mãe – a filha mais velha feitura Municipal que diagnosticou a casa da Baro-
da Baronesa, uniu-se em matrimônio em 1890 com nesa como equipamento social dentro do Plano Di-
o seu primo Lourival Antunes Maciel, filho do te- retor de 1968, mencionando a seguinte resolução:
nente coronel Eliseu Antunes Maciel (PAULA, 2008) “Recomenda-se o estabelecimento de convenio entre
sendo a segunda geração que habitou o solar após a a administração municipal e seus proprietários no
ida da Baronesa para o Rio de Janeiro. sentido de proporcionar aos estudantes e população
³ Nome utilizado para uma casa antiga, de grande luxo, relativo à sua época
Sumário
Pelotas, o prédio e a área da conhecida Chácara da Pelotas, fazendo parte da promoção turística oficial
Baronesa, no bairro Areal, com finalidade de que da cidade que é representada através de folders, si-
fosse restaurado e transformado em museu e área tes, divulgação via redes sociais, jornais locais, en-
de lazer para população” (CORREIO DO POVO, tre outros meios de comunicação.
27.04.1982, s/p). Em torno da casa encontra-se um jardim de mo-
De acordo com o mesmo jornal, o prefeito da delo francês com chafariz rodeado de bancos e can-
época, “desde que assumiu a prefeitura, procurou teiros simétricos, um jardim de modelo inglês com
oferecer um trabalho vinculado diretamente com o um extenso gramado contendo brinquedos infantis
passado cultural e tradicional da cidade. Diante dis- (balanço, gangorra e escorregador) para as crianças,
so, muitas foram às lutas para tombamentos de pré- uma gruta construída com pedras de quartzo, cana-
dios considerados históricos, obtenções de recursos letes, ponte, ilha, um bosque com dois pequenos la-
para restauração e doações de prédios ao municí- gos e atrás do prédio do museu também existe uma
pio” (CORREIO DO POVO, 27.04.1982, s/p). torre chamada casa de banho. Da década de 1930
De acordo com o Decreto Municipal Nº 3.069, há um sobrado construído em uma das entradas do
de 15 de abril de 1992, que deixou a Fundação de parque para um dos filhos de Sinhá. 291
Cultura, Esporte, Lazer e Turismo4 do município Desde sua fundação, são constantemente pro-
responsável pelo MMPB em seu artigo terceiro de- movidas atividades de lazer. Em uma matéria re-
finiu que: “a entidade terá como objetivo a criação alizada pelo jornal Diário Popular (28.04.2014) foi
de um espaço cultural destinado a coletar, preservar ressaltada a procura do MMPB pela população. Nela
e expor os bens que constituem o acervo do museu, é destacado o fato de que a cada dia mais pessoas
promovendo atividades com vistas a sua difusão, buscam o local como um espaço de lazer e contem-
caracterizando-o como um espaço didático e como plação da cultura, sendo um lugar tranquilo e segu-
atração turística”. ro para a família.
Três anos após a sua inauguração, o MMPB foi
O espaço amplo e tranquilo, o barulho dos pás-
tombado5 como patrimônio histórico municipal, e saros quase se sobrepõe ao dos carros, faz do
nos dias de hoje é extremamente importante sendo Parque da Baronesa um dos pontos de descanso
um dos pontos de referência turística da cidade de mais procurado pelos pelotenses [...] O local fica
⁴ A Fundação de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo tinha o objetivo de estimular, desenvolver e coordenar as atividades cul-
turais, de esporte, lazer e turismo do município.
⁵ Tombado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural em 3 de julho de 1985, aprovado pela lei nº2.708
Sumário
dentro da cidade e possui uma grande área verde A instituição museológica, por meio de sua fei-
oferecendo um cenário diferente para quem só ção pedagógica, pode oferecer uma gama de experi-
deseja ficar com a família ou ler um bom livro.
(DIÁRIO POPULAR, 28.04.2014, p.07). ências culturais significativas. Assim, os programas
educativos de diversos espaços museais precisam
Mesquita (2014) identificou que o público que buscar uma melhor utilização dos recursos de
mais frequenta o museu é o público escolar. A fun- aprendizagem em situações informais, priorizando
ção educacional do museu segundo Horta (1991) é as novas demandas socioeducacionais e valorizando
apresentar ao indivíduo o patrimônio cultural de o museu como espaço, ao mesmo tempo, de edu-
que é herdeiro e da sua capacidade de utiliza-lo cação e lazer (HERMETO; OLIVEIRA, 2009). Des-
conceituando educação patrimonial como “o ensino sa forma, um espaço privilegiado para se pensar as
centrado no objeto cultural, na evidencia material possibilidades de lazer no museu MMPB, é a par-
da cultura”. Para Horta “a educação patrimonial não tir da esfera das ações educativas, entendidas aqui
se refere apenas aos objetos do passado, mas igual- como práticas sociais e não apenas como procedi-
mente aos do cotidiano, do presente, aos que estão mentos que promovam a educação. Ou seja, como
sendo criados pelo homem no exercício de sua hu- atividades que possibilitem a reflexão crítica, a tro- 292
manidade” (HORTA, 1991, p 12). ca de experiências e a participação social.
Para Alencar (1987) é a educação patrimonial Vale ressaltar ainda que a ação educativa, quan-
que aponta as bases em que o trabalho educativo do aplicada nos museus, se torna importante veícu-
dos museus pode ser desenvolvido, e este trabalho lo de preservação e valorização do patrimônio, além
implica lidar com a mudança de atitudes relaciona- de promover a assimilação da memória cultural, ge-
das ao patrimônio cultural, envolvendo mais o sen- rando a participação, através da reflexão e da criati-
sível e o emocional. No entanto, é necessário que vidade. Falcão (2009), ao pormenorizar as ações que
as noções de patrimônio sejam abordadas desde a compõe as práticas educativas em museus, elenca as
educação infantil para que ao chegarem a uma ins- seguintes atividades: [...] visitas “orientadas”, “guia-
tituição como o museu tenha uma visão mais critica das”, “monitoradas” ou mesmo “dramatizadas”, pro-
ente o passado e o presente e para que ele como ser gramas de atendimento e preparo dos professores,
humano, se identifique junto ao contexto em que oficinas, cursos e conferências, mostras de filmes,
ele esta inserido, adquirindo conhecimentos de pre- vídeos, práticas de leitura, contação de histórias,
servação e sustentabilidade. exposições itinerantes, além de projetos específi-
cos desenvolvidos para comemorar determinadas
Sumário
datas e servir de suporte para algumas exposições. O MMPB conta com visita guiada geralmente
Além dos materiais educativos e informativos edi- monitorada por uma museóloga da instituição. A
tados com a finalidade de servir a estas práticas, tais proposta é a de que o monitor seja um comunicador,
como: edição de livros, jogos, guias, folders e folhe- fornecendo informações e explicações importantes
tos diversos, folhas de atividades, kits de materiais aos estudantes ou ao público geral. No caso do pú-
pedagógicos, áudio-guia (guia auditivo), aplicativos blico escolar eles podem desafiar os estudantes, pro-
multimídias, CD-ROM, site institucional na inter- vocar reflexão a respeito de determinado assunto,
net, etc. (FALCÃO, 2009, p. 16). permitindo que o aluno perceba que a instituição e
O Programa de Educação Patrimonial do MMPB a exposição são fontes infindáveis de saberes. Essa
está sendo desenvolvido com a finalidade de aproxi- visita é feita com grupos de até 20 pessoas, para que
mar a comunidade escolar e também a comunidade seja possível acomodar os visitantes, não compro-
em geral desse espaço público. Desta maneira o mu- meter o acervo e não causar transtorno a visitação.
seu contribui de forma efetiva para o fortalecimento A visita guiada é feita através de agendamento.
da cidadania e para a reconstrução da memória da O MMPB também elaborou uma cartilha peda-
comunidade. gógica digital - Amelinha, a qual aborda a história 293
O trabalho constitui-se de um conjunto de do Museu da Baronesa, a relacionando com a his-
ações educativas que tem como intuito revitalizar o tória da cidade de Pelotas, bem como com as defi-
espaço do museu, bem como fazer com que a comu- nições e conceitos de patrimônio que aparecem em
nidade escolar e local conheça e reconheça o museu meio à história.
como um espaço público e como um bem cultural
que faz parte da sua história e que pode ser usufru-
ído por todos. O projeto prevê a inserção de exposi-
ções temporárias com temas relacionados ao acervo
do museu instigando a curiosidade em relação a sua
história, para isso o espaço necessita de novos ex-
positores, de equipamentos de informática e mate-
riais de apoio para dar subsídio às ações educativas.
Dessa forma, pretende-se que o Museu cumpra sua
função, se constituindo em lugar de aprendizagem, Figura 2. Cartilha Pedagógica - Amelinha
lazer, reflexão e inclusão social. (MMPB, 2016) Fonte: Museu Municipal Parque da Baronesa, 2016
Sumário
A educação patrimonial no MMPB é realizada dados demonstraram que o público analisado não
também, através de exposições temporárias com as- tem o habito de visitar museus e que aqueles que
suntos relacionados ao acervo do museu estimulan- já haviam visitado o MMPB, a maioria deles, não
do a curiosidade em relação a sua história. recordava quando visita foi realizada.
Estas ações tem o intuito de fazer com que a Outro resultado da pesquisa de Venzke (2011)
comunidade escolar e local conheça e reconheça demonstrou que 66% do público analisado acharia
este espaço público como um benefício cultural que triste se o parque estivesse fechado, já 53% reagiria
faz parte da sua história e da cidade que pode ser normalmente se o museu permanecesse fechado.
desfrutado por toda população. O aluno que visita Dessa forma, a autora constatou o público entre-
um museu conhece a história, os costumes, a ori- vistado possui um sentimento de pertencimento em
gem daquele local que ela está visitando, e faz com relação ao parque, diferentemente do museu.
que gere ali sentimentos novos, de pertencimento, O museu cobra entrada e esse valor é revertido
de orgulho ou até de respeito. para manutenção do museu, promoção das expo-
Portanto, é fundamental considerar a educação sições, produção de folders e melhorias no funcio-
nos espaços museais também como práticas de lazer, namento do local. O ingresso ao museu é gratuito 294
visto que esta é considerada importante para que a para os estudantes da rede municipal e estadual de
ação educativa seja realizada. Dessa maneira, perce- Pelotas e região, também para grupos assistenciais,
be-se que as ações educativas não deveriam ser vis- pessoas portadoras de deficiência e crianças até 12
tas apenas como técnicas que se encerram em si e anos. A meia-entrada atende estudantes de escolas
sim como atividades de lazer que podem contribuir particulares acima de 12 anos, universitários, pro-
para despertar a consciência do indivíduo e na for- fessores e idosos acima de 60 anos mediante docu-
mação de cidadãos críticos e conscientes. O museu mento de identificação. O museu funciona de terça
é um instrumento que vem reforçar a identidade das a sexta das 13h30 às 18h e sábados, domingos e fe-
comunidades ao contribuir para salva guardar um riados das 14h às 18h (MMPB, 2016). Entretanto o
patrimônio estimado por todos. acesso ao parque e a área verde ao redor do museu
Já o parque do MMPB é frequentado pela co- é gratuito e pode ser feito a qualquer horário do dia.
munidade local, principalmente aos finais de se- Algumas ações foram realizadas no intuito de
mana, sendo que muitos destes nunca visitaram o aproximar os moradores da cidade ao MMPB foram:
Museu. Venzke (2011) realizou uma pesquisa com o “dia de Passe Livre”, no qual a visitação ao museu
pessoas que estavam no Parque da Baronesa e os era gratuita; “Domingo no Parque”, que a partir do
Sumário
patrocínio da Prefeitura de Pelotas, ocorriam apre- Observa-se no MMPB crianças correndo, jo-
sentações de teatro, bandas locais e a presença do gando bola, brincando no playground; pessoas ca-
Grupo Tholl; “Fazendo Música no Museu”, no qual minhando, andando de bicicleta, passeando com o
músicos locais realizam apresentações acústicas no cachorro ou praticando algum esporte como, por
salão Dona Sinhá . Também, no Parque são realiza- exemplo, futebol, vôlei, o slackline7, fazer um pique-
dos eventos como o Piquenique Cultural6. nique, encontro de amigos, roda de chimarrão para
Através das observações no MMPB, percebeu- um bate-papo, descanso à sombra de uma árvore,
-se que em dias de semana o movimento no parque conhecer parte da história da cidade. Pessoas na-
é pequeno e quase sempre o mesmo, sendo poucas morando, estudando, lendo, contemplando, ou sim-
as pessoas que circulam pelos jardins, entretanto plesmente dando uma pausa. O Parque é um lugar
aos sábados, domingos e feriados o ritmo se altera de encontro de pessoas de diversas classes sociais,
e o movimento torna-se bastante intenso desde a faixa etária, vindas das diversas regiões da cidade e
manhã até à tardinha. Um ponto importante a ser de fora dela.
destacado é o fator clima que influencia na procu- Assim, o MMPB é um espaço de lazer para a
ra pelo MMPB, em dias de chuva não há movimen- comunidade local, pois vem funcionando centros 295
tação de pessoas, no entanto, em dias ensolarados que possibilitam a prática do lazer como esportes,
tornam-se propícios para passeios ao ar livre. Outro brincadeiras, danças, teatro, entre outras.
fator que acarreta no aumento de visitantes no par- A partir dos dados acima, podemos dizer que
que e consequentemente no museu, são os eventos o MMPB se enquadra nas três funções que o lazer
realizados pelo mesmo ou por outras instituições. desempenha de acordo com Dumazedier (2001) sen-
Cabe salientar que a cidade carece de espaços do elas o descanso, pois proporciona o contato com
públicos de lazer, sendo o MMPB um dos poucos es- uma extensa área verde onde pode-se ouvir o baru-
paços verdes disponíveis na cidade. Por esse moti- lho dos pássaros e caminhar entre as arvores, sen-
vo vem passando por um processo de requalificação do esse um dos únicos locais dentro da área urbana
onde estão previstos para a primeira etapa a constru- que possibilita sossego, o divertimento já que em
ção de espaços de convivência no parque, bancos e seus espaços é possível praticar esportes, brincar ou
iluminação. Já foi instalada uma academia ao ar livre. simplesmente ler um livro e por último o desenvol-
⁶ Movimento multiartístico que acontece em praças e parques de Pelotas desde 2010 realizado por diversas instituições em parceria
⁷ Slackline é uma fita elástica esticada entre dois pontos fixos, o que permite ao praticante andar e fazer manobras em cima
Sumário
vimento, pois se trata de um local que em todos os pessoais, sociais e culturais significativas, desvin-
ambientes reflete a cultura local e instiga o visitante culando da ideia de “indústria cultural”, um meio
a refletir constantemente. encontrado pelo capitalismo, para se fazer presente
Além do lazer, o parque é utilizado pela comu- também no lazer das pessoas, transformando-as em
nidade também nas áreas educativas e culturais, consumidoras de mercadorias lúdicas e culturais.
também consideradas práticas de lazer, como os (ZINGONI, 2008).
projetos “Trilha Ecológica no Parque da Baronesa”,
“Arte aos Quatro Ventos”, entre outros, objetivando CONSIDERAÇÕES FINAIS
levar às comunidades dos bairros diversas manifes-
tações culturais e, ainda, conhecer o bosque sob o Ao analisar a trajetória do Museu Municipal
olhar da educação patrimonial e ambiental. Parque da Baronesa constatamos que os objetivos
Desse modo, tanto o Parque quanto o Museu da Família Antunes Maciel ao doar este espaço para
podem ser considerados um patrimônio da cidade, o município concretizaram-se, tornando-se um es-
bem como espaço de lazer, local de aprendizagem e paço de lazer aberto ao público.
troca de conhecimento. Constatamos que o Museu da Baronesa é usado 296
Marcellino (2001) enfatiza duas correntes an- principalmente público escolar entendendo o cará-
tagônicas em relação ao lazer: uma que enxerga o ter educativo dos mesmos. Contudo, é fundamental
lazer cada vez mais como mercadoria, como mero considerar a educação nos espaços museais também
entretenimento a ser consumido, ajudando a supor- como práticas de lazer. Já o Parque da Baronesa é
tar, ou a conviver, com uma sociedade injusta e de usado como espaço de lazer principalmente pela po-
insatisfação crescente; outra que o vê como gera- pulação pelotense. Neste espaço identificamos uma
do historicamente na sociedade e que dela emerge, diversidade de atividades que são desenvolvidas.
podendo na sua vivência gerar, também no plano O MMPB é um espaço bastante frequentado
cultural, valores questionadores da própria ordem principalmente pela sua beleza natural e cultural,
estabelecida. Nessa perspectiva, o lazer abre múl- para a socialização entre as pessoas, para a prática
tiplas possibilidades e é preciso incentivá-lo com de esportes e pela tranquilidade que proporciona,
ações que contraponha às da indústria cultural, que permitindo momentos de lazer a crianças, adultos e
o reduz a mercadoria, ou seja, sua pior conotação. idosos como também momentos de reflexão.
O MMPB possibilita aos frequentadores viven- Para pensarmos o lazer, devemos interpretá-lo
ciar valores que podem contribuir para mudanças como um problema social, visto que é um direito
Sumário
que vem sendo negligenciado à grande parte da HERMETO, M; OLIVEIRA, G. D. Ação educativa em mu-
população, principalmente a de mais baixo poder seus: produção de conhecimento e formação para a cida-
dania? In: AZEVEDO, F. L. M.; CATÃO, L. P.; PIRES, J. R. F.
aquisitivo. No caso do MMPB enquanto espaço de (Org.). Cidadania, memória e patrimônio: as dimensões
lazer distancia-se das normas do mercado, dissemi- do museu no cenário atual. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.
nadas pela indústria cultural e tornar-se cada vez p. 89-107
mais alvo de ações governamentais.
A vivência de experiências de lazer como um HORTA, Maria de Lurdes Parreiras. Educação Patrimonial.
Comunicação apresentada na Conferencia Latino Americana
direito social do indivíduo, contribuirá para o seu sobre a preservação do Patrimônio Cultural. Jun, 1991.
desenvolvimento humano, propiciando a aquisição
e/ou ampliação de condições para uma participação LEAL, Nóris; Mara Pacheco. Museu da Baronesa: acordos
mais efetiva na sociedade. No MMPB o lazer pode e conflitos na construção da narrativa de um museu munici-
pal, 1982-2004. Dissertação (Mestrado) – Programa de pós-
ser percebido como um instrumento de cidadania
-graduação em História. Universidade Federal do Rio grande
através de seu importante papel no desenvolvimen- do Sul, Porto Alegre, RS. 2007.
to humano, pois é um dos meios pelo qual a pessoa
pode se desenvolver existencialmente como ser hu- MARCELLINO, Nelson (Org.). Estudos do lazer: Uma in-
trodução. São Paulo: Autores Associados, 2002.
297
mano e cidadão responsável de uma comunidade.
MARCELLINO, Nelson. Lazer e Esporte. Campinas, São
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ALENCAR, Vera. M. A. Museu-educação: se faz caminho da cidade. In: CASTELLANI FILHO, Lino (Org.). Gestão
ao andar. 1987.201f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pública e política de lazer: a formação de agentes sociais.
Departamento de Educação, PUCRJ, Rio de Janeiro, 1987. Campinas: Autores Associados, 2007. p. 17-40.
CASTILHO, C. T. Lazer na natureza e atuação profissional: MESQUITA, Morgana Madruga de. Museu Municipal
discursos e práticas contemporâneas. Dissertação (Mestra- Parque da Baronesa: MONTONE, Annelise Costa. Repre-
do) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2013. sentações da vida feminina em um acervo de imagens
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. 3. Ed. São fotográficas do Museu da Baronesa, Pelotas/RS: 1880 a
Paulo: Perspectiva, 2001. 1950. 2011. 197f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e
Patrimônio Cultural) – Programa de Pós-Graduação. Institu-
FALCÃO, A. Museu como lugar de memória. Salto Para o to de Ciências Humanas. Universidade Federal de Pelotas.
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Sumário
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MUSEU MUNICIPAL PARQUE DA BARONESA. Memória,
cultura e inclusão social: conhecendo o Museu da Barone- ZINGONI, Patrícia. O lugar da Família nas Políticas de
sa através da educação. Disponível em: http://www.museu- Lazer. In: MARCELLINO, Nelson (Org.). Lazer e Sociedade:
dabaronesa.com.br/. Acesso em: 26 jul.2016. Múltiplas Relações. Campinas: Alínea,2008.
¹ Doutor em Engenharia de Sistemas Eletrônicos. Líder do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Educação e Cognição, atua em for-
mação docente e desenvolvimento/uso de tecnologias. profdanielpaiva@gmail.com
² Mestre em Ciências Naturais. Atua no Ensino de Química e de Ciências; Informática na Educação; Produção/avaliação de
atividades didáticas tecnológicas e não tecnológicas. glauciargonzaga@gmail.com
³ Licenciado em Computação. Membro do Grupo de Pesquisa TEC(Tecnologia, Educação e Cognição). francisco25aoliveira@
hotmail.com
⁴ Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Atua na Universidade Paulista. amanda.lui-
za@gmail.com
⁵ Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Paulista, onde atua como professor nos cursos de Ciência da Com-
putação e Sistemas de Informação. f.luis01@gmail.com
Sumário
A verificação deste perfil de aluno só é possí- todologias didáticas adotadas podem ser identifica-
vel quando se pensa em metodologias didáticas que das, por exemplo, uma das alternativas adotadas é o
levem em consideração a variação comportamen- uso de investigação e experimentação na busca pela
tal e esse impacto no desenvolvimento do mesmo. construção do conhecimento. Afinal, com imersão
Portanto, cabe ao professor sempre a busca pela os resultados são melhores, a aprendizagem se dá
melhor forma de abordar cada conteúdo, utilizan- de forma progressiva e com interação com o meio
do sugestões de especialistas ou profissionais com (MEDNICK, 1973), assim, “toda atividade requer um
vivência na profissão. Ter alunos que confiam e se dinamismo, uma dinâmica” (NOT, 1993). No campo
interessam pelo que é ensinado é um desafio para da psicologia, esse dinamismo tem origens nas mo-
que haja efetivamente a assimilação e aprendizado, tivações que determinado indivíduo pode ter (MO-
com posterior mudança no comportamento (NOVA RAES & VARELA, 2007).
ESCOLA, 2014).
Em geral, uma formação teórica e formal, com USO DE VÍDEO NO PROCESSO DIDÁTICO
conteúdos aplicados sem contextualização leva a
alto grau de reprovação e insatisfação (CIPRIANI; O uso de vídeo como ferramenta em apoio a 302
MONSERRAT & SOUZA, 2007). Aliado a isto, para metodologias didáticas não é recente; porém ele
grande quantidade de professores, o aluno precisa era (e vem sendo em muitos casos) subjulgado, não
saber “na ponta da língua” e os alunos decoram para sendo explorado em toda a sua potencialidade. Para
que consigam boas notas, esquecendo com pouco alguns professores o uso de vídeo é visto como ape-
tempo o conteúdo (PRIETO, 2006). nas ocupação de tempo escolar ou como exemplo de
Diante deste cenário, o processo pedagógico algo ultrapassado.
vem sofrendo inúmeras modificações para enfren- A escola apenas fornecer a infraestrutura (es-
tar a passividade de alunos e professores com méto- paço e equipamentos eletrônicos) não é o suficiente
dos didáticos tido como tradicionais, os quais con- para a adoção pedagógica do vídeo como recurso di-
sistem basicamente na memorização de definições dático. A utilização deste recurso em toda a sua po-
e fórmulas. tencialidade, necessita de um planejamento adequa-
O desafio então é melhorar as aulas de modo do para que seja possível tirar o máximo de proveito.
a conseguir “aproximar o conteúdo abordado ao O processo de uso do vídeo permite uma abor-
cotidiano do aluno” (CIPRIANI; MONSERRAT & dagem que envolve comunicação sensorial, emocio-
SOUZA, 2007). Ajustes no discurso e algumas me- nal e racional (MORAN, 2002). Uma atividade que
Sumário
envolve vídeo (de forma pedagogicamente planeja- Também é preciso levar em consideração, no
da) quebra alguns paradigmas de um contexto de desenvolvimento deste tipo de projeto, três impor-
lazer e entretenimento. “Vídeo, na cabeça dos alu- tantes aspectos citados por Filipecki e Barros (1999):
nos, significa descanso e não “aula”, o que modifica [i] o aspecto conjuntural, relacionado a compatibi-
a postura, as expectativas em relação ao seu uso” lidade das condições estruturais existentes no am-
(MORAN, 1995, p.27). biente educacional; [ii] o aspecto cognitivo, para
Existe duas formas gerais de se utilizar vídeo potencializar o aprendizado; e [iii] o aspecto moti-
de forma didático-pedagógica: [i] utilizando vídeos vacional que, como já mencionado, está diretamen-
prontos que falem por si mesmos para que o do- te relacionado a efetivação e ao êxito no desenvol-
cente dinamize e direcione a leitura do que é visto vimento da atividade.
(MANDARINO, 2002); [ii] produzindo os vídeos, na A produção de vídeos por alunos (independen-
busca por aprimoramento de fatores de apresenta- temente do nível de ensino) é uma possibilidade de
ção, domínio de conteúdo e evolução mensurável de inovação do processo didático, pois ao mesmo tem-
forma individualizada ou em grupos pequenos. po que envolve o aluno, o estimula na construção do
Para a finalidade deste artigo serão abordadas conhecimento científico e no desenvolvimento psi- 303
informações referentes apenas à produção de víde- cossocial (CONDREY, 1996), fruto da descoberta de
os por alunos com a mediação do professor em uma novas possibilidades de expressão (FERRÉS, 1996).
abordagem individualizada que permita contornar
características de timidez e falta de treinamento. REDAÇÃO DE RELATÓRIOS E
Girão (2005, p.113) divide o processo de pro- DOCUMENTAÇÃO DE ATIVIDADES
dução de vídeo em cinco etapas, sendo necessários, PRÁTICAS
antes de começar, a definição do assunto e dos ob-
jetivos do vídeo: [i] criação e planejamento; [ii] de- Documentos oficiais como os PCNEM (Parâ-
senvolvimento de roteiro; [iii] pré-produção; [iv] metros Curriculares Nacionais do Ensino Médio) do
direção e gravação; [v] edição e finalização. Ministério da Educação (BRASIL, 2002) e o SocInfo
O mesmo autor indica que, mesmo sendo uma (Sociedade da Informação no Brasil) do Ministério
atividade um pouco mais complexa, na medida que da Ciência e Tecnologia (BRASIL, 2000) incentivam
os alunos evoluem dentro das tarefas também ocor- a produção cientifica por alunos ao enfatizarem a
re o aumento da familiaridade e do domínio do que importância e a necessidade do uso de multimodos
está sendo tratado, aumentando a capacidade de no processo de ensino do nível básico (entendendo-
análise crítica do produto final (SILVA, 2009). -se “básico” como Ensinos Fundamental e Médio),
Sumário
a elaboração de comunicações orais e escritas para buir na transmissão de suas ideias e “[...] ajudar a
relatar, analisar e sistematizar eventos, fenômenos, problematizar e explicitar conhecimentos implíci-
experimentos e outras atividades cientificas. tos, adquiridos em diferentes momentos de experi-
A comunicação sempre esteve ligada com a ências vividas, podendo, assim, configurar-se como
Educação devido ao objetivo comum que ambas pos- uma importante estratégia para a formação docen-
suem, de promover a aprendizagem do indivíduo. te” (FREITAS, 2006, p.61).
Um documento escrito, como um relatório didáti-
[...] o próprio fato de escrever, de escrever so-
co de alguma atividade desenvolvida pedagogica- bre a própria prática, leva o professor a apren-
mente, é um instrumento eficiente para a exposição der com sua narração. Ao narrar sua experiência
de ideias e compilação de informações e opiniões, recente não só a constrói linguisticamente como
possibilitando o processo de registro e divulgação a reconstrói como discurso prático e como ati-
vidade profissional (a descrição se vê continu-
científica (MOREIRA et al., 2003), e é uma ferramen- amente ultrapassada por proposições reflexivas
ta importante no processo de formação de futuros sobre os porquês e as estruturas de racionalida-
professores (PHILLIPS & CRESPO, 1996; FREITAS, de e justificação que fundamentam os fatos nar-
2006; CATTLEY, 2007; FREITAS & FIORENTINI, rados. Quer dizer, a narração se transforma em
reflexão). (ZABALZA, 2004, p.44) 304
2008; TEIXEIRA, 2009).
Mesmo com todo o potencial deste tipo de ati-
vidades, e a importância de atividades com o regis- CONTEXTOS ACADÊMICOS –
tro escrito das mesmas, há uma grande resistência TREINAMENTO DE FUTUROS
por parte dos alunos em atividades que envolvam PROFESSORES
redação (BISCONSINI; REIS & BORGES, 2007), pois,
como colocado por Freitas e Fiorentini (2008, p.139), Após a breve fundamentação apresentada, a
a maioria dos cursos de graduação, mesmo as licen- partir daqui estão descritos os procedimentos me-
ciaturas, ainda possui “[...] uma tradição de pouca todológicos e resultados alcançados com a proposta
leitura e pouca escrita, priorizando um tipo de lin- de uso de diferentes metodologias didáticas na for-
guagem que, por ser técnica, inibe aquele que escre- mação de licenciandos em Computação.
ve, impedindo, assim, que exponha suas ideias com Os procedimentos metodológicos adotados fo-
maior flexibilidade e crítica”. ram solicitações de atividades práticas combinadas
Fazer com que os alunos de graduação, futuros com exposições de conteúdo teórico base, no con-
professores, produzam material escrito pode contri- texto de duas disciplinas Informática Educativa 1 e
Gestão de Tecnologias na Educação.
Sumário
O uso de diferentes metodologias didáticas no BALANCHO, Maria José dos Santos; COELHO, Filomena
Manso. Motivar os alunos, criatividade na relação peda-
processo de ensino é uma escolha do docente, in-
gógica: conceitos e práticas. 2.ed. Porto, Portugal: Texto,
fluenciada por diversos fatores, dentre eles a sua 1996.
formação acadêmica, seu preparo e sua coragem de
experimentar. Só o uso da ferramenta ou da estra- BISCONSINI, Vilma Rinaldi; REIS, Carlos Alberto Rossi dos;
tégia didática não garante uma aula de qualidade BORGES, Erasmo Carlos. Memorial de estágio como pos-
sibilidade de desenvolvimento da capacidade de produção
e com participação ativa dos alunos, é preciso que
escrita do futuro professor de Matemática. In: IX Encontro
eles se sintam estimulados pelo professor, e que Nacional de Educação Matemática, Belo Horizonte – MG,
este identifique seus interesses e curiosidades (GIL, Anais... Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.
1994), aumentando, assim, o rendimento do apren- sbembrasil.org.br/files/ix_enem/Html/relatos.html>. Acesso
dizado. em: 10 ago. 2016.
Este trabalho apresenta o relato de atividades BORGES, Simone de Souza; REIS, Helena Macedo; DURELLI,
solicitadas em duas disciplinas, exatamente com Vinicius Humberto Serapilha; BITTENCOURT, Ig Ibert; 307
a intenção de contribuir na formação de futuros JAQUES, Patricia Augustin; ISOTANI, Seiji. Gamificação
profissionais da educação. O uso de recursos tec- Aplicada à Educação: Um Mapeamento Sistemático. In: II
nológicos síncronos e assíncronos, a produção de Congresso Brasileiro de Informática na Educação e XXIV
Simpósio Brasileiro de Informática na Educação. Anais...
vídeo-aulas curtas e a elaboração de um curso na Campinas-SP: Sociedade Brasileira de Computação, 2013.
modalidade EaD foram descritos e tiveram contri- Disponível em: <http://www.br-ie.org/pub/index.php/sbie/
buição direta para os resultados obtidos. issue/view/78>. Acesso em: 10 ago. 2016.
Tais atividades podem ser facilmente adaptadas
BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT. So-
a outros contextos, considerando que o recurso ne-
ciedade da Informação no Brasil: Livro Verde. Brasília:
cessário foi um celular que faça a gravação de víde- MCT, cap.4, p. 43-56. 2000. Disponível em: <http://www.mct.
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Sumário
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Sumário
PROJETO ARUANDA: O DISCURSO NA der e dominação. Conclui-se que algumas das falas
DESCONSTRUÇÃO DO RACISMO EM dos participantes do Projeto podem ser explicadas
através de seus modelos (mentais) de contexto, os
COMUNIDADES NEGRAS DA CIDADE
quais levam tais crianças (negras ou não) a repro-
DE NOVO HAMBURGO/RS duzir representações sociais negativas acerca da po-
pulação negra. Uma vez que o discurso dos grupos
PROYECTO ARUANDA: EL DISCURSO EN LA de elite exerce dominação de diferentes formas e em
(DE)CONSTRUCCIÓN DEL RACISMO EN LAS
COMUNIDADES NEGRAS EN LA CIUDAD DE NOVO diferentes espaços, inclusive no espaço educacional,
HAMBURGO/RS conclui-se também que cabe aos professores e aca-
dêmicos usar sua posição privilegiada para auxiliar
Daniela Santos da Silva (Universidade Feevale)1 na edificação de uma sociedade menos preconceitu-
osa e mais equitativa.
Resumo: Partindo das primeiras experiências no Palavras-chave: Racismo. Discurso. Projeto Aruanda.
Projeto Aruanda: A voz da juventude negra, atividade
de extensão da Universidade Feevale, o artigo tem Resumen: En base a las primeras experiencias en 310
como objetivo compreender o papel do discurso no el Proyecto Aruanda: La voz de la juventud negro,
processo de (des)construção do racismo. Esse en- actividad de extensión de la Universidad Feevale,
tendimento, além de fortalecer a práxis dos profes- el artículo tiene como objetivo comprender el pa-
sores e acadêmicos envolvidos no Projeto, evidencia pel del discurso en la (de)construcción del racismo.
mecanismos de invisibilização e/ou desvalorização Esta comprensión, además de fortalecer la práctica
da população negra de Novo Hamburgo/RS, cidade de los profesores y académicos involucrados en el
comumente vinculada exclusivamente à imigração proyecto, muestra los mecanismos de invisibilizaci-
germânica. São apresentados os principais pontos ón y/o depreciación de la población negro de Novo
da Análise Crítica do Discurso, em particular da Hamburgo/RS, comúnmente ciudad ligada exclusi-
proposta sociocognitiva de Teun van Dijk, autor vamente a la inmigración alemana. Los principales
que vê na tríade discurso-cognição-sociedade um puntos de Análisis Crítico del Discurso, en particu-
meio para investigar a relação entre discurso, po- lar, de la propuesta socio-cognitiva de Teun van Dijk
¹ Mestra em Administração/Teorias Organizacionais pela UFRGS/RS; graduada em Relações Públicas pela UFRGS/RS. Profes-
sora na área de Comunicação da Universidade Feevale (danielasantos@feevale.br).
Sumário
se presentan. El autor que ve la tríada discurso-cog- Como não poderia deixar de ser, ao testemu-
nición-sociedad un medio para investigar la relación nhar essas frases, minha primeira reação foi um
entre el discurso, el poder y la dominación. Se con- misto de perplexidade, tristeza e raiva. Como po-
cluyó que algunas de las intervenciones de los par- dem essas crianças ser vítimas de racismo e isso ser
ticipantes del proyecto se explica por sus modelos visto de modo natural? Como podem essas crianças
(mentales) de contexto, que conducen a estos niños repetir pensamentos e expressões que ofendem uma
(negros o no) para reproducir representaciones so- pessoa por conta da sua etnia – etnia essa da qual,
ciales negativas de la gente negra. Desde el discurso contraditoriamente, muitas delas mesmas fazem
del grupo de élite ejerce la dominación de diferentes parte? Passado o susto inicial, essas emoções e in-
maneras y en diferentes espacios, en particular en el quietações me levaram a pensar sobre as estruturas
espacio educativo, se deduce también que los pro- e os processos que impelem as pessoas a reproduzir
fesores y estudiantes deberían utilizar su posición o racismo já tão cedo. Mais que isso, levaram-me
privilegiada para ayudar en la construcción de una a buscar compreender o papel do discurso no pro-
sociedad con menos prejuicios y más equidad. cesso de (des)construção do racismo. No presente
Palabras clave: Racismo. Discurso. Proyecto Aru- texto, analiso essa problemática através da Análise 311
anda. Crítica do Discurso (ACD) e, mais especificamente,
da abordagem sociocognitiva proposta por Teun A.
van Dijk. Esse entendimento, além de fortalecer a
INTRODUÇÃO práxis das pessoas envolvidas no Aruanda, pretende
evidenciar parte dos mecanismos de invisibilização
“Eles me chamaram de negro!”, gritou Pedro, e/ou desvalorização da população negra de Novo
aos prantos. “Um colega uma vez me chamou de Hamburgo.
batuqueira...”, disse Gabriela com a voz fraca en- Visando ser coerente com a discussão teórica
quanto desviava o olhar para o chão, durante uma que será apresentada ao longo deste texto, cabe in-
roda de conversa. “Seu macaco!!”, explodiu Mauro, formar o meu lugar de fala: sou uma mulher negra,
contrariado com o que Pedro havia lhe feito. Essas e pesquisadora, professora e militante pelas causas
outras falas foram ouvidas por mim e meus colegas negra e feminista. Costurando essas facetas está
durante as primeiras oficinas do Projeto Aruanda: uma pessoa (pre)ocupada em entender os proces-
a voz da juventude negra, atividade de extensão da sos e relações sociais e, em especial, as relações de
Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). dominação. Em minha trajetória pessoal/acadêmica
Sumário
aprendi que esse é um caminho bastante interessan- A ideia dessa atividade de extensão nasceu
te quando o objetivo é acabar com as opressões. da percepção de que a população negra de Novo
Minha participação no Projeto Aruanda se dá Hamburgo sofreu e sofre as consequências de um
nesse sentido. Junto ao Projeto Múltiplas Leituras, ati- processo de invisibilização. Localizada na região
vidade de extensão voltado à população indígena, o do Vale dos Sinos, região metropolitana de Porto
Aruanda compõe o Programa de Extensão NIARA – Alegre/RS, a cidade tem hoje na colonização e no
Nutrindo Identidades e Afirmações Raciais. O princi- trabalho alemães seus principais elementos iden-
pal objetivo do Aruanda é incentivar a “construção de titários. Em seu site institucional, a Prefeitura Mu-
atitudes de autoafirmação identitária e de valoriza- nicipal declara que, “nascido da perseverança e da
ção das culturas negras, contribuindo para a promo- força do imigrante alemão, o Município de Novo
ção de relações interétnicas pautadas pela igualdade Hamburgo é um exemplo de comunidade unida e
racial” na região em que a Universidade Feevale se trabalhadora”. Oficialmente, foi “do suor e da vonta-
insere (PROJETO DE EXTENSÃO ARUANDA, 2016). de deste povo [o germânico]” que se construiu “um
Para isso, meus/minhas colegas (professores/as lugar de prosperidade e grande desenvolvimento”
e alunos/as da instituição) e eu nos propusemos a (NOVO HAMBURGO, 2016, [s.p].). Sabe-se, contu- 312
dialogar com crianças de seis a doze anos de idade do, que essa é apenas uma parte da história. Uma
moradoras de comunidades hamburguenses em que rápida circulação por bairros “pouco nobres” da ci-
a presença da população negra é marcante, numéri- dade comprovará isso. Além disso, como será apre-
ca ou historicamente. A cada semestre, uma dessas sentado neste texto, importantes trabalhos já foram
comunidades recebe a equipe do projeto para ofici- feitos demonstrando a importância das populações
nas semanais a respeito dos diferentes aspectos da portuguesa, indígena e negra para a conformação
trajetória do povo negro na África, no Brasil e, espe- social e econômica do município.
cialmente, no Vale dos Sinos. São discutidas também
questões sobre a população negra na atualidade e so- A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E A
bre as relações interétnicas. Permeando esses temas, ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
está o estímulo à autoexpressão das crianças através
de aulas de oratória e produção audiovisual. O que Conforme relatam Charaudeau e Maingueneau
buscamos, em síntese, é estimular a autoestima, o (2012), não é possível precisar o momento de surgi-
empoderamento e o protagonismo político-cultural mento da Análise do Discurso (AD). Sabe-se, porém,
das crianças negras, bem como um sentimento de que é resultante de movimentos progressistas euro-
respeito e cooperação entre as crianças brancas. peus e estadunidenses dentro das ciências linguís-
Sumário
ticas que, apesar das bases distintas, convergiram –, ambiciona-se identificar as contradições do siste-
na década de 1960 na busca das significações sociais ma que oferecem possibilidades de constituírem um
que extrapolam as frases orais ou escritas. Com isso, projeto de emancipação, o qual, por sua vez, estará
além de multidisciplinar, a AD se caracteriza pela atrelado a outras ordens discursivas que não as hoje
pluraridade de correntes teóricas. Em comum, há hegemônicas (MISOCZKY, 2005, p. 130-131).
apenas a investigação do discurso, termo que, ainda Como salienta Misoczky (2005, p. 131), a susten-
assim, tem diferentes conceituações conforme a dis- tação teórica da ACD tem em Antonio Gramsci, inte-
ciplina e a base teórica sob a qual é investigado. lectual italiano para quem “todos os seres humanos
Dentre as principais abordagens, Misoczky manifestam, em sua ação, uma concepção de mundo.
(2005) aponta a que se concentra na relação dis- Ideologia é a unidade resultante dessa concepção de
curso-sociedade e que confere grande importância mundo com normas de conduta adequadas a ela”.
ao contexto. É nesse espaço que se insere a Análise Para o autor, a ideologia ultrapassa o conhecimento;
Crítica do Discurso (ACD), que se debruça sobre o ela estabelece associação direta com a prática e com
discurso enquanto uma prática social levada a cabo a política. Fica evidente, desse modo, que a suposta
através da linguagem, isto é, sempre uma prática neutralidade científica não é uma meta aqui. Assim 313
política e ideológica. como o discurso em si, a investigação científica é
vista como uma prática social.
O discurso, enquanto prática política é não ape-
nas um local de luta pelo poder, mas também um [...] a pesquisa em ACD combina o que talvez,
marco delimitador na luta de poder: a prática pomposamente, costuma ser chamado de ‘soli-
discursiva recorre a convenções que naturali- dariedade com os oprimidos’ com uma atitude
zam relações de poder e ideologias particulares; de oposição e dissenção contra aqueles que, por
as próprias convenções e os modos como se arti- meio do texto e da conversação, buscam estabe-
culam são um foco de luta (FAIRCLOUGH, 2001 lecer, confirmar ou legitimizar o seu abuso de
apud MISOCZKY, 2005, p. 131). poder. Diferentemente de outras perspectivas, a
ACD não nega, mas assume e defende sua posi-
A proposta da ACD é a análise do “trabalho so- ção social e política. Ou seja, a ACD é tendencio-
cial feito por esses discursos” como parte de uma sa – e orgulhosa disso (VAN DIJK; MEDEIROS;
ANDRADE, 2013, p. 353).
crítica social das relações de poder, dominação e de-
sumanização que caracterizam o sistema capitalista. Entre os diferentes autores que trabalham sob
A partir da compreensão dos processos que susten- essa perspectiva, o holandês Teun A. van Dijk se des-
tam esse sistema – o que inclui o processo discursivo taca por entender os aspectos cognitivos como in-
Sumário
trinsecamente relacionados à prática (social) discur- memória) quanto a cognição individual (processos
siva. Focando parte importante dos seus trabalhos no mentais). A sociedade, por sua vez, é compreendida
racismo e na ideologia, define o discurso como em nível micro e macro, isto é, tanto no espectro
das interações sociais quanto das relações intra e
[...] una forma de uso lingüístico y, de una forma
más general, como un tipo de interacción social,
intergrupais, institucionais, políticas, culturais e da
condicionada por la cognición y socialmente ordem social em geral.
contextualizada por los participantes, tomados A sociedade e o discurso são a sustentação do
como miembros sociales en situaciones sociales. triângulo. Para o autor, essas duas noções se relacio-
El discurso, ya sea oral o escrito, se define, pues,
como un evento comunicativo de un tipo espe-
nam entre si por meio da interação social, ou seja,
cial, estrechamente relacionado con otras acti- da configuração que o discurso assume nas situa-
vidades comunicativas no verbales (tales como ções sociais. Daí a sociedade ser a origem do discur-
los gestos o el tratamiento de la imagen) y otras so. No ápice do triângulo, estabelecendo a interface
prácticas semióticas de significado, de significa-
ción y con los usos sociales de códigos simbó-
entre o discurso e a sociedade, está a cognição. Se-
licos, como los de la comunicación visual (por gundo van Dijk (1997), o processo cognitivo é res-
ejemplo, los gráficos, la fotografía o el cine) (van ponsável pela mediação entre sociedade e discurso 314
DIJK, 1997, p. 68-69). através da supervisão e regulação, do que deriva a
sua defesa da cognição como um dos elementos es-
O autor sustenta que um discurso somente tem senciais para a ACD.
significados porque esses são atribuídos pelos usu- Isso não implica que o autor afirme que a cog-
ários da linguagem. Comumente chamadas de in- nição possui mais relevância que os outros dois
terpretações, essas atribuições de significados são, vértices do triângulo explicativo. Afinal, as mentes
a um só tempo, de natureza social e cognitiva (VAN “están en los seres sociales, tomados como actores y
DIJK, 1997). Portanto, a ACD na perspectiva de van miembros de una sociedad”; suas práticas são apren-
Dijk visa a compreensão das diversas inter-relações didas em situações sociais e se dão em contextos e
entre discurso, cognição e sociedade, representadas interações sociais (VAN DIJK, 1997, p. 68). O centro
pelo autor como vértices de um triângulo. da proposta de van Dijk está justamente nessa ín-
Van Dijk (1997) frisa, porém, que considera es- tima ligação entre sociedade e cognição possuem:
ses três vértices ou noções de maneira ampla. Por “não é a situação social que influencia o discurso
discurso, entende também a linguagem e seu uso, (ou é influenciada por ele) mas a maneira como os
a interação verbal, a comunicação. Por cognição, participantes definem essa situação” (VAN DIJK,
toma tanto a cognição social (representações da
Sumário
Isto é, as dimensões objetivas da circunstância Conforme van Dijk (2012a), sem a considera- 315
de fala influenciam o discurso dos agentes por meio ção dos modelos mentais não seria possível com-
das interpretações que eles fazem (inter)subjetiva- preender como uma mesma situação social pode
mente. Visto se tratarem de modelos mentais, os influenciar de modos distintos os sujeitos que dela
(modelos mentais de) contextos são revistos e altera- partilham, levando-os a diferentes comportamen-
dos pelos falantes a partir de suas experiências pes- tos e construções discursivas. Por isso, segundo o
soais, pois cada situação comunicativa é única e pode autor, identificar os “elementos de uma situação
exigir adequações. Ao mesmo tempo, esses modelos comunicativa que são sistematicamente relevantes
“representam as propriedades relevantes do entorno para a fala e o texto” (VAN DIJK, 2012a, p. 10-11) é
comunicativo na memória episódica (autobiografia) imprescindível para o exame dos contextos e, con-
e vão controlando passo a passo os processos da pro- sequentemente, para a compreensão de como esses
dução e compreensão do discurso [...]” (VAN DIJK, modelam os discursos.
2012a, p. 35). Portanto, reforça-se que, ainda que
sejam resultantes de processos (inter)subjetivos, os
contextos são construções de agentes sociais que in-
tegram e vivenciam grupos e comunidades.
Sumário
O discurso racista nem sempre é evidente para Como menciona o autor e como é facilmen-
as pessoas que o enunciam e, muitas vezes, nem te observável, esses princípios estão aparentes em
mesmo para as pessoas por ele atingidas. No caso nossas diversas relações comunicativas cotidianas,
do Brasil, o racismo estrutural contra os negros é nos mais diversos níveis do discurso, ou seja, tanto
tamanho que se apresenta mesmo em denomina- em nível sonoro e visual quanto no nível da ação
ções e expressões corriqueiras. Ao emprega-las, e da significação. Se apresentam em conversas in-
ainda que nem sempre tenha esse objetivo, o usu- formais, manchetes de jornal, falas televisionadas,
ário da língua reproduz a discriminação2. De modo pronunciamentos de políticos profissionais e rela-
intencional ou não, em uma manifestação aberta ou tos históricos, por exemplo. A seleção do léxico, a
sutil, é possível visualizar no resultado dos estudos ênfase em determinadas palavras, o estereótipo alu-
dido, o uso de pronomes distanciadores ou demons-
² Entre os inúmeros exemplos possíveis destaco o uso do termo “mulata” para se referir a uma mulher negra; do verbo “dene-
grir” como sinônimo de destruir a imagem de alguém; e da expressão “inveja branca” para afirmar que se trata de uma inveja
inofensiva, uma inveja boa, estabelecendo uma oposição ao que seria uma “inveja negra ou preta”.
Sumário
trativos para se referir a uma pessoa de outra etnia e imitação, mas até mesmo estas precisam ser ex-
os eufemismos são alguns dos pontos para os quais plicadas, legitimadas ou sustentadas discursiva-
mente de outro modo. (VAN DIJK, 2012b, p. 15).
o autor chama a atenção.
Van Dijk (2012b) sustenta que tal ênfase às Vê-se, então, que o discurso racista é reprodu-
características negativas do “grupo de fora” pode zido basicamente por meio da apreensão de exem-
acarretar efeitos prejudiciais nas mentes dos inter- plos obtidos e legitimados nos diversos espaços de
locutores desse tipo de discurso, ainda que esses não interação comunicacional. Em outras palavras, o
sejam agentes passivos no processo de comunica- discurso se torna a ferramenta básica para a rea-
ção. Um desses efeitos é a criação de modelos men- firmação e o exercício de ideias e práticas racistas.
tais estereotipados negativamente: “esses modelos Nesse sentido, o autor destaca o papel das elites
podem, por sua vez, ser generalizados para atitudes simbólicas. Formadas pelos grupos sociais que con-
mais negativas e ideológicas sobre os Outros” (VAN trolam a opinião pública, essas elites desempenham
DIJK, 2012b, p. 20). influência direta nas ideologias do público em geral.
Questão fundamental para a compreensão do
racismo é o fato de não se tratar de uma postura ina- Se o racismo é amplamente aprendido e repro-
duzido pelo discurso dominante, e se tal discur-
317
ta. Ninguém nasce racista. Van Dijk (2012b) sustenta
so é amplamente acessível apenas por tais elites
que o racismo é produto de um processo de apren- simbólicas, como os políticos, jornalistas, escri-
dizagem prática e ideológica promovido pelos pais, tores, professores e pesquisadores, todos de raça
escola, grupos de convívio, veículos de comunicação branca, devemos concluir que a forma contem-
de massa e observação das interações multiétnicas porânea mais eminente de racismo são as elites
simbólicas brancas (VAN DIJK, 2012b, p. 16, gri-
cotidianas. Percebe-se, novamente, que o preconcei- fos nossos).
to etnicorracial é reproduzido através da interação
social, espaço em que se encontra o discurso: Daí a indicação do autor da necessidade de uma
análise atenta das circunstâncias de ensino-apren-
Esse processo de aprendizagem é amplamen-
te discursivo, isto é, baseado na conversação e dizagem, bem como dos gêneros do discurso educa-
no contar de histórias diárias, nos livros, na li- cional – o que vai desde a estrutura curricular até
teratura, no cinema, nos artigos de jornal, nos as interações entre alunos/as e entre esses/as e pro-
programas de TV, nos estudos científicos, entre fessor/a, passando pelos livros didáticos, avaliações
outros. Muitas práticas de racismo cotidiano,
tais como as formas de discriminação, podem e planos de aula.
até certo ponto ser aprendidas pela observação e
Sumário
Mais que qualquer outro discurso, o discurso pe- O NEGRO EM NOVO HAMBURGO E O
dagógico define a ideologia oficial e dominante, PROJETO ARUANDA
estabelecendo o conhecimento e a opinião oficial,
sem dar lugar a debate ou controvérsia. É dessa
forma que muitas crianças, pela primeira vez, Expostos os processos sociocognitivos que fun-
recebem informações sobre os povos de outras damentam a produção e reprodução do racismo
partes do mundo, sobre imigração e imigrantes através do discurso, nesta seção, intento esboçar
ou sobre negros ou povos indígenas de outra
parte da cidade, do país e do continente (VAN uma análise da situação discursiva específica das
DIJK, 2012b, p. 21-22, grifos nossos). crianças participantes do Projeto Aruanda. Para
tanto, considero fundamental a retomada de alguns
Apesar de identificar melhoras na América La- aspectos históricos da cidade de Novo Hamburgo, o
tina nas últimas décadas, Van Dijk (2012b) entende que, a meu ver, pode auxiliar na compreensão dos
que o discurso pedagógico ainda hoje é marcado (modelos mentais de) contextos desses/as alunos/as.
por informações parciais e/ou restritas ao passado Em sua origem, a cidade de Novo Hamburgo se
das populações indígenas e da negra. Assim como confunde com a de São Leopoldo, município vizi-
Lippmann (2010), o autor afirma que essa parciali- nho do qual se emancipou em 1927. O ano de 1824 318
dade (tanto no sentido de tendenciosidade quando é dito como um marco simbólico para as duas cida-
de incompletude) faz com que tal discurso se apoie des, pois assinala a chegada das primeiras famílias
muitas vezes em estereótipos negativos acerca dos alemãs à região e seu alojamento em São Leopoldo,
grupos sociais “de fora”, o que, como sabemos, abre conhecida como a “cidade-mãe dos imigrantes ale-
espaço para a discriminação: “temos, assim, um mãs no Brasil” (NUNES et al., 2013, p. 273).
círculo vicioso e vemos como o discurso está cru- Entretanto, antes ainda da chegada das primei-
cialmente envolvido na reprodução do racismo, em ras famílias germânicas à região, durante o período
geral, e na formação de ideologias racistas subja- colonial, a área que hoje corresponde ao Vale dos
centes, em particular (VAN DIJK, 2012b, p. 20). Sinos era habitada por açorianos, portugueses, afri-
Atentando à complexidade do discurso pedagó- canos e seus descendentes. Sesmeiros, lavradores e
gico, Van Dijk (1997, p. 67) propõe, então, que essa trabalhadores escravizados disputavam território
prática e suas propriedades sejam consideradas a com as populações originárias, em especial o povo
partir das funções que exercem para professores/as kaingang (NUNES et. al, 2013). Em 1788, a Real
e alunos/as e para a sociedade em geral. Essa (auto) Feitoria do Linho Cânhamo – empresa de proprie-
análise seria um dos meios de se travar o círculo dade do governo colonial que, após 1822, foi reba-
reprodutivo do racismo. tizada de Imperial Feitoria do Linho Cânhamo – foi
Sumário
transferida da região de Canguçu, no sul do estado, verno provincial aos recém-chegados trouxe o des-
para o Vale dos Sinos, sendo instalada inicialmente contentamento tanto dos sesmeiros quanto dos in-
na região denominada de Faxinal do Courita, ao sul dígenas ali já estabelecidos, acarretando disputas
do Rio dos Sinos. Como a área do Faxinal não se territoriais e dificuldades para o estabelecimento
mostrou satisfatória, a empresa foi transferida para das colônias. Além disso, os subsídios anunciados
o norte daquele rio, local já habitado por diversas pelo governo do Império foram ínfimos ou mesmo
famílias (NUNES et. al, 2013). inexistentes nos primeiros anos de habitação, tra-
De acordo com Moraes (2008 apud NUNES et. zendo a miséria à população (NUNES et al. 2013;
al, 2013), a Feitoria era destinada à produção de li- TRAMONTINI, 2000).
nho e à transformação desse em cordas para em- Tramontini (2000) sustenta que o governo tam-
barcações. Sua operação era baseada nas mãos de bém foi responsável pelas dificuldades de inserção
obra de indígenas e negros escravizados. Como nos social e política dos novos habitantes. Foram di-
relatam Nunes et al.(2013), o uso dessa mão de obra versas as medidas impostas para impedir que os
e a inadequação das terras ao plantio de cânhamo colonos alemães usufruíssem ou ameaçassem os
foram usadas como justificativas oficiais para o fra- privilégios das elites locais. Entre elas, estiveram o 319
casso do empreendimento. Entretanto, essas terras impedimento da naturalização (anteriormente acor-
inférteis foram revaloradas quando viraram maté- dada), a falta de liberdade religiosa, a tentativa (mal
ria-prima para o trabalho livre dos colonos alemães, sucedida) de proibição da compra de escravos e a
passando a serem vistas como “o grande celeiro da exclusão social.
produção agrícola da Província” (PORTO, 1934, p. A partir do autor, é possível depreender que
25 apud NUNES et al., 2013, p. 275). Os campos pou- esses obstáculos iniciais impostos aos imigrantes
co eficientes para o cânhamo se mostraram adequa- germânicos foram alguns dos fatores determinantes
dos para a criação de gado com vistas a exportação para a construção da identidade coletiva da região
de couro, fazendo com que “até os dias de hoje, a do Vale dos Sinos:
indústria alemã transformaria na maior fonte de ri-
[...] nesta disputa por espaço político e social, o
queza particular e pública, que opulenta a região co- governo e a elite nacional local afirmam insis-
lonial do Estado” (PORTO, 1934, p. 27 apud NUNES tentemente o caráter estrangeiro dos colonos e
et al., 2013, p. 275). de suas organizações. A diferença é constante-
A alocação dos alemães na região não se deu mente reificada, o que, por sua vez, se transfor-
ma num dos fundamentos para o caráter étnico
sem conflito. A entrega de terras por parte do go- da organização social dos colonos, da constru-
Sumário
ção e reafirmação do mito da origem comum, Vê-se, assim, o apagamento da presença negra
com tradições, língua e religiosidade partilhadas na memória coletiva dominante na região. Ao anali-
e contrapostas às dos ‘brasileiros’ (TRAMONTI-
NI, 2000, p. 4). sar matérias jornalísticas e documentos policiais da
cidade de Novo Hamburgo na primeira metade do
O papel da população negra na conformação século XX, Magalhães (2010, p. 61) observa já essa
da região, todavia, não é aludido como parte dessa tendência ao apagamento, por vezes substituída
identidade. Sabe-se que antes da imigração a mão pela estigmatização dos negros locais:
de obra utilizada na região era composta por ne-
As representações dos negros, nos registros
gros escravizados e que a prática foi amplamente pesquisados, mostram, explicitamente ou nas
adotada pelos colonos desde seus primeiros anos entrelinhas da redação, o peso dos estereótipos,
nas novas terras. Comprados ou alugados pelos ale- tais como: vadio, desordeiro, sem valor, encren-
mães, os escravizados tinham sua força de trabalho queiro, entre outros. A cor (preto, crioulo, misto,
mulato) demarcava não só a questão racial, mas
utilizada no comércio, no artesanato e na lavoura estabelecia o lugar do negro na sociedade.
(PORTO, 1934 apud NUNES et al., 2013; TRAMON-
TINI, 2000). A valorização da colonização alemã no mito 320
Sabe-se, ainda, que na primeira metade do sécu- de fundação da região do Vale dos Sinos é extre-
lo XX, a região recebeu mais trabalhadores negros mamente viva ainda hoje na organização espacial
vindos de outras regiões do estado, particularmente e nas práticas discursivas cotidianas e oficiais de
do sul. O conhecimento da lida com o couro3 pos- Novo Hamburgo – como é o caso da descrição que
sibilitou o emprego nos curtumes, base da cadeia a Prefeitura local faz da cidade, apresentada ante-
produtiva da indústria do calçado. Intenso fluxo mi- riormente. Entendo que esse não seria um tópico
gratório ocorreu também na década de 1970, outro de discussão se, atrelado a ele, não se mantivesse
momento de prosperidade da indústria calçadista, o a invisibilização das outras etnias que participaram
que, mais uma vez, aumentou a presença negra na da conformação da cidade no que hoje é.
região e especificamente na cidade de Novo Ham- O Projeto Aruanda vem, nesse sentido, para se
burgo (TRAMONTINI, 2000; MAGALHÃES, 2010; unir a outras iniciativas de valorização da cultura e
NUNES et al., 2013). da participação dos negros na estruturação e cresci-
³ De acordo com diversos autores, inclusive Tramontini (2000) e Cardoso (2003), o trabalho escravo nas charqueadas existentes
na região de Pelotas e Rio Grande foi por muito tempo a base econômica do estado do Rio Grande do Sul.
Sumário
mento da região do Vale dos Sinos. Com a parceria os membros da equipe do projeto quanto de produ-
da Secretaria Municipal da Educação (SMED) e da ção acadêmica. No presente momento, finalizamos
Coordenadoria de Políticas Públicas de Promoção o primeiro ciclo de trabalho em uma escola loca-
da Igualdade Racial (COMPPIR) da Prefeitura Mu- lizada no bairro Primavera com grande sucesso. O
nicipal de Novo Hamburgo/RS, o foco do Aruanda envolvimento das 25 crianças participantes foi no-
é as crianças dos bairros atualmente habitados pela tório, proveitoso e emocionante.
população negra do município ou que, ao longo Entre os casos que mais atraiu a atenção e pro-
da história da região, presenciaram a sua presen- vocou o debate entre a equipe está o do Pedro, me-
ça. Com a indicação da SMED, foram escolhidos os nino que foi chamado de negro por colegas em uma
bairros Guarani/Vila Nova, São Jorge, Rondônia, das primeiras oficinas. Na ocasião, as crianças assis-
Primavera e Canudos. tiam a uma apresentação sobre a diversidade étnica,
Ao estabelecer parceria com a rede municipal política e ambiental do continente africano. Além de
de ensino, o projeto auxilia também na efetivação ficarem espantadas ao descobrir que na África exis-
da Lei Federal nº 10.639/2003, visto que parte impor- tem belas praias, arranha-céus e pessoas vestidas
tante das oficinas são as rodas de conversa, as au- com roupas iguais às suas, as crianças identificaram 321
las de dança e a produção de artefatos artísticos que Pedro com um dos meninos quenianos das imagens.
narram e explicam a história do continente africano “Olha o Pedro!! Olha o Pedro!!”. Enraivecido e cho-
e dos negros brasileiros. Isso, junto das discussões roso, o menino “denunciou” ao professor que os
sobre a situação do bairro em questão, a população colegas o haviam chamado de negro. A questão é:
negra na atualidade e o racismo, tem o intuito de Pedro é negro. Logo no primeiro contato, identifi-
ampliar a capacidade crítico-reflexiva das crianças camos que o menino era um dos mais agressivos da
acerca da sua realidade. O incentivo ao aumento sala e que, por isso, tinha dificuldades em conseguir
da autoestima e ao empoderamento participantes parceria nas atividades em grupo. O “Eles me cha-
é complementado por aulas de oratória e produção maram de negro!”, a raiva e o choro foram a sua pri-
audiovisual. Afinal, como discorrido ao longo deste meira interlocução verbal e física com o professor
texto, a autoexpressão, o discurso e ao protagonismo Ismael, um dos acadêmicos de extensão da equipe.
político-cultural são práticas que se confundem. “Mas, Pedro, tu é negro! O que que tem? Eu sou ne-
Ao longo de todo o processo, observamos, re- gra, o sôr Ismael é negro e tá tudo bem!”, afirmei e
gistramos e problematizamos as vivências obtidas sorri. Ismael abraçou o menino, tentando acalmá-lo.
durante as oficinas, tanto através de debates entre
Sumário
Aproveitamos então para colocar o assunto construção do racismo. A abordagem de van Dijk se
em pauta, explicar à turma o que estava ocorren- mostrou profícua nesse sentido por acentuar de que
do, orientar sobre o que significa racismo e instigar modo a cognição se relaciona e interfere na cons-
as crianças a falar sobre o que sabiam a respeito e trução do discurso enquanto prática social.
como se sentiam quanto a isso. Muitas se pronun- A atuação do Projeto Aruanda: a voz da juventu-
ciaram. A maioria enunciou um discurso centrado de negra ainda é recente. Assim, estabelecer afirma-
na ideia de que “somos todos iguais” e que não é ções definitivas seria leviano, visto que chegaremos
correto ofender ninguém. O que Ismael e eu procu- a conclusões somente com mais maturação do pro-
ramos evidenciar, então, foi que não somos todos jeto. Entretanto, vejo que a aproximação da teoria
iguais, que isso é bom (desde que haja respeito mú- de van Dijk aos discursos das crianças participantes
tuo) e que o termo “negro” não deve ser encarado durante as oficinas na primeira escola parceira per-
ou usado como um xingamento; é somente uma das mite algumas inferências.
inúmeras características de uma pessoa, da qual ela A primeira é de que a identidade coletiva da ci-
deve inclusive se orgulhar. dade de Novo Hamburgo contribui fortemente para
Ao final do ciclo de oficinas, a equipe concluiu a construção de (modelos mentais de) contextos des- 322
que Pedro se mostrava menos arredio e bem mais favoráveis à população negra. Isso ocorre por meio
seguro em suas interações com os colegas. Começa- da legitimação da colonização alemã como única
va a ocupar o seu espaço como membro do grupo. referência válida na história da edificação e desen-
Pedro inclusive “apareceu na TV”; foi entrevistado volvimento do município e pela manutenção, ainda
por um dos grupos de alunos de Comunicação da hoje, da invisibilização da população negra. Infe-
Universidade Feevale que realizaram trabalhos de lizmente, como se sabe, esse segundo aspecto não
disciplinas envolvendo o Projeto Aruanda. é privilégio de Novo Hamburgo; faz parte da reali-
dade bem mais ampla que caracteriza nosso país. O
ponto é que, ao não se reconhecerem na cidade e/ou
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (OU interagirem basicamente com discursos que repro-
INTRODUÇÃO – PARTE 2) duzem representações sociais negativas acerca dos
negros, dificilmente as crianças construirão (mode-
Como anunciado no início deste texto, o objeti- los mentais de) contextos que prezem e respeitem a
vo da exposição feita foi encontrar subsídios à com- população negra. No caso das crianças negras, isso é
preensão do papel do discurso no processo de (des) ainda mais prejudicial, visto que, nesse movimento,
Sumário
1
Bacharel em Moda e Mestranda em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. E-mail para contato: deb-
oraflesch@gmail.com.
Sumário
today. In addition, we analyzed the material from e os editoriais de moda de capa das edições de in-
the Vogue magazine Kids, in accordance with the verno de 2011 a 2015 da revista Vogue Brasil Kids. O
techniques of content analysis as proposed by Bar- trabalho analisa a revista como estratégia pedagógi-
din (2004), establishing the following categories of ca da cultura do consumo, abordando a moderniza-
analysis: Luxury, Like an adult, Fashion, Just Kids e ção do luxo e a popularização da moda como meios
Gender. We live in a time quota, where many times de ancoragem cultural para a formação identitária
the choices of consumption become the basis for da criança contemporânea.
most important issues, such as the formation of the Inicialmente esclarecemos que as análises desta
identity of the subject. Therefore, it is believed that pesquisa seguiram os métodos de análise de conteú-
it is necessary to add a further page to studies in- do propostos por Bardin (2004). Diante disso, foi re-
volving children and consumption. From this pers- alizada uma primeira leitura flutuante do corpus na
pective, the research was developed, taking as the- íntegra. Em seguida, escolheu-se as cartas editoriais
oretical texts of Bauman (1999, 2008, 2013), about e os editoriais de moda de capa como recorte para a
culture, modernity and net consumption, Lipovet- análise do presente trabalho.
sky (1989 and 2005), about fashion and luxury, Sarlo Tendo o recorte da pesquisa delimitado, é pre- 326
(1997), about culture and consumption, Barbosa and ciso apontar que, após análise das recorrências no
Campbell (2006), about identity and consumption material selecionado (BARDIN, 2004), chegou-se
and Buckingham (2012), Postman (1999), Girraldelo às seguintes categorias: Luxury2 – textos e imagens
and Orofino (2012) and Steinberg (2004) on children da revista que difundem a cultura do consumo de
in the post-modern era. luxo desde a infância; Like an adult – momentos nos
Keywords: Consumption. Luxury fashion. Child. quais a criança é inserida em um universo adulto
pela publicação; Fashion – recortes da revista que
indicam de que forma as crianças devem ser ves-
INTRODUÇÃO tidas e produzidas, para que fiquem alinhadas com
as tendências do mundo da moda; Just kids – mo-
O presente artigo faz uma reflexão sobre a rela- mentos nos quais a Vogue mostra o espírito infantil
ção entre a construção identitária infantil, moda de se sobressaindo à rigidez e à frivolidade da moda;
luxo e consumo, tendo como foco as cartas editorias Gender – textos e imagens do periódico nos quais se
² Escolheu-se nomear as categorias com termos em inglês pois a revista estudada utiliza diversas chamadas neste idioma em
seu conteúdo.
Sumário
nota um diferente tratamento para a representação o lugar dos antigos símbolos políticos e religiosos,
de meninas e meninos. e os objetos passam a representar deuses, ícones
Durante a pesquisa, percebeu-se que as recor- (SARLO, 1997). Por isso, a moda e o consumo de
rências encontradas, transformadas posteriormente moda acabam por servir de meio para a resolução
em categorias analíticas, relacionavam as variáveis de problemas pertinentes, como o dilema da identi-
aqui estudadas: moda, consumo, luxo e criança. O dade (CAMPBELL, 2006).
incentivo da revista ao consumo de luxo (Luxury), e A moda faz parte da cultura contemporânea.
ao consumo de moda, (Fashion) acabam por aproxi- Lipovetsky (2005, p. 39) a entende como uma inven-
mar a criança do universo adulto (Like an adult). Já ção do ocidente, “uma manifestação social do des-
as representações de estereótipos de gênero (Gen- perdício ostentatório [...], o signo da antitradição,
der) encontradas na publicação, são construídas por da inconstância, da frivolidade”. Por isso, ela pode
meio da moda (Fashion). Por fim, para além de con- ser definida como um reflexo do luxo, em função de
sumo, luxo (Luxury) e moda (Fashion), nas páginas seu caráter efêmero e transitório, que pode levar ao
de Vogue percebe-se a presença da criança contem- desperdício. A moda é passageira, por isso, grande
porânea (Just kids), cujo o processo de construção parte das novas criações são fadadas a um declínio 327
de identidade almejamos estudar. veloz. Sua volatilidade combina perfeitamente com
Vivemos um tempo contingente, onde valores o momento atual, que é líquido. Por isso, percebe-se
estão sendo repensados sem que encontremos res- uma modernização da moda de luxo. Nos dias de
postas definitivas para as questões que emergem. hoje, grifes conceituadas são largamente conheci-
Bauman (2013) chama este momento histórico de das e criadores são considerados celebridades. Esta-
modernidade líquida. O mundo é líquido, e o líquido mos experimentando um tempo em que o supérfluo
não se mantém em constante forma com facilidade figura como um direito de todos, e em que cresce
(IBIDEM). Em meio a isso, inserida nesta socieda- a cultura do luxo. Devido a isso, a moda invade a
de provisória, está a cultura contemporânea – que televisão e a internet, sendo observada pela massa.
é voltada ao consumo. O autor polonês (IBIDEM, Neste contexto, no qual moda, consumo e luxo
p. 18), argumenta que “hoje a cultura consiste em adquirem relevância, encontra-se a criança contem-
ofertas, e não em proibições”. Ela não impõe nor- porânea. Para Steinberg (2004), a infância está sen-
mas, mas apresenta opções, a fim de despertar de- do reinventada, pois, como artefato social, ela sofre
sejo, pois serve ao mercado de consumo. Com base as mencionadas mudanças que estão ocorrendo no
no exposto, pode-se afirmar que as marcas ocupam mundo. Diante disso, pode-se afirmar que a criança
Sumário
dos dias de hoje está também inserida na cultura do Esta e outras formas de se viver uma vida de
consumo. Bauman (2008, p. 73) argumenta que “tão luxo são ensinadas nas páginas da revista analisa-
logo aprendem a ler , ou talvez bem antes , a ‘de- da. Vale lembrar que a categoria luxury refere-se a
pendência das compras’ se estabelece nas crianças”. inserção de crianças em cenários opulentos e so-
Este cenário coloca meninos e meninas diante do fisticados. A partir de uma complexa combinação
mercado, na posição de importante consumidores. de textos e imagens, o universo do dispêndio, des-
Com base nisso, torna-se necessário discutir sobre a crito por Lipovetsky (2005) como característico da
maneira como a mídia comunica moda de luxo para moda e do luxo, é reiterado a cada nova edição de
pais e filhos hoje. Por isso, iremos relacionar as va- Vogue. Em função da opção de se trabalhar com os
riáveis criança, consumo, moda e luxo a partir da exemplares de inverno da revista, que em geral são
análise já esclarecida, que será conduzida por meio publicadas em junho, observou-se que as férias são
das categorias apresentadas: Luxury, Like an adult, um assunto recorrente na publicação. Porém, é re-
Fashion, Just Kids e Gender. levante salientar que, mais importante do que a di-
versão e o descanso de seu filho, e até mesmo mais
Luxury importante do que tudo que ele pode aprender atra- 328
vés de intercâmbios culturais, é aquilo que pode ser
Viagens ao exterior, passaportes carimbados, adquirido em tais passeios. A cultura do consumo,
destinos badalados e, é claro, bagagens recheadas de explicada aqui através da teoria de Bauman (2013),
roupas grifadas3. Esta é uma das principais temáti- é o que fala mais alto. A edição de 2015 é clara ao
cas abordadas nas cartas editoriais analisadas nesta advertir a mãe Vogue: prestes a ter o segundo filho,
pesquisa. Com chamadas em idiomas estrangeiros, Margherita Missoni acaba de lançar sua linha infan-
como all my bag are packed4 (2012), as edições de in- til com roupas leves e despretensiosas em estilo 60’s.
verno de Vogue Kids (publicadas em junho) descre- Para trazer na mala já! (2015). Neste caso, em um
vem um verdadeiro mapa das férias ideais. Todavia, casamento entre moda e luxo, como explica Lipo-
o que não podemos esquecer é que os passageiros vetsky (2005), estilistas famosos atingem o patamar
da primeira classe deste voo, que é repleto de regras de artistas prestigiados.
e códigos sociais, são apenas crianças.
³ Termo comumente utilizado em revistas e blogs especializados em moda a fim de designar roupas de grife.
⁴ Optou-se por colocar o texto da revista em itálico para que ele seja facilmente diferenciado do texto da autora.
Sumário
Dessa forma, nota-se que o consumo é um pon- preocupação com o futuro. Mais do que a saúde do
to chave no roteiro elaborado pelo periódico. To- filho recém-chegado, preocupa o conforto da mãe,
davia, trata-se do consumo de artigos que possuam que não deseja deixar de lado seu cotidiano, que é
valores que vão além do objeto em si; valores ca- repleto de rituais superficiais e dispensáveis.
pazes de representar poder e opulência perante o Além das dicas e conselhos para as mães, des-
grupo social, valores de luxo (LIPOVETSKY, 2005). tacados nos enunciados aqui apresentados, é pre-
Ainda sobre viagens, um tipo de lazer considerado ciso que se faça uma discussão também a respeito
luxo para a maioria dos brasileiros, a revista sempre das imagens veiculadas pela revista, principalmen-
destaca a importância das bagagens: desembarcamos te nos editoriais de moda. Nesta seção da publica-
com malas e bagagens (muitas delas) em São Pedro do ção percebemos a inserção da própria criança no
Atacama (2012). Esta ideia pode ser relacionada às universo do luxo que é “comercializado” pelo pe-
discussões de Lipovetsky (2005), que sugere que o riódico. Um exemplo disso são as fotografias que
supérfluo é visto como um direito de todos na atu- compõem a Figura 01.
alidade. Outro pronto que não podemos deixar de
abordar são os destinos das viagens, sempre inter- 329
nacionais. Sabe-se que viagens internacionais, em
geral, requerem um investimento financeiro maior.
Por isso, esta prática pode ser relacionada à ideia de
exibição pública da fortuna, sugerida por Lipovet-
sky (2005). No universo do luxo, a riqueza precisa
ser apresentada.
Ainda sobre o texto da revista, podemos trazer
para reflexão as preocupações que afligem a mãe Figura 01 – Materiais luxuosos
Vogue. A revista sugere que, entre os principais di- Fonte: Elaborada pela autora a partir de Vogue Brasil Kids (2016)
de longa durabilidade no vestuário infantil, uma vez Seguindo a mesma linha de pensamento, este
que as crianças crescem rapidamente e precisam compilado de fotografias (Figura 02) também retra-
trocar a numeração das peças de seu guarda-roupa ta as crianças em meio ao luxo. Neste caso, as peças
no mínimo uma vez a cada estação. Ademais, em de vestuário escolhidas para a composição das fo-
algumas das imagens, as crianças encontram-se tos apresentam riqueza em detalhes e acabamentos.
posando em lugares turísticos, como é o caso da Trabalhos como tricôs e bordados manuais levam
segunda fotografia (esquerda para direita) da ima- tempo, por isso, possuem valor elevado no merca-
gem, realizada na região do deserto do Atacama, e do de moda. Como a ideia do luxo está ligada ao
da terceira fotografia (esquerda para direta), feita desperdício (LIPOVETSKY, 2005), em um momen-
na Amazônia. Isso reforça as ideias da revista, que to histórico em que prevalece a produção industri-
apresenta a possibilidade de viajar como um luxo. al, o tempo que é “desperdiçado” na confecção de
Por fim, destaca-se os preços elevados das roupas vestimentas únicas e artesanais é transformado em
utilizadas pelos modelos mirins, que são divulgados riqueza. Através da ostentação destas roupas, as cri-
nas páginas dos editoriais. Tudo isso colabora para anças exibem o status da família.
o leitor criar uma imagem de luxo, riqueza e sofisti- Diante desse panorama, observamos como o 330
cação para o seu filho, visto que ambos, pais e filhos, periódico apresenta a criança diretamente ligada e
encontram-se inseridos em uma sociedade de con- um universo de luxo. A partir do visual dos filhos, a
sumidores e “uma sociedade de consumo só pode mãe Vogue exibe um imaginário que remete à rique-
ser uma sociedade do excesso e da extravagância” za e ao poder da família.
(BAUMAN, 2008, p. 112).
Like an adult
se comportam e são tratadas como homens e mulhe- Cabe aqui destacar alguns pontos explorados
res em miniatura. Esta prática observada no perió- pela revista nas fotografias selecionadas (Figura
dico pode ser considerada até mesmo um retrocesso 03). As roupas escolhidas para as crianças vestirem
da moda, visto que, em períodos históricos passados, nos editoriais são, na maioria das vezes, confeccio-
como a Idade Média, as crianças se vestiam da mes- nadas em tecidos planos, portanto são menos con-
ma forma que os adultos (PEREIRA, 2010). Com o fortáveis do que as de malha. Em outras palavras,
tempo, as roupas infantis foram transformadas em tais tecidos não representariam uma moda que fa-
peças mais confortáveis, condizentes com esta eta- vorece o desenvolvimento infantil (PEREIRA, 2010).
pa do desenvolvimento humano (IBIDEM). Porém, a Além disso, as peças são construídas utilizando de
infância está sendo renovada, e passa mais uma vez modelagens clássicas. Estas modelagens remetem
por mudanças (STEINBERG, 2004). a luxo e sofisticação. Exemplos disso são o trench
Desse modo, afirmamos que hoje a moda pode coat, a camisa social e a calça cargo, que aparecem
servir como ponte de aproximação do mundo infan- nas fotografias. Ademais, estas peças são vestidas
til e do mundo adulto. Isso fica evidente por meio pelas crianças de maneira alinhada, camisas com
desta chamada da revista, que declara que a moda colarinho e punhos abotoados, casacos com cintura 331
infantil tem dialogado cada vez mais com a moda de ajustada; e não de forma descontraída. Tudo isso faz
gente grande. Postman (1999) comenta que, na atu- com que, em função das roupas que vestem, meni-
alidade, as roupas para crianças tornaram-se prati- nos e meninas pareçam com miniaturas de homens
camente idênticas às dos adultos. Em complemento e mulheres adultos (POSTMAN, 1999).
a isso, podemos trazer inúmeras imagens retiradas Soma-se a isso as cores escolhidas para as pe-
dos editoriais analisados (figura 03). ças de indumentária divulgadas nas imagens: nada
de matizes vibrantes e alegres, mas, principalmen-
te, tonalidades terciárias, como beges, marrons,
cinzas e azuis. Tais tonalidades são consideradas
neutras e, por isso, elegantes. As padronagens que
aparecem nas fotografias retiradas da publicação
também são clássicas, destacando-se estampas cor-
ridas como o xadrez.
Figura 03 – Vestidos como adultos Por fim, não se pode deixar de comentar os
Fonte: Elaborada pela autora a partir de Vogue Brasil Kids (2016) acessórios. Pouco usuais no cotidiano infantil, as fo-
Sumário
tos trazem chapéus e cintos, peças retiradas de um que a Vogue traga as suas leitoras uma nova repre-
guarda-roupas maduro. Outro exemplo relevante é a sentação de infância, um retrato das muitas faces da
bolsa. Criada com a finalidade de auxiliar a mulher infância de nossos tempos (STEINBERG, 2004).
a carregar pertences valiosos, como documentos e
dinheiro, é um acessório tipicamente adulto. No caso Fashion
da bolsa exposta pela revista na foto da Figura 03,
isso é ainda mais importante, pois o modelo escolhi- Tendências, estilistas, lançamentos e desfiles:
do é uma réplica exata da famosa bolsa Miss Sicily, para a Vogue Kids, estes são assuntos de família, uma
confeccionada em tamanho reduzido. Tal bolsa é um vez que ocupam o pensamento dos pais. Entretanto,
ícone da grife italiana de vestuário adulto Dolce & estes pais não têm mais motivos para se preocupar,
Gabbana), um clássico acessório de luxo, capaz de já que a revista aponta a solução, trazendo o melhor
representar a frivolidade da moda (LIPOVETSKY, da moda, como sempre. Com este discurso, o perió-
2005). Isso reforça a ideia de que, assim como a bolsa, dico estudado apresenta a infância vinculada a tudo
as crianças estão também sendo apresentadas, com o que faz parte do calendário fashion. Isso aconte-
ajuda da moda, como miniaturas (POSTMAN, 1999). ce para que as crianças, desde pequenas, dêem aula 332
Além disso, é necessário ainda refletir a res- de estilo. Esta aproximação descrita entre infância e
peito das expressões e da postura das crianças nas moda pode ser preocupante, uma vez que Buckin-
fotografias que compõem os editoriais de moda da gham (2012) argumenta que a compra de roupas e
Vogue Kids. Conforme Steinberg (2004), há, na atu- acessórios gera ansiedades nas crianças contempo-
alidade, uma ruptura da representação romantizada râneas, pois estas escolhas de consumo podem ser
da infância, já que a infância está sendo reinventa- decisivas para a aceitação perante o grupo.
da. Isso pode ser observado nas páginas da Vogue, Abordando ainda a aproximação entre infância
que traz uma criança madura. Seguindo a mesma e moda, objetivada pelo periódico, em todas as edi-
linha de pensamento, Postman (1999) argumenta ções a Vogue prepara elaborados editoriais de moda.
que, nos dias de hoje, a mídia representa as crianças Dentro de tais editoriais, mais importa a beleza das
da mesma forma que o faz com os adultos. Na maior roupas mostradas e a adequação destas com os mo-
parte dos casos, a revista estudada mostra crianças dismos do momento do que o conforto e o bem-
sérias, direcionando o olhar para a lente e posan- -estar dos meninos e meninas que fazem parte das
do como modelos adultos profissionais, como pode fotografias. Pode-se observar um recorte dos edito-
ser observado na Figura 03. Tudo isso colabora para riais da revista Vogue Kids aqui citados na Figura 04.
Sumário
Na Figura 04, são apresentadas crianças produ- O ensaio de moda retratado na Figura 05 foi re-
zidas em conformidade com as tendências vigentes. tirado da edição de inverno de 2014 da revista Vo-
Nota-se que a revista recorre a truques de styling, gue Brasil Kids. Este ensaio foi realizado na floresta
como sobreposição de peças e jogo de mistura de Amazônica, região do país que apresenta clima tro-
estampas (imagem central). Além disso, na foto da pical, com tempo quente e úmido. Todavia, as foto-
direita e na da esquerda, o menino e a menina estão grafias em questão deveriam trazer as novidades da 333
vestindo peças de uma grife conceituada, no caso a moda internacional de inverno. Portanto, indepen-
Dolce&Gabbana Children. Este cenário mostra que, dente do calor, as crianças que posaram para tais
mesmo dentro do universo infantil, a Vogue trata fotos foram vestidas com casacos, luvas e pele, a fim
a moda como um assunto sério e relevante. Tal se- de estarem alinhadas com os modismos da tempora-
riedade pode ser relacionada às ideias de Lipovet- da. Desta forma, o estilo prevaleceu ao conforto, os
sky (2005), que vê a moda, na atualidade, como uma ditames da moda e a primazia pela aparência (LIPO-
importante forma de manifestação social. Podemos VETSKY, 2005) falaram mais alto.
observar isso também na Figura 05. Com esta síntese, percebemos que a moda fi-
gura como algo muito importante para o periódico
estudado. Isso está de acordo com as ideias de que a
moda seria uma forma de ancoragem cultural da atu-
alidade. Tal é a importância do assunto que, muitas
vezes, o limite do conforto e do bem-estar da criança
é deixado de lado pela revista, em prol de que os pais
possam vestir seus filhos com estilo e inovação.
Sumário
Gender
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: STEINBER, S. R.; KINCHELOE, J. L. Cultura infantil: a
Bertrand Brasil, 2002. construção coorporativa da infância. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2004.
Sumário
¹ Mestra em Teologia/Religião e Educação. Doutoranda em Teologia/Religião e Educação na Faculdades EST. Orientador Prof.
Dr. Valério Schaper. eccbarcellos@hotmail.com
² Mestra em Teologia/Religião e Educação. Doutoranda em Teologia/Religião e Educação na Faculdades EST. Bolsista CAPES.
Orientadora Profª Dr. Laude Brandenburg. beatrizalicedesouza@yahoo.com
Sumário
formation, based on an interdisciplinary perspecti- aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com
ve, from Porto Alegre’s memory. It is intended also flexibilidade a novas condições de ocupação ou aper-
to identify the impacts of urbanization, language feiçoamento posteriores.” Com isso faz-se necessário
changes and gaúchos regional variations features; considerar que: os educandos e as educandas são
characterize the predominant labor market in the protagonistas de sua aprendizagem; o educador e a
region; promote interdisciplinary connections in educadora tornam-se facilitadores do processo de
the content approach. This work is a participatory construção do conhecimento, com ênfase ao percur-
research of teachers of Portuguese Language and so realizado pelos discentes e não ao produto final.
Physics, along with students from the High School Vive-se em uma sociedade global, na qual é im-
education and Adult education in a state school of perativa a formação de sujeitos críticos e reflexivos,
Porto Alegre. The workshop brings together diffe- através da construção de aprendizagens significati-
rent theorists, such as Freire, Pedro Demo, Morin, vas e mais permanentes.
Coll, Perrenoud. It was possible to notice the deve- A oficina realizada contempla diferentes ativi-
lopment of perceptions of what effective citizenship dades, oportunizadas em três etapas, que propiciem
constitutes in, and identify the interrelationships a promoção da autonomia dos discentes e o desen- 338
between the curricular components in context. volvimento da capacidade de aprender, através de
Keywords: History. Memories. Identity. Interdisci- dinâmicas, trabalhos em grupo, exposição de víde-
plinarity. os, entre outros, com vistas à interdisciplinaridade
e à contextualização cognitiva. Desta forma, quanto
mais conexões o grupo estabelecer entre as informa-
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ções, mais eficaz será sua aprendizagem. A oficina
visou trabalhar às memórias e à memória do jovem
A preparação das situações de aprendizagem e da jovem da EJA, bem como discentes do ensino
que contemple as áreas do conhecimento, respeita- Médio regular em uma escola situada na periferia
das suas particularidades, tem a finalidade de pro- de Porto Alegre, no intuito de promover suas esco-
porcionar aos educandos e educandas, conforme lhas profissionais futuras e instrumentalizando-os
competências previstas na Lei de Diretrizes e Bases e instrumentalizando-as para uma cidadania res-
da Educação Nacional de N° 9394/96 para o Ensino ponsável, permitindo interagir com os colegas e as
Médio, em seu artigo 35, “a preparação básica para colegas e desenvolver habilidades importantes para
o trabalho e a cidadania do educando para continuar o mundo do trabalho, tais como: falar em público,
Sumário
curiosidade de aprender, o que se percebe são aulas Destacam-se nesse documento oportunidades
fragmentadas, nos quais os conteúdos são arrolados educacionais apropriadas, o que torna pertinente uma
em um plano anual, distribuídos em trimestres, sem abordagem pedagógica diferenciada, na qual estimu-
uma proposta integrada ou mesmo sem preocupação le e motive jovens e adultos a aprender, visto que
de ligação entre os saberes. Os planos de trabalho estão ausentes do espaço escolar há muito tempo.
tornam-se conteudistas, sem um exercício reflexivo Além disso, a discussão existente sobre o de-
do educador ou da educadora das práticas realizadas. senvolvimento de habilidades e competências para
Com base nas palavras de Paulo Freire (1996, p. o século XXI tem sido motivo de muitas inquieta-
33): “Como professor devo saber que sem a curiosi- ções e parece ser o grande desafio a ser enfrentado
dade que me move, que me inquieta, que me insere pela educação em todos os níveis de ensino. Ao se
na busca, não aprendo nem ensino.” Desta forma, abordar sobre competências remete-se a Perrenoud
torna-se cada vez mais fundamental a busca de for- (2000, p. 15), que segundo ele, competência é a “ca-
mação docente, de novas metodologias e de repen- pacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos
sar sobre as próprias práticas realizadas. Observa-se para enfrentar um tipo de situações”, ou seja, asso-
que educadores e educadoras pouco efetivam esse cia-se a capacidade de estabelecer conexões entre 340
trabalho reflexivo, pois, possibilita perceber o que os diferentes conhecimentos e saber agir diante das
pode ser melhorado em termos pedagógicos e o que circunstâncias do dia a dia.
foi aprendido por parte do corpo discente. Desta forma, a educação ainda carece de modi-
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de ficações, pois, na maioria das vezes, as práticas pe-
n°9394/96, em seu artigo 37, prevê: dagógicas realizadas ainda encontram-se comparti-
mentalizadas e a prática de avaliação atualmente,
A educação de jovens e adultos será destinada
àqueles que não tiveram acesso ou continuidade
na grande maioria, limita-se a levar em considera-
de estudos no ensino fundamental e médio na ção o que pode ser mensurado, na qual se ignora o
idade própria. conhecimento prévio do educando e da educanda.
§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratui- Portanto, o ensino-aprendizagem realizado através
tamente aos jovens e aos adultos, que não pude-
ram efetuar os estudos na idade regular, oportu-
da fragmentação dos saberes não colabora para o
nidades educacionais apropriadas, consideradas desenvolvimento de competências.
as características do alunado, seus interesses, Cabe aqui uma ressalva, a educação deve con-
condições de vida e de trabalho, mediante cur- tribuir para o projeto de vida destes jovens e destas
sos e exames.
jovens, como também para esses adultos. Pensar em
Sumário
atividades que possibilitem agregar um maior conhecimento requer, dos educadores e das educadoras, uma
formação contínua e um planejamento coletivo.
Aos gestores e as gestoras, como coautores e coautoras da aprendizagem, devem propiciar meios de
articulação para motivar o corpo docente e para que novas metodologias sejam introduzidas no ambiente
escolar. A educação de qualidade também perpassa a gestão, na qual pode buscar ações afirmativas, no in-
tuito de fomentar práticas inovadoras e facilitadoras da aprendizagem.
A escola possui um papel social importante, pois, colabora para construção da cidadania e essa “é parti-
cipação, sim, mas participação no planejamento. E isso significa participar dizendo sua palavra, expressan-
do sua opinião, manifestando seu pensamento”. (GUARESCHI, 2010, p.50)
A busca para o desenvolvimento da construção da cidadania tem um papel primordial, para que edu-
candos e educandas sintam-se inseridos e inseridas na sociedade, bem como promover sua autoestima e
possibilitar a promoção de habilidades e de competências necessárias no mundo atualmente.
Permitindo-se utilizar uma das falas de Cézar Segundo Pedro Demo (2012, p.67) a capacidade
Coll (1994, p.30): “Tão importante quanto o que se en- de “saber pensar e intervir de maneira alternativa,
sina e se aprende é como se ensina e como se aprende,” crítica e autocrítica” destaca-se como a mais impor-
que as educadoras propuseram uma oficina, capaz tante nos dias atuais, portanto, a proposta desen-
de interagir diferentes áreas do conhecimento, na volvida tem como um dos seus objetivos oportuni-
perspectiva de contribuir para o desenvolvimen- zar a reflexão enquanto cidadãos e cidadãs, sujeitos
to de habilidades e de competências impostas pelo pertencentes a uma sociedade, na qual atuam. Tra-
mundo do trabalho. balhar de uma maneira diferenciada evidenciando
Percebe-se que, para estes jovens e estas jovens sua participação e sentirem-se parte do processo é
da EJA, na qual o cotidiano é atribulado, pois pre- permitir que os educandos e as educandas perce-
cisam trabalhar oito horas e estudar a noite, as au- bam sua identidade e as fortaleçam. Ainda fazendo
las carecem ser interessantes e estimuladoras. Além referência a atividades interdisciplinares considera-
disso, as salas de aula possuem um contingente he- -se importante propiciar, conforme (Morin, 2013, p.
terogêneo com faixas etárias muito distantes, em 31) “uma cultura que lhes permitirá articular, religar,
sua maioria entre 18 e 30 anos, o que, muitas vezes, contextualizar, situar-se num contexto e, se possível, 342
impede uma proposta direcionada a determinados globalizar, reunir os conhecimentos que adquiriram”.
grupos. Já para os e as discentes do Ensino Médio A Educação de Jovens e Adultos, em primeiro
regular a aceitabilidade é maior, visto que é a grande momento, implica atividades diferenciadas, no in-
maioria jovem adolescente. Desta forma, a escolha tuito de atender a uma população escolar com ca-
de uma abordagem interdisciplinar e integradora racterísticas específicas: o educando trabalhador e
visa a atingir o resultado esperado de aprendizagem a educanda trabalhadora, visto que esses e essas,
em maior número possível de pessoas. É bem ver- por diferentes razões afastaram-se da escola. Logo,
dade, que essa escolha gerou animosidades por uma a necessidade de uma abordagem pedagógica dis-
grande parcela de colegas, pois ainda encontra-se tinta sempre pautou o discurso de pedagogos e de
nas escolas um eco ensurdecedor de uma educação pedagogas, porém, esta prática na realidade nem
bancária, herança na qual uma parcela de profissio- sempre ocorre e ainda se mantêm os velhos ranços
nais não conseguem se desvencilhar, seja por inse- de conteúdos fragmentados dispostos em períodos,
gurança ou por medo do novo. nos quais os discentes não aprendem.
Sumário
PORTO ALGRE 240 ANOS: A OFICINA socialização e integração, o que foi possível obser-
var através do clima receptivo das pessoas presen-
Ao analisar este contexto, as educadoras pensa- tes. Logo após, as educadoras realizaram uma dinâ-
ram em organizar uma oficina que pudessem aten- mica inicial, perguntando que diferença havia entre
der as turmas da EJA, T7, T8 e T9, turno noite, e memória e memórias, cada participante deveria es-
turmas dos 1°anos do Ensino Médio regular, turno crever uma memória do passado e uma projeção do
tarde, com vistas a comemorar o aniversário dos futuro a partir de seu ingresso na escola. Essa ativi-
240 anos de Porto Alegre. Inicialmente, as educado- dade constou de um desenho dos pés, pé esquerdo
ras com a intenção de resgatar as memórias de Por- memórias do passado, pé direito uma projeção do
to Alegre e a memória do educando e da educanda, futuro. Após essa atividade, as memórias foram so-
suas expectativas futuras pessoais e profissionais, cializadas no grande grupo.
traçaram metas a serem atingidas. Convidaram todo A segunda etapa, os alunos foram deslocados
o corpo docente e o corpo discente, no caso turno para o hall da escola e foram convidados a assis-
da noite, a participar da oficina durante uma noite e tirem a uma sessão de vídeo: Memórias de Por-
respectivamente os 1º anos do turno vespertino. A to Alegre Ontem e Hoje, tendo em vista a semana 343
primeira reação dos discentes foi de estranheza, po- comemorativa do aniversário da cidade. Durante a
rém aceitaram o desafio com muita curiosidade. Já projeção foram percebidas imagens antigas de ruas,
os colegas e as colegas cederam seus períodos, mas de transportes, de locais turísticos em comparação
poucos participaram efetivamente. aos dias atuais. Ao longo da sessão do vídeo, as edu-
A metodologia empregada foi realizada em três cadoras indagavam sobre as transformações ocor-
etapas: A primeira, as turmas foram remanejadas ridas ao longo do tempo e se era possível que na
para o pavilhão da escola, espaço mais amplo e mul- língua também pudesse ocorrer o mesmo processo.
tifuncional, para dar conta do contingente das tur- Desta forma, foi introduzido o conceito de língua
mas. Em seguida, foi apresentado o propósito de es- e por ser dinâmica está sempre em transformação.
tarem ali, bem como o tema da oficina: Porto Alegre, A analogia permitiu a compreensão do conceito e
240 anos. A princípio, muitos questionaram o por- tornou-se viável realizar algumas inferências a res-
quê daquela atividade, entretanto, após considera- peito de variações linguísticas.
ções feitas pelas educadoras houve rápida aceitação. Para ilustrar essas variações as educadoras
Nesta primeira etapa, as turmas permaneceram apresentaram um vídeo sobre a fala regional gaú-
reunidas com o propósito de oportunizar uma maior cha. O vídeo consistia em um jovem paulista mos-
Sumário
trando imagens e perguntando para as pessoas na rua o que eram. O rapaz achava hilário os termos usados
tais como: cacetinho, lomba, sinaleira, fazer rancho, pechada, refri, quebra mola etc. Simultaneamente, ele
dizia a equivalência daquelas palavras na região de São Paulo. Esse vídeo chamou a atenção das turmas, que
não conheciam algumas das variações paulistas.
Ainda durante a sessão do vídeo, a educadora, da disciplina de Física, abordou sobre energias: uso do
carvão e o surgimento da luz elétrica. Outras considerações foram discutidas, como por exemplo, a socieda-
de, os costumes antes e depois do advento da luz elétrica.
344
A terceira etapa, as educadoras dividiram as turmas em grupos, em que foram sorteados nomes de
bairros que compunham a trajetória centro-bairro, onde a escola está inserida. Após sorteio, cada grupo
recebeu o texto da história de um bairro. Os grupos, após a leitura do texto, deveriam realizar uma breve
exposição contendo: suas principais informações do aspecto histórico, o mercado de trabalho predominante
e curiosidades contidas no bairro selecionado.
Sumário
346
Figura 4 - Mapa de Porto Alegre
Fonte: <http://mapas.guiamais.com.br/porto-alegre-rs/agronomia>
Durante essa etapa as educadoras monitoravam os trabalhos, indo de sala em sala observar o andamento
e execução das atividades. Essa etapa necessitou de um tempo maior para que os grupos pudessem se orga-
nizar e realizar o que foi solicitado. Também foram distribuídos materiais, tais como: papel pardo, cartolinas,
canetas etc, para a confecção de um painel contendo as informações coletadas durante a leitura do texto. Ao
final, o grupo se deslocou para o hall da escola e cada grupo apresentou o seu painel de forma criativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a proposta realizada procurou-se otimizar, através de uma abordagem interdisciplinar e
integradora, conteúdos pertinentes que visem a sua apropriação de forma lúdica e motivadora. A metodolo-
gia empregada permitiu uma maior aprendizagem, visto que o grupo pôde realizar as atividades de maneira
satisfatória e sem prejudicar os demais componentes curriculares. Na verdade, a abordagem propiciou a
Sumário
¹ Elisa Townsend, Mestranda-Letras UNISC bolsa CAPES, Especialização-Direito UFRGS, Bacharel-Direito e Adminis-
tração-PUC, Professora-Tradutora inglês jurídico e empresarial elisacst0@gmail.com.
² Christiane Heemann, Doutora em Linguística Aplicada-UCPel, Especialista em Educação: Docência em EAD – PUCRS. Dou-
torado Sanduiche -CAPES Univ. Bath-UK - cheemann@univali.br.
³ Todas as traduções realizadas no presente trabalho são de responsabilidade das autoras, exceto onde expressamente manifesto
em contrário.
Sumário
operating agreement, for limited companies), real presença no âmbito da Administração de empresas
estate documents, acts, commercial papers, stocks, e do Direito. Não raro, antes de ingressar no curso
lawsuits, motions, appeals, summons, process server, pretendido, o candidato deverá comprovar conhe-
discovery process, eminent domain and other inter- cimento do jargão profissional no idioma inglês
national business related terms, area in which, long como língua franca. O inglês jurídico inclui várias
ago, English was adopted as the lingua franca. The áreas de conhecimento; o inglês empresarial, desde
US Legal English follows the culture of the common documentos societários necessários à constituição
law (based on cases, precedents). Brazil adopts the da empresa (como o contrato ou estatuto social),
civil law system (statutory). The difference between passando pela terminologia sobre procedimentos
systems makes the study of the particularities and de modificação das empresas (fusão, cisão, incorpo-
difficulties inherent to the legal/business discourse ração, etc.), além de documentos imobiliários, leis,
necessary to properly translate from one legal sys- títulos de crédito, ações (da bolsa de valores), ações
tem to another. The toughest problem in teaching judiciais, petições, recursos, citação, oficial de justi-
legal and business English lies in translating these ça, procedimento quanto a provas judiciais, (poder
legal terms within the cultural differences resulting governamental para) desapropriação, todos estes 350
from the diversity of the two legal systems that re- são pontos de intersecção entre a terminologia ati-
late to legal concepts from the culture of the source nente a ambos, inglês jurídico e empresarial – ou
language (English) that has no exact equivalent in seja, tais termos deverão ser conhecidos por ambos,
the target language culture (Portuguese). profissionais da área jurídica ou empresarial, a fim
Keywords: Legal and Business English. Teaching EAP de desempenharem suas funções com excelência no
and ESP. Culture and Identity. Clarity and Diversity. mercado competitivo contemporâneo. A terminolo-
gia destas áreas nos países onde vige o sistema legal
da Common Law, por exemplo, os Estados Unidos
INTRODUÇÃO da América e a Inglaterra, frequentemente carece
de correspondência exata na tradução ao português,
Um tópico de interesse no cenário dos diálogos dificultando, assim, o ensino e a compreensão do
interdisciplinares é o ensino do inglês para fins es- inglês técnico jurídico e empresarial. Neste artigo,
pecíficos: o inglês jurídico e empresarial. A busca então busca-se solucionar o problema através da
de aperfeiçoamento da formação acadêmica com comparação de conceitos entre os dois sistemas le-
cursos de mestrado no exterior apresenta marcada gais, da civil law e da common law, antes de traduzir
Sumário
os termos ao português. E, após, propõe-se elaborar ta terminologia de um sistema jurídico para outro.
glossários ou corpora específicos para os fins de en- Partindo-se destes pressupostos, vejamos exemplos
sino e/ou tradução em pauta. da terminologia jurídica e empresarial que podem
oferecer dificuldade na busca de uma tradução fide-
INGLÊS TÉCNICO EM CULTURAS digna ao texto original
DIVERSAS - DIFICULDADES NA
CORRESPONDÊNCIA TERMINOLÓGICA Exemplos de terminologia do inglês jurídico e empre-
sarial de complexa tradução e adequação ao portu-
Em um tratado especializado sobre tradução ju- guês e ao sistema legal brasileiro
rídica sob a perspectiva comparada no âmbito do
Direito Civil, o qual analisa documentos, contratos De acordo com Vázquez y del Árbol (2014,
e formulários, Vázquez y del Árbol (2014) permite- p.23), a palavra ley, em espanhol, raramente é tra-
-nos aferir, entre outros, os seguintes pressupostos: duzida como law, em inglês, mas sim como act. Para
que a internacionalização da terminologia jurídico leitores do Brasil, de Portugal e outros países lusó-
empresarial desenvolveu-se a tal ponto que escri- fonos que adotem o sistema da civil law, o exemplo 351
tórios de advocacia e empresas internacionais têm se aplica ao termo lei, do português: sempre que se
necessitado traduzir seus documentos do inglês a refira à legislação ou regra, raramente se traduzirá
outros idiomas, e vice-versa, a fim de garantir uma como law em inglês, mas sim como act. Corroboran-
terminologia escorreita, que guarde correspondên- do com a assertiva de que o significado de palavras
cia nos dois idiomas e fidedignidade ao texto origi- tais como lei variam de acordo com a conotação na
nal; que o inglês já é a língua franca dos negócios qual se inserem, Vázquez y del Árbol cita De Tor-
internacionais há um bom tempo; que há muitos res (1998, p. 447): “Basta pesquisar palavras como
documentos e termos jurídicos que fazem parte des- ‘law’, ‘right’, ‘contract’ em um dicionário monolín-
ta linguagem de uso diário no âmbito empresarial e gue para concluir que, tudo, depende”4. Fazendo o
na sociedade; que há dificuldades quanto à tradu- raciocínio contrário, a palavra act do inglês traduzi-
ção da terminologia dos gêneros textuais jurídicos e da literalmente por um dicionário bilíngue comum
empresariais em inglês e quanto à transposição des- (isto é, não técnico) obterá, em português, o vocábu-
⁴ No original, em inglês, está: “One must only look up words as ‘law’, ‘right’, contract’ in a monolingual dictionary, to find that
it all depends”.
Sumário
lo ato, enquanto sua tradução correta na conotação exercer) e, excepcionalmente, lei (corpo legislativo).
jurídica seria lei. Por exemplo, no corpo legislativo Complementando esta noção quanto à variedade de
chamado RESPA5 (Real Estate Settlement Procedures nuances de que um termo pode se revestir, Vázquez
Act), que é uma lei aplicável às transações imobiliá- y del Árbol (2014, p. 22) bem relembra que o “orde-
rias nos EUA, o termo Act significa lei e a expressão namento jurídico não é inalterável, muda conforma
Lei de Procedimentos de Documentação das Transa- a sociedade se adapta aos novos tempos, de forma
ções Imobiliárias parece-nos uma tradução razoá- que as palavras podem ter seu sentido modificado
vel para seu correspondente em inglês6, passível de ou ampliado”8. Cumpre, aqui, ressaltar pontos es-
incluir todas as implicações e elementos contidos clarecedores ao que foi dito anteriormente. Mante-
nas previsões da RESPA. Por outro lado, a palavra nha-se em mente que, quando se diz que o direito da
law, do inglês, façamos uma breve explanação para common law é baseado em precedentes e o direito
o propósito ad hoc7 e, para um maior aprofunda- da civil law é baseado em legislação, esta generali-
mento sobre o assunto, remeta-se a Calabresi (2009) zação é mero expediente que permite oferecer uma
e Cross (1991): conforme a intenção do redator do breve explicação para situar o leitor não jurista no
texto, o termo law poderá corresponder a uma série cenário sobre o qual se debate, mas que tende a ser 352
de vocábulos na língua portuguesa, exemplificati- – e disto temos consciência – reducionista e limita-
vamente: Direito (como campo de estudo), direitos da para o estudioso meticuloso do tema – particu-
(como faculdades que uma pessoa pode legalmente larmente o jurista, o qual poderá suprir esta lacuna
verificando as referências anteriores, especialmente corresponde à tradução “palavra por palavra” para
Calabresi (2009). Opta-se por este recurso em face o espanhol em razão das diferenças de origem cul-
ao propósito hora perseguido, que não tem por es- tural e de sistemas legais. Os conceitos jurídicos da
copo principal a cientificidade jurídica, mas sim a cultura e do sistema jurídico de origem (inglês) não
instrumentalidade do estudo dos conceitos do direi- correspondem com os mesmos elementos no idioma
to comparado no auxílio à tradução terminológica. e sistema meta (espanhol). Analogamente, os três
Até porque o foco da obra de Calabresi menciona- vocábulos guardam a mesma dificuldade com o por-
da debate justamente a tendência contemporânea a tuguês. O termo solicitor no inglês jurídico britânico
uma metamorfose nos sistemas que tem resultado, designa uma espécie de advogado na hierarquia ju-
de um lado, numa jurisprudentificação do sistema da rídica deste sistema. O dicionário Houaiss de inglês-
civil law - no qual o precedente, tradicionalmente -português (1982, p. 734) prevê como tradução não
não obrigatório e servindo como fonte secundária técnica do vocábulo, os termos solicitador, angaria-
do direito, tem angariado espaço em esferas como, dor, dentre outras opções que oferece (inclusive al-
por exemplo, o direito tributário e seus ‘incidentes gumas jurídicas). Quanto à palavra trust, no sentido
de uniformização de jurisprudência’ tal como se ve- comum, significa confiança. No sentido empresarial 353
rifica hoje no Brasil e que se assemelha à aplicação pode significar fundo de investimento ou aplicação
do precedente da common law – e de outro lado, a financeira (trust fund). Já o vocábulo trust aplicado à
legislativização (statutorification, que é o termo usa- expressão imobiliária trust deed, de acordo com a lei
do em inglês por Calabresi) do sistema da common RESPA anteriormente abordada9, seria uma escritu-
law, na qual estatutos (leis) têm angariado espaço, ra que transfere a propriedade de um imóvel (com a
situação que ora exemplificamos com a RESPA, lei ressalva de que a terminologia pode sofrer leves mo-
que rege as transações imobiliárias dos EUA referi- dificações conforme a região a que se refere, relem-
da anteriormente. brando que o sistema legal norteamericano permite
Retornando à Vázquez y del Árbol (2014, p.329- certa autonomia a cada um dos estados). Relativo ao
335) e à razão de ser da presente seção, que é prover termo notary public, muito pode ser dito e tentare-
exemplos, a autora menciona os termos do inglês so- mos ser breves no intuito de manter-nos dentro dos
licitor, trust e notary public cuja acepção jurídica não limites ora propostos. No Brasil, a expressão notário
⁹ Para um exemplo de trust deed (também chamada de deed of trust), veja-se o documento que optamos por não anexar ao pre-
sente trabalho em face a sua extensão, de dezoito páginas. Encontrável em http://www.nclc.org/images/pdf/foreclosure_mort-
gage/counseling_resources/sample_documents/app_d_deed_of_trust.pdf.
Sumário
público seria a tradução literal. O notário público é público, o qual imprime nos documentos que pre-
um oficial dotado de fé pública para emitir, repro- tende notarizar junto com sua assinatura e data10.
duzir e/ou notarizar documentos com validade em Antes de finalizar a presente seção, mencione-
todo o território nacional brasileiro, razão pela qual -se brevemente outros exemplos de termos jurídico-
diz-se que seus atos notariais são dotados de fé pú- -empresariais cuja tradução do inglês ao português
blica, isto é, autenticidade presumida. Diversamente, apresenta potencial interesse aos destinatários da
nos Estados Unidos qualquer funcionário de banco, presente investigação e que nem sempre são facil-
de empresas imobiliárias, dentre outros, podem so- mente encontráveis pelo tradutor. Ao instituto do
licitar ao governo do estado a emissão de uma per- crossclaim ou cross-motion, conforme comparação
missão para ser notary public que, geralmente, e ci- de conceito jurídico em Garner (2009, p. 1106)11 com
tamos como exemplo o estado do Tennessee, durará o português (NCPC12, artigos 343 e seguintes)13 e
quatro anos, podendo sua renovação ser solicitada com Kinsella (1994, p. 1286)14, propõe-se a tradu-
indefinidamente enquanto o solicitante desempe- ção como o instituto brasileiro da reconvenção. A
nhar função que requeira possuir o selo de notário expressão norteamericana motion for resettlement,
354
10
Selo este que, por curiosidade, uma das autoras deteve por oito anos (comissão de quatro anos adicionada a uma recondução
de mais quatro anos).
11
Conforme Garner (2009, p. 1106): Cross-motion. A competing request for relief or orders similar to that requested by another
party against the cross-moving party, such as a motion for summary judgment or for sanctions.
12
NCPC – Novo Código de Processo Civil Brasileiro de 16 de março de 2015. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20 ago. 2016.
13
NCPC, Artigo 343: “Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa
com a ação principal ou com o fundamento da defesa.
§ 1o Proposta a reconvenção, o autor será intimado, na pessoa de seu advogado, para apresentar resposta no prazo de 15 (quinze)
dias.
§ 2o A desistência da ação ou a ocorrência de causa extintiva que impeça o exame de seu mérito não obsta ao prosseguimento
do processo quanto à reconvenção.
§ 3o A reconvenção pode ser proposta contra o autor e terceiro.
§ 4o A reconvenção pode ser proposta pelo réu em litisconsórcio com terceiro.
§ 5o Se o autor for substituto processual, o reconvinte deverá afirmar ser titular de direito em face do substituído, e a recon-
venção deverá ser proposta em face do autor, também na qualidade de substituto processual.
§ 6o O réu pode propor reconvenção independentemente de oferecer contestação.”.
14
Kinsella (1994, p. 1286): Couterclaim or crossclaim: “Incidental demands are reconvention, crossclaims, intervention, and the
demand against third parties. A reconventional demand is equivalent to a counterclaim''.
Sumário
após comparação conceitual entre Garner (2009, prevista no capítulo III do NCPC19, pode-se concluir
p. 1107)15 e o teor do texto em português do NCPC que seu correspondente no sistema legal brasileiro e
(Novo Código de Processo Civil Brasileiro de 2015, no idioma português seria o Chamamento ao Proces-
que entrou em vigor em 2016) em seu artigo 102216, so (tomando-se ambos os termos, em inglês e portu-
corresponderia ao remédio brasileiro de embargos guês, na esfera genérica); e, adentrando uma espé-
de declaração. Comparando a definição do FRCP dos cie deste gênero, o termo process service (geralmente
EUA (Federal Rule of Civil Procedures)17 para o vo- realizado por um process server), que é encontrado
cábulo summons, previsto na Rule 4 18, com a noção no mesmo ordenamento jurídico citado supra (isto
15
Consoante Garner (2009, p. 1107): Motion for resettlement. A request to clarify or correct the form of an order or judgment
that does not correctly state the court's decision. The motion cannot be used to request a substantial change to or amplification
of the court's decision.
16
NCPC Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:
I - esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;
II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;
III - corrigir erro material. 355
Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que:
I - deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência
aplicável ao caso sob julgamento;
II - incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1o.
17
Disponível em https://www.law.cornell.edu/rules/frcp/rule_4. Último acesso em 10 de maio de 2016.
18
Que prevê: “According to the ‘Rule 4 – Summons’ of the FRCP (Federal Rules of Civil Procedure): (…) (2) Amendments. The
court may permit a summons to be amended. (b) Issuance. On or after filing the complaint, the plaintiff may present a summons
to the clerk for signature and seal. If the summons is properly completed, the clerk must sign, seal, and issue it to the plaintiff
for service on the defendant. A summons—or a copy of a summons that is addressed to multiple defendants—must be issued
for each defendant to be served. (c) Service”.
19
NCPC Capítulo III: DO CHAMAMENTO AO PROCESSO
Art. 130. É admissível o chamamento ao processo, requerido pelo réu:
I - do afiançado, na ação em que o fiador for réu;
II - dos demais fiadores, na ação proposta contra um ou alguns deles;
III - dos demais devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum.
Art. 131. A citação daqueles que devam figurar em litisconsórcio passivo será requerida pelo réu na contestação e deve ser
promovida no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de ficar sem efeito o chamamento.
Parágrafo único. Se o chamado residir em outra comarca, seção ou subseção judiciárias, ou em lugar incerto, o prazo será de 2
(dois) meses.
Sumário
é, a FRCP, Rule 4), a comparação conceitual de sua para a tradução no sentido de que seja dotada não
definição em inglês com o que está prelecionado em apenas de precisão, mas também que soe natural e
português no artigo 131 do NCPC já citado nos leva mantenha uma função similar ao texto fonte. No di-
a decidir por sua tradução como citação. Estes são zer da autora: “a tradução deve dar a impressão de
apenas alguns poucos dentre muitos outros exem- ser um documento original, escrito por um especia-
plos dignos de estudo. lista no assunto. Em outras palavras, os tradutores
devem produzir textos na língua-alvo que sirvam à
COMPARAÇÕES CONCEITUAIS NA mesma finalidade que aquele texto da língua de ori-
TRADUÇÃO E ENSINO DE TERMINOLOGIA gem” (p. 255)20. Ademais disto, frisando a diplomacia
DO INGLÊS JURÍDICO E EMPRESARIAL e tato com que o tema deve ser trabalhado, Ramos
(2013), ao estudar a tradução jurídica na OMC (Or-
Nos últimos anos a produção acadêmica refe- ganização Mundial do Comércio) afirma que dentre
rente à terminologia jurídica e empresarial no to- suas funções estaria a de garantir uma comunicação
cante a sua tradução entre idiomas e sistemas le- confiável dentro da organização, cujo objetivo é re-
gais tem rendido frutos além do esperado na esfera duzir os obstáculos ao comércio internacional. De 356
internacional, sobressaindo-se os autores europeus seu aporte pode-se aferir a profundidade das conse-
que, diante da Comunidade Europeia e suas dire- quências que a tradução jurídica e de negócios pode
tivas, as quais incluem, em certos casos, o direito gerar. Para o autor, os documentos de negociação
dos sujeitos envolvidos em discussões jurídicas em que chegam à OMC demandam atenção especial
obter tradução/interpretação de todo procedimento dos tradutores porque “refletem equilíbrios delica-
a seu idioma, viram-se compelidos a debater o tema dos, como resultado de várias camadas de formação
mais a fundo do que nosso mercado, em geral, da de compromisso entre diferentes grupos com pon-
América Latina. Dentre outros, Millet (2013), com- tos de vista inicialmente conflitantes” (p. 268-269)21
preendendo a complexidade da tarefa, recomenda e que passaram por um processo lento e gradual até
uma abordagem funcional na escolha de palavras alcançar a negociação final.
20
No original: “‘the translation must give the impression of being an original document, written by a specialist of the subject
matter. In other words, translators must produce a text in the target language that serves the same purpose as that in the source
language’” (MILLET, 2013, p. 255).
21
(…) “Reflect delicate balances as a result of several layers of compromise-building between different groupings with initial
conflicting views’’ (p. 268-269).
Sumário
Entretanto, como resultado das contribuições Comparação conceitual – visão de alguns dos autores
acadêmicas recentes sobre o tema sobressai-se uma que defendem o uso do direito comparado na solução
questão que, por sua incidência repetida, e pelo teor dos desafios terminológicos do ensino e da tradução
de sua retórica argumentativa, convenceu-nos a tal do inglês jurídico e empresarial
ponto de conceder a esta ideia espaço central em
nossa proposição. Qual seja, a ideia de que já não Em artigo intitulado Direito Comparado na Tra-
basta o funcionalismo por si só com a noção de que dução: A chave para a mediação exitosa entre siste-
os termos traduzidos devem servir à mesma finali- mas jurídicos22, Engberg (2013) faz uma sugestão
dade ou função que o texto da língua de origem, e brilhante – que, ao que parece, tem se espalhado
de que o documento se pareça com o original, con- no mercado de ideias de muitos autores desta esfe-
soante sugerido supra. Já não basta, tampouco, que ra. O autor preconiza a realização da comparação
os termos traduzidos sejam escolhidos com tato no conceitual de um conceito jurídico encontrado em
intuito de reduzir os obstáculos ao comércio inter- um dos sistemas jurídicos com aquela encontrada
nacional conforme citado. É necessário, para além no outro sistema jurídico (que está no outro idio-
disto, trasladar a atividade tradutória a uma esfe- ma), usando esta técnica de tradução legal para uma 357
ra mais completa, que supra com mais eficiência as melhor compreensão e localização do termo a ser
demandas da terminologia jurídica e empresarial. traduzido, obtendo, assim, uma comunicação mais
Dentre os autores europeus com publicações recen- próxima daquela pretendida como resultado. A isto
tes, um bom número tem defendido o uso de técni- ele chama de comparações conceituais na tradução:
cas de tradução envolvendo estudos comparativos
(...) Em todos os casos em que não haja uma
dos conceitos existentes nos documentos e dos ins- equivalência plena, os tradutores necessitam
titutos conceituais jurídicos encontrados nas duas tomar uma decisão com respeito a quais dife-
culturas e idiomas durante a busca de uma tradução renças desempenham papel de relevo na situa-
terminológica fidedigna. Senão vejamos. ção em que o TT (texto meta) irá operar. “(...)”
Uma das diferenças entre o direito comparado
e a terminologia jurídica/tradução jurídica re-
side em seu objeto de estudo: tradicionalmente
o direito comparado se preocupa em comparar
as regras, enquanto a tradução jurídica se inte-
22
No original, em inglês: “Comparative Law for Translation: The Key to Successful Mediation between Legal Systems” (in Albi,
2013, p. 9-26).
Sumário
ressa em comparar conceitos “(...)”. Uma aborda- Não é tarefa a ser subestimada a tradução de termos
gem recentemente desenvolvida, batizada como técnicos jurídicos ou empresariais. Um termo mal
comparações conceituais, avançou um passo no
sentido de começar a comparar os conceitos pro- selecionado pode causar resultados indesejáveis e,
priamente ditos e, consequentemente, os signifi- potencialmente, efeitos reflexos encadeados. Imagi-
cados operantes nos textos. A ideia (...) é substi- ne-se o caso de um documento que contivesse a pa-
tuir a abordagem funcional do direito comparado lavra appeal e o tradutor ou professor de inglês téc-
com uma abordagem mais conceitual. Enquanto
o funcionalismo se concentra em institutos jurí- nico a traduzisse como apelação. Como estas duas
dicos e regras como soluções para os problemas palavras são falsos cognatos, o leigo terá a impres-
da sociedade empregando este aspecto como são de que está corretamente traduzida. Todavia, no
tertium comparationis, a abordagem das compa- Brasil, em português, o vocábulo apelação refere-se
rações conceituais se concentra nas estruturas
conceituais subjacentes aos institutos e regras a a um remédio jurídico aplicável somente a certo e
serem comparados”. (ENGBERG, 2013, p. 16) 23. específico caso e desde que estejam presentes certos
pressupostos – em outras palavras, é uma espécie
Cremos, a ideia do autor de usar conceitos do de remédio legal. Enquanto que o vocábulo appeal,
direito comparado para tradução jurídica seja a so- do inglês, no sistema dos Estados Unidos , refere-se 358
lução ideal, além de indispensável para qualquer a um gênero de remédios dentro do qual caberia
tradução legal ou empresarial que necessite man- classificar várias espécies. Trocar um pelo outro po-
ter fidedignidade ao texto fonte. Tal proposta, como deria gerar consequências indesejáveis se conside-
uma solução para traduções trans-sistêmicas, é de rarmos que a apelação é cabível apenas em certos
há muito praticada por aqueles que realizam tradu- casos e presentes dados pressupostos, possuindo
ção jurídica, mas que, no entanto, raramente se en- um determinado prazo para ser interposta. Volte-
contra posta em palavras e arguidas desta maneira. mos a atenção para outro exemplo: ao deparar-se
Daí resulta a importância de proposições como esta. com o vocábulo crossclaim ou cross-motion, o tra-
23
Em inglês, no texto original: “(…) In all cases where no full equivalence exists, translators have to make a decision as to what
differences play a role in the situation in which the TT (target text) has to function.” (…) “One of the differences between com-
parative law and legal terminology/legal translation lies in their object of study: comparative law is traditionally interested
in comparing rules, whereas legal translation is interested in comparing concepts” (…). “A recently developed approach, the
so-called conceptual comparisons, has taken a step towards comparing the actual concepts and thus the meanings at work in
the texts. The idea (…) is to replace the functional approach to comparative law with a more conceptually oriented approach.
Where functionalism concentrates upon legal institutions and rules as solutions to problems in society and uses this aspect as
tertium comparationis, the conceptual comparisons approach focuses upon conceptual structures behind the institutions and
rules to be compared”. (ENGBERG, 2013, p.16).
Sumário
dutor, jurista ou linguista brasileiro que não possua isto em inglês. O segundo, estuda o uso do código
conhecimento resultante de estudo ou experiência civil da Louisiana (no qual vige o sistema da civil
prévia não terá ideia de como traduzir estes vocá- law) em inglês como auxílio para a tradução de ter-
bulos, exceto se conhecer o conceito deste instituto mos jurídicos entre o espanhol e o inglês.
em sua cultura de origem, nos Estados Unidos. Bus- Parte-se, então, destes estudos comparados pre-
car tal conhecimento conceitual é exatamente o que viamente realizados e propõe-se aplicar as conclu-
propôs Engberg com suas comparações conceituais. sões aproveitáveis de tais pesquisas comparativas
Resta, assim, mais esclarecida, com casos práticos para novo propósito: utilizar o aporte de Kinsella
de terminologia, a razão pela qual não se pode su- (1994), que contrapõe os dois sistemas legais – da
bestimar as dificuldades de traduzir e/ou ensinar common law e da civil law – dentro do mesmo idio-
termos jurídicos ou empresariais. ma (o inglês) e aproveitar o estudo de Lunn (2012),
que avança um passo a mais preconizando a tradu-
Escada evolutiva do estudo comparado da termino- ção de termos jurídicos entre o espanhol e o inglês
logia da civil law e da common law em inglês e es- com o auxílio do código civil da Louisiana. A partir
panhol aplicada ao português e ao ensino do inglês de tais comparações, para fins didáticos, sugere-se 359
jurídico e empresarial encontrar os termos correspondentes em português
– e dentro do sistema da civil law – para expressões
O método de estudo comparativo de termos en- do inglês originalmente encontradas no sistema
contrados na cultura jurídico-empresarial do estado jurídico da common law. Propõe-se como hipótese
da Louisiana (o qual, ao lado do território de Porto empregar estes estudos comparados entre civil law
Rico, são os únicos redutos dos EUA onde vigora o e common law, entre inglês e espanhol na tentativa
sistema da Civil Law) oferece um recurso que pode de facilitar a localização do termo mais adequada-
se revelar hábil a auxiliar na tentativa de mitigar a mente correspondente no português e na esperança
dificuldade de transposição de termos de um siste- de que – embora não contando com que – a proxi-
ma jurídico para outro no ensino do idioma instru- midade linguística entre os dois idiomas, espanhol
mental e, para tanto, buscamos subsídios teóricos e português, possa auxiliar nesta busca. Para tanto,
em Kinsella (1994) e Lunn (2012). O primeiro, com- imagine-se uma escada evolutiva, onde o primeiro
para a terminologia da common law predominante degrau, escalado por Kinsella, em 1994, constitui-se
nos Estados Unidos com àquela do sistema da civil em comparar os sistemas legais da common law e da
law utilizada no estado da Louisiana (EUA), tudo civil law em inglês, obtendo como avanço a compa-
Sumário
24
No original, em inglês: “since corpora allow students to verify lexical, phraseological and textual units beyond their intuition
or previous knowledge, overcome the limitations of lexicographic tools and thus make more informed translation decisions”
(…), which in turn has a direct bearing on students’ self-confidence and autonomous learning (…)” (p. 104).
Sumário
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Sumário
¹ Mestre e doutorando em Educação vinculado ao programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. Linha de pesquisa: Es-
tudos Culturais em Educação. Professor de História e especialista em História Contemporânea. Email: eloenes@terra.com.br
Sumário
cais de convívio social se estabelecem como lugares A ênfase no conceito de “práticas culturais” as-
de aprendizagem que configuram outros tempos e sume importância nesta perspectiva investigativa,
outros espaços2 investigativos na metrópole. Mes- pois são através dos sujeitos, praticantes urbanos
mo em meio às luzes que teimam em visibilizá-los, constituídos no interior de uma cultura, que tanto
na escuridão da noite da metrópole surgem lugares os objetos, as ações quanto os comportamentos ad-
invisíveis durante o dia, sujeitos-personagens que quirem significados. Para tanto, tomo como referên-
despertam nesse período e práticas que somente cia Hall (1997), ao argumentar que a partir da vira-
são realizadas por meio das condições que a vivên- da cultural “[...] nas ciências humanas e sociais, em
cia noturna urbana possibilita. especial nos estudos culturais, a cultura não pode
Como organismo humano, a cidade sempre ser entendida somente como um [...] conjunto de
apresentou uma existência alternada pela sucessão coisas, romances e pinturas ou programas de TV ou
dia-noite, sendo que, por muito tempo, o período quadrinhos, mas quanto a um processo, um conjun-
noturno foi considerado como um horário de re- to de práticas”. Para o mesmo autor (1997), assim
pouso social e volta para dentro da esfera privada como os significados moldam o que fazemos, nossas
(GWIAZDZINSKI, 2014). Para esse autor (ib, p. 59), ações podem estar constantemente sofrendo múlti- 367
é à noite que o “labirinto” cultural urbano se recom- plas ressignificações.
põe. É à noite que outra cidade entra em cena, com Desse modo, levando em conta que as práticas
suas luzes, sua decoração, seus novos atores, suas culturais realizadas em meio aos espaços e tempos
práticas e seus modos de vidas característicos. Des- urbanos são produtoras de saberes, aprendizados e
se modo, podemos considerar a noite das metrópo- lições, evidenciam-se relações e processos que po-
les urbanas como um ambiente cultural contempo- dem ser considerados pedagógicos, já que atuam na
râneo repleto de práticas culturais que lhe conferem modelagem e na condução dos sujeitos nos espa-
múltiplos significados. ços e tempos da cultura urbana contemporânea. No
artigo intitulado Pedagogia: A arte de erigir frontei-
² Para Harvey (1992), os efeitos das transformações do espaço nos modos de percepção do tempo se configuram como uma das
mudanças primordiais para entender a contemporaneidade. Se o tempo cíclico, calculado a partir de horas e segundos baseados
em regimes de trabalhos, emergiu na modernidade industrial, a transição para a acumulação flexível foi realizada por meio
da rápida implantação de formas organizacionais e de tecnologias produtivas que suplantaram o fordismo-keynesianismo e
aceleraram a produção (HARVEY, 1992). A volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de
trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas estabelecidas são consequências principais para entender como essa mudança
afetou os indivíduos contemporâneos (ibid.id.).
Sumário
ras, Albuquerque Junior (2010, p.1) direciona suas a educação pode ser enquadrada numa variedade
reflexões para aqueles “processos de educação dos de áreas sociais em que “o poder é organizado e
corpos e das subjetividades humanas que se pas- difundido, como bibliotecas, TV, cinemas, jornais,
sam fora do recinto das escolas”. Ao ampliar o le- revistas, brinquedos, propagandas, videogames, li-
que para as possibilidades de pensar outras formas vros, esportes etc”.Tais autores (2001) empregam o
de educação e pedagogias que são engendradas na conceito de “pedagogias culturais”, argumentando
contemporaneidade, o autor afirma que nesses diversos locais é possível compreender
a multiplicidade de processos educativos que se de-
que vivemos em sociedades e culturas em que
uma multiplicidade de pedagogias opera no coti-
senrolam na contemporaneidade.
diano, visando elaborar subjetividades, produzir Elizabeth Ellsworth (2005), em sua pesquisa ex-
identidades, adestrar e dirigir corpos e gestos, posta no livro Places of Learning coloca em evidência
interditar, permitir e incitar ou ensinar hábitos, o caráter pedagógico da vida social contemporânea,
costumes e habilidades, traçar interditos, marcar
diferenças entre o admitido e o excluído, valo-
já que a autora ressalta como o ensino e a aprendi-
rar diferencialmente e hierarquicamente gostos, zagem pode ocorrer em distintos lugares onde o co-
preferências, opções, pertencimentos, etc. nhecimento é produzido. Ao analisar a forma como 368
os prédios, os museus, as galerias e exposições de
Ao oferecer uma gama de possibilidades e ên- arte em locais públicos da cidade atuam como lu-
fases para ampliar o entendimento e os usos do gares de aprendizagem, Ellsworth (2005) afirma que
conceito de pedagogia, o autor (2010) nos permite o conhecimento é entendido não como uma coisa
lançar um olhar, tanto para aquelas práticas reali- feita, mas sempre em construção, e onde o self3não
zadas em ambientes urbanos e cotidianos, quanto preexiste ao aprendizado, mas emerge a partir das
para aqueles modos de viver em diversos contextos experiências adquiridas em meio a tais contextos.
socioculturais implicados com a condução e a mo- Para Ellsworth (2005, p.2), “nós temos de olhar para
delagem dos sujeitos nos espaços e tempos contem- a experiência do aprendizado do self nos tempos e
porâneos. lugares do conhecimento em construção, que tam-
Steinberg e Kincheloe (2001, p. 14) também des- bém são os tempos e lugares de aprendizado do self
tacam as possibilidades de pesquisa em Educação em construção4 [tradução minha]”.
para além dos espaços escolares, defendendo que
Ao produzirem outras formas de conhecimento práticas culturais e abordar sujeitos na noite urba-
e aprendizado, as pedagogias que são esboçadas na na; identificar, saberes e aprendizados implicados
contemporaneidade também favorecem a constitui- nas pedagogias que operam na noite urbana.
ção de subjetividades e, em certo sentido, regulam A definição de tais objetivos, se por um lado
as verdades de nosso tempo. Camozzato e Costa buscam identificar e mostrar o funcionamento de
(2013, p.23) apontam nessa direção ao argumenta- distintas e plurais pedagogias presentes em deter-
rem que no momento presente assistimos a plura- minados espaços e tempos noturnos da vida urbana
lização das pedagogias, entendendo-as “como um contemporânea, por outro, ampliam as possibili-
traço, uma marca da contínua vontade de investir e dades investigativas de tal pesquisa para o campo
atuar sobre todos os aspectos e âmbitos da vida dos da Educação. Assim, a partir de um levantamento
sujeitos contemporâneos – o que faz de cada um de parcial acerca do objeto “noite” e suas diversas re-
nós um agente de incessante transformação e atua- presentações no campo das artes que possibilitou
ção com os saberes”. Para as mesmas autoras (2013), “passeios” em busca de obras e encontros com auto-
as transformações, atualizações e condições de fun- res que permitiram aproximações teórico-metodo-
cionamento das pedagogias na contemporaneidade lógicas e profícuos direcionamentos investigativos. 369
englobam as formas de sujeito que se quer produzir
nos tempos de hoje. PASSEIOS PELA NOITE ...
Seguindo a direção teórica apontada pelos au-
tores destacados até aqui, considero que os espaços Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua
em que se fecham as cortinas do céu e se iluminam
e tempos noturnos urbanos são passiveis de pesqui- as cidades. Os revérberos se sobressaem sobre a
sas no âmbito da educação, pois produzem e colo- púrpura do poente. Honestos ou desonestos, sensa-
cam em circulação uma diversidade de pedagogias. tos ou insanos, os homens dizem consigo: “Enfim,
Busca-se, com isso, problematizar como determina- acabou-se o dia! ”. Os plácidos e os de má índole
pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de sua
dos sujeitos, lugares e práticas culturais estão impli- preferência para beber a taça do esquecimento.
cados com a produção de pedagogias que modelam (Baudelaire,1996, p.22)
formas de ser e de viver na noite da metrópole con-
temporânea. Orientado por tal questão foram elabo- Na segunda metade do século XIX é possível
rados os seguintes objetivos de pesquisa: observar e observar, a partir dos poemas de Charles Baudelaire,
descrever determinados locais noturnos, registrar modos de vida característicos do viver em cidades
Sumário
daquele período. Apresentando a noite do nascente teger (ou não) nas modernas cidades industriais. A
urbanismo moderno, na obra Sobre a Modernidade5, produção de luz artificial incidiu diretamente sobre
os personagens desse autor –fictícios ou não – são os modos de vida do tempo noturno. As formas de
pensados, criados e explorados no interior de con- ocupação nos espaços da cidade foram considera-
textos que já apontam para aspectos de uma vida velmente transformadas, inicialmente, com a ilumi-
boêmia moderna que mesclava os desejos e os fascí- nação a gás e sua posterior substituição através da
nios proporcionados pela noite. invenção de uma nova tecnologia no ano de 1822:
Como afirma Sennet (2003), na poesia de Bau- a luz elétrica, utilizada inicialmente para iluminar
delaire, a experiência quase frenética da velocidade os espaços interiores e posteriormente dissemina-
em cidades cada vez mais urbanizadas e modernas da como iluminação pública no final do século XIX
vai expressar um cidadão urbano que vive apressa- (SENNET, 2003). A luz artificial tomou posse dos
do, quase histérico. Harvey (2008) também aponta espaços urbanos, reconfigurando a vida social ali
nessa direção ao elucidar que desde o final do sécu- presente, permitindo a continuidade das atividades
lo XIX, enquanto os processos políticos modernos diurnas e instaurando novas formas de ocupar os
buscavam representar o eterno e o imutável, a visão espaços urbanos no tempo noturno. 370
cultural e artística já se caracterizava por uma busca As obras de um pintor como Edwar Hooper,
do efêmero e do fugidio6. Tanto os escritores quanto além de revelar aspectos das cidades norte-america-
os poetas e pintores já mostravam uma “tremenda nas do início do século XX, destacam a ambientação
preocupação com a criação de novos códigos, novas noturna e possibilitam perceber os modos de vida
significações e novas alusões metafóricas nas lin- de seus habitantes. Produzindo desde os anos 1920
guagens que construíam”(HARVEY,2003, p.30). até anos de 1960, Hooper pintou de forma realista
A urbanização7, de certo modo, produziu uma o “estilo de vida norte-americano” em cidades onde
forma “pedagógica” para se movimentar e se pro- seus habitantes são marcados pelo individualismo,
5
Utilizo a versão organizada por Teixeira Coelho e publicada em 1996 pela Editora Paz e Terra.
⁶ Para Harvey (2003), “o artista [era] alguém capaz de concentrar a visão em elementos comuns da vida na cidade, compreender suas
qualidades fugidias e ainda assim extrair, do momento fugaz, todas as sugestões de eternidade nele contidas (grifo meu)” (p. 29).
⁷ Conforme Sennett (2003), durante a segunda metade do século XIX, nações ocidentais como França, Alemanha e Estados Uni-
dos, até então predominantemente rurais, apresentaram maior concentração populacional. Cidades como "Berlim e Nova York
evoluíram de forma abrupta, ambas submetendo a região rural ao fluxo de comércio internacional. Não é à toa que os cem anos
transcorridos de 1848 e 1945 são chamados de 'revolução urbana'" (SENNETT, 2003, p.320).
Sumário
pela solidão e o isolamento, resultante, muitas vezes, da falta de trocas sociais. Por isso, em uma obra como
Automat, a ambientação noturna parece se tornar indispensável para captar tais sensações.
371
Uma mulher bebe café, sozinha, em uma noite fria de uma grande cidade ao norte dos Estados Unidos.
A (im)possibilidade de convivência ou de encontro com o outro na noite da metrópole, que irá retirar-lhe
da solidão, nos remete, quase sempre, para algo que “espera” na obra do pintor (PECHMAN, 2008). A soli-
dão coletiva que Hopper pinta, parece nos indagar sobre os solitários outros que estão fora do quadro, pois
“pode haver outras pessoas sozinhas no lugar, homens e mulheres bebendo café, igualmente perdidos em
pensamentos, igualmente distanciados da sociedade; um isolamento comum [...]” (BOTTON,2012).
Em Nighthawks, de 1942, talvez a obra mais emblemática produzida pelo pintor, também podemos
extrair essa condição noturna urbana. Apesar da conhecida cena de um restaurante à noite com seus fre-
Sumário
quentadores, é possível perceber a contínua sensa- Na literatura brasileira o cotidiano noturno ur-
ção de solidão. Mesmo que o próprio Hooper tenha bano também é destacado. Em Noite da Taverna11, de
afirmado que os americanos nunca poderiam se Álvares de Azevedo, Candido (1996, p.17) salienta a
considerar franceses8,segundo Gail Levin9, biógrafo ligação com “uma pedagogia satânica visando a de-
do pintor, Nighthawks pode ter sido inspirada em senvolver o lado escuro do homem que tanto fasci-
uma de obra de Vang Gogh que também representa nou o Romantismo e tem por correlativo manifesto
o cenário noturno, intitulada Le Café de La nuit10, a noite [...]”. Candido (1996) salienta que se refere
pintada em 1888. Em Nighthawks, “o pintor pensou/ “não apenas às horas noturnas como fato externo,
pintou sobre o dilema de se viver em cidade e ter lugar da ação, mas à noite como fato interior, equi-
que transformar a experiência do afeto, do amor, valendo a um modo de ser lutuoso ou melancóli-
da sexualidade, do erotismo, em comportamento, co e à explosão dos fantasmas brotados na treva da
razão, adequação, contenção, civilidade e urbani- alma” ( p.17).Por isso, a “educação pela noite” imagi-
dade” (PECHMAN, 2008). As sensações de solidão, nada pelo autor parte das conotações entre mistério
de medo e intenções de desejos, componentes das e trevas para chegar a um discurso que se aproxima
condições urbanas que atuam na constituição do das potências do inconsciente. Os “fantasmas”, se- 372
sujeito, parecem mesclar-se com o elemento “noi- jam os da melancolia ou do perigo que ronda e nos
te”, criando os monstros e fantasmas dos temores apavora com a possibilidade da morte, surgem nos
noturnos. O vínculo natureza/cultura parece se re- fluxos dessa nova vida cotidiana e são imaginados
encontrar em meio aos espaços, tempos e sujeitos pelas trevas do medo e da insegurança constante
noturnos na metrópole. em uma cidade que já “obedece” às condições de um
⁸ A afiração é parte da frase “After all, we are not French and never can be, and any attempt to be so is to deny our inheritance
and to try to impose upon ourselves a character that can be nothing but a veneer upon the surface.” Disponível em http://www.
edwardhopper.net. Acesso em 05 de jan. de 2015.
⁹ Disponível em http://www.edwardhopper.net. Acesso em 15 de jan. de 2016.
10
Em Cartas a Téo, Van Gogh comenta que iria pintar o “café” em que estava hospedado e possuía um cômodo iluminado a gás;
um lugar que ficava aberto toda a noite, servindo de refúgio para notívagos e bêbados. Mesmo distanciadas por mais de meio
século, as pinturas de Hooper também mostram trabalhadores, boêmios e demais personagens urbanos em seu convívio urbano
noturno.
11
Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, publicada originalmente no ano de 1855, relata o encontro de seis jovens: Solfieri,
Bertram, Gennaro, Claudius, Hermam e Johan que relembram, no interior de uma taverna, suas aventuras recheadas de orgias,
bebedeiras, amores, adultérios. Cada personagem relata sua visão e, desprovidos de qualquer caráter, eles contam suas façanhas.
Sumário
tempo contemporâneo que age para constantemen- A reação entre indivíduo, espaços e tempos da
te direcionar o sujeito urbano. metrópole, realizada por meio de práticas culturais,
A novela Noite, de Erico Veríssimo, escrita em produzem experiências de aprendizados que permi-
1954, relataas perambulações de um personagem de- tem aproximações com a proposta pedagógica de
nominado como o “desconhecido” ou “Homem de Ellsworth (2005). Para a autora (2005, p.86), a pre-
Gris” pelas ruas de uma Porto Alegre desconhecida. sença do sujeito no tempo e no espaço pode se cons-
Depois de perdera memória, acossado pelo esqueci- tituir em um sentido de aprendizado, já que uma
mento e pela culpa, o “homem de gris” percorre os “experiência”, nessa perspectiva, é a “colocação do
espaços noturnos da cidade de Porto Alegre, indo dos self em relação com o mundo e com os outros a fim
mais requintados e modernizados locais, aos lugares de testar-se para ver o que acontece”12[tradução mi-
menos iluminados e “malditos” da metrópole porto- nha]. Segundo a mesma autora (2005), através dessa
-alegrense. Sentindo-se um estranho em meio à urbe, relação com o mundo e com os outros, estabelecida
o “desconhecido” é invadido pela sensação do medo. em grande parte a partir das práticas culturais co-
Para Pesavento (2008), os locais como as taver- tidianas realizadas pelos sujeitos, o corpo, a mente
nas, os bares e os bordeis, bem como seus frequenta- e o cérebro estão em contato, atuando em uma in- 373
dores: prostitutas, homossexuais, ladrões, crimino- teração constante com os lugares de aprendizagem.
sos, bêbados e outros boêmios noturnos destacados Além da literatura e da pintura, o cinema é ou-
na novela de Erico Veríssimo, revelam uma cidade tra expressão do campo das artes que tem mostrado
imaginária, mas que comporta uma carga de credi- como a noite atua na formação de diferentes ima-
bilidade e a veracidade da ficção, já que essa é uma ginários urbanos. Pensemos em uma loira fatal, um
Porto Alegre que poderia ter existido. Para Pesa- detetive, uma cidade nas sombras da noite (princi-
vento (2008, p.34), aquela cidade criada pelo autor palmente em cidades urbanizadas norte-americanas
“não é maldita e degradada somente em função de e europeias) e um crime como elemento central que
seus espaços arruinados, mas principalmente pelas perpassa toda a trama. Para Mascarello (2006), tais
práticas sociais que abriga e pelos personagens que aspectos que envolvem gênero, sexualidade, sus-
povoam aqueles lugares”. pense, noite e cidades são os elementos quase canô-
12
Na citação original:“It is the putting of self in relation to the world and to others in order to test and see what happens”
Sumário
nicos em qualquer filme do gênero noir13, pois são elegendo um tempo conquistado, um tempo espe-
resultantes da narrativa que deve muito à literatura cial e propício para suas práticas, na maioria das
policial, à estilística chiaroscuro característica do ci- vezes consideradas transgressoras.
nema expressionista alemão e a iconografia urbana Laranja Mecânica, obra escrita em 1962 por
(janelas, espaços, becos, ruas, chaminés), destacan- John Anthony Burgess Wilson, se tornou um clássi-
do as modernas cidades industriais de meados do co do cinema em se tratando de juventudes contem-
século XX. porâneas. Stanley Kubrick, em 1972, dirigiu a trama
Embora o cinema noir tenha produzido simbo- que se desenrola em uma metrópole, usada como
logias que remetem a imaginários noturnos, a ju- palco para a violência gratuita e sem propósitos
ventude é outro componente quase indispensável de um grupo de adolescentes liderados pelo jovem
quando se trata darelação entre noite e cinema, tan- Alex, interpretado pelo ator Malcolm McDowell,
to para o fortalecimento de um roteiro quanto para aos 28 anos de idade. Sobre tal produção destaco a
garantir o sucesso de uma produção que busque imagem da seguinte cena.
atrair este público14. Para Margulis (2005), a noite se
apresenta para muitas culturas juvenis como uma 374
sensação de “ilusão liberadora”, quando procuram
distanciamentos do tempo diurno “regulamentado”,
13
Segundo Mascarello (2006, p. 179), privados do cinema de Hollywood durante a ocupação nazista, os franceses assistiam uma
leva de filmes alemães e ingleses e manifestavam sua admiração diante dessas “obras de tons escurecidos, temática e fotogra-
ficamente, surpreendentes em sua representação crítica e fatalista da sociedade americana e na subversão à unidade e estabili-
dade típicas do classicismo de Hollywood”. Assim, o cinema noir surge na França sob a influência doexpressionismo alemão e,
posteriormente, popularizou-se largamente através da indústria hollywoodiana do pós-guerra.
14
A partir da segunda metade do século XX, as produções cinematográficas se expandem juntamente com a afirmação do jovem
como categoria social. Feixa (1999) aponta que as diversas transformações, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial,
produzidas no seio de instituições como a família, a escola, o exército e o trabalho indicam as condições para sua emergência
social. Nesse sentido, ao falar de juventude e cinema é quase impossível não citar o filme Juventude Transviada, produção de
1955 protagonizada por James Dean. A produção se tornou a simbologia de uma geração que, ao se libertar da tutela paterna,
buscava independência cultural– uma possível causa para o rebelde sem causa – e começava a se pautar por outros valores
sociais e morais.
Sumário
375
Fonte: Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/folhetim/2013/06/14/alex3.jpg>.
Acesso:1º de fev. 2016
Sombras imensas dos corpos dos atores são projetadas no chão e acompanham todos os seus movimen-
tos; o mendigo canta, quase melancolicamente, num lugar escuro e imundo; o espaço público do viaduto
adquire uma sombria aparência, tornando a paisagem urbana propícia para a realização de práticas de qual-
quer ordem. Não importa se a cena foi realizada em um espaço público da cidade ou se foi filmada a partir de
um cenário montado em um estúdio cinematográfico. Interessa-nos é perceber como as representações da
noite urbana assumem uma condição que desperta a sensação de insegurança e de medo em uma metrópole
habitada por personagens que atravessam ou habitam seus espaços noturnos.
Devido às dimensões deste texto, foi possível destacar alguns olhares no campo das Artes que eviden-
ciaram desde distintos personagens, práticas culturais notívagas, até autores, obras e teorias que apresentam
diversas representações, análises e investigações sobre a noite da metrópole. Articulações possíveis para
identificar as sensações de medo, de insegurança, de solidão, de desejo e de fascínio que são constituídas em
decorrências das experiências dos sujeitos juntos a esse espaço-tempo. Desse modo, a noite pode ser consi-
Sumário
derada ambiente para processos pedagógicos diver- um roteiro para acompanhar os procedimentos me-
sos, pois ela também ensina, produz aprendizagens todológicos apresentados a seguir. Nesse sentido,
e desenvolve outros saberes e práticas que atuam pesquisas realizadas em contextos metropolitanos
na condução e na modelagem dos sujeitos que por noturnos transitam por territórios onde os limites
ela transitam. Desse modo, na última sessão deste geográficos, políticos e culturais são rompidos, onde
artigo, parto de anotações realizadas durante saídas se misturam os objetos e os sujeitos, torna-se prati-
de campo, esboçando possibilidades metodológicas camente inviável a aplicação de um método único e
utilizadas para abordar e investigar tais ambientes eficaz para dar conta de ambientes urbanos. O mé-
noturnos. todo, nessas condições, torna-se também “polifôni-
co”, composto a partir dos múltiplos dados que po-
ABORDAGENS NA NOITE ... dem ser coletados nos ambientes urbanos: os sons,
músicas, ruídos, vozes; as imagens, vídeos, cartazes,
22h30min. Estou no centro de Porto Alegre-RS, outdoors; os indivíduos com seus gestos, suas falas,
embaixo de um viaduto que serve como termi-
nal rodoviário. Observo as pessoas que vão e vêm
suas ações. Tudo está em conjunção na metrópole.
apressadas [...] olham discretamente em sua vol- Segundo o antropólogo Massimo Canevacci 376
ta, parecem desconfiadas. Medo na noite urbana?- (2004), na metrópole tudo se (inter)comunica: pes-
Duas mulheres, muito jovens, com roupas extre- soas, prédios, formas e percepções. Para esse au-
mamente sensuais que valorizam suas formas,
destacando suas pernas, peitos e nádegas, descem
tor (2004), a cidade e a comunicação urbana asse-
de um ônibus e se dirigem para uma avenida pró- melham-se a um coro, com uma multiplicidade de
xima, notória por suas boates e outros locais para vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se e
realização de programas sexuais. Desejo na noi- sobrepõem-se umas às outras: a metrópole torna-
te urbana? (Noturnos de Campo15, Porto Alegre,
maio de 2015)
-se, assim, polifônica. Para Canevacci (2004: 18), a
pesquisa na metrópole “designa uma determinada
As anotações registradas nos “noturnos” de escolha metodológica de ‘dar voz a muitas vozes’,
campo procuram descrever ações cotidianas reali- experimentando assim um enfoque polifônico com
zadas em determinados lugares noturnos da metró- o qual se pode representar o mesmo objeto [...]”.
pole porto-alegrense e servem, nesta seção, como
15
Oriundas do latim antigo, tanto a palavra NOX com seu significativo “noite”, quanto TORNOS ou TORNUS, que trazem o
sentido de “girar” ou “dar a volta em seu eixo”, remetem ao encontro entre os termos “noite” e “turno”, numa alusão ao período
em que também são realizadas as saídas de campo para a pesquisa em questão,
Sumário
O pesquisador Lorite-Garcia (2000), ao propor nografias pós-modernas” têm sido mais sensíveis
uma “observação casual” – e não casual observação às formas culturais no momento contemporâneo,
– para estudar as transformações sociais e midiáti- “mais modestas quanto às reivindicações de pos-
cas em microterritorialidades cotidianas, também suírem a verdade e a autoridade, mais criticamente
nos oferece alguns elementos que podem auxiliar autorreflexiva com respeito à subjetividade e mais
nas investigações de pesquisa. Lorite-Garcia (2000), autoconsciente das estratégias linguísticas e nar-
comenta que o observado casualmente não está sen- rativas”17(id., Ib., p. 2).Para tanto, Gottschalk (1998)
do casualmente observado, pois ao observar o que elaborou cinco métodos ou “movimentos” utilizan-
acontece durante um tempo, o autor presta atenção do-os em sua pesquisa etnográfica na cidade de Las
ao observado porque está respaldado por um modelo Vegas, EUA e, guardadas as devidas proporções, são
teórico, flexível e polietápico16, que está se construin- utilizados na referida pesquisa.
do durante toda sua vida de pesquisador. Mediante Gottschalk (1998) destaca inicialmente como a
esta observação casual, o autor (2000) constrói e re- “subjetividade” e a “auto-reflexividade” podem agir
produz discursos, afirmando: “são narrações com- como um importante componente que liga os pro-
postas que gravo mentalmente e monto textualmen- blemas privados às questões públicas, permitindo a 377
te com critérios audiovisuais como se tratassem de todo autor perceber seu próprio instrumento autor-
cenas e sequências de uma película” (p.9). reflexivo de pesquisa e que o “outro” relatado no
Gottschalk (1998) é outro autor que investe na texto é sempre uma versão produzida. Gottschalk
metodologia etnográfica para investigar em meio (1998) também busca inspiração na derive18 onde os
aos ambientes urbanos contemporâneos. As “et-
16
Como exemplo, suas observações no metrô mexicano durante suas viagens de ida e volta ao campus universitário da univer-
sidade daquela cidade. O modelo é assim denominado pelo autor (id.), pois está sendo aprofundado e ampliado com aportes de
investigadores de diferentes países americanos e europeus.
17
É preciso levar em conta que tais etnografias, segundo esse mesmo autor (1998), não dispensam tarefas essenciais como
coleta, organização, interpretação, validação e comunicação de dados, no entanto, exigem que seu autor permaneça constante
e criticamente atento a questões tais como “a subjetividades, os movimentos retóricos e os problemas da voz, poder, política
textual, limites à autoridade, asserções de verdade, desejos inconscientes e assim por diante” (p.3).
18
A expressão derive foi utilizada pelo movimento de vanguarda surgido na Europa após a Segunda Guerra Mundial conhecido
como Internacional Situacionista. Formado por Guy Debord, em 1951, a partir de outros movimentos como a Internationale Let-
triste e International Movement for an Imaginist Bauhaus, a IS propunha outras formas críticas de perceber, entender e interagir
com a cidade. Segundo Felício (2007) a forma de “psicogeografia”, proposta pelo grupo, estudava como os componentes geo-
gráficos, a arquitetura, a luz, o clima, os sons produzidos na cidade e o território urbano afetavam o comportamento humano.
A “psicogeografia” e a “deriva” foram seus principais procedimentos e práticas desenvolvidas para a observação e percepção
da cidade e dos cenários urbanos. In: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/69. Acesso em 21/03/2015.
Sumário
habitantes são mais do que espectadores, e sim par- tigações irão nos levar. Para Meyer e Paraíso (2012,
ticipantes de toda a interação no espaço urbano. p.15) “uma metodologia de pesquisa é sempre peda-
O uso da “evocação”, e não somente da “des- gógica porque se refere a um como fazer, como faze-
crição” como única estratégia de representação dos mos ou como faço minha pesquisa”. Como afirmam
fatos é outro movimento desenvolvido pelo autor. as mesmas autoras (2012, p.15), “uma metodologia
Segundo Gottschalk (1998), “evocar” é realçar os de pesquisa é pedagógica, portanto, porque se tra-
registros autorreflexivos em uma tentativa de ar- ta de uma condução, como conduzo ou conduzimos
ticular e promover outras compreensões das ex- nossa pesquisa”.
periências cotidianas; utilização de metáforas para Permito-me, por fim, salientar que este artigo
registrar a realidade física e falada; diálogos com esboçou uma pesquisa que se faz caminhar, nas tri-
informantes; e a inclusão de aspectos culturais da lhas por ainda a percorrer, nos trajetos a realizar.
cidade. Gottschalk (1989) destaca ainda, as interrup- Tais condições permitem a identificação das peda-
ções, interações e mediações, como “saturações” da gogias que são produzidas e circulam em paisagens
mídia que ofuscam a distinção entre o real e o simu- noturnas urbanas; pedagogias que modelam os dis-
lado das situações reais e ficcionais e a forma como tintos modos de ser e de estar sujeito em ambien- 378
são percebidas, recebidas e também interpretadas tes contemporâneos. Pesquisas que adotam tais
pelos espectadores. perspectivas promovem aberturas para outros pen-
Por fim, para o autor (1998), os sujeitos, os “ou- samentos e ações, possibilitando vislumbrar terri-
tros” de nossa pesquisa, deveriam ser convidados tórios possíveis para a Educação, a Cultura e a Pe-
por nossos textos a falar e participar de uma forma dagogia.
que não seja reduzida a citações estrategicamente
inseridas para afirmar determinadas questões in-
vestigativas, mas sim como participantes ativos, REFERÊNCIAS
“pessoas que precisam ser incorporadas como vozes
teóricas que guiem a própria construção do conheci- ALBUQUERQUE JÙNIOR, Durval Muniz de. Pedago-
gia: a arte de eregir fronteiras. In: BUJES, Maria Isabel
mento que produzimos acerca das experiências que
Edelweiss; BONIN, Iara Tatiana (Orgs.). Pedagogia sem
elas e nós temos” [grifo do autor] (p.15). fronteiras. Canoas: Ed. ULBRA, 2010, p.21 -31.
Tais procedimentos metodológicos podem ser
úteis ao penetrarmos em territórios de pesquisas BAUDELAIRE, Charles. (1821-1867). Sobre a modernida-
nas quais não sabemos o caminho que nossas inves- de: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1996. — (Coleção Leitura).
Sumário
CAMOZZATO, Viviane Castro; COSTA, Marisa Vorra- GWIAZDZINSKI, Luc. A condição noturna. In: Colabo-
ber. Vontade de pedagogia – pluralização de pedagogias e ratória, Grupo Interdisciplinar. Manifesto da Noite. /
condução de sujeitos. Cadernos de Educação(UFPel), n.44, Grupo Interdisciplinar Colaboratória. – São Paulo:Invisíveis
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Porto Alegre, v.39, n.2, p.573-593, abr/jun, 2014. revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade.
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CANDIDO, Antonio. A Educação Pela Noite & Outros
Ensaios. São Paulo: Editora Àtica, 1989. Disponível em:ht- HARVEY, David. Condição Pós-moderna: Uma Pesquisa
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17 de dez. 2015. rajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. – 17ª ed. São Paulo:
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379
MASCARELLO, Fernando. Film Noir. In: História do cine-
ELLSWORTH, Elizabeth. Places of Learning: media, archi- ma mundial. Fernando Mascarello (org.). - Campinas, SP:
tecture, pedagogy. London; New York: Routledge, 2009. Papirus, 2006. - (Coleção Campo Imagético).
¹ Mestrando em Processos e Manifestações Culturais e Graduado em História pela Universidade FEEVALE. E-mail: emer.gattu-
so@hotmail.com / 0113290@feevale.br.
² Doutor; Mestre e Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: luiz-
maroneze@feevale.br.
Sumário
Hamburg Berg, ao longo do século XIX, consti- binete do presidente do Estado um telegrama que
tuiu-se segundo Petry (1944), sob a forma do sapa- autorizava e sancionava o desligamento do 2º dis-
teiro e da indústria do couro, conjuntamente com trito de São Leopoldo, e a consequente criação do
Sapiranga, formaram o 2º distrito de São Leopol- município de Novo Hamburgo.
do. A base industrial foi o que, conforme Schemes Em Novo Hamburgo, a elite política local con-
(2006), embasou os argumentos de emancipação e juntamente com a comissão pró-emancipação pro-
criação do novo município, pois ao longo das duas moveram uma grande festa, para comemorar a
primeiras décadas do século XX, os produtos cou- emancipação, onde a comissão “assumiu as princi-
reiro-calçadistas locais ganharam espaço e reconhe- pais despesas com churrasco, música e foguetes, e
cimento em feiras nacionais, o que potencializou a as demais foram divididas por empresas, bancos e
importância do conjunto fabril hamburguense. moradores da cidade, que fizeram mais de 150 doa-
Sendo que essa força industrial foi utilizada ções” (SCHEMES, 2006, p. 294).
pela elite política local, como modo de granjear a Nesse contexto criou-se o município de Novo
criação de um novo munícipio, pois como destaca Hamburgo, tendo uma elite política atuante, que
Schemes (2006), na década de 1920 se fortaleceu um fomentou toda a luta e após o desfecho, conforme 382
grupo que defendia a emancipação da localidade, Schemes (2006), assumiu para si as rédeas da cida-
estes indivíduos3 fundaram a comissão pró-eman- de, a partir de duas ações: 1) Escolher o intendente
cipação, que em 1925, redigiu e entregou um docu- municipal provisório Jacob Kroeff Neto), e estabele-
mento a intendência municipal de São Leopoldo e cer o candidato que seria eleito na primeira eleição
ao gabinete do Presidente do Estado. (Leopoldo Petry). 2) Criar um jornal, como repre-
Os argumentos documentados e entregues, em- sentante das ideais locais, em contraposição aos dis-
basados nas cifras da produção industrial local, fez cursos do antigo município sede.
com que em cinco de abril de 1927, segundo Sche- A primeira ação consolidou-se em duas etapas,
mes (2006) e Selbach (2006), fosse emitido do ga- uma na mesma semana de instauração do municí-
³ Sete homens destacaram-se por sua atuação na luta pela criação do município de Novo Hamburgo, sendo eles: 1) Pedro Adams
Filho, conselheiro municipal de São Leopoldo (1917-1925), dono da Fábrica de Calçados Rio-Grandense; 2) Jacob Kroeff Neto,
Deputado Estadual (1904-1929), advogado e administrador do Matadouro Kroeff; 3) Leopoldo Petry, secretário municipal de São
Leopoldo (1917-1923), criador e editor do jornal “O 5 de Abril”, foi também o primeiro Intendente Municipal de Novo Hamburgo
(1927-1930); 4) André Kilpp, major do Exército e coletor Federal; 5) Julio Kunz, empresário calçadista, no ramo de acessórios
fabris; 6) José João Martins, empresário calçadista e presidente da Comissão Pró-emancipação; 7) Carlos Dienstbach, professor
e subintendente de São Leopoldo e Sapiranga.
Sumário
pio e a outra 3 meses depois. Conquanto, a segunda taque na produção e propagação de discursos, que
ação foi estabelecida oficialmente um mês após o fundamentam a cidade moderna e industrial, que
dia cinco de abril, quando o jornal “O 5 de Abril” Novo Hamburgo almejava ser.
teve sua primeira edição ganhando as ruas, no dia “O 5 de Abril” veiculou 1811 edições, sendo pu-
cinco de maio de 1927. blicado sempre as sextas-feiras, o que o configura
O município e o jornal criam-se intrinsicamen- como um semanário, esteve nas ruas entre 1927 e
te ligados a elite política local, que, segundo Sousa 1962. Nas 50 primeiras edições, que configuraram o
e Maroneze (2011), almeja instaurar preceitos mo- corpus desse trabalho, esteve dividido em 4 páginas.
dernos e transformar aquela urbe em uma cidade Primeira página, demonstrou em 42 edições
progressista, baseada nos grandes centros moder- uma formatação padrão de 3 seções e 4 colunas,
nos ocidentais. Com isso, o jornal torna-se o por- duas das seções eram sobre grandes matérias sobre
tador do discurso da elite local, ou seja, os homens perspectivas da cidade e o valor dos cidadãos ham-
que lutaram pela emancipação municipal, criaram burguenses, uma espécie de ode à modernidade e
os meios para propagar seus discursos e suas repre- ao povo trabalhador do município, idealizava-se e
sentações para com o cidadão hamburguense. Des- representava-se o cidadão hamburguense. Na outra 383
sa forma “O 5 de Abril” surgiu seção, localizada na parte inferior da página, publi-
cava-se, geralmente, romances de folhetim, mas as
Diferentemente dos tradicionais panfletos [da
época] que lutam por mudanças, abolições e
vezes figuravam matérias compradas de jornais da
revoluções, esse jornal aparece post facto para capital do Estado ou do país.
compor o discurso cultural de Novo Hamburgo, Segunda página, possuía inúmeras seções dis-
surge como um instrumento simbólico para or- postas em 4 colunas, basicamente informava sobre
denar o projeto da cidade: a nova realidade cria
a necessidade de um veículo de informação pró-
os espaços de sociabilidade e cotidiano social da ci-
prio, uma marca distintiva e uma forma de legi- dade, mas esporadicamente publicava notas infor-
timação para a nova comunidade (SCHEMES ET mativas sobre a situação política do município. De
AL., 2013, p. 37). forma, geral era dividida, em seções chamadas de
“Notas Sociaes”, que dissertavam sobre casamentos,
O jornal torna-se o porta-bandeiras da elite lo- jogos, reuniões, novas construções e estabelecimen-
cal e suas representações de mundo, Schemes et al. to de indústrias no município.
(2013) afirmam que, “O 5 de Abril” tem seu nome Terceira página, trazia três colunas, regular-
associado a data de criação do município, e tem des- mente com três assuntos básicos: editais municipais
Sumário
dustrial. Mas o advento da Segunda Revolução realidade, e ao relatarem ela, a estão reconstruindo
Industrial, desde os anos de 1870, bem como de sobre discursos formatados, como se fossem um es-
novos países competidores e do paradigma for-
dista levam ao desgaste da hegemonia inglesa, pelho distorcido, dessa forma, o jornal pode estar
abrindo-se a partir de 1890 uma fase de crise e falando a verdade, mas será uma das muitas verda-
transição, marcada pelo acirramento do imperia- des possíveis. Além de que, o mesmo autor escreve
lismo, por duas guerras mundiais, por uma gran- que as mídias fomentam as identidades. Mas o que é
de depressão de alcance planetário e pela emer-
gência do fascismo (VIZENTINI, 2007, p. 7-8). identidade nesse contexto de promessas e ameaças?
Segundo Woodward (2000), a identidade relata-
Além dessa configuração processual, a moder- da e propagada pelas mídias tem a função de estabe-
nidade, nas palavras de Berman (1986), é o ambien- lecer respostas à perguntas existências e funcionais,
te social e estrutural que promete a felicidade e o como quem eu sou? O que posso ser? O que tenho
progresso, mas que ao mesmo tempo ameaça toda que fazer? Com isso, as identidades modernas estão
a estabilidade das sólidas relações tradicionais. Sin- amarradas a preceitos que almejam um processo de
teticamente a modernidade é percebida e traduzida progresso material e a busca pelos melhoramentos
nesse trabalho como o período da grande explosão da vida, baseados na consolidação da resposta da 385
demográfica, em várias regiões do mundo, seguida função que cada indivíduo pode e deve representar
do rápido e dentro de uma determinada sociedade.
Essa representação de mundo, conforme Cha-
Muitas vezes catastrófico crescimento urbano; raudeau (2012), é o que dá sentido as identidades,
sistemas de comunicação de massa, dinâmicos
em seu desenvolvi mento, que embrulham e as quais manifestam-se através da linguagem e de
amarram, no mesmo pacote os mais variados in- sistemas simbólicos. No caso de Novo Hamburgo, o
divíduos e sociedades; Estado nacionais cada vez sistema simbólico é evocado pelos documentos his-
mais poderosos, burocraticamente estruturados tóricos, que por sua vez, estão presentes no discurso
e geridos, que lutam com obstinação para expan-
dir seu poder; [...]enfim, dirigindo e manipulan- do jornal, segundo Woodward (2000), esses discur-
do todas as pessoas e instituições, um mercado sos midiáticos dizem como os indivíduos devem as-
capitalista mundial, drasticamente flutuante em sumir uma posição de atuação social particular.
permanente expansão. (BERMAN, 1985, p.16) Quando as identidades são afirmadas, Woo-
dward (2000) postula que, elas são legitimadas por
Nesse contexto o jornal é um aglutinador de
um passado, por uma tradição, que validaria o rumo
discursos e perspectivas selecionadas, conforme
para o qual determinada sociedade seria conduzi-
Charaudeau (2012), as mídias querem dar conta da
Sumário
da, porém em Novo Hamburgo, “O 5 de Abril” e a res da verdade e totalmente imparciais, porém isso é
elite política local não fundamentam o discurso em impossível, pois eles eram intérpretes e formadores
um passado glorioso, mas sim na promessa de um de opinião pública, sendo que “assumiram a tarefa
futuro de progresso e avanços. Isso demonstra que de ensinar os cidadãos a atuar politicamente” (CA-
os processos culturais, por onde se manifestam as PELATO, 1991, p. 133).
identidades, não são estanques e nem mesmo po- Em uma lógica semelhante, Charaudeau (2012)
dem ser previstos. escreve que, as mídias são máquinas produtoras de
Porém, Woodward (2000) também escreve que, forma e sentido, totalmente subordinadas as lógi-
as identidades são criadas a partir de dois pontos: a) cas do capital. Sendo que “a base de funcionamento
em momentos específicos no tempo e na cultura; b) das mídias na sociedade é uma relação triangular,
a marcação “nós e eles”. Isso demonstra que mesmo entre a realidade, as mídias e o povo. Essa relação
não tendo uma base de passado, a identidade pode é paradoxal porque não pode ser um reflexo fiel”
ser idealizada como ponto de convergência e agluti- (CHARAUDEAU, 2012, p.309).
nação de indivíduos sobre uma promessa de futuro, Os jornais são portadores de verdades, e tem
como no caso da modernidade. a seu dispor um grande poder de persuasão, dessa 386
Em Novo Hamburgo a marcação da diferença, forma a elite política de Novo Hamburgo detinha
se deu a partir da dicotomia distrito – município os meios para fundamentar e propagar suas repre-
sede, onde os cidadãos distritais precisavam de- sentações de mundo para os leitores e a comunida-
monstrar que seu futuro era glorioso, pois era fruto de em geral, pois era o único veículo informacional
exclusivo de seu trabalho, e não da tradição do mu- produzido na cidade, por isso era feito de hambur-
nicípio sede. guenses para hamburguenses, e todos vivendo sob
Essa marcação de diferença, bem como o discur- a égide da modernidade.
so que evocava a modernidade e a afirmação de uma
É certo que há uma relação de reciprocidade
identidade própria, estão todos presentes no jornal entre jornal e leitores, mas não se pode ignorar
“O 5 de Abril”, mas como um jornal pode ser o repre- que nessa relação o jornal capta os interesses do
sentante de uma identidade ou representação? leitor e os retrabalha de acordo com os objetivos
e interesses da própria empresa jornalística. A
massa de informações de que dispõe, as formas
Os espelhos e os caminhos de selecionar e transmitir a notícia, implicam
uma possibilidade de manipulação considerável,
Os jornais brasileiros das primeiras décadas de que não pode ser negligenciada (CAPELATO,
1900, segundo Capelato (1991), diziam-se defenso- 1991, p. 138).
Sumário
O trabalho é afirmado como característica prin- Todos são, como acabamos de ver, homens que
cipal da identidade local, tanto que o jornal remete se fizeram por si mesmos, que galgaram a posi-
ção que hoje se encontram pelos seus esforços
37 eventos sobre essa temática, afirmando várias próprios, pelo trabalho honroso e dignificador
vezes que o cidadão hamburguense era trabalhador (JORNAL “O 5 de Abril”, n. 5, p. 2).
por excelência e esse seria o caminho mais firme e
seguro para a o progresso da modernidade. O jornal afirma que o caminho para o progres-
so, próprio e da cidade, dava-se pelo trabalho, que
Ahi, pois, uma idéa do que vae pela nossa ter- honrava o homem e dignificava todos.
ra. E, conquanto não tenhamos um município
grande na sua superfície, os temos, entretanto Quando assumiu a posse da intendência muni-
grande e immenso no seu comercio e nas suas cipal Leopoldo Petry discursou em praça pública, e
industrias e, assim podemos confiar no nosso suas palavras relatadas pelo “O 5 de Abril”, sinte-
futuro que é o mais promissor possível. Nem ou- tizam os ideais do trabalho que o jornal e a cidade
tra perspectiva podemos ter, ante o que somos
e o que possuímos em nossa querida terra que, tomavam como ponto fundamental da busca pela
graças ao labor de seus filhos, já é conhecida do modernidade.
outro lado do Atlântico como um dos adeanta-
dos centros de trabalho do Brasil (Sic) (JORNAL Certo estou que todos compreendemos o peso 388
“O 5 de Abril”, n. 4, p. 1-2). da responsabilidade que hoje assumimos; porém
trabalhar com harmonia com os olhos fitos uni-
Novo Hamburgo possuía algumas relações in- camente em nossa ideal – a grandeza de Novo
Hamburgo, tudo se tornará muito mais fácil,
ternacionais sobre exportação de seus produtos, os todo o peso mais leve, todo o trabalho mais ame-
quais ganhavam vários prêmios em feiras nacionais no, todo o esforço mais agradável e poderemos
e regionais. O jornal sendo controlado por empre- iniciar uma obra em que as futuras gerações não
sários e políticos, propagava esses ideais, pois es- precisarão reformar ou reconstruir, mas em cuja
as bases poderão elas continuar a erigir o grande
tes elementos trabalho e progresso incorporados ao monummento do progresso que se chama Novo
cotidiano, trariam maior significado e incorporação Hamburgo, hoje villa, amanhã cidade, mas em
dos valores modernos. todo o tempo um centro de trabalho, de ativi-
Algo que deixa claro esse ideal, é o texto publi- dade de onde irradiará o progresso para todos
os recantos de nosso querido Rio Grande do Sul,
cado no “O 5 de Abril” quando o editor chefe do jor- para todos os pontos de nossa Amada Pátria Bra-
nal foi eleito como primeiro intendente municipal sileira e mesmo muito além de nossas fronteiras
conjuntamente com a primeira junta diretiva muni- (Sic) (JORNAL “O 5 de Abril”, 1927, n. 6, p. 1).
cipal, publicou-se que:
Sumário
Novo Hamburgo contava com 8.500 habitantes A busca pelo progresso afirmado pelo trabalho, fez
em 1927, mas sua formação, enquanto município com que o jornal buscasse argumentos para munir
era permeada pelos exemplos das grandes cida- de respostas o cidadão do novo município. Essas res-
des modelo da modernidade, como Paris. Por isso postas que indicavam como um indivíduo moderno
a identidade afirmada pelo jornal estava em total deveria portar-se e qual educação deveria buscar.
alinhamento com esses preceitos, além de que o dis-
Verdade é que a ethica prohibe fallar em socie-
curso local dade sob tais assumptos, um jornal, porém, que
tem o dever de orientar o povo e instruí-lo, si
Envolve modernidade, ordem, vocação para o
for preciso, vê-se muitas vezes obrigado a tratar
trabalho e harmonia social. Afirma-se que a ci-
dos mesmos para preveni-lo dos perigos de que
dade é um verdadeiro feixe de forças individuais
é ameaçado. [...] Uma raça forte sempre trium-
unidas no projeto coletivo de uma urbe progres-
phará na lucta pela vida, ao passo que os fracos
sista: a construção de um futuro desejado dar-
definham e sucumbem (Sic) (JORNAL “O 5 de
-se-ia pela união social em torno do trabalho
Abril”, 1927, n. 23, p. 1).
(SCHEMES ET AL. 2013, p. 37).
“O 5 de Abril” publica que o cidadão não pode essa exposição, que durante os dois dias de ex-
se entregar para o álcool, pois o progresso de todos, posição, mais de 5000 pessoas deixaram seu
nome no livro de visitas. Dentro de 15 dias será
depende do ápice de suas faculdades mentais na li- exposto aqui o novo carro FORD (sic) (JORNAL
nha de produção. “O 5 de Abril”, 1928, n. 45, p. 2).
Com base nesses argumentos destacados, o jor-
nal demonstra criar e reforçar moralidades, através Além do frisson causado por novos automó-
do papel de educador da população, seja ofertando veis, o jornal publicava inúmeros melhoramentos
cursos alfabetizantes para operários, seja publican- estruturais no município para consolidar ainda
do situações e respostas que cada indivíduo deveria mais o uso desse transporte moderno. “Temos já
entender e aplicar para que o trabalho e o progresso ruas abahuladas e diariamente zeladas e estradas,
não parrassem na cidade. onde para facilitar o trânsito foram construídos bo-
O trabalho é o fator principal do discurso, a eiros e pontilhões, cousas essas que não conhecía-
educação é importante, pois auxilia no trabalho, mos em outra época em nossa villa” (JORNAL “O 5
mas a incorporação do automóvel é o ponto em que de Abril”, n. 12, p. 1).
transforma o processo discursivo em um ciclo, pois Contudo, ainda mais significativo da represen-
390
na representação da modernidade que o automóvel tação do automóvel em Novo Hamburgo, pelo “O 5
contém, é que o jornal irá significar o trabalho e a de Abril”, são os eventos que falam diretamente da
importância da educação na busca da consolidação importância dos novos modelos e o que os “antigos”
da modernidade na cidade. proporcionaram.
Para “O 5 de Abril” um dos preceitos mais indi-
O FORD modelo T, agiu como um grande edu-
cativos da modernidade era o automóvel, tanto que cador, foi o carro que correu onde não havia es-
menções a construções de rua para o melhoramento tradas onde correr. Ele quebrou a barreira das
do tráfego, ou eventos que falassem da importância distâncias nos distritos rurais, facilitou uma
do carro na atual sociedade, aparecem 26 vezes. união maior entre esses distritos e as escolas ao
alcance de todos (sic) (JORNAL “O 5 de Abril”,
O automóvel era um símbolo tão grande da mo- 1927, n. 21, p. 7).
dernidade que a simples exposição de um novo mo-
delo, gerava milhares de visitas. Nessa passagem, os três pontos defendidos pelo
jornal estão explícitos, pois o automóvel como sím-
Na semana finda foi aberta ao público, em Pe-
lotas, a exposição dos novos modelos de autos bolo da modernidade, quebrou as barreiras do rural,
Ford. Foi tamanho o interesse despertado por levando a modernidade onde esta não existia, além
Sumário
de que o carro foi a ligação entre os distritos e as que era ser moderno, e como se reconhecer como
escolas. Sendo que isso, proporcionava o contato di- indivíduo nessa nova sociedade com novidades tec-
reto com representações de mundo, fora do mundo nocientíficas, como o automóvel.
vivenciado e conhecido das comunidades. Dessa forma, o jornal propagava três elementos
O automóvel dessa forma foi o elo entre a mo- como fundamentais para a manutenção do desejo
dernidade almejada, o esforço do trabalho e a que- de modernidade na cidade, formando um ciclo que
bra do espaço-tempo, pois ele transportava pessoas aumentava e consolidava os desejos da busca pelo
e ideias com uma velocidade muito superior do que moderno. O trabalho criava, a educação ensinava, e
a conhecida até então. o automóvel consolidava.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Com a consolidação do ramo coureiro-calçadis-
ta em Novo Hamburgo, a cidade desenvolveu uma A posse da primeira administração. Jornal “O 5 de Abril”,
Novo Hamburgo, RS, 10 de Junho de 1927, Ano 1, n. 6, p. 1.
elite política local, voltada a este setor industrial. 391
Após a emancipação da cidade em abril de 1927, As funestas consequências do uso do alcool. Jornal O 5de
essa elite criou um jornal que se transformou no Abril. Novo Hamburgo, RS, 18 de Novembro de 1927, Ano 1,
porta voz oficial da cidade. n. 29, p. 2.
Seu discurso era a ligação da realidade viven-
As nossas forças sociaes, commerciaes e industriaes. Jornal
ciada pela cidade com a representação almejada pela
“O 5 de Abril”, Novo Hamburgo, RS, 27 de maio de 1927,
elite política local, sendo que a propagação desses Ano 1, n. 4, p. 1-2.
elementos discursivos moldavam e afirmavam uma
determinada identidade local, fundamentada em BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no
três preceitos: Trabalhar, Educar, Dirigir. ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.
O jornal afirmava que todos na cidade eram tra-
balhadores operosos, e que isso era o que proporcio- CAPELATO, Maria Helena. Imprensa, uma mercadoria polí-
naria a consolidação da modernidade, vivenciada em tica. Revista História e Perspectivas. Uberlândia, n. 4, p.
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Sumário
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burgo, RS, 03 de Junho de 1927, Ano 1, n. 5 p. 2.
1
Graduado em Comunicação Social – Hab. em Jornalismo na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Mestrando no PPG em
Letras – Linguística Aplicada na UCPel. felipebsoares@hotmail.com
Sumário
complexa, trazendo também o não dito e novos sen- mostra as palavras mais frequentes, no Twitter4, site
tidos gerados a partir daí. O que se pretende nes- de rede social em formato de microblogging onde
te artigo é observar a possibilidade de uma análise cada usuário pode publicar mensagens com até 140
conjunta entre as duas disciplinas, apesar (e consi- caracteres. Em decorrência da repercussão do caso,
derando) das divergências acima descritas. decidiu-se, por meio da utilização de softwares, cole-
Defende-se aqui que é possível apropriar-se de tar e analisar dados do próprio Twitter relacionados
elementos das duas disciplinas para a realização de com o termo “Miriam Dutra” para, então, realizar
uma análise que pode gerar resultados outros aos uma análise com base na análise de discurso pro-
que seriam observados na utilização de apenas uma. posta por Pêcheux.
Deste modo, optou-se por selecionar a análise de
contingência, uma das técnicas da análise de con- A CRÍTICA DA AD À AC
teúdo, em conjunto com a análise de redes. Poste-
riormente, a escolha foi pela utilização da análise de A AD é idealizada por Michel Pêcheux a partir
discurso com base em Pêcheux para compreender da construção teórica de três opacidades: do sujeito
os sentidos que emanam dos discursos coletados e (por meio da psicanálise), da língua (por meio da 394
processados via análise de contingência. linguística) e da história (por meio do marxismo)
Para realizar esta proposição de análise, op- (ORLANDI, 2001). Baseada nos pressupostos de
tou-se por coletar dados referentes ao caso Miriam não-transparência destes três objetos, a AD desen-
Dutra e FHC2, que tomou proporções nacionais na volve diversos conceitos relacionados com o sujeito,
mídia brasileira a partir da reportagem publicada o discurso e a ideologia.
pela Folha de S. Paulo em 17 de fevereiro de 20163. É especialmente na não-transparência da lin-
Rapidamente o assunto se tornou um dos mais fa- guagem que surge a crítica à análise de conteúdo. O
lados no Brasil, de modo que o nome de Miriam que se argumenta é que na AC se pretende entender
Dutra chegou aos trending topics, ferramenta que o que o texto quer dizer, por meio de sua literalida-
² Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Miriam Dutra afirmou ser mãe de um filho do ex-presidente do Brasil (1995-2001) Fer-
nando Henrique Cardoso (FHC) e que este teria pago uma mesada para ela no exterior inclusive enquanto exercia o mandato
de presidente. Além disso, também afirmou que os dois mantiveram um caso durante anos, ter realizado dois abortos pagos por
FHC, entre outras coisas.
³ http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1740584-nao-quero-morrer-e-isso-ficar-na-tumba-diz-jornalista-sobre-fhc.shtml
⁴ https://twitter.com
Sumário
de. Na AD, por sua vez, o que se tem como objetivo mação discursiva (FD). Pêcheux (2011, p. 73) afirma
é compreender como o texto significa (ORLANDI, ainda que formações ideológicas (FI) sempre com-
2009, p. 17). portam uma ou várias formações discursivas, deter-
Como argumenta o próprio Pêcheux (1997a, minando o que pode, o que não pode, o que deve e o
p. 65), na AC se buscam indicadores, classificando que não deve ser dito por determinado sujeito. As-
termos por sua presença e ausência ou intensida- sim, “não se trata somente da natureza das palavras
de. Mantendo assim a relação basicamente funcio- empregadas, mas também e sobretudo das constru-
nal na análise dos sentidos, necessitando de um ções nas quais essas palavras se combinam” (PÊ-
sistema comum de valores para sua observação e CHEUX, 2011, p. 73). Ou seja, as palavras mudam
classificação. Já no ponto de vista da AD, Pêcheux de sentido de acordo com a FD em que se inserem,
(1997b) defende que as palavras não possuem senti- são as construções onde as palavras se combinam
dos transparentes, literais, mas são determinados a que definem a significação delas.
partir de posições em que se inscrevem os sujeitos Outro conceito central para a AD é o de sujeito.
no processo sócio-histórico em que são produzidas. Pêcheux (1997b, p. 161) define que “os indivíduos
são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos 395
CONCEITOS CENTRAS DA ANÁLISE DE de seu discurso) pelas formações discursivas que re-
DISCURSO presentam ‘na linguagem’ as formações ideológicas
que lhes são correspondentes”. Não são trabalhados
Se entendida a não-transparência da linguagem na AD sujeitos empíricos, donos de si mesmos, mas
como apresentada acima por Pêcheux, é possível sujeitos interpelados pelas formações discursivas
entrar em um dos conceitos centrais para a AD. Nas em que se inscrevem – ainda que possam mudar de
palavras do próprio Pêcheux (1997b, p. 160), deve- formação discursiva ou adotar mais de uma ao mes-
-se considerar que as palavras “mudam de sentido mo tempo (ORLANDI, 2001) – que materializam
segundo as posições sustentadas por aqueles que as seus discursos em textos que remetem diretamente
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu às formações discursivas pelas quais são interpela-
sentido em referência a essas posições, isto é, em dos (ORLANDI, 2009).
referência às formações ideológicas [...] nas quais Ainda podem ser inseridos mais dois conceitos
essas posições se inscrevem.” É a partir desta tese centrias: o interdiscurso e o intradiscurso. O in-
que surge um dos conceitos fundamentais para a terdiscurso é a relação com os outros discursos, a
compreensão dos sentidos do discurso na AD: a for- memória discursiva: “o saber discursivo que torna
Sumário
possível todo dizer e que retorna sob a forma do ção. Como destaca Orlandi (2009), as condições de
pré-construído, o já dito que está na base do dizí- produção possuem a relação entre sujeito e situa-
vel, sustentando cada tomada da palavra” (ORLAN- ção, além do interdiscurso como produção do dis-
DI, 2009, p. 31). É por meio do interdiscurso que o curso, como base para a sua compreensão. Em um
sujeito, a partir da formação discursiva em que se sentido mais restrito, as condições de produção são
inscreve, significa em uma determinada situação o contexto imediato da enunciação, já em um sen-
discursiva. O intradiscurso, por sua vez, é o eixo tido mais amplo, elas se referem ao contexto sócio-
momentâneo – horizontal – da formulação do dis- -histório (ideológico) de produção do discurso.
curso (ORLANDI, 2009). O intradiscurso se dá em
função do interdiscurso, pois algo só pode ser dito METODOLOGIA
quando colocado na possibilidade do dizível. Na
relação entre os dois é que surgem os sentidos do O que este estudo propõe é uma maneira de uti-
discurso. Retornando ao conceito de forma-sujei- lizar conjuntamente ferramentas da análise de con-
to, surge a unidade imaginária do sujeito, de modo teúdo com elementos da análise de discurso. Para
a constituir sua identidade, apropriando-se do in- tal, é preciso compreender como cada uma das dis- 396
terdiscurso como o simples “já-dito” articulado no ciplinas organiza suas análises.
seu intradiscurso (PÊCHEUX, 1997b). Este sujeito Como argumenta Orlandi (2009, p. 59), a AD bus-
se coloca imaginariamente como origem do que é ca a construção de um dispositivo de interpretação.
dito, autor e responsável dos seus atos, ainda que Assim, pretende encontrar o sentido na relação entre
o sujeito seja interpelado pela sua formação ideo- as materialidades linguística e histórica, colocando
lógica (que o constitui), ele não percebe a maneira em relação o dito e o não dito e o modo como é dito
como isso ocorre (ORLANDI, 2001). Assim, os sujei- com o outro modo de dizer, encontrando o que o su-
tos são colocados constitutivamente como autores jeito não diz, mas que também constitui seu discurso.
e responsáveis de suas práticas. Estes atos, porém, O analista, então, na AD, explicita os gestos de
só são realizados a partir das formações discursivas interpretação de sua análise a partir do texto como
que formam os sujeitos e é também por meio delas unidade de análise. Isso se dá em duas etapas in-
que o sujeito é interpelado em “sujeito-responsável” terligadas: a descrição e a interpretação. Uma não
(PÊCHEUX, 1997b, p. 214). acontece sem a outra. Não podendo ocupar uma
Na relação entre sujeito, discurso e contexto há posição neutra, o analista deve buscar atravessar a
outro conceito importante: as condições de produ- literalidade do sentido, observando o que está além.
Sumário
Em resumo, o analista deve ir além do que está pos- A análise de redes sociais (ARS) é um método
to, mas cuidando para que não seja ele próprio víti- que foca na estrutura. Tem como orientação a ideia
ma de um efeito de transparência (ORLANDI, 2009). de que observando os elementos estruturais de uma
A análise de conteúdo é um método tradicio- rede é possível compreender os sentidos e relações
nal das ciências sociais e humanas, como a comu- nela gerados (FRAGOSO, RECUERO, AMARAL,
nicação e a psicologia, que tem como foco central 2011, p. 115). Dos elementos coletados para a ARS,
a análise de texto(s) ou enunciado(s). Para Bardin é possível formar grafos (representações da rede
(2002, p. 31), uma das principais pesquisadoras na em forma de imagem), que são compostos por nós
área da AC, a análise de conteúdo é um conjunto de (vértices) e suas conexões (arestas), demonstrando o
técnicas com foco de análise na comunicação, não conjunto de inter-relações entre os elementos que o
sendo uma metodologia fechada, mas um instru- compõem (RECUERO, BASTOS, ZAGO, 2015, p.45).
mento adaptável de acordo com o contexto de seu Para a análise aqui proposta foram coletados
uso. Krippendorf (2004, p. 18) defende que a análise 1677 tweets5 utilizando o software NodeXL. A coleta
de conteúdo é uma técnica de pesquisa que se preo- foi realizada por meio da busca pelo termo “Miriam
cupa em realizar inferências a partir de um texto em Dutra”, no dia 18 de fevereiro às 11h. No momento 397
relação com o seu contexto. da coleta, “Miriam Dutra” era um dos termos pre-
Dentre as técnicas da AC está a análise de sentes nos trending topics do Brasil. A entrevista
contingência, que tem como foco a observação de com a jornalista havia sido publicada pela Folha na
associações entre conceitos, analisando suas co-o- noite do dia anterior. Dentre os tweets coletados,
corrências, além da simples frequência de dados foram selecionados 75 termos, divididos em 65 con-
(RECUERO, 2015, p. 555). A análise de contingência ceitos para a análise de contingência, produzindo
se mostra interessante em contextos com um gran- um total de 325 co-ocorrências, este processo foi
de número de dados (comum para a análise de con- realizado no site textometrica6. Após, foi gerado
teúdo e extremamente incomum para a análise de um grafo no software Gephi. Para melhor visualiza-
discurso), porque é capaz de relacionar os dados e ção, foram utilizadas duas métricas no grafo: grau e
observar os sentidos gerados a partir disso. Assim modularidade. O grau, basicamente, é o número de
sendo, é uma técnica útil para a análise de redes. conexões que um nó recebe (RECUERO, BASTOS,
⁵ Um tweet é uma mensagem de até 140 caracteres publicada no Twitter por algum usuário.
⁶ http://textometrica.humlab.umu.se/
Sumário
ZAGO, 2015, p.66). Assim, quanto maior o grau de um nó (conceito), mais central ele é para o grafo e maior
a sua frequência na rede. A modularidade, por sua vez, “indica a concentração de conexões dentro de co-
munidades em comparação com a distribuição aleatória dessas mesmas conexões”. (RECUERO, BASTOS,
ZAGO, 2015, p.85). Assim, por meio desta métrica é possível separar os nós em módulos (comunidades) de
acordo com a frequência de conexões entre eles: nós que estão em um mesmo módulo aparecem juntos mais
frequentemente. O grau médio do grafo gerado foi de 10,222, enquanto a modularidade foi de 0,214.
Diferentemente do que se costuma fazer em análises no âmbito da AD, onde são selecionados poucos
ou somente um enunciado, nesta proposta trabalha-se com um alto número de dados e, consequentemente,
um alto número de enunciados. Então, para que esta análise possa se enquadrar em um cenário de pesquisa
em análise de discurso, o grafo como um todo será analisado, assim como os tweets (de modo que cada um
é considerado um enunciado) isoladamente, como se faz tradicionalmente na análise de contingência. Esta
particularidade tende a gerar resultados diferentes (mesmo que possivelmente semelhantes) a uma análise
com um menor número de dados sobre o mesmo tema. Ainda assim, considera-se que seja relevante para as
duas disciplinas esta proposta de análise que tem como principal ponto positivo a possibilidade de, por meio
dos termos e suas relações no grafo, identificar formações discursivas a partir de conceitos que as compõem 398
e suas relações.
PROPOSTA DE ANÁLISE
399
Figura 1 - Grafo gerado a partir da busca pelo termo “Miriam Dutra” na rede do Twitter
Sumário
As duas métricas utilizadas para gerar o grafo especialmente pela importância histórica de FCH. A
podem ser visualizadas da seguinte forma: quanto frequência dos outros termos já é bem mais baixa,
maior o nó, maior seu grau na rede; enquanto que a mas alguns deles também são importantes de des-
modularidade se dá de acordo com a cor das cone- tacar. A relação “ex-amante” e “ex-namorada”, duas
xões. O algoritmo utilizado para a visualização do denominações utilizadas para se referir a Miriam
grafo foi o ForceAtlas, algoritmo dirigido por força Dutra. “Globo”, referindo-se à maior rede de tele-
que centraliza os nós de maior grau e aproxima por visão do Brasil, empresa para a qual Miriam Dutra
vizinhança os módulos da rede (RECUERO, BAS- trabalhava. Também interessante é a alta frequência
TOS, ZAGO, 2015, p. 103). de “Lula”, ex-presidente do Brasil.
De modo a complementar o grafo e facilitar a A frequência de usuários no grafo (representa-
compreensão dos dados, a seguir podem ser vistos dos pelo símbolo @ antes do nome) mostra que há
os dez conceitos com maior frequência no grafo. grande número de retweets, ação de reproduzir um
tweet de outro usuário em seu próprio perfil. Assim,
Tabela 1 - Dez conceitos mais frequentes no grafo gerado a os termos de maior grau no grafo tendem a estar
partir do termo “Miriam Dutra” no Twitter
sempre relacionados a estes retweets. Isto é positi- 400
Conceito Frequência
vo porque diminui os contextos onde os conceitos
Miriam Dutra 1596
são utilizados, facilitando a análise. Por outro lado,
FHC 995 diminui também a diversidade de enunciados passí-
Ex-amante 220 veis de observação.
Filho 162 Tendo em conta a extensão deste artigo e o vo-
Globo 160 lume de dados, optou-se por fazer uma análise mais
Mensalão 157
generalizada dos enunciados, selecionando alguns
em função de sua relevância no cenário analisado.
Explode 155
Deste modo, é possível alcançar uma visão geral do
Empresa 129
grafo e, consequentemente, do contexto analisado.
Lula 99 Visto que FHC é um termo de alta frequência
Ex-namorada 95 no grafo, surgindo em diversos contextos, entende-
-se que é preferível guiar esta análise a partir dos
Como poderia ser previsto, o segundo termo outros termos centrais para o grafo (assim como
mais frequente no grafo e a mais forte relação com alguns menos centrais, mas que emanam sentidos
“Miriam Dutra” é “FHC”. É uma associação natural, relevantes para a análise aqui realizada).
Sumário
A relação entre “Miriam Dutra” e “Globo” nos “Globo” faz parte de um módulo mais central, que
dados coletados se dá a partir de duas vias: o vín- compõe a maior parte do grafo.
culo trabalhista de Miriam Dutra e da empresa, que Outro termo importante no grafo e que mostra
é acusada de pagar salários a mando de FCH; e o também características da mesma formação ideo-
silêncio mantido pela Globo durante anos (mesmo, lógica citada acima é “Lula”. Interessante observar
teoricamente, ciente do caso). Pode-se observar isto que, ainda que Lula estivesse sendo um assunto
nos dois enunciados a seguir: comentado em decorrência do adiamento do de-
poimento que prestaria em função de um esquema
@usuário17: A pedido de FHC, globo pagava sa-
lário de Miriam Dutra sem ela trabalhar. Conta
de corrupção, os tweets relacionados com Lula pos-
mais, Miriam... suem, em geral, um tom irônico. Alguns também
mantém o posicionamento de ataque à mídia como
@usuário2: “Não quero morrer e isso ficar na os citados acima.
tumba”, diz Miriam Dutra sobre FHC. E a Globo
mantém silêncio soturno. @usuário3: Miriam Dutra - Daqui a pouco os
jornalões e a mídia lixo vão dizer que a Miriam
Percebe-se que, apesar de críticas diferentes, as foi amante do Lula!!! 401
duas linhas ideológicas reveladas nos tweets cita-
@usuário4: Esperando a Folha soltar alguma
dos coincidem, podendo traduzir posicionamentos manchete dizendo que Miriam Dutra é amiga do
de uma mesma FD. Isto porque é possível perceber filho do Lula.
um tom crítico à Globo em um sentido de união
com FHC. No Brasil, principalmente no contexto Os dois tweets citados mostram posicionamento
atual, militantes de esquerda possuem um posicio- crítico a uma constante perseguição da mídia contra
namento contrário à Globo, assim como ao partido Lula. Aqui a Folha de S. Paulo, assim como a Globo,
de FHC, o PSDB. Assim, não apenas o tom apresen- é citada como um veículo que busca atacar somente
tado nos enunciados, mas também as condições de a esquerda, em específico Lula e seu partido, o PT.
produção permitem identificar essa similaridade de Percebe-se, pelo discurso produzido, que a FD aqui
formações ideológicas nos dois enunciados citados. presente é a mesma ou está muito próxima (na mes-
Importante observar que no grafo gerado o termo ma FI) da percebida nos dois primeiros tweets.
⁷ Os nomes dos usuários foram anonimizados, exceto quando se tratam de meios de comunicação e pessoas públicas (ou citadas
nos grafos).
Sumário
Outro posicionamento, porém, pode ser obser- Outro módulo que demonstra alto número de
vado em mais um tweet que cita o nome de Lula e retweets, representado em laranja, próximo ao cen-
que, pelos termos que o formam, é possível obser- tro do grafo, chama a atenção para outro tweet:
var como sendo o mais importante dentro do seu
@luizmuller: Miriam Dutra explode o mensalão
módulo (o grupo verde na esquerda do grafo): de FHC!
@usuário5: FHC e Miriam Dutra: ai, que sono.
Tá bom, petralhas do @Brasil247”e daí? Sendo O tweet acima mantém o discurso apresentado
verdade, Lula ficou MENOS ladrão, com isso? nos primeiros. Desta vez, o alvo é exclusivamente
FHC, fazendo referência ao mensalão realizado pelo
A formação discursiva presente neste tweet já PSDB. Interessante observar que a utilização do ter-
se mostra diferente dos citados anteriormente. Ini- mo mensalão é dotada de significados, afinal remete
cialmente, o usuário diminui a relevância do caso também ao escândalo de corrupção assim denomi-
Miriam Dutra e FHC. Em seguida, utiliza um termo nado descoberto durante o governo Lula, do PT. As-
característico de uma formação ideológica alinhada sim, evocar o mensalão de FHC significa não só cri-
com a direita em um pensamento mais conservador ticar o ex-presidente, mas também, de certa forma, 402
e de crítica direta ao PT: “petralhas”. Termo este que defender o PT e Lula. Assim, a FD aqui presente se
se refere ao veículo jornalístico Brasil 247 que, dife- aproxima da primeira verificada nos tweets citados
rente da Globo e da Folha, possui um alinhamento incialmente.
mais voltado para a esquerda. Por fim, ainda há a Outro termo que mostra tweets que produzem
afirmação de que Lula, agora sendo citado em um um discurso alinhado com esta mesma FD é “filho”,
cenário de crítica, é ladrão. Aqui se vê também, por aparecendo em tom irônico, assim como os relacio-
meio das condições de produção e do interdiscurso, nados a “Lula” (os dois termos, inclusive, aparecem
a retomada de discursos sobre Lula quando foi con- juntos no tweet do @usuário4).
vocado para depor sobre seu possível envolvimen-
to em um esquema de corrupção. Pode-se observar @usuário6: O Real e o filho da Miriam Dutra
não são obras do FHC. Mas ele assume como se
que Lula tem ligações com o módulo central (roxo) fosse dele.
e com o verde à esquerda do grafo, aparecendo, em
dois contextos.
Sumário
Assim como o que utiliza o termo “mensalão”, o No primeiro tweet, do @brasil247 (como já
tweet acima evoca elementos da memória discursi- dito, jornal com alinhamento de esquerda), Miriam
va, trazendo a relação entre FHC e o plano Real8. A é referida como “ex-amante”. Pela situação em que
afirmação do filho não ser de FHC se dá em decor- o caso teria ocorrido, com FCH casado, esta seria a
rência de exames de DNA que teriam sido realiza- referência natural. O que acontece, porém, é que al-
dos e provavam que FHC não era o pai. O discurso guns veículos começam a tratar Miriam Dutra pelo
que emana do tweet, mais uma vez, tem alinhamen- termo “ex-namorada”, como o @JornalDoBrasil.
to com uma FI contrária ao governo de FHC, que se A suavização do termo não é livre da evocação de
apropria da ironia para criticar o plano Real, princi- novos sentidos. O principal deles é o apagamento
pal conquista do seu governo, assim como o fato de da traição de FHC. Aqui não há o simples silêncio,
FHC pagar mesada por anos e tendo assumido um que é constitutivo do discurso para a AD. Há, sim,
filho que não seria seu. o silenciamento, como uma estratégia de censura
Dois termos podem ser observados para carac- (ORLANDI, 1995), que pretende apagar a traição
terizar as duas formações ideológicas identificadas cometida por FHC. A troca de “ex-amante” por “ex-
até o momento: “ex-amante” e “ex-namorada”: -namorada” é dotada de muitos sentidos. Isto parece 403
ser percebido pelo usuário @fernandocabral, posi-
@brasil247: Miriam Dutra detona FHC, Globo e
Mario Sergio Conti | ex-amante citou ainda ar-
cionando-se ideologicamente em uma FD que de-
mação de Veja fende o uso de ex-amante, critica quem usa o termo
ex-namorada. Além do Jornal do Brasil, também a
@JornaldoBrasil: FHC usou empresa para me Folha passa a usar “ex-namorada” em suas notícias,
mandar dinheiro no exterior, diz ex-namorada
Miriam Dutra
enquanto a UOL usa “ex-namorada” em uma notícia
e depois retorna ao termo “ex-amante”. Percebe-se
@fernandocabral: Miriam Dutra, a ex-amante que usuários que se referem a Miriam Dutra como
de FHC, vira “ex-namorada”. Se faz o que pode “ex-namorada” tendem a produzir o discurso de
para preservar a imagem de bom moço
uma mesma FD, que tenta defender FHC ou manter
os ataques ao PT. Ainda que não se possa afirmar
que a utilização de “ex-amante” faça parte de uma
⁸ Programa com o objetivo de estabilização e reformas econômicas, iniciado em 27 de fevereiro de 1994 com a publicação da
medida provisória número 434. Tal medida provisória instituiu a Unidade Real de Valor (URV), estabeleceu regras de conversão
e uso de valores monetários, iniciou a desindexação da economia, e determinou o lançamento de uma nova moeda, o Real.
Sumário
FD, há tendência de que a maioria dos usuários que vê uma mulher, militante e prefeita por um partido
se apropriam do termo acabem por estar mais pró- de esquerda, que faz questão de reforçar seu gênero,
ximos de uma mesma FD, que mantém o discurso de uma formação ideológica alinhada com o feminis-
crítica a FHC. mo, citando também o que possa ter passado Dona
Por suas contradições, é preciso destacar um Ruth, mas sem esquecer o sofrimento de Miriam
tweet central para um módulo, representado pela Dutra, como faz @Rosadecubatao
cor verde na parte alta do grafo, por ter tido alto O que se percebe neste enunciado, então é que
número de retweets: há uma aproximação da FD esperada, pela crítica a
FHC e o destaque da dor de Dona Ruth. Por outro
@Rosadecubatao: Como mulher sinto-me cho-
cada com as histórias contadas por Miriam Du-
lado, há certo rompimento quando Miriam Dutra é
tra. E imagino o quanto Dona Ruth deva ter so- colocada apenas como a origem do sofrimento de
frido nas mãos de FHC... Dona Ruth. Há aí uma contradição no posiciona-
mento de Miriam Dutra, que pretende produzir um
A usuária @Rosadecubatao é prefeita da cida- discurso feminista, mas acaba por reforçar a con-
de de Cubatão, interior paulista, pelo PT. De início, cepção genérica geralmente atribuída à mulher na 404
então, já é possível supor para quais das formações sociedade (BUTLER, 2003, p. 21). A ruptura com
ideológicas identificadas aqui ela tende, mantendo o discurso que @Rosadecubatao, acreditando ser
uma posição de ataque a FHC e seu partido. Outros dona do seu dizer, comete ao citar somente o sofri-
elementos de seu enunciado, porém, acabam enri- mento de uma das mulheres envolvida no caso traz
quecendo a análise. Inicialmente, @Rosadecubatao novos sentidos para o seu enunciado, de modo que,
se identifica “como mulher” e afirma estar “choca- ainda que se identifique, de maneira geral, com a FI
da” pelas declarações de Miriam Dutra. O choque, crítica a FHC, parece fugir em alguns aspectos do
porém, não está relacionado com os problemas que que é esperado por esta FI.
Miriam Dutra possa ter passado durante todo o tem- Entende-se, então, que o enunciado de @Rosa-
po em que não pode revelar a verdade, nem mesmo decubatao pode ser caracterizado como um enun-
aos abortos que diz ter sido obrigada a realizar, mas ciado dividido. Inicialmente definido por Courtine
ao “quanto Dona Ruth deva ter sofrido nas mãos de como “aquele caracterizado pelo uso contrastivo
FHC”. Dona Ruth, a quem é feito menção no tweet, da cópula de identificação ‘é/não é’” (CAZARIN,
era esposa de FHC na época que o ex-presidente se 2013, p. 365). Ainda que, em trabalhos realizados no
envolveu com Miriam Dutra. Espera-se, quando se Brasil, o conceito também seja utilizado para “de-
Sumário
monstrar a diferença e/ou divergência no interior ironia na paternidade do plano Real, na referência
de uma mesma FD” (CAZARIN, 2013, p. 365). As- ao mensalão de FCH e em algumas citações de Lula
sim, pode-se perceber no enunciado analisado como (especialmente quando se relacionavam ao esquema
que dois enunciados diferentes: a) “Como mulher de corrupção que pode estar envolvido – aqui tam-
[...] imagino o quanto Dona Ruth deva ter sofrido bém as condições de produção foram essenciais).
nas mãos de FHC...”, mantendo o posicionamento
da primeira FD aqui identificada; b) “Como mulher O QUE FICA?
sinto-me chocada com as histórias contadas por Mi-
riam Dutra [mas não me preocupo com sua posi- Como defendido desde o princípio deste estu-
ção de mulher na história]”, trazendo uma outra FD do, esta é uma proposta de análise. Talvez não possa
para o seu discurso, aquela que mantém atribuição ser encaixada dentro do modelo tradicional da AD
genérica à mulher. de Pêcheux, por suas especificidades, mas entende-
Em geral, o que se pode dizer é que são encon- -se que foi possível unir a AC, por meio da análi-
tradas no grafo duas formações ideológicas (ainda se de contingência, com a AD, de modo a realizar
que se possa discutir – e aqui é difícil chegar a uma uma análise dotada de particularidades, mas que 405
conclusão definitiva – quantas formações discursi- mostra também resultados relevantes para um en-
vas estão presentes dentro destas duas formações tendimento do contexto social sobre o caso Miriam
ideológicas), a mais extensa com alinhamento es- Dutra e FHC, quais os posicionamentos adotados e
querdista representada pelos módulos roxo (ainda que formações ideológicas (e discursivas) aparecem
que este, por ser mais generalizado, possua cone- em um cenário interdiscursivo.
xões com o módulo da outra formação ideológica), Parece possível, em um estudo que permita isto
laranja, azul e verde da parte superior do grafo (este (até mesmo em extensão), realizar análises mais
com, importante destacar, a contradição cometida aprofundadas de cada um dos tweets, buscando
por @Rosadecubatao); enquanto a menor, que re- mais referências e se apropriando de mais conceitos
presenta um posicionamento alinhado com a direi- da AD. Para a proposta aqui apresentada, porém, foi
ta política, pode ser identificada pelo módulo verde preciso realizar uma análise mais generalizada. Ain-
posicionado na parte esquerda do grafo. da assim, entende-se que os resultados encontrados
Também parece importante destacar que alguns apresentam riqueza no contexto onde se situam.
sentidos só puderam ser compreendidos quando Sendo assim, para gerar uma espécie de conclu-
pensados em conjunto com o interdiscurso, como a são deste estudo, ainda que esteja aberto para novas
Sumário
choices of the enunciator subject, and the discour- teórico que define a relação e a diferenciação entre
sives strategies used by him, influence in the inter- discurso e texto, e conceitos de Patrick Charaude-
pretation of the recipient subject to read the news au2 acerca de sua produção no que tange a teoria
and in your perception about the occurred fact. semiolinguística do texto e do discurso, o contrato
Keywords: Captation. Credibility. Discourse. Me- de comunicação estabelecido entre os participantes
dia. News. dos atos de comunicação e as estratégias e níveis
discursivos existentes nesse contrato, e no que se
refere ao discurso das mídias é descrito o conceito
CONSIDERAÇÕES INICIAIS de informação como ato discursivo e também o con-
trato que nela é estabelecido.
O discurso midiático está cada vez mais pre- Como corpus de análise é utilizada a notícia
sente no cotidiano das pessoas através dos mais va- “Casal é atropelado durante racha no bairro Moi-
riados meios, e para que os objetivos interacionais nhos de Vento” (em anexo), texto publicado na pá-
propostos pelos veículos de comunicação sejam gina policial do jornal Zero Hora, em sua versão
alcançados com êxito, são necessárias estratégias online, a respeito de um acidente de trânsito. A fim 409
específicas e inerentes a cada situação de comuni- de compreender as estratégias utilizadas pelo veí-
cação. Diante disso, esse estudo é motivado a partir culo de comunicação analisado, são aqui analisados,
da investigação dessas estratégias para que se possa através de uma abordagem qualitativa e explorató-
analisá-las e concluir sob quais métodos as instân- ria, termos e expressões em destaque no corpo do
cias midiáticas tem se detido. texto, que estão fundamentados no princípio da in-
A problemática dessa pesquisa consiste na in- fluência e na ideia da representação de palavras que
dagação acerca da forma com que as mídias conci- produzem emoções como efeitos discursivos.
liam a captação do destinatário e a credibilidade da
informação transmitida a ele, e que estratégias dis- PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
cursivas são utilizadas para mobilizar interesse pela
notícia analisada. A fim de que se possa compreen- Ao referir-se ao discurso é fundamental a com-
der tais estratégias apresenta-se aqui um percurso preensão de que ele não deve ser reduzido à mani-
² Como base teórica o presente estudo fundamenta-se na Teoria Semiolinguística do Texto e do Discurso (2005), no livro Dis-
curso das Mídias (2006), e no artigo. As emoções como efeito de discurso (2011), ambos descritos pelo teórico francês em análise
do discurso Patrick Charaudeau.
Sumário
festação verbal de uma língua, embora seja através A teoria semiolinguística do texto e do discurso
dela que ele exista, crie efeito e se modifique, pois a
língua é a manifestação da linguagem, “é um todo Todo discurso está relacionado aos saberes par-
por si e um princípio de classificação” (SAUSSURE, tilhados em uma sociedade e se constitui em um du-
2012, p.41), ou seja, a língua permite que sua classifi- plo espaço: o espaço externo, onde estão situadas as
cação seja feita a partir dela mesma, enquanto o dis- convenções e identidades psicossociais dos sujeitos
curso é inerente ao comportamento e as combina- inseridos no ato de linguagem, e o espaço interno,
ções que possam provir dessa língua quando ela está onde as convenções discursivas estão localizadas, e
em uso. No entanto, Saussure (2004, p. 237), afirma é na articulação desses dois espaços que a significa-
que “a língua só é criada em vista do discurso”. ção discursiva é construída. (CHARAUDEAU, 2007).
O discurso assinala como lugar de estruturação Dessa forma, a teoria semiolinguística do texto e do
na linguagem o seu “uso em funções das condições discurso, proposta por Patrick Charaudeau, insere o
de produção nas quais esses usos se manifestam, discurso em uma problemática que estabelece uma
relacionados a comportamentos linguageiros dos relação entre os fatos da linguagem e alguns fenô-
sujeitos falantes, e categorização de sentido relacio- menos psicológicos e sociais, como a ação e a in- 410
nadas a sistemas de conhecimento e de crença aos fluência, buscando compreender o sujeito enquan-
quais aderem indivíduos ou grupos sociais” (CHA- to um ser psico-sócio-linguageiro, sendo, portanto,
RAUDEAU, 2011). uma teoria interdisciplinar.
Outro aspecto crucial em relação ao discurso é A referida teoria concebe como seu objeto de
reconhecer que ele não deve ser confundido com o estudo o fenômeno do ato de linguagem, sendo fun-
texto, pois este representa a materialização do ato de damentado pelos saberes que são acionados pelos
linguagem, é o produto de um processo de produção sujeitos durante os processos de produção e inter-
particular, enquanto o discurso ultrapassa esse pro- pretação desse ato, que podem gerar a eles senti-
cesso, visto que só passa a existir em uma relação dos não previstos, uma vez que, como é baseada em
de troca entre os sujeitos da linguagem. Conforme uma dimensão social e psicossocial, os sujeitos di-
afirmação de Charaudeau (2011b), “o discurso não é ferem nas suas percepções de mundo e de crenças,
o texto, mas é carreado por textos. O discurso é um ocasionando então diferentes significações.
percurso de significância que se acha inscrito num O termo semiolinguística baseia-se na constru-
texto, e que depende de suas condições de produção ção das formas e dos sentidos gerados na lingua-
e dos locutores que o produzem e interpretam”. gem, sob a responsabilidade de um sujeito com um
Sumário
projeto de influência social nas mais diversas situ- Já o processo de transação está baseado em
ações discursivas, analisando a situação verbal e si- quatro princípios relacionados diretamente à inten-
tuacional, e para que se possa construir o sentido, o cionalidade de cada situação comunicativa, sendo
sujeito precisa realizar o procedimento denominado eles: o princípio da alteridade, que é o fundamento
por Charaudeau (2007, p. 13) como semiotização do do aspecto contratual de todo ato de comunicação,
mundo. A semiotização relaciona entre si as ques- pois implica um reconhecimento e uma legitima-
tões da linguagem, tanto do ponto de vista interno ção recíprocos dos parceiros entre si; o princípio da
(da construção de sentido), quando do externo (da pertinência, onde os parceiros do ato de linguagem
influência social) instituindo um duplo processo, devem poder reconhecer os universos de referência
sendo eles: que constituem o objeto de transação linguageira; o
princípio da regulação, que faz parte daquilo que os
o processo de transformação, que parte de um
“mundo a significar”, transformando-o em um
parceiros sabem a respeito do ato de linguagem que
“mundo significado” através da ação de um su- participam; e, para finalizar, o princípio da influên-
jeito falante; e o processo de transação, que faz cia, em que o sujeito que visa atingir o seu parceiro,
do “mundo significado” um objeto de troca com seja para fazê-lo agir, seja para afetá-lo emocional-
outro sujeito que assume o papel de destinatário 411
desse objeto. (CHARAUDEAU, 2007, p.14).
mente, seja para orientar seu pensamento. (CHA-
RAUDEAU, 2007, p. 15-16).
O processo de transformação compreende qua- Ambos os processos se realizam através de pro-
tro tipos de operações de ordem linguageira que cedimentos diferentes, porém, complementam-se ao
transformam os seres em: identidades nominais, passo em que o sujeito necessita compreender as si-
através da operação de identificação; em identidades tuações discursivas em que está inserido, buscando
descritivas, sob a perspectiva da operação de qua- reconhecer o sentido comunicativo de cada situa-
lificação; em identidades narrativas, sob o viés da ção. Para que ocorram tais operações e consequen-
operação de ação; ou ainda estabelecem relações de temente a devida compreensão, o processo de trans-
causalidade a partir da sucessão de fatos do mundo, formação e o processo transação inserem o sujeito
denominada operação de causação. (CHARAUDE- no que Charaudeau define como um “contrato de
AU, 2007, p. 14). comunicação”, que será discutido na próxima seção.
Sumário
Conforme Charaudeau (2012, p. 56), “a noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a
um mesmo corpo de práticas sociais estejam suscetíveis a um acordo sobre as representações linguageiras
dessas práticas sociais” em uma relação de implícitos e explícitos acerca das mais variadas manifestações e
sobre os sentidos possíveis de serem atribuídos a cada uma delas, sendo que, toda essa relação, vai depender
do processo de produção e de interpretação entre os sujeitos protagonistas do ato linguageiro.
A teoria semiolinguística entende o ato de linguagem como o encontro de dois processos que envolvem
quatro sujeitos responsáveis pelos processos de produção e interpretação do discurso, a partir de um duplo
circuito de produção de saber, sendo um interno e o outro externo.
No circuito interno estão situados os seres de fala pertencentes ao espaço do “dizer”, aqueles que estão
diretamente ligados às representações linguageiras das práticas sociais, sendo eles: o sujeito enunciador
(EUe) – ser sempre presente no ato da linguagem, uma imagem do enunciador construída pelo sujeito pro-
dutor da fala, representa seu traço de “intencionalidade” e é o responsável pelos “efeitos de discurso” no ato
de produção –, e o sujeito destinatário (TUd) – é o interlocutor fabricado pelo EU como destinatário ideal 412
para o seu ato de produção.
O circuito externo está ligado ao conhecimento da organização do “real” (psicossocial), no âmbito do
fazer, que sobredetermina o sujeito comunicante (EUc) – sujeito produtor da fala, responsável pelo ato da
produção – e o sujeito interpretante (TUi) – sujeito responsável pelo processo de interpretação, que age in-
dependentemente do processo de produção do EU. (CHARAUDEAU, 2012).
Na figura 1 é demonstrado o esquema de representação em que o ato de linguagem e os sujeitos se re-
lacionam:
Sumário
413
O sujeito produtor do ato de linguagem (EUc) tem como aspecto intencional atingir seu parceiro, seja
para fazê-lo agir de maneira específica a sua vontade, seja para emocioná-lo, fazê-lo acreditar em seu dis-
curso ou até mesmo orientar seu pensamento, levando-o a uma problemática de influência, mas para que
o sujeito comunicante alcance o seu objetivo discursivo em relação ao seu destinatário é necessário que o
mesmo utilize determinadas estratégias discursivas. Segundo Charaudeau (2012, p.56),
a noção de estratégia repousa na hipótese de que o sujeito comunicante (EUc) concebe, organiza e encena suas
intenções de forma a produzir determinados efeitos – de persuasão ou sedução – sobre o sujeito interpretante
(TUi), para levá-lo a se identificar – de modo consciente ou não – com o sujeito ideal (TUd) construído pelo EUc.
Sumário
Toda estratégia discursiva acarreta uma situa- portamentos linguageiros em função das condições
ção de troca e também de restrições entre os sujei- psicossociais que os restringem segundo os tipos de
tos protagonistas do ato de linguagem que condi- situação de troca (os contratos)” (CHARAUDEAU,
cionam as práticas sócio-linguageiras. Conforme a 2007, p. 20), dessa forma, todo discurso que consti-
intencionalidade de produzir significações a partir tui um objeto de análise sob a perspectiva da semio-
da interdependência de um espaço interno e de um linguística deve ser questionado quanto a descrição
espaço externo, Charaudeau (2007, p. 18 e 19) pro- dos comportamentos linguageiros do indivíduo pe-
põe três níveis para o modelo de análise do discur- rante à sociedade, quanto aos procedimentos dis-
so, na perspectiva da semiolinguística, sendo eles: cursivos empregados para a construção dos senti-
o nível do situacional, que desempenha e res- dos que poderão ocasionar, e também em relação à
ponde aos dados externos da situação de comuni- sua configuração textual, para tentar descrever os
cação, e constitui o espaço das restrições do ato de traços que o caracterizam. Todas essas questões po-
linguagem. É onde estão determinados: a finalidade dem ser analisadas nos discursos vinculados à mí-
do ato de linguagem, a identidade dos parceiros da dia, apresentados por veículos de comunicação.
troca, o domínio do saber, veiculado pelo objeto da 414
troca e o dispositivo, que determinam as condições A informação como ato discursivo e o contrato nela
da comunicação, as circunstâncias materiais da tro- estabelecido
ca em que o ato linguageiro de realiza.
o nível do comunicacional, refere-se ao lugar Conforme definição de Charaudeau (2015), “a
onde estão determinadas as maneiras de falar e es- informação é, numa definição empírica, a transmis-
crever e corresponde às diferentes “maneiras de di- são de um saber, com a ajuda de uma determinada
zer”, o “como se diz”. linguagem, por alguém que o possui a alguém que
c) o nível discursivo, corresponde ao lugar de in- se presume não possuí-lo” (p. 33), sendo assim, a in-
tervenção do sujeito falante, enquanto sujeito enun- formação constitui-se como um ato discursivo que
ciador, considerando a legitimidade (princípio da al- tem como finalidade comunicar um conhecimento
teridade), a credibilidade (princípio da pertinência) e que é privado a um só ser, ou a um determinado
a captação (princípio de influência e de regulação), grupo de pessoas, e então propagado aos que ainda
dos “atos de discurso” que formarão um texto. não o detém.
O objetivo principal da análise do discurso A informação enquanto ato discursivo consti-
“consiste em destacar as características dos com- tui-se de condições externas, situadas no campo das
Sumário
práticas sociais e constituídas pelas regularidades A informação midiática tem como finalidade
comportamentais dos indivíduos, e condições in- noticiar ao público algo que aconteceu ou está acon-
ternas, as propriamente discursivas, para que possa tecendo no mundo da vida social, utilizando dois ti-
produzir sentido, sentido este que só é possível ob- pos de atividades linguageiras: uma que reporta o
ter através da ação linguageira dos sujeitos quando fato (descrição-narração) e outra que esclarece as
postos em uma relação de troca social e pelo pro- causas e as consequências do surgimento desse fato
cesso de transformação e de transição do conheci- (explicação), se inserindo em uma problemática re-
mento. O processo de transição é inerente ao ato de lacionada com a verdade, ou mais especificamente
informar, visto que este com as condições de veracidade, esta que está dire-
tamente ligada a maneira como o fato é informado,
faz circular entre os parceiros um objeto de sa-
ber que, em princípio, um possui e o outro não,
autenticando o acontecimento, fornecendo provas,
estando um deles encarregado de transmitir e o descrevendo-o de maneira verossímil, sugerindo
outro de receber, compreender, interpretar, so- as causas e explicando-as. Dessa forma, “as mídias
frendo ao mesmo tempo uma modificação com estão em um confronto permanente com um pro-
relação a seu estado inicial de conhecimento
(CHARAUDEAU, 2015, p. 41).
blema de credibilidade, porque baseiam sua legitimi- 415
dade no “fazer crer que o dito é verdadeiro”. (CHA-
Uma informação é transmitida como uma re- RAUDEAU, 2015, p. 90).
presentação de fatos reais, como um produtor de Não apenas limitando ao âmbito da credibili-
imagens mentais, estas derivadas de um discurso dade, da representação da informação como sendo
que pode afetar a forma com que o indivíduo perce- verídica, as instâncias midiáticas precisam também
be e constrói sua significação sobre o acontecimen- conquistar o público a que informa, buscando o
to que está sendo relatado. Dessa forma, o princípio maior número de pessoas que consumam suas in-
de influência pertencente ao processo de transação formações, através da visada de captação, e para que
da teoria semiolinguística é o princípio que percor- isso ocorra a mídia acha-se “ “condenada” a procu-
re todos os atos de linguagem utilizando determina- rar emocionar seu público, a mobilizar sua afetivi-
das visadas e refere-se não somente ao informar o dade, a fim de desencadear o interesse e a paixão
acontecimento (fazer saber), mas também à persua- pela informação que lhe é transmitida” (CHARAU-
são (fazer crer), e ao emocional (fazer sentir). (CHA- DEAU, 2015, p. 91). Para satisfazer o princípio da
RAUDEAU, 2015) emoção “a instância midiática deve proceder a uma
encenação sutil do discurso de informação, basean-
Sumário
do-se ao mesmo tempo, nos apelos emocionais que página policial online do veículo de comunicação
prevalecem em cada comunidade sociocultural e no em questão.
conhecimento dos universos de crença que aí circu- “A análise do discurso tem trabalhado, de prefe-
lam”. (CHARAUDEAU, 2015, p. 91). rência, com a hipótese de que a força da linguagem
Para que se concretize o objetivo das visadas se encontra mais no que dizem as palavras do que
de captação e credibilidade é necessário que os par- naquilo que elas transmitem ao serem ditas. ” Com
ceiros da comunicação estabeleçam um contrato, base nessa afirmação de Charaudeau (2011a), reali-
este que Charaudeau (2015, p. 67) definiu como um za-se aqui uma análise pela semiolinguística, bem
contrato de informação midiático, que deve levar em como a exploração de palavras e expressões em des-
conta certos dados da situação de comunicação ob- taque no corpo do texto que estão fundamentadas
tidas através das práticas sociolinguageiras, visto no princípio da influência e na ideia da representa-
que “não somente todo locutor deve submeter-se ção de palavras que produzem emoções como efei-
às suas restrições [...], mas também deve supor que tos discursivos.
seu interlocutor, ou destinatário, tem a capacidade Para atingir os objetivos propostos serão utili-
de reconhecer essas mesmas restrições”, conside- zados na análise os seguintes procedimentos: 416
rando também que toda troca linguageira se realiza a) análise semiolinguística descrevendo o pro-
num quadro de cointencionalidade que o sujeito que cesso de transformação, através da identifica-
comunica tem perante seu parceiro. ção, da qualificação, da ação e da causação do
fato ocorrido na notícia em questão e dos su-
PROCEDIMENTOS TEÓRICO- jeitos nela envolvidos;
METODOLÓGICOS UTILIZADOS NA b) como acontece o contrato de informação mi-
ANÁLISE diático entre os parceiros EUc e TUi, consi-
derando as estratégias decorrentes do nível
O presente estudo, de caráter qualitativo e ex- situacional de troca, decorrentes dos dados
ploratório, tem como objetivo discutir como o jor- externos obtidos em uma situação de comu-
nal Zero Hora concilia a captação do destinatário e a nicação, sendo eles: a identidade dos prota-
credibilidade da informação transmitida a ele, e que gonistas desta troca, a finalidade do ato lin-
estratégias discursivas são utilizadas para mobilizar guageiro, o propósito em que ele se dá e o
interesse pela notícia “Casal é atropelado durante dispositivo em que está inserida a situação de
racha no bairro Moinhos de Vento”, publicado na comunicação;
Sumário
c) com base no processo de transação da teoria Cruz Perrone (linha 11) e que o bairro Moinho de
semiolinguística será realizado um estudo Vento, também conhecido como Parcão, localiza-se
acerca do princípio da influência, constatan- na cidade de Porto Alegre (linha 6). Após identificar
do a maneira utilizada pelas instâncias midiá- os seres envolvidos no acidente há qualificação des-
ticas para influenciar seu público e como sua tes, ou seja, são especificadas as características des-
informação transmite veracidade, baseado na tes seres, sendo o Audi A5 um carro branco (linha 7),
visada da credibilidade; o rapaz tendo 25 anos, e a moça 24 anos (linha 11).
d) a importância e o impacto causado pelas pa- A ação acontece quando é explicitado o que
lavras e por expressões que causam efeito de aconteceu, podendo ser observado na linha 4, a in-
emoção, visando a captação do destinatário. formação de que “um carro que estaria participan-
do de um racha teria provocado o atropelamento de
ANÁLISE DO CORPUS um casal de namorados”, pois ele “estaria fazendo
racha quando colidiu com um táxi” (linhas 7 e 8) e
Considerando que “o discurso necessita de o taxista – que tem como identificação ser Marco
uma configuração textual para significar” e que Veríssimo Gautério, e como qualificação possuir 41 417
“um corpus só possa ser formado por textos e não anos (linha 15) – “colidiu contra um Peugeot 206
por discursos” (CHARAUDEAU, 2011a), o presente que estava estacionado e, com a força do impacto,
trabalho tem como corpus de análise o texto “Casal o carro foi jogado para a calçada, atropelando o ca-
é atropelado durante racha no bairro Moinhos de sal” (linhas 9 e 10). Finalizando o processo de trans-
Vento”, pertencente ao gênero textual notícia, que formação do mundo a significar tem-se a causação,
foi veiculado pelo jornal Zero Hora em sua página esta que expõe os motivos pelos quais aconteceu
online, e publicado no dia 02 de abril de 2016. determinado fato, sendo eles a ocorrência de que “o
Através da transformação constitutiva da teo- Audi e o outro carro [...] vinham em alta velocidade
ria semiolinguística, o mundo a significar obtido ao e teriam furado o sinal vermelho da sinaleira” (li-
se ter conhecimento do ocorrido apenas através do nhas 15 e 16).
título, torna-se um mundo significado no momento O contrato de comunicação entre os parceiros
em que há a identificação do carro que estava prati- EUc e TUi é caracterizado por um conjunto de res-
cando o racha, sendo ele um Audi A5 (linha 7), bem trições condicionantes por saberes partilhados das
como a identificação do casal que foi atropelado, práticas sócio-linguageiras e dos atos de linguagem.
sendo as vítimas: Thomaz Attilio Colleti e Rafaela Aqui são encontrados a partir da identidade dos par-
Sumário
ceiros engajados nesse ato de linguagem, de um lado, localizam. Assim segue com outros exemplos, como
o EUc, sendo este o jornal Zero Hora, e de outro, o a referência ao Hospital Cristo Redentor (linha 12) e
TUi, sujeito que se interessa pela notícia ou encon- ao Hospital de Pronto Socorro (linha 13).
tra pertinência no que lhe está sendo informado. O dispositivo diz respeito a condição material
A finalidade desse ato de linguagem encontra- de produção do ato de comunicação, que nesse caso
-se no objetivo que o EUc tem em informar o TUi situa-se na página online do EUc, que permite que o
sobre um acidente de trânsito ocorrido na capital TUi possa ter acesso e contato com a informação de
gaúcha, envolvendo mais de um automóvel no atro- qualquer ambiente físico em que ele se ocupe per-
pelamento de um casal que estava passeando em um mitindo assim, maior aproximação com o EUc.
parque, ressaltando e denunciando – mesmo que Encaminhando-se ao foco principal de análise
implicitamente – os perigos causados pela prática desse estudo, que possui como objetivo identificar
dos rachas. Segundo Charaudeau (2015), toda fina- as visadas de credibilidade e de captação realizadas
lidade incorpora uma intencionalidade, utilizando pelas mídias, cabe ressaltar que tal problemática se
determinadas visadas para que essas intenções dis- coloca no que Charaudeau (2011a) define como uma
cursivas do EUc atinjam com êxito a percepção do articulação, que “de um lado, remete o discurso do 418
TUi sobre o fato ocorrido, visadas estas que serão ponto de vista dos valores, e do outro lado, os efei-
analisadas posteriormente. tos que os discursos são capazes de produzir. ” Sen-
O propósito encontra-se no domínio do saber do assim, serão aqui analisados o modo e o intuito
que o EUc julga que o TUi possua. Pode-se obser- que o EUc tem de influenciar a percepção do TUi
var tal categoria inicialmente no título, momento em sobre o fato ocorrido através de emoções ligadas ao
que o EUc tende a mobilizar uma série de discur- conhecimento de crença, estas que “são formadas
sos que não estão ditos explicitamente, mas que ele por um conhecimento polarizado em torno dos va-
acredita que o seu parceiro de troca desta situação lores socialmente compartilhados” (CHARAUDE-
comunicacional desfrute de tal conhecimento, como AU, 2011b), e das estratégias utilizadas para desper-
por exemplo, saber que a prática de rachas é perigo- tar tal significação.
sa e onde fica o bairro Moinho de Vento, bem como, Sabe-se que o processo de transação consiste em
nas linhas 8 e 9, quando são citadas as ruas Olavo um ato de linguagem que tem como função dar uma
Barreto Viana, 24 de Outubro e Avenida Goethe, lo- significação psicossocial a este ato, e aqui será ana-
cais onde os veículos envolvidos no acidente se cho- lisado o princípio de influência que deriva de tal pro-
caram, o EUc pressupõe que o TUi saiba onde elas se cesso. Através do princípio da influência o TUi entra
Sumário
no universo do EUc, este que por sua vez, tem como ocasionado pela referida prática que é considerada
intuito informar, provocar emoções e até mesmo ilegal3. Para fornecer provas e garantir a inteligibi-
orientar os pensamentos de seu parceiro de troca. lidade da transgressão do motorista explicita-se nas
Considerando as marcas existentes no corpus linhas 29 e 30 que através dos elementos já reco-
de análise a partir do referido processo percebe-se lhidos pela polícia sobre o caso, o mesmo “trata-se
o intuito do EUc em convencer o TUi dos riscos e de lesão corporal culposa (sem intenção) e fuga do
perigos causados pelos rachas, as consequências da- local, que pode ser para escapar do flagrante ou até
nosas causadas tanto aos praticantes quanto às víti- mesmo por estar embriagado”.
mas desta prática, e também sobre a possível culpa- Para que o EUc consiga convencer o TUi sobre
bilidade do motorista do Audi A5 acerca da tragédia o que informa são usadas estratégias que confir-
ocorrida. Tal afirmação pode ser constatada no mo- mam a veracidade do acontecimento transmitindo
mento em que se percebe que o casal, suposto sujei- a credibilidade da informação, como por exemplo, o
to protagonista visto que a ele que se refere o título, testemunho do taxista (linhas 15 e 16), mesmo que
é praticamente anulado no corpo do texto, sendo re- em discurso indireto, e os depoimentos do delegado
ferido apenas em dois momentos, no parágrafo que Gabriel Bicca (linhas 21 a 26; 29 e 30), estes trans- 419
se inicia na linha 11, quando se identifica o nome e critos tanto em discurso indireto como também em
a idade do casal, e, após, na linha 32, quando é rea- discurso direto, a respeito do acidente e das situa-
lizado um breve comentário a respeito do cachorro ções em que se encontravam o carro e o motorista
que os acompanhava, dando lugar a extensos co- no momento do acidente, e também após o ocorrido.
mentários sobre o motorista do veículo Audi A5 que Como recursos extralinguísticos, que confir-
estava disputando o racha e sobre acontecimentos mam a veracidade da informação, encontram-se na
com relação a ele. página online em que foi divulgada a notícia oito
Os recorrentes comentários a respeito do moto- imagens e um vídeo demonstrando a gravidade do
rista – cujo nome não é divulgado – e sobre a gra- acidente e os prejuízos e danos materiais causados
vidade do acidente que este ocasionou, bem como aos veículos envolvidos, assim como ao estado de
o descaso do outro motorista também participante saúde do casal que foi atropelado e do “passageiro
do racha que “teria fugido” (linha 18) do local, in- que estava no carro que também ficou ferido” (li-
fluenciam na percepção do TUi quanto ao malefício nhas 17 e 18).
Outro aspecto que garante a credibilidade da provocar no outro um estado agradável ou desagra-
informação é o espaço temporal entre o momento dável”. (CHARAUDEAU, 2015, p. 69)
do acidente e o momento em que a notícia foi divul- Na linha 16, através do testemunho do taxista,
gada. O acidente ocorreu no dia 02 de abril de 2016 salienta-se na forma grafada em negrito o fato de
“por volta das 4h” (linha 6), e no mesmo dia, pouco que o motorista que estava disputando o racha es-
tempo depois, às 5h:54min4, a notícia já estava dis- tava dirigindo em “alta velocidade”, ato este que é
ponível para acesso. proibido e infracional, principalmente em ruas den-
No âmbito da visada de captação do destinatário tro da cidade. Após, na linha 17, tem-se a ocorrência
o EUc recorre ao desafio da dramatização, utilizando da expressão “fugiu a pé”, também grafada em ne-
na notícia palavras e expressões que representam e grito, denunciando a indiferença do motorista ante
causam efeito de emoção ao TUi. Sempre que uma o acidente que ocasionou. Conforme Charaudeau
informação utilizar representações emocionais esta (2011b), “estas declarações são como mini histórias
que descrevem os seres e as cenas da vida, fragmen-
descreve uma situação sobre a qual um juízo de
valor, compartilhado coletivamente e, portanto,
tos narrados do mundo que revelam sempre o ponto
estabelecido como uma norma social, diz que de vista de um sujeito”, nesse caso, o ponto de vista 420
esta situação é comovente: um acidente de trân- que o EUc quer transmitir ao TUi.
sito é uma situação que a qual pode represen- Outro fato que ocasiona compadecimento ao
tar vítimas, que pela norma social nos diz que
as pessoas estão sofrendo e precisam capturar a
ocorrido é a reincidência da menção ao cachorro
nossa compaixão. (CHARAUDEAU, 2011b). que estava com o casal em dois momentos do texto,
visto que animais são geralmente benquistos, e que
Certas palavras e expressão em destaque no este acabou ficando desamparado e sozinho no mo-
corpo do texto contribuem na percepção do TUi mento em que seus donos foram levados para hos-
para que se julgue a atitude do motorista como le- pitais, porém ele “foi encontrado no local após o aci-
siva, e até mesmo negligente, fazendo com que este dente e recolhido pelo veterinário da família” (linha
se compadeça com a situação do casal que sofreu a 32). Esta ocorrência baseia-se na asserção que “há
atrocidade, atitude que recai na estratégia da visada declarações que não incluem palavras emocionais
do páthos5 que “consiste em “fazer sentir”, ou seja, e, no entanto, são suscetíveis de produzir efeitos
emocionais a partir do momento em que estamos cursivas, podem, assim, influenciar o outro e fazê-lo
conscientes da situação da enunciação” (CHARAU- crer na informação que lhe está sendo transmitida.
DEAU, 2011b).
Diante da indagação acerca da forma com que ARISTÓTELES, Rhétorique. Paris: Librairie Générale Fran-
as instâncias midiáticas conciliam a captação do çaise, 1991.
destinatário e a credibilidade da informação trans- BRASIL, Código de Trânsito Brasileiro. Alteração de
mitida a ele, e que estratégias discursivas são utiliza- artigos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997. Dispo-
das para mobilizar interesse pela notícia analisada, nível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
concluiu-se que as estratégias inerentes ao princípio 2014/2014/lei/l12971.htm> Acesso em 20 jun. 2016
de influência que buscam informar o acontecimento
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução
(fazer saber), persuadir (fazer crer) e emocionar (fa-
de Angela M. S. Corrêa. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2015.
zer sentir) influenciam na interpretação do sujeito
421
destinatário ao ler o texto e em sua percepção sobre ______. Dize-me qual é teu corpus, eu te direi qual é a tua
o fato ocorrido. problemática. In: Revista Diadorim / Revista de Estudos
A pesquisa revelou também que as escolhas Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em
lexicais do sujeito enunciador (EUe) e as estraté- Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Volume 10, Dez. 2011a. Disponível em <http://www.patri-
gias discursivas por ele utilizadas são fundamentais ck-charaudeau.com/Dize-me-qual-e-teu-corpus-eu-te.html>
na intenção de influenciar o seu destinatário-alvo Acesso em 18 maio 2016
(TUd), principalmente no que diz respeito às es-
tratégias que visam o emocional e a veracidade do ______. Las emociones como efectos de discurso. Revista
acontecimento, demonstrada através de depoimen- Versión, n° 26, 2011b. La experiencia emocional y sus razo-
nes. UAM, México. p. 97-118. Disponível em <http://www.
tos e testemunhos.
patrick-charaudeau.com/Las-emociones-como-efectos-de.
Para finalizar, cabe ressaltar a afirmação de Pa- html> Acesso em: 20 maio 2016
trick Charaudeau (2015, p. 39), quando ratifica que
não basta a escolha dos conteúdos que serão trans- ______. L’argumentation dans une problématique d’in-
mitidos, nem somente a escolha das formas adequa- fluence. Disponível em <http://aad.revues.org/193> Acesso
das do falar bem e do ter clareza, mas que a escolha em: 01 jun. 2016
dos efeitos de sentido e das corretas estratégias dis-
Sumário
ANEXO
1
Doutora em Educação. Docente pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, da
Universidade Feevale/RS.
¹ Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, da Universidade Feevale/
RS. Contato: psigislaine@gmail.com
² Administradora. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, da Universidade Feev-
ale/RS. Contato: silviazuffo@feevale.br
Sumário
the fifth country in the world where more women jovem esse debate assume significado ainda maior
kill themselves. Faced with this reality, this article porque os sujeitos estão desenvolvendo seus pro-
presents an initial approach of a study directed to jetos de futuro, suas perspectivas de vida pessoal e
a group of adolescent participants of the Fishing profissional. Dentro disso, a maneira como irão se
Sulgás unit project, aiming to analyze the represen- relacionar com as pessoas, inclusive com sua famí-
tations of young people facing gender violence in lia e colegas precisa ser submetida a uma reflexão
Brazilian society. the approach of participant obser- mais rigorosa a respeito do tema da violência. Nesse
vation aimed to know the representations was used. sentido, no âmbito do Projeto Pescar vimos desen-
The results point to a representation of women as volvendo ações que visam abordar diversos temáti-
objects of desire and target of male power, it is a cas de relevância social, dentre as quais, a violência
representation of total submission. And a woman of e, em especial a violência contra a mulher.
representation linked to the present, where it con- O Projeto Pescar atua há 40 anos diretamente
quers his professional space and have greater auto- com jovens em situação de vulnerabilidade social,
nomy. However, the group proved to be in doubt as na faixa etária de 16 a 19 anos. Presente em diver-
to its representation of gender equality and relates sos estados brasileiros, bem como na Argentina, 425
more freedom of personal choices by young women Peru, Paraguai e África busca a inclusão social do
in early pregnancy, indicating a social representa- jovem através do investimento em seu desenvolvi-
tion linked to patriarchal values. It is suggested ex- mento pessoal e cidadania, juntamente com aper-
tension studies targeted at young people focused on feiçoamento profissional. No município de Canoas,
the theme of violence. Rio Grande do Sul, Brasil, existem três unidades do
Keywords: Violence. Youth representation. Gender Projeto Pescar, sendo uma delas na Companhia de
violence. Gás do Rio Grande do Sul (SULGÁS), local onde a
presente experiência foi realizada, por meio de ob-
servações participantes, junto ao grupo de jovens
INTRODUÇÃO integrantes da nona turma do projeto.
A observação participante constitui uma meto-
Tendo em vista a permanência histórica da vio- dologia de pesquisa nascida no campo da investiga-
lência contra mulher, o debate sobre a temática ge- ção antropológica que nos permite tomar diferentes
ralmente volta-se para diversos segmentos sociais contextos sociais como referência empírica para a
no intuito de eliminar essa prática. Com o público elaboração de estudos sistematizados. Originalmen-
Sumário
te, a observação participante foi sistematizada por tica estava prevista no plano de trabalho para, então
Malinowski (1978), a partir da ideia de que somente proceder-se à análise das representações dos jovens
por meio da imersão no cotidiano de uma dada re- frente à violência de gênero na sociedade brasileira.
alidade seria possível obter-se o ponto de vista do A Representação Social constitui uma aborda-
“nativo” da situação estudada. gem recorrente nos estudos desenvolvidos no cam-
Trata-se de uma ferramenta de investigação que po das Ciências Humanas, porque designa um con-
pode ser acoplada às rotinas das práticas de trabalho ceito relativo à forma como os sujeitos interpretam
dentro dos mais diferentes grupos sociais. Nesse sen- e pensam a realidade cotidiana. De acordo com Sêga
tido, é possível estabelecer uma adequada compati- (2000, p.128), Representação Social é “uma forma de
bilização entre a condição de participação enquanto conhecimento da atividade mental desenvolvida pe-
coordenador de grupos, por exemplo, e, ao mesmo los indivíduos e pelos grupos para fixar suas posi-
tempo, como pesquisador, garantindo-se uma signi- ções em relação a situações, eventos, objetos e co-
ficativa redução da estranheza recíproca entre inte- municações que lhes concernem”. Destacando que
grantes dos grupos e coordenadores/pesquisadores. segundo Jodelet (2009) as opiniões e considerações
Isto porque, nessa condição, ambos (coordenadores/ dos sujeitos não se dão de forma deslocada de suas 426
pesquisadores e integrantes do grupo) comparti- vivências cotidianas, sendo produtos do meio social
lham papéis, regras e hábitos de forma espontânea em que estão inseridos. E, conforme Betetto (2012),
e continuada, garantindo que os fatos, situações e nesse contexto, as representações sociais passam a
comportamentos sejam observados sem alterações. ser incorporadas através do relacionamento com o
Nesse sentido, reconhecemos que a presença do outro, propiciando o processo de reconstrução mú-
pesquisador junto ao campo de pesquisa é uma re- tua, no transcorrer do próprio desenvolvimento das
lação de implicação na vida do grupo pesquisado o interações sociais.
que traduz um trabalho técnico e, ao mesmo tem-
po, um trabalho ético-político engajado. O grupo em SOBRE A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA
questão formou-se em fevereiro do corrente ano e,
vem participando diariamente de diversas atividades A violência é compreendida como uma proble-
de formação profissional e desenvolvimento pessoal, mática social e de saúde pública, pois afeta as rela-
sendo que a temática da violência se insere no esco- ções e a qualidade de vida dos sujeitos e de toda a
po das discussões. Nesse sentido, o presente trabalho sociedade, sendo uma ameaça para os interesses de
aproveitou a oportunidade em que a referida temá- desenvolvimento social. Sua amplitude é mundial,
Sumário
Dentre as diversas formas de violência, des- na supremacia do masculino sobre o feminino, in-
taca-se no presente estudo, a violência de gênero. seridas em uma sociedade altamente machista, que
E embora esta “possa incidir sobre homens e mu- perpetua a ignorância e inferioridade, banalizan-
lheres, os estudos e estatísticas demonstram que do-as como um atributo natural, inerente ao papel
grande parte desta violência é cometida sobre as social desempenhado pelos sujeitos envolvidos (TA-
mulheres por homens, com consequências físicas e VARES; PEREIRA, 2007). Assim, considera-se que o
psicológicas muito graves, severas e daninhas para entendimento acerca da condição bipolarizada do
as mulheres” (STREY, 2004, p. 16). sexo viabiliza o apontamento dos rumos da exclu-
são social baseada na diferença e, ao longo da his-
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER tória, as relações entre homens e mulheres sempre
mantiveram caráter excludente.
Tem-se que a violência contra a mulher é uma Saffioti (2000) defende que na sociedade mo-
das expressões mais comuns da violência, mas tam- derna, apesar de todo esforço para mudar essa con-
bém uma das mais invisíveis, sendo considerada uma cepção histórica acerca da desvalorização social da
das violações dos direitos humanos mais praticada, e mulher, ainda se tem a defesa da ideia de que a mu- 428
menos reconhecida, mundialmente (Tavares e Perei- lher deve apenas ser mãe e dona de casa, repassan-
ra, 2007). Nesse sentido, Carvalho (2001), ao desta- do o poder decisório familiar para o marido. E ainda
car diversas categorias de excluídos e vulneráveis na quando a mulher torna-se responsável pelo susten-
contemporaneidade, reúne os velhos desprotegidos to da família, a figura masculina ainda representa
da legislação, os sem-terra, os analfabetos e destaca o poder da relação, principalmente em famílias em
a situação de exclusão e violência que sofrem as mu- situação de vulnerabilidade social.
lheres. Entende-se que a exclusão social da mulher é O resgate histórico da violência contra mulher,
secular e diferenciada. Conforme a Lei Maria da Pe- segundo Tavares e Pereira (2007) destaca que as di-
nha (Lei 11.340), essa forma de violência é definida ferenças são convertidas em desigualdades, o que
como qualquer ação ou omissão baseada no gênero afastam a mulher de maior prestígio e reconheci-
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual mento profissional. Essa diferença representa uma
ou psicológico e dano moral ou patrimonial. face da identidade, da relação entre o eu e os outros,
É tida como a manifestação das relações de po- entendendo esta como a forma como as diferenças
der historicamente desiguais firmadas entre homens são construídas. Pois, conforme Nogueira (2006), é o
e mulheres. Apresentando suas raízes na ideologia, relacionamento com o outro que permite que o su-
Sumário
jeito crie conhecimento, pense e execute ações. Ou do conhecimento acumulado, forjando uma valori-
seja, a práxis é responsável pela construção das sub- zação da juventude e de seus atributos. Os valores
jetividades que se concretizam por meio de novas da juventude começaram a ser desejados e trazidos
práticas. Dessa forma, entende-se que o ser humano para todas as faixas etárias.
é resultado de suas próprias relações sociais, sen- Porém ao retornar o olhar sobre a fase juventu-
do, então, importante a reflexão acerca dos vínculos de, encontra-se a falta de consenso entre seu inicio
e do quanto se perpetua esse cenário de violência e término. Para a ONU, a juventude corresponde
contra a mulher na atualidade. dos 15 aos 24 anos e no estatuto da juventude, apro-
Conforme Scott (1995), as abordagens sobre a vado em 2013 no Brasil, afirma que esta fase vai dos
temática poderiam ser divididas em determinados 15 aos 29 anos. Há países que consideram a juven-
eixos teóricos, dentre eles, destacam-se que as re- tude até os 35 anos. Flores (2016) percebe que para
lações de gênero detêm uma dinâmica própria, mas além de questões biológicas, devem ser considera-
se articulam com outras formas de dominação e das questões sociais e contingenciais que delimita
desigualdade social. No que diz respeito à própria este período. Entende que a juventude se encontra
categoria, ela incita a mudança e a permanência, as em um estado de limiaridade social, na busca por 429
construções e descontrações e reconstruções, nor- autonomia num mundo cujas regras e valores não
mas, valores e representações. Destaca-se o enten- foram totalmente assimilados ou recusados.
dimento de que a própria categoria Gênero enfatiza Assim, autores por muito tempo consideraram
a necessidade de se estudar a história social e de- a juventude como um ‘um vir a ser’, como condição
monstrar que as relações afetivas, amorosas e sexu- apenas de transitoriedade. Sendo que esta caracte-
ais não se constituem enquanto realidades naturais. rística não configurava o jovem, como sujeito de di-
reito. Essa visão incutida dificultava o processo de
SOBRE JUVENTUDES ver o jovem como sujeito e compreendê-lo além do
rotulo. Desta forma, a produção teórica dos últimos
A tarefa de conceituar juventude neste tempo 15 anos, provocou mudanças na representação de
histórico é exigente, sabendo que na sociedade con- juventude, percebendo o jovem como sujeito. Pri-
temporânea o resgate da juventude se dá pela busca meiro que estes sujeitos são tomados a partir do lu-
de eternizá-la durante toda a vida. Segundo Fraga gar social que ocupam, ‘o estudante’, ‘o delinquente’,
e Iulianelli (2003) o recolhimento da esfera privada ‘o músico’. Para mais, o sujeito jovem, a partir dos
e o individualismo, produziram uma desvalorização estudos, é um ser humano aberto ao mundo, com
Sumário
desejos e em relação com os demais, um ser único. família e escola, que vê o jovem em condição passiva,
Com isso, foi constituindo a importância da partici- um ser em formação para acessar o futuro na esfera
pação dos jovens na sociedade como processo de se adulta. A segunda forma de situar o jovem social-
constituírem como sujeitos (PERONDI, 2013). mente são os espaços de socialização juvenil, criados
Ao falar de juventude, perpetua a questão, a partir das brechas dos espaços institucionais ou no
de que juventude estamos falando? Para Perondi tempo livre. O diferencial desta segunda forma é que
(2013), o Brasil começa a perceber, com ajuda de os jovens são criadores desse processo, diferente da
toda a produção teórica, que a juventude não é so- segunda que são passivos (PERONDI, 2013).
mente uma fase de passagem da infância para vida Ao realizar esta breve conceituação de juven-
adulta, nem como juventude em estado singular, tudes, é importante observar que os direitos das ju-
com uma definição. Compreende que o termo é ventudes, e o entendimento como sujeito de direito
muito diverso, compreendendo uma diversidade de é recente. Apenas em 2010 com a criação da PEC
expressões juvenis, ou seja, fala-se agora de juven- da juventude, como proposta da emenda constitu-
tudes. Fraga e Iulianelli (2013) trazem que a juven- cional, as juventudes tiveram sua inserção oficial
tude não é homogênea, mas ao falar de juventudes, no capitulo de direitos e garantias fundamentais na 430
abre as diferenças existentes neste grupo, como a constituição federal. Complementado pelo Plano
condição social, raça, etnia, gênero e a forma de vi- Nacional da Juventude, que determinou incorpo-
venciar esta fase que varia enormemente. Como o rar integralmente os jovens no desenvolvimento do
jovem pobre que é inserido na vida adulta precoce- pais, e a recente aprovação do Estatuto da Juventu-
mente, os negros e índios que são alvos da violência de em 2013 (FLORES, 2016).
e as meninas que são atingidas pelo comportamento Também outras questões são abertas, como por
de uma sociedade machista. Estes exemplos de dife- exemplo, a forma que a sociedade esta cuidando das
renças reforçam as especificidades na juventude e suas juventudes. Se as leis, políticas públicas e todo
as profundas diferenças existentes entre os sujeitos interesse em torno das juventudes, está garantido
que a compõe. acesso aos seus direitos básicos. percebe-se que os
Mesmo referenciados como juventudes, os jo- jovens sofrem com os processos de exclusão e in-
vens são pensados a partir da construção histórica clusão que o sistema capitalista produz, bem como
e cultural que correspondem a fase vivida. Há duas a forma precocemente que esta sociedade tem de
principais formas de situar os jovens socialmente. A descartar vidas precocemente ou indesejáveis.
primeira, a partir das instituições hegemônicas como
Sumário
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PARA foi trabalhada na forma grupal em dois momentos
OS JOVENS DO PROJETO PESCAR distintos, durante os encontros na unidade, utili-
zando-se a abordagem da observação participante,
O trabalho a ser apresentado foi realizado na visando conhecer as representações da mulher para
unidade do Projeto Pescar SULGÁS município de os jovens participantes.
Canoas, onde os encontros já ocorrem diariamente O primeiro encontro foi realizado com o gru-
desde fevereiro do presente ano. O grupo é formado po dividido em subgrupos, os quais debateram sobre
por 18 (dezoito) jovens, sendo 07 (sete) meninas e 11 essa problemática direcionando a reflexão para a ju-
(onze) meninos, a maioria com 16 (dezesseis) anos ventude inserida nesse contexto. Dentre os diversos
de idade, moradores dos municípios de Canoas, Es- momentos valiosos da discussão trazida para o gran-
teio e Sapucaia do Sul. de grupo, destaca-se o modo como os subgrupos or-
O processo de formação contempla uma meto- ganizaram a discussão: registrando o cenário viven-
dologia definida pela Fundação Projeto Pescar que ciado pelas mulheres em dois momentos distintos:
defende o investimento da carga horária em 60% no passado e na atualidade. O cenário apresentado
(sessenta por cento) dedicados ao Desenvolvimen- pelos jovens sobre a violência contra mulher no 431
to Pessoal e Cidadania e 40% (quarenta por cento) transcorrer da história resgata exatamente o lugar
voltados para a Iniciação Profissional do jovem. In- de submissão, humilhação e coisificação da figura
serida no contexto do Desenvolvimento Pessoal e feminina diante do poder masculino na sociedade.
Cidadania, a metodologia apresenta-se dividida em Ainda no primeiro encontro, ao voltar o olhar
temáticas específicas, sendo elas: Descoberta do Eu, para a atualidade, os jovens retrataram a dinâmica
Família, Comunicação e Tecnologias, Ambiente de de poder e violência estando presente nas relações
Trabalho, Empreendedorismo, Saúde, Meio Am- sociais, principalmente entre os jovens, conforme
biente, Ecologia contemplando diversos conteúdos observam nas atividades cotidianas. Ao estar junto
que são abordados desde o primeiro encontro da aos grupos de pertencimento o relacionamento entre
turma na unidade (FPP, 2015). o menino e a menina tornam-se alvo de decisões do
A violência contra a mulher entrou em deba- próprio grupo, que são expressas através de posturas
te a partir da inserção da temática Descoberta do permeadas de concepções antigas quanto à mulher,
Eu, no tópico “Relação com a Sociedade” e pode ser ressaltando novamente, em diferentes idades, o po-
incluída também em discussões da temática Famí- der do menino e a submissão da menina. Por exem-
lia, no tópico “Família e Juventude”. A problemática plo, foram unânimes os relatos de que quando estão
Sumário
no coletivo (seu grupo de pertencimento), são obri- Levantaram a questão de igualdade de gênero como
gados a se aproximar e, conforme sua linguagem, devendo ser trabalhada não como obrigatoriamen-
“ficar”, com meninas, mesmo sem ter essa intenção, te em todos os cenários, mas onde é mais adequada.
pois, ao contrário, são rotulados como homossexu- Deve-se, segundo eles, quebrar o preconceito e os
ais. Assim, determina-se que o menino pode e “deve” rótulos que recaem sobre a mulher há anos, mas em
“ficar” com o máximo de meninas que puder, sem algumas situações, pode ser que um dos dois exerça
qualquer desmerecimento ou desvalorização de si. a atividade de forma mais adequada, sem qualquer
Ao contrário, quanto às meninas, ainda espera-se, forma de violência nessa determinação.
segundo relato dos subgrupos, que ela não tenha “fi- No segundo encontro de discussão sobre a
cado” (sic) com muitos meninos, caso contrário ela questão da violência contra a mulher, o trabalho
recebe o rótulo associado à promiscuidade, não sen- foi realizado apenas no grande grupo. Foi lançado
do aprovada para relacionamentos duradouros ou, o questionamento sobre quais seriam as possibili-
até mesmo, digna de respeito. dades de minimizar ou eliminar essa problemática,
Nesse primeiro encontro ainda se levanta como tanto a nível micro como macro, ou seja, tanto nos
reflexão importante acerca da temática o relato de relacionamentos familiares como na sociedade em 432
que, apesar de na atualidade a mulher gozar de maior geral, por onde tudo se perpetua frente aos costu-
liberdade e possibilidade de viver uma vida sem tan- mes, crenças e a própria pressão social.
tas opressões, muitas vezes essa liberdade represen- As estratégias para tentar transformar a situ-
ta gravidez precoce, despertando atenção para outra ação foram levantadas sem organização prévia,
problemática social. Ao mesmo tempo, a liberdade apenas no discurso, e de forma integralizada, divi-
que a permite conquistar espaço no meio educacio- diram-se em dois contextos: ações voltadas para os
nal e no mercado de trabalho, ainda não lhe garante meninos e outras para as meninas. Assim, o gru-
salários iguais aos dos homens, na visão dos jovens. po expressou coletivamente quais atitudes seriam
De forma geral, os meninos, demonstraram necessárias para cada um dos gêneros, visando a
maior dificuldade em debater sobre sua representa- mudança de comportamento e cultura sobre a vio-
ção acerca da igualdade de gêneros, apontando ques- lência. Nesse sentido, algumas estratégias mais im-
tões vinculadas à razão dessa igualdade. Por exemplo, portantes foram:
a mulher defende igualdade para profissões que exi- Desenvolver atividades de maior autoconfiança
gem determinantemente a força e resistência mascu- no menino, despertando maior coragem para assu-
lina, por isso, não seria necessário o esforço para tal. mir seus desejos e vontades, sem tanta dependên-
Sumário
cia do grupo. Isso para evitar que sejam obrigados ser tida como positiva, no entanto, apesar disso, as
a fazer coisas que não desejam, como por exemplo, “representações sobre a diferença podem ser apro-
“ficar” com algumas meninas sem ter a intenção. priadas pela ideologia e transformadas em estigma,
Outra possibilidade seria abrir mais espaços amplos portanto, em algo negativo” (p. 44).
e diversificados de discussão e reflexão para os jo- A gravidez precoce apareceu brevemente no re-
vens, livres de julgamentos de valor, sendo media- lato do jovem, mas como estratégia, a turma definiu
dos por pessoas que tenham afinidade com a turma a presença mais contínua de casos reais, mostrando
para propiciar a participação e fortalecer a cons- como a decisão errada, em local errado, com pesso-
cientização sobre a temática. as erradas, podem significar uma mudança total de
Já em relação às meninas, alguns componentes vida. Assim, defenderam a ideia da reflexão crítica
do grupo levantaram a questão do mesmo cenário contínua, sobre as transformações sociais, as mu-
vivenciado pelos meninos estar sendo cultuado en- danças e o papel dos diferentes gêneros sociais.
tre as meninas. Ou seja, relataram que do mesmo
modo como nos grupos de meninos, as jovens pas- CONSIDERAÇÕES DE ENCERRAMENTO
saram a ter que contabilizar a quantidade de me- 433
ninos que “ficam” em uma noite, por exemplo, o Visualizam-se crenças que justificam certo grau
que entre o grupo delas, representa valor. No en- de violência doméstica, associadas às pré-determna-
tanto, a representação desse comportamento frente ções sociais sobre como o homem e a mulher devem
aos meninos e, até mesmo outras meninas que não se comportar em sociedade, principalmente quando
pactuam dessa ideia, continua sendo de desvalori- estão em grupos.
zação, por ser, conforme definição do próprio gru- Os resultados da experiência apontam para
po, uma menina muito “fácil”. Quanto às estratégias uma representação da mulher que articula, por um
para mudar esse cenário, apontam para espaços de lado, elementos de um passado, no qual a mulher
apresentações, trocas, leituras sobre os tempos mais era tida como de objeto de desejo e alvo do poder
antigos, para que se relembre o ocorrido e busque masculino, isto é uma representação de total sub-
a eliminação de suas ideias. E, para as meninas, o missão da mulher. Por outro lado, os jovens expres-
grupo defende a ideia de que parecem um tanto per- sam uma representação da mulher, ligada à atuali-
didas frente à tantas demandas que devem respon- dade, onde esta conquista seu espaço profissional e
der, sem ter, conforme relatos, tempo, habilidade ou tem maior autonomia, tanto na questão educacio-
condições mínimas para sair da situação. Conforme nal como do trabalho.
Saffioti e Almeida (1995), toda a diferenciação pode
Sumário
Contudo, o grupo mostrou-se em dúvida quan- FRAGA, Paulo Cesar Pontes. Jovens em tempo real. Rio de
to a sua representação da igualdade de gênero. Por Janeiro: Impressos Brasil, 2003. 261 p.
fim, o grupo relaciona maior liberdade de escolhas FUNDAÇÃO PROJETO PESCAR (FPP). Desenvolvimen-
pessoais por parte das mulheres jovens à gravidez to Pessoal e Cidadania - COLEÇÃO PROJETO PESCAR.
precoce, indicando uma representação social ligada Porto Alegre: Fundação Projeto Pescar, 2007.
a valores patriarcais. Sugere-se ampliação de estu-
dos direcionados ao público jovem voltados, dentre GAUER, G. Personalidade e conduta violenta. Civitas: Re-
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jun. 2016.
Sumário
Gláucia Knob (Universidade de Passo Fundo)1 Abstract: In the history of the Syndicate of Teachers
Luciana Maria Crestani (Universidade de Passo Fundo)2 and Employees of Rio Grande do Sul State School
(CPERS / Syndicate) there is a record of numerous
Resumo: No histórico do Sindicato dos Professores strikes. Among the reasons, it stands out as the most
e Funcionários de Escola do Estado do Rio Grande frequent cause, not the salary increase; in recent ye-
do Sul (CPERS/Sindicato) há o registro de inúmeras ars, not floor payment, and currently the parceling
greves. Dentre os motivos, destaca-se como a causa of salary. This scene already validated makes socie-
mais frequente, o não aumento salarial; nos últimos ty build ethos in relation to that professional enga-
anos, o não pagamento do piso, e, atualmente, pelo ged in the Public State of RS Network. In that sense, 436
parcelamento dos salários. Essa cena já validada faz from text clippings that circulated in the media, by
com que a sociedade construa ethos em relação a virtue of holding another strike category, this work
esse profissional que atua na Rede Pública Estadual seeks to identify images that these teachers are
do RS. Nesse sentido, partindo de recortes de tex- built. The corpus is analyzed from the perspective of
tos que circularam na mídia, em virtude da realiza- Maingueneau (2008, 2013, 2015), Fiorin (2008) and
ção de mais uma greve da categoria, este trabalho Bakhtin (2009, 2011). Thus, it is seen as society sees
busca identificar que imagens desses docentes são this mobilization, which its credibility and how it
construídas. O corpus é analisado na perspectiva influences the government (dis) recovery and socie-
de Maingueneau (2008, 2013, 2015), Fiorin (2008) e ty in general in relation to this professional.
Bakhtin (2009, 2011). Assim, é verificado como a so Palavras-chave: Education. Ethos. Strike. Teacher.
¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: glaucia.knob@gmail.com
² Doutora em Letras. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras. E-mail: lucianacrestani@upf.br
Sumário
publicada no dia 16 de maio, também no Zero Hora afetar a rotina das famílias dos estudantes, o que
e que declarou os mesmos dizeres, neste mesmo dia, desvaloriza ainda mais a profissão docente.
no Programa Jornal do Almoço, na RBS TV7. Sabemos que a enunciação é, na verdade, sem-
Na Retórica de Aristóteles, o estatuto do ethos é pre coenunciação, na medida em que eu (enuncia-
ligado à enunciação, como um efeito do discurso que dor) sempre enuncia para um tu (enunciatário) e
torna o orador digno de fé. Roland Barthes liga essa que ambos, juntos, constroem o sentido do enuncia-
característica como sendo os traços de caráter que do. Assim, mesmo quem não tem ligação direta com
o orador deve mostrar ao seu público para causar a rede de ensino estadual será coenunciador8 dos
boa impressão no dizer. Já Oswald Ducrot destaca discursos sobre a greve veiculados na mídia. Tais
que o ethos se mostra e não é dito. Em Fiorin, o ethos discursos, a partir de certo posicionamento ideoló-
explicita-se na enunciação enunciada. Logo, o ethos, gico (BAKHTIN, 2011), induzirão a expectativas em
ao estar ligado à enunciação, parte da ideia de que relação ao ethos desses professores grevistas. Acres-
o público constrói as representações do enunciador. cente-se a isso que os coenunciadores não precisam,
A cena validada desse histórico permeado por necessariamente, aderir ao discurso enunciado, po-
várias greves da categoria permite identificar um dendo, ao contrário, rebatê-lo, refutá-lo, criticá-lo. 438
ethos pré-discursivo construído pela sociedade, ao No primeiro capítulo, a sessão teórica aborda-
crer que a profissão não é rentável economicamen- rá as concepções de ethos pré-discursivo e ethos dis-
te, principalmente, pelo fato de que em todas essas cursivo, conforme Dominique Maingueneau, bem
movimentações, sempre foi destaque a reivindica- como, as cenas discursivas, divididas em cena vali-
ção pelo aumento salarial e/ou pagamento do piso. dada, cena englobante, cena genérica e cenografia,
Ademais, apesar de todos os problemas estruturais além de, brevemente, as questões de discurso e gê-
e econômicos existentes nas escolas da rede esta- neros abordadas por Bakhtin. O segundo capítulo
dual, além da educação em si, no geral, a socieda- apresentará os corpora analisados e a metodologia
de não vê essa greve com bons olhos, pelo fato de de análise. Já no terceiro capítulo apresentar-se-á a
causar certos transtornos à organização política e análise dos corpora em questão, que foi divulgado
administrativa, governamental e escolar, além de na mídia, seguida pelas considerações finais.
⁷ Por se tratar de textos extensos e dada a limitação de páginas deste trabalho, não será possível trazer a íntegra dos corpora,
apenas os recortes analisados.
⁸ Considera-se a perspectiva de que o discurso é interativo e mobiliza dois parceiros, o que torna difícil nomear como interloc-
utor ou destinatário, mas, sim, de coenunciador, pois o outro não é passivo. (MAINGUENEAU, 2002, p.54).
Sumário
⁹ Leva-se em conta aqui a ideia de língua que só existe enquanto uso, logo, é inseparável de seu conteúdo ideológico, é concer-
nente à vida. (BAKHTIN, 2009).
10
Refere-se ao EU do discurso, aquele que toma a palavra, que se dirige a um TU com o propósito de enunciar. (BENVENISTE, 1976).
11
O mesmo que enunciação, isto é, toda enunciação que supõe um locutor que se apresenta com a intenção de influenciar um
ouvinte. (BENVENISTE, 1976).
12
Usado aqui no mesmo sentido que coenunciador.
Sumário
a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu será aberto aos enunciados interiores e exteriores,
conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se numa relação interminável. O ser humano, em sua
separar abstratamente a língua de seu conteú-
do ideológico ou vivencial, é preciso elaborar vivência na sociedade, constrói relações das mais
procedimentos particulares não condicionados variadas, seja com outros seres vivos, seja com a cul-
pelas motivações da consciência do locutor. [...] tura em geral, de modo que “a vontade discursiva
A língua, para a consciência dos indivíduos que do falante se realiza antes de tudo na escolha de um
a falam, de maneira alguma se apresenta [ape-
nas] como um sistema de formas normativas. certo gênero do discurso”. (BAKHTIN, 2011, p.282).
(BAKHTIN, 2009, p. 9913). Todas essas relações fazem com que as pessoas as-
sumam posições discursivas dentro de cenas discur-
Essa ampliação da língua, para além da visão sivas e, ao assumir essas posições, faz-se com que o
desta como simples conjunto de signos sociais, mas outro possa aderir ou não a essa posição. Essa refle-
sim como discurso produzido por sujeitos sócio-his- xão sobre a adesão de sujeitos a uma posição discur-
tóricos, permite designar objetos de análise e mos- siva faz com que adentremos na noção do ethos.
trar que se adota um ponto de vista sobre eles, como
mobilizadores de ideias e de forças. Assim, há o in- 2.1 Ethos e cenas enunciativas: formações nos 440
terdiscurso, sendo que todo discurso só vai assumir dizeres
sentido no interior de um interdiscurso porque o
A noção de ethos pertence à tradição retórica
simples fato de organizar um texto em um gê-
nero (a conferência, o jornal televisivo...) impli- especificada por Aristóteles como uma persuasão
ca que o relacionemos com os outros textos do pelo caráter e que torna o orador digno de fé. O es-
mesmo gênero; a menor intervenção política só tatuto de ethos tem um laço “crucial com a reflexi-
pode ser compreendida se se ignorarem os dis- vidade enunciativa” e “relação entre corpo e discur-
cursos concorrentes, os discursos anteriores e
os enunciados que então circulam nas mídias. so” que ele implica (MAINGUENEAU, 2008, p. 70),
(MAINGUENEAU, 2015, p. 28). de modo que se manifesta também como uma voz
e como corpo enunciante, que está historicamente
A questão do interdiscurso está diretamente li- especificado e inscrito em uma situação que a enun-
gada ao dialogismo (BAKHTIN, 2011), de modo que ciação pressupõe e valida. Ocorre, porém, que como
recusa que um texto seja fechado, isto é, ele sempre
13
Devido às discussões já conhecidas, sendo que ora a autoria de Marxismo e Filosofia da Linguagem é remetida ora a um autor,
ora a outro, aqui se usa o que é indicado na edição de 2009, sendo Mikhail Bakhtin.
Sumário
explica Maingueneau (2008), muitas vezes o ethos qualquer discurso, mesmo para o escrito. Com efei-
se constrói não por um discurso em específico do to, o texto escrito possui, [...] um tom que dá au-
sujeito que fala, mas por noções/discursos que vei- toridade ao que é dito”. (MAINGUENEAU, 2002, p.
culam socialmente sobre esse sujeito (ou grupo so- 98). A construção do ethos está diretamente ligada
cial) e que vão fazendo com que se criem imagens a um quadro profundamente interativo, numa certa
cristalizadas, representações do enunciador antes configuração cultural, que implica papéis, lugares
mesmo que ele fale. A isso Maingueneau (2008) cha- e momentos de enunciação legítimos. O discurso
ma de ethos pré-discursivo14. É uma imagem preexis- pressupõe essa cena de enunciação, que
tente do enunciador/locutor.
integra de fato três cenas que proponho chamar
Ainda em relação a esse universo dos discursos, de “cena englobante”, “cena genérica” e “ceno-
a construção de uma identidade está ligada à manei- grafia”. A cena englobante corresponde ao tipo
ra de dizer e ser. Ao dizer e ser, o enunciador espera de discurso; ela confere ao discurso seu estatu-
que o seu coenunciador identifique-se com o que to pragmático: literário, religioso, filosófico... A
cena genérica é a do contrato associado a um
foi proposto, que ele seja persuadido pela ideia, que gênero, a uma “instituição discursiva”: o edito-
ele a incorpore. A designação de incorporação faz rial, o sermão, o guia turístico, a visita médica... 441
menção à “maneira pela qual o coenunciador se re- Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo
laciona ao ethos de um discurso” (MAINGUENEAU, gênero, ela é construída pelo próprio texto: um
sermão pode ser enunciado por meio de uma ce-
2008, p.72), no sentido de que o coenunciador incor- nografia professoral, profética, etc. (MAINGUE-
pore, assimile um conjunto de esquemas necessá- NEAU, 2008, p. 75).
rios para se relacionar com o mundo ao constituir
o necessário para aderir ao discurso do ethos. Não Em outras palavras, a cena englobante consiste
obstante, pode ocorrer uma “briga de ethos”, quando nas marcas enunciativas do EU-TU-AQUI-AGORA,
o locutor quer parecer o que não é, e/ou quando o isto é, o tipo de discurso, em função de qual finalida-
outro15 não entra em acordo com o dito ou mostra- de e para quem ele foi organizado. A cena genérica
do, adotando uma posição discursiva diferente. tem relação ao gênero discursivo que é usado nes-
Esse ethos que aqui se refere “não diz respei- sa cena discursiva. A cenografia é construída pelo
to apenas [...] aos enunciados orais: é válido para texto, ou seja, a partir de indícios diversificados, na
14
Também denominado ethos prévio. (AMOSSY, 2013).
15
Neste caso, o coenunciador.
Sumário
consideração dos níveis da língua, do ritmo, den- te no imaginário coletivo, pois, desde 1979, há na
tre outros ou em conteúdos explícitos, como a cro- cronologia do CPERS/Sindicato, a realização dessas
nografia (momento) e a topografia (lugar) de onde mobilizações. Neste ano de 2016, mais uma vez, o
o discurso surge. Maingueneau (2002, p.87) alerta ano letivo iniciou com esse movimento que ocupou
para o fato de a cenografia ser ao mesmo tempo a grande parte das escolas gaúchas, inclusive com a
fonte do discurso e aquilo que ele engendra, é a cor- participação de estudantes que ocuparam algumas
respondência particular, que põe em contato indiví- instituições de ensino. Essa cena validada que re-
duos que mantêm uma relação, uma proximidade. mete à greve e aos professores dessa rede influencia
Ademais, o ethos também pode emergir de um fortemente a sociedade de modo geral, principal-
conjunto de cenas de fala, que pode ser chamada mente, a partir do que é veiculado pela mídia.
de cena validada, sendo aquela “já instalada na me- Desse modo, na análise a seguir, o primeiro re-
mória coletiva”, principalmente em representações corte consiste de falas de professores da Rede de En-
estereotipadas. (MAINGUENEAU, 2002). Qualquer sino Pública Estadual, os quais foram entrevistados
discurso não será analisado somente conforme os pelo Jornal Zero Hora16 e que compõem a notícia
conteúdos, a organização textual ou os procedi- intitulada “Assembleia do CPERS aprova greve dos 442
mentos estilísticos, vai também estar relacionado às professores da rede estadual”17. Essa notícia foi pu-
normas, aos grupos culturais e ao que esses acredi- blicada na plataforma on-line do jornal, no final da
tam como sendo legitimidade. tarde do dia 13 de maio de 2016 e relata sobre a as-
sembleia realizada nessa tarde, em Porto Alegre, no
3 OS RECORTES DOS CORPORA ginásio Gigantinho, que contou com “cerca de três
ANALISADOS E AS RELAÇÕES COM O mil professores”. A partir dessa reunião decidiu-se
CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO que a classe começaria a “greve imediatamente”.
O segundo recorte é uma “Nota do Governo do
O histórico de greves da Rede de Ensino Pú- Estado do Rio Grande do Sul”18 que também foi di-
blica Estadual do Rio Grande do Sul está presen- vulgada no dia 13 de maio de 2016, na página da
16
Jornal de ampla circulação, principalmente, no estado do Rio Grande do Sul, e que também possui plataforma on-line.
17
Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/educacao/noticia/2016/05/assembleia-do-cpers-apro-
va-greve-dos-professores-da-rede-estadual-5800858.html>.
18
Disponível em: <http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/noticias_det.jsp?PAG=6&ID=16900>.
Sumário
Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do o ethos prévio e o ethos discursivo que são construí-
Sul na Internet, mas que também foi acrescida às dos e contam com a adesão (ou não) pelos coenun-
diversas notícias veiculadas na mídia sobre a gre- ciadores através do que foi divulgado pela mídia.
ve dos servidores. Essa nota traz considerações do
governo sobre a greve. Este admite que a crise que 4 A PRODUÇÃO DE DISCURSOS E A
atinge o país tem prejudicado também o Estado, po- CONSTRUÇÃO DO ETHOS
rém, diz que atitudes já foram tomadas em relação
aos pedidos dos docentes, inclusive com a especifi- Ao produzir discursos, ethos são revelados a
cação de cifras sobre os investimentos na educação. partir do processo de construção de sentidos pela
O governo atesta que o diálogo com a classe será tomada de palavra por um locutor. A forma como
permanente, ressalta a importância da continuidade esse locutor produz os seus dizeres e manipula-os
das aulas e destaca também que o acesso às escolas no sentido de construir a sua imagem e do público
deve ser liberado, caso contrário há a ameaça de que para o qual se dirige, dentro de cenas enunciativas,
sejam tomadas outras atitudes. permite aferições, como as que serão feitas a seguir,
Já o terceiro e último excerto analisado é a opi- a partir do recorte de corpus divulgados na mídia 443
nião do colunista Tulio Milman19, publicada no dia 16 em virtude da realização de mais uma greve dos
de maio, na plataforma on-line do jornal Zero Hora. professores da Rede de Ensino Pública do Estado do
No mesmo dia, Milman pronunciou os mesmos di- Rio Grande do Sul.
zeres no Programa Jornal do Almoço, na RBS. Tulio Devido à cena já validada, o docente gaúcho
traz quatro considerações sobre a greve, sendo que dessa rede é visto, de modo geral, como um profis-
ele inicia sua fala com o dizer “para anotar e con- sional desvalorizado, que está em conflito constante
ferir”, seguido por atitudes que acredita que serão com o governo estadual para ter suas reivindicações
tomadas por parte do governo, professores e alunos. atendidas, principalmente, referentes às questões
A partir desses recortes, será verificado o fun- salariais. Esse histórico de greves tem como causas
cionamento discursivo e a inscrição histórica, ao frequentes, o não aumento do salário, também o não
pensar as condições de uma “enunciabilidade”, atra- pagamento do piso e, neste ano, o parcelamento sa-
vés das cenas enunciativas (cena englobante, cena larial. As cenas discursivas são mostradas e, muitas
genérica, cenografia e cena validada), identificando vezes, reforçadas na mídia, sendo que os recortes
19
Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/tulio-milman/noticia/2016/05/opiniao-5802693.html>.
Sumário
que serão analisados foram veiculados em diversos mação mostra como o locutor quer construir uma
suportes, tais como rádio, televisão, jornal impresso imagem de maior importância desse movimento e
e on-line, logo, atingiram um público diversificado, de que ele deve ser apoiado, pois dessa vez “até” os
que pode construir imagens. alunos aderiram, sendo que não há uma percepção
de problemáticas na educação apenas por parte dos
4.1 Ethos dito: o discurso dos professores professores.
Na outra fala, a entrevistada, a
O primeiro recorte analisado consiste numa
professora Alessandra Bittencourt Ribeirro, 44
cena englobante de produção jornalística, em que anos, 26 lecionando, do Instituto Estadual de En-
professores foram entrevistados para dar corpo a sino Cônego Luiz Walter Hanquet, de Camaquã,
uma reportagem sobre o início da greve, ou seja, jus- afirma que nunca houve tamanho desrespeito
tificando essa decisão para os leitores da plataforma com a categoria.
–É um momento único. O governador brinca
on-line Zero Hora. A cena genérica apresenta-se com questões sérias, falta repasses dos recursos
numa notícia on-line do Jornal Zero Hora, com o mínimos. O governo diz para buscarmos na Jus-
título: “Assembleia do CPERS aprova greve dos pro- tiça direito a monitores em sala de recurso mul- 444
fessores da rede estadual”. Foi publicada no dia 13 tifuncional, cuja lei determina um funcionário
por estudante autista, reclama.
de maio de 2016 e além do texto verbal, há imagens
(fotos) dessa reunião. A cenografia apresenta-se nas Essa professora reforça um ethos do docente
falas de alguns professores da rede estadual que desrespeitado pelo governo estadual e reforça no
foram entrevistados, retextualizadas para a escrita seu enunciado o descontentamento com o gover-
com a reportagem que aborda sobre a reunião do nador, que seria o responsável pelo descaso com a
CPERS e a definição sobre o início da greve, inclusi- educação, pois não repassa recursos, nem tem uma
ve definindo, conforme as palavras da presidente do atitude positiva em relação à situação que a escola
sindicato, Helenir Schurer, como uma greve atípica, se apresenta, como se ele estivesse desinteressado
já que os alunos estariam participando. Neste ponto e empurrando a responsabilidade para outros seto-
já podemos perceber como a greve é uma cena va- res, como a Justiça. Ela exemplifica, para reforçar
lidada, ou seja, está presente no imaginário social seu argumento e convencer o leitor, que o descaso
de modo bastante intenso, já que “a edição deste é tamanho, que para que se tenha um atendimento
ano também conta com o apoio dos alunos”, que em adequado aos estudantes com autismo, o governa-
outras edições não estariam participando. Essa afir- dor pediu que os próprios docentes buscassem na
Sumário
Justiça esse direito, cuja lei deveria ser cumprida Nesta fala, há um ethos que se constitui como
pelo Estado. sendo do docente prevenido, pois só há materiais
Há a adição do nome dos entrevistados, idade, nas escolas pelo fato de que foi guardado do ano
quanto tempo de atuação e o local. Isso dá corpo ao passado (2015), caso contrário, haveria nada, a si-
ethos para mostrar a professora que já participou tuação seria mais calamitosa. Além disso, há uma
de vários momentos da educação gaúcha, portanto generalização do professor da escola pública de que
tem autoridade para falar disso. O jornal contribui o seu trabalho vai além da sua obrigação de ensinar
para a construção do ethos ao acrescentar esses da- e ele busca junto à comunidade escolar materiais
dos, algo muito comum no meio jornalístico, para que deveriam vir do governo. Mais ainda: ele faz
que seja dada maior veracidade à notícia e aproxi- além das suas tarefas dentro e fora da sala de aula,
mação do leitor com o fato em destaque. Também, uma vez que atende turmas que ficam misturadas
ao introduzir a fala dos professores, quem redigiu a no mesmo ambiente, quando não deveriam estar,
notícia reafirma o discurso da professora em relação quando o governo deveria disponibilizar mais pro-
à falta de respeito do governo com os professores. fissionais para esse atendimento, bem como, a me-
Além disso, como essa mobilização já é histórica e lhoria na infraestrutura das escolas. 445
em poucas oportunidades os professores tiveram O locutor liga seu enunciado a um possível co-
o apoio da sociedade, a enunciadora já sabe dessa enunciador que não sabe que isso está acontecen-
cena validada e busca adesão do seu coenunciador, do com a educação, com as escolas, alunos e pro-
de modo que fica subentendido que dessa vez é di- fessores, que por não ter conhecimento pode estar
ferente das outras, a situação está pior. equivocado quanto às suas opiniões, não aderindo
Em outro trecho da reportagem, a professora a esse discurso de que a greve é importante. A res-
Loiva Mombach, 54 anos, comenta que peito disso, o docente tem de ter essas informações
para construir uma imagem do movimento e do
temos material didático e de limpeza porque
guardamos de anos anteriores. Continuamos
professor de modo positivo, como aquele que está
com merendas porque congelamos alguns ali- buscando o que é de direito não apenas individual,
mentos, além de conseguirmos mantimentos mas, também, dos alunos, pais, escola, sociedade e
com a comunidade. Falta pessoal e turmas ficam também, principalmente, dos professores. Esse ethos
misturadas na mesma sala.
construído pelo docente recebe respostas de dois
coenunciadores, que serão analisados na sequência.
Sumário
4.2 A nota do governo e a não-aceitação do ethos mitem o entendimento de que a greve da categoria
dito mais uma vez é inconveniente para o governo, já
que “o Governo do Estado reitera que segue fazen-
O segundo excerto que compõe o corpus de aná- do todos os esforços para recuperar o equilíbrio fi-
lise é a “Nota do Governo do Estado do Rio Grande nanceiro das contas públicas. Também espera que
do Sul”, inserida numa cena englobante política e as condições socioeconômicas do país possam me-
administrativa, uma vez que foi produzida pelo Go- lhorar, repercutindo na arrecadação”. Isto é, o pro-
verno do Estado gaúcho para emitir a sua opinião blema todo não está no governo estadual, mas en-
sobre essa mobilização deflagrada, ao justificar so- volve aspectos muito mais amplos. Tendo em conta
bre o que os professores debatem. A cena genérica a crise brasileira, o professor deveria ter paciência
consiste numa nota oficial, gênero pertencente a com a situação, ser solidário, para que não acentue
esse âmbito governamental e que tem por finalida- essa crise já existente. Não há uma incorporação
de aproximar o governo da sociedade em geral para do ethos construído pelo professor por parte do go-
que possa enunciar seus posicionamentos sobre as- verno, sendo que ele interpreta a atitude como um
suntos variados. A cenografia de uma nota do go- desinteresse dos docentes na melhora coletiva, ao 446
verno aos professores, divulgada no dia 13 de maio pensar somente no individual.
de 2016, na página (site) da Secretaria Estadual de Todo esse esforço do governo, que ele chama
Educação do Rio Grande do Sul, traz as ideias go- de “passos”, seriam “imprescindíveis para recuperar
vernamentais em relação a essa mobilização, bem a qualidade do serviço público, mantendo em dia o
como, quais atitudes já foram tomadas e quais ainda pagamento do salário do funcionalismo e o repasse
serão, como já foi especificado anteriormente. Essa de verbas para as escolas”. Situação que uma das
nota parte de um coenunciador que constrói ima- professoras denunciou e o governo rebate com o
gens sobre o docente grevista, sendo neste caso, o terceiro item, ao dizer que
que numa relação trabalhista podemos identificar
nessa quinta-feira (12), o Estado depositou R$ 5,7
como o chefe. milhões nas contas das escolas estaduais. O valor
Constata-se um estereótipo identitário em rela- é parte da autonomia financeira do mês de março
ção ao docente gaúcho por parte do governo, sendo e se refere a recursos destinados à manutenção.
que os dizeres da nota reforçam a ideia da questão Os depósitos já constavam na programação finan-
ceira da Secretaria da Fazenda e foram realizados
financeira que tem sido motivo mais frequente das logo após a quitação da folha do funcionalismo.
greves da categoria. As primeiras expressões per-
Sumário
Esse coenunciador constrói a imagem de um 4.3 Para anotar e conferir: a briga de ethos
professor que é culpado inclusive pela falta de es-
trutura e merenda das escolas, pois se o governo O terceiro e último recorte analisado é de outro
deixasse de pagar o funcionalismo, ou se fosse par- coenunciador do ethos que os professores desejam
celado o salário inclusive em mais oportunidades, que seja aceito. A cena englobante é a de um discur-
esse dinheiro chegaria às escolas com mais facili- so opinativo-jornalístico, em que o articulista Tulio
dade. Entretanto, como a prioridade é dada ao fun- Milman dá a sua opinião sobre a greve para seus
cionalismo, essas outras questões ficam em segundo leitores e espectadores. As cenas genéricas consti-
plano. Primeiro quita-se o salário, depois se deposi- tuem-se de um artigo de opinião, postado numa das
tam os valores correspondentes aos outros gastos colunas on-line do articulista e de comentários no
ou investimentos, se ainda houver dinheiro. programa televisivo. As cenografias desses enuncia-
A nota segue com a ideia de que “é fundamental dos de Milman são, respectivamente, o texto de opi-
que as aulas sejam mantidas regularmente, preser- nião publicado na plataforma do jornal Zero Hora
vando o atendimento dos nossos estudantes, razão em 16 de maio de 2016; e um comentário proferido,
da existência de todo o sistema educacional”. Ou no mesmo dia, no Programa Jornal do Almoço, da 447
seja, na notícia, a representação de um professor RBS TV, para todos os leitores/espectadores desses
“guerreiro” e “prevenido” é aceita de tal modo que, dois suportes.
se ele define-se com esses adjetivos, o governo acre- O colunista Tulio Milman, sendo o coenuncia-
dita que é possível que as aulas sejam mantidas para dor dos discursos dos professores grevistas, inserido
que a sociedade continue com o seu ritmo normal, numa realidade de comunicador midiático, enuncia
sem prejuízos educacionais para os estudantes e, quatros dizeres sobre o que virá a acontecer com
principalmente para as famílias, que com a situa- a greve recentemente deflagrada, alertando inicial-
ção da greve não têm com quem deixar seus filhos. mente que seria importante a sociedade anotar e
O atendimento aos estudantes é a razão do sistema conferir. Segue o excerto:
educacional. Os professores não têm importância
Para anotar e conferir.
na situação em questão, inclusive são os culpados
1) Governo corta o ponto a ameaça não pagar os dias parados ao
pelos problemas. O discurso desse coenunciador magistério.
afere esse ethos discursivo sobre o docente gaúcho. 2) Quando a greve terminar, os professores se comprometem a
recuperar os dias parados.
3) O governo paga os dias parados.
4) Em boa parte das escolas, professores e alunos fazem de conta
que os dias parados foram recuperados.
Sumário
destaque nos discursos dos coenunciadores do pro- menos de ordem sócio-histórica e até psicológica
fessor grevista. contribuem para a reflexão sobre possibilidades de
Percebe-se que a sociedade, reforçada pelas como mudar essa situação instaurada.
ideias da mídia e do governo, veem essa mobilização
negativamente, pois não há resultados significati-
vos, tanto para o profissional, quanto para a educa- REFERÊNCIAS
ção. O fato de não haver credibilidade por parte da
sociedade com esse movimento influencia na (des) AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no discurso: a cons-
trução do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.
valorização governamental e da sociedade em geral
em relação a esse profissional, pois o ethos visado BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação
não é o mesmo ethos produzido pelo coenunciador verbal. Mikhail Mikhailovitch Bakhtin; prefácio à edição
através da interação com o discurso construído. francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo
Esse ethos discursivo do professor da rede es- Paulo Bezerra. – 6ª . ed. – São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
tadual gaúcha não é o desejado por ele, nem o
ethos prévio que a sociedade credita e toma como ______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas 449
real a partir de um enunciador para além do texto, fundamentais do método sociológico da linguagem./Mikhail
um enunciado como produto de uma enunciação Bakhtin (V. N. Volochinov); prefácio de Roman Jakobson;
que implica uma cena. Há possibilidade de haver a apresentação de Marina Yaguello; tradução de Michel Lahud
e Yara Frateschi Vieira, com a colaboração de Lúcia Teixeira
construção de outras cenas discursivas? Quais ce- Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. – 13. ed. – São
nas seriam essas? Qual posição discursiva? Ques- Paulo: Hucitec, 2009. 203p.
tionamentos que levam a pensar nesses discursos
já perpetuados no decorrer dos anos da história da BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral.
educação, principalmente na rede pública do RS. Sa- Trad. Maria da Glória Novak e Luiza Neri. Revisão Isaac
Nicolau Salum. São Paulo: Cia Nacional, EDUSP, 1966/1976.
bemos que a compreensão desses discursos e a con-
sequente construção desse ethos negativo do profes- CPERS SINDICATO. Histórico das greves do CPERS/
sor grevista não são o suficiente para que se possa Sindicato. Disponível em: <http://cpers.com.br/greves/>.
responder o todo do problema que envolve a ordem Acesso: em 19 maio 2016.
educacional, pois ele não é estritamente discursivo.
GLOBO. Professores da Rede Estadual do RS decidem
Entretanto, a compreensão do fenômeno discursivo entrar em greve. Disponível em: < http://goo.gl/Okx2rk >.
e seu funcionamento com a compreensão dos fenô- Acesso: em 17 maio 2016.
Sumário
¹ Mestre em Ciências Naturais. Atua no Ensino de Química e de Ciências; Informática na Educação; Produção/avaliação de
atividades didáticas tecnológicas e não tecnológicas. glauciargonzaga@gmail.com
² Doutor em Engenharia de Sistemas Eletrônicos. Líder do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Educação e Cognição, atua em for-
mação docente e desenvolvimento/uso de tecnologias. profdanielpaiva@gmail.com
Sumário
ped by students of Degree in Natural Sciences of não aproveita o que há de melhor para suprir as no-
the Universidade Federal Fluminense, in the same vas necessidades da sociedade.
municipality, in disciplines and academic projects A simples transcrição, para testes, provas e
that encourage and guide about the importance of exercícios de repetição, do que era dito pelo pro-
adopting this pedagogical practice. fessor ou está disponível nos livros didáticos, não
Palavras-chave: Eaching tools. Teaching-Learning constrói o indivíduo crítico e participante que a so-
Process. Ludic material. Elementary School. ciedade necessita.
Para esta nova sociedade é necessário que as
escolas (enquanto local de promoção básica e só-
MODIFICAÇÃO DAS METODOLOGIAS DE lida do ensino) formem alunos capazes de associar
ENSINO fatos e conceitos para a resolução de problemas e
realização de tarefas cotidianas; as escolas devem
Com a evolução de diversos setores da socieda- contribuir para a construção de cidadãos críticos,
de, como o avanço nas formas de expressão e comu- conscientes, ativos para questões ambientais e cole-
nicação e a evolução tecnológica de uma maneira tivas de sua comunidade. 452
geral, a forma das pessoas se relacionarem com as Nesta tarefa, os professores são cada vez mais
outras e com o meio onde vivem também vem se desafiados a tornar suas aulas dinâmicas, motivan-
modificando. do e despertando o interesse dos alunos na busca
O processo de construção de conhecimento se por um melhor aproveitamento do momento de
torna cada vez mais complexo, com mais variáveis aprendizado e para que haja um melhor rendimento
que precisam ser levadas em consideração para que do processo de ensino, solidificando as bases do co-
essa construção seja sólida e útil para a evolução de nhecimento científico construído e aplicável.
determinada comunidade/sociedade.
Neste novo cenário, o método tradicional de FUNCIONALIDADE PARA O ENSINO
ensino, baseado em simples transmissão de conhe-
cimento de um indivíduo detentor da sabedoria (o O interesse dos alunos pelas aulas e pelo con-
professor) para um indivíduo que deveria absorver teúdo escolar, tanto no Ensino Fundamental quanto
e memorizar o que lhe está sendo passado (o aluno), no Ensino Médio vem mudando lenta, mas gradati-
sendo apenas um consumidor passivo de informa- vamente (CARDOSO, 2008). Como mencionado an-
ções (TEIXEIRA et al., 2005), não se faz eficiente e teriormente, a preocupação existente com este ce-
Sumário
nário e todas as medidas tomadas para modifica-lo, Ciências amplia as possibilidades de atuação docen-
baseiam-se nas implicações pessoais e sociais que te para proporcionar maior rendimento do processo
existem com a formação (em todos os seus aspectos) de ensino.
deste aluno. Para que ocorram mudanças é preciso que o
Em alguns momentos da história essa preo- professor tenha um preparo adequado para utili-
cupação se voltou apenas para o ensino de Mate- zar as ferramentas didático-pedagógicas (SEPINI &
mática e Português, deixando as outras áreas do MACIEL, 2011) em toda a sua potencialidade, incen-
conhecimento como coadjuvantes do processo tivando os alunos e atraindo-os para juntos alçarem
de construção do cidadão crítico e atuante. Áreas o sucesso na construção do conhecimento durante
como as Ciências, na maioria das escolas, ficaram o processo educacional.
limitadas apenas ao campo teórico do livro didático Fazendo uma breve explicação quanto à forma-
(MENEZES, 2000; UNESCO, 2005), fazendo uso da ção docente, estudos realizados por Gonzaga (2007)
metodologia tradicional de ensino e suas exaustivas e Crespo (2007) apontam que os professores, em
atividades de leitura e exercícios teóricos de repeti- sua maioria, não são preparados em suas formações
ção após aulas expositivas passivas. iniciais para atuar com a utilização de ferramentas 453
Desta forma a aprendizagem dos conteúdos de didático-pedagógicas no processo de ensino. Esse
Ciências tem suas eficiências prejudicadas, pois o despreparo faz com que os docentes, quando incen-
aluno não consegue associar a teoria dos livros di- tivados para tal, busquem cursos de formação con-
dáticos com fatos relacionados ao seu meio e ao seu tinuada para complementar suas práticas pedagógi-
cotidiano, e a formação do aluno limita-se apenas à cas com atualizações didáticas e procedimentos para
transmissão de informações sem a compreensão de uso de ferramentas auxiliares ao processo de ensino.
seus impactos sociais e ambientais, aplicabilidades No ensino de Ciências nesta nova modalidade
e senso crítico para debater assuntos relacionados se deve mostrar ao aluno, dentre outras coisas, o
(UNESCO, 2005). quão interessante e importante esta área do conhe-
A reforma curricular e as necessárias mudanças cimento é, e quais teorias e cotidiano têm relação
no processo de ensino-aprendizagem, já ressaltadas ampla e direta (UNESCO, 2005).
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, Autores como Argel-de-Oliveira (1997) e Bizzo
1998; 2002; 2008), fizeram com que a devida atenção (2002) já apontaram que uma forma de modificar o
fosse dada a esta área do conhecimento. A grande ensino de Ciências é a utilização de materiais didáti-
amplitude dos temas que são abordados na área de cos diversos e métodos alternativos de aprendizagem
Sumário
Ferrés (1996) define uma série de critérios e ma de utilização traz mais prejuízos do que benefí-
pontos de reflexão sobre o uso adequado de mídias cios ao processo de ensino-aprendizagem. O autor
no processo ensino-aprendizado. Um dos que mais coloca que o maior motivo do uso de vídeos didá-
chamaram a atenção (para a época da publicação) ticos é para despertar o interesse dos alunos sobre
foi a colocação de que determinado conteúdo, e fomentar debates em aula;
e que mais de 80% dos professores investigados não
O uso coerente do vídeo - como recurso audio-
visual comprometido com a ruptura das práticas
incentivam a produção audiovisual autoral pelos
pedagógicas tradicionais - deve centrar-se mais alunos, sendo um indicador de certa resistência às
no processo e menos no produto. O professor inovações ao processo de ensino ou a falta de prepa-
que faz uso do vídeo com essa consciência pro- ro para o uso destas formas.
cura extrapolar a simples exibição de programas
pré-prontos, envolvendo o aluno para que este
Um professor se sentirá à vontade ou prepara-
partícipe do processo, seja criando novos mate- do para utilizar recursos midiáticos como os audio-
riais, seja interferindo de maneira criativa em visuais em toda a sua potencialidade se tiver uma
materiais já existentes (FERRÉS, 1996, p.11). convivência com estas ferramentas em seu proces-
so formativo (FERRÉS, 1996). Se não houver treina- 457
Quanto mais um aluno for incentivado pelo pro- mento para o uso adequado de um material didá-
fessor a utilizar determinada tecnologia (ferramen- tico-pedagógico audiovisual já pronto, também vai
ta didático-pedagógica) de forma crítica, científica, ser mais difícil o preparo para a produção de seu
criativa e investigativa, maior será a eficiência didá- próprio material (MANDARINO, 2002).
tica desta ferramenta e maiores serão os benefícios O uso (bem como a produção) consciente e
na construção sólida do conhecimento, pois inde- planejado de recursos audiovisuais traz muitos
pendente da área de concentração e do conteúdo, o benefícios ao processo de ensino, à construção do
processo de construção deste conhecimento de modo conhecimento científico e ao desenvolvimento de
prazeroso, gradativo e dinâmico vai ocorrer de for- competências pessoais e sociais nos alunos.
ma simples e eficiente, sem os “traumas” do ensino Com base no mencionado acima, os graduan-
tecnicista de simples transmissão de conhecimento. dos de Ciências Naturais que participam de projetos
Lima (2001) aponta em suas pesquisas que, o da autora, bem como os que cursaram as disciplinas
uso do vídeo em sala de aula não está sendo mais ministradas por ela, Seminário IV e Instrumentação
realizado apenas para ocupação do tempo de aula, para o Ensino de Ciências III e IV, são levados a pla-
uma vez que autores como Ferrés (1996) e Moran nejar e produzir vídeos com conteúdos científicos
(1995) já indicavam em seus trabalhos que esta for-
Sumário
para serem utilizados com alunos de Ensino Fun- Além do recurso audiovisual mencionado, os
damental em diferentes contextos. Um exemplo de licenciandos produziram fotonovelas na disciplina
produção audiovisual pode ser visto na Figura 3, o Seminário VI, também ministrada pela autora, duas
Teatro de Marionetes. das quais encontram-se representadas na Figura 4.
Elas abordaram temas aleatórios e distintos, para
que pudessem ser utilizadas no Ensino Fundamen-
tal de forma interdisciplinar.
Foram realizadas atividades sob forma de ofici-
nas (de quadrinhos e roteiragem, de montagem de
Storyboard3, de fotografia, de expressão facial e cor-
Figura 3 - Produção de vídeo com teatro de marionetes por poral, de edição básica de imagem, e de uso básico
graduandos de Ciências Naturais de editor de apresentações) com os alunos para que
Fonte: arquivo pessoal
fosse possível a construção do produto final da dis-
ciplina.
Todas as produções deveriam conter definições
científicas, contextualização e relação com outra área 458
do conhecimento (a fim de desmistificar a divisão
das grandes áreas, que faz com que os alunos pen-
sem que as disciplinas são isoladas umas das outras).
A prática da produção de vídeo pelos graduan-
dos além de contribuir com a diversificação do acer-
vo de material didático, os capacita para do desen-
volvimento de ferramentas como alternativas para Figura 4. Quadro inicial de duas fotonovelas desenvolvidas
a metodologia de ensino em suas futuras práticas por graduandos de Ciências Naturais.
Fonte: arquivo pessoal
docentes, além de modificar a visão e o conheci-
mento que os mesmos têm sobre o uso e a produ-
As fotonovelas apresentadas na Figura 4 já fo-
ção de recursos audiovisuais no processo de ensi-
ram apresentadas em Eventos (Encontro Regional
no-aprendizagem, o que colabora não apenas com a
de Ensino de Biologia – das Regionais 02 (o VII, em
sua formação inicial, mas com todo o processo.
³ Palavra em inglês para determinar um guia visual detalhado narrando as principais cenas (com todas as suas especificidades)
de uma obra.
Sumário
veis, sabendo aplica-los de melhor forma, além de BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
corrigi-los (se possível e) quando necessário, con- Média e Tecnológica. PCN + Ensino Médio: Orientações
educacionais complementares aos Parâmetros curriculares
tribuindo com a melhoria das ferramentas didáti- nacionais. Ciências da natureza, Matemática e suas tecnolo-
cas e com o processo de ensino; [vi] ampliam seus gias. Brasília: MEC/Semtec, 2002.
entendimentos sobre ações e ferramentas didáticas,
refletindo a formação acadêmica em sua atuação BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
docente, e contribuindo significativamente para o Média e Tecnológica. Orientações Educacionais Com-
plementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais:
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¹ Mestre em Letras pela UPF, doutoranda em Letras pela UPF e professora EBTT do IFRS, campus Feliz. Email: izandraalves@
hotmail.com
² Doutora em Letras, coordenadora e professora do PPGL da UPF e professora do Curso de Letras da UPF. Email: fabianevb@
bol.com.br
³ Mestre em Letras pela UPF, professor EBTT do IFRS, campus Feliz. Email: mlcalixto1966@hotmail.com
Sumário
vadem os centros das metrópoles, conforme teoriza Essas produções representam a forma de ex-
Ana Fani Alessandri Carlos (2001). Condições estas pressão encontrada por homens e mulheres - em
que perpassam por exorbitantes valores monetários sua maioria negros/as – que buscam através da pro-
que não estão ao alcance da grande maioria da po- sa ou da poesia uma forma de manifestar-se social-
pulação. Dessa forma, a composição da paisagem mente, além de retratar o cotidiano de uma maioria
urbana não comporta a parcela populacional de bai- excluída dos bens culturais valorizados pela socie-
xa renda na pintura do quadro paisagístico central. dade capitalista atual. Trata-se das populações mar-
Nesse sentido, o grande quadro vai se fragmentando ginalizadas que habitam as periferias das metrópo-
e permitindo a composição de telas menores, porém les brasileiras. Nesse sentido, as produções destes
não menos coloridas e intensas; ao fragmentar-se, escritores não podem ser vistas como algo isolado,
portanto, a paisagem urbana ganha várias perspec- mas sim, como escritos que pretendem se firmar no
tivas, dependendo da tela que faz surgir. seio da estrutura literária hegemônica que corres-
Diante desse cenário, na literatura brasileira con- ponde ao que se tem hoje no país.
temporânea, vêm roubando a cena, a cada dia, produ- É de conhecimento de todos que a temática que
ções que até pouco tempo atrás não tinham destaque aborda a pobreza, a miséria e a violência urbana, 464
na mídia, tão pouco na academia. Trata-se da chama- mais especificamente a do espaço periférico, não
da Literatura Marginal. Aclamada por alguns, criti- surgiu agora, mas sim, é representada e ganha as pá-
cada por outros, tais escritos ganham agora espaço ginas dos livros desde o Romantismo passando pelo
não só na mídia como também geram discussões e Realismo e demais períodos literários brasileiros.
contribuições para pesquisas no campo acadêmico. Diante disso, este artigo propõe a discussão acerca
É importante destacar que ao se referir à Lite- das produções da chamada Literatura Marginal que
ratura Marginal, os próprios autores explicam que surgem em um espaço urbano diferente do já abor-
tal denominação deve-se ao fato do distanciamento dado pelos escritores anteriores; agora ela é escrita e
geográfico no qual ela é produzida e sob o qual ela protagonizada na e pela própria periferia. Dessa for-
se refere, pois referir-se à marginalidade apenas sob ma, estas produções contribuem para a formação,
a perspectiva socioeconômica é insuficiente. Trata- no texto, de uma nova percepção acerca da paisa-
-se, contudo, de uma posição que estabelece o sujei- gem urbana. A escrita da periferia passa a ser perce-
to fora de um centro, com o qual mantém relações bida, produzida e vivenciada por ela mesma.
dinâmicas e orgânicas. Assim, o que ganha destaque nas produções
da chamada Literatura Marginal é o local da enun-
Sumário
ciação que é o mesmo do objeto, o que torna tais paisagem e espaço não são sinônimos. A paisa-
textos diferentes dos publicados, por exemplo, nos gem é um conjunto de formas que, num dado
momento, exprime as heranças que representam
períodos anteriores. Nestes escritos, vê-se o próprio as sucessivas relações localizadas entre homem
habitante da periferia como apresentador das per- e natureza. O espaço são essas formas mais a
cepções acerca do seu espaço, que agora é escrito e vida que as anima. (SANTOS, 2012, p. 103)
narrado por ele mesmo.
Assim, percebe-se que a paisagem surge como
O ESPAÇO - A PAISAGEM – O LUGAR uma parte do espaço e, por estar inserida nele como
integrante dessa totalidade, é que se torna possível
É inevitável hoje não se falar em uma nova reconhecer as significações que ela contém. Vê-se,
política da espacialidade. A geografia expande seu então, que ela nada mais é do que uma abstração,
território e conquista seu lugar entre a literatura e pois a sua realidade é histórica e só é possível com-
as artes. É sob este ângulo que as paisagens, sejam preender seus significados associando-a com o es-
elas naturais ou culturais, ganham forma, vida e voz paço social no qual se encontra.
nas narrativas e, por conta disso, influenciam dire- O autor afirma ainda que espaço e sociedade
são inter-relacionados, indissociáveis. No entanto, 465
tamente o olhar do leitor e apontam para mudanças
comportamentais nas personagens. Teóricos mo- entre eles, a relação de conformidade não é total e
dernos apontam a geopoética como uma das formas a busca pelo acordo é permanente, nunca chega ao
crescente de diálogo entre o ambiente e a literatura. fim. Isso acontece porque a paisagem se constitui
O espaço influencia diretamente a vida das pes- levando em consideração momentos históricos dife-
soas, deixam marcas, impressões, opiniões. Confor- rentes que coexistem com a atualidade. Já no espaço,
me vai se modificando, da mesma forma, mudam as diferentes formas que compõem a paisagem ocu-
o modo de agir daqueles que ali estão. Também os pam no momento atual uma função também atual a
que trocam constantemente de espaços, ou seja, os fim de corresponder às necessidades de quem vive
viajantes, os estrangeiros, que se deparam com o nesta sociedade, neste momento.
novo, com o diferente, são desafiados a adequarem- Seguindo a mesma linha de pensamento, as pes-
-se aos novos lugares, ou então, são encorajados a quisas de Dorren Massey em seu livro Pelo espaço:
modificá-los. uma nova política da espacialidade (2008), apontam
Nesse sentido, faz-se necessário, primeiramen- que o espaço deve ser entendido como um processo
te, apontar como o teórico Milton Santos (2012) di- que está em construção. A autora reconhece o espa-
ferencia espaço de paisagem. Segundo o autor ço como um produto de inter-relações, como algo
Sumário
que se constrói através de interações de grandes di- gem nesse espaço. Portanto, esse conjunto de modi-
mensões até o ínfimo. Além disso, pode-se pensá- ficações do espaço formam as diferentes paisagens
-lo como a espera da possibilidade da existência da que agradam e/ou desagradam os seres, conforme
multiplicidade, no sentido da pluralidade contempo- são apresentados seus interesses e vontades.
rânea, como a esfera na qual os distintos coexistem; Ao observar como são apresentadas as paisa-
trata-se do diálogo com a heterogeneidade. Dessa gens em muitas narrativas modernas, vê-se o quan-
forma, segundo a autora, sem o espaço não há a mul- to o olhar do narrador conduz o leitor a focar nos
tiplicidade e sem multiplicidade não há espaço. Por- elementos que a ele mais interessam. No entanto, o
tanto, se o espaço é produto de inter-relações deve leitor atento, aquele que traz em suas lembranças as
estar, então, baseado na existência da pluralidade. paisagens da memória, seja ela coletiva ou não, busca
É por conta disso que o espaço está sempre em introduzir significados novos para essa abordagem
construção, em constante metamorfose; ele é um pro- paisagística do texto. Por vezes, no próprio texto, as
duto de relações-entre, relações que estão intrinca- personagens também mudam suas opiniões acerca da
das a práticas materiais que estão sempre para serem paisagem do lugar a partir do olhar do outro, quando
efetivadas, portanto, está sempre por fazer-se, nunca este exerce sobre elas algum tipo de influência. 466
acabado, sempre por ser construído. Pode-se dizer Estudos recentes como os do pesquisador Yi-Fu
também que o espaço se constitui de simultaneidades Tuan, em sua obra Topofilia, um estudo da percepção,
de situações, relatos e, conforme palavras da autora, atitudes e valores do meio ambiente (2012), apontam
de “histórias-até-agora” (MASSEY, 2008, p. 29). a Geografia Humanista Cultural como uma grande
Isso faz com que o olhar sobre o espaço esteja aliada ao se pensar nas análises que estabelecem re-
sempre sendo reconstruído, refeito, repensado, pois lações entre a Literatura e a Geografia. Isso porque
as mudanças são permanentes. Acredita-se que isso tais estudos apontam para uma análise de mundo
ocorra devido às influências e interferências huma- através das relações que as pessoas estabelecem com
nas. Há, no espaço, uma simultaneidade de aconte- a natureza, com o meio ambiente, além dos senti-
cimentos e imagens que se sobrepõem, o que não mentos que as mesmas mantêm sobre o espaço e lu-
permite que ele seja algo finalizado. As transfor- gar habitados, o que faz com que haja reflexão acerca
mações e mutações acontecem a todo o momento das relações sociais presentes nos ambientes em que
levando em consideração os acontecimentos his- se evidenciam relações culturais, sentimentais, ex-
tóricos, as modificações geográficas/ambientais e, periências diversas, percepções, etc. Nesse sentido,
principalmente, a participação dos seres que intera- pode-se compreender a Geografia Humanista cultu-
Sumário
ral como algo que contribua para que se compreen- se sentido, muito mais do que observar o mundo e
da o espaço geográfico como espaço de vivências. as coisas ao redor, é necessário senti-las e interagir
Com o objetivo de melhor estruturar a cor- com elas. Cabe perceber através dos sentidos tal in-
rente que trata do que se chama hoje de Geografia ter-relação. O estudioso diz ainda que se compreen-
Humanista Cultural, os teóricos que a defendem de a paisagem não como um objeto para ser visto ou
procuram construir uma base filosófica que fun- texto a ser lido, mas como um processo no qual as
damente suas visões de mundo de acordo com as identidades sociais e subjetivas são formadas, uma
ideias elaboradas para sua abordagem. É nesse con- espécie de meio de troca, um lugar de apropriação
texto que surgem estudos acerca da Fenomenologia visual para o sujeito e foco da formação de identida-
como forma de possibilitar um novo olhar sobre o des. Nese sentido, a formação identitária do sujeito
mundo e sensibilizar-se com ele de modo inovador, que passa pela percepção que ele tem da paisagem e
ao mesmo tempo em que se possibilite transformar também da inter-relação com outros sujeitos sociais,
essa observação e sensibilização em conceitos apli- não é fechada em si mesma, nunca se pode dizer
cáveis cientificamente. concluída. Isso porque a percepção sobre o mundo e
Assim, o teórico Merleau-Ponty, em sua obra as coisas é mutável em decorrência do convívio com 467
Fenomenologia da percepção (2011), contribui com o outro, além das mudanças sociais perceptíveis no
estudos acerca dessa discussão filosófica que parte ambiente o que contribui para que valores, ideias e
dos conceitos acerca de juízos, recordações e sensa- ideais possam sofrer alterações conceituais.
ções seguindo para a compreensão do próprio cor- Ao retomar o que Collot (2004) teoriza acerca
po como algo que pertence ao espaço e como ele se da paisagem no que diz respeito ao estar no mundo
situa neste lugar. Dessa forma, possibilita as refle- e ao estar na escrita cabe frisar a questão da per-
xões sobre como o ser humano se situa, se percebe e cepção que se tem dela, ou seja, só se pode falar
como se dá o contato com o mundo contemporâneo de paisagem a partir de sua percepção. Diz-se isso,
e globalizado. porque, diferentemente de outras entidades espa-
Outro importante pesquisador que teoriza acer- ciais, construídas pela intermediação de um sistema
ca da constituição da paisagem e sua relação com a simbólico, científico (o mapa) ou sociocultural (o
literatura é Michel Collot. Em texto publicado na território), a paisagem define-se inicialmente como
Revista Terceira Margem (2004), menciona que a espaço percebido pelo sujeito: ela constitui o aspec-
percepção da paisagem configura-se como percep- to visível, perceptível do espaço. Contudo, se essa
ção sobre o estar no mundo e o estar na escrita. Nes- percepção distingue-se de construções e simbolo-
Sumário
gias elaboradas a partir dela, e exige outros méto- parte. No momento em que se percebe o mundo ob-
dos de análise, seu aparente imediatismo não deve servado, a parte e o todo se unem; torna possível,
fazer esquecer que ela não se limita a receber passi- então, unir cada unidade de observação a fim de for-
vamente os dados sensoriais, mas os organiza para mar o conjunto observado e, a partir daí, emitir um
lhes dar um sentido. A paisagem percebida é, desse juízo, um ponto de vista.
modo, construída e simbólica. É aí que se pode per- O pesquisador Collot (2012) destaca ainda a im-
ceber a inter-relação entre os sujeitos; quando os portância do conceito de ver ao tratar-se da questão
sentidos do sujeito são utilizados para dar um sen- da paisagem, pois tal ação está relacionada a uma
tido à totalidade. ideia prévia ou ainda a uma comparação com o já
O pesquisador Michel Collot, em texto publica- dito: é ver em relação. Dessa forma, cada objeto é
do na Revista Makunaíma (2012), com o intuito de percebido e interpretado em função de seu contexto,
definir a paisagem, parte de conceitos retirados de de seu horizonte, a partir do lugar em que está inse-
dicionários. Os conceitos dizem que paisagem re- rido, do momento histórico em que foi construído,
fere-se à uma parte, um fragmento de uma região etc. Como se pode notar, então, a paisagem é sempre
que a natureza apresenta ao olho que a observa, ou visão de conjunto, principalmente porque ela implica 468
ainda que se trata de uma extensão de uma região uma certa distância; ora, a apreciação da distância e
que se vê sob um único aspecto. Tal observação, se- da profundidade é, sem dúvida, o processo que im-
gundo aqueles que conceituam deve ser observada plica o confronto dos mais numerosos parâmetros.
de um lugar bastante elevado onde todos os objetos Cabe mencionar, ainda, que a percepção da pai-
anteriormente dispersos reúnam-se de um único sagem vai muito além do que cabe no campo visual,
golpe de vista. Nesse sentido, é que o autor apresen- muito mais do que simples imagens que se projetam
ta três elementos essenciais dessas definições que no campo de visão com o simples abrir de olhos.
decide destacar: a ideia de ponto de vista, a de parte, Vê-se a paisagem como uma interface entre espaço
e a de unidade ou de conjunto. objetivo e subjetivo, ou seja, o que o campo da vi-
Ao se falar em ponto de vista, vê-se que a ideia são oferece e o que se pode construir de imagens a
de individualidade está intrincada, pois a percepção partir dele; sua percepção põe em jogo, ao mesmo
do indivíduo é levada em conta na medida em que tempo, o reconhecimento de propriedades objeti-
emite juízos de valor sobre o observado. A obser- vas e a projeção de significações subjetivas. Nessa
vação inicia a partir de um determinado aspecto, projeção, estão subentendidos os pré-conceitos e
de um ponto específico do todo, por isso fala-se em conhecimentos do observador que deve relacioná-
Sumário
-los às imagens para que se projetem e se tornem nizar invenções de significados, o que contribuiria
paisagem subjetiva. para o crescimento e desenvolvimento da humani-
Há ainda a possibilidade de se observar a pai- dade como um todo ou a reprodução indefinida de
sagem como um lugar de troca entre espaço pessoal estereótipos, tão ultrapassados, desgastados e que
e coletivo: o indivíduo sente-se em sua própria casa já são tão caros à sociedade por conta da carga de
na paisagem, ainda que o aqui pertença a todo o pré-conceitos que carregam em si.
mundo. Ao mesmo tempo lugar público e privado, a
paisagem tem sua significação modelada tanto pela A URBE E A PERIFERIA: O CONTEXTO DA
memória coletiva quanto pela iniciativa individual. LITERATURA MARGINAL
Diz-se isso porque há o condicionamento social do
olhar, não há como fugir da relação que o indivíduo Atualmente, tem-se percebido, não somente
faz de seus conceitos pré-existentes, de suas expe- por parte da Biologia ou da Geografia, mas também
riências sociais, de seus conceitos históricos com o em disciplinas como a Filosofia, a Sociologia e a
que ele vê no momento. Ao estabelecer estas pontes Antropologia a crescente ampliação de discussões
põem-se em jogo as virtualidades de sentido envol- e análises acerca de fenômenos sociais, culturais 469
vidas na percepção mais simples e que permitem ao e econômicos provocados pela intervenção desor-
indivíduo fazer da paisagem um lugar para ele e não denada do homem no espaço natural circundante,
um lugar comum. com consequências quase sempre negativas. Con-
Diante de todas as discussões que giram em tudo, vindo ao encontro de tais discussões, também
torno da percepção da paisagem pretende-se trazer a teoria literária tem aprofundado discussões acerca
à tona um ponto de reflexão bastante relevante já da construção e apresentação da paisagem no texto
mencionado por Collot (2012) no que diz respeito literário contemporâneo.
ao desafio que este assunto traz à sociedade atual. É possível perceber a cada dia o crescimento
É possível notar que tais percepções relacionadas desenfreado das metrópoles e, em contrapartida, a
à paisagem estão cada vez menos vinculadas com forma como o sujeito habitante desse lugar é espre-
a funcionalidade céu-terra, cada vez menos lincada mido em seu pequeno espaço. Diante disso, as ma-
aos mitos universais que dizem respeito a ela. As- nifestações artísticas e culturais no espaço urbano
sim, tais possibilidades apontam dois caminhos aos ganham novos formatos e precisam adaptar-se às
quais deve se estar muito atento: as muitas oportu- novas realidades que exigem fragmentação e veloci-
nidades que tais estudos oferecem a fim de oportu- dade. Assim, a arte contemporânea, plural em suas
Sumário
possui também uma dimensão real e concreta no lizado exige também que os espaços geográficos se
que tange a realização da vida humana, que ocorre aproximem visualmente, que se pareçam entre si,
de modos diferentes no tempo e no lugar e que se que sejam o mais homogêneos possível.
materializa por intermédio dos territórios que, por No entanto, há grupos humanos que não se en-
sua vez, contribuem para que se possa ler as possi- quadram nessa perspectiva de homogeneidade pai-
bilidades concretas de realizações da sociedade. sagística urbana de centro – que representa o belo,
Nesse sentido, é possível perceber que a forma- o esteticamente perfeito e agradável aos olhos – são
ção da sociedade urbana determina novos paradig- então, empurrados para longe, para que ocupem lu-
mas que se impõem de fora para dentro, por conta do gares longínquos. Trata-se, aqui, dos habitantes dos
poder de constituição da sociedade de consumo, esta espaços periféricos.
que está embasada em modelos comportamentais e Há, contudo, a participação expressiva do Es-
valorativos impostos pela grande mídia que dita pa- tado nessa transferência, segundo explica Ana Fani
drões e parâmetros para a vida. Tudo isso ocorre em (2001) ao dizer que por intermédio do poder e da
um espaço e um tempo desiguais porque há um força que possui, o Estado reforça a hierarquia de
lugares, criando novas centralidades e expulsan- 471
choque entre o que realmente existe e o que se
impõe como novo; vê-se que isso está na base
do para a periferia os antigos habitantes do lugar,
das transformações da metrópole, onde os lu- criando, assim, um espaço de dominação. É assim
gares vão-se integrando de modo sucessivo e que impõe sua presença em todos os lugares a fim
simultâneo com uma nova lógica, aprofundan- de controlar e vigiar. Dessa forma, esse novo espaço
do as contradições entre o centro e a periferia.
(CARLOS, 2001, p.14)
produzido vê-se fragmentado por conta da especu-
lação imobiliária, homogêneo por conta da domina-
Contudo, a paisagem urbana se constitui a partir ção imposta pelo estado ao espaço e hierarquizado
das transformações sociais que têm por base a eco- pelo fato de passar a existir a divisão espacial com
nomia – crescimento econômico - que acaba com- relação ao trabalho.
pactando as pessoas em pequenos espaços, ou ainda O que se vê hoje em muitas metrópoles é a ten-
delimitando seus lugares em meio à totalidade, esta tativa de igualar o inigualável no que tange a questão
que é multifacetada. Vê-se, então, um todo que é múl- da estética urbana, seja ela no centro, ou nas perife-
tiplo, tão diferente no que diz respeito à constituição rias das cidades. Dessa forma, aqueles que não con-
genética e, ao mesmo tempo, com tantos elementos seguem adequar-se a esta proposição estão, automa-
estéticos em comum. Isso porque, o mundo globa- ticamente, fora do quadro da paisagem que ganha
Sumário
destaque na mídia ou na academia, quando se refere então, esconder esse recorte social, fazê-lo desapare-
a produções artístico-literárias. Assim, o plano local cer do quadro geral para evitar, com isso, os desgas-
se acha cada vez mais invadido pelo plano global. tes, os conflitos e até as interferências indesejáveis
A urbanização crescente e desenfreada moti- no quadro urbano do centro. É inegável, contudo, a
vada pela sociedade capitalista e elitista atual não crescente expansão da cultura da periferia, ou seja,
permite aos habitantes da periferia a inclusão desse além de estar se autodefinindo no seu próprio meio,
espaço na totalidade da paisagem urbana politica- no seu espaço geográfico real, está ultrapassando
mente correta. Este referido espaço, atinge negati- as barreiras da materialidade espacial para entrar
vamente o olhar acostumado com o limpo, branco e definitivamente em outros territórios, socialmente
belo. As pessoas só podem dar-se conta desses qua- ocupados por aqueles pertencentes a espaços supe-
dros desagradáveis que também compõem as paisa- riores, sob o foco dominante da cultura elitista.
gens urbanas ao frenarem seus olhares acostuma-
dos à velocidade e ao condicionamento que sofrem CONSIDERAÇÕES FINAIS
diariamente sobre o que devem observar e como de-
vem fazê-lo. Ao aterem-se, então, de modo especial Diante do novo contexto em que se situa a Li- 472
e cuidadoso podem perceber um quadro diferente, teratura na contemporaneidade é inevitável para o
que possui particularidades, características que se crítico literário não focar seu olhar e atenção para
distanciam das imagens centrais, mas que possibili- as chamadas vozes da periferia. Trata-se de autores
tam a criação de perspectivas diferentes a partir da que vêm ganhando espaços e atraindo para seus es-
percepção do observador que se permite tocar, que critos um público leitor cada vez maior. É evidente
se permite perceber o espaço sob outra perspectiva. que esses escritores, por não fazerem parte da elite
Trata-se, então, de assumir, mesmo que por um de- cultural e tão pouco por estarem distantes dos meios
terminado tempo, o lugar do observador e julgador de circulação acadêmicos, ainda estão à sombra do
da paisagem que sempre fora observada e julgada cânone. No entanto, contribuem para a formação e
por alguém distante daquele meio. consolidação de um novo capítulo da literatura bra-
A periferia ocupa, então, um lugar de descon- sileira contemporânea graças, em grande parte, às
forto para muitos setores da sociedade que ao fingir mídias eletrônicas e às redes sociais que contribuem
não percebê-la, acabam por fazer com que as trans- para disseminar essa arte.
formações sociais demorem a chegar até este espa- Nesse sentido, ao se pretender definir o escritor
ço, ou então, nunca cheguem. É mais conveniente, da Literatura Marginal, nada mais legítimo do que
Sumário
apresentar o próprio sujeito marginalizado, aquele No entanto, o que brota das páginas dos livros es-
que sofre diretamente com as condições de vulnera- critos pela periferia hoje, não é um dado relativo
bilidade social que uma sociedade desigual produz, apenas à Literatura Marginal como também, uma
como sendo o autor de um discurso que aborda seu espécie de orientação de grupos sociais e culturais
cotidiano. O discurso, nesse sentido, para além de marginalizados, que desejam falar por si, sem a
sua postura política de denúncia, passa a ser orna- presença de mediadores. Se antes o intelectual do
mentado por uma perspectiva quase que testemu- centro atuava enquanto porta-voz destes grupos,
nhal, determinando a voz oriunda dos espaços peri- falando em nome destes sujeitos e, dessa maneira,
féricos como a verdadeira forma de representação da contribuía para o silenciamento deles, agora não há
miséria e da violência que assola estes espaços e que mais espaço para este tipo de atuação, sobretudo
por muitas vezes é mostrada apenas para denegrir a quando estes setores passam a falar e não desejam
imagem daqueles que habitam estes espaços, como mais que o intelectual fale em nome deles. Nesse
é comum em muitas telenovelas de horário nobre. sentido, pode-se citar também os Saraus que acon-
Afinal, cabe questionar: quem possui a legitimação tecem na periferia de São Paulo e que representam
para narrar a margem senão o próprio marginal? a possibilidade da comunidade local compartilhar 473
Esse posicionamento crítico e contestador do entre si, e ao seu modo, suas produções culturais de
escritor periférico e o surgimento dessa literatu- forma dinâmica, alegre e renovadora.
ra ecoa de diferentes formas através da Literatura A pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda
Marginal e se revela um dado precioso para o es- (2004) tem destinado suas pesquisas a observar e
tabelecimento de uma discussão acerca do posicio- analisar as vozes marginais periféricas. Assim, seus
namento dos intelectuais, estudiosos da literatura e escritos abordam a necessidade de criação de dife-
historiadores tradicionais frente a estas manifesta- rentes abordagens das novas vozes discursivas no
ções literárias emergentes que cobram para si legiti- cenário cultural brasileiro. A autora afirma que é
midade. Além disso, levantam a discussão acerca do preciso repensar, com radicalidade, o papel da inte-
silenciamento que essas vozes sofreram ao longo da lectualidade tanto no campo social, como no cam-
história por não pertencerem à estrutura social-his- po acadêmico e artístico. A novidade de que fala a
tórico-literária demarcada pelo cânone. autora refere-se às propostas da cultura Marginal e
O que se vê através dos escritos marginais é, de tantas outras manifestações artísticas originárias
principalmente, uma orientação política que parte das periferias das grandes cidades. No movimento
da periferia rumo aos centros do poder e do saber. motivado por Heloísa Buarque a proposta de repen-
Sumário
sar o papel do intelectual não é meramente ignorar CARLOS, Ana Fani Alesandri. Espaço e tempo na metró-
o debate e excluir-se da vida política e artística das pole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contex-
to, 2001.
elites intelectuais. Tampouco, a crítica deseja ouvir
somente o que as vozes que emergem têm a dizer. COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Terceira Mar-
Segundo a autora, as produções artísticas e cultu- gem. Poesia e seus entornos. Trad. Alberto Pucheu. Revista
rais da periferia, ao elaborarem suas vozes expressi- do programa de Pós-Graduação em Ciência da Litera-
vas acerca de suas experiências e vivências, passam tura da UFRJ, ano IX, n. 11, p. 165-180, 2004. www.ciencia-
lit.letras.ufrj.br/terceiramargemonline/.../NUM11_2004.
a assumir a postura e a voz que no passado fora de
outro: o intelectual, o habitante do centro do poder ___. Pontos de vista sobre a percepção de paisagens. In: NE-
e do saber. Contudo, é preciso questionar: qual é o GREIROS, Carmem; ALVES, Ida; LEMOS, Masé (Orgs.). Li-
lugar a ser ocupado pelo historiador, hoje, no to- teratura e paisagem em diálogo. [S.l.]: Edições Macunaí-
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cante ao diálogo com estes movimentos, discursos e
com/catalogo/2-critica-literaria/12-literatura-e-paisagem-
produtos culturais periféricos que são apresentados -em-dialogo . Acesso em: 15 abril 2016.
por eles mesmos, sem a mediação do intelectual?
FEITOSA, Marcia Manir Miguel. Sophia e a poética do mar
em Portugal: o espaço do lugar. In: NEGREIROS, Carmem;
474
ALVES, Ida; LEMOS, Masé (Orgs.). Literatura e paisagem
REFERÊNCIAS em diálogo. [S.l.]: Edições Macunaíma, 2012. p. 193-
210. Disponível em: http://edicoesmakunaima.com/catalo-
ALVES, Ida. Paisagens mediterrâneas na poesia portuguesa: go/2-critica-literaria/12-literatura-e-paisagem-em-dialogo .
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81-98. volvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
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gem-em-dialogo . Acesso em: 5 abril. 2016. Luiz Costa (Coord. e trad.). A literatura e o leitor: textos da es-
tética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 83-132.
BORBA, M. A. J. de O. Teoria do efeito estético. Niterói:
EdUFF, 2003.
Sumário
475
Sumário
⁴ Mikhail Bakhtin (1997, p. 364) explica que as grandes obras da literatura levam séculos para nascer, e, no momento em que
aparecem, colhemos apenas o fruto maduro, oriundo do processo de uma lenta e complexa gestação. Contentar-se em com-
preender e explicar uma obra a partir das condições de sua época, a partir das condições que lhe proporcionou o período con-
tíguo é condenar-se a jamais penetrar as suas profundezas de sentido.
Sumário
⁵ O conceito de instituição discursiva é de certo modo o pivô desse movimento; ele articula:
- as instituições, os quadros de diversas ordens que conferem sentido à enunciação singular: a estrutura do campo, o estatuto
do escritor, os gêneros do texto...;
- o movimento mediante o qual o discurso se institui, ao instaurar progressivamente um certo mundo em se enunciado e, ao
mesmo tempo, legitimar a cena de enunciação e o posicionamento no campo que tornam possível esse enunciado (MAINGUE-
NEAU, 2008, p. 54).
⁶ O autor reflete sobre o gênero como um enunciado de natureza histórica, sociointeracional, ideológica e linguística relativa-
mente estável, porque gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros a cada momento do tempo.
Sumário
não se tinha a perspectiva de linguagem em que o apresenta articula, no nível do discurso, elementos
enunciado é a unidade real da comunicação verbal. como “enunciado e enunciação, linguagem e con-
A linguagem é entendida como discurso, que texto, fala e ação, instituição linguística e institui-
possibilita conceber a literatura não apenas como ções sociais” (MAINGUENEAU, 2005, p. 24-25).
texto, mas como um procedimento que consente de- Em Uma semântica global é apresentado um
sestabilizar a distinção entre texto e contexto. Desse recorte de alguns planos do discurso humanista
modo, a próxima seção preocupa-se em apresentar devoto, sem pretender que esses planos sejam to-
a semântica global, estreitando a relação entre lín- mados como privilegiados em pesquisas sobre ou-
gua e literatura, bem como com o próprio corpus tros corpora. É analisado “a intertextualidade”, “o
em análise. vocabulário”, “os temas”, “o estatuto do enunciador
e do destinatário”, a “dêixis enunciativa”, o “modo
SEMÂNTICA GLOBAL de enunciação” e o “modo de coesão”. Ao analisar o
“modo de enunciação”, pela primeira vez apareciam,
Expor a aproximação e a compatibilidade dos na obra de Maingueneau (2008), conceitos relacio-
estudos linguístico e literários, mais especificamen- nados ao que posteriormente tem sido analisado no 479
te o texto literário como discurso, é necessário para âmbito do “ethos discursivo”.
compreender que a obra se enuncia através de uma Conforme Maingueneau (2008), ao integrar o
situação que não é um quadro preestabelecido e fixo, ethos retórico à Análise do Discurso (AD), propõe
que se legitima por meio de um circuito: mediante o dois deslocamentos. O primeiro consiste em que os
mundo que instaura, ela precisa justificar tacitamen- efeitos que o enunciador pretende causar sobre seu
te a cena de enunciação que impõe desde o começo. auditório por meio de sua imagem são impostos pela
Para compreensão dessas situações enunciativas, formação discursiva e não pelo sujeito em si. O se-
considerando que o corpus da pesquisa é o conto, o gundo é que “a AD deve recorrer a uma concepção
procedimento metodológico “semântica global” de do ethos que seja transversal à oposição entre o oral
Dominique Maingueneau (2005) é suporte para aná- e o escrito”. (MAINGUENEAU, 1997, p. 46). Desse
lise da narrativa Linda, uma história horrível. modo, Maingueneau extrapola aquela ideia de ethos
Em Gênese dos Discursos, obra de Dominique concebida pela antiga Retórica ao considerar que o
Maingueneau lançada na França em 1984, pela pri- discurso não é construído exclusivamente a partir
meira vez em que o teórico postulava novos con- da vontade de um sujeito – já que ele é clivado e
ceitos teóricos e metodológicos, e a proposta que heterogêneo – e que mesmo os textos escritos pos-
suem um tom de voz.
Sumário
⁷ A cena englobante corresponde ao que se costuma entender “por tipo de discurso”. Quando se recebe um folheto na rua, deve-
se ser capaz de determinar se é membro do discurso religioso, político, publicitário etc., em outras palavras, em que cena en-
globante se deve situá-lo para interpretá-lo, em nome de que ele interpela aquele que o recebe (MAINGUENEAU, 2008, p. 251).
Sumário
nografia se mostra, por definição, para além de toda próprio direito de construir um dado mundo me-
cena de fala que seja dita no texto”. (MAINGUENE- diante uma dada cena de fala correlativa que atri-
AU, 2006, p. 252). A noção de “cenografia” adiciona bui um lugar a seu leitor ou espectador. Portanto,
ao caráter teatral da “cena” a dimensão de da grafia8 a cada instância discursiva legitimada, há a cons-
Assim, a obra se legitima criando um enlaça- trução do ethos, essa formação será tematizada na
mento, dando a ver ao leitor um mundo cujo caráter próxima seção.
convoca a própria cenografia que o propõe e nenhu-
ma outra, pois, conforme Maingueneau (2006), atra- O ethos
vés daquilo que diz, o mundo que ela representa,
a obra tem de justifica tacitamente essa cenografia Maingueneau (2008) aponta que a cenografia é
que ela mesma impõe desde o início. É necessário aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse dis-
apreender que a obra, por sua própria apresentação, curso engendra: ele legitima um enunciado que, por
pretende instituir a situação que a torna pertinente. sua vez, deve legitimá-la, precisa estabelecer que
Desse modo, as obras podem basear sua ceno- essa cena da qual vem a palavra é precisamente a
grafia em cenas de enunciação já validadas9, que cena requerida para enunciar nessa circunstância. 481
podem ser outros gêneros literários, outras obras, São os conteúdos desenvolvidos pelo discurso que
outras situações de comunicação de caráter não li- permitem especificar a validar um ethos, bem como
terário e até mesmo eventos de fala isolados. Por- a sua cenografia, por meios dos quais os conteúdos
tanto, a cenografia não é uma simplória base, mas surgem. Dominique Maingueneau começou a refle-
centro em torno do qual gira a enunciação. tir sobre ethos10, no início dos anos 1980, não postu-
A literatura, nesse âmbito, é um discurso cuja lando que essa noção chegaria a ter tanta repercus-
identidade se constitui através da negociação de seu são. Curiosamente, o reaparecimento dessa noção
⁸ Essa “- grafia” não remete a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas um processo fundador, à in-
scrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação com a memória de uma enunciação que se situa na filiação de outras
enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego. A grafia é aqui tanto quadro como processo; logo, a cenografia está
tanto a montante quanto a justante da obra: é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que em troca
ele precisa validar através de sua própria enunciação (MAINGUENEAU, 2008, p. 251).
⁹ Validado não significa valorizado, mas já instalado no universo de saber de valores do público. (MAINGUENEAU, 2008, p. 256,
grifo do autor).
10
Na Retórica, Aristóteles procura apresentar uma techne que visa examinar o que é persuasivo não para esse ou aquele indiví-
duo, mas para esse ou aquele tipo de indivíduos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 267).
Sumário
não se deu, de saída, dentro do quadro da retórica, as marcas linguísticas presentes nas falas, cenas de
mas sobretudo por meio das problemáticas relativas enunciação, no processo discursivo do conto, e, por
aos discursos. conseguinte, descrever a analisar o ethos discursivo
O autor francês explicita que enquanto a retóri- do protagonista no conto de Caio Fernando Abreu.
ca vincula ethos essencialmente à oralidade, em vez Num primeiro momento, foi realizada a leitu-
de reserva-lo à eloquência judiciária ou mesmo à ra do conto, apresentando o enredo; em seguida,
oralidade, é possível postular que todo texto escrito, para reconhecer a posição dos enunciadores, o filho
ainda que a negue, possui uma vocalidade específica (enunciador) e a mãe (coenunciador); identificar os
que permite remetê-lo a uma caracterização do cor- elementos dêiticos da enunciação; vocabulário, as
po do enunciador, a um fiador que, por meio do seu escolhas; cenografia; a partir das cenas compreen-
tom11, atesta o que é dito. der o ethos do protagonista, portador vírus do HIV.
A partir dessa perspectiva é que analisamos a
obra literária não como um amontoado de dizeres, Análise enunciativa
e nem com a perspectiva de ethos da retórica – que
hoje se encontra fragmentada em diversas teorias e O conto apresenta um protagonista que visita a 482
práticas, mas como um discurso que dotado de uma sua mãe, que vive solitariamente, num ambiente tão
corporalidade, estabelecendo uma interação com o mórbido quanto ela. O próprio título é uma ironia,
coenunciador. A partir desse prisma, analisaremos pois as personagens e a casa estão em degradação.
o ethos discursivo, com destaque, o protagonista de A conversa da mãe e do filho é registrada na cozi-
Linda, uma história horrível. nha, local engordurado, manchado, similar aos tra-
ços da doença do personagem central, que abafa a
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS magreza, os poucos de fios de cabelo e o semblante
arrasado.
Esse estudo circunscreve-se em uma abor- Além da doença pouco conhecida pela sociedade
dagem descritivo-qualitativa com base no corpus brasileira contemporânea, a Aids, os laços maternos
“Linda, uma história horrível” (1987), sob o prisma são enfraquecidos, é notório que o filho não fazia vi-
da Semântica Global do teórico francês Dominique sitas corriqueiras, e como o futuro reserva momen-
Maingueneau (2006, 2008, 2015). Assim, a partir da tos hipotéticos apenas – em função dos sintomas
situação comunicativa, objetivamos compreender do vírus, tem-se um momento saudosista. Talvez a
11
O termo “tom” tem a vantagem de valer tanto para o escrito como para o oral. (MAINGUENEAU, 2008, p. 271).
Sumário
morte pouparia o protagonista dos encargos degene- que ele adota em relação ao que diz a seu destinatá-
rativos da patologia, mais do que isso, livrá-lo-ia dos rio (MAINGUENEAU, 2015, p. 27) [grifo do autor].
julgamentos de uma sociedade que mantém estereó- Nas cenas enunciativas do conto, há na conversação
tipos, oprime e exclui aqueles que não preenchem os o locutor que se torna ouvinte, e o ouvinte que se
requisitos ditados pela grande massa. torna locutor.
A situação de enunciação no conto, isto é, o Considerando o estatuto do enunciador e do
processo que envolveu a comunicação no enredo, destinatário, Maingueneau (2005) postula que os di-
deixa marcas, e essas representam uma fala ence- versos modos da subjetividade enunciativa depen-
nada. É evidente o contexto de produção da obra dem igualmente da competência discursiva, porque
literária, num momento de efervescência ditatorial, cada discurso define o estatuto que o enunciador
seguido de um golpe militar no Brasil, entre outros deve se atribuir a seu destinatário a fim de legitimar
fatores, porém para a pesquisa, considerar-se-á o o seu dizer. No conto, é notório que o enunciador
processo comunicativo. forma um estatuto de uma pessoa que deseja omitir
O filho, o qual não apresenta uma identidade a sua doença, bem como o seu sofrimento, as suas
especificada no conto, assume a função de enun- manchas e a própria rejeição. 483
ciador, que “quando confrontado com seu Outro ... É possível identificar a legitimação da coenun-
é condenado a produzir simulacros desse outro, e ciadora que se manifesta de modo investigativo, não
simulacros que são apenas seu avesso” (MAINGUE- compreendendo a condição física do filho, deixando
NEAU, 2005, p. 55). Assim, uma posição enunciati- claro uma espécie de descontentamento em relação
va não pode sair de seu fechamento semântico, ela à aparência do seu herdeiro. Nesse caso, fica eviden-
só pode emprestar ao Outro suas próprias palavras. te a causa que motivou o protagonista visitar a mãe.
Um sujeito enunciante constitui a identidade enun-
— Deixa eu te ver melhor — pediu.
ciativa que o sujeito comunicante dá a si mesmo. Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silên-
A mãe assume o papel de coenunciador, que cio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala.
neste estudo, baseado na linguística enunciativo- Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos
-discursiva, é definido como um destinatário, salvo atrás dela.
— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia
que o discurso só é discurso se estiver relacionado a preocupada. — Muito mais magro.
um sujeito, “a um EU que se coloca ao mesmo tempo
como fonte de referências pessoais, temporais, espa-
ciais (EU –AQUI-AGORA) e indica qual é a atitude
Sumário
O ato de enunciação supõe a instauração da dêi- louças amontoadas, retratos empoeirados, os panos
xis espaciotemporal que cada discurso constrói em
12
sujos da cadela sarnenta, etc. “Como se sabe, esse
função de seu próprio universo. “Não se trata, pois, sistema está na base da identificação dos dêiticos
das datas, dos locais em que foram produzidos os espaciais e temporais, cuja referência é construída
enunciados efetivos, tanto mais que o estatuto tex- com relação ao ato de enunciação” (MAINGUENE-
tual dos enunciadores não coincide com a realidade AU, 2006, p. 251). Com viés literário, um texto é um
biográfica dos autores”. (MAINGUENEAU, 2005, p. discurso provido de uma fala encenada.
89). Considera-se ainda que um discurso não é ape- Em relação às marcas verbais, Maingueneau
nas um determinado conteúdo associado a uma dêi- (2002, p. 108) sobre esses dêiticos afirma que “as
xis e a um estatuto de enunciador e de destinatário, marcas de presente, passado e futuro acrescenta-
mas também uma maneira de dizer, que pode ser das ao radical do verbo, ou as palavras e grupos de
entendido como um modo de enunciação. palavras com valor temporal como ontem, amanhã,
Desse modo, há no enredo uma perspectiva do hoje, há dois dias, dentro de um ano etc., têm como
óbito, são sujeitos melancólicos. O enunciador sen- ponto de referência o momento de sua enunciação”.
te-se impotente, uma escória da sociedade. Enquan- No corpus, o presente e o pretérito são predominan- 484
to o coenunciador, que tem dificuldades em reco- tes, sendo que os verbos no presente do indicativo,
nhecer a patologia do filho, está em idade avançada, sua referência temporal coincide com o momento
que vive solitariamente num ambiente em ruína, de enunciação. Com efeito, as categorias de passa-
tão degradado quanto sua reputação. “— Também do e futuro, Maingueneau (2002) explica que essas
moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar saben- são definidas em relação ao presente da enuncia-
do. E não ia dar no jornal”. ção, considerando passado aquilo que é apresenta-
A situação de enunciação compreende um espa- do como não sendo mais verdadeiro na situação de
ço, evidenciada pelas marcas linguísticas, validando enunciação. Já o futuro, é colocado como hipotético,
a enunciação e delimitando a cena. O local apresen- não sendo verdadeiro ainda.
tado no corpus é a casa do coenunciador, com pre- No conto, Linda, uma história horrível (1987), há
ponderância a cozinha, que de modo semelhante aos um presente durativo que marca mais uma vez o
demais cômodos apresentava um certo descuido: saudosismo, rememoração, coincidindo com o mo-
12
Em linguística, entende-se por isso conjunto de localizações no espaço e no tempo que um ato de enunciação apresenta,
graças aos “embreadores”. (MAINGUENEAU, 2005, p. 88).
Sumário
mento de referência. “— Teu quarto continua igual, rando que essa cena de um gênero do discurso não
lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. é um bloco compacto, há a interação de três cenas:
Tem lençol limpo no armário do banheiro”. a englobante, genérica e a cenografia.
O pretérito perfeito marca uma relação de an- A cena englobante corresponde à definição de
terioridade entre o momento do acontecimento e o tipo de discurso, resultante do recorte de um setor
momento de referência presente. “Ele acendeu um da atividade social caracterizável por uma rede de
cigarro. Tossiu forte na primeira tragada”. Os vo- gêneros de discursos. Contudo, essa cena não é su-
cábulos ao longo do enredo evidenciam a morbidez ficiente para explicitar as atividades verbais em que
de uma atmosfera doentia, degradante, tantos dos estão emaranhados os sujeitos.
aspectos físicos como psicológicos. Um enunciador Desse modo, se a cena englobante é o tipo de
que tenta esconder a sua peste, um coenunciado- discurso, o corpus apresenta uma narrativa que re-
ra que nota estranheza no filho e uma cadela velha lata o retorno do protagonista à casa da mãe, en-
já sem pelos nas orelhas – uma espécie de espelho fermo, oprimido, excluído, envelhecido, ou seja,
para a situação do protagonista. Observamos: latido acontecimentos de um cotidiano simples. Maingue-
desafinado, tosse noturna, amargo, velho jeito azedo, neau (2006, p. 251) explica que “a obra é na verdade 485
cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e anunciada através de um gênero do discurso deter-
carne velha, sozinha, inútil, sarnenta, velha, manchas minado que participa, num nível superior, da cena
escuras, caos, doença, miséria, amarela, escura, las- englobante literária”, obtendo-se a cena genérica,
cadas, plástico frio, velhos morangos, robe desbotado, pois suscitam expectativas.
cabelos brancos, pestes, dedos amarelos, olhos aper- A cena construída no conto é de personagens
tados, olhos branquicentos, esclerosada, umidade, em pleno declínio, seja pela perda de peso e cabe-
solidão, pano sujo, voz rouca, vertigem, casa antiga, lo, pele manchada, saúde limitada, seja pela falta de
manchas púrpuras. perspectiva de mudança – o presente é vivido sob a
Assim, conforme as marcas discursivas apre- angústia e o futuro não reserva a remissão da atual
sentadas no conto, alicerçadas num tempo e num condição de sobrevivência. O enunciador é portador
espaço, há a cenografia. “De fato, o discurso pressu- do vírus do HIV e esse é o grande desencadeador do
põe certo quadro, definido pelas restrições do gêne- enredo, pois não se sente à vontade para abrir-se
ro, mas devem também gerir esse quadro pela ence- com a mãe relatar sua real situação.
nação de sua enunciação” (MAINGUENEAU, 2015, Assim, literariamente, temos a cenografia em
p. 117). Detemo-nos à cena de enunciação, conside- primeiramente, sendo a cena englobante secundária
Sumário
nesta instância. Maingueneau (2006) destaca que é É válido apreender que o “caráter” corresponde
nessa cenografia que são validados os estatutos de a um feixe de traços psicológicos, enquanto a “cor-
enunciador e do coenunciador, e também o espaço poralidade”, é associada a uma compleição física e a
e o tempo. uma forma de se vestir. Além disso, o ethos implica
No conto em análise, a noção de enunciador uma forma de mover-se no espaço social, uma dis-
se apoia na ideia de que o enunciador, por meio da ciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um
enunciação, organiza a situação a partir da qual pre- comportamento.
tende enunciar. Maingueneau (2008, p. 223) explana O enunciador, no conto, mostra a corporalida-
que “todo discurso, por seu próprio desenvolvimen- de de um indivíduo que se vê impotente, diante da
to, pretende, de fato, suscitar a adesão dos destina- sua condição física e psicológica, que precisa voltar
tários instaurando a cenografia que o legitima. Esta aos braços da mãe para compartilhar, mesmo que
é imposta logo de início, mas deve ser legitimada ela não compreenda todo o propósito da visita, suas
por meio da própria enunciação”. fraquezas. A coenunciadora revela uma corporali-
Retomando os conceitos da semântica global e dade receptiva, mesmo com o descaso do filho, que
os envolvidos nas cenas de enunciação – vocabulá- não a procurava, bem como observa-o e tenta com- 486
rios, dêixis e demais marcadores do discurso, o ethos preender o porquê do seu estado físico. Percebe-se
do protagonista de Linda, uma história horrível é que a relação era conflituosa, mas naquela oportu-
descrito e analisado. nidade da visita abraçou-a, desajeitado. Não era um
Maingueneau (2008) sobre a formação do ethos hábito, contatos, afagos.
discursivo cita que qualquer texto escrito tem uma O enunciador tenta revelar preocupação coma
“vocalidade” específica que permite relacioná-la a saúde do coenunciadora, advertindo-o de tomar
uma caracterização do corpo do enunciador13, a um café antes de dormir. A mãe, contudo, retruca, ten-
“fiador” que, por meio de seu “tom”, atesta o que é ta comprovar com cinismo a sua autossuficiência,
dito. O escritor francês pondera que optou por uma dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
concepção mais “encarnada” do ethos, que, nessa O fato de viverem sozinhos, leva a coenuncia-
perspectiva, recobre não apenas a dimensão verbal, dora a acreditar numa espécie de determinismo, —
mas também o conjunto de determinações físicas e Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai mor-
psíquicas associadas a um “fiador” pelas representa- reu só, lembra? O protagonista, mesmo tendo noção
ções coletivas. de toda problemática, rebate, pede esquecimento
13
Não ao corpo do locutor extradiscursivo.
Sumário
dos fatos negativos, uma espécie de fuga de toda seja, reconhecer a enunciação num texto literário.
vida morna, vazia, e agora, saudosa. Por isso, que abordamos na segunda seção a aproxi-
A cadela, ironicamente, chamada de Linda, pa- mação entre as teorias já aproximadas por estudio-
rece ser um espelho ao enunciador, que vê as man- sos como Dominique Maingueneau.
chas, o envelhecimento, a fragmentação, expressan- Por meio da análise enunciativo-discursivo
do traços fúnebres. Forma-se um ethos debilitado e linguístico identificamos as pessoas envolvidas no
em colapso com o passado e o presente. Há proces- discurso, assim compreendeu-se que o protagonis-
so de personificação do animal, uma representação ta, um homem aidético, assumiu a posição de enun-
da efemeridade da vida, ciador e a mãe de coenunciador. Identificamos os
Não são apenas os fatores externos que repri- elementos dêiticos, espacial, temporal e de pessoa,
mem o enunciador, o coenunciador deixa claro que alicerçado na enunciação. O vocabulário foi essen-
agora eles podem trocar carinhos, ou seja, em um cial para compreender as relações do enunciador e
determinado momento houve a recusa de expressar do coenunciador.
seu instinto materno – a mulher repudiava outros Para compreender a cenografia foi preciso pos-
fatores que envolvem a vida que não estão explíci- tular que essa não é um mero cenário onde o discur- 487
tos no conto, como a homossexualidade. so aparece no interior de um espaço já construído
As marcas linguísticas evidenciam o modo de e independente dele; mas é a enunciação que, ao se
ser do protagonista que enuncia a fragilidade do desenvolver, constitui progressivamente e parado-
seu ser, em uma história horrível, adoecida por uma xalmente o seu próprio dispositivo de fala. Portanto,
“peste nova” que já matava milhares de pessoas em a cenografia é ao mesmo tempo fonte do discurso e
todo o mundo. O discurso é literário, com base na aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado
análise linguística, pois literariamente outros fato- que, por sua vez, deve legitimá-la estabelecendo que
res seriam relevantes na abordagem. essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a
cenografia exigida para enunciar como convém. Os
CONSIDERAÇÕES FINAIS gêneros que mobilizam cenografias mais movediças
exigem a escolha de uma cenografia por meio de
O objetivo do artigo foi descrever a analisar o cenas de fala validadas.
ethos discursivo do protagonista no conto de Caio Segundo as exposições realizadas, o enredo ma-
Fernando Abreu, Linda, uma história horrível, fa- terializou-se por meio da construção do ethos discur-
zendo uma interface entre língua e literatura, ou sivo, que remete à imagem do fiador, uma entidade
Sumário
abstrata, que legitima sua maneira de ser. Conforme MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de Linguística
as marcas vão se apresentando no texto, a voz do para o texto literário. Trad. Maria Augusta de Matos. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
enunciador vai se constituindo. O homem que retor-
na à casa materna por um motivo não definido, mas ______. Novas tendências em análise de discurso. Cam-
justificado ao longo do conto. Aidético, com os sin- pinas: Pontes; Ed. Unicamp, 1997.
tomas da doença estampados pelo corpo, apresenta
um ethos fragmentado, oprimido, impotente. ______. O contexto da obra literária. Trad. Marina
Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
É possível afirmar que a literatura impulsiona a
investigação linguística, não se limitando apenas a ______. Análise de textos de comunicação. Trad. de
uma interpretação e compreensão dos aspectos nor- Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez
teadores do gênero literário, enredo, entre outros Editora, 2002.
aspectos. Outros trabalhos podem ser feitos ema-
______. Gênese dos Discursos. Trad.de Sírio Possenti.
nando a teoria enunciativa e a literatura. Curitiba: Criar Edições, 2005.
¹ Mestranda do PPG em Processos e Manifestações Culturais – FEEVALE. Bolsista CAPES. E-mail: jessicaschmitz@feevale.br
² Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana pela UFRGS. Professor do Mestrado Profissional em Letras e do
PPG em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Tutor PET Interdisciplinar Feevale. E-mail: danielcon-
te@feevale.br
³ Doutora em Letras e Linguística (PUCRS). Diretora do Instituo de Ciências Humanas, Letras e Artes – ICHLA. Professora do
PPG em Processos e Manifestações Culturais da Feevale. E-mail:marinesak@feevale.br
Sumário
dies developed by Antonio Candido, Roland Barthes, ciais, o fato é que eles possibilitam ao leitor a identi-
Mikhail Bakhtin and Wolfgang Iser. Its possible to ficação com aquilo que lê, estabelecendo relações de
see that the work written by Nassar allows the rea- sentido. A literatura, nesse sentido, recebe papel de
der to reflect on the condition of the human subject destaque, uma vez que, segundo Antonio Candido,
against conflict situations, especially with respect to a arte, e portanto a literatura, é
its identity, and also as barriers can be broken.
uma transposição do real para o ilusório por
Kewords: Identity. Game. Literature. Reception. meio de uma estilização formal, que propõe um
tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres,
os sentimentos. Nela se combinam um elemento
O TECER DA NARRATIVA – de vinculação à realidade natural ou social, e um
elemento de manipulação técnica, indispensável
O INÍCIO DO JOGO à sua configuração, e implicando uma atitude
de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no
Barthes (1976) afirma que a narrativa está pre- momento de conceber e executar, quanto do re-
sente em todos os tempos, em todos os lugares, ceptor, no momento de sentir e apreciar (CÂN-
DIDO, 2010, p.63).
em todas as sociedades; a narrativa começa com 490
a própria história da humanidade (p. 19). Seguin- As narrativas literárias utilizam-se dos fatos so-
do a afirmação de Barthes, observa-se que a nar- ciais para, através da ficção, representar o mundo e
rativa permeia o espaço do homem. É através do estabelecer vínculos mais profundos com o leitor, o
ato de narrar que as histórias são transmitidas, e é que configura, por sua vez, um processo de humani-
por meio da narrativa, ainda, que elas sobrevivem. zação e sensibilização por parte dos indivíduos. “A
Além disso, a narrativa está presente em todas as literatura desenvolve em nós a quota de humanida-
culturas e, é através dela que culturas diferentes en- de na medida em que nos torna mais compreensivos
tram em contato, pois, consoante Barthes, “todas as e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhan-
classes, todos os grupos humanos têm suas narra- te” (CÂNDIDO, 2004, p. 180). Esse é o papel mais
tivas e frequentemente são apreciadas em comum nítido e exato exercido pela arte literária. Os indi-
por homens de cultura diferente, e mesmo oposta” víduos, ao passo que entram em contato com a lite-
(1976, p. 19). ratura, desenvolvem um olhar mais aguçado sobre
Por conta disso, é correto afirmar que muitas a sociedade na qual vivem, assim como, repensam a
narrativas apresentam em sua conjuntura aspectos sua própria forma de agir.
da realidade. Sejam esses elementos culturais ou so-
Sumário
De acordo com Umberto Eco, “um texto repre- conta disso, principalmente, devido a essa relação,
senta uma cadeia de artifícios de expressão que de- é que as obras literárias se tornam únicas no senti-
vem ser atualizados pelo destinatário” (ECO, 2002, do de não se restringirem ao simples fato de narrar
p. 35), sendo assim, para que o conteúdo do livro uma história, mas sim, por terem como foco prin-
possa ser absorvido em sua completude, e para que, cipal a interação com seu público. E essa interação
de fato, faça sentido, o leitor precisa estar em sin- nunca acontece de forma isolada, pois cada leitor
tonia com a narrativa, ou seja, ele deve colocar em vai obter uma visão diferente daquilo que lê, levan-
jogo o seu conhecimento de mundo e preencher os do-se em conta, ainda, que “a literatura é pois um
“não ditos”, as lacunas existentes, deixadas proposi- sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras
talmente pelo autor. e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes
É nesse sentido que se destaca o papel desem- a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a”.
penhado pelo escritor, uma vez que é ele que, ins- (CANDIDO, 2010, p.84).
taura no texto, os artifícios necessários para atingir Iser (2002) pontua, ainda, que “como o texto é
seu público, colocando sua intencionalidade, po- ficcional, automaticamente invoca a convenção de
rém, sem entregar o sentido completo do texto, dei- um contrato entre autor e leitor, indicador de que o 491
xando, como referido anteriormente, lacunas, que mundo textual há de ser concebido não como rea-
precisam ser preenchidas. Haja vista que o escritor, lidade, mas como se fosse realidade” (ISER, 2002, p.
numa determinada sociedade 107). O leitor não pode afirmar que o texto que lê
retrata, fidedignamente, a realidade, contudo, pode,
é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua
originalidade (que o delimita e especifica entro
categoricamente, estabelecer relações de sentido
todos), mas alguém desempenhando um papel que dela o aproximem.
social, ocupando uma posição relativa ao seu Nesse sentido, a obra Lavoura Arcaica apre-
grupo profissional e correspondente a certas ex- senta em sua estrutura narrativa, elementos que
pectativas dos leitores ou auditores. (CANDIDO,
2010, p.84)
permitem ao leitor cerzir distintas interpretações,
valendo-se das experiências humanas que cada um
Contudo, há de se destacar ainda que “é sensato possui, pois o “texto representa uma cadeia de arti-
pressupor que o autor, o texto e o leitor são intima- fícios de expressão que devem ser atualizados pelo
mente interconectados em uma relação a ser conce- destinatário” (ECO, 2002, p. 35).
bida como um processo em andamento que produz E é essa cadeia de artifícios que se pretende ana-
algo que antes inexistia”. (ISER, 2002, p. 105). Por lisar, principalmente, sob o viés da teoria do texto,
Sumário
de Barthes e da teoria da recepção, através do jogo vez a mais intensa, André recebe a visita do irmão
do texto, de Wolfang Iser. Além disso, observa-se mais velho, Pedro, que, em uma busca desesperada,
ainda, que o campo do texto é a linguagem, pontu- tenta convencer seu irmão a voltar para a família.
ando-se, assim, alguns aspectos acerca do dialogis- A partir desse momento, o leitor começa a acom-
mo e da construção de sentido de Bakhtin. panhar o desabafo do narrador, que de forma não
linear, narra muitos dos seus tormentos, das “dores”
O JOGO EM AÇÃO: A LAVOURA ARCAICA internas que sente. É, ao refletir sobre sua partida,
que André evidencia a sua tormenta e, principal-
A história é narrada em primeira pessoa pelo mente, o desejo de liberdade:
jovem André4, que, através de uma mistura de suas
Desde minha fuga, era calando minha revolta
memórias, descreve a sua conflituosa relação com (tinha contundência o meu silêncio! Tinha tex-
a família, principalmente com o pai. O enredo da tura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me
narrativa gira em torno de uma família de origem distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu
libanesa, moradora de uma fazenda, que segue à ris- perguntasse “para onde estamos indo?” --- não
importava que eu, erguendo os olhos alcançasse
ca a tradição herdada dos mais velhos, e que tem o paisagens muito novas, quem sabe menos ás- 492
pai como o pilar, o comandante, aquele que rege a peras, não importava que eu, caminhando, me
família e que, cautelosamente, ministra o trabalho conduzisse para regiões cada vez mais afastadas,
na lavoura. E é justamente por causa da rigidez do pois haveria de ouvir meus anseios um juízo rí-
gido, era um cascalho, um osso rigoroso, despro-
pai e da falta de compreensão de si mesmo, que An- vido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre
dré decide abandonar o seu lar e viver isolado, em para casa”. (NASSAR, 1996, p.35)
um quarto de pensão, em uma espécie de imersão
em si mesmo, muito provavelmente, na busca por Dentro da pensão, André vive em dois mundos
sua verdade. paralelos: um que é solitário e vazio, outro que se
O livro está dividido em dois momentos: a Par- abre com a chegada do irmão. É a presença de Pedro
tida, que apresenta a situação de André durante o que instiga André a falar, a expor de forma involun-
período no qual ele ficou afastado da família, viven- tária, por muitas vezes, tudo aquilo que o faz estre-
do em um quarto de pensão, e o Retorno, quando fi- mecer por dentro. É naquela pensão, sob os olhos
nalmente, ele volta para casa. Na primeira parte, tal- apreensivos do irmão, que André confessa a paixão
que sente por Ana, sua irmã, com a qual manteve Como se não bastasse existir essa divisão ca-
uma relação incestuosa, o que, possivelmente, tenha tegórica, ele vai mais a fundo e delineia, de forma
sido um dos motivos de sua fuga. Fala também so- reflexiva, os motivos pelos quais a mesa era com-
bre os tantos sermões proferidos pelo pai, ao pé da posta dessa forma, o que permite ao leitor, fazer in-
mesa, aos quais ele se mostrava contrário. ferências sobre os possíveis motivos que o levaram
a abandonar seus familiares
Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente im-
pregnado da palavra do pai; era ele Pedro, era o O galho da direita era um desenvolvimento
pai que dizia sempre é preciso começar pela ver- espontâneo do tronco, desde, as raízes; já o da
dade e terminar do mesmo modo, era ele sem- esquerda trazia em o estigma de uma cicatriz,
pre dizendo coisas assim, eram pesados aqueles como se a mãe, que era por onde começava o
sermões de família, mas era assim que ele os co- segundo galho, fosse uma anomalia, uma pro-
meçava sempre, era essa a sua palavra angular, tuberância mórbida, um enxerto junto ao tron-
era essa a pedra em que tropeçávamos quando co talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se
crianças, essa a pedra que nos esfolava a cada quem sabe dizer que a distribuição dos lugares
instante. (NASSAR, 1996, p. 43) na mesa (eram caprichos do tempo) defina as
duas linhas da família. (NASSAR, 1996, p. 157)
É, ainda, através da memória desse narrador, 493
que se entra em contato com um universo familiar Observa-se, no trecho acima, além do sistema
calcado pela tradição, em um universo rural arcaico patriarcal bem definido, a diferenciação existente
em que a família devia sempre permanecer unida, entre os membros da família: ao lado do pai estão
em que os homens deviam trabalhar na lavoura e os fortes, os justos, os corretos; ao lado da mãe, os
as mulheres se preocuparem com os afazeres do lar, considerados inferiores. Todas essas afirmações se
seguindo, assim, um sistema hierárquico bem defi- tornam possíveis, uma vez que, de acordo com Iser
nido, em que a família é uma sociedade inviolável. (2002) “essa dupla operação de imaginar e inter-
Dentro dessa perspectiva, André descreve como pretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa
eram divididos seus lugares na mesa: de visualizar as muitas formas possíveis do mundo
identificável, de modo que, inevitavelmente, o mun-
Eram esses nossos lugares à mesa na hora das
refeições, ou na hora dos sermões: o pai à ca-
do repetido no texto começa a sofrer modificações”.
beceira; à sua direita, por ordem de idade vi- (ISER, 2002, p. 107)
nha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Se, de acordo com Barthes (2004), o texto é a su-
Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida perfície fenomênica da obra literária, há de se des-
eu, Ana, e Lula, o caçula. (NASSAR, 1996, p.156)
tacar a forma escolhida pelo autor de organizar esse
Sumário
texto, pois se misturam traços da prosa e da poesia circunstâncias em que foram informados os fatos
que discorrem entre presente e passado, sem que que vão contar a seguir, a menos que prefiram atri-
haja marcas delimitadas que pontuem essa transi- buir essa história a uma experiência autobiográfica”
ção. O texto é, também, marcado pela ausência de (BENJAMIN, 1994, p. 205). No caso de André, ocorre
pontos finais, o que dá, para a narrativa, um caráter a mistura das circunstâncias com a sua forma par-
mais íntimo, como se o leitor estivesse acompanhan- ticular de enxergar as coisas, pois toda a história
do, de forma direta, a fala do narrador. Visto que a é apresentada sob o ponto de vista desse narrador,
angústia de André é transpassada para a sua fala. que, por conseguinte, permite ao leitor acompanhar
Uma fala marcada pela ausência de pausas, pontos a linha tênue pela qual se dá o curso da narrativa.
finais, o que representa a necessidade extrema que Ao se acompanhar o livro de Nassar, muitos
esse personagem tem de expor o seu pensamento. outros elementos cabíveis de significado podem ser
Esses trechos, sem marcação nem pontuação, que elencados, contudo, o que se faz necessário pontuar,
forma escritos de forma linear e contínua, represen- é que toda obra literária tem uma intencionalida-
tam o momento vivido por André: o fôlego termina de, e acima de tudo, para que essa obra de fato se
e a necessidade de verbalização se sobressai. Pode- instaure no meio social, ela precisa que alguém lhe 494
-se inferir com isso, também, que muito mais do que atribua significado, entrando-se assim no cenário
expor seus anseios, estão ali representados os pen- do jogo textual, no qual autor e leitor estão em con-
samentos de André, seus silenciamentos, mas que tato direto. Para Iser
aos poucos vão se quebrando.
os autores jogam com os leitores e o texto é o
Essa forma de narrar, por exemplo, marca o po- campo do jogo. O próprio texto é o resultado de
sicionamento do narrador-personagem, André, que um ato intencional pelo qual um autor se refere
por necessidade ou impulso, beirando o desespero, e intervém em um mundo existente, mas con-
se atém a contar tudo que lhe apetece, mas acima de quanto o ato seja intencional, visa a algo que
ainda não é acessível à consciência. Assim o
tudo, em um momento de rememoração, a refletir texto é composto por um mundo que ainda há
sobre a sua vida. Sobre essa posição do narrador, de ser identificado e que é esboçado de modo
Walter Benjamin observa que “o importante, para a iniciar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a inter-
o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas pretá-lo. (ISER, 2002, p. 107)
o tecido de sua rememoração”, (BENJAMIN, 1993,
p. 37). Benjamin ensina, ainda, que o narrador pre- E é exatamente esse jogo que Raduan Nassar
fere começar sua história “com uma descrição das instaura na obra Lavoura Arcaica, pois é através dos
elementos narrativos utilizado por Nassar, seguindo
Sumário
a tessitura da narrativa, que o leitor deverá encon- Como é possível observar, o discurso de André
trar esse mundo ainda não identificado ao qual Iser aparece com força e instaura um universo de sen-
se refere, para que possa, através do jogo, esmiuçar tidos que transpassam o espaço do texto. Ao ativar
e interpretar aquilo que lê. Barthes (2004), a esse sua memória, e trazer a tona lembranças tomadas
respeito, pontua que se desencadeia a por zonas de silêncio e de “não ditos”, esse narrador
instaura um universo simbólico, carregado de signi-
produtividade, opera-se a redistribuição, sobre-
vém o texto desde que, por exemplo, o escreve-
ficados múltiplos. Para Bakhtin, a palavra é o signo
dor e/ou ledor comecem a jogar com o signifi- ideológico por excelência;
cante, seja (em se tratando do autor) produzindo
sem cessar “jogos de palavras”, seja (em se tra- ela registra as menores variações das relações
tando do leitor) inventando sentidos lúdicos, sociais, mas isso não vale somente para os siste-
mesmo que o autor do texto não os tenha pre- mas ideológicos constituídos, já que a “ideologia
visto e mesmo que fosse historicamente impos- do cotidiano”, que exprime na vida corrente, é o
sível prevê-los: o significante pertence a todos. cadinho onde se formam e se renovam as ideolo-
(BARTHES, 2004, p. 272) gias constituídas (BAKHTIN, 2014, p. 16).
Outro fator que chama a atenção no campo do Ainda se tratando da palavra, na segunda parte 495
jogo de Lavoura Arcaica é o fato deque o livro de do livro - o Retorno -, André, convencido pelo ir-
Raduan Nassar está calcado pela palavra, é ela que mão mais velho, volta para casa. Não que essa seja
exerce no leitor o poder de imersão. É através da pa- a sua vontade propriamente dita, o que se compro-
lavra que André registra seu tormento que o acom- va pela seguinte passagem “e eu, feito menino, me
panha desde a sua partida. Durante toda narrativa, deixei conduzir por ele o tempo inteiro” (NASSAR,
através do discurso de André, é possível acompa- 1996, p.149), mas de acordo com o narrador, “Pedro
nhar muitos dos seus traços psicológicos e, princi- cumprira sua missão me devolvendo ao seio da fa-
palmente, de como ele se sentia em relação à vida mília”. A volta para casa foi estranha, com atitudes
na fazenda. comedidas. A primeira conversa com o pai, não foi
serena, ao contrário, cheia de cobranças e interro-
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era gações. Na passagem que segue, se observa, mais
num sítio lá do bosque que eu escava aos olhos
apreensivos da família; amainava a febre dos
uma vez, que a relação entre pai e filho se delineia a
meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de partir da fragilidade:
folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura
quieta de uma planta enferma vergada ao peso
de um botão vermelho (NASSAR, 1996, p.13)
Sumário
̶ E o que é que não te davam aqui dentro? se torna possível ir além das palavras descritas no
̶ Queria o meu lugar na mesma da família. livro, pois consoante Barthes “a obra literária é o te-
̶ Foi então por isso que você nos abandonou: por-
que não te dávamos um lugar na mesa da família? cido das palavras inseridas na obra e organizadas de
̶ Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis, ao tal modo que imponham um sentido estável e, tanto
deixar a casa, foi para poupar-lhes o olho torpe quanto possível, único”. (BARTHES, 2004, p.261)
de me verem sobrevivendo à custa das minhas
próprias vísceras. (NASSAR, 1996, p. 161)
CURIOSIDADES DO JOGO: A
Essa vontade de pertencer, de forma íntegra, à INTERTEXTUALIDADE
família é que, possivelmente, faz com que André re-
considere sua decisão de ficar longe da fazenda e Bakhtin (1981) pontua que “contextos que não
acatar o pedido de volta. Mas o que chama a aten- estão simplesmente justapostos, como se fossem in-
ção, também, é o fato de que, embora André sentia diferentes uns aos outros; encontram-se numa situ-
a necessidade de buscar um novo caminho, as suas ação de interação e de conflito tenso e ininterrupto”
origens e a sua conexão com a família permeiam os (Bakhtin, 2014, p. 107).
espaços da sua consciência. Esses contextos, aos quais Bakhtin se refere, 496
Bakhtin, nessa perspectiva, discorre que a permitem que a relação entre o EU e o OUTRO
aconteça, pois, se o texto apresenta, em sua com-
lógica da consciência é a lógica da comunicação posição, contextos distintos, o leitor poderá cerzir
ideológica, da interação semiótica de um grupo interpretações que o levem a adentrar em mundos
social. Se privarmos a consciência de seu con-
teúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. desconhecidos até então.
A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. De forma dialógica, muitas obras, como é o
Constituem seu único abrigo. Fora desse ma- caso do livro Lavoura Arcaica, apresentam em sua
terial, há apenas o simples ato fisiológico, não composição outros textos. De acordo com Barthes
esclarecido pela consciência, desprovido do sen-
tido que os signos lhe conferem. (BAKHTIN, passam pelo texto, redistribuídos nele, trechos
2014, p. 36). de código, fórmulas, modelos rítmicos, fragmen-
tos de linguagens sociais, etc, pois há sempre
O campo das relações discursivas, presentes em linguagem antes do texto e em torno dele [...]
Lavoura Arcaica, assim como os elementos circuns- o intertexto é um campo geral de fórmulas, cuja
tanciais que compõem o romance, disponibilizam, origem raramente é detectável, de citações in-
conscientes ou automáticas, dadas sem aspas.
ao leitor, um universo de projeções, com as quais (BARTHES, 2004, p. 276)
Sumário
Através do pensamento de Barthes, pode-se rábola da Bíblia, André e Pedro são irmãos. André
afirmar que o romance de Raduan Nassar, além de foi quem apresentou Pedro a Jesus. Além disso, An-
apresentar uma estrutura rica em conteúdo, traba- dré foi um apóstolo, mas que pouco aparece na Bí-
lha, ainda, no campo da intertextualidade, pois dia- blia. Em contrapartida, Pedro se tornou um dos doze
loga com outras narrativas, e os códigos fornecidos, apóstolos de Cristo. Enfatiza-se, ainda, que os ser-
aos olhos do leitor, se transformam em uma rede mões proferidos pelo pai, em Lavoura Arcaica, po-
de significados. Por conta disso, à primeira vista, dem ser relacionados às passagens bíblicas em que
a narrativa que compõe Lavoura Arcaica, remete à aparecem os sermões da montanha, proferidos por
parábola bíblica do filho pródigo, que assim como Jesus Cristo, ou então ao livro de Salmos, do Novo
André, insatisfeito com a vida que leva, foge de casa Testamento.
em busca do novo. Além dessa intertextualidade com a Bíblia, des-
Assim como na Bíblia, o filho retorna para casa. tacam-se ainda outros dois textos que dialogam com
Em Lavoura Arcaica, logo no início do capítulo 25, Lavoura Arcaica. Um deles é a passagem na qual o
pode-se observar a primeira conversa entre pai e fi- pai de André conta a história do faminto: “Era uma
lho, após o retorno de André ao seu lar. “Meu cora- vez um faminto” (NASSAR, 1996, p.79). Esse trecho 497
ção está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, dialoga com a história de Chakalik, o sexto Irmão do
meu filho; essa é a colheita de quem abandona a casa barbeiro, presente na obra As Mil e Uma Noites.5
por uma vida pródiga”. (NASSAR, 1996, p.158). Como A outra, e talvez a mais presente, é a intertextu-
no texto bíblico, em que o pai encomenda uma festa alidade existente com os escritos do Corão. Todo o
para comemorar a chegada do filho, no romance de discurso do pai de André é calcado nos ensinamen-
Nassar, o pai de André, além de desabafar “Abenço- tos sobre a bondade, o labor, os cuidados com o cor-
ado o dia da tua volta! Nossa casa agonizava, meu po, ou seja, sermões que remetem aos ensinamen-
filho, mas agora já se enche de novo de alegria!”. tos difundidos pelo livro sagrado do Islam. O que se
(NASSAR, 1996, p.151), também ordena que se faça justifica pela passagem utilizada, logo no início da
uma festa em comemoração à chegada do filho. segunda parte – o Retorno –, “Vos são interditadas:
Por conseguinte, seguindo ainda com a intertex- vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs. Corão-Su-
tualidade bíblica, apresentam-se os nomes de André rata, IV, 23”. (NASSAR, 1996, 145).
e Pedro. Assim como no romance, também na pa-
Nota-se que o dialogismo está presente de for- pois causam estranheza, incomodo, mas também
ma muito intensa no livro, e que através dos diá- curiosidade.
logos presentes é que se pode elevar a narrativa A leitura de Lavoura Arcaica faz despertar sen-
ao campo axiológico, pois como afirma Bakhtin, A timentos múltiplos acerca dos acontecimentos que
vida é dialógica por natureza. Viver significa parti- marcam o romance e, justamente pelo fato de a obra
cipar de um diálogo (BAKHTIN, 2010, p.293). ser tão rica em particularidades que se torna impos-
sível contemplar todos esses detalhes em uma única
CONSIDERAÇÕES FINAIS análise. Contudo, algumas considerações se tornam
possíveis.
No ano de 1975, um escritor estreante no ce- Fica evidente, na obra de Raduan Nassar, que a
nário literário, recebeu destaque ao publicar uma composição narrativa envolve o leitor e o faz refletir
obra que foi imediatamente considerada um clás- sobre a conflituosa relação familiar que lhe é apre-
sico, “uma revelação dessas que marcam a história sentada. Uma família que segue à risca os costumes
da nossa prosa narrativa” (NASSAR, 1996). Raduan que foram herdados dos antepassados, mas que ge-
Nassar6, o escritor, estudou direito e filosofia e, além ram questionamentos sobre a postura rígida e exa- 498
de escrever Lavoura Arcaica, também é autor de Um cerbada, na qual, como pode ser visto na análise, o
Copo de Cólera e de uma coletânea de contos intitu- filho não suportou viver.
lada Menina a Caminho. Lavoura Arcaica, por sua O romance apresenta um emaranhado de sen-
vez, chamou a atenção dos críticos por ter em sua timentos e confusões íntimas que instigam o leitor
composição, elementos que fugiram dos padrões li- dessa obra a buscar interpretações acerca do com-
terários até então conhecidos, pois não estão, por portamento dos personagens que compõem a trama,
exemplo, plenamente definidos os espaços nos quais e como os acontecimentos narrados se relacionam
a história acontece, assim como não há uma defini- com a realidade. Pensando ainda sobre as possíveis
ção exata de tempo. As referências circunstanciais interpretações do leitor, pontua-se que, através dos
são mínimas, o que tornou difícil a tarefa de catego- elementos apresentados por Wolfang Iser acerca do
rizar o livro, além disso, esses elementos ou, então, jogo do texto, para que o leitor consiga estar imerso
a falta deles, chama a atenção pela profundidade e na obra, ele precisa colocar em cena as suas experi-
intensidade pela qual chegam aos olhos do leitor, ências de mundo.
⁶ Raduan Nassar, após escrever as obras mencionadas, abriu mão da vida de escritor, deixando de se dedicar à literatura.
Sumário
Iser (2002) diz ainda que “a obra interroga e que não queria viver a vida toda enquadrado em um
transforma as crenças implícitas com as quais a arquétipo de família “exemplo”, as múltiplas inter-
abordamos, ‘desconfirma’ nossos hábitos rotinei- pretações que forem operadas pelos leitores também
ros de percepção e com isso nos força a reconhe- podem suscitar mudanças na forma de agir e pensar.
cê-los, pela primeira vez, como realmente são”. As- Por fim, pontua-se que a obra Lavoura Arcaica
sim, através da revisão bibliográfica feita, chega-se apresenta elementos complexos, profundos e que
a conclusão de que todos aqueles sentidos que es- transitam por outros textos. A sua leitura requer
tão implícitos e encobertos serão desmistificados atenção e, de certa forma, entrega por parte do lei-
se o leitor conseguir atribuir-lhes significado. Esse tor. Quanto mais se acompanha a fluidez da obra,
mesmo leitor entra em cena como uma espécie de mais se pode esmiuçar o que ela – a narrativa - , diz,
tradutor, que através dos elementos fornecidos pelo passando pelo campo do não dito.
texto – e pelo autor -, decifrará esse campo que é
permeado pela palavra.
Em última análise, atenta-se para o título do ro- REFERÊNCIAS
mance: Lavoura Arcaica. Embora se tenha entrado 499
em contato com a organização familiar descrita por BAKHTIM, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 2014.
André, a palavra arcaica que faz parte do título, traz
em si um significado muito interessante. Ao que se __________. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad.
refere à lavoura, muito possivelmente, seja fácil de- Paulo Bezerra. 4ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
preender que o sistema de trabalho defendido pelo 2010.
pai seja de fato arcaico, desatualizado. Contudo, ao
BARTHES, R. Introdução à análise estrutural da narrativa.
se pensar nos conflitos instaurados no âmago da
In: BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa. 4.
narrativa, há de se destacar que a forma pela qual o ed. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 19-60.
pai conduz a família também se enquadra no modo
arcaico de ser, pois a forma repreensiva pela qual o BARTHES, Roland. Texto (teoria do). In: _____. Inéditos. v.
pai trata os membros da família propicia a reflexão 1, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
sobre a forma de vida em sociedade e das relações BENJAMIN, Walter. O narrador: observações sobre a obra
que são estabelecidas por esses indivíduos, princi- de Nikolai Leskov. In: ___ ET AL. Textos escolhidos. São
palmente, se forem levados em conta os arquétipos Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-221.
que permeiam esses espaços. Assim como André,
Sumário
500
Sumário
¹ Doutorando e mestre em Comunicação e Informação (UFRGS). Graduado em Publicidade e Propaganda (Unisinos). jbn.san-
tos@uol.com.br
Sumário
simbólicas são “um amplo espectro de ações e falas, que nos habilita a nos referirmos ao mundo real dos
imagens e textos, que são produzidos por sujeitos objetos, das pessoas e dos acontecimentos, como
e reconhecidos por eles e outros como construtos também ao mundo imaginário e ficcional com seus
significativos” (THOMPSON, 2000, p.79). objetos, pessoas e acontecimentos.
No mesmo sentido, conforme Hall (1997), a re- Os meios de comunicação (THOMPSON, 2000,
presentação é uma prática central que gera cultura 2002) desempenham, na sociedade moderna, um
e atualmente é entendida como um momento cha- papel muito importante, pois contribuem para a
ve no que é denominado circuito da cultura, o qual formação da cultura. Entre os vários conteúdos que
liga representação, identidade, produção, consumo as pessoas recebem cotidianamente, uma parcela
e regulação. A cultura é articulada por todos esses significativa advém da publicidade. A publicidade é
elementos e está relacionada com significados par- uma forma de comunicação que tem como particu-
tilhados, enquanto a linguagem é o meio pelo qual laridade a persuasão. Seu papel central é a divul-
as pessoas atribuem sentido às coisas, e por meio gação de produtos e serviços com o propósito de
da qual o significado é criado e intercambiado. O fomentar vendas e, com isso, ajudar a impulsionar
significado só é passível de ser partilhado através o modo de produção capitalista. Em meio a tudo 502
do acesso comum à linguagem, de modo que ela é isso, contudo, é necessário também considerar que
fundamental para o significado e a cultura, sendo a publicidade apresenta uma dimensão cultural, a
entendida como o ponto central por ser o modo de qual engendra representações sociais que colabo-
reposição dos valores e significados culturais. A ram com a atualização do imaginário contempo-
linguagem constrói significados, porque funciona râneo (PIEDRAS, 2009). O texto publicitário pode
como um sistema de representações, empregando ser entendido como documento representativo em
signos, que significam ou representam para outras parte da produção cultural do país, pois o discurso
pessoas nossas ideias, nossos valores, como também publicitário apresenta o cotidiano e também ajuda a
nossos sentimentos. A representação é um compo- construir a realidade e, consequentemente, influen-
nente fundamental do processo pelo qual o signifi- cia a percepção da diferença, das identidades, do ou-
cado é gerado e trocado entre os membros que for- tro (TRINDADE, 2012).
mam uma cultura, o que inclui o uso da linguagem, Nesse sentido, busca-se, neste artigo, compreen-
de signos, que significam ou representam algo. É a der como os discursos que compõem as formas sim-
construção do significado por meio da linguagem, bólicas e, consequentemente, os produtos dos meios
ou seja, é a conexão entre conceitos e linguagem de comunicação, mais especificamente os comerciais
Sumário
das sandálias Havaianas, representam o brasileiro e, bém solicita, dos receptores, cooperação na cons-
por conseguinte, participam do processo de constru- trução de sentido, por meio da transferência, para
ção e de reconstrução da identidade nacional. o produto, do valor que esses significantes têm nas
mitologias sociais.
SANDÁLIAS HAVAIANAS Os sistemas de significação acionados pela pu-
blicidade são definidos como referentes (PINTO,
As sandálias Havaianas são amplamente usadas 1997), cujo entendimento é fundamental, já que se
no Brasil, pois há mais de 50 anos estão nos pés de relacionam a realidades do mundo exterior, utiliza-
brasileiros de todos os segmentos sociais. Na década das na significação dos anúncios. O entendimento
de 19802, constaram como um dos itens da cesta bási- do significado dos anúncios está vinculado ao en-
ca, ao lado de produtos essenciais para a vida. Já em tendimento de como estes significam. A publicida-
1994, com a campanha publicitária Havaianas, todo de estabelece, pois, um processo de significação que
mundo usa, a Alpargatas, fabricante da sandália, pro- passa por outras transformações também. Inicial-
curou mostrar ao brasileiro que o calçado era utiliza- mente, emprega um signo ou conjunto de signos
do por pessoas de diferentes classes sociais, e a série existentes na cultura, o qual cede sua significação a 503
de comerciais foi protagonizada por atores, jogado- um produto. Por meio da gramática visual do anún-
res e outras celebridades bem conhecidas do público. cio, tanto os signos como o produto anunciado têm
Além disso, a marca passou a ser vendida nos EUA, sua representação disposta por uma relação lógica
em 2007, e, em 2008, na Europa. As Havaianas, atu- em que estão contíguos, o que leva ao entendimento
almente, são exportadas para mais de 80 países, in- de que ambos apresentam um sentido que se equiva-
clusive com modelos que levam a bandeira do Brasil. le. Mais à frente, essa relação adquire estatuto lógi-
Para discutir essa questão, deve-se levar em co a ser compreendido como natural e real. O corre,
conta que o sistema de significação publicitário re- então, o desenvolvimento de uma significação autô-
cupera formas e sentidos existentes na cultura para noma, pois o produto torna-se ele próprio um signo
a qual é dirigido. A publicidade apropria-se de sig- que passa a representar sentimentos, valores, esta-
nificantes que compõem as mitologias sociais da dos de espírito. O produto, então, retrata uma reali-
cultura, os quais são utilizados para promover os dade exterior a si próprio, tornando-se parte dessa
mais diferentes produtos (PINTO, 1997). Ela tam- mesma realidade e podendo ser anunciado como a
essência desse estado de espírito. As relações entre de modo que o mais adequado seria entendê-la en-
as coisas e os sentimentos podem ser sentidas como quanto identificação, ou seja, como um processo em
reais, de modo que a publicidade vende modelos andamento. Na mesma perspectiva, Cuche (1999)
para expressar e experimentar diferentes emoções. expõe que a identidade é consequência de um pro-
A partir daí, tomam corpo no produto as qualidades cesso de identificação, em uma situação relacional,
que ele vinha evocando. sendo também relativa, porque pode se desenvolver
A forma como a publicidade constrói a repre- no caso de a situação relacional se alterar. Assim,
sentação, estabelecendo relações entre o mundo seria mais adequado tomar como conceito operató-
tangível e o intangível, favorece a ilusão de que as rio o de identificação.
realidades intangíveis podem ser vividas por meio A identidade também é entendida como ques-
do consumo. No caso das Havaianas, elas podem re- tão do Estado e passou a ter relevância com o sur-
presentar uma imagem junto ao consumidor relati- gimento dos estados-nação modernos, quando o
va a descanso, lazer, férias, praia e praticidade, por Estado passou a administrar a identidade e, em fun-
ser facilmente colocada e tirada do pé, por exemplo. ção disso, estabeleceu regulamentos e controles, de
A partir daí, a publicidade da sandália constrói uma modo que a rigidez em relação à identidade é cres- 504
representação de identidade nacional, o que será cente. Por mais distintas que sejam as pessoas em
abordado a seguir. classe, gênero ou raça, a cultura nacional tentará
uni-las em uma única identidade cultural, represen-
IDENTIDADE NACIONAL tando-as como parte da nação. Isso pode ser verifi-
cado nos dois momentos de definição da identidade
A identidade é fonte de significado e experi- brasileira: no século XIX e na década de 30, com
ência de um povo (CASTELLS, 2001); é o proces- Gilberto Freyre. A identidade nacional pode ir con-
so de construção de significado sustentado por um tra a diferença cultural e pode procurar invalidá-la.
atributo cultural ou vários relacionados entre si, os Por isso, “uma cultura nacional nunca foi um sim-
quais predominam em detrimento de outras fontes ples ponto de lealdade, união e identificação simbó-
de significado. lica. Ela é também uma estrutura de poder cultural”
Stuart Hall (2001) argumenta no mesmo senti- (HALL, 2001, 59).
do que a identidade não é cristalizada, pois se trans- De um lado, grande parte das nações é compos-
forma, e que é compartilhada e está continuamente ta de culturas distintas que vieram a ser unificadas
em transformação. Assim, nunca estaria acabada, através de um longo processo de conquista violenta,
Sumário
ou seja, a diferença cultural é impedida de se mani- imagens que dela são produzidas. A identidade na-
festar através da força. Essa violência fundante deve cional é, pois, um constructo do imaginário.
ser esquecida para que surja a “lealdade com uma Culturas nacionais constituem uma das mais
identidade nacional mais unificada, mais homogê- importantes origens de identidade cultural. As dis-
nea” (HALL, 2001, p. 60). De outro lado, a formação tinções étnicas e de regiões acabaram por se sujei-
de uma nação sempre se dá por meio de distintas tar ao Estado-Nação, que se transformou na origem
classes sociais, grupos étnicos e grupos de gênero. de significados para a identidade cultural moderna.
Diferentes classes sociais podem se unir por meio Nesse sentido, sociedades geradas pela coloniza-
de uma forma alternativa de identificação, como o ção, como a brasileira, criaram um pluralismo ét-
fato de serem todos da mesma nação. nico-cultural e biológico, engendrado pelo próprio
A identidade nacional não vem gravada em processo colonial (MUNANGA, 1999). Isso levou
nossos genes, mas é gerada e transformada pela re- sociedades indígenas e alienígenas de várias origens
presentação. Assim, compreende-se o que significa geográficas, étnicas, históricas e genéticas a convi-
ser brasileiro em razão de como a brasilidade foi re- ver em um espaço comum.
presentada como um conjunto de significados pela A identidade do Brasil ganhou relevância com 505
cultura nacional. O brasileiro, além de cidadão do o fim da colonização, quando o país tornou-se
país, toma parte da ideia da nação e da forma como uma nação e a elite intelectual e política procura-
esta é representada na cultura nacional. A nação é, va a base de uma identidade. Com a independência
assim, uma comunidade simbólica e pode produzir (SOUZA, 2011), surge a necessidade da criação de
sentimentos de identidade e lealdade. uma identidade nacional, de modo que as pessoas
Culturas nacionais são formadas por instituições deveriam desenvolver a noção de pertencimento ao
culturais e também por símbolos e representações. país, fazendo conexão entre a identidade individual
“Uma cultura nacional é um discurso – um modo e a comunitária. Para isso, o governo precisava de-
de construir sentidos que influenciam e organizam senvolver uma identidade nacional. Não vendo as-
tanto nossas ações quanto a concepção que temos pectos positivos na sociedade, a natureza tornou-se
de nós mesmos” (HALL, 2001, p. 50). A cultura na- a questão central da identidade, e sua representa-
cional, ao construir sentidos acerca da nação, com os ção engendrou um imaginário construído a partir
quais podemos nos identificar, constrói identidades. da visão de uma natureza excepcional, constituindo
Esses sentidos aparecem nas histórias sobre a nação, a primeira noção positiva relativa à brasilidade. Ao
nas memórias que ligam o presente ao passado e nas longo do século XIX, a natureza brasileira é tema
essencial na prosa, na poesia e na literatura.
Sumário
A construção de uma representação positiva questão da identidade brasileira (ORTIZ, 1985), em-
para o brasileiro, um povo definido como mestiço, bora a diferença genética não deva ser usada para
encontra como obstáculo um racismo científico vi- distinguir os povos, pois a raça é uma categoria dis-
gente desde o século XIX até a década de 1920. Na cursiva e não biológica. Entre as teorias que influen-
segunda metade do século XIX, as ideias sobre a ciaram esses pensadores, destacam-se o Positivismo
mestiçagem no Brasil surgem baseadas nas teorias de Comte, o Darwinismo social e o Evolucionismo
de estudiosos ocidentais europeus e americanos, de Spencer, originadas na Europa no séc. XIX e que
muito embora os pensadores brasileiros tenham de- têm em comum a reflexão sobre a evolução históri-
senvolvido propostas originais que se diferenciavam ca dos povos.
das concebidas nos EUA, na América Espanhola, nas Concordar com teorias evolucionistas implica-
Antilhas Francesas e no Caribe. Vários intelectuais, va o estudo da evolução do país, baseado nas inter-
a partir da primeira República, tiveram como meta pretações “de uma história natural da humanidade;
uma identidade étnica única para o país. Entre eles, o estágio civilizatório do país se encontrava assim
Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, de imediato definido como ‘inferior’ em relação à
Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacer- etapa alcançada pelos países europeus” (ORTIZ, 506
da, Edgar Roquete Pinto, Oliveira Viana, Gilberto 1985, p. 15). O evolucionismo fundamenta, junto
Freyre e outros. “Todos estavam interessados na for- aos intelectuais brasileiros, o entendimento do atra-
mulação de uma teoria do tipo étnico brasileiro, ou so do país, mas considerando as diferenças entre o
seja, na questão da definição do brasileiro enquan- Brasil e a Europa, a especificidade brasileira, para
to povo e do Brasil enquanto nação” (MUNANGA, ser entendida, foi ainda relacionada a outros argu-
1999, p. 52). Grande parte era influenciada pelo de- mentos. Ortiz observa que os intelectuais da época
terminismo biológico, acreditava que as raças não usaram duas outras noções: meio e raça. A história
brancas eram inferiores, principalmente a negra, e do país é, assim, assimilada em sentido determinis-
na degenerescência do mestiço. A exemplo disso, ta, ou seja, “clima e raça explicando a natureza indo-
Silvio Romero duvida da capacidade de uma popula- lente do brasileiro, as manifestações tíbias e insegu-
ção originada do cruzamento de três raças (branca, ras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas
negra e índia) dar ao país um aspecto original. da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada
A questão racial, como foi abordada por Sílvio do mulato” (ORTIZ, 1985, p. 16).
Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, as- Com a abolição da escravatura, contudo, inicia
sume uma linha racista, cujo aspecto principal é a uma nova ordem em que o negro passa de escravo
Sumário
a trabalhador livre, sendo considerado um cidadão Já Gilberto Freyre via positivamente a mestiça-
de segunda categoria. Mas a questão central, para gem, pois era contrário à teoria da degeneração e
os cientistas da época, era como considerar a iden- afirmava que a base da formação social brasileira
tidade nacional frente às diferenças raciais. Nesse é singular por sustentar-se em uma miscigenação
contexto, o mestiço constitui o ponto de equilíbrio ocorrida na ordem agrário-patriarcal. No contexto
entre as três raças. Para os intelectuais do século da Revolução de 30, quando o Estado buscava a con-
XIX, ele “representa uma categoria através da qual solidação do desenvolvimento social, as teorias ra-
se exprime uma necessidade social – a elaboração ciológicas são deixadas de lado, porque a realidade
de uma identidade nacional. A mestiçagem moral e social exigia outra interpretação do país, e os estu-
étnica possibilita a ‘aclimatação’ da civilização eu- dos de Freyre vêm responder a essa demanda social.
ropéia nos trópicos” (ORTIZ, 1985, p. 21). Contudo, Ortiz (1985) vê um caráter pouco pro-
A mestiçagem, nessa perspectiva, é real e sim- gressista em suas teorias. Ao reinterpretar a questão
bólica, pois faz referência às condições sociais e racial, na intenção de compreender o Brasil, Freyre
históricas da mistura étnica no Brasil e, simbolica- mantém a mesma perspectiva de Sílvio Romero,
mente, relaciona-se às aspirações nacionalistas vin- mas não a considera em termos raciais como faziam 507
culadas à construção da nação. A miscigenação é os intelectuais do século XIX, pois as teorias antro-
um dilema, pois em um sentido busca-se a constru- pológicas com caráter científico, em sua época, já
ção de uma cultura brasileira, mas em outro, enten- não são as mesmas, de modo que adota o cultura-
de-se que esta é inconsciente. A convicção no de- lismo de Boas. Do conceito de raça, Freyre passa ao
terminismo gerado pelo meio ambiente leva a uma de cultura e, com isso, dá fim a vários problemas
perspectiva pessimista relativamente à capacidade relativos à questão da herança atávica do mestiço.
brasileira. Somadas a isso, as ideias embasadas nas Freyre converte em positivos os aspectos nega-
teorias raciais tornam ainda mais complicada essa tivos do mestiço, possibilitando definir o projeto de
questão. “O mestiço, enquanto produto do cruza- uma identidade nacional almejado há tempos. Com
mento entre três raças desiguais, encerra, para os as novas condições sociais do Brasil, com os cami-
autores da época, os defeitos e taras transmitidos nhos do desenvolvimento definidos e um novo Es-
pela herança biológica” (ORTIZ, 1985, p. 21). A mes- tado que buscava mudanças, “o mito das três raças
tiçagem simbólica representa, pois, a realidade infe- torna-se então plausível e pode se atualizar como
riorizada do mestiço. ritual” (ORTIZ, 1985, p. 41). Assim, a redefinição so-
cial da ideologia da mestiçagem, outrora presa às
Sumário
incertezas das ideias racistas, possibilitou a difusão da modernidade. Em sua abordagem, o autor usa
social desta, a qual virou senso comum. O mito das a ideia de mito como correspondente a imaginário
três raças possibilitou, aos indivíduos de distintas social: “como um conjunto de interpretações e de
classes sociais e dos vários grupos de cor, interpre- ideias que permitem compreender o sentido e a es-
tarem, no interior do modelo proposto, as relações pecificidade de determinada experiência histórica e
sociais vividas por eles mesmos (ORTIZ, 1985). coletiva” (SOUZA, 2011, p. 30). A identidade nacio-
Jessé Souza (2011) também argumenta que a nal, assim, seria uma forma de mito moderno, signi-
concepção de brasileiro elaborada por Freyre foi ficando o imaginário social.
bem acolhida pela população em geral e se conciliou
com os objetivos do governo de Getúlio Vargas. A HAVAIANAS – A CONSTRUÇÃO DE
imagem do brasileiro, nesse sentido, colabora para a SENTIDOS NOS COMERCIAIS
promoção da integração nacional e para o encami-
nhamento de forças, a fim de alcançar a renovação Serão analisados neste artigo os comerciais das
nacional. As ideias de Freyre adquiriram autoridade Havaianas Lune de miel, Críticos, Argentino Engra-
intelectual e instituíram uma noção de originalida- çado e Roda de samba. Os comerciais das Havaia-
nas, em grande parte, apresentam o cenário de belas 508
de brasileira, o que é empregado pela ideologia or-
gânica do Estado Novo, para idealizar a nação como praias como ambientação para as situações narra-
terra que havia superado as divergências de classe. das. A presença de atores renomados de telenovelas
Desde então, entre as qualidades atribuídas ao bra- é também bastante comum. Além disso, celebrida-
sileiro, está a imagem de um povo pacífico e que des do meio esportivo, como Romário, também par-
vive em uma sociedade sem conflitos. ticiparam de anúncio da sandália.
A definição de brasileiro assimilada pela popu-
lação é comentada por Souza (2011), segundo o qual
o brasileiro, na atualidade, define-se como o povo
da alegria, também do calor humano, da hospita-
lidade e do sexo - mito que é consenso nacional. O
que conduz à ideia de que a emocionalidade e a es-
pontaneidade seriam características definidoras do
povo. Estas qualidades seriam opostas à imaginada
racionalidade extrema, típica dos países do centro
Sumário
O comercial Lune de Miel apresenta como prota- com mulheres sensuais, as ideias de descanso e de
gonista uma francesa lendo uma revista com nome relaxamento em oposição ao mundo do trabalho. As
de capa Brésil, que trata sobre o país. As imagens imagens desse comercial remetem à abordagem de 509
vistas pela mulher são: na capa da revista, o Cris- Ortiz (1985) sobre como a intelectualidade brasileira
to Redentor, símbolo da cidade do Rio de Janeiro; do início do século XX definia o brasileiro. O pensa-
um homem negro dançando com um instrumento mento da época, embasado no Evolucionismo, ori-
musical na mão; imagens dos modelos das sandálias ginou uma visão determinista que usava o clima e a
Havaianas comercializados no Brasil e, em seguida, raça para explicar o espírito indolente do brasileiro
imagens de mulheres de biquíni na praia. A france- e a sexualidade desenfreada do povo. Souza (2011)
sa, que folheava a revista e começava a comentar também expõe argumentos no mesmo sentido ao
com seu companheiro sobre o desejo de conhecer destacar a imagem que o brasileiro tem de si mesmo
o Brasil durante a lua de mel, fica paralisada frente na atualidade, ou seja, vê-se como o povo da alegria,
às fotos de brasileiras de biquíni na beira da praia, da hospitalidade e da sensualidade. E o que o co-
de modo que, ao ver essas imagens, imediatamente mercial Lune de Miel expõe é que esta sensualidade
sugere a ele que viagem a Veneza. é tão evidente e forte, que o esposo da francesa pos-
O comercial Lune de Miel traz questões recor- sivelmente não resistiria ao apelo das brasileiras.
rentes nos comerciais de Havaianas, ou seja, o Bra- Outro aspecto marcante nos comerciais de Ha-
sil é representado pelo ambiente de beira de praia, vaianas e que aparece em Lune de Miel, mas ence-
Sumário
nado pela francesa, é a esperteza dos personagens. O comercial Críticos, que tem como protagonis-
A “malandragem que seria típica do brasileiro” é ta o ator Lázaro Ramos, também tem como cená-
demonstrada pela protagonista, que logo conclui rio a beira de praia. Lázaro Ramos traz um material
o que poderia ocorrer nesta terra com tantas belas de leitura em mãos e está sentado sobre um banco
mulheres em trajes mínimos. com as pernas esticadas sobre este, expondo seus
Isso pode ser compreendido a partir da abor- chinelos Havaianas. O ator mantém diálogo com
dagem de Pinto (1997) sobre como o sistema de um comerciante que está em um quiosque de praia.
significação publicitário recuperaria formas e sen- O comerciante comenta com o protagonista que as
tidos existentes na cultura para a qual é dirigida. Havaianas do ator são iguais às dele, ao que o pri-
A publicidade emprega significantes que formam as meiro responde: “Mas você é que é feliz. Pode tra-
mitologias sociais da cultura, no caso, praia, belas balhar todo dia com a sua”. O comerciante afirma,
mulheres, sexualidade, povo feliz, ócio, esperteza e sobre o ambiente da praia: “Isso aqui é que escritó-
outros aspectos acabam por ser utilizados para pro- rio, né?”. E continua: “Só não entendo um país como
mover as sandálias Havaianas. A publicidade das esse passar tanta dificuldade.” E Lázaro responde:
Havaianas também solicita, dos receptores, coope- “Como é que pode, né, um país rico desse, com tanto 510
ração no engendramento de sentido, por meio da problema.” Nesse momento, entra na conversa um
transferência do valor que esses significantes apre- terceiro ator, falando em espanhol, supostamente
sentam nas mitologias sociais, tornando possível a um argentino, que afirma: “Jo concordo con usted,
comunicação. jo no compreendo como Brasil tem tanto problema.”
Imediatamente, o comerciante responde: “Que pro-
Comercial Críticos blema?”. E Lázaro Ramos diz: “É o que, rapaz?”. E o
comerciante afirma: “O Brasil tem problema onde,
rapaz?”. E Lázaro Ramos afirma: “Este país é mara-
vilhoso, é perfeito! Tá maluco?”. O comerciante diz:
“Me aparece cada um!”. E o ator muda rapidamente
a página do material que está lendo, demonstran-
do indignação com o comentário do argentino. O
Figura 2 - Comercial Críticos comercial encerra com um locutor afirmando: “Ha-
Fonte: Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=nLP- vaianas, orgulho do Brasil.”.
v8R2L6ZE>. Acesso em: 12 abr. 2015.
Sumário
sandália Havaianas: “Tienes esta, pero con la ban- Comercial Roda de samba
derita argentina?”. O vendedor diz: “Como é que é?
Havaianas com bandeira da Argentina?”. E comenta
ironizando a pergunta do argentino: “Rapaz, vocês
têm razão. Vocês são mucho mais engraçados!”. O
comercial encerra com os argentinos atrás da banca
de revista, onde caminham e se batem com os chi-
nelos comprados, e atrás deles aparece um grande Figura 4: Comercial Roda de Samba.
cartaz na parede da banca com a marca Havaianas. Fonte: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
v=XFPq7MmfR5Q>. Acesso em: 26 mar 2015.
O comercial aborda, da mesma forma que o an-
terior, a rivalidade entre brasileiros e argentinos e
O quarto comercial analisado neste artigo é
expõe o orgulho brasileiro de ser a pátria das Ha-
Roda de samba, que se passa em um bar, onde um
vaianas. Esse tema é recorrente nos comerciais da
grupo de pessoas sentadas junto a uma mesa toca
marca, como naquele em que Romário envia a Ma-
samba. Um dos músicos do grupo toca e diz: “E nas
radona o pé esquerdo de um par de Havaianas por 512
Havaianas, Marcos Palmeira.”. O ator global aparece
ocasião da Copa. Além disso, é importante desta-
tocando samba com um par de Havaianas em suas
car que a questão da praia também é tematizada na
mãos, e atrás dele uma bela mulher dança. Na mesa
abertura do comercial, quando aparece um surfista.
do grupo há copos com bebida, e todos participam
O argumento do comerciante de que o país é lindo
do encontro alegremente. Inesperadamente, sur-
remete à ideia da natureza exuberante, e as mulhe-
ge uma mulher que usa óculos e não se enquadra
res belíssimas, à noção de sensualidade do povo, já
em padrões de beleza, vestindo calça, camisa e um
presente na Carta de Pero Vaz de Caminha. Já a ideia
colete, com uma bolsa grande ou pasta no ombro
de o brasileiro ser divertido e engraçado é embasa-
e diz: “Escuta aqui, pessoal, de que planeta vocês
da na noção de povo feliz. Por fim, a esperteza e a
são? Estamos no meio de uma crise mundial, tá todo
malandragem aparecem na resposta do comercian-
mundo preocupado, e vocês aí rindo, se divertindo
te aos argentinos quando ironiza a impossível ideia
como se nada estivesse acontecendo!” “Hoo!”. Ao
de uma bandeira argentina na sandália Havaianas,
que a mulher fala, o ator Marcos Palmeira argumen-
uma vez que é um produto genuinamente nacional.
ta: “Tristeza.”, e a mulher diz: “É.”. Em seguida, um
dos músicos aproveita o que Marcos Palmeira co-
Sumário
menta e continua em canto: “Tristeza, por favor vá Vale destacar, ainda, a diferença entre a mulher
embora, minha alma que chora!”, que é trecho de que reclama e a que dança ao lado dos sambistas.
um importante samba, gravado por diferentes can- A primeira foi caracterizada com o estereótipo de
tores, como Beth Carvalho e Martinho da Vila, e da mulher ativista, que não se preocupa com a beleza,
autoria de Nei Lopes, Luiz Antonio, Haroldo Lobo, de modo que tem os cabelos presos e usa roupas que
Éfson e Carvalhinho. Com isso, a mulher sai de per- não revelam feminilidade e sensualidade. Além dis-
to do grupo se distanciando e aparecem em cena as so, usa óculos, elemento que comumente representa
sandálias Havaianas. intelectualidade, tem os cabelos presos, reproduzin-
Este comercial das Havaianas aborda um aspec- do a típica imagem de uma militante de esquerda.
to marcante da identidade do brasileiro, que é a de- A mulher que dança, ao contrário, usa vestido de
finição do povo enquanto alegre e que se manifesta alça decotado, revelando sua beleza, feminilidade e
sempre com calor humano e emotividade. O comer- sensualidade. A representação da sensualidade da
cial mostra como, em um momento difícil, conforme mulher brasileira, assim como no comercial Lune de
argumenta a mulher que abordou o grupo, as pes- Miel, concorre para reafirmar o mito da sensualidade
soas simplesmente estão cantando e tocando samba e da sexualidade desenfreada do mestiço brasileiro. 513
animadamente em um bar, como que alienadas ao No mesmo sentido, o samba, ritmo das músicas
que acontece no seu entorno. O distanciamento dos do comercial, consiste em um elemento marcante
fatos da vida cotidiana por parte do grupo seria ta- da cultura nacional relacionado à negritude e, por
manho, que a mulher pergunta: “Gente, de que pla- consequência, além da alegria do brasileiro, está li-
neta vocês são?”. Esse comentário sobre a situação gado à ideia de malandragem, de jeitinho brasilei-
vivida pelo país constitui uma percepção racional ro e à sensualidade, em função dos movimentos da
sobre os fatos, enquanto o comportamento dos que dança. No comercial em análise, isso fica claro na
cantam e dançam no bar representa pessoas muito oposição construída entre a militante de esquerda,
mais voltadas para a emoção do que para a razão. preocupada com a gravidade da situação e insensí-
Em um momento tão preocupante, a reação poderia vel à música, e os músicos, que pedem que a tristeza
ser outra, dar ouvidos à mulher, compartilhar das vá embora, em uma atitude despreocupada, própria
suas preocupações. Contudo, ao contrário, o grupo de quem só se preocupa com o hoje.
vai contra a lógica da racionalidade característica
dos países que se localizam no centro da moderni-
dade (SOUZA, 2011) e continua se divertindo.
Sumário
¹ Mestrado em andamento em Psicologia – PUCRS; Graduado em Psicologia – PUCRS; Graduação em andamento em Filosofia
– UFRGS.
Sumário
manecen abiertos a diferentes disciplinas cuyos mé- naridade em que as problematizações da história
todos consisten en la interdisciplinariedad, factor bem como a concepção alternativa da noção de
que ha modificado la ciencia histórica, insertándola temporalidade tinham como objetivo romper com
en el Paradigma de la Complejidad. A través de este algumas partes da historiografia conservadora do-
Proyecto Inter-poli-disciplinar, el recate histórico minante (BARROSa, 2010). Por isso, enquanto ela
de las ciudades y sus recuerdos, se puede entender se opunha ao Positivismo a partir de lutas tanto ins-
en multiperspectiva porque la comprensión tiene titucionais quanto historiográficas; estabelecia vín-
lugar en una dinámica de interrelación entre las culos com teóricos e com ciências que intenciona-
disciplinas, proceso nombrado por Morin de Mirada vam a interdisciplinaridade como modelo científico
Extra-disciplinaria y de Migraciones Disciplinarias. (BARROSb, 2010). Além disso, a Escola teve como
La fundación de los Annales se produjo en medio objetivo abranger todas as atividades relacionadas
fronterizo, característica que le da un espacio de in- à humanidade - não ficando restrita à história da
tercambio entre los investigadores y las culturas. Se atividade política - e visar sujeitos de qualquer sta-
pueden analizar que tanto el campo teórico cuanto tus hierárquico, contrapondo-se ao Antigo Regime
el físico son importantes para la realización de la Historiográfico que se detinha somente nos feitos 516
interdisciplinariedad. Por lo tanto, el Proyecto inau- de reis, papas, generais e políticos (BURKE, 1997).
gura, según Morin, un cambio en la Historia, pues Conforme Barros (2012), os Annales foram contra à
ya no es una disciplina stricto sensu. tríade maldita: história factual, história narrativa e
Palabras clave: Escuela de los Annales. Paradigma história política.
de la Complejidad. Interdisciplinariedad. Revoluci- A Escola possui três gerações (BURKE, 1997).
ón de la Historiografía. A primeira, no período de 1929-1945, marcada por
uma luta incisiva contra as três histórias citadas, foi
onde ocorreu a sua fundação bem como seu proces-
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS DA so de institucionalização (BURKE, 1997). A segun-
ESCOLA DOS ANNALES da, no período de 1946-1968, denominada A Era de
Fernand Braudel, caracterizada pela história serial
A Escola dos Annales, inaugurada em 1929 pe- que consiste em ordenar documentos para avaliar
los historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, teve sua continuidade ou temporal ou espacial, foi onde
como proposta desenvolver um modelo historio- se pode conceber como sendo uma Escola de fato
gráfico embasado pela dinâmica da interdiscipli- (BURKE, 1997). Por fim, a terceira geração - em que
Sumário
há migrações disciplinares com os Estados Unidos e Quanto aos inauguradores da Escola, o histo-
a presença, pela primeira vez, de mulheres - possui riador Febvre (1989) sustenta a sua oposição à espe-
dificuldades de caracterizá-la em função de haver cialidade das disciplinas e, inclusive, admite de ma-
diferentes vieses entre os pesquisadores (BURKE, neira radical: “repeli energicamente, violentamente
1997). Inclusive, o historiador Dosse (1994) criti- mesmo, esse ponto de vista” (p. 108). Em contrapar-
ca essa última geração denominando-a de História tida, defende a utilização de um método que ocorra
em Migalhas, pois se afasta das propostas de seus por meio da interdisciplinaridade em que história
criadores e de Braudel em função de fragmentar a e geografia, por exemplo, possam realizar aproxi-
história gerando uma investigação simplista e redu- mações e combinações com intuito de clarificar o
cionista dos acontecimentos. entendimento acerca do objeto de estudo. Para isso,
As ciências sociais francesas tiveram grande é necessário que os cientistas se sustentem “uns
impacto no Brasil, pois a Missão Francesa teve como aos outros com as suas ideias, os seus métodos, as
objetivo a vinda de professores para lecionar na suas procuras e as suas preocupações” (p. 109) para
USP (DEPOIMENTOS, 1994). Em função dessa mi- que cada disciplina enriqueça seu entendimento em
gração, a Escola dos Annales teve um significativo parceria. O que parece indicar é a necessidade de 517
impacto na academia nacional, influenciando tanto uma relação mútua entre os cientistas com o objeti-
o método da história quanto o das ciências sociais vo de desvendar de forma aprofundada os mistérios
(ROJAS, 2000). Esse fenômeno ocorre pelo fato de humanos envolvidos na história.
que Fernand Braudel leciona como professor titular Marc Bloch (2002), por sua vez, ao escrever O
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Ofício de Historiador, também sustenta a interação
“plantando então, nestes anos 30, uma importante da história com outras disciplinas com intuito de
semente dentro da hitoriografia brasileira, Braudel aprofundar o entendimento das causas dos fenôme-
preparou a enorme e permanente receptividade dos nos. Isso parece ficar claro quando Bloch utiliza o
cientistas sociais brasileiros às propostas dos An- caso do Golfo de Zwin que, soterrado pela areia, é
nales” (P.13). Portanto, a Escola dos Annales será objeto de investigação da geologia, mas, para expli-
um modelo à historiografia brasileira. Inclusive, a car as causas desse efeito, a história se faz necessária
Revista de História, que terá grande importância no como método de pesquisa pelo fato de que o huma-
cenário acadêmico nacional, foi inaugurada por Eu- no é a causa desse fenômeno. E conclui: “Eis portan-
rípedes Simões de Paula quem teve Braudel como to, [...] um ponto de sobreposição onde a aliança de
professor e referência (ROJAS, 2000). duas disciplinas revela-se indispensável a qualquer
Sumário
tentativa de explicação” (p. 54). Além disso, desta- Além da interdisciplinaridade, a história-pro-
ca-se que Bloch enfoca a centralização do humano, blema, outro método importante dos Annales, é
pois é por meio dela que a construção da pesquisa muito bem descrita por Barros (2012). O autor re-
histórica é desenvolvida, pois são os sujeitos que aliza uma oposição entre os historiadores Halphen
possuem participação ativa em sua historicidade. e Bloch, o primeiro defende que “os fatos por si
A partir dos fundadores dos Annales, pode-se mesmos falam” enquanto o annalista sustenta “os
concluir que a interdisciplinaridade é utilizada com documentos e os testemunhos só falam quando sa-
a interação de outras disciplinas para que o objeto de bemos interrogá-los”. É expressiva a diferença de
pesquisa possa ser analisado por meio de um enfo- postura do historiador frente ao seu objeto de es-
que multiperspectival para abranger a sua totalida- tudo de acordo com o que Bloch propõe, e ela será
de. Isso gera uma inevitável abertura do historiador uma característica dos Annales, a saber, a interro-
tanto a outras disciplinas quanto a outros fenôme- gação para desenvolver interpretações e problema-
nos históricos não limitados apenas ao âmbito po- tizações advindas de hipóteses bem como questio-
lítico. Em consequência disso, houve maior abran- nar as próprias hipóteses estabelecidas (BARROS,
gência para interpretar e renovar a historiografia, 2012). Como refere Dosse (1994) “o historiador não 518
movimento que se distanciou do modelo positivista deve fazer tábua rasa de sua individualidade para
(DOSSE, 1994). Conforme bem descreve Dosse, a professar a dúvida: deve, ao contrário, confrontar
influência do filósofo Henri Berr, do geógrafo Paul suas hipóteses com os documentos históricos” (p.
Vidal e da sociologia durkheimiana sobre a Escola 57). Destaca-se, então, a implicação do historiador
dos Annales foram importantes para a realização de com seu objeto de estudo que, diferentemente do
uma síntese entre as diferentes disciplinas. Na Era paradigma positivista, é um sujeito que tem partici-
Braudel, em função das demandas da sociedade no pação ativa na construção de seu objeto.
período pós-guerra, a Escola se atem nos estudos da Quanto à noção de temporalidade, a Escola dos
economia e da demografia, disciplinas que também Annales sustenta que “A história que se consome
começam a interagir com a história (DOSSE, 1994). tornou-se recurso terapêutico para preencher os
Posteriormente, em função da história das mentali- vazios, para romper o isolamento dos subúrbios de
dades, há a inserção da psicologia histórica que, por passado sem memória” (DOSSE, 1994, p. 13). Por
sua vez, abre fronteiras para a inserção da literatura isso, a problematização do método histórico - visto
bem como da linguística (DOSSE, 1994). no parágrafo anterior - possibilitou um resgate das
memórias passadas para preencher as lacunas do
Sumário
presente de forma a propiciar sentido às vivências vel ao longo do tempo sendo sua característica a li-
humanas em relação ao tempo. Ainda conforme mitação do humano como, por exemplo, o tipo de
Dosse (1994), a inserção da geografia vidaliana na mercado econômico que perdura do século XIV até
pesquisa histórica, que também se opunha ao pa- metade do século XVIII é estruturado com aspectos
radigma positivista, fez com que o historiador não estáveis e instáveis (divergentes), mas que se com-
ficasse restrito em documentos e livros, ampliando plementam. Esse método de longa duração modifica
o seu olhar para os fenômenos da humanidade e da o modo de investigação do historiador, este reali-
natureza assim como da própria paisagem. Isso pa- za um movimento de avançar e voltar no tempo de
rece conferir com o primeiro volume do Mediterrâ- maneira contínua para que seja possível gerar no-
neo de Fernand Braudel em que há uma ausência vos olhares e problematizações a partir desse “ir e
de tempo, pois o historiador está preocupado em vir” (BRAUDEL, 1965). Isso significa que o tempo
descrever o espaço, seus aspectos geográficos e os não é descrito de maneira linear, é problematizado e
fatores que dão vida ao ambiente de investigação. refletido no pensamento do historiador em relação
Por fim, os Annales se ocupam com a história ao seu presente em função do vínculo que estabele-
de longa duração que é contrária à história de tempo ce com seu objeto de estudo. 519
curto, breve e efêmero (BRAUDEL, 1965). Conforme É inegável a revolução científica que a Escola
o autor, a vigência da história social e econômica fez dos Annales realizou, conforme destaca Peter Burke:
com que o historiador dirigisse sua atenção em tem-
O grupo ampliou o território da história abran-
pos longos, como dezenas de anos, para acompa- gendo áreas inesperadas do comportamento hu-
nhar as oscilações econômicas e os ciclos sociais de mano e a grupos sociais negligenciados pelos
uma determinada sociedade. Isso difere do tempo da historiadores tradicionais. Essas extensões do
história tradicional em que “um dia, um ano podiam território histórico estão vinculadas à desco-
berta de novas fontes e do desenvolvimento de
parecer boas medidas a um historiador político, an- novos métodos para explorá-los. Estão também
tigamente. O tempo era uma soma de dias” (p. 266). associadas à colaboração com outras ciências li-
A longa duração está relacionada com duas noções, gadas ao estudo da humanidade, da geografia à
a saber, a tendência secular e a estrutura (BRAUDEL, lingüística, da economia à psicologia. Essa co-
laboração interdisciplinar manteve-se por mais
1965). A primeira tem relação com a economia em de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes
que é possível verificar o comportamento de uma das ciências sociais. [...] A historiografia jamais
variável, seu ciclo e suas variações, por meio de um será a mesma” (1997, p.127).
tempo longo. A segunda é o que permanece está-
Sumário
A história, antes fechada, torna-se uma discipli- mesma; 3) estimulação à revolução científica para a
na aberta tendo como fundamento, em contraponto “transformação das estruturas do pensamento” (p.
a Barros (2012), a tríade bendita: história-problema, 31). Dessa forma, torna-se possível a tentativa de
interdisciplinaridade e longa duração. conhecer a complexidade do real de maneira a rela-
cionar as partes formando o todo que, por sua vez,
PARADIGMA DA COMPLEXIDADE E O também é formado pelas partes, assim, evita-se que
PROJETO INTER-POLI-TRANSDISCIPLINAR a inteligência se torne cega, permitindo uma lucidez
acerca do fenômeno de investigação.
Edgar Morin (2003) sustenta o pensamento Morin (2005) também destaca três princípios
complexo como necessário e indispensável para o envolvidos no pensamento complexo, a saber, o dia-
método científico, pois ele é capaz de unir os dife- lógico, o recursivo organizacional e o hologramáti-
rentes entendimentos acerca do objeto de investiga- co. O primeiro consiste na dialógica entre fenôme-
ção de maneira a conduzir o seu conhecimento do nos divergentes, mas complementares, um exemplo
simples ao complexo. A sua tese sobre o Paradigma que Morin descreve é a formação da vida em que o
da Complexidade tem como objetivo fazer com que DNA, enquanto estrutura estável, é formado e or- 520
haja a comunicação e interação do sujeito com o seu ganizado por estruturas instáveis, os aminoácidos,
objeto de estudo para que ocorra uma relação e par- isso significa que duas estruturas, apesar de diver-
ticipação ativa do sujeito no processo de investigar gentes, complementam-se. O segundo se refere à
e desvendar a complexidade (MORIN, 2011). Em seu “ruptura com a ideia linear de causa/efeito” (p. 74)
livro A Cabeça Bem Feita, Morin (2003) desenvolve em que a causa é também efeito e este também é
um Projeto Inter-Poli-Transdisciplinar que consiste causa formando um ciclo que se autoconstitui e se
em uma metodologia capaz de organizar a interação auto-organiza. Por fim, o terceiro onde “o menor
entre as diferentes disciplinas para que possa haver ponto do holograma contém a quase totalidade da
uma transformação tanto do objeto quanto do sujei- informação do objeto representado” (p. 74), isso sig-
to para que ambos tenham saltos complexos. nifica que o paradigma da complexidade não é res-
Para isso, Morin (2005) desenvolve as três “pro- trito ao viés reducionista (parte) e nem ao holismo
postas para a investigação” sustentadas pela com- (todo) porque consiste em uma dialógica entre eles
plexidade, a saber: 1) facilitação das instituições onde enquanto um é causa, o outro é efeito e, simul-
para o desenvolvimento científico; 2) autorreflexão taneamente, este é causa enquanto aquele é efeito,
dos cientistas com intuito da ciência analisar a si nesse sentido, há um rompimento com a noção li-
Sumário
near de causa e efeito. Por isso, conclui “a própria A questão é: por que Morin confere à Escola
ideia hologramática está ligada à ideia recursiva, dos Annales o estatuto de complexidade? Em sín-
que está ligada, em parte, à ideia dialógica” (p. 75), tese, há, no mínimo, três fatores do paradigma da
ou seja, os três princípios estão interligados. complexidade que se assemelham à proposta da Es-
cola dos Annales, a saber, a Interdisciplinaridade, a
COMPREENSÃO DA ESCOLA DOS ANNALES oposição ao Paradigma Positivista e a necessidade
PELA PERSPECTIVA DO PARADIGMA DA do pesquisador pensar sobre si mesmo em função
COMPLEXIDADE de ele ser o responsável por desenvolver a ciência
(BARROS, 2010a; BURKE, 1997; MORIN, 2003; MO-
Ao desenvolver o paradigma da complexidade, RIN, 2011). Além disso, pode-se destacar que tanto
Edgar Morin menciona alguns exemplos de teóri- Bloch (2002) quanto Morin (1977) enfatizam a ne-
cos, autores e ciências que ora se assemelham ora se cessidade da ciência não perder, de modo algum, a
aproximam de sua tese, a saber: na literatura, Dos- sua parte poética.
toiévski; na filosofia, Hegel e Heráclito; nas ciências, A interdisciplinaridade ocorre quando há uma
Kurt Gödel, Jean-Louis Le Moigne, Yves Barel e etc interação e cooperação mútua entre os diferentes 521
(MORIN,2003; MORIN, 2005). Além desses, também pesquisadores que estão envoltos em um mesmo
a Escola dos Annales: problema (MORIN, 2003). A transdisciplinaridade,
por sua vez, é o fenômeno no qual há a transcen-
Certos conceitos científicos mantêm a vitalida-
de porque se recusam ao fechamento discipli-
dência disciplinar, nela é onde acontece o choque da
nar. Assim acontece com a história da École dês disciplina, visto que ela é perpassada por diferentes
Annales, que, depois de ter ocupado um espaço forças disciplinares que, mesmo antagônicas, irão
marginal na Universidade, agora é extremamen- desenvolver teorias e hipóteses sobre o seu objeto
te valorizada. A história da Annales foi consti-
tuída pela transdisciplinaridade [...]. A História,
de estudo (MORIN, 2003). Por isso, Morin sustenta
assim fecundada, não pode mais ser considerada que a Escola dos Annales é um Projeto Inter-poli-
uma disciplina stricto sensu: é uma ciência histó- -transdisciplinar, pois ela funciona a partir de dife-
rica multificalizadora, multidimensional em que rentes disciplinas que, ao interagirem e cooperarem
se acham presentes as dimensões de outras ciên-
cias humanas, e onde a multiplicidade de pers-
mutuamente na investigação da pesquisa histórica,
pectivas particulares, longe de abolir, exigem a transcendem a maneira pela qual o objeto é explica-
perspectiva global (p. 109) do e compreendido. Sua dinâmica, de acordo com o
rigor do paradigma da complexidade, ocorre por um
Sumário
processo circular “passando da separação à ligação, ce não apenas de um conhecimento e de uma refle-
da ligação à separação, e, além disso, da análise à xão interna sobre si mesma, mas também de um co-
síntese, da síntese à análise” (p. 24). Isso parece se nhecimento externo” (p. 105). Portanto, a abertura
aproximar com a proposta da segunda geração da disciplinar é imprenscidível para que não haja uma
Annales em que “a palavra-chave do discurso brau- fronteira hiperdisciplinar que impeça as migrações
deliano é ‘reciprocamente’, tudo influi sobre tudo e disciplinares tornando o conhecimento simplista.
reciprocamente” (DOSSE, 1994). O olhar voltado para além dos limites circun-
Além da inter e transdisciplinaridade, Morin dantes da disciplina possibilita uma observação ou
(2003) introduz a ecodisciplinaridade e a metadis- de um objeto, ou de um fenômeno, ou de uma lin-
ciplinaridade. A primeira se refere à compreensão guagem ora diferentes, ora estranhos, ora próximos
de uma disciplina em relação ao seu campo tem- com a disciplina em foco (MORIN, 2003). Isso faz
po-espacial, é nele que ela deve ser analisada e es- com que o pesquisador, ao buscar a compreensão
tudada, pois condiz com o momento atual do estu- de uma disciplina exterior à sua, desenvolva outros
do. A segunda, por sua vez, confere a abertura e o meios para recriar a sua. Esse Olhar Extradisciplinar
fechamento como movimento dinâmico necessário (MORIN, 2003) é um fenômeno que pode ser atribu- 522
que ocorre na organização disciplinar. Sendo assim, ído à dinâmica que sustenta a Escola dos Annales,
a Escola dos Annales pode “ecologizar” a discipli- pois sua proposta foi possibilitar desenvolvimentos
na história na medida em que a insere na sintonia teóricos e metodológicos por meio da apropriação
com o seu âmbito tempo-espacial, isso poderia ser de outras disciplinas humanas como a geografia,
exemplificado quando a Revista muda o seu nome a economia, a sociologia e etc com a história. In-
com o intuito de atender as demandas de seu pre- clusive, a História Total da Annales parece ter essa
sente contexto. O processo de abertura-fechamento proposta de englobar e abordar o conjunto a partir
da dinâmica metadisciplinar é relacionado ao fun- da união de todas as ciências humanas e não ficar
cionamento da história que, em função da Annales, determinada e reduzida em apenas uma, fator que
pode se abrir conforme as modificações contextuais iria fragmentar o conhecimento, semelhante ao
e, também, fechar-se para elaborar e refletir acerca que Morin designa de Inteligência Cega. Conforme
dos conteúdos que englobou durante o seu processo a máxima “Everything Has a History” de Haldane
de abertura; para, então, abrir-se novamente e, as- (2005), tudo tem um passado que pode ser inves-
sim, de modo contínuo e sucessivo. Por isso, Morin tigado pela história, isso significa que ao Annales
confere que a disciplina, nesse caso, a história, “nas- não só se abriu para outras disciplinas, mas, tam-
Sumário
bém, para coisas que não tinham história como, por Parece que esse fenômeno ocorre devido a di-
exemplo, a morte cujo tema foi abordado por Phili- versos fatores, a própria configuração da sociedade
ppe Ariès (2003). pós-moderna resultou na liquidificação das estru-
Quanto ao fenômeno das Invasões e Migrações turas sólidas (BAUMAN, 2001), tornando-se lique-
Disciplinares descritos por Morin (2002), que tam- feitas, foi possível um encontro entre dois âmbitos
bém podem estar envolvidas nesse processo inter- que, até então, pareciam divergir, mas que, a par-
-poli-transdisciplinar, ele é composto pelas “ruptu- tir da dialógica, possibilitou uma compreensão até
ras entre as fronteiras disciplinares, da invasão de então impedida, e essa relação enriqueceu o desen-
um problema de uma disciplina por outra, de circu- volvimento científico para a atuação do historiador.
lação de conceitos, de formação de disciplinas hí- As migrações concretas, como destaca Morin, tam-
bridas que acabam tornando-se autônomas” (p.107). bém propiciam a ocorrência de trocas disciplinares,
Nesse caso, a história, a partir da Annales, tem a como no caso de um teórico especialista de deter-
presença, como visto acima, de outras disciplinas minada área que, ao viajar para se encontrar com
das ciências humanas. Como a história teve, como outro especialista de uma área divergente podem
fundamento, um projeto inter-poli-transdisciplinar desenvolver uma dinâmica interdisciplinar. Com es- 523
inaugurado pela Annales, primeiramente, abriu-se sas migrações concretas foram possíveis, em função
à migração das disciplinas e as justapôs com o seu da localização geográfica da Universidade de Es-
“arcabouço disciplinar” possuindo aspectos que lhe trasburgo, os constantes encontros entre os teóricos
são próprios e outros que não. No momento em que de regiões diferentes em um mesmo espaço físico
ela se fecha, pode constituir uma interdisciplina, (BURKE 1997). A própria migração de Braudel ao
pois se configura como um sistema de interação e Brasil influenciou a criação da Revista de História,
integração gerando, por fim, uma nova formação de semente da Annales no contexto acadêmico nacio-
conhecimento e de área teórico-metodológica resul- nal. O processo de Globalização também parece in-
tando na transformação e na transcendência do ob- fluenciar esse desenvolvimento migratório em que
jeto e de seu entendimento (KLEIN, 2002). Em ou- a interdisciplinaridade pode ocorrer em função da
tras palavras, ela teve, como ponto de partida, uma facilidade de acesso às teorias e técnicas realizadas
integração parcial e, como ponto de chegada, uma em outro “lado do mundo” que chegam “nesse lado”
integração total; por isso, o salto complexo que faz de maneira instantânea, assim, pode haver uma for-
com que ela deixe de ser uma disciplina stricto senso ma de interagir e analisar se esta é uma possibilida-
(MORIN, 2003), pois visa a história total como ob- de de inter-relacionar ou não os conteúdos de uma
jetivo historiográfico (BURKE, 1991; DOSSE, 1994). disciplina com outra – isso seria tema para a área de
Sumário
BARROS, José D`Assunção. Os Annales e a história-proble- KLEIN, Julie Thompson. A taxonomy of interdisciplinarity.
ma – considerações sobre a importância da noção de “his- In: FRODEMAN, Robert; KLEIN, Julie Thompson; MITCHA,
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dez 2012. 525
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Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1991. p. 7-38.
Sumário
ção desses conceitos possibilitará uma compreensão Stuart Hall afirma que o sujeito de hoje está
maior da (re)construção da identidade por meio da sendo fragmentado, ou seja, deixando de ser um su-
linguagem em uma sociedade moderna. Na terceira jeito único e estável para abrir espaço a um indiví-
parte, definiremos melhor nosso objeto de análise, o duo que se transforma, que passa por mudanças e se
filme Babel (2006), e será feita algumas reflexões so- reposiciona dentro da sociedade. Hall discute essas
bre a origem do nome oferecido ao filme, bem como transformações em A identidade cultural na pós-mo-
as suas relações. Em seguida, apresentaremos a aná- dernidade (1997) e explora aspectos de identidade
lise identitária à luz das considerações dos autores cultural com o intuito de abarcar sobre uma possí-
acima citados. Por último, teceremos algumas con- vel passagem do sujeito moderno por uma “crise de
siderações finais a partir da análise empreendida. identidade”. Antes de esclarecer acerca da expressão
que Hall utiliza, crise de identidade, faz-se necessá-
AFINAL, POR QUE FALAR SOBRE rio também, discorrer pelos conceitos de identidade
IDENTIDADES? apresentados por Rajagopalan, em Linguagem, iden-
tidade e a questão ética (2003).
Partindo do pressuposto de que é por meio da Stuart Hall (1997) caracteriza a identidade como 527
linguagem inserida em diferentes contextos que va- não fixa e não estável, ou seja, o sujeito da moderni-
mos construindo nossa identidade, nossa persona- dade vai tomar para si diferentes identidades em di-
lidade, nossa cultura e assim contribuímos para as ferentes situações. Pois, a cada novo momento nos
formações identitárias de outros indivíduos e vice contradizemos assumindo diferentes posturas, no
e versa, pois o sujeito não faz nada sozinho, ele age entanto, nossa identidade se desloca ao passo que
no mundo cheio de intenções das quais interferem cada momento da vida muda. De acordo com esse
de alguma forma na vida do outro. A língua quan- pensamento, lado a lado a essa mudança de identi-
do em uso, tem o papel principal de significar. No dade, está a alteração de nossa identidade linguísti-
entanto, a relação é sempre intersubjetiva, ou seja, ca. Além de ser, por muitas vezes modificada, nossa
partilhamos com o outro nossa forma de pensar e identidade linguística se molda ao contexto em que
agir, com vistas a influenciar nosso interlocutor, o momento ambiciona. Quer dizer que, essa alter-
pois conforme Benveniste “a linguagem é para o nância se dá através de nossas escolhas linguísticas,
homem um meio, na verdade, o único meio de atin- no momento em que escolhemos uma linguagem e
gir o outro homem, de lhe transmitir e de receber não outra. Por vezes, estamos inseridos em situa-
dele uma mensagem” (1989, p.93). ções de fala, das quais não nos é comum, não são
Sumário
pertencentes ao meio em que vivemos, por exem- da história, certos conceitos de identidades, a exis-
plo, aquele indivíduo pertencente a uma determina- tência de três sujeitos marca bem três momentos
da região, classe social ou a um determinado grupo, históricos. O primeiro sujeito era aquele centrado
ou trabalho, que se identifica como membro deverá em uma identidade única, que acredita no eu inte-
ser aceito, valorizado e tanto quanto ele próprio de- rior, o sujeito do Iluminismo. O sujeito sociológico,
verá legitimar sua identidade perante as variedades que tinha sua identidade formada pela posição que
que encontrar. tomava na sociedade e, o sujeito pós-moderno, de-
Hall afirma que as identidades são socialmente vido as transformações, quase como um camaleão,
construídas, influenciam e são influenciadas através não tem uma identidade própria mas múltiplas, e é
das ações e das interações, por isso a construção da deste que falávamos no princípio, um sujeito que as-
identidade estar intimamente ligada aos contextos sume “identidades diferentes em diferentes momen-
sociais, o que implica uma ideia de reconstrução por tos” (1997, p. 13), uma vez que isso é fruto de que “as
parte do indivíduo, pois a ele, em uma interação, é sociedades modernas são, por definição, sociedades
transmitido significados de outros grupos culturais. de mudança constante, rápida e permanente” (p.14),
Hall argumenta que a identificação do sujeito ocor- Hall, sintetiza sobre não sermos acomodados frente 528
re a partir do reconhecimento de elementos comuns a construção de nossa identidade na citação abaixo:
a ele próprio, ou através de qualidades que são com-
A identidade plenamente unificada, completa,
partilhadas com outros grupos ou pessoas. Então, segura e corrente é uma fantasia. Ao invés dis-
esse processo de reconhecimento está fortemente so, à medida em que os sistemas de significação
relacionado com o contexto social, econômico, étni- e representação cultural se multiplicam, somos
co ou cultural no qual está alocado. confrontados por uma multiplicidade descon-
certante e cambiantes de identidades possíveis,
Depois da globalização, Hall posiciona-se criti- com cada uma das quais poderíamos nos identi-
camente no que diz respeito à identidade, dizendo ficar – ao menos temporariamente. (HALL, 1997,
que as antigas estão em decadência devido ao surgi- p. 113)
mento das identidades fragmentadas, por consequ-
ência da “crise de identidade”, entendida por Hall, Para tanto, devemos citar Rajagopalan (2003),
como “parte de um processo mais amplo de mudan- que versa sobre a construção das identidades da
ça, que está [...] abalando os quadros de referencia língua e do indivíduo e afirma que ambos tem en-
que davam aos indivíduos uma ancoragem estável volvimentos recíprocos, a identidade do sujeito vai
no mundo social” (1997, p.7). Hall observa ao longo se edificar na língua ou através dela, pois tanto a
Sumário
língua quanto o indivíduo evoluem. A propósito ganhado pode alcançar. Antes disso, o irmão mais
dessa relação, ele lembra que a linguagem é a forma novo, Ahmed, vislumbra-se com a sua irmã, Zohra,
na qual lidamos com as circunstâncias, é a nossa despindo-se para ele, Youssef, irmão mais velho,
inserção dentro da sociedade quando que o mun- não gosta nada do que vê e inicia-se aqui uma dis-
do é intercedido pela linguagem. Ele concorda com cussão a cerca do ocorrido. O rifle, o qual o pai dos
Hall, ao denominar a identidade do individuo como meninos (Abdullah) comprou de um amigo está em
fluída e mutável, que pertence a comunidades com poder dos meninos para que cacem chacais, animal
realidades particulares. Passemos agora a contextu- que matava suas cabras. No entanto, os dois meni-
alização da obra, a origem de seu nome e as suas nos duvidam da potencia da arma e começam a ati-
relações significativas. rar na direção dos veículos que por ali passavam, ao
passo que percebem que o tiro alcançou o ônibus
O FILME que passava. Apavorados, fogem.
O quarto e último episódio, revela a procedên-
A trama enreda-se, simultaneamente, em quatro cia da arma que atingiu a americana e vida da meni-
países – Marrocos, Japão, Estados Unidos e México - na surda-muda, Chieko, no Japão. O rifle foi deixado 529
e envolve-nos em quatro episódios ao mesmo tempo por um executivo japonês após uma caçada no de-
alheios e conectados entre si. Em um dos episódios, serto como presente ao seu anfitrião, este, por sua
um casal de norte-americanos, Susan e Richard, vez, foi quem a vendeu a Abdullah. A menina, filha
viajam com um grupo em excursão pelo deserto do do executivo, que perdeu a mãe e vive em conflito
Marrocos, a fim de reconciliar sua vida amorosa em com o pai, não arruma namorado e passa a insinu-
crise. Ao sair de viagem, deixa dois filhos, Debbie e ar-se aos garotos.
Mike, sob os cuidados da babá de origem mexicana. Babel é uma obra que passeia por muitas pers-
A atitude da babá Amélia, é marcada como segundo pectivas. A começar, valemo-nos de pontuar, mes-
episódio, quando leva as crianças ao casamento de mo que minimamente, que Babel era uma cidade
seu filho no México, sem a autorização do casal, de- da Babilônia, região adoradora de Deuses, na qual
sencadeando uma série de problemas. constrói-se uma enorme torre – até hoje questiona-
Durante o passeio, Susan, companheira de Ri- -se sua existência - para o culto dos religiosos. Para
chard, é baleada por uma bala perdida. Inicia-se eles, essa enorme construção serviria de escada para
então, o terceiro episódio. Em terras marroquinas, o céu e de ligação entre Deus e os homens, como um
dois irmãos discutem sobre a distância que o rifle meio de comunicação entre outros deuses e o livra-
Sumário
mento de um outro dilúvio. Pelo Antigo Testamento nome. O filme conversa implicitamente com situ-
da bíblia, a torre fora construída por descendentes ações de conflitos, desordem, um atropelo na vida
de Noé. A Bíblia explica que Deus ficou enfurecido dos personagens, ao mesmo tempo que divaga sobre
com eles; quis que as pessoas se dispersassem e se- as similaridades e dessemelhanças sociais descen-
parassem-se sobre a terra. Confundiu as línguas e dentes das múltiplas identidades. Figuras estas, que
raças destruindo a torre. Fez com que o homem se com muita dificuldade expressam-se sem uma lin-
espalha-se pelo mundo e falasse diversas línguas. guagem comum, de escolhas sustentadas por suas
Atualmente, há aproximadamente três mil lín- fragilidades e anseios, pessoas que intervêm umas
guas. Será a torre de Babel a percursora de todas as às outras através das relações de convencionalismo
línguas existentes hoje? Muitas vezes, nossa razão e altivez diante de suas línguas e culturas, pelo sim-
se dispersa pela assimilação de um mito. Nos parece ples fato de possuírem uma babel de identidades.
menos árduo procurar a verdade e se apoiar em algo Valendo-se dessas interpretações a cerca do filme,
pronto. Por serem mais poéticos e extremamente desejamos iniciar a análise propriamente dita.
apelativos, os mitos quase nunca são descartados e
aceitos sem questionamento, mais plausível se tor- A ANÁLISE 530
na, quando se encontra na bíblia. Não cabe a nós,
neste momento, discutir as raízes da língua mas, nos As cenas iniciais nos remetem fortemente aos
compete, destacar a verossímil semelhança entre a problemas pessoais, quando no filme parte dos Es-
torre de Babel discutida na Bíblia e o nome dado ao tados Unidos para o Japão e se dedica aos problemas
filme arrolado aqui, Babel. de relacionamento e comunicação interpessoal de
Percorrendo pelo significado da palavra Babel uma garota surda-muda com seu pai e os garotos.
no dicionário Michaelis2 encontra-se uma perfeita Mostra-nos que todos passamos por problemas e re-
definição para a associação a qual queremos fazer. agimos mostrando sentimentos de frustração, desi-
Babel significa uma confusão de línguas, uma gran- lusão, solidariedade, dor e medo; o filme faz diferen-
de desordem, sinônimo de diversidade, multiplici- tes histórias tornarem-se uma só e até mesmo uma
dade e variedade. A partir disso, passemos então, só, em várias. Valendo-se disto e do que Hall avalia,
a alimentar a grande afinidade entre o filme e seu qualquer situação pode interferir direta ou indireta-
mente em outras vidas, seja aqui ou do outro lado procedência deles. Vemos ai, uma atitude arrogante
do mundo. Além disto, o autor do filme leva-nos a frente a cultura que está inserida. Para Hall, o que
concluir que relações existem em vários lugares e não estaria acontecendo aqui, é a identificação de
que os efeitos da globalização podem ocorrer em Susan com aquele grupo social.
qualquer país e consegue deixar-nos familiarizados Parecida ocasião ocorre quando o grupo de
com o cenário dos jovens japoneses e não com a po- americanos entra em colapso após uma passageira
breza marroquina. O que ocorre é uma rápida iden- sua ser baleada. Enquanto Richard pede para que o
tificação com a cultura da garota, porém, quando ônibus pare pois sua esposa foi baleada, um dos pas-
voltamos a região pobre no Marrocos, temos uma sageiros diz “acelera” e o outro “vão começar a ati-
reação diferente, porque aquele espaço não se apro- rar em nós”. Entretanto, vê-se através das falas dos
xima nem tampouco lembra a cultura a qual esta- passageiros de que se pararem ali, poderão ser alvos
mos inseridos e/ou habituados. de terroristas e tampouco se importam com a lesada.
Vivemos em culturas muito diferentes e ao mes- O desentendimento entre os viajantes desencadeia
mo tempo resultado de um mundo globalizado. A uma luta contra o tempo, pois para eles quanto mais
exemplo disso, iniciamos nossa análise pelo dispa- permanecessem naquele lugar, mais sujeitos ao peri- 531
ro feito pelos garotos, que rapidamente, concluem go estariam. Desencadeia aqui, uma não legitimação
os passageiros à um ataque terrorista, ou seja, essa do povo americano ao povoado do Marrocos.
conclusão mostra que devido um consentimento co- Submetemo-nos agora, a pensar na atitude do
letivo do qual os americanos vivenciam, resulta em esposo, Richard. Um homem, ainda que, em um
uma concepção de soberba que eles possuem em re- país estrangeiro, apresenta-se com uma identidade
lação a um país de terceiro mundo. Neste momento superior, a quem devem acatar seus pedidos e suas
do filme, verifica-se que estes estadunidenses via- ordens com a esposa baleada no colo. Decide por
jam para um país pobre, dentro de um bom ônibus ligar para a embaixada, pois não acredita que aque-
climatizado que não prevê um contato autêntico le povo poderia auxiliá-lo. Com sua mulher entre
com o povo. Entretanto, o ponto de estranheza entre a vida e a morte, aceita que um médico veteriná-
as culturas transcorre pelo filme em diversas cenas. rio faça pontos no lugar que a bala atingiu. Richard
Obviamente devemos citar devido episódio, em que reconstrói-se, ou seja, altera a identidade assumida
a americana Susan toma uma atitude de resistência anteriormente para subalterno do povo do deserto.
perante a comida local e surpreende-nos ao tocar os Se falássemos em desigualdade social entre es-
gelos do copo de Coca Cola no chão por não saber a tes países, diagnosticaríamos esse ponto de vista,
Sumário
como um resultado peculiar da globalização, uma conflito resulta no tiro desorientado de Yussef na
vez que o capitalismo não opera apenas entre as moça americana – mesmo que desprovido de qual-
classes sociais, mas sim, entre países ricos e pobres. quer intenção - dentro do ônibus em movimento.
Talvez seja por isso – a globalização - que em todo o Ao analisar a história de Amélia, empregada
filme, os mais lesados tenham sido os mais pobres. do casal e ilegal no país, remete-nos também a um
Embora o casal seja americano, a própria polícia resquício do mundo globalizado, no qual vivem os
marroquina preocupa-se em encontrar o culpado. mexicanos que tentam cruzar a fronteira dos EUA.
Mostram-se bruscos com Hassan e sua esposa, agri- A identidade destes, é designada no filme como um
dem verbalmente e fisicamente seu cidadão, pois povo aparentemente inferior e descreditado. Ri-
acreditam que se encontrarem o responsável, serão chard não consegue ninguém para cuidar das crian-
legitimados pelo país americano. Vê-se, no entanto, ças no dia do casamento do filho da empregada. Ele
por parte da polícia uma própria negação à cultura impõe a ela uma obrigação. Decidi, então levá-los
que vivem e da qual fazem parte. junto ao México. Santiago vem buscá-los. Ao che-
Babel trabalha então, com duas potencias, o Ja- gar, Santiago leva as crianças para recolher galinha.
pão e os Estados Unidos. Verifica-se que no vilarejo Num primeiro momento, elas acham a brincadeira 532
marroquino, as pessoas que vivem ali, são definiti- de caça interessante, porém quando percebem que
vamente alheios à civilização urbana encontrada o animal seria morto, estranham. Isso deve-se ao
nos Estados Unidos. Encontram-se ali mulheres que fato de o frango que comem chegar pronto aos seus
cuidam da casa e dos filhos, e os homens, os quais pratos e supermercados, resultado de uma vivencia
responsabilizam-se pela caça de alimentos. Seus co- cultural desigual à que eles encontram-se naquele
tidianos se limitam à penosa luta existencial e pela momento. Importante destacar a fala do garotinho
sobrevivência. Vivamente nota-se uma desestabiliza- Mike durante a viagem até o México. Ele diz “ma-
ção nessa modesta vila, quando os garotos, de posse mãe disse que o México é muito perigoso”, nota-se
de um objeto o qual não era familiar aos dois, desen- que o menino desde muito cedo já recebe instruções
cadeia uma relação de disputa entre eles. Verifica-se de sua família sobre a cidade citada, e passa a inte-
que o rifle desestabiliza a cumplicidade de irmãos no riorizar isso como verdadeiro.
momento que seu pai desmoraliza Ahmed apontan- Rememoro sobre a jovem japonesa, Chieko,
do para o irmão menor e dizendo “Ele (Yussef) ati- que vive em meio a um mundo, o qual podemos
ra bem melhor que você”. A partir desse episódio, chamá-lo de atual, pois percebemos uma sociedade
ambos necessitam mostrar quem melhor atira; esse que constrói sua identidade a partir de um espaço
Sumário
tecnológico, cheio de estímulos porém, muito vago escolhas as quais cada uma fez em determinada cul-
de conteúdos, mesmo assim, ela sente-se insuficien- tura, em distintas classes sociais e em diferentes po-
temente envolvida ao meio em que frequenta, posi- sições geográficas. Para quem assiste, traz, mesmo
cionando-se, por um momento, com inferioridade que remotamente, um sentimento familiar ao des-
aos demais. Em meio a uma sociedade que exige sas personalidades, pois conflitos sociais ocorrem
pessoas perfeitas, Chieko dada à sua condição de todos os dias.
deficiente, não consegue aproximar-se de nenhum Sob o ponto de vista da intersubjetividade, vem
garoto, instaura-se uma menina cheia de inseguran- a calhar falarmos de como cada um vê a realidade.
ça, mas que quer muito assumir uma identidade que O que aparece são seres humanos que veem a reali-
não é a sua, com a intenção de estar naquele mes- dade a sua maneira, quando que, se precisamos es-
mo espaço, mesmo que isso não a satisfaça, de estar tabelecer relações devemos construí-las através da
junto de fato e para isso, mostra-se alegre, aberta a linguagem, do diálogo e da interação com o outro.
novos desafios, mas é deprimida e infeliz pela morte Relevante destacar, que mediante essa constatação,
de sua mãe e a falta de comunicação com o pai. Sob o filme vai nos mostrar diferente em certo aspecto.
estes aspectos, a vida de Chieko é categórica, pois Todas as situações surgiram lado a lado, mas em ne- 533
até o fim do filme procura por atenção, afeto e cari- nhum momento houve contato com o outro, todas
nho. O pai, Yasujiro, sempre sem tempo para a filha, as vidas mostradas ali, do início ao fim do enredo
entende a necessidade dela ao fim da trama, quando insistem em permanecerem interdependentes.
percebe que sofre muito pela perda da mãe, e que a
cada momento reinventa uma nova história para a APREÇOS FINAIS
morte daquela que tanto amava. Concentra-se aqui,
conforme Hall, uma menina com sua identidade Vivemos hoje em uma coletividade altamente
fragmentada, que assume uma a cada momento de globalizada onde tudo é muito rápido, e se modi-
sua vida, uma primeira que a sociedade globalizada fica rapidamente. Sendo nós sujeitos pertencentes
pede, e a outra que, como filha, deve assumir. e formadores dessa sociedade também somos seres
As histórias que acontecem na trama, são pa- que se moldam, ao passo que algo é transposto, essa
ralelas umas as outras, como se fossem episódios ocorrência não tem duração, dura todo o momento
distintos, porém não é o que ocorre devido a ligação necessário para que tal evento se altere, ou seja, não
que fazem com as outras vidas. Esse elo entre per- tem prazo, não tem validade, tudo ocorre inevita-
sonagens se dá pelo convívio, pelas atitudes, pelas velmente e sem predições.
Sumário
Ao mesmo tempo que essas mudanças aconte- Isso nos revela que tudo que fazemos poderá inter-
cem, tornamo-nos sujeitos instáveis e susceptíveis a ferir de alguma forma na vida do outro e assim su-
toda e qualquer alteração que antes era padrão para cessivamente. E a linguagem é a ferramenta disso.
determinada comunidade, entretanto, os indivíduos A linguagem é a maneira na qual lidamos com as
têm, igualmente, o poder de permutar a sua própria ocasiões que aparecem.
identidade, e por conseguinte, constitui-se, de tal
forma a tornar-se responsável pela inquietação da REFERÊNCIAS
identidade alheia.
A obra apresentada é um belo exemplo de ocor- BENVENISTE, Émilie. Estrutura da língua e estrutura da
sociedade. Problemas de linguística geral II. Campinas:
rências cotidianas que desencadeiam conflitos so-
Pontes, 1989. p. 93-104.
ciais. Babel, nos mostrou que desigualdades exis-
tem, que legitimação existe, e que tudo se edifica Filme. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/
pelo uso da linguagem, mesmo que o seu uso seja filme-20151/. Acesso em: 12 jun. 2016.
adequado ou inadequado ao momento. Os sujeitos
Filme na íntegra. Disponível em: https://www.netflix.com.
dessa trama enredam-se a situações conflituosas e a 534
Acesso em 14 mai. 2016.
falta de comunicação é o que desencadeia uma série
de problemas a eles. Richard e Susan vão para uma HALL, Stuart. Identidades Culturais na pós-modernida-
viagem – desnecessária - pois passam por um mo- de. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
mento de perda de um filho, devido um sentimento
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica.
de culpa o qual atribuem um ao outro. Os meninos, Linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábo-
que por uma questão de temperança instaurada, co- la. 2003.
metem um erro. Chieko que sofre a perda de sua
mãe, sente-se triste e em outros momentos dedica- Significado da palavra Babel. Disponível em: <http://
-se a chamar a atenção dos seus amigos através do michaelis.uol.com.br/busca? r=0&f=0&t=0&palavra=babel>.
Acesso em: 29 jun. 2016.
uso de drogas. Amélia é deportada por estar ilegal
em um país e por transportar as crianças sem a au-
torização dos pais.
Todas as ações aqui reveladas tiveram seus de-
vidos rumos pelo modo como a linguagem foi con-
duzida e interpretada, cada qual em seu território.
Sumário
Resumo: Assumindo a ideia existencialista sartre- Abstract: Assuming the Sartrean existentialist idea
ana de Má-Fé como uma atitude inautêntica capaz of Bad Faith as an inauthentic attitude able to limit
de limitar a liberdade do indivíduo, esta reflexão se the freedom of the individual, this discussion focu-
debruça sobre o tema da conduta enquanto parte ses on the theme of conduct as part of the fictional
da dinâmica ficcional de uma trama. A delimitação dynamics of a plot. The theme delimitation is given 535
temática se dá por um recorte sobre o fluxo narra- by considerations on the audiovisual fictional narra-
tivo ficcional audiovisual, aqui ilustrado e tencio- tive flow, illustrated here and tensioned by the film
nado pela obra Noite Vazia (KHOURI, 1964). Ten- Noite Vazia(Khouri, 1964). The research question is:
ta-se responder o seguinte questionamento: como how the Sartrean existentialist-concept of Bad faith
o conceito sartreano-existencialista de Má-fé evi- shows a particular type of conduct and political di-
dencia um determinado tipo de conduta e dimensão mension of freedom within the narrative and thus
política de liberdade dentro da narrativa e, assim, exposes a particular type of dynamic that moves the
expõe um tipo particular de dinâmica que move o plot? In order to achieve an answer it is: presented
enredo? Para tanto: apresentam-se as predicações the predications that make up the concept of Bad
que compõe o conceito de Má-fé; introduz-se seu faith; introduced its impact within the narrative
impacto dentro das engrenagens narrativas; e, por cogs; and finally reflects on the ethical failure that
fim, reflete-se sobre a falha ética que move o en- moves the plot and its link with an attitude of Bad
redo e seu vínculo com uma atitude de Má-fé no faith in existentialist context. In conclusion, it was
¹ Roteirista e doutorando do PPGCOM-UFRGS com pesquisa em história do Cinema Brasileiro, Ética e Estética. Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, Brasil. Contato: juliano.rods@gmail.com
Sumário
understood that the concept of Bad faith assists and Para tanto: apresentam-se as predicações que
accurately determines the understanding of a par- compõe o conceito de Má-fé; introduz-se seu im-
ticular type of conduct, ethical and political, which pacto dentro das engrenagens narrativas; e, por fim,
moves the narrative and create a general ambience, reflete-se sobre a falha ética que move o enredo e
and also articulates as a symptom cultural Brazilian seu vínculo com uma atitude de Má-fé no contex-
film production period of the 60’s. to existencialista. Justifica-se esta abordagem pois,
Keywords: Existentialism. Brazilian cinema. Bad dentro dos estudos do âmbito da comunicação, não
Faith. foi possível encontrar uma reflexão conceitual e
uma testagem teórica do modelo existencialista da
Má-fé enquanto ambiência narrativa balizada por
INTRODUÇÃO uma conduta, muito embora ele exista em outras
áreas do saber e em publicações internacionais de
Assumindo a ideia existencialista sartreana impacto sobre os atravessamentos de cinema e filo-
de Má-Fé como uma atitude inautêntica capaz de sofia. Por fim, concluiu-se que o conceito de Má-fé
limitar a liberdade do indivíduo, esta reflexão se auxilia e determina com precisão o entendimento 536
debruça sobre o tema da conduta enquanto parte de um tipo específico de conduta, ético-política, que
da dinâmica ficcional de uma trama. A delimitação movimenta a narrativa e cria sua ambiência geral,
temática se dá por um recorte sobre o fluxo narra- e, também, se articula como um sintoma cultural da
tivo ficcional audiovisual, aqui ilustrado e tencio- produção cinematográfica brasileira do período dos
nado pela obra Noite Vazia (KHOURI, 1964). Tendo anos 60.
como objetivo evidenciar uma ambiência narrativa
através do impacto político e estético do conceito EXISTENCIALISMO E MÁ-FÉ: CONTEXTOS
de Má-Fé na conduta dos personagens, tenta-se res- DE UM MODELO DE PENSAMENTO
ponder o seguinte questionamento: como o concei-
to sartreano-existencialista de Má-fé evidencia um A primeira dimensão do existencialismo ofere-
determinado tipo de conduta e dimensão política cida aqui, mais predicativa e particularizada do que
de liberdade dentro da narrativa e, assim, expõe um contextual, expõe uma relação do indivíduo com o
tipo particular de dinâmica que move o enredo? mundo através de uma ênfase sobre a responsabi-
lidade de si2. Ao optar pelo termo consciência, no
² De certa maneira, um eco também da ética da responsabilidade como proposta por Max Weber. Uma articulação indireta, mas
que cria uma rende de entendimentos sobre a ética enquanto uma conduta individual cujo significado é, ao mesmo tempo, de
ordem pessoal e também coletiva.
Sumário
sentido de estar ciente de algo, torna-se inegável filiação, escolho que o significado da resignação,
a dimensão fenomenológica com a qual a propos- afinal de tudo, é a solução mais adequada para os
indivíduos, e que o reino dos homens não é na
ta de Sartre opera. Trata-se da percepção sensorial Terra, não estou comprometendo só a mim mes-
filtrada pelas referências e afetas que se atrelam a mo, estou escolhendo me resignar em “benefí-
cognição de algo percebido. A própria percepção da cio” da humanidade inteira, assim, consequente-
condição existencial que se organiza como uma re- mente, minhas ações repercutem humanamente.
(SARTRE, 2007, p.24)
futação de outras responsabilizações que não a pró-
pria, assim parece para Sartre, é operacionalizada Frente a isso, podemos ver que todas as versões
através das condições que emancipam uma indivi- do existencialismo sublinharam o fato da nossa ca-
dualidade enquanto uma conduta ─ um conjunto de rência, nossa falta ontológica de não ter uma prede-
ações praticadas e não relegadas a Outrem. terminação de natureza, essência ou forma. Estamos
Oferece-se esta condição inicial como uma das inseridos no ciclo de responsabilidade com toda a
maneiras3 de se pavimentar o caminho teórico até a nossa humanidade e nossos tantos Outros. Essa
questão da má-fé, previamente compreendida como aguda oposição, homem x coisas, por-si e em-si, tão
central para a fundamentação de um cinema e nar- dramaticamente tocada por Sartre no seu conhecido 537
rativa de realismo existencial como instigada pelos dito que nós somos o que não somos, e não somos o
filmes do corpus. É preciso, frente a isto, sublinhar a que somos é uma expressão desse modelo filosófico.
própria instância volitiva da qual o existencialismo Assim parece, seres humanos existem (não somen-
se mune para encarar e encarnar sua materialidade, te como seres) em uma esfera ontológica diferente,
como o próprio Sartre aponta: como entidades de fim-aberto. E este fim4 aberto é
ao criarmos a pessoa que volitivamente cada um uma das principais marcas do existencialismo:
de nós queremos ser, não há uma ação dentro
de nossa conduta que não crie, ao mesmo tem- A pessoa não é apenas aquilo que ela concebe
po, uma imagem do indivíduo como pensamos de si para ser, mas aquilo que é volitivamente,
que devemos ser (...) Nossa responsabilidade é, e, já que concebe a si somente depois de existir,
assim, muito maior do que imaginamos, ela con- da mesma maneira que volitivamente se propõe
cerne toda humanidade. Se sou um trabalhador, a ser quando é jogado na existência, uma pessoa
e escolho me aliar a um sindicato cristão ao in- nada mais é do que aquilo que ela faz de si. Esse
vés de me tornar um comunista, e, se por esta é o primeiro princípio do existencialismo. (SAR-
TRE, 2007, p.22)
Um exemplo marcante das diversidades e dos sável de si é imperativa para o afastamento de uma
antagonismos perpassados pelo existencialismo condição de inautenticidade: uma inautenticidade
pode ser percebido na oposição complementar en- enganosa de si que delega as responsabilidades de
tre o cristianismo de Kierkegaard e o inabalável mesura e reflexão do comportamento para outras
ateísmo no centro do pensamento de Sartre. Entre- instâncias como a profissão (dimensão econômica)
tanto, nas suas diferentes instâncias, é possível en- ou religiosidade (dimensão metafísica5), como dois
carar uma unidade existencialista ao repetidamente exemplos diretos desta irresponsabilidade de si. Em
tocar um grupo focado de temas: a vida enquanto específico, calha sublinhar, a crítica à religiosidade
um absurdo desprovido de sentido ou propósito; re- como um logocentrismo instaurador de sentido e
jeição de narrativas que impõe sentido como filo- transcendental é severamente criticado como parte
sofia, ciência e religião; alienção e ansiedade como do comportamento carregado de má-fé:
um estranhamento de si e resposta ao absurdo da
quando falamos, nós existencialistas, de abando-
vida; vazio e morte como imbricados de diferentes no, uma das expressões favoritas de Heidegger,
maneiras no resultado da percepção do fracasso do estamos querendo dizer que Deus não existe, e
sentido da vida; e autenteicidade e responsabilidade que assumimos todas as consequências desta 538
como fabricação de um sentido próprio para a vida afirmação. Existencialistas fortemente se opõem
a um tipo de moralidade secular que busca eli-
e aceitação dos resultados das ações da própria exis- minar Deus da maneira menos dolorosa possível
tência enquanto uma não conformação com papéis (SARTRE, 2007, p.27-28)
pré-estabelecidos.
Dentro do existencialismo, muito em particular A organização da perspectiva existencialista de
nas arguições sustentadas por Sartre, a noção de má- si lida com uma parcela de abandono de uma com-
-fé ─ mauvaise foi, na sua originalidade francófona preensão da pluralidade da realidade humana cole-
─ opera de maneira central como identificadora de tiva em favor de um foco construído pelas idiossin-
uma forma inautêntica de uma conduta. Uma con- crasias do Nada e do vazio. Isto parece ocorrer pois
sideração que se coloca em oposição direta e aguda a ansiedade resultante dos não pertencimentos e dos
ao que a responsabilidade existencial sobre si pro- engajamentos com o mundo de dentro de si para fora
põe. Em Sartre, e também em Simone de Beauvoir e colocam em choque a autenticidade das escolhas (e,
Albert Camus, a autenticidade da condução respon- assim, da atuação dos papéis sugeridos por deter-
⁵ Norberto Bobbio (1994) alerta para a maneira como a crítica Kantiana abala a autoridade da metafísica especulativa. Assim
como também fizeram John Stuart Mill e David Hume ao privilegiarem o valor da liberdade nas suas discussões tanto de estéti-
ca quanto de responsabilidade moral.
Sumário
minadas escolhas). Desta maneira, pode-se perceber Nada que se manifesta no mundo através daquele
como ilusória a negação e desconsideração do con- que se questiona sobre si, e sobre as consequências
fronto com a negatividade do vazio ─ ele faz parte de adonar-se de seu próprio Nada, ou, nas palavras
da própria apreensão fenomenológica da realidade de Sartre em O ser e o nada (1993): o homem é o ser
ao redor contrastada pelos adornos do vazio inter- pelo qual o nada vem ao mundo.
no. Bornheim (1971) explica este ponto através da A noção de má-fé está tão imbricada quanto de-
seguinte reflexão ilustrativa: finida por esta lógica: incorre-se à má-fé quando as
consequências e deliberações da própria existência
se espero encontrar Pedro no café e ele está au-
sente, processa-se uma dupla nadificação; por-
dissimulam-se num comportamento que se pauta
que, de um lado, ‘Pedro não está aí’, e, de outro, não pela autenticidade e liberdade de um existir-se-
já que minha atenção está fixada nessa ausên- -de-si não imposto, mas por um delegar destas ques-
cia, o próprio café trona-se evanescente, ‘o café tões para outrem (pessoa, doutrina, lei, predicamen-
permanece fundo, persiste em oferecer-se como
totalidade indiferençada à minha atenção margi-
to imposto, etc...). Atitudes negativas em relação a
nal, desloca-se para trás e persegue sua nadifica- si mesmo, um comportamento privilegiado de au-
ção. (BORNHEIM, 1971, p.41-42) tonegação, negação de si enquanto existente e algo 539
aferível enquanto um conjunto de ações fenomeno-
Aqui surge o questionamento de onde vem o logicamente descritas, isoladas ontologicamente e
Nada, enquanto algo além do fenomenologicamen- estabelecidas pelo fundamento negativo alienante
te percebido na “minha” conduta no mundo. Se sua de não se engajar consigo mesmo.
caracterização ontológica é organizada e predicada
através da experiênciação do negativo e da negação PARTICULARIDADES DA MÁ-FÉ COMO
enquanto um julgamento, então este Nada está su- ENGRENAGEM NARRATIVA
blinhando o vazio pré-existente do Ser. Ambos, a ex-
periência do negativo em-si e da negação como uma A lógica das possibilidades narrativas faz parte
faculdade de juízo, instauram e favorecem o funda- da poética fílmica como um todo, ela dá conta das téc-
mento essencial do Nada enquanto como parte de nicas e engrenagens narrativas tanto quanto, em seu
dentro do Ser e enquanto valorização da existência estudo, analisa as leis que regem seu funcionamento e
que precede qualquer imposição de uma determi- governo sua matéria e fluxo. A narrativa fílmica, não
nada essência modeladora. Bornheim (1971) pontua diferente da narrativa teatral e literária, é observada
isto afirmando que, enquanto uma conclusão que sob este mesmo diapasão de tonalidade universal e,
salta aos olhos perante o vazio do Nada, é o próprio ao isolar certas questões e determinar certos predica-
Sumário
dos, oferece um entendimento de um estilo particular tões é isolando as funções auxiliares da narrativa,
de se contar uma determinada história. como os esquemas de composição ordenam as ações
Nossa tradição narrativa ocidental é bastante e tipos de condutas. Estas questões nos ajudam a
rica e vasta no que toca sua teoria. Ela é organizada compreender as sequências elementares, cujas fun-
por inúmeros tipos de ponto de vista e por nomes ções movem o fluxo narrativo. Em termos aristote-
consolidados como os de: Propp, Greimas, Todorov, licamente herdados, toda narrativa consiste de um
Bremond, Barthes e Genette. É possível contender conjunto discursivo que organiza uma sequência de
que Aristóteles está para a tragédia como Vladi- ações (eventos e temáticas) dentro de uma unidade
mir Propp está para a narrativa fílmica. Propp, ao de um enredo por uma lógica de necessidade e ine-
revelar suas 31 funções narrativas-morfológicas do vitabilidade. A demanda por uma certa unidade vem
conto popular, abriu caminho para que esta visão, para potencializar o que se encontra dentro da esfe-
superestrutural e estruturante da narrativa por ex- ra diegética, limpar ela de desinteresses mundanos e
celência, fosse cooptada por Hollywood, e, como atender ao interesse humano de coesão.
pelo efeito bola-de-neve, chegasse aos demais ci- Parte desta semântica estrutural da narrativa
nemas tributários da produção americana ao longo está relacionada a uma dimensão de conduta como 540
da primeira metade de século XX, não diferente de operadora por trás da ação. Neste estudo, é este o
outras questões influentes do modernismo. Isto se foco de reflexão. Se foi visto que as narrativas são:
afere particularmente como verdadeiro, pois um in- a) um conjunto organizado de ações; b) com uma
contável número de narrativas partilha das seme- determinada unidade; c) ao redor de um conflito
lhanças estruturais, de engrenagens narrativas, com desenlaçado pelas consequências de uma ou mais
estes modelos estabelecidos por Propp. Seu esforço ações; d) que demandam reparação, uma instância
é valioso ao nos ajudar a responder a dúvida sobre o punitiva ou retorno ao equilíbrio neutro de onde
que torna reconhecível ou similar ao observarmos as partiram; e) para assim chegar em seu desfecho;
engrenagens por trás do que contado em cada conto. então é necessário que se faça uma reflexão sobre
Como há grandes variações de tipologia de tema e a própria dimensão da conduta como motivadora
personagem, uma maneira de chegar a estas ques- e engrenagem por trás de uma determinada ação6.
⁶ O caso clássico mais lúdico, ainda em nossa tradição ocidental, talvez seja o que pode ser compreendido sobre as ações e
conduta do personagem Agamenon tanto na Ilíada, de Homero, quanto na Orestéia de Ésquilo. Quando Helena foge junto com
Paris para Tróia, é a Menelaus quem caberia comandar a armada de Micenas (Grécia) e ir resgatá-la, contudo é Agamenon,
irmão de Menelaus, que num ato de arrogância ultrajante, hýbris, toma para si (ação) de ir buscar Helena. Não sendo sua causa
direta, os ventos não sopram, a armada grega não pode ir até Tróia e os Deuses demandam o sacrifício de uma virgem. Agame-
non então leva sua filha Ifigênia, sob a premissa de casar-se com o mais nobre dos guerreiros, Aquiles, para o altar e a sacrifica
para os Deuses. Assim, os ventos sopram, mas os Deuses não fazem vistas grossas para a arrogância e insensatez de Agamenon.
Sumário
A ação normalmente se pauta pelo ponto de mas estabelece as condições ontológicas para que se
vista de uma personagem desejante; desejante de diferenciado aquilo que caracteriza unicamente um
um valor ou competência que vai ser traduzido em conjunto de ações de uma conduta de má-fé, algo
uma determinada performance7. Muitas narrativas inautêntico de si, e a conduta e ações autênticas que
vão construir a lógica de suas motivações por trás visam a existência antes de se aventurar a represen-
das demandas de conflito internas dos próprios per- tar alguma determinada essência.
sonagens, e o próprio embate resultará de suas posi- Bornheim (1971) compara o comportamento de
ções no mundo e suas condutas. Erde (1995) comen- má-fé ao fascínio pela marionete em paralelo à im-
ta que o valor narrativo dos aspectos morais de uma posição ente-social de nos fazer ser o que somos se-
ação estão essencialmente imbricados nas caracte- gundo as imposições para que sejamos algo. Desta
rísticas dos relacionamentos estabelecidos durante maneira, os indivíduos nunca coincidem com o que
a história, o quão bem os personagens conhecem representam, mistificam-se em uma função tomada
a si mesmos e, assim, se toleram, o quão empáti- pra si e se isolam em uma espécie de reconhecimen-
cos são e como lidam com as consequências de suas to enquanto objeto de uma conduta, e não como
ações em respeito a seus próprios valores. Sob esta sujeito dela: “o paradoxal, contudo, está em que o 541
lógica, ficam evidentes os julgamentos internos à homem busca ser algo sem poder de fato sê-lo8”
narrativa e também os possíveis externos de quem (BORNHEIM, 1971, p.50). O entendimento que Bor-
a consome ao criar um juízo de valor (estético) às nheim oferece sobre a noção de má-fé estabelecida
ações encenadas na narrativa. e provocada por Sartre ressoa enquanto evidência
Sendo assim, como é tentado neste estudo, de uma das particularidades ônticas deste tipo de
busca-se compreender o lugar da má-fé dentro da condução de si, visto que, na literatura, na filosofia
conduta determinante de um conjunto de ações re- e na sociedade, é possível claramente perceber um
presentadas em uma trama fílmica. Sartre ajuda a humor e uma conduta propagados por indivíduos
entender uma leitura que vai além da própria es- que gestam inúmeros esforços para serem o que são
fera da conduta sobre nossas ações, em nenhum “segundo o modo de não ser o que se é” (ibidem)
momento ele a coloca sob a perspectiva metafísica, e, desta forma, representam uma realidade humana
que busca se organizar como ela não é, mas acredita vre pra escolher outra maneira. Por outro, constrói a
ser. Uma enganação individual, com consequências desfaçatez de uma existência inautêntica e escravi-
coletivas, que transparece “uma ausência perpetua- zadora. Sendo assim, se podemos compreender nes-
mente ébria que não consegue preencher” (ibidem). tes termos a má-fé: como uma crença enganadora;
Algo constitutivo da própria existência de si, em como uma afronta à inalienável consciência e res-
particular, quando a própria sinceridade existente é ponsabilidade de si; como representação inautêntica
pautada por esta condição. de si; como uma volitiva delimitação da liberdade de
O verdadeiro perigo desta má-fé, alertado por existir privilegiando uma essência “pré-determina-
Sartre, transpassa a condição de conduta e vira uma dora” ao invés de uma existência livre, busca-se na
crença, “aquela translucidez que está instalada na próxima subseção observar como a materialidade
origem de todo saber” (BORNHEIM, 1971, p.52). fílmica pode operar como fonte documental, repre-
Sendo assim, se há uma perversão inata na sinceri- sentativa e ilustrativa da filosofia, e particularmente
dade de si, e, logo, no ser-em-si que delimita o existir da filosofia do existencialismo.
quando se tem fé na conduta enganadora, então, o Assim sendo, e a fim de melhor explorar a no-
exame da consciência, do estar ciente, e das conse- ção de má-fé, se assumirmos como verdadeira a tese 542
quências enquanto ação desta consciência, podem de Sartre, que propõe que a existência precede a es-
operar como mapa avaliativo da mecânica desta sência, trazida aqui através de um trecho de o exis-
má-fé ─ como uma busca por vestígios e rastros de tencialismo é um humanismo (2007),
uma interioridade exterior da consciência perverti-
o existencialismo ateístico, que eu represento, é
da da liberdade de existir. mais consistente. Propõe que se Deus não existe,
Em adendo e suma, segundo Sartre, o maior au- então existe pelo menos um ser cuja existência
to-engano é a crença de que não temos opções, de precede a essência, um ser cuja própria existên-
que cumprimos um determinado papel e que este cia precede sua essência, um ser que existe an-
tes que possa ser definido por nenhum conceito.
papel limita as nossas possibilidades de conduta ─ Este ser acaba sendo o Homem, ou, como Heide-
pervertendo assim, duplamente, nossa ação de si e gger propõe, a realidade humana. E o que quere-
nossa representação de si. Por um lado, isto nos traz mos dizer aqui por “existência precede a essên-
uma segurança, nos exime de agir de outras manei- cia”? Queremos dizer que uma pessoa primeiro
existe: é materializada no mundo, descobre-se
ras não comportadas dentro do papel que exerce- a si e somente depois se define ou é definida.
mos, e nos garante uma falácia argumentativa de (SARTRE, 2007, p.22)
que as coisas são assim, para mim, logo, eu não sou li-
Sumário
calcado nas próprias incompetências em lidar com NEHRING, Marta. Noite Vazia em uma certa São Paulo. In:
o exercício autêntico e legítimo de suas autentici- FABRIS, Mariarosaria et al (Orgs.). Estudos de cinema e
audiovisual. São Paulo, SP: Socine, 2010, v. 10.
dades; suas existências que precedem qualquer es-
sência que busquem empreender. Nelson, Luisinho, RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro.
Mara e Regina, encontram-se constantemente entre São Paulo, SP: Círculo do livro S.A., 1987.
a angústia e a torpe islusão de felicidade; entre o
Nada e uma existência frágil e sem sentido; sua bus- SARTRE, Jean-Paul. Being and nothingness. New York,
NY, EUA: Washington Square Press, 1993.
ca por autenticidade flerta com um certo nihilismo
debochado, e gira entre altos e baixos das percep- SARTRE, Jean-Paul. Existentialism is a humanism. Lon-
ções distorcidas de cada um por si e pelo outro. Em dres, RU: Yale University Press, 2007.
termos estritamente sartreanos, nenhum deles exis-
te, são mosaicos de essências partidas e partilhadas
que reverberam um no outro e que apontam para
um Nada bastante convidativo.
546
REFERÊNCIAS
CEMITÉRIO DAS IRMANDADES: UMA elementos que compõe cada espaço tumular, é rela-
VISITA À MEMÓRIA E AO PATRIMÔNIO cionada à pesquisa com os conceitos de memória, pa-
trimônio cultural, identidade e arte tumular.
CULTURAL JAGUARENSE (RS)
Palavra-chave: Arte Tumular. Patrimônio Cultu-
ral. Turismo de Necrópole.
CEMETERY OF THE BROTHERHOODS: A VISIT TO
MEMORY AND CULTURAL HERITAGE JAGUARENSE (RS)
Abstract: This study relates the importance of the
Larissa Bitar Duarte (PPGDR-FACCAT)1 Cemetery of the Brotherhoods of Jaguarão with the
Daniel Luciano Gevehr (PPGDR-FACCAT)2 history of the city, within a context of interpretation
of symbolic elements that make up the explicit fu-
Resumo: O presente estudo relaciona a importân- nerary art in tombs and mausoleums, which lead us
cia do Cemitério das Irmandades de Jaguarão com to a temporality in which architecture reveals rich
a história da cidade, dentro de um contexto de in- cultural heritage Jaguarense. These elements have
terpretação de elementos simbólicos que compõe a the ability to highlight subsidies for understanding
arte tumular explícita em túmulos e mausoléus, que the company’s identity in the preservation of their 547
nos levam a uma temporalidade em que a arquitetura cultural heritage, with this idea POULOT (2008)
revela a riqueza do patrimônio cultural Jaguarense. defines as seen places that hold memory, relating
Esses elementos possuem a capacidade de destacar thus the construction with the material presence of
subsídios para compreensão da identidade da socie- the past. Within this geographical area, stands the
dade na conservação de seu patrimônio cultural, co- landscape that is the way to understanding and un-
messa ideia POULOT (2008) os define como: lugares derstanding the past, present and future (Delphim,
vistos que guardama memória, relacionando assim, a 2005) of this open air museum. To own and easy
construção coma presença material do passado. Den- to read features the custom image through the ele-
tro desse espaço geográfico, se destaca a paisagem ments that make up each tomb space, is related to
que é a forma para o entendimento e a compreensão research with the concepts of memory, cultural he-
do passado, presente e futuro (DELPHIM, 2005) des- ritage, identity and funerary art.
te museu a céu aberto. Comcaracterísticas próprias e Keywords: Funerary art. Cultural heritage. Tou-
de fácil leitura, a imagem personalizada através dos rism Necropolis.
¹ Graduada em Turismo pela UCPEL, MBA em Gestão Estratégica de Negócios e mestranda pelo PPG em Desenvolvimento
Regional – FACCAT. Bolsista CAPES. Email: larissa.bitar@gmail.com
² Doutor em História e professor do PPG em Desenvolvimento Regional – FACCAT. Email: danielgevehr@hotmail.com.
Sumário
INTRODUÇÃO
Sendo Jaguarão uma cidade brasileira que faz fronteira com o Uruguai (cidade de Rio Branco), e desde
sua formação foi ponto de trânsito de pessoas de diversos países e de cultural distintas, vê se em sua his-
tória, arquitetura e cultura toda uma riqueza peculiar aos lugares de fronteira. A Identidade de um lugar,
por sua vez, baseiase na memória social e se constitui como um fenômeno da essência humana, que busca
preservar seu patrimônio para si e para futuras gerações.
Em 1855 na cidade de Jaguarão, segundo SOARES (2011) iniciase a história da fundação do Cemitério
das Irmandades, quando na época um grande número de pessoas vitimadas pelo Vírus cholera morbus veio
a falecer. Neste mesmo ano no dia 21 de novembro, foi oficialmente declarada a epidemia, após a morte de
86 pessoas devido ao vírus. De acordo com as notícias da época, fugas em massa de indivíduos desesperados
foram relatadas, estes sempre em busca de outros lugares que não tivessem sido atingidos ainda pela do-
ença. Sendo assim parte da população mudouse de cidade e outra grande parte veio a falecer em função da
epidemia. Com o passar do tempo foi constatado surtos em outras cidades e estados, sendo assim a doença
já havia se alastrado.
548
Não obstante à chegada do indivíduo que fazia parte da Comissão de Higiene Pública da Província, cha-
mado Facultativo, trazendo consigo uma porção de medidas sanitárias, profiláticas e de preocupação, que
deveriam ser aplicadas imediatamente, uma grande parte da população veio a falecer. Essas pessoas foram
sepultadas no cemitério que existia na cidade, localizado nas imediações das atuais ruas Barbosa Neto e Ma-
rechal Deodoro (Figura 1). Esse espaço fúnebre, hoje em dia, faz parte do centro da cidade com edificações
sobre ele.
Brasil a atenção para a preservação de bens de valor significa lugar onde se dorme. De acordo com o cris-
nacional tem o sentido de consolidar a identidade tianismo o termo tomou o sentido de “campo de des-
do país, mas com o mesmo sentido dos valores da canso após a morte”, referindose a necrópole, carnei-
revolução francesa. ro, sepulcrário, campo santo, cidade dos pés juntos e
Na década de 20 o Brasil demonstra mais preo- última morada (OTOBELLI; VAILATTI, 2007).
cupação com a preservação do patrimônio histórico Sabese que a morte é tão antiga quanto o ser
nacional, devido à deterioração de bens históricos, humano, assim como o costume de zelar pelos mor-
descaso com as cidades históricas, onde os intelec- tos, que surgiu acerca de 100 mil anos antes da nossa
tuais e pessoas ligadas às artes denunciaram a dila- era. Ainda na préhistória realizavamse rituais fúne-
pidação do que seria um “tesouro nacional”, como já bres, registrados arqueológicas em escritas e dese-
citado por FUNARI (2001) onde os bens materiais de nhos, onde o havia um cuidado com as sepulturas e
valores históricos foram destruídos com o intuito de corpo o morto. Então no período cultural, também
uma “modernização” do país. chamado de Paleolítico Superior, quando se desen-
Atualmente a constituição atenta para proteção volveu a autoconsciência, simbolismo e as conven-
dos bens culturais do Brasil. Um exemplo disso são ções de linguagem, onde a morte, até então vista 552
as políticas públicas, que protegem o patrimônio de como um mistério passou a ser reconhecida como
um modo geral. Dessa maneira, podemos dizer que técnicas de culto à magia e à religião:” Dai o trata-
memória são lembranças, reminiscências e vestí- mento dado aos mortos, que eram cuidadosamen-
gios, que servem como registros, permitindo assim te sepultados mesmo pelo homem neandertalense,
a construção de uma identidade individual e coleti- e que pelos povos do paleolítico Superior, muitas
va e também estabelecendo relação entre o passado vezes eram recobertos com ocre vermelho, presumi-
e o presente permitindo enxergar o futuro. Por ser velmente à guisa de material vivificante e providos
um elemento vivo, a memória pode sofrer modifica- de utensílios e alimentação.” (BOWLE, 1964)
ções e alterações ao longo do tempo. A partir do grande acervo de arte cemiterial
que possui o Cemitério das Irmandades de Jagua-
ARTE CEMITERIAL E TURISMO DE rão (RS) é possível fazer uma análise do potencial a
NECRÓPOLES ser explorado no contexto de desenvolvimento da
região através do Turismo de Necrópoles, cujo acer-
A palavra cemitério – pelo grego koimeterion – vo histórico oferece uma opção de turismo cultural
significa dormitório e pelo latim coemeterium, que que aborda a identidade, a memória e o patrimônio
Sumário
de um povo. Ainda que sofra limitações – e resis- um produto turístico com qualidade promovendo o
tências locais quanto às suas potencialidades – é turismo sustentável, haja vista que o Turismo em
importante resgatar os valores que esse patrimônio Necrópole tem se mostrado possível e bastante va-
cultural edificado possui, sendo guardião de inúme- lorizado no exterior.
ras temporalidades e transformações da sociedade Carrasco e Nappi (2009) citam em seu livro a
jaguarense formatando um produto que resgata e sombra do terror dos cemitérios que é reforçada pelo
traz grandes informações de cunho histórico e pai- cinema, sobretudo no gênero de filmes de terror. Com
sagístico da cidade e do estado do Rio Grande do esse pensamento sobre cemitério, acreditase que haja
Sul, que neste local está explicitamente marcado em um incentivo a imaginação popular a criar ilusões e
sua arte tumular (SOARES, 2011). estórias que acabam se transformando em lenda so-
Nesse contexto – que procura articular e pro- bre esses locais, dificultando a visita aos cemitérios.
mover a valorização do Patrimônio Cultural com a Devido à imaginação do ser humano, o traba-
atividade turística – o turismo é um segmento que lho justificase pela necessidade latente de investi-
vem crescendo em todo o mundo. Através da con- gação científicoacadêmica para que haja um enten-
servação da paisagem arquitetônica, a cidade de Ja- dimento do ambiente acerca da identidade que se 553
guarão é possuidora de um grande acervo cultural. confere ao patrimônio com sua memória empírica
Seu conjunto de edificações com mais de 800 pré- resguardada em um espaço que é, muitas vezes, re-
dios catalogados e tombados pelo IPHAN (Instituto presentado como solitário silencioso e de respeito
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) é hoje – como é a necrópole.
um dos principais fatores que movimentam a eco- Rezende (2007) relata os diferentes tipos de ce-
nomia local e regional, onde diariamente a cidade mitérios existentes no mundo, onde o cemitério de
recebe turistas encantados com as alegorias e a ri- Jaguarão (RS) classificase como tradicional que tem
queza dos detalhes das edificações, que fazem parte como característica o enterro de pessoas tradicio-
do conjunto arquitetônico cultural, pois o turismo nais e grandes burgueses. Sua construção datada do
cultural se referencia na arte em suas diversas for- século 19, também chamado de cemitério histórico,
mas de se apresentar. por fazer parte da história de Jaguarão. De acordo
Dentro deste contexto existe a possibilidade de com Oliveira et al. (2015) “a arte simbólica tumular
ampliação do leque de produtos turísticos do muni- faz parte dos rituais fúnebres desde a antiguidade.
cípio com o Turismo Cultural, o Cemitério das Ir- Os adornos colocados nos túmulos fazem parte da
mandades apresenta um acervo, podendo tornarse cultura humana desde os primórdios [...]” assim
Sumário
afirmando o que Rezende (2007) cita em seu livro, As pessoas que praticam a atividade do turis-
que referese ao texto dizendo que a arte funerária é mo em cemitérios não são um grande público, pois
uma forma de representação, ligada intimamente a existe uma limitação entre o estranhamento e as mi-
determinado contexto histórico, ideológico, social e tificações que os rodeiam, mas devido as diferentes
econômico, relacionando a vida e a morte. Oliveira culturas do mundo em alguns lugares são conside-
et al. (2015) também ressalta que através da simbo- radas atrativos turísticos e fazem parte dos rotei-
logia conseguimos expressar os sentimentos em re- ros turísticos. Brandão (2010) define necroturismo
lação a morte. como visita a lugares assombrados (com direito a
Justo, Nassif e Sousa (2014) abordam os lugares aparelhos especiais para constatar qualquer tipo de
de memória ditos cemitérios como um produto tu- atividade paranormal) e turismo cemiterial como a
rístico sob uma perspectiva de desenvolvimento e visita a cemitérios, porém visando o seu teor cul-
de repassar o conhecimento que eles guardam nas tural, histórico e artístico, podendo incluir aspec-
áreas da história, arquitetura, etnografia, arte e re- tos lendários. O turismo nos campos santos tornase
ligiosidade. A relação que os cemitérios têm com os elemento de desenvolvimento da sociedade como
bens tangíveis compreendem as construções tumu- fonte de trabalho e renda, dinamizando a economia 554
lares, que se encontram nas capelas, jazigos, túmu- local (CABANAS; RICCI, 2008) promovendo o setor
los, que apontam uma hierarquia social e, também de hotelaria, gastronomia, negócios, eventos reli-
a exemplo de bens intangíveis as histórias contidas giosos e receptivos.
naqueles túmulos, preservadas e transmitidas às No Brasil o turismo cemiterial é um segmento
pessoas que visitam. recente, o movimento da modalidade turística ini-
O turismo tendo como base o espaço/lugar des- ciou na Europa como estudos e apreciação do pa-
cobriu o ambiente cemiterial como um grande obje- trimônio histórico e arquitetônico na busca de per-
to de estudo para a preservação de um patrimônio sonalidades mortas. Na Europa os cemitérios são
histórico, da memória cultural, familiar e coletiva e pontos turísticos consolidados, os tours são moni-
da identidade das sociedades. O autor faz lembrar torados por historiadores e pessoas que conhecem a
no artigo que carregado de signos, o ambiente ce- história e a arquitetura do local.
miterial sempre remeteu ao visitante uma ideia de Por serem os mais visitados do mundo, pode-
obscuridade, de perda, lamentações e “fantasmas”, mos citar três necrópoles mais conhecidas da cida-
sendo isso inclusive explorado pelas produções ci- de de Paris na França, o cemitério de PèreLachaise,
nematográficas. criado em 1805, o cemitério Montparnasse, inaugu-
Sumário
rado em 1824, e o cemitério de Montmarte de 1825. dessa concepção é possível explorar o cemitério das
Eles estão marcados como roteiro turístico a cidade, Irmandades, que representa o início da sociedade
lado a lado outros destinos conhecidos pelo mun- Jaguarense em um cenário com diversos elementos
do, como a Torre Eiffel e o Museu do Louvre. Como fúnebres, famílias importantes explorando a histó-
exemplo PèreLachaise abriga 70 mil túmulos, recebe ria e a arquitetura.
2 milhões de visitantes anualmente sendo conduzi- Para Bastianello (2010), patrimônio significa
do por guias de turismo bilíngues, que os levam aos uma herança ou algo herdado. Ela diz que nessa
jazigos mais significativos do espaço fúnebre. Já o perspectiva o túmulo também é uma propriedade
Monumental de Milão, localizado na Itália, datado herdada de nossos antepassados, com isso, somos
de 1866 é uma marca da cidade, pois ainda recebe nós que devemos conservá-lo, preservá-lo e explo-
turistas para visitas guiadas desde 1998, onde pas- rá-lo, sendo esse patrimônio um museu a céu aber-
sam por lá cerca de 80 mil visitantes no ano. to valorizando sua riqueza material que nos liga ao
Em 2001 a Association of Significant Cemeteries passado compreendendo o presente.
in Europe (ASCE), com a representação de 21 países, Quando este museu a céu aberto tem a função
foi criada com o objetivo de estabelecer uma rede de recreativa das necrópoles de explorar turisticamen- 555
turismo em necrópoles europeias (QUEIROZ, 2008). te promovendo o entendimento da memoria e da
Sendo os cemitérios europeus referência para o tu- identidade, a população passa a uma constante va-
rismo cemiterial, aos poucos estão aparecendo os lorização da cultura e da história enfatizando como
cemitérios brasileiros, dentro dos roteiros turísticos sítios de lembranças, artísticos e turísticos sofrendo
da cidade, como valorização do seu patrimônio. Rio um processo de preservação do campo santo.
de Janeiro e São Paulo possuem programas específi-
cos com visitas guiadas aos cemitérios atualmente. MEMÓRIA E IDENTIDADE
Em destaque personalidade ali sepultadas, obras de
arte junto com a tranquilidade do local. Quando se fala em memória a autora faz uma
A efetivação deste trabalho ofertará a oportuni- referência ao sentido de identidade, pois a memória
dade aos jaguarenses de ter mais conhecimento so- é dinâmica. A Identidade de um lugar resgata sua
bre a origem e importância deste pedaço de chão e memória cultural e se constitui de um fenômeno da
de seu acervo de arte funerária que identifica diver- essência humana em preservar seu patrimônio para
sas épocas e fatos ocorridos na comunidade. Dentro si e para futuras gerações.
Sumário
Ainda sobre identidade podemos dizer que é social que constituem o seu patrimônio cultural. Esse
aquilo que diferencia, identificando um homem patrimônio que pode ser construído por matéria e/ou
de um grupo social, político, religioso, étnico etc., emoções vem sendo preservado pelo homem através
tratandose de ações do homem para que seja possí- dos tempos. É motivado por razões emocionais, co-
vel a vivência em sociedade, ao longo dos anos e no merciais, políticas e jurídicas, haja vista a necessida-
diadia. Sabemos ainda que a identidade é uma cate- de dos homens de estabelecer uma continuidade de
goria extremamente diferenciada dentro das ciên- sua existência para as futuras gerações.
cias humanas e sociais, podendo ser abordada tanto A memória de um povo é essencial para a pre-
em relação à questão e gênero, definida a partir da servação de suas características. Essas características
religião, construída com contribuição da atividade fornecem elementos para o fortalecimento de elos
profissional, estando intimamente ligada ao grupo que constroem a identidade e o patrimônio desse
étnico ao qual pertencemos (JUNIOR, 2012). povo. O cuidado com a preservação dos patrimônios
Para Rangel (2002), a memória não pode ser materiais teve início no século XVIII pelos franceses
entendida como apenas um ato de busca de infor- a partir da Revolução Francesa, e tinha por objetivo
mações do passado, tendo em vista a reconstituição afirmar sua supremacia em relação a outros povos. 556
deste passado; ela deve ser entendida como um pro- O Brasil tendo como modelo o país europeu iniciou
cesso dinâmico da própria rememorização, ligado à esse processo de preservação de seu patrimônio ma-
questão da identidade. Sendo assim, rememorizada, terial e imaterial em meados do século XIX.
não cai no esquecimento e vai sendo, constante- Através de vários estudos, pesquisas, reflexões,
mente, grafada, narrada, tornandose fonte históri- análises e interesses comerciais, foi possível a identi-
ca, que é um dos meios fundamentais de abordar os ficação do entrelaçamento da memória, identidade e
problemas do tempo e da história. patrimônio. O patrimônio cultural juntamente com
a identidade e a memória oferecem lastro e perspec-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tivas para o desenvolvimento do turismo cultural,
pois a busca pelo conhecimento, nossas origens, in-
Embora a globalização nos proporcionado e ofer- formações sobre nossa identidade, apresentação de
tado um grande acesso ao conhecimento do mundo provas originais de matéria ou fatos acontecidos, fa-
em geral, podemos observar que as identidades cul- zem parte da curiosidade humana, e proporcionam
turais de cada povo ou sociedade continuam sendo cada vez mais a valorização desse trabalho.
resguardadas através da memória de cada segmento
Sumário
Os cemitérios, como ponto turístico, possuem BOWLE, J. Pequena Enciclopédia da História do Mun-
um grande acervo de história, pois ali se encontram do. Editora Cultrix. vol 01. São Paulo. 1964.
registradas características de cultura, posição social, CABANAS, A.; RICCI, F. Turismo de necrópole: Novos
posição econômica e religiosa. A arquitetura dos Caminho Culturais a serem explorados no Vale do Paraiba
túmulos, a busca de informações sobre pessoas se- Paulista. Revista Eletrônica Turismo Visão e Ação. Ele-
pultadas (importantes ou não), as emoções causadas trônica, v. 10, nº 03. p. 378 – 398, set/dez. 2008.
pelo medo através de histórias de horror, as supers-
CARRASCO, G. L. A.; NAPPI, S. C. B. Cemitérios como
tições, figuras místicas e também o imaginário atra- fonte de pesquisa de educação patrimonial e de turismo.
em a visitação de inúmeras pessoas aos cemitérios. Revista Eletrônica do Programa de PósGraduação em
Haja vista o aspecto principal dos cemitérios e Museologia e Patrimônio. Rio de Janeiro. v. 2 n. 2 jul/dez
seja relacionado com a morte, é visível, e curiosa à de 2009.
intenção de manter viva a nossa memória, conse-
DELPHIM, C. F. M. Intervenção em Jardins Históricos:
quentemente formando a nossa identidade e nosso manual. Brasília: IPHAN/Monumenta, 2005. 152p.
patrimônio cultural em qualquer lugar do mundo.
Com base em todos esses aspectos e caracte- FERREIRA, M.L.M. Patrimônio: Discutindo alguns conceitos.
557
rísticas agregados a valores matérias e emocional, Diálogos Revista do Departamento de História e do
Programa de PósGraduação em História, v. 10, n. 3, p.
percebese a possibilidade de desenvolver um produ- 7988. Maringá. 2006.
to chamado roteiro turístico que explore os aspec-
tos culturais e sociais que envolvem a diversidade e FUNARI, P.P.A. Os desafios da destruição e conservação do
a riqueza das características da população. Patrimônio Cultural no Brasil. Trabalhos de Antropologia
e Etnologia, n. 41, ½, p.2332, 2001.
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pdf/passear_no_cemiterio.pdf > Acesso em: 14 abr. 2016.
Sumário
O CONSUMO DE MODA E O Abstract: This paper has the aim to understand the
ENVELHECIMENTO relationship that mature women have with fashion,
a field in which this target audience is constantly
THE FASHION CONSUMPTION AND AGEING neglected. To do this, a thorough analysis of old age
is made, based on old people’s views on the subject
Laura Schemes Prodanov1 as well as from the point of view of the market that
Carlos Reinke2 caters for them. In relation to fashion, we identify
the process of choosing a garment, in Brazil and also
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo compre- internationally, observing the contrasts between the
ender como se dá a relação da mulher com mais de different audiences and brands. The methodology
65 anos com a moda, campo no qual este público applied is exploratory and bibliographic research,
é constantemente negligenciado. Para tanto, faz-se with the objective to understand certain consumer
um levantamento acerca da velhice sob o ponto de groups of female gender and of an advanced age to.
vista dos indivíduos em idade avançada, bem como Keywords: Fashion. Maturity. Consumption.
aos olhos do consumo. Na moda, identifica-se como Woman. 559
se dá a relação entre as escolhas de vestuário no
Brasil e também em âmbito internacional, obser-
vando as diferenças entre o público consumidor e INTRODUÇÃO
entre as marcas. A metodologia utilizada é a pes-
quisa exploratória e a bibliográfica, objetivando-se A velhice no decorrer da evolução de nossa so-
compreender certos grupos de consumidores do ciedade passou por desdobramentos que possibilita-
sexo feminino em idade avançada. ram que esta condição humana adquirisse múltiplas
Palavras-chave: Moda. Maturidade. Consumo. dimensões, deixando de ser algo exclusivamente
Mulher. associado a aspectos biológicos, mas também se re-
lacionando a questões sociais e culturais, uma vez
que o avanço da idade cronológica dos indivíduos,
¹ Mestranda em Indústria Criativa, bacharel em Moda pela Universidade Feevale. E-mail: laura.prodanov@yahoo.com.br.
² Doutorando e Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, especialista em Modelagem de
Vestuário, professor do Centro Universitário Metodista IPA (Porto Alegre/RS), tutor de EAD da Universidade Feevale (Novo
Hamburgo/RS). E-mail: carlosar@feevale.br.
Sumário
percebida por aspectos como a estética e mobilida- nos esforço. No entanto, esta visão tende a mudar,
de, irá modificar diretamente as relações com ou- pois segundo estatísticas do Instituto Brasileiro de
tros indivíduos dentro de determinados contextos Geografia e Estatística – IBGE – o número de brasi-
sociais, como é o caso do consumo, hábito enraiza- leiros acima de 65 anos deve quadruplicar até 2060.
do em nossa sociedade contemporânea, que deixa Setores como saúde e moradia já se adaptaram as
de se relacionar puramente a aspectos econômicos necessidades deste nicho emergente.
e se constitui como elemento capaz de produzir sig- A partir destas constatações procurou-se inves-
nificados e representações simbólicas. tigar de que forma o mercado brasileiro de moda se
No entanto, ao relacionar a velhice com os as- relaciona com a mulher com idade avançada, uma
pectos do consumo observa-se que esta parcela da vez que este ainda não se adaptou a essa crescen-
população era, até pouco tempo, marginalizada por te demanda, oferecendo poucas opções de produ-
ser percebida como socialmente incapaz de influen- tos de vestuário dentro das tendências de moda. A
ciar a atitude dos outros indivíduos, ou seja, não se- metodologia utilizada nesta pesquisa é de natureza
riam lançadores de tendência; e por não representa- aplicada, quanto aos seus objetivos é exploratória e
rem um poder de compra considerável a ponto de se quanto aos procedimentos é uma pesquisa biblio- 560
investir neste público. gráfica, como resultado disto serão debatidos temas
A moda acaba acompanhando esse raciocínio, como a percepção da velhice na sociedade contem-
quando se compara produtos desenvolvidos para porânea, o consumo como ato inerente à socieda-
mulheres velhas 3 e para jovens, observa-se que para de e como forma de interação social e a relação da
o primeiro grupo as peças apresentam um aspecto moda com a mulher.
clássico, tendo como foco do seu desenvolvimento
o conforto, deixando de lado a preocupação estéti- IDENTIDADE, MÍDIA E CONSUMO: ALGUMAS RE-
ca e de informação de moda. Isto se deve pelo fato LAÇÕES POSSÍVEIS
que o lifestyle percebido em relação a mulher mais
velha é de uma pessoa onde suas interações sociais Tendo em vista que este artigo visa abordar as
se restringe a família e a atividades que exijam me- relações possíveis entre a velhice, onde uma de suas
³ Optamos em utilizar neste trabalho a expressão “velhas” para denominação das mulheres com mais de 65 anos, pois, segundo
Motta (2012, p. 96), “atualmente, está-se tentando reabilitar a palavra velho/velha proscrita pela ânsia da sociedade de consumo
em eufemizar a ‘idade’ e disfarçar a fobia social a essa etapa da vida, ao mesmo tempo que oferece serviços ‘específicos’ para a
‘terceira’, ‘melhor’ ou ‘feliz idade’”.
Sumário
dimensões abrange aspectos sociais de reconheci- trado e multifacetado, como reflexo de uma crise ou
mento e interação; e a Moda, um mercado basea- de uma fragmentação identitária.
do em uma estrutura capitalista de consumo voraz Bauman (2005) reafirma isto, porém ele rela-
muitas vezes ditado pela mídia, torna-se importante ciona esta característica a fluidez da sociedade con-
apresentar os conceitos sobre identidade, mídia e temporânea, ou seja, as identidades nunca alcança-
consumo no qual este artigo se alicerça. rão uma concretude plena uma vez que o mundo
Uma vez que identidade e consumo se relacio- líquido exige dos indivíduos uma contínua mudan-
nam, torna-se indispensável abordar os apontamen- ça de hábitos. Na obra Identidade, Bauman (2005, p.
tos de autores como Zygmunt Bauman (2005), John 91) associa a construção e a pluralidade identitária
Thompson (1998) e Stuart Hall (2005), é importante como um processo de “experimentação infindável”,
compreendermos que antes do advento dos meios de no qual os “experimentos jamais terminam”. O au-
comunicação e da globalização, as interações e expe- tor ainda afirma que na sociedade contemporânea
riências dos sujeitos se restringiam a referências cul- os indivíduos tendem a utilizar o consumo como
turais4 locais, muitas vezes representada pelos mais uma das formas de afirmação identitária, pois hoje
velhos. Hoje, os meios de comunicação e a globaliza- os produtos são consumidos pelo seu simbolismo, 561
ção encurtaram distâncias e consumiram as frontei- que mimetizam experiências sociais, valores e até
ras, o que consequentemente permitiu uma troca de mesmo uma noção de mundo.
experiências e valores com regiões distantes. Outro autor que estrutura um pensamento pró-
Para Hall (2005) a consequência desta ampli- ximo ao de Bauman (2005) é Thompson (1998). Ele
tude de referenciais culturais torna as identidades diz que a identidade não é algo estanque, mas sim
dinâmicas e continuamente deslocadas, possibili- mutável, que se encontra em constante e gradual
tando assim que o sujeito assuma tantas identida- processo de transformação por meio dos diferen-
des quanto necessárias em sua vida “algumas vezes tes elementos simbólicos que o sujeito interage por
contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2005, p. meio de suas experiências. Isto se confirma quando
11). Podendo se afirmar que as identidades se esva- Thompson (1998, p. 181) coloca que a identidade se
em e se dispersam em várias possibilidades de coe- forma por meio da assimilação de “materiais simbó-
xistência social. O sujeito contemporâneo é descen- licos mediados” ofertados aos indivíduos.
⁴ Usaremos o conceito de cultura de McCraken (2003), onde o autor coloca que cultura são as ideias e as ações por meio das
quais um determinado grupo ergue e baseia os significados, que podem ser reconhecidos por meio de atos como o consumo e
que consequentemente se relacionam com as questões identitárias, e que irão compor o mundo no qual vive.
Sumário
Dentro destes três conceitos observa-se cer- Desta forma é possível reconhecer que o ato
ta convergência ao fato de que a fragmentação e a de consumir hoje transcende qualquer questão pu-
pluralidade são condições inerentes às identidades ramente econômica ou material dos produtos. Atu-
dentro da contemporaneidade. Autores como Kell- almente o consumo está envolto em uma aura de
ner (2001) ainda acrescentam que estas característi- signos e que consequentemente concede ao ato de
cas tornam a identidade um tema encarado na for- consumir a possibilidade de consolidar e influenciar
ma de uma problemática. o estilo de vida, as interações sociais, a formação de
Kellner (2001) fala desta relação de influência identidade, entre outros. Esta possibilidade de se re-
do consumo e a fragilidade identitária, onde o autor lacionar com questões do ambiente social em nossa
menciona que a moda busca desestabilizar “iden- sociedade contemporânea é denominada por Bau-
tidades e contribuindo para produzir outras mais man (2005, p. 109) como uma “síndrome consumista”.
instáveis, fluídas, mutáveis e variáveis no cenário Discorrendo então na dimensão do universo da
contemporâneo.” (KELLNER, 2001, p. 329). mulher com mais de 65 anos, um dos focos a ser tra-
Discorrendo ainda na dimensão relativas à balhado, é possível avaliar o consumo como ferra-
identidade e certos aspectos relacionados a mídias; menta capaz de possibilitar a aceitação e a manifes- 562
e aproximando estas questões a focos deste artigo, tação da identidade diante da sociedade. Em outras
a mulher em processo de envelhecimento e o con- palavras, uma vez que o consumo se relaciona com
sumo de moda, observa-se certos aspectos correla- as questões identitárias, é possível supor que o ato
cionados às teorias de Hall (2005) e Bauman (2004). de consumir produtos de moda dentro do universo
A primeira questão é relativa à identidade, po- desta mulher poderá ser encarado como uma forma
rém com foco na sua relação com o consumo, ao de reconhecer e aceitar sua identidade; e também de
trabalharmos com as teorias de Bauman (2005) pois militância uma vez que poderá expressar a oposição
observa-se que o mesmo também trata desta rela- contra a priorização de uma preocupação estética
ção. Para o autor, o consumo em nossa sociedade e de informações de moda direcionadas quase que
contemporânea se posiciona como um elemento pri- exclusivamente a mulheres jovens. Assim sendo, é
mordial para dar forma às múltiplas identidades que possível associar que por meio de uma avaliação
constituem o sujeito. Em outras palavras, é por meio do seu comportamento de consumo de produtos
do consumo que ocorre a substituição de determina- de moda direcionados a velhice será possível iden-
dos valores e referências, o que caracteriza a fluidez tificar determinados padrões comportamentais as-
e a fraqueza das identidades na contemporaneidade. sociados à aceitação, revelação e compreensão da
identidade desta mulher.
Sumário
O MERCADO BRASILEIRO E CONSUMIDOR e 24% dos seus gastos são com o varejo e mesmo as-
MADURO sim os consumidores da terceira idade passam des-
percebidos aos olhos das grandes redes de varejo. A
Nosso atual sistema econômico capitalista prio- mesma pesquisa ainda afirma que os idosos influen-
riza o lucro incessante, que resulta em uma busca ciam as compras da família, cerca de 68% declara-
constante por novos nichos de mercado com poten- ram serem responsáveis pelas decisões de compra
cial poder de consumo. Resgatando as colocações da família, evidenciando assim que os idosos têm
sobre a tendência de envelhecimento acelerado da um caráter forte de formadores de opinião.
população, já apontada anteriormente, surge o mais Tendo em vista os apontamentos das pesquisas
novo nicho ainda pouco explorado, da moda para e direcionando para o mercado alvo que este artigo
mulheres velhas. busca trabalhar, o de moda, observa-se que o vestu-
Com o objetivo de conhecê-lo melhor, o Progra- ário é um dos nichos com potencial de crescimen-
ma de Administração de Varejo (Provar) da Funda- to perante esse público, porém pouco explorado, o
ção Instituto de Administração (FIA) e o Canal Va- que é confirmado pelos dados que da pesquisa do
rejo acabam de concluir a pesquisa Perfil e Hábitos IBGE, que mostram que 36% dos entrevistados não 563
de Consumo na Terceira Idade5. Dentre os pontos encontram roupas com facilidade e, desses, 42% têm
que chamaram a atenção do pesquisador, foi o fato dificuldade em comprar roupas sociais. A pesquisa
de que 54% dos entrevistados admitir experimentar também mostra que senhoras com mais de 60 anos
novas marcas, desmentindo a crença de que o con- de idade querem as cores da moda, o modelo usa-
sumidor idoso é conservador. Além disto, 20% dos do pelas mais jovens, mas adaptado ao seu corpo,
entrevistados, consideram o ato de compra como e querem encontrar esse produto em uma loja de
uma atividade de lazer, uma vez que este público departamentos, não em lojas especializadas para
gerencia as horas do seu dia de forma mais livre, po- terceira idade. E ainda de acordo com a pesquisa,
dendo ir as compras ao menos uma vez por semana. a maioria dos idosos tem informação de moda, mas
Outra pesquisa importante sobre o consumo da simplesmente não consegue adquirir o que quer por
terceira idade é a realizada pela consultoria GFK In- falta de opções no mercado.
dicator que descobriu que essa faixa da população Diante dos resultados das pesquisas, o que se
injeta R$ 150 bilhões por ano na economia brasileira percebe é que as mulheres com idade acima dos 65
⁶ Em regiões desenvolvidas, quase um quinto da população tinha 60 anos ou mais, em 2000; até 2050, essa proporção atingirá
um terço. Nas regiões menos desenvolvidas, apenas 8% da população tem mais de 60 anos; e até 2050 as pessoas idosas consti-
tuirão 20% da população. Disponível em: <http://goo.gl/3lBhb5>. Acesso em: 15 mai. 2014.
⁷ Disponível em: <http://goo.gl/Zi6t9y>. Acesso em: 08 mai. 2014.
Sumário
lizou a imagem de uma mulher com mais idade em suas campanhas.8 A grife, como diz em seu site, possui a
imagem de relaxamento e elegância atemporal, por meio do uso de tecidos finos e na modelagem perfeita.
No seu pre-fall 2014, a modelo Linda Rodin, de 65 anos de idade que também já foi editora de moda da revis-
ta Harper’s Bazaar, foi escolhida como modelo para representar a marca. É interessante notar como, apesar
da marca não se posicionar publicamente como uma marca direcionada as pessoas mais velhas, as fotos
dessa campanha, assim como a modelo usada e, principalmente, as roupas, lembram a estética tradicional
da velhice, pelos tons neutros, modelagem com cortes retos e fundos simples.
565
Outra marca que inicialmente possui posicionamento jovem, mas que também se utilizou a imagem
de uma mulher mais velha em suas campanhas é a MAC, marca de cosméticos canadense.9 Que utilizou
como garota propaganda, Iris Apfel, de 92 anos, conhecida por seu senso estético apurado em relação ao
jeito com que se veste, dando prioridade a chamativos acessórios e fazendo com que os grandes óculos de
aro redondos se transformassem em sua assinatura. Iris se auto intitula como uma “estrela geriátrica” e diz
que, para ter estilo, “você precisa saber quem você é Outra marca que podemos citar é Karen Wa-
e estar confortável com isso”, assim como ela afirma lker, criada pela estilista homônima e que segundo
que nunca compra o que dizem que está na moda, o seu site da marca11, se define como original, des-
que ela só compra o que a deixa feliz.10 Ou seja, pos- pretensiosa e otimista, por conta das diversas cores
sui um senso próprio de moda bastante apurado e usadas nos produtos e as estampas utilizada
também uma personalidade forte, que foram dois s em produtos como roupas, joias, casa, etc. Po-
fatores que chamaram a atenção da MAC, que não rém, o produto que se destaca nesta marca são os
criou produtos específicos para mulheres mais ve- óculos. A coleção da primavera 2013 da linha de ócu-
lhas, somente adaptou cores e embalagens para essa los foi fotografada por Ari Seth Cohen, que selecio-
coleção em especial. nou para posar para suas fotos a pintora Ilona Royce
Smithkin, a modelo Linda Rodin, a cantora de ópera
Joyce Carpati e a dona de loja Lyn Dell. Elas foram
fotografadas em seus próprios apartamentos, usan-
do suas próprias roupas, do jeito que elas mesmas
escolheram, sem interferências externas ou ideias 566
preconcebidas por alguém da grife Karen Walker.12
Todas modelos foram fotografadas usando a linha
de óculos de sol e nenhum de grau, fazendo com que
não seja óbvia a relação da velhice com o uso de ócu-
los para melhorar a visão desgastada pela idade.
A seguir apresentamos, a título de exemplo,
duas destas fotos.
Figura 4 - Iris Apfel em campanha para a marca MAC
Fonte: <http://goo.gl/nc7kkz>. Acesso em:12 mar. 2014.
10
Disponível em: <http://goo.gl/u8ztcZ>. Acesso em: 08 mai. 2014.
11
Disponível em: <http://goo.gl/iEiywa>. Acesso em: 08 mai. 2014.
12
Disponível em: <http://goo.gl/0JC4GG>. Acesso em: 08 mai. 2014.
Sumário
porém investem mais, gastando mais com produtos ao público feminino de mais idade e com todas as
de luxo, além disso, consideram a compra como um mudanças corporais que a velhice, torna-se ainda
evento social e são bastante orientados pela con- mais complicado o ato de se vestir, fazendo com que
veniência dos produtos, preferem mecanismos de o percentual de mulheres que mudam suas roupas
venda mais tradicionais ou com maior reputação, seja muito alto. Os resultados também apontaram
buscam atenção pessoal e serviços especiais, esco- que os homens pesquisados disseram que não mu-
lhem produtos pela qualidade e pelo nome da mar- dariam nada na sua forma de vestir, permanecendo,
ca. Afirma, também, que eles são menos sensíveis quando mais velhos, fiéis ao estilo que sempre ti-
ao preço e reclamam menos quando não estão satis- veram. Talvez isso aconteça, pois os homens, nessa
feitos com uma determinada compra. faixa etária, possuem mais dificuldade de aceitação
Isso contraria a ideia de que, quando o indiví- da sua real idade do que as mulheres. É interessante
duo entra para a terceira idade, automaticamente se notar essa alta diferença nos percentuais dos dois
torna desinteressado por moda. Greco (1986) cha- gêneros, fazendo com que seja muito mais fácil de
mou a atenção para o fato de que muitas pessoas ver, claramente, que a mulher sente muito mais ne-
acima de 65 anos são interessadas pelo assunto, cessidade de adaptar seu modo de vida para o que 568
como também são inovadoras e trocam opiniões ela considera, ou acredita, ser aceitável.
com amigos e familiares. Para elas, comprar roupas Pode-se entender, a partir disso, que as mulhe-
também é uma atividade prazerosa. O mesmo autor, res são muito mais realistas do que os homens, en-
assim como Moschis (2003), também afirma que a tendendo que, na sua idade, devem se adaptar aos
reputação da loja e a lealdade à marca são frequen- padrões aceitos pela sociedade de uma vestimenta
temente mais importantes para os consumidores da mais comportada e séria. É fácil perceber isso na
terceira idade do que preços ou programas de des- moda, pois não se encontram marcas ou coleções
contos (GRECO, 1986). Além disso, eles gostariam específicas que atendam ao público maduro. Conse-
de ser tratados com mais cortesia, dignidade e pa- gue-se identificar marcas que enfocam roupas para
ciência e estariam dispostos a pagar mais por isso. velhos, sem senso estético e informação de moda,
Goldenberg (2008), através de suas pesquisas, direcionando somente ao conforto, que é o que a
perguntou aos seus entrevistados: “você deixaria de maioria das mulheres, quando chegam a essa faixa
usar algo porque envelheceu?”, onde 96% das mulhe- etária, entendem que devem fazer.
res disseram ‘sim’; 91% dos homens disseram ‘não’. A marca Sharisma, de São Paulo, segue esse
Ou seja, com a falta de opções de roupas voltadas conceito mais tradicional de roupas apenas confor-
Sumário
táveis para as mulheres velhas. Ela se intitula como a primeira grife de moda brasileira direcionada para
pessoas da terceira idade e foi criada a partir da experiência de 22 anos de profissionais especializados no
tratamento e no cuidado com idosos portadores de deficiências motoras e psíquicas13. O principal laborató-
rio para a criação e o desenvolvimento da grife, segundo seu site, é um centro integrado de atendimento ao
idoso, que se diz referência em moradia e cuidados para a terceira idade. Os profissionais da marca possuem
contato diário com os idosos em tratamento ou repouso e isso fez com que eles percebessem que não exis-
tiam roupas adequadas para esse público. Entretanto, as roupas desta marca são extremamente tradicionais
e sem informação de moda.
569
Encontrar marcas que trabalhem com o público da terceira idade de uma forma moderna e atual é uma
tarefa difícil, pelo menos, no Brasil. Consegue-se identificar marcas que possuem roupas modernas e que
podem ser usadas por mulheres mais velhas, porém as próprias marcas não se identificam como tendo essas
mulheres como seu público. Possivelmente, essas grifes possuem receio de ficarem conhecidas como marcas
para velhos.
13
Disponível em: <http://goo.gl/Ps7sbd>. Acesso em: 15 mai. 2014.
Sumário
Através de suas pesquisas, Goldenberg (2008) deles e também a falta de interesse do mercado em
chegou à conclusão de que a relação das pessoas oferecer esses produtos.
com idade avançada e a moda é significativamen- Reis (2008, p. 9) continua sua pesquisa com fra-
te diferente da relação de qualquer outra pessoa de ses de mulheres com mais idade, tais como “as mu-
outra idade. Explicita a necessidade de serem feitas lheres mais velhas são consideradas grandes consu-
mais pesquisas acerca desse público, para se con- midoras, as de classe média A e B, é claro, porque
seguir entender como se dá essa relação e quais os são as que mais gastam, também gostam de vestir
aspectos que realmente sofrem alguma mudança. roupa da moda, como podem fazer as mais moças”.
Reis (2008) reuniu depoimentos, tais como de Ou seja, o público de mais idade pede claramente
uma mulher mais velha, a qual disse que “existe peças de roupas que façam com que se sinta incluí-
dificuldade em encontrar grandes marcas vestindo do no meio social em que vive. E a entrevistada ain-
senhoras”. Ou seja, esse público nota que é excluído da dá o exemplo, dizendo:
pelo mercado de moda, e mais, percebe outros as-
Uma grande loja, recentemente, inaugurou uma
pectos também, tais como quando diz que: segunda marca destinada ao estilo clubber, bem
jovem. Acabou entrando na loja uma clientela 570
As empresas não querem ficar conhecidas por
inusitada, com cerca de 40 anos, desejando com-
vestirem mulheres mais velhas, mas que não
prar saia de lurex, brilhante, tamanhos 44 e 42.
querem se vestir como senhoras. As poucas mar-
Não conseguiram: a numeração variava de 36 a
cas que ainda sobrevivem estão acabando. As que
40. [...] é complicado fazer roupa de moda, com
têm manequins até 46, por exemplo. Elas tentam
estilo, para mulheres mais velhas e gordinhas
atrair as mais jovens, mas que já eram marcadas
(REIS, 2008, p. 9).
porque vestiam senhoras (REIS, 2008, p. 8).
Não é só feita uma análise simplista, mas, sim, Através desses depoimentos, pode-se notar
um entendimento da cadeia como um todo, pas- como o público mais velho está ciente do que está
sando pelo produto, pela imagem da marca e do acontecendo no mercado de moda voltado a ele e
público que as empresas pretendem atingir. Esses de como algumas marcas o encaram, pensando na
depoimentos são dados e percebidos por mulheres sua imagem e como ele quer ser visto pelo resto da
mais velhas, acabando com a ideia de que os velhos população. Não se encontram roupas para pesso-
não procuram produtos voltados a eles, bem pelo as mais velhas nem em lojas de departamento, que
contrário, eles procuram a ponto de notarem a falta teoricamente deveriam atender toda a família, le-
vando também em consideração seu grande porte,
Sumário
que permite que tenham linhas específicas. Ou seja, que uma pessoa com mais idade possui, como tradi-
nem grandes representantes de moda, com alto po- ção e qualidade. Mas também se percebe que exis-
der de venda, produzem para esse público. Talvez se tem marcas que se utilizam desse artifício como ele-
isso viesse a acontecer, seria possível notar como os mento para quebra de padrões e para ganhar uma
velhos realmente possuem poder de compra e estão maior percepção do consumidor. Porém, a maioria
interessados em produtos que se adaptem às suas das marcas de roupas para esse público se utilizam
demandas, mas, ao mesmo tempo, que não os exclu- dos estereótipos acerca da velhice, oferecendo pro-
am e sejam colocados em lojas especializadas. dutos sem senso estético e informação de moda, e
visando somente o conforto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O envelhecimento da população brasileira po-
tencializa a importância deste grupo social em vá-
Esta pesquisa permitiu compreender como os rias áreas, dentre elas o mercado consumidor de
idosos mudaram ao longo dos anos e como existem moda, entretanto, percebemos que a velhice não é
diferentes maneiras de compreender e entender a reconhecida pela maioria dos profissionais da área
velhice. Pode-se encará-la como a fase final da exis- como público em potencial. A moda não deveria 571
tência, ou como a fase de libertação de certos com- combater o envelhecimento, como vem fazendo há
portamentos que acompanham as pessoas durante muitos anos, mas ser um canal de discussão para
toda a vida. Percebe-se, também, como o mercado, estes sujeitos com seus novos papéis sociais.
de uma forma geral, entende as necessidades das
pessoas com mais idade e, principalmente, como as REFERÊNCIAS
empresas estão reagindo a fim de produzirem bens
de consumo ligados às demandas feitas por elas. BAUMAN, Z. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi.
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Além disso, consultorias informam que os idosos
têm um caráter forte de formadores de opinião. En- BEAUVOIR, S. A velhice. São Paulo: Difusão Européia do
fim, pode-se entender como a velhice hoje em dia é Livro, 1970.
encarada de uma maneira positiva, chamando-a de
“bela velhice”. CALDAS, C. P. O idoso em processo de demência: o impacto
na família. In: MINAYO, M. C. S.; Coimbra Jr C. E. A. (Orgs).
Em relação ao mercado de moda, o mesmo glo-
Antropologia, Saúde e Envelhecimento. Rio de Janeiro:
rifica a juventude e a beleza, mas algumas marcas já Fiocruz, 2002. p. 51-71.
colocam os velhos a seu favor, utilizando os valores
Sumário
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Sumário
¹ Professora do IFRS – Campus Porto Alegre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação –UFRGS. Luciana.Fon-
tana@poa.ifrs.edu.br
Sumário
considering two main categories: happy and succes- leu-se também de estudos sobre mídia, pedagogias
sful children, and naughty children. Giroux (2011), culturais e convergência. Os procedimentos meto-
Narodowski (2013) and Jenkins (2009) have highli- dológicos para a organização da pesquisa envolve-
ghted a number of possibilities of connection avai- ram o mapeamento de temas e propósitos abordados
lable to children (and adults) nowadays. Forms of nos mais de 200 artigos coletados na seção My Kids
entertainment labeled as “educational” are among durante os anos de 2012, 2013 e 2014. Neste texto,
them, characterizing a niche market with which the apresento pequenos recortes e teço considerações
Discovery Kids brand attempts to be aligned. a partir de duas pequenas categorias que dão des-
Keywords: Education. Cultural Pedagogies. Inter- taque a algumas das principais facetas pedagógicas
net. Childhood. e direcionamentos voltados ao gerenciamento das
atitudes das crianças; são elas: crianças felizes e bem-
-sucedidas e as crianças malcriadas2. Cabe mencio-
INTRODUÇÃO nar, ainda, que há uma infinidade de práticas pres-
critas a mães e pais nos artigos da seção My Kids.
Por meio deste texto, busca-se apontar algumas Por exemplo, foram frequentemente postadas lições 574
das direções imprimidas a uma tese de doutorado que envolviam a busca permanente pela felicidade;
que problematizou o site do canal televisivo infantil cuidados necessários à saúde, ao meio-ambiente e à
por assinatura Discovery Kids e que, mais especi- higiene corporal; a vida em sociedade; os melhores
ficamente, examinou os artigos postados na seção métodos escolares nos diferentes níveis de ensino;
My Kids – Conectados com seus Filhos, para discutir as brincadeiras mais apropriadas para as crianças,
como neles se gestam (e são postas em operação) entre outras relacionadas à administração das crian-
“pedagogias” endereçadas às mães e aos pais, vol- ças e das familias. Várias foram as representações de
tadas ao gerenciamento de atitudes das crianças (e crianças (re)criadas nas pedagogias acionadas nos
famílias) que acessam esse site infantil. artigos da My Kids (e nas outras seções do site), em
Este estudo foi desenvolvido na perspectiva uma espécie de portfólio de lições que intencionam
analítica dos estudos culturais em educação, mas va- capacitar as crianças e suas famílias para uma vida
² Dada a impossibilidade de apresentar a totalidade dos resultados obtidos ao longo do desenvolvimento da tese intitulada
As pedagogias online do complexo kids: Crianças, mães e pais em conexão, efetuaram-se alguns recortes da referente
pesquisa com o intuito de destacar algumas das direções em que se dão os aconselhamentos destinados aos pais e mães que
visitaram o site no período observado.
Sumário
bem-sucedida, bem como auxiliá-las a lidar com os de lugares como, por exemplo, as universidades, a
desafios de um mundo contemporâneo globalizado escola, a família, a igreja, entre outros tradicional-
que requereria sujeitos flexíveis e permanentemente mente vinculados ao exercício de educar (Ibidem).
dispostos a aprender. No entanto, entre as recomen- Este texto debruça-se sobre as representações de
dações feitas nos artigos da My Kids, há textos que criança que pareceram estar mais destacadas na My
discutem a aplicação de castigos e privações àqueles Kids para compreender algumas das facetas pedagó-
que “insistem” em ser “malcriados”. gicas privilegiadas nessas postagens. Destaco que as
Camozzato e Costa (2013) consideram ser cres- prescrições contidas nos artigos do site do Discovery
cente o reconhecimento, no âmbito acadêmico, Kids atribuem à infância características universais,
de que existe uma pluralidade de pedagogias em desconsiderando a existência da pluralidade de mo-
constante operação na contemporaneidade. Para as dos de viver a infância e as diferentes estruturações
autoras (Ibidem), as pedagogias culturais são uma familiares presentes na atualidade3. Considero que,
ferramenta importante para que pesquisadores arti- ao colocar em circulação informações, conselhos,
culem cultura, educação e comunicação em estudos regras e sugestões nos artigos direcionados a pais e
que objetivam problematizar modos de constitui- mães, o site do Discovery Kids vai promovendo “en- 575
ção de sujeitos do tempo presente. É destacado por sinamentos” repletos de certezas e indicações “preci-
Wortmann, Costa e Silveira (2015, p.36) que um dos sas” acerca de onde se poderá chegar “efetivamente”,
“conceitos-chave para a articulação entre Estudos caso se siga o que está sendo sugerido.
Culturais e Educação tem sido o de pedagogias cul- Além disso, cabe salientar que, de diferentes
turais”, amplamente empregado para analisar uma modos, o site do Discovery Kids parece empreen-
multiplicidade de processos educativos operados der um esforço para abranger, por meio de seus
na contemporaneidade que extrapolam os limites conteúdos, diversificados temas que possam inte-
³ Mesmo que não se pretenda retomar considerações sobre a emergência e a caracterização da infância moderna, temática já
sobejamente analisada em muitos estudos anteriores, entre os quais, estão os de Ariès (1981), Varela e Alvarez-Uria (1992) e
Bujes (2002), salienta-se que a infância, tal como sucede com outras instâncias que nomeiam etapas de nossas vidas, é instituída
no interior de relações de poder. Estas são produzidas em um conjunto de históricas intervenções do Estado, das religiões, da
sociedade civil, da filantropia, da medicina, da psicologia, do serviço social, das famílias, da pedagogia e, mais recentemente,
das diferentes mídias contemporâneas – entre elas, a Internet.
Sumário
ressar desde crianças de zero a seis anos de idade complexos mercantis midiáticos é que eles se or-
– especialmente por meios de jogos coloridos4 e ganizam em torno de um tema gerador ou nuclear,
autodefinidos “educativos” – até suas mães e pais, a partir do qual é criado um diversificado conjun-
mediante postagens de artigos voltados à formação to de atraentes propostas que, de distintos modos,
das crianças, conforme vem sendo apontado. O en- constantemente convocam os sujeitos ao consumo
dereçamento do site intrigou-me, particularmente, (Ibidem). Aqui neste estudo, estendo as indicações
pela abrangência a ele atribuída – não só as crianças das autoras (Ibidem) ao imperativo da conexão e ao
são o foco de sua atenção, mas também seus pais e permanente desejo de pertencer a uma cultura glo-
mães, por meio do link My Kids. balmente reconhecida por meio do consumo, não
Além do site estudado, há uma gama de ações só de bens materiais, mas das pedagogias que nela
processadas/licenciadas sob a marca Discovery se gestam, intencionalmente ou não, e que atuam
Kids: o canal televisivo, as redes sociais na Inter- intensamente na constituição e nos modos de vida
net (Twitter, Facebook e Instagram), uma infinidade contemporâneos, aspectos também destacados por
de produtos infantis e ainda os eventos itinerantes Bauman (2008) e Steinberg e Kincheloe (2001)5.
realizados em shoppings centers e em outros locais Giroux (2011), Narodowski (2013) e Jenkins 576
públicos, envolvendo crianças e seus familiares em (2009) ressaltam as inúmeras possibilidades de co-
torno de um diversificado conjunto de propostas nexão – e entretenimentos – disponibilizadas às
que conjugam lazer, informação e consumo. En- crianças (e adultos). Como já indiquei, tais conexões
tendo estar estabelecida aí a composição de um não implicam apenas estar diante de programas te-
complexo mercantil midiático, o qual denominei levisivos, sites ou aplicativos consumidos no uni-
de Complexo Kids. Em relação ao Complexo, cum- verso infantil, mas também que muitas das crianças
pre-se o que Wortmann, Costa e Silveira (2015) en- tenham, à sua total disposição, de diferentes modos
fatizaram ao indicarem que uma característica dos e ininterruptamente, uma quantidade de “entreteni-
⁴ Vale citar que as seções destinadas aos Jogos e Vídeos infantis foram apresentadas às crianças como locais muito “especiais”,
nos quais elas poderiam aprender, se divertir e interagir com os icônicos personagens que circulam no canal televisivo do
Complexo Kids. Destaca-se que nesse site são feitas permanentes convocações ao consumo em convidativos banners, nos quais
se anunciam produtos e serviços direcionados ao segmento infantil, mas também aos adultos - para que esses inscrevam seus
filhos em disputadíssimos eventos itinerantes, geralmente realizados em grandes shopping centers espalhados pelo país.
⁵ Valho-me, também, do termo “complexo” de modo aproximado ao que foi empregado por Flor (2007) e Prates (2008) em seus
estudos realizados, respectivamente, para indicar/problematizar modos de formar/atrair consumidores, a partir da aglutinação
de um numeroso conjunto de artefatos culturais a um acontecimento midiático gerador.
Sumário
mentos” transmidiáticos6 idealizados sob medida – A seção My Kids: Crianças felizes e bem-sucedidas
por grandes corporações – para serem propagáveis7
e acessados de diferentes modos. Estão entre estes A seção My Kids - Conectados com seus Filhos
também os entretenimentos que carregam o rótulo é a seção do site onde focalizei minhas análises,
de “educativos”, nicho de mercado a que a marca considerando, basicamente, os artigos disponibili-
Discovery Kids busca alinhar-se. zados aos pais e mães usuários do site. Talvez por
Apresentei até aqui breves cliques, a partir dos intermédio da My Kids, à semelhança do que indi-
quais comentei, mesmo que sucintamente, aspectos cou Klein (2002), tenha-me sido possível vislumbrar
que dizem respeito à compreensão do objeto empí- “realmente” qual é a “alma dos negócios” tutelados
rico que optei por pesquisar. Observei que as pro- sob a marca Discovery. Tal seção ocupou, no perí-
duções do Complexo Kids ressaltam a harmoniosa odo observado, um espaço diferenciado na página
combinação que fazem de entretenimento e edu- inicial do site, sendo o seu conteúdo organizado por
cação. O uso dessas representações chamou minha meio de pequenos textos autodefenidos como Arti-
atenção já nas primeiras incursões que fiz no site, gos. Os artigos estudados sinalizaram para como as
seja pela ênfase atribuída à conjugação de diversão práticas recomendadas pelos articulistas pretendem 577
e informação, seja pelo título de um link nele dispo- formar bons cidadãos e intencionam, sobretudo,
nibilizado: My Kids - Conectado com seus Filhos. Por formar pessoas que saibam trabalhar em equipe, ser
alguns dos motivos já apresentados, pareceu-me bem-sucedidas, flexíveis, felizes e permanentemen-
produtivo conduzir uma análise cultural dos artigos te dispostas a aprender.
disponibilizados na seção My Kids, sendo esta vista A ênfase na existência de um “eu” que deve es-
como parte integrante – uma das engrenagens – do tar permanentemente buscando o aprimoramento e
que destaquei ser um Complexo mercantil Kids. incorporando as práticas necessárias para seu bem-
-estar, sucesso e felicidade aparece no artigo intitu-
⁶ Jenkins (2009) indica que transmídia se refere a histórias que se desenrolam em múltiplas plataformas, cada uma delas contri-
buindo de forma distinta para a compreensão, ou melhor, para a propagação/disseminação de um determinado universo narra-
tivo; o filme Matrix seria um bom exemplo dessa “capacidade” de propagar-se e “proporcionar experiências” distintas aos fãs.
⁷ De modo semelhante ao que destacaram Jenkins, Green e Ford (2014), empregarei, por vezes, as expressões propaga e propa-
gável para indicar as diferentes formas de circulação, penetração e compartilhamento de conteúdos midiáticos. Para os autores
(Ibidem), tais expressões fariam referência aos diferentes modos (e ao seu potencial) de espalhamento dos conteúdos, que po-
dem se dar com ou sem a anuência de seus detentores.
Sumário
lado Dez dicas simples para que seu filho seja feliz8. reverem permanentemente suas práticas para que
Acompanha esse artigo a imagem de uma menina consigam adotar as rotinas necessárias à “felicida-
sorridente deitada sobre a grama, segurando uma de” de todos os familiares. Diz o texto:
flor branca; a criança parece demonstrar a felicida-
de e a paz que poderão ser obtidas a partir da incor- 6. Cuide de sua saúde mental
poração das “dicas” propostas no texto. As crianças são muito sensíveis. Se você estiver deprimido,
O tema felicidade aparece – nesse e em outros seus filhos certamente perceberão. As pesquisas de Heide-
marie K. Laurent, da Universidade de Oregon, sugerem que
artigos postados no período observado – como uma uma mãe deprimida presta menos atenção ao choro dos
“busca necessária” que deve ser praticada diaria- filhos e que uma criação negativa contribui para o estresse
mente pelas famílias. Entre as ações formuladas na vida adulta.
com bases definidas como “científicas” para que 7. Crie um laço sólido
Os jovens precisam sentir que podem contar com os pais
pais e mães promovam efetivamente a felicidade na antes de se aventurar pelo mundo. Estudos comprovam
vida das crianças, estão: brincar com os filhos; atri- que uma relação próxima entre a mãe e a criança previne
buir responsabilidades (os pais e mães precisam evi- determinados problemas de comportamento e serve como
referência para estabelecer relações amorosas saudáveis no
tar que as crianças se sintam inúteis); ser positivo em futuro. [grifos meus] 578
suas afirmações; dar liberdade ao filhos; incentivar o (Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/dez-di-
cas-simples-para-que-seu-filho-seja-feliz/>Acesso em: 1º jul. 2013.)
estabelecimento de amizade; cuidar da própria saúde
mental (relativo aos pais e mães); criar um laço só-
lido com os filhos; conhecer os filhos; não se alterar Em relação aos fragmentos recortados do artigo
ou promover conflitos constantes (relativos à postura Dez dicas para ser feliz, vale lembrar que Marín-Díaz
dos pais/mães perante os filhos). (2013) salienta que a apresentação de dicas, conse-
Além das inúmeras orientações endereçadas lhos e exercícios práticos numerados clara e expli-
aos pais e mães nesse artigo que sintetizei no pará- citamente – tal como os elencados nesse artigo –
grafo anterior consta, paradoxalmente, a seguinte são importantes estruturas narrativas utilizadas em
recomendação: não tentar ser perfeito. textos de autoajuda destinados à educação. Como a
Seguindo lógicas presentes nesse artigo, é pos- autora (Ibidem) também aponta, essa é considerada
sível identificar incitações aos pais e às mães para como uma estratégia facilitadora para apreensão de
preceitos que deverão ser seguidos e repetidos por Comento, ainda, a imagem que acompanha o
adultos, crianças, professores e outros grupos ou in- artigo: no plano de fundo, destacam-se um dia de sol
divíduos. matizado pela sombra de árvores e uma casa envi-
Além desse artigo que ensina crianças e famílias draçada, da qual um menino e um homem parecem
a “serem felizes”, há outros com direção semelhante. ter saído juntos. O adulto, que tudo leva a crer ser o
O texto intitulado Educando crianças autoconfiantes9 pai do menino, está de paletó e gravata e carrega em
também focaliza a necessidade de os pais e mães es- uma das mãos uma maleta de “estilo executivo”; o
tarem atentos aos comportamentos dos filhos desde “filho”, embora vista roupas infantis masculinas (de
bebês, indicando, ao mesmo tempo, ser essa uma de menino) carrega, igualmente, em uma de suas mãos,
suas principais funções: transmitir o mais cedo possí- uma pequena maleta, que parece ser uma lancheira
vel exemplos e mensagens que façam os filhos cresce- escolar. Há um ar de cumplicidade no olhar do pai e
rem seguros, independentes e autoconfiantes; isso se- do filho enquanto eles caminham de mãos dadas, na
ria uma das maiores conquistas que os progenitores mesma direção. Ao que parece, essa cena foi esco-
poderiam almejar para seus filhos, tal como se pode lhida para representar a “perfeita sintonia” postula-
ver no excerto que transcrevo a seguir. da no artigo como necessária às relações parentais 579
bem-sucedidas indicadas/ensinadas no texto.
A tarefa de criar e educar está presente em todas as ações É possível dizer que tanto a imagem quanto
que realizamos cotidianamente com nossos filhos. Dependen- o texto buscam marcar que um comportamento
do da forma como os criamos, alimentamos, reagimos diante
de seus pedidos ou nos dirigimos a eles, transmitimos nossa
“exemplar” instituiria uma relação de “parceria” ca-
maneira de pensar e também uma mensagem de carinho. paz de levar a criança a trilhar o caminho – “bem-
Desde bebês, eles observam o que fazemos e tentam nos -sucedido” – do seu progenitor. Ao longo do arti-
imitar. Nada escapa ao seu olhar, e por isso é importante go, está enunciado passo a passo o que pode e o
transmitir a eles mensagens claras e coerentes, para que
possam conhecer o mundo com segurança e independên- que não pode ser realizado pelos pais e mães para
cia. Ver um filho crescer seguro, independente e confiante a consecução dos propósitos apresentados: críticas
é uma das maiores conquistas que os pais podem almejar. demasiadas não seriam bem-vindas, mas demons-
[grifos meus]
(Disponível em:<http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/educan-
trar confiança na capacidade do seu filho, ajudá-lo
do-crianças autoconfiantes /Acesso em: 1º jul. 2013.) a assumir o “controle” do seu próprio aprendizado,
assim como expressar alegria quando ele colabora
e resolve problemas, ao lado de dedicação e amor No artigo aqui comentado, foi possível obser-
incondicionais desde os primeiros anos de vida da var também que a autoconfiança parece estar as-
criança, estariam entre as molas propulsoras da au- sociada à felicidade, ao sucesso e a características
toconfiança. A seguir, transcrevo um excerto em masculinas. É a figura masculina que está associada
que tais “condições” são enunciadas no texto: ao bom desempenho profissional, tanto da criança
quanto do pai e que parecem estar se enquadran-
Ganhar autoconfiança é um processo. Não acontece de um do em profissões relacionadas ao “mundo dos ne-
dia para o outro e não é um comportamento espontâneo, gócios”. No artigo Meu filho vai ser Médico10, a fi-
mas resultado de um trabalho em família - ou seja, é algo
que se aprende. [...]
gura do pai é igualmente invocada para tratar do
- Expresse sua alegria quando ele colabora e resolve prob- futuro profissional das crianças. Esse entendimen-
lemas. Isso fará com que se sinta orgulhoso e capaz, au- to é observável, sobretudo, a partir da imagem que
mentando sua autoestima. parece estar em perfeita sintonia com a afirmativa
- Delegue à criança algumas tarefas simples, como buscar indicada no título do artigo: um menino sorridente
alguma coisa ou se vestir sozinha. Essas ações aumentam a
autonomia, e seu filho descobrirá que pode executar tarefas com um corte de cabelo exatamente igual ao do seu
sem depender tanto dos pais. pai; o menino está posicionado do lado esquerdo do 580
- Reserve tempo e espaço para permitir que ele faça coisas plano visual e, excetuando-se alguns “acréscimos”
que não conseguiu realizar antes. No começo, talvez seu
filho demore para conseguir, mas vale a pena esperar.
localizados na figura paterna, está vestido como o
- As crianças desenvolvem a autoconfiança ao sentir que seu pai: ambos usam os icônicos jalecos brancos
seus pais, as pessoas que mais os amam, pensam que eles que caracterizam os profissionais da saúde, além de
[as crianças] "são capazes de fazer as coisas sozinhas". A portarem o conhecido e emblemático estetoscópio
atitude dos pais permitirá que a criança supere os obstáculos
da vida e do aprendizado, saindo fortalecida depois de cada em torno do pescoço. O artigo legitima algumas re-
experiência. presentações do senso comum sobre a profissão de
O amor incondicional dos pais nos primeiros anos de vida médico, que incluem algumas visões glamourizadas
da criança é o combustível que alimenta sua autoconfiança dessa profissão, bem como expectativas de bom re-
para que possa crescer cada vez mais independente e feliz.
[grifos meus] torno financeiro. Isso implica aprender o mais cedo
(Disponível em:<http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/educan- possível sobre profissões prestigiadas, mas também
do-crianças autoconfiantes /Acesso em: 1º jul. 2013.)
acerca da importância de se adquirirem competên-
cias, atributos e disposições na direção de alcançar
a finalidade enunciada, o que em outras palavras
10
Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/meu-filho-vai-ser-médico/>.Acesso em: 1 jul. 2013.
Sumário
poderia significar mobilizar os leitores do site a sucesso ou fracasso – laboral, profissional, familiar
atentarem para a necessidade de seus filhos serem e acadêmico, por exemplo. A busca pela felicidade,
ensinados, desde cedo, a serem felizes e bem-suce- segundo a autora, tem sido tema de diferentes pu-
didos sob o ponto de vista econômico-financeiro, blicações disponíveis tanto na Internet quanto em
especialmente. É interessante marcar neste momen- prateleiras de supermercados, livrarias e lojas –
to as preocupações que o site se encarrega de trazer Mais Platão e Menos Prozac, por exemplo, é um dos
aos pais acerca do futuro profissional de seus filhos, títulos estudados na pesquisa de Marín-Díaz (2013).
mesmo que os usuários do site sejam pais e mães O que muitos destes discursos teriam em comum
de crianças que, em princípio, se situam na faixa de seriam matrizes normativas, ou melhor, modos de
zero a seis anos de idade. existência que se constituiriam em um alvo (meta)
Veiga-Neto e Lopes (2011;2013) alertam que, a ser atingido após o desenvolvimento ou aplicação
por meio de um manancial de textos de autoajuda de um conjunto de exercícios, técnicas, práticas e
propagados atualmente, diferentes práticas cultu- procedimentos operados pelo indivíduo sobre si e,
rais têm sido trazidas às nossas vidas sem cerimô- por vezes, sobre os outros.
nia, como se fossem legítimas e, em si mesmas, não 581
problemáticas. Expressões, tais como melhor, maior ENSINANDO AS CRIANÇAS MALCRIADAS
felicidade e futuro mais promissor, circulam livre-
mente, sem maiores preocupações, em diferentes Ao longo das incursões pela seção My Kids, cha-
espaços midiáticos. Já as pedagogias encontradas mou-me a atenção a veiculação de artigos cuja abor-
na My Kids estruturam-se por meio de pequenos es- dagem se relacionava, especialmente, à indicação de
quemas explicativos e saberes que naturalizam al- práticas para a correção e regulação dos popular-
guns particulares modos de ser criança e, acima de mente chamados “comportamentos difíceis” ou in-
tudo, de tornar-se um adulto “bem-sucedido”. desejáveis das crianças. Os artigos comentados nes-
Frente ao que foi colocado até aqui, lembro Ma- ta seção focalizam temáticas e situações silenciadas
rín-Díaz (2013) quando afirma que são promovidos, nas demais seções do site, pois neles predominaram
em certas publicações de autoajuda, discursos que representações de criança associadas ao bem-estar,
ecoam e se harmonizam com alguns modos de vida à felicidade, ao gosto pela leitura, pela música e pelo
atuais, nos quais ganham destaque formas indivi- conhecimento, etc. No entanto, o caráter prescritivo
dualizantes, centradas em “eus” autônomos e auto- que apontei predominar na My Kids pode ser igual-
gestores que seriam responsáveis pelo seu próprio mente encontrado nos textos aqui apresentados.
Sumário
Teço a seguir considerações sobre o artigo inti- Seguindo a discussão sobre o artigo relaciona-
tulado Sugestões para impor limites11, no qual é dado do à imposição de limites, outro aspecto que chama
destaque à necessidade de adotarem-se ações disci- atenção é a frequente utilização do verbo impor (ele
plinadoras e reguladoras em relação às crianças para é empregado sete vezes no artigo) para referir-se
que elas não excedam os limites estabelecidos pelos a modos de agir desejáveis ao disciplinamento das
pais e mães. Antes de dar seguimento a meus co- crianças. Essa proposta fica bem definida já no iní-
mentários sobre esse artigo, lembro que não estarei cio do artigo, a partir da seguinte afirmação: uma
necessariamente falando aqui em dobrar alguém por das tarefas mais difíceis para os pais é a imposição de
coerção física (palmadas, palmatórias ou puxões de limites aos filhos. Motivado pelas dificuldades que o
orelhas), pois o que está em operação nesses artigos articulista identifica nos pais e mães, de um modo
são arranjos discursivos em que se gestam relações geral, o artigo apresenta propostas para “vencer” o
de poder. Como Hall (1997ab) apontou, todas as nos- desafio de estabelecer limites “exitosamente”. Pen-
sas condutas e ações são reguladas normativamen- sando a partir de Hall (1997ab), pode-se dizer que
te por significados culturais, que nos interpelam de a expressão tarefas difíceis para os pais, bem como
diversas formas, mas muito especialmente por meio outras presentes nesse artigo, tem a ver com a re- 582
de diferentes mídias, sendo essa a situação a que me alização de um desejo de alterar o que ocorre no
atenho. A imagem que acompanha o artigo apresen- mundo ou no modo como as coisas são feitas, o que
ta um homem de perfil (supostamente o pai) que tem implicaria, grosso modo, lançar mão de meios para
parte de seu corpo oculto, pois o enquadramento dá moldá-lo de outras maneiras e, nesse caso especí-
destaque ao seu dedo, apontado na direção do ros- fico, ensinar regras de convivência social para as
to de uma menina de mais ou menos cinco anos de crianças. Isso implica a regulação de comportamen-
idade; de braços cruzados, ela olha para ele, demons- tos, propósito contido no artigo na expressão impo-
trando não gostar da repreensão. Evoca-se, nessa sição de limites. Como o artigo destaca,
foto, a atitude historicamente tomada como repre-
sentativa de atos de imposição de limites associados
à repreensão – “apontar o dedo no rosto”.
11
Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/sugestoes-na-hora de-impor-limites/>. Acesso em: 1º jul. 2013.
Sumário
[...] limites são bons para fortalecer a capacidade de espe- que não haja “espaço para resistências” por parte da
ra dos filhos. Quando nascem, os bebês querem que suas criança. Então, o artigo exemplifica “lições” sobre
vontades sejam atendidas imediatamente, e os pais fazem de
tudo para atendê-los. À medida que cresce, a criança apren-
como proceder frente às desobediências dos filhos,
de a esperar por meio da socialização, além de ter acesso a relacionando práticas, tais como a do castigo, para
substitutos para os objetos primários de satisfação, como a corrigir atitudes consideradas indesejadas por pais
chupeta, por exemplo, que substitui o seio materno [...]. Uma
criança pode se acalmar e esperar quando falamos, cantam-
e mães. Reproduzo, a seguir, algumas das recomen-
os ou contamos uma história. [grifos meus] dações feitas nesse sentido, as quais precisariam ser
(Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/suges- seguidas corretamente pelos adultos para se torna-
toes-na-hora de-impor-limites/>Acesso em: 1º jul. 2013.)
rem efetivas. Diz o artigo:
Como se pode ver, a imposição de limites é des-
Os castigos devem ser usados para corrigir uma atitude. Estes
tacada como um importante instrumento de socia- [os castigos] podem ser a privação de algo que tenha relação
lização das crianças, que precisam aprender a lidar com o que a criança está fazendo. Por exemplo: “Se você tirar
com o adiamento da realização de seus desejos para o tênis para brincar no parque nós vamos voltar para casa”. É
importante que isso seja dito logo depois que a criança apre-
que possam, assim, ser preparadas para viver situ- sente o mau comportamento para que ela possa estabelecer
ações semelhantes que enfrentarão no futuro. Na rapidamente uma associação. [grifos meus]. 583
mesma direção, seguem as demais recomendações Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/sugestoes-
na-hora de-impor-limites/>Acesso em: 1º jul. 2013.)
feitas no artigo; muitas delas ensinam as mães a
contornarem “pacificamente” adversidades surgidas
Um aspecto enaltecido nesse artigo é o respeito
nas primeiras tentativas de circunscrever limites
aos adultos, visto como um passo importantíssimo
para a atuação de bebês e de crianças bem peque-
para a composição do processo de imposição de li-
nas. Isso está destacado no excerto com a afirmação:
mites, tarefa à qual se devem dedicar, igualmente,
Uma criança pode se acalmar e esperar quando fala-
pais e mães, desde o nascimento do bebê.
mos, cantamos ou contamos uma história.
Aliás, o castigo é tema de outros artigos da My
Além de prescrever e de consolidar essas pres-
Kids, como o intitulado Castigo: um método polêmi-
crições pela exemplificação de procedimentos a se-
co12, no qual a prática do castigo – apesar de algu-
rem seguidos pelos pais e mães, o artigo traz orien-
mas ponderações – é apontada como uma possível
tações que precisam ser seguidas à risca para que
solução para a eliminação de comportamentos diag-
se tornem, efetivamente, um hábito familiar e para
12
Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/castigo-um-método-polêmico/>Acesso em: 1º jul. 2013.
Sumário
nosticados pelos pais e mães como indesejados. Di- Aplicar punições para corrigir o comportamento infantil é
ferentemente de todos os episódios televisivos do um método que divide opiniões. Veja como empregá-lo de
forma adequada. As crianças são inquietas e exploradoras
Discovery Kids, em que todas as cenas invariavel- por natureza. Têm a necessidade de conhecer tudo de ime-
mente terminam em final feliz, os artigos discutidos diato, de entrar em contato com o que se passa à sua volta e
nessa seção dão visibilidade e status de verdade a fazer o que passar por sua cabeça. Nesse processo, é muito
provável que cometam erros e façam coisas que seus pais
práticas como as privações para corrigir comporta- não aprovam. [grifos meus]
mentos tidos como inadequados. Destaco, de modo (Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/casti-
go-um-método-polêmico/>Acesso em: 1º jul. 2013.)
particular, a imagem que acompanha o artigo que
estou comentando, em que uma criança de aproxi-
madamente dois anos de idade (talvez possa ser uma O artigo prossegue recomendando aos pais e
menina, pelo tipo de sandália) está sentada em um mães que acompanhem o desenvolvimento de seus
banquinho, de frente para o canto de uma parede, filhos bem de perto, sem se esquecerem, no entanto,
e de costas para um cesto cheio de ursos de pelúcia de delinear claramente os “limites” daquilo que é ou
e vários outros brinquedos e livros, dispostos sobre não aceitável, de modo que os filhos possam per-
uma mesa. ceber quando não estão se comportando conforme
584
Tal imagem parece traduzir uma das formas de o que foi estipulado. Além disso, segundo o texto,
se castigar uma criança – privação da brincadeira e o castigo seria um método utilizado por gerações,
dos objetos que lhe são caros. Embora no decorrer sendo importante a sua aplicação para a consolida-
do texto seja afirmado que o castigo é uma práti- ção de comportamentos desejáveis. Como frisa o ar-
ca que suscita discussões e controvérsias, a ima- tigo: Essa tarefa difícil [impor limites], mas necessá-
gem adicionada ao texto está representando uma ria, costuma envolver uma das técnicas mais usadas
das formas de utilizá-lo. E mais, chama atenção, no por pais de todas as gerações: o castigo.
parágrafo inicial, a apresentação das “melhores for- Em outros momentos, se, por um lado, o texto
mas de empregá-lo”. Diz o parágrafo inicial: ressalta ser o castigo uma prática de difícil aplica-
ção e bastante controversa, inclusive reprovada por
alguns especialistas (cujos nomes não são citados),
por outro, dá legitimidade à prática ao mencionar
que a Academia Estadunidense de Pediatria reco-
menda o castigo como estratégia disciplinar eficaz.
Diz o texto: Enquanto alguns especialistas desapro-
Sumário
vam os castigos, a Academia Americana de Pediatria mas ao mesmo tempo são feitas prescrições sobre
os recomenda como estratégia de disciplina eficaz. o seu uso, postulando-se algumas formas “corretas”
Novamente, o detalhamento e o delineamento de castigar, entre as quais, está a “dosagem” na sua
das melhores formas, espaços e tempos para aplicar utilização. Além disso, alternam-se prescrições e in-
o castigo são explorados ao término do texto, quan- dagações, especialmente em seus parágrafos finais,
do lá está indicado que: direcionando-se estas a promover nos pais e mães
uma espécie de autorreflexão sobre suas condutas
Uma técnica possível é a de "minuto por ano". Por exemplo, frente a tudo o que foi postulado no artigo.
se a criança tem dois anos, pode ficar dois minutos de casti- Os artigos postados na seção My Kids muito se
go; se tem três, três minutos, e assim por diante. Quanto ao
espaço, é melhor escolher lugares neutros, evitando cômodos
assemelham a um serviço de aconselhamento, pois
que possam ser fonte de diversão, como salas de jogos e neles prolifera o delineamento de atitudes e papéis
televisão. Por último, sempre é bom equilibrar castigos com a serem assumidos pelos pais e mães quando estes
recompensas. [...] Como você lida com o mau comportamen-
to de seus filhos? Você acredita que os castigos são uma boa
objetivam que seus filhos alcancem, no futuro, bom
forma de educar? [grifos meus] desempenho intelectual e social, que sejam flexíveis
(Disponível em: <http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/pais/artigos/casti- e obedientes e que permanentemente busquem a fe- 585
go-um-método-polêmico/>Acesso em: 1º jul. 2013.)
licidade e o sucesso.
O Complexo Kids teve na seção My Kids um ca-
Ao final do artigo, como é possível observar
nal direcionado a veicular informações sobre pro-
pelo excerto transcrito acima, as prescrições al-
blemáticas nele configuradas como atuais e impor-
ternam-se com as perguntas: Como você lida com
tantes para as famílias. Argumento, porém, que o
o mau comportamento de seus filhos? Você acredita
site estudado faz bem mais do que informar e entre-
que os castigos são uma boa forma de educar? Estas,
ter adultos e crianças – ele ensina, pois atua na con-
presumivelmente, conduziriam à reflexão acerca do
figuração de formas de ser criança, de ser mãe e de
atendimento ou não das lições enunciadas no arti-
ser pai ao enumerar, ordenar, classificar e destacar
go, pautadas pelas regras e convenções existentes
procedimentos como “infalíveis” para a solução de
em nossa cultura, que incluem a supremacia dos de-
problemas da vida das crianças e, mais amplamente,
sejos do adulto em relação aos da criança. É possível
da vida familiar.
dizer que o artigo se vale de interessantes estraté-
Veiga-Neto e Lopes (2011;2013) indicam que
gias argumentativas para conduzir seus leitores a
as atuais cartilhas disseminadas por toda parte pa-
admitirem a importância dos castigos: nele se afirma
recem não apontar brechas ou possibilidades para
haver posições divergentes sobre a sua utilização,
Sumário
GIROUX, Henry. How Disney Magic and the Corpo- NARODOWSKI, Mariano Haciaun mundo sin adultos.
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Sumário
1
Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale - Novo Hamburgo – RS. Bolsista e pesquisa-
dora da CAPES. arquitetalucy@gmail.com
² Professor Doutor, titular do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale
valpe@feevale.br
Sumário
digenous community of Kaingang Iraí. To Decree dades Tradicionais, essa comissão redigiu um do-
6,040 / 2007 establishing the National Policy for the cumento, que delimita quatro eixos estratégicos de
Sustainable Development of Traditional Peoples implementação de Política Nacional de Desenvolvi-
and Communities, emphasizing access to traditio- mento Sustentável dos Povos e Comunidades Tra-
nal territories and natural resources, people and dicionais: Acesso aos Territórios Tradicionais e aos
traditional communities they are seen as “culturally Recursos Naturais; Infraestrutura; Inclusão Social; e
different groups and who recognize themselves as Fomento e Produção Sustentável. Diante do expos-
such, which have their own forms of social organi- to, esta pesquisa pretende contribuir para as Políti-
zation, which occupy and use territories and natu- cas Públicas voltadas para as questões habitacionais
ral resources as a condition for their cultural, social, culturais de comunidades indígenas de acordo com
religious, ancestral and economic, using knowledge suas tradições.
generated innovations and practices and transmit- A presente discussão aborda questões como
ted by tradition “(art. 3, inc. I). Faced with these cul- direitos para povos tradicionais, prevista na cons-
tural issues will be discussed with greater focus on tituição de 1988, suas vivências comunitárias, suas
the experience of traditional peoples in community, práticas cotidianas junto a suas inseguranças. Tem 589
their human rights and their culture. como objetivo discutir esses direitos humanos ge-
Keywords: Traditional Peoples. Human Rights. rando conclusões acerca do tema proposto para
Community. Culture. análise desta pesquisa. Nesse sentido serão aborda-
dos primeiramente os direitos humanos para povos
tradicionais e posteriormente conceitos sobre co-
INTRODUÇÃO munidade e direitos humanos. Essa pesquisa abor-
dou uma discussão e análise teórica, justificando a
Para os povos indígenas, a Constituição Fede- mesma por meio da revisão bibliográfica. Para de-
ral de 1988, é um marco histórico, assegura o reco- senvolver essa pesquisa os procedimentos metodo-
nhecimento da organização social e seus costumes, lógicos utilizados foram: analise teórica dos concei-
a língua, suas crenças e tradições (BRASIL, 1988). tos de cultura, povos tradicionais e comunidade e
Para que fossem desenvolvidas políticas públicas direitos humanos tendo como o estudo referencial a
voltadas a esses povos, criou-se a Comissão Nacio- comunidade Indígena kaingang de Iraí.
nal de Desenvolvimento Sustentável das Comuni-
Sumário
POVOS TRADICIONAIS E SEUS DIREITOS É a partir destas categorias que o sistema inter-
nacional de proteção aos direitos do homem enfati-
Será apresentado os marcos teóricos e a funda- za o que veio a ser denominado “era dos direitos”.
mentação da pesquisa, com base nos autores que dia- Pode-se afirmar que, de acordo com o contex-
logam com relação ao assunto proposto como segue: to histórico, novos direitos devem ser assegurados.
Para Kayser (2010) os índios são populações Pinsky (2003), afirma que ser cidadão é ter direito à
tradicionais que se estabeleceram no Brasil há cerca vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante
de onze ou doze mil anos. Hoje já se sabe que na a lei, ou seja, ter direitos civis. É também ter direitos
confluência dos Rios Negro e Solimões, assim como políticos (votar e ser votado) e direitos civis, o que
no Alto Xingu, existiram conglomerados humanos garante a participação de todos na riqueza coletiva:
altamente desenvolvidos. As estimativas dão conta trabalho, educação de qualidade, salário justo, saú-
de dois a cinco milhões de índios quando da chegada de, uma velhice tranquila, a informação não mani-
dos portugueses ao Brasil, sendo registrado um total pulada, a proteção do planeta, informações sobre a
de mil e quatrocentas etnias. Hoje são cerca de seis- bioética e suas consequências, alimentação saudá-
centos mil índios e duzentas e vinte e cinco etnias. vel e para todos, enfim, o respeito às suas escolhas. 590
A Constituição da República impõe ao Estado Para Santos (2008), todos os grupos que pes-
garantir a todos o pleno exercício dos direitos cul- quisam direitos humanos em uma perspectiva in-
turais, com a valorização e a difusão das manifesta- tercultural é a questão da “dignidade da pessoa hu-
ções culturais populares, indígenas, afro-brasileiras mana”. Todas as culturas possuem algum tipo de
e de outros grupos participantes do processo civi- concepção ou prática relacionada com a dignidade
lizatório nacional, em prol da diversidade étnica e humana. Mesmo sem usar a terminologia “direitos
regional (art. 215) humanos”, algo próximo se encontrará. Por exem-
Os direitos dos povos tradicionais são direitos plo, buscar uma vida digna, querer uma vida melhor
culturais e suas formas de expressão, seus modos de para os seus filhos e parentes, para a tribo, clã ou
criar, fazer e viver, suas obras, objetos, documentos, comunidade circundante. Todas as culturas são in-
edificações e demais espaços destinados a manifes- completas e problemáticas nas suas concepções de
tações são bens culturais. dignidade humana. Nenhuma cultura dá conta do
Para Santos, 2008 são chamadas “tradicionais” humano. “Aumentar a consciência de incompletude
por manterem muitos aspectos culturais seculares e cultural é uma das tarefas prévias à construção de
praticarem, sobretudo, a agricultura ou pesca volta- uma concepção emancipadora e multicultural dos
da à subsistência. direitos humanos”.
Sumário
Segato (2006) fala da necessidade de negociação acusamos a sociedade, o modo como está organiza-
ética quando leis modernas instituírem intolerân- da e como funciona. As companhias ou a sociedade
cia a determinados costumes, assim, para a autora podem ser más; mas não a comunidade.
embora se recomende sensibilidade com relação ao Para o mesmo autor, “Comunidade” produz
chamado direito ‘consuetudinário’ e aos costumes uma sensação boa por causa dos significados que
das sociedades indígenas, os direitos próprios não a palavra “comunidade” carrega, todos eles prome-
podem ser contraditórios com os direitos definidos tendo prazeres e, no mais das vezes, as espécies de
pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos prazer que gostaríamos de experimentar mas que
humanos internacionalmente reconhecidos. não alcança mais.
Nas aldeias indígenas existem algumas práticas Na aldeia indígena Kaingang de Iraí vivem cons-
em que são subdividida as tarefas como: os homens tantemente a experiência de estar em comunidade,
são responsáveis pela caça, hoje muitos já estão durante o ano fazem em conjunto seus artesanatos,
adaptado a trabalhar para trazer o alimento para sua sextos, balaios, colares e adornos para comerciali-
família e as mulheres são responsáveis pela colheita zar no litoral e nas cidades turísticas. Quando estão
e pelo cuidado das crianças. Cada aldeia possui suas na reserva indígena trabalham em comunidade e ao 591
regras de acordo com as lideranças locais, para man- saírem para a comercialização de seus artesanatos
ter a organização do povo, exemplo disso é o cacique também procuram sair em grupos para sentirem-se
que tem a função de orientar e ser o chefe de todos mais seguros, normalmente as pessoas mais idosas
na comunidade indígena. Cada comunidade também permanecem na aldeia e os casais mais jovens jun-
tem sua crença, mas o respeito sobre as forças da na- tamente com seus filhos partem para a comerciali-
tureza e dos espíritos dos seus antepassados é muito zação do artesanato.
comum a todas as comunidades indígenas. Para o cacique da aldeia, é necessário que a co-
Para Bauman (2005), a palavra “comunidade” munidade busque outros locais turísticos para con-
sugere uma coisa boa: o que quer que “comunida- seguir comercializar o artesanato. Passam meses
de” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar acampados em locais que as prefeituras lhes provi-
numa comunidade”. Se alguém se afasta do cami- denciam infraestrutura para suas necessidades bá-
nho certo, frequentemente explicamos sua conduta sicas. Durante esse tempo que se distanciam de sua
reprovável dizendo que “anda em má companhia”. comunidade, muitas vezes passam medo e necessi-
Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê dades e afastam-se de seus costumes diários da al-
persistentemente privado de uma vida digna, logo deia adaptando-se ao meio em que estão inseridos.
Sumário
Castel (2005) parte da constatação de que as so- prietários podem proteger-se por si mesmos, com
ciedades modernas são construídas sobre o alicerce seus recursos.
da insegurança, pois não encontram em si a capaci- Ainda para o mesmo autor, propõe uma forma
dade de assegurar proteção. Em contraste, nas so- de combater a insegurança social: primeiramente,
ciedades pré-industriais a segurança do indivíduo reconfigurando as proteções sociais por meio de
era garantida a partir de sua pertença à comunidade: uma personalização no regime das proteções. Tra-
a chamada proteção de proximidade. A sociedade ta-se de ajustar a especificidade dos problemas das
moderna tem como premissa a promoção do indiví- populações. Ser protegido em uma sociedade mo-
duo. Ele é reconhecido por si mesmo, independente- derna, em uma sociedade de indivíduos é poder
mente de sua inscrição em um grupo ou coletivida- dispor de direitos e de condições mínimas de inde-
de. Trata-se de uma sociedade individualista. pendência, lembrando que a proteção social não é
Para Bauman (2005), a comunidade de entendi- somente a concessão de benefícios, mas uma con-
mento comum, mesmo se alcançada, permanecerá, dição básica para todos. A proteção social é a con-
portanto frágil e vulnerável, precisando para sem- dição para formar uma sociedade de semelhantes, o
pre de vigilância, reforço e defesa. Pessoas que so- que podemos chamar de democracia. 592
nham com a comunidade na esperança de encontrar Para Bauman (2005) na prática, significava ho-
a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta mogeneidade nacional e dentro das fronteiras do
lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertar- Estado só havia lugar para uma língua, uma cultura,
-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e uma memória histórica e um sentimento patriótico.
arriscadas, serão desapontadas. As comunidades étnicas ou locais eram os habitu-
A comunidade indígena Kaingang de Iraí busca ais suspeitos e os inimigos principais. A perspectiva
viver em coletividade e não de forma individualista aberta pelo projeto de construção da nação para as
e assim, conseguir comercializar seus artesanatos o comunidades étnicas era uma escolha difícil: assimi-
que lhes garante uma renda para fazer nova produ- lar ou perecer. As duas alternativas apontavam em
ção artesanal para comercializar. última análise para o mesmo resultado. A primeira
Castel (2005) lembra que não foi por acaso que significava à aniquilação da diferença, e a segunda
a propriedade foi colocada na categoria dos direitos a aniquilação do diferente, mas nenhuma delas dei-
inalienáveis e sagrados da Declaração Universal dos xava espaço para a sobrevivência da comunidade.
Direitos Humanos e Cidadãos. Os indivíduos pro-
Sumário
CULTURA E POVOS TRADICIONAIS tação que, por não se discutirem, dadas a sua evi-
dência, tornam possível a produção e a troca de ar-
Para os povos indígenas, a Constituição Fede- gumentos. [...] A hermenêutica diatópica baseia-se
ral de 1988, é um marco histórico, pois assegura o na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por
reconhecimento da organização social e seus cos- mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto
tumes, a língua e suas crenças e tradições (BRASIL, a própria cultura a que pertencem. Tal incompletu-
1988). Para que fossem desenvolvidas políticas pú- de não é vivível a partir do interior dessa cultura,
blicas voltadas a esses povos, criou-se a Comissão uma vez que a inspiração à totalidade induz a que se
Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Co- tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica
munidades Tradicionais, essa comissão redigiu um diatópica não é, porém, atingir a completude – um
documento, que delimita quatro eixos estratégicos objetivo inatingível mas, pelo contrário, ampliar ao
de implementação de Política Nacional de Desen- máximo a consciência de incompletude mútua atra-
volvimento Sustentável dos Povos e Comunidades vés de um diálogo que se desenrola, por assim dizer,
Tradicionais: Acesso aos Territórios Tradicionais e com um pé numa cultura e outro, noutra.
aos Recursos Naturais; Infraestrutura; Inclusão So- A Cultura tem sido definida como um conjunto 593
cial; e Fomento e Produção Sustentável. complexo de códigos que asseguram a ação coletiva
A noção de cultura carrega definitivamente a de um grupo (LÉVI-STRAUSS, 1950).
marca antropológica. “Cultura ou civilização é este Para Velho e Viveiros (1978), a Cultura pode ser
todo complexo que inclui conhecimento, crença, concebida como um sistema de símbolos, organiza-
arte, leis, moral, costumes, e quaisquer outras capa- dos em diversos subsistemas. Neste sentido, o com-
cidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto portamento humano é percebido como apresentan-
membro da sociedade” (TYLOR, 1871, p. 1). do, para além dos aspectos puramente técnicos ou
Pra Santos (2008), num diálogo intercultural, pragmáticos, um componente simbólico, expressivo.
a troca ocorre entre diferentes saberes que refle- A noção de cultura como sistema simbólico
tem diferentes culturas, ou seja, entre universos de aponta, ademais, para natureza social do compor-
sentido diferentes e, em grande medida, incomen- tamento: esses símbolos são decodificados a partir
suráveis. Tais universos de sentido consistem em de um código comum a um grupo. Desta forma, um
constelações de topoi fortes. Os topoi são os lugares dos métodos de identificação das fronteiras de uma
comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura particular é o exame da capacidade ou não
cultura. Funcionam como premissas de argumen- de um dado símbolo ser decodificado.
Sumário
A ÁREA INDÍGENA KAINGANG DE IRAÍ E genas Kaingangs no Brasil. Também pode-se visu-
SUA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL alizar na imagem abaixo a localização da cidade de
Iraí próximo a divisa de Santa Catarina, onde loca-
Nesta etapa da pesquisa será abordada a forma liza-se a aldeia Indígena Kaingangde Iraí com popu-
como a comunidade tem se organizado em seu ter- lação de 500 indígenas. Ao chegar ao município de
ritório demarcado. Iraí, que possui aproximadamente 8.020 habitantes
A sociedade era, de fato, um mero conglomera- e destes, 500 são indígenas, possui área da territorial
do de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da de 180,962 km².Os acessos até a aldeia até o bal-
África ou nativos daqui, ativadas pela mais inten- neário se dá por pavimentação de pedra, chamada
sa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizi- calçamento e após o balneário o acesso é apenas de
mação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na terra e cascalho.
descaracterização cultural dos contingentes indíge- Os Kaingangs inicialmente ocuparam as mar-
nas e africanos (RIBEIRO, 1995, S.P. versão digital). gens do Rio Mel, junto ao Balneário de águas ter-
Segundo IBGE – 2015, os primitivos habitantes mais, área que foi expropriada em 1979, pela Prefei-
do atual município de Iraí foram os índios da tribo tura e retomaram suas terras em 1993, a área em que 595
Kaingang. Esses índios já conheciam as proprieda- foi demarcada incluiu as instalações do aeroporto e
des curativas das fontes termais existentes junto a torna-se reserva indígena em agosto de 1993, homo-
um arroio, em cujas margens havia inúmeras col- logada em outubro de 1993, registrada no Registro
méias. Estes denominavam esta região por Irahy de Imóveis de Iraí em março de 1994 e na Secretaria
que na língua indígena significa Águas do Mel. Ter- do Patrimônio da União - SPU em abril de 1994 com
mo que deu o nome do município. área demarcada de reserva 279,98 hectares localiza-
O indígena contribuiu, principalmente, na qua- da as margens do Rio Mel até a barra no Rio Uru-
lidade de matriz genética e de agente cultural que guai no Município de Iraí, RS.
transmitia sua experiência milenar de adaptação No acesso principal da aldeia encontra-se os
ecológica às terras recém-conquistadas. (RIBEIRO, serviços de infraestrutura que atende a comunidade,
1995, p. 72). possui uma escola bilíngue, posto de saúde com aten-
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e dimento médico e enfermeiras, igrejas, uma grande
Estatística - IBGE, em São Paulo é existente 110 área de preservação permanente, campo de futebol,
Kaingang, Paraná 11.735, Santa Catarina 5.040, no casa cultural em forma arredondada, e açudes.
Rio Grande do Sul 17.231 totalizando 34.116 indí-
Sumário
¹ Doutoranda em Turismo e Hospitalidade pela Universidade de Caxias do Sul/RS. Mestre em Turismo pela Universidade de
Caxias do Sul. Bacharel em Turismo pela Faculdade Estácio de Alagoas/AL.
² Mestre em Turismo pela Universidade de Caxias do Sul/RS. Bacharel em Turismo pela Universidade Católica de Pernambuco/
PE. Professora do Instituto Federal de Alagoas, Campus Marechal Deodoro.
³ Doutorando em Arquitetura e Urbanismo (Cidades) e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, Brasil.
Bacharel em Turismo. Docente Efetivo da graduação em Turismo da Universidade Federal de Alagoas.
Sumário
firmada pelas provas empíricas (Bacon, Newton), nhecimento. Ao situar esses processos, a autora ex-
o critério de cientificidade é a confirmabilidade. O plana sobre a existência subjacente de concepções
progresso científico é acumulativo e consequente- de ensino, na escolha, por parte do professor, de
mente surgem o cientificismo e o dogmatismo. um desses processos de obtenção de conhecimento,
O autor também apresenta na contemporanei- concepções essas, que podem estar atreladas à trans-
dade outra concepção de ciência, na qual o mundo missão do conhecimento, objetivando conteúdo ou
é explicado hipoteticamente, ou seja, conjectural- a orientação do aprendiz, para que esse aprenda a
mente. O método é dedutivo – hipotético, o crité- produzir o conhecimento, identificando ações-pro-
rio de cientificidade é a falseabilidade (segundo Po- blema com as quais poderá lidar. Santos (2001, p.71)
pper). Aqui apresenta-se uma ruptura com a ideia vincula o privilegiamento, no ensino, do acesso ao
de que o processo de conhecer é uma consequência conhecimento como um fim em si mesmo, à ciência
do registro de impressões sensoriais extraídas dos moderna; também do acesso ao conhecimento pro-
fatos do intelecto, originando leis e teorias com o duzido como parte do processo de produzir conheci-
auxílio da lógica. A dúvida faz parte do processo de mento, à ciência contemporânea.
conhecer, a delimitação de problemas é resultante A autora ainda continua afirmando que quan- 602
de quadros de conhecimentos disponíveis, de mo- do o ensinar consiste na orientação para a apren-
delos teóricos. Não há ponto de chegada, ou seja, o dizagem e o desenvolvimento do comportamento
critério de cientificidade Progresso científico: revo- de investigar, ele assenta suas bases na concepção
lucionário e a corroboração e validade é temporária contemporânea de ciência, em que a cultura cientí-
(KÖCHE, 2005). fica, em face aos problemas delimitados, é colocada
Dentro desse panorama, situamos a educação, e em permanente questionamento. Nessa perspectiva,
nesta, o ensino formal, que é influenciado pelas con- fundem-se, no ensino, o processo científico e o peda-
cepções de ciência, educação e sociedade e que, ao gógico: uma pedagogia fundamentada no processo
mesmo tempo as influenciam. Mais especificamente científico consiste essencialmente no ato de facilitar,
no que se refere ao ensino, vale pontuar as conside- de criar condições para que se aprenda a produzir
rações de Santos (2001), quando assinala que o en- conhecimentos científicos (SANTOS, 2001, p. 71).
sinar se configura sob dois processos básicos: o pri- Essas considerações corroboram as inter-rela-
meiro tem o acesso ao conhecimento como um fim ções entre ciência, educação e sociedade. O ensino
em si mesmo; o segundo, o acesso ao conhecimento acompanha, assim, o desenvolvimento da ciência,
produzido como parte do processo de produzir co- o que atualmente, implica refutar o princípio das
Sumário
soluções acabadas, além de alicerçar a prática pe- a falsa autonomia das disciplinas, as quais não per-
dagógica em problemas e situações cotidianas da mitem acompanhar as mudanças no processo peda-
(KÖCHE, 2005). Na realidade, como Santos (2001, gógico e a produção de conhecimentos novos. Disso
p. 65) adverte, “As dimensões do processo formal decorre que a interdisciplinaridade, reconhecido o
de ensinar ultrapassam em muito as ações exterio- fenômeno, impõe-se, de um lado, como uma neces-
rizadas numa sala de aula. Múltiplas relações estão sidade epistemológica e, de outro lado, como uma
presentes no ato de ensinar, justificando-o, funda- necessidade política de organização do conheci-
mentando-o, orientando-o ou objetivando-o”. mento, de institucionalização da ciência (PAVIANI;
Ainda é possível destacar que a união entre a BOTOMÉ, 1993).
ciência e a educação pode gerar um processo inter-
disciplinar. Relato de experiência de docentes do curso de turismo
Quando discutimos conceito e distinções pre- sobre Observatório de Turismo e Cultura da Região
liminares é possível sinalizar significados de inter- Metropolitana de Recife
disciplinaridades. Paviani; Botomé (1993) explicam
que, em síntese, ela pode ser vista ora como teoria O presente relato de experiência será balizado 603
epistemológica, ora como proposta metodológica, tanto pelo aporte teórico inicial estabelecido em
ora como modalidade de aplicação de conhecimen- projeto desenvolvido pelo Núcleo docente estrutu-
tos de uma disciplina, ora como modalidade de co- rante do curso de Turismo e também pelas mono-
laboração entre professores e pesquisadores. Entre- grafias intituladas “Ciclo de Evolução e Planejamen-
tanto, os autores apontam para crise das disciplinas to turístico na Ilha de Itamaracá” e o “Observatório
e dos excessos de fragmentação de conhecimentos de Turismo da Região Metropolitana de Recife/PE
e de especialização impossibilitando muitas vezes a (OBTUR/RMR), FACOTTUR: relato de experiência”.
visão do todo. Nesse sentido O observatório de Turismo da
Nesse sentido, ainda sob a égide dos autores Região Metropolitana de Recife/PE (OBTUR/RMR)
mencionados a origem da interdisciplinaridade é foi pensado e concretizado baseado em dois prin-
alocada nas transformações dos modos de produzir cípios: no processo empreendedor e no desen-
a ciência e de perceber a realidade e, igualmente, volvimento regional (NDE, 2012). Entendemos,
no desenvolvimento dos aspectos político-adminis- nesse contexto, o processo empreendedor, como ca-
trativo do ensino e da pesquisa nas organizações e minho para aflorar as competências pelos discentes,
instituições científicas. Mas, sem dúvida, entre as em que os mesmos consigam identificar e avaliar
causas principais estão a rigidez, a artificialidade e oportunidades, transformar as mesmas em ações
Sumário
efetivas, concretizar análise de custos, e a busca de ou uma nova comercialização para produtos, e
captação de recursos e por fim desenvolver a capa- organizando um novo setor.
cidade gerencial (DORNELAS, 2008).
Ao sensibilizar os discentes em relação ao
Para desenvolver tais aptidões, entende-se que
processo empreendedor cria-se um elo em que os
a escola pode ser um ambiente que possibilite con-
alunos atente-se também em sua responsabilidade
dições para que os alunos desenvolvam aptidões
social, com enfoque no desenvolvimento regional,
para lidar com recursos limitados, correr riscos e
entende-se tal conceito no OBTUR/RMR de desen-
tolerar o fracasso e o erro, ter perseverança e deter-
volvimento regional como:
minação, competir, buscar liberdade e autonomia,
superar limites e promover mudanças inovadoras o desenvolvimento regional não é o resultado de
(SCHUMPETER, 1952) uma construção apenas teórica ou acadêmicas
Tendo ciência da afirmação de (DRUKER,1974, do conceito de desenvolvimento, mas sim uma
necessidade real, uma forma de gerir mais efi-
p.25) “[...]Empreendedorismo não é nem ciência, cazmente os fatores de desenvolvimento, tanto
nem arte. É uma prática”. Buscou-se promover si- no melhor uso dos recursos como na garantia
tuações em que os discentes fossem estimulados as de uma maior participação dos diferentes atores.
Deve, ainda, procurar soluções para os proble-
604
ações empreendedoras em que pudessem ser desa-
mas criados pela dinâmica da economia global,
fiados desenvolver a sua a autonomia, independên- especialmente no que respeita atenuação dos,
cia, capacidade de gerar o próprio emprego, de ino- cada vez mais, evidentes desequilíbrios espaciais
var e gerar riqueza, capacidade de assumir riscos e (IPADES, 2010).
de crescer em ambientes instáveis, porque esses re-
presentam os valores sociais que conduzem um país Apropria-se então do processo empreendedor
ao desenvolvimento (DORNELAS, 2008; SCHUM- como uma perspectiva de que as ações pensadas
PETER, 1952; DRUCKER, 1974). por, para e pelo aluno devem-se estar atrelada à me-
Enfatiza-se as recomendações de Schumpeter lhoria da qualidade de vida da população. Associan-
(1952, p.52) em que: do ao turismo pode conduzir a mudanças no que se
refere às questões sociais, culturais, econômicas e
A função do empreendedor é reformar ou revo- ambientais.
lucionar o padrão de produção explorando uma Portanto entende-se que o planejamento tu-
invenção ou, de modo geral, um método tecnoló-
gico não experimentado para produzir um novo rístico, é uma ferramenta essencial para que essas
bem ou um bem antigo de maneira nova, abrin- transformações possam ocorrer. Molina e Rodrí-
do uma nova fonte de suprimento de materiais guez (2001, p. 79) esclarecem que:
Sumário
⁴ Considerado um dos autores mais citados nos estudos sobre destinações turísticas, Butler (1980) desenvolveu um modelo, em
língua inglesa denominado TALC - Tourism Area Life Cycle, no qual que distingue fases evolutivas de uma área, ou região
turística: exploração, envolvimento, desenvolvimento, consolidação e estagnação. Esta última podendo desencadear declínio
ou rejuvenescimento.
Sumário
micos da IES, tornou-se assim a Ilha de Itamaracá gorias com subtipos, categoria de infraestrutura de
na primeira parceira do OBTUR/RMR localizada a apoio ao Turismo, equipamento e serviços turísti-
aproximadamente 60 quilômetros de Recife, com cos e, por fim, atrativos Turísticos. (TURISMO,2011)
população de aproximadamente 25 mil habitantes.
Devido a magnitude da localidade e os nossos Tabela 1 - Atividades e resultados para a realização de Pla-
nejamento e organização do Turismo no Município da Ilha
recursos humanos, matérias e físicos, não poderí- de Itamaracá 2012/2013
amos fazer o planejamento turístico de toda cida- Período
Bairros Atividades Resultados Esperados
Letivo
de em um único momento e com uma única turma, Pilar;Jaguaribe Realização do
nesse contexto, a Ilha de Itamaracá foi zoneada em Vila Velha; Inventário Turístico:
Inventário da Oferta
4º 2012.1 Forte Orange Relação e
duas partes: Central compreendendo os bairros de Coroa do avaliação dos
Turística.
Relatório da Pesquisa
Pilar, Jaguaribe, Forte Orange, Coroa do Avião e Avião Atrativos Turísticos,
Equipamentos e
de Demanda Turística;
Relatório da Pesquisa
Vila Velha, atividade que foi realizada em 2012, e os Praia do
serviços Turísticos,
com a Comunidade;
Infraestrutura Turística
Bairros praia do sossego, enseada dos golfinhos e a Sossego e pesquisas de
Relatório da Pesquisa
4º 2013.1 Praia Enseado Demanda turística, com o Empresariado
comunidade do Chié realizada em 2013. comunidade com a comunidade,
Relatório de Pesquisa
de Chié com o Poder Publico
As atividades foram divididas em da seguin- Empresariado e Poder
606
Publico
te forma: os alunos do então 4º período fariam o Pilar;Jaguaribe
inventário Turístico, norteada pelos documentos 5º Período
Vila Velha
Forte Orange
confeccionados e divulgados pelo Ministério do Tu- 2012.2
Coroa do Diagnostico Turístico
Avião Plano de
rismo, que foi lançado no ano de 2008 e reformu- das Localidades;
Prognostico Turístico
Desenvolvimento
Praia do Turístico das
lada em 2011 , Intitulado INVTUR, que se tratava Sossego das Localidades;
comunidades
5º Período Praia Enseada Diretrizes de ação;
em realizar um inventário da Oferta Turística Na- 2013.2 dos Golfinhos
cional para Levantamento, identificação, e registro Comunidade
do Chié
dos atrativos, dos serviços e equipamentos turís- Fonte: OBTUR/RMR2012
ticos e da infraestrutura de apoio ao turismo cujo
objetivo ser um instrumento de base para ações de Ao final das atividades do período, como re-
planejamento, gestão e promoção da atividade tu- sultado gerou-se um conjunto de documentos que
rística. (TURISMO, 2011). Para tal ação o Ministério auxiliariam o processo de planejamento Turísti-
de Turismo desenvolveu materiais norteadores, ins- co da destinação Ilha de Itamaracá, entretanto por
trumentos de pesquisa, os formulários de pesquisa descontinuidade na Gestão municipal, apenas con-
e manuais operacionais. Organizados em três cate- solidou-se o Projeto do Centro de Informações Tu-
Sumário
rísticas e a elaboração dos materiais a serem distri- seja, assimilado pelos caminhos da ação material sem
buídos no mesmo. conceituação, da ação com conceituação e da ação
decorrente de abstração refletida, decorrem como
Processo pedagógico de metacognição: novo aporte te- três fases do processo de tomada de consciência.
órico metodológico balizado por uma discussão espe- Desse modo, tendo esses princípios como basi-
cializada lares do nosso fazer docente e incorporando outro
campo de conhecimento aos nossos próprios é que
A metacognição como experiência pedagógica aproximamos e agora de Lefebvre (1992). Perspecti-
marca ponto atual de caminha docente e de pes- va teórica que parece possibilitar complexidade, in-
quisa dos pesquisadores, no sentido de que a busca terdisciplinaridade e realocação emergencialmente
pela criação contínua de novas estruturas, seja teó- da condição humana, no processo de produção do
rica, seja metodológica permitem ao sujeito, novos meio em que vive e elabora.
saltos científicos, educacionais, didáticos. As ex- Nesse sentido, evocamos o conceito de espaço
periências pedagógicas relatadas e sua percepção (no seu sentido socializante, a partir de Lefebvre),
unida a compreensão sobre interdisciplinaridade atrelando e dele extraindo uma compreensão acerca 607
fez implicar, mesmo que inicialmente, propiciou do que seja o espaço turístico. Lefebvre (1992), em
novas conexões teoria-prática útil e que contribuí sua obra “A produção do espaço” trabalha o concei-
para formação de base para a proposição de futuras to de espaço social, o qual é proposto como um pro-
ações dos pesquisadores. duto de relações sociais de produção e reprodução.
Nesse sentido, De acordo com Piaget (1978 e Conforme esse autor, o espaço é um produto social,
1995), a aprendizagem humana é complexa e o de- não podendo ser resumido às suas características fí-
senvolvimento dos conhecimentos ao longo da vida sicas (natureza), sendo estas transformadas pelo in-
se estrutura por meio de acontecimentos diários, cessante agir social mediado pelo trabalho humano.
quando os sujeitos interagem com o meio. Apro- Conforme tal concepção, podemos compreen-
priando-se dos meios dessa ação o sujeito percebe der que o espaço social não é um mero determinante
os significados subjacentes a eles, volta para si e ela- ou produto da ação humana, essa relação é dialética,
bora ou reelabora o “conhecido”, toma consciência. sendo a ação do homem em sociedade, através da
Quando a dimensão teórica se aproxima do mundo modificação da natureza (trabalho) uma constante
do sujeito é possível perceber que, segundo Piaget, a para a reconstrução dessa dinâmica.
passagem de uma ação prática a uma ação teórica, ou
Sumário
endedorismo e o desenvolvimento regional. En- LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Bla-
tretendo, ficou marcado que ambos os enfoques ckwell. 2. ed., 1992.
se mostraram limitantes no processo de planejar a DORNELAS, José.Carlos. O Processo Empreendedor-
destinação turística. Editora Elsevier. Disponível em: <http://www.josedornelas.
Assim, recorrendo ao processo pedagógico de com.br/wp-content/uploads/2008/02/ empreendedorismo_
metacognição para tomada de consciência, teórica capitulo_2.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2011.
e metodológica, percebendo a necessidade de se re-
DRUKER, Peter Ferdinand. Inovação e espírito empreen-
correr a outro campo teórico, como aquele inaugu- dedor. Editora Pioneira, 1987
rado por Lefebvre (1992), e incorporado por outros
autores para o turismo, como Cruz (s.d.), e ainda FACOTTUR. Núcleo Docente Estruturante do Curso
trazer tais reflexões para interpretar o modelo de Bacharelado em Turismo, 2012.
Butler (1980), pode-se ampliar teórica e metodolo-
MOLINA E, S.; RODRIGUEZ A., S. Planejamento integral
gicamente a possibilidade de se desenvolver aporte do turismo: um enfoque para a America latina. São Paulo:
para o desenvolvimento de observatório(s) de tu- EDUSC,2001.
rismo no Estado de Alagoas. Este está em fase de 609
desenvolvimento, no que diz respeito ao campo te- PAVIANI, Jaime.; BOTOMÉ, S.P. (1993). Interdisciplinari-
dade: disfunções conceituais e enganos acadêmicos. Caxias
órico e metodológico. do Sul: EDUCS.
610
Sumário
A NEW WAY TO READ: THE SCENIC PLAYFULNESS Abstract: The theme of the practice “Ludo pedago-
WITH FOCUS OF MULTIPLE LANGUES. MEDITATION gic with stage arts as reading mediation” presents
AND READING FOR CHILDREN FROM ZERO TO major challenge because our literary universe is
THREE YEARS OLD
still attached to written communication . One of the
prominent hypotheses is that “Scenic Playfulness”
Márcia Elisa Heck Thiele1
can contribute as a reading mediation for children
between zero to three years old. Instituting the ludo 611
Resumo: O tema da prática “Ludopedagógica com
logic of the scenes in children stories. Therefore the
Artes Cênicas na Mediação de Leitura” apresenta
study focuses in the latest communication langua-
um grande desafio, pois o nosso universo literário
ges. Some concepts about “playfulness” are seen as
ainda está muito preso à comunicação escrita. Uma
a way to play, going towards the natural children
dentre as hipóteses destacadas, é a de que a “Lu-
development. There are already some results in the
dicidade Cênica,” pode contribuir na medicação de
language acquisition with this new way of reading
leitura com crianças de zero a três anos, instituindo
stories, that are instituted from playing, in the ludo
a lógica lúdica das cenas das histórias infantis, O
logic of physical expressiveness of the children.
estudo focaliza por isso, as múltiplas linguagens na
Keywords: Playfulness. Stage arts. Reading. Me-
comunicação, algumas concepções sobre a “ludici-
diation.
dade”, vista como forma de brincar, indo de encontro
¹ Especialização em Psicomotricidade e Ludopedagogia aplicada à Educação Infantil e Séries Iniciais pela FAMEPLAN- S/C.
Graduada em Letras e Literatura; Direito Bacharelado, E-mail do autor marciat@feevale.br.
Sumário
² Respostas de alunos do ensino fundamental em visita à Escola Municipal XX – NH/RS. Esse depoimento foi colhido específ-
ico para este artigo, no momento de intervalo, na escola.
Sumário
a escola passa a ser reconhecida pela comunidade sejo que se expressa na genuína comunicação corpo-
como um espaço de ensino que os conduzirá a um ral, no desejo íntimo, próprio da infância. É por isso
futuro próximo, de melhores possibilidades de vida que as crianças não vão à escola para serem transfor-
e de trabalho, e de convivência social. madas em unidades produtivas do futuro. É por tais
Entretanto, a nossa escola gaúcha está muito in- razões que se exigem modificações na dinâmica co-
defesa frente à prática da violência, que se propaga a municativa de nossa escola. Vivemos em um tempo,
cada dia. Muros foram erguidos ao lado de guaritas que nos pede transformações no ambiente escolar.
de segurança e portões que passam constantemente Mudanças, essas, que nos permitam acolher as crian-
fechados. A violência interna nas escolas represen- ças em novos e diversificados contextos, e que assim,
tada pelo quebra-quebra, pela bagunça, pelas picha- contribuam para o seu desenvolvimento pleno.
ções, pela briga entre os grupos rivais, pelo ingresso No que se refere à construção do espaço e as
das drogas, revela o comportamento competitivo do diferentes linguagens, Maria da Graça Souza Horn
estudante, que resulta na agressividade cujas causas (2004), em seu livro “Sabores, Sons, Cores e Aromas:
vão desde um lanche diferente, que um aluno traz, A construção do espaço na educação Infantil” salien-
até, um simples toque no corpo do colega. ta que, também a professora, ao encaminhar as ins- 614
É um tempo de novas exigências, que se situa no truções para uma situação de aprendizagem, deve-
contexto escolar. Com isso queremos reforçar, que o rá apresentar-se por meio de diferentes linguagens.
espaço para as crianças pequenas não deve ser sem- Nesse novo contexto, a criança poderá compreender
pre o mesmo. As crianças apresentam necessidades que é possível expressar-se de modos diversos e que
físicas, sociais, intelectuais, para elas, o mundo é um cada um, poderá escolher a linguagem mais adequa-
vasto parque de diversões. As coisas que descobrem da as suas habilidades. Assim, os procedimentos e
são fascinantes, cada olhar é um convite ao desafio técnicas de ensino se tornam mais flexíveis, abertos
do aprender. Entretanto, quando a criança ingressa e dinâmicos, estimulando a exploração ativa do am-
na escola que oferecemos, os seus olhos curiosos são biente escolar, promovendo a possibilidade da crian-
subtraídos do fascínio das coisas do mundo que a cer- ça movimentar-se, manipular, jogar e experimentar,
ca, são obrigadas a seguir aquilo que os programas sem a constante intervenção do educador.
curriculares as obrigam. Será possível aprender sem Horn (2004) sustenta que, para o berçário, os
que os olhos estejam fascinados? As crianças são en- espaços devam contemplar o favorecimento de cir-
tes, que gostam de brincar, rir, elas têm o direito de culação e movimento das crianças. É, necessário,
descobrir o mundo por vontade própria, por um de- segundo a autora, uma área com atrativos para
Sumário
brincadeiras e outra, apropriada ao descanso. Aos tação, e permite também, interferências feitas por
grupos maiores, devem ser oferecidos ambientes quem conta. A história, permite a auto – identifi-
com diferentes áreas de interesse como: casinha, jo- cação, favorece a aceitação de situações desagra-
gos, histórias, artes, teatro, música, de forma a pos- dáveis, ajuda a resolver conflitos, agrada a todos de
sibilitar acesso aos materiais. A autora depõe que, a modo geral, sem distinção de idade, classe social, de
interação entre as crianças aumenta consideravel- necessidades de vida ou circunstância. Ela amplia as
mente, observando-se a ampliação de formação de relações sociais e nos faz compreender o mundo sob
parcerias, principalmente entre as crianças de ida- novos pontos de vista.
des diferentes, pois juntas, descobrirão novas regras A autora defende em seu livro “Leituras em
ou criarão novas possibilidades. Contraponto: Novos Jeitos de Ler” que a “Literatura”,
Na medida em que, crescem, as crianças estabe- diferente dos outros textos, nos faz pensar na contra
lecem novas e mais complexas relações, resultantes mão de sua mensagem.
de modificações e conquistas. Aproveitando algu- Todo indivíduo, segundo Cagneti (2013), apren-
mas palavras de “Soeli de Souza Cagneti” (2013) em de quando descobre. Nesse sentido, ela afirma: “...
que se entende que um livro de histórias pode fazer é por isso que quem lê de verdade, não aceita tudo 615
sorrir, cantar e dançar! A Literatura nos serve muito como uma verdade.” Para Soeli Cagneti (2013), o
bem, pois ela é a “arte” que traduz a vida. Segundo eterno buscar faz parte da vida humana, pois lemos
a autora, já está comprovado que a força da histó- a partir da bagagem de vida, do momento que expe-
ria é tão grande, que aproxima narrador e ouvintes rimentamos. Quando lemos uma história, segundo
numa vibração recíproca, de troca, de sensibilida- a autora, lemos a nossa história através dos perso-
des, a ponto de transformar o ambiente real, em um nagens, é a mensagem que aflorou por meio deles.
lugar de magia e encantamento. Por isso, o conta- É, importante para ela, quebrar alguns paradigmas
dor de histórias deve lembrar que a escolha das his- e compreender que precisamos reconstruir, ler, para
tórias é essencial, ele apenas conta o que aconte- mudar opiniões, pois não é o que se diz, mas como
ceu e empresta a sua criatividade para dar vida aos se diz, encontrando a melhor forma de se expressar,
personagens, cuidando para escolher bem o texto, de como transmitir o que se leu.
recriando-o na linguagem oral, sem prender-se às A escola, assim como a biblioteca, está pauta-
limitações impostas pela escrita. da numa nova perspectiva de leitura. Um novo jeito
Para Cagneti (2013), a história é que motiva o para ler as histórias, que se constitui como um novo
contador na escolha de recursos para a apresen- caminho de estratégia pedagógica, um contar para
Sumário
brincar com a literatura infantil, e dar significação, Para Vygotsky (1991), o que define o brincar é
estabelecer um novo canal comunicativo, por meio a situação imaginária criada pela criança. Além dis-
da “Ludicidade Cênica”, para a mediação de leitura so, devemos levar em conta que o brincar preenche
com crianças não letradas. necessidades que mudam de acordo com a idade.
Diante de tamanha revelação, fica mais que Vygotsky (1991), ilustra sua teoria com o seguin-
evidente para este estudo, que a mediação de leitu- te exemplo: “Um brinquedo que interessa a um bebê,
ra, como forma de teatralidade, ainda é um desafio deixa de interessar a uma criança mais velha. Des-
para o educador que nesse processo necessita de sa forma, a maturação dessas necessidades, são de
formação. suma importância para entendermos o brinquedo da
criança como uma atividade singular.” O autor en-
1.2 Encontros Literários por meio da Ludicidade Cênica tão conclui, que as crianças querem satisfazer certos
desejos, que muitas vezes, não podem ser satisfeitos
Nossas aventuras na “Bebeteca” da escola, tem imediatamente. Segundo ele, outro exemplo disso, é
relevância com o brincar no aprendizado da criança, o da criança que quer ocupar o lugar da mãe, porém,
garantindo-se por isso, como um espaço fundamen- esse desejo não pode ser realizado imediatamente. 616
tado segundo a Bettelheim (1988), Vygotsky (1991), Como a criança pequena não tem a capacidade de
Negrine (2012), FARIA, (2013), demonstrando alcan- esperar, cria um mundo ilusório, onde os desejos ir-
çar resultados muito eficazes na dinâmica comuni- realizáveis podem ser realizados. Esse mundo é o
cativa e no estímulo ao prazer pela música e ludici- que Vygotsky (1991), chama de brincadeira: “... A
dade, presentes na relação social que se estabelecem imaginação é uma atividade consciente... surge ori-
nos encontros literários de mediação de leitura. Tal- ginalmente da ação. Jogo Simbólico é um mecanismo
vez não haja um objeto tão interdisciplinar quanto o comportamental que possibilita a transição de coisas
livro, tão humano e saboroso, tão próximo do outro. como objetos de ação para coisas como objetos de pen-
Assim, é por meio da ludicidade, que se estabelece samento.” p.122
um encontro humano de sujeitos, em um contra- Em seu livro: “Uma vida para seu filho – Pais
ponto lúdico de espaço e tempo poéticos. A Ludici- Bons o Bastante”, Bettelheim (1988), afirma que atra-
dade Cênica se institui naturalmente na mais tenra vés das fantasias imaginativas e das brincadeiras as
idade, pois todo e qualquer conhecimento começa crianças podem começar a compensar as pressões
com a expressividade corporal, com o brincar con- que sofrem na realidade do cotidiano. Assim, en-
sigo mesmo. quanto representam fantasias de ira e hostilidade
Sumário
em jogos de guerra ou preenchem seus desejos de lizem seus jogos, é fundamental, definir as pautas
grandeza, imaginando ser “o Super- Men, o Hulk, o de intervenções pedagógicas para ajudar a criança
Batman” ou um rei, estarão procurando a satisfação a evoluir a partir da atividade lúdica. Segundo o au-
indireta, através de devaneios reais, ao mesmo tem- tor, o trabalho sustentado nesta ação, permite infe-
po, que, procuram livrar-se do controle dos adultos, rir com base nas observações seletivas que são rea-
especialmente dos pais. Segundo o autor, as crian- lizadas, que a capacidade de imitar sinaliza, de certa
ças são capazes de lidar com complexas dificuldades forma, os avanços da capacidade perceptiva e do de-
psicológicas através do brincar. Elas procuram inte- senvolvimento do pensamento, fundamentalmente,
grar experiências de dor, medo e perda. Lutam com das transformações dos processos mais elementares
conceitos de bom e mal. O triunfo do bem sobre o em processos superiores. Para ele, observar a crian-
mal dos heróis protegendo vítimas inocentes é um ça brincar sem bases teóricas, significa deixar es-
tema comum na brincadeira das crianças. capar a essência do ato: “Quando falta fundamento
Airton Negrine (2012), em sua obra “O Corpo na teórico, fica difícil compreender o que ocorre quando
Educação Infantil”, defende que as atividades podem a criança brinca.” p.74
ser simples exercícios e não jogos, possuindo assim: Assim, Fabiana Faria (2013), em seu artigo: “Be- 617
significado, repetição, variação, ruptura, união e a beteca: Lugar de pequenos leitores” publicado na re-
imitação, assim gerando reações psíquicas e físicas vista “Nova Escola”, explica que ao criar um espaço
ao mesmo tempo. A “prática psicomotriz educativa” de mediação de leitura para crianças não letradas
tem como eixo três alicerces que são: a comunica- na escola, o educador deve atuar como mediador
ção, a exploração corporal e vivências simbólicas, durante o brincar, na elaboração das atividades e
caracterizadas com o favorecimento do movimento estratégias, com o auxílio de diferentes materiais,
espontâneo da criança e a estrutura das aulas, faci- a fim de favorecer a evolução no comportamento
litando a comunicação e a interação dos envolvidos. dos participantes. Ele deve durante a ludicidade, ser
Portanto, o autor diz que a visão naturalista do mo- capaz de interpretar os jogos que a criança realiza,
vimento compreende a criança em sua totalidade. O sem ter a preocupação de julgar o mérito de suas
grande diferencial da “prática psicomotriz pedagógi- ações, e, sempre que preciso acrescentar elementos,
ca”, se situa na interação do adulto como mediador, a fim de propiciar momentos mais ricos de possibi-
no desenvolvimento das crianças. lidades de exploração. Faria (2013), sustenta ainda
Negrine (2012), reforça, que não basta oferecer que, quando conhecemos a criança e o seu pensa-
espaços físicos e materiais para que as crianças rea- mento, compreendemos o seu brincar e a sua lógica
Sumário
lúdica, que se organiza a partir de uma história lida. 2.3 As Artes Cênicas na Mediação de Leitura para
O mediador de leitura precisa se entregar integral- Crianças de Zero a Três anos
mente, nessa prática, fazendo uso da dramaturgia,
da dança, da musicalidade, presentes nos discursos Pensar no processo ensino-aprendizagem de
literários, para contribuir com o desenvolvimento forma a promover a construção de conhecimentos,
sensorial perceptivo da criança, bem como, com o traz a ideia de seres humanos como indivíduos, in-
grau de atenção, em que todos os sentidos são cha- seridos numa cultura e com histórias e experiências
mados no discurso da cena. particulares de vida. Nesse processo de construção
A partir desse suporte teórico, entendemos que do conhecimento, são sujeitos, e devem atuar de for-
a história, portanto, narrada pelo mediador, sai pe- ma consciente. Freire (1997), explica que o homem
los poros, no timbre da voz, na dobra de sua coluna, só passou a ensinar quando descobriu que era capaz
na expressão do olhar, no movimento de seu corpo. de aprender. O Autor explica que foi desenvolvendo
No encontro do literário com o humano, na narrati- a capacidade de aprender, que esse homem se des-
va da cena. É necessário por isso, resgatar o infantil cobriu capaz de ensinar. Nessa perspectiva, Freire
interior do adulto, do contador de histórias, onde a (1997) reconhece que os professores, enquanto ensi- 618
criatividade lhe dê autonomia de pensamento, para nam, aprendem e os alunos enquanto aprendem, en-
acreditar na “verossimilhança” na interpretação do sinam. É preciso compreender que o processo ensi-
personagem, criando possibilidades de interação no-aprendizagem, segundo o autor, se dá na relação
com as crianças pequenas, através dos diversos re- entre indivíduos que possuem sua história de vida e
cursos das artes da cena. estão inseridos em contextos de vida próprios. Des-
Isso, a pretexto de estabelecer vínculos afeti- ta forma, o processo ensino-aprendizagem vai ocor-
vos de aproximação e valorização dos livros, para rer através da relação entre sujeitos em permanente
resgatar o prazer no encantamento de um novo jei- socialização de experiências e saberes.
to de se fazer leitura, de ler por meio da dança, da Para que o processo ensino aprendizagem ocor-
dramaturgia, do brincar com as histórias, através da ra, Vygotsky (1991), afirma que é necessário que o
ludicidade cênica . professor desafie o nível em que o aluno está, não
desrespeitando seus conhecimentos e experiências
anteriores, mas tendo um olhar para o futuro, para
as capacidades que desenvolverá, possibilitando a
socialização das experiências culturais acumula-
Sumário
das historicamente pela humanidade. O processo tada é mais gostosa? Evidentemente porque ela não
de ensino-aprendizagem, nesse sentido, possibilita está pronta. Porque tal história é elaborada com o
que os sujeitos – professor e alunos encontrem - se, íntimo próprio e particular de cada pessoa. Se é nas
troquem, socializem conhecimentos, experiências, primeiras idades, que guardamos nossas melhores
afetos, histórias, sonhos e utopias. Isso situa o pro- lembranças, então, tudo o que se faz na infância fica
fessor, numa posição, de mediação com instrumen- marcado. Eis assim revelada, a importância da edu-
tos pedagógicos e psicológicos. Na verdade, alunos cação infantil, e quase que indissolúvel, a presença
e professores vivem numa eterna troca, num pro- das artes cênicas: da dança, do teatro, do lúdico no
cesso de interação, onde um aprende com o outro. E processo de conhecimento para desvendar o mun-
nessa troca não existe um único detentor do conhe- do. Inicialmente, toda criança necessita experimen-
cimento, mas seres inacabados que aprendem e se tar, para saber se gosta ou não. É nesse momento,
ensinam mutuamente. que aparece o trabalho do mediador de leitura, um
Vygotsky (1991), afirma que o auxílio prestado pouco ator, um pouco narrador, que demonstra uma
à criança em suas atividades de aprendizagem é vá- atitude ativa frente ao livro e insere a criança no
lido, pois, aquilo que a criança faz hoje com o auxí- contexto lúdico da história. 619
lio de um adulto ou de outra criança maior, amanhã, A visão histórica trazida por Talitha Cardoso
estará realizando sozinha. Desta forma, o autor en- Hansted (2012) indica que o teatro, quase sempre foi
fatiza o valor da interação e das relações sociais no concebido, como um excelente aliado à educação,
processo de aprendizagem de crianças, incluindo o por mais distintas, que fossem as épocas, e mais di-
período da infância na educação infantil. versos os objetivos pedagógicos, especialmente, em
Em relação a interação das crianças pequenas um contexto em que tanto se debate a importância
com a literatura, em especial referência à faixa etá- na reformulação dos currículos nacionais, tendo em
ria de zero à três anos, podemos afirmar que a lei- vista a formação global dos indivíduos.
tura só acontece quando une-se a três elementos: ao No contexto brasileiro, os atuais Parâmetros
corpo, à música e ao ato de brincar. É por isso que a Curriculares Nacionais (BRASIL, MEC, 1998), ela-
relação da criança com o livro, não deve ser obriga- borados na esteira da Lei de Diretrizes e Bases (lei
tória. É importante estabelecer um vínculo de afe- 9.394/96), levam em conta a origem do teatro em ri-
to, de curiosidade, em que se aproxime a criança do tuais de diferentes culturas e tempos, e reconhecem
universo literário por meio da brincadeira, para que sua importância singular no campo educacional.
o livro se torne “vivo”. Ora, por que a história inven- No entanto, a despeito dos avanços na legislação e
Sumário
de todas as contribuições no campo teórico que se formação do jogo simbólico (subjetivo), no jogo de
acumularam ao longo dos anos, o teatro - e as artes, regras (socializado) .
como um todo- é, em geral, ainda pouco valorizado Não se concebe, portanto, que se perpetue uma
nas escolas. desvalorização da teatralidade dentro das escolas
Talitha Cardoso Hansted (2012), nos expõe, brasileiras. Entre as considerações da autora, se sa-
uma breve sinopse do teatro e a educação. De acordo lienta que no final do século XIX, o teatro volta a
com os estudos da autora, no Brasil, especificamen- ter participação importante na educação. Para re-
te, por um lado, houve a retomada de encenações forçar o seu estudo cronológico, Talitha Cardoso
de peças em escolas, em especial para estudos de Hansted (2012), situa o período do século XX, e,
línguas; por outro, emergiu uma nova maneira de mais recentemente, no século XXI, em que, muitos
se pensar atividades ligadas ao teatro em ambientes autores contribuíram – e têm contribuído de forma
escolares, alinhada aos postulados do movimento relevante para a maneira de se pensar o teatro na
“Educação Ativa” – ou “Escola Nova”, como veio a educação, com a valorização e o aprimoramento da
ser conhecido no PA. prática teatral na escola básica trazida através das
Hansted (2012), ainda explica, fundamentando artes cênicas . 620
seu pensamento em Koudela (1992), que, se na visão Meriele Santos Atanazio da Silva Lima (2010),
tradicional, o teatro em escolas resumia-se à monta- em seu artigo: “A Importância da dança no proces-
gem de peças, sem o cuidado com a formação do in- so ensino aprendizagem”, salienta que a dança, da
divíduo, na concepção “escolanovista” o foco passa a mesma maneira que a encenação, trata do resgate
ser o desenvolvimento da criança e a livre expressão da própria personalidade, do contato com o lado
de sua imaginação criativa. O jogo dramático, por- mais humano através da expressão artística: o indi-
tanto, seria aquele em que todos “fazem”, ou seja, víduo se expressa e se torna capaz através da Arte
todos participam da ação imaginária, não havendo que produz e que lhe devolve toda a sua potenciali-
espectadores. Crianças imersas em brincadeiras de dade de viver e de se realizar plenamente. Isso nos
“faz-de-conta”, por exemplo, estão realizando jogo faz compreender que através da dança o indivíduo
dramático. Dentro de uma abordagem “piagetia- é capaz de demonstrar aquilo que ele pensa, que
na”, Koudela (1992), explica que o processo de jogos ele entende, ou seja, ele é capaz de demonstrar o
teatrais visa efetivar a passagem do jogo dramático seus conhecimentos e habilidades, de maneira mais
(subjetivo) para a realidade objetiva do palco, e que transparente possível, ele se expõe por completo.
essa passagem, pode ser comparada com a trans-
Sumário
Contudo, a autora ressalva, que a dança ao ser afetivo e social. Deste modo, esta prática propicia
inserida ao conteúdo escolar não pretende formar ao aluno grandes mudanças internas e externas, no
bailarinos, antes disso, consiste em oferecer ao alu- que se refere ao seu comportamento, na forma de se
no uma relação mais efetiva e intimista, com a pos- expressar e pensar.
sibilidade de aprender e expressar-se criativamente,
através do movimento. Nessa perspectiva, o papel 3 CONCLUSÃO
da dança na educação é o de contribuir com o pro-
cesso ensino-aprendizagem, de forma a auxiliar o Pode se concluir então, que a criança através da
aluno na construção do seu conhecimento. E tam- interação com o meio e ao longo de várias experiên-
bém, assistir o professor enquanto recurso peda- cias, acaba incorporando um significado frente ao
gógico. Lima (2010) fundamenta o seu estudo com comportamento dos que a rodeiam. É por meio da ex-
Verderi (2009), onde ele declara que: pressividade corporal e da representação de um “per-
sonagem lúdico”, que ela manifesta desejos e atitudes
“(...) a dança na escola deve proporcionar opor-
tunidades para que o aluno desenvolva to e
de acordo com suas necessidades, e elabora uma ló-
complexidades, o professor contribua para a for- gica lúdica, de leitura, dos acontecimentos de vida. 621
mação de estruturas corporais mais complexas.” Institui – se desta forma, uma comunicação informal
LIMA, apud VERDERI (2010) e um vínculo de prazer com os contos da literatura.
As histórias de vida são frequentemente, trazi-
Meriele Santos Atanazio da Silva Lima (2010), das pela criança, para a representação cênica, numa
ainda explica que, essa proposta, se resume na bus- tentativa de reconstituir os fatos, que causaram
ca de uma prática pedagógica mais coerente com a medo, raiva, incompreensão. Bettelheim (1988), afir-
realidade escolar, onde a dança preparará o corpo mou que as crianças, lutam com conceitos de bom e
e a mente dos alunos a fim de que se exercitem de mal. O autor apontou que, o triunfo do bem sobre o
acordo com suas necessidades, estimulando através mal dos heróis, protegendo vítimas inocentes, é um
dos movimentos espontâneos e a precisão do gesto, tema comum nas brincadeiras das crianças.
o processo ensino aprendizagem. Com isso, perce- Portanto, os elementos mediadores entre a
bemos que a dança na escola não é a arte do espe- criança e o mundo são fornecidos pelas relações com
táculo, é educação por meio da arte. E tem suma seus semelhantes, por meio de experiências lúdicas,
importância para se alcançar os objetivos da Educa- que envolvam, além do brincar, o teatro e a dança.
ção, um deles sendo o desenvolvimento do aspecto Meriele Santos Atanazio da Silva Lima (2010), des-
Sumário
tacou a importância da dança na aprendizagem, ela a evoluir a partir da atividade lúdica. Ele defende
reforçou que, da mesma maneira que a encenação, a que o trabalho sustentado nesta ação, permite fazer
dança, trata do resgate da própria personalidade, do observações seletivas, a partir da capacidade que o
contato com o lado mais humano. imitar da criança sinaliza, e isso, de certa forma, traz
Assim, cada sujeito responde diferentemente evoluções para a capacidade perceptiva e para o de-
aos estímulos e, nesse sentido, todo e qualquer co- senvolvimento do pensamento da criança.
nhecimento começa com a expressividade corporal, Por tudo o que foi pesquisado, se verifica que a
com a encenação e com a ludicidade. “Ludicidade Cênica” é uma prática inovadora e váli-
As crianças apresentam necessidades físicas, so- da para a mediação de leitura. Essa forma de media-
ciais, intelectuais, para elas, o mundo é uma eterna ção, quando direcionada a crianças ainda iletradas,
brincadeira. As coisas que descobrem são fascinan- cria novas possibilidades de compreensão das situa-
tes, cada olhar é um convite ao desafio do aprender. ções por elas vividas. Essa prática, também, orienta a
Por esse motivo, é através da mediação de leitu- construção dos novos contextos educacionais, e re-
ra para crianças ainda não letradas, que apenas con- configura o antigo papel do “Contador de Histórias”,
tar uma história, ou simplesmente, fazer a leitura do a pretexto de resgatar o prazer no encantamento de 622
seu texto, não é o suficiente. Hansted (2012), funda- um novo jeito de se fazer leitura. É um meio viável
mentando seu pensamento em Koudela (1992), fez para ampliar as relações comunicativas na escola,
referência ao fato de as crianças, imersas em brin- estabelecendo vínculos afetivos de valorização dos
cadeiras de “faz de conta”, por exemplo, realizarem livros, e das artes da cena, como recurso que contri-
um “jogo dramático”. bua para o desenvolvimento pleno das crianças, e
Toda reflexão aqui apresentada sinaliza o quan- para a conquista de boas e prósperas relações.
to é importante para o mediador, ter consciência da
própria prática pedagógica na sala de aula. A práti- REFERÊNCIAS
ca da mediação de leitura por meio da “Ludicidade
Cênica” tem demonstrado, que as crianças respon- BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho – Pais
Bons o Bastante, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1988
dem satisfatoriamente.
Negrine (2012) assinalou, que não basta ofere- CAGNETI, Soeli de Souza. Leituras em Contraponto: No-
cer espaços físicos e materiais para que as crianças vos Jeitos de Ler.1.ed. São Paulo: Editora Paulinas, 2013.
realizem seus jogos, é fundamental, definir as pautas FARIA, Fabiana. Bebeteca: Lugar de pequenos leitores. Re-
de intervenções pedagógicas, para ajudar a criança vista Nova Escola( Especial Educação Infantil),2013.
Sumário
¹ Doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interarstísticos na Universidade do Porto, Portugal. Trabalha com questões
atinentes à literatura e velhice. E-mail: marcia454rs@gmail.com
Sumário
seca and Guite Zimerman’s researches on the aging Essa percepção de si propiciada pelo relato e
process, and Mikhail Bakhtin, Thomas Bulfinch and pela escrita é essencial para viabilizar o protagonis-
Jean-Pierre Vernant’s texts upon the imaginary and mo que surge gradativamente em textos literários
mythology, among others, as theoretical basis. e estudos acadêmicos. Ainda que de forma inicial,
Keywords: Aging. Memory. Mythology. observamos hoje construções não focadas apenas
no passado ou na juventude, há uma percepção das
possibilidades e realizações concretas do presente
do idoso, que aparece como sujeito no momento da
Os deuses, como sabes, amam os que morrem velhice. Há um olhar que se direciona sobre esse
cedo porque o absoluto é a sua medida. É assim.
Que erro, querida, sermos humanos e fraccio-
momento da vida e para o qual Ecléa Bosi já chama-
nários. Nesta casa em que apodreço devagar e va a atenção na década de 70:
em que os filhos me meteram.
(Em nome da terra, Vergílio Ferreira) Um mundo social que possui uma riqueza e uma
diversidade que não conhecemos pode chegar-
-nos pela memória dos velhos. Momentos desse
mundo perdido podem ser compreendidos por 625
INTRODUÇÃO quem não os viveu e até humanizar o presen-
te. A conversa evocativa de um velho é sempre
uma experiência profunda: repassada de nos-
Um idoso que relata sua vida é um mediador. talgia, revolta, resignação pelo desfiguramento
São pontos de vista distintos que dialogam e recons- das paisagens caras, pela desaparição de entes
troem o pensamento, viabilizando a abertura para amados, é semelhante a uma obra de arte. Para
novos conceitos, não rejeição ou absorção de valo- quem sabe ouvi-la, é desalienadora (BOSI, 2010,
p. 82- 83).
res, mas o contato e o conhecimento que permitem
um olhar mais diversificado. O surgimento e a procura, pelo mercado edito-
No ano de 1979, Ecléa Bosi publicou Memória rial, de obras de ficção que reconheçam o protago-
e sociedade: lembranças de velhos, ainda hoje refe- nismo do idoso são demonstrativos da concretização
rência em estudos sobre velhice. Sua investigação desse processo. Em Portugal, Vergílio Ferreira e Teo-
consistiu em ouvir relatos de idosos, não apenas es- linda Gersão distinguem-se pelo tratamento particu-
crever sobre eles. Bosi transformou sua pesquisa em lar conferido ao quotidiano vivenciado pelas pessoas
porta-voz de uma geração relegada ao isolamento e mais velhas. Em nome da terra, de Vergílio Ferreira,
à invisibilidade. e Passagens, de Teolinda Gersão, oferecem retratos
Sumário
da velhice, uma masculina, outra feminina, com di- Utilizando-se de uma estrutura similar a uma
ferenciações não apenas estilísticas, mas de visões de longa carta, Vergílio Ferreira cria um personagem
mundo que incluem a do narrador, do autor e dos que contradiz os estereótipos vigentes. O autor
personagens. E, também, do leitor, na medida em que registra a velhice não como elemento mágico ou
ele efetuará interpretações próprias do texto lido. melodramático, fórmulas comumente utilizadas,
No ano de 1983, Vergílio Ferreira publicou o li- suas descrições são minuciosas e o faz em primeira
vro Para sempre, onde aspectos relacionados ao en- pessoa, ampliando o impacto que provoca, a crue-
velhecimento já são visíveis. Porém, é com Em nome za das imagens quase brutal na medida em que se
da terra, publicado em 1990, que o foco na velhice mostram verdadeiras.
concede ao tema um status quase de protagonismo: Esse recurso da busca de um destinatário no
mais do que um personagem idoso, é oferecido ao universo da memória substitui, por meio do ato da
leitor um retrato cruel do processo de envelheci- escrita, as palavras que o corpo não é mais capaz de
mento. A obra foi escrita quando o autor já contava pronunciar, é instrumento de percepção da realida-
com mais de setenta anos, o que torna maior o inte- de e de construção identitária. João fala com Mô-
resse que origina para estudos sobre o tema da ve- nica, conta a ela suas vivências em uma instituição 626
lhice. Autor, narrador e personagem encontram-se de idosos e relembra, relembra constantemente, a
inseridos em um ambiente similar do ponto de vista vida que viveu ao lado da esposa. Porém, cabe aqui
etário e social. a ressalva: suas lembranças são idealizadas a partir
João, protagonista do livro, escreve para Môni- das necessidades de seu momento presente. O amor
ca, sua esposa, já falecida. No primeiro parágrafo, aparece, na carta que João escreve, como um último
encontramos: recurso capaz de dar sentido e justificar a existência.
Passagens, de Teolinda Gersão, publicado no
Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de
te amar. E então pensei: vou escrever-te. Mas
ano de 2015, segue a mesma linha de fuga de este-
não te quero amar no tempo em que te lembro. reótipos sobre a velhice. A obra aborda a história
Quero-te amar antes, muito antes. É quando o de Ana, vítima de AVC, que vive em um asilo de
que é grande acontece. [...] O que é grande acon- idosos e toma uma decisão no mínimo inusitada:
tece no eterno e o amor é assim, devias saber.
[...] Ponho-me a lembrar o que passou e o que
transforma sua vida em um palco e finge estar com
me lembra é só a tua presença forte ao pé de Alzheimer. O texto observa o momento da velhice
mim. E depois acabou. (FERREIRA, 2016, p. 10) por diferentes focos, não apenas o próprio idoso,
mas familiares, cuidadores, pessoas próximas, afe-
Sumário
tiva ou espacialmente, vão relatando sentimentos e Não somos apenas o momento presente. Nossa
situações. Dessa forma, a autora constrói um viés totalidade é constituída pelo conjunto das épocas
singular, obriga o leitor a revisitar conceitos, choca que hoje classificamos como infância, idade adul-
com instantâneos da nossa incapacidade de conce- ta, velhice, ou, conforme o autor utilizado, terceira
ber o quanto a velhice ainda possui de consciência idade, melhor idade, senectude, senilidade, velho,
de si e do mundo que a cerca. idoso, sênior, ancião, diferentes denominações que,
O que esses dois livros têm em comum, além pelo seu uso, já refletem as alterações que a visão
da temática? Talvez, a coragem de olhar, de exigir de velhice vem sofrendo, cada vez mais aceleradas
o direito de marcar e ser presença, a coragem de e profundas.
dizer: “somos parte do todo, não podemos ser confi- Contudo, somos tão diferentes em nossa essên-
nados a guetos ou espaços fechados, fazemos parte cia do que éramos há milênios? O que nos separa
da sociedade”. E, como parte, os idosos deveriam ser da época grega? Passados mais de dois mil anos, o
considerados duplamente preciosos, pois carregam mito ainda é presença constante na literatura con-
mundos distintos dentro de si e não existe a opção temporânea, ainda buscamos em histórias próximas
de ser de um ou de outro, integram a totalidade hu- das que os gregos ouviam respostas que eles – como 627
mana, ainda que o estranhamento esteja presente. nós - não foram capazes de encontrar.
São romances contemporâneos que se aproxi- Os deuses gregos são conhecidos por serem an-
mam das histórias mitológicas, absorvendo em seus tropomórficos, ou seja, possuírem características e
retratos um misto de medo, respeito e orgulho que temperamento similares aos dos humanos. Jean-Pier-
Geras, entidade representativa da velhice, já car- re Vernant, no livro Mito e religião na Grécia Antiga,
regava no contexto grego. Percepções relativas a afirma que “Os fenômenos religiosos têm formas e
tempo e trajetória, público e privado, juventude e orientações múltiplas” (Vernant, 2009) e destaca:
velhice sofreram mudanças com o passar dos sécu-
Esses deuses múltiplos estão no mundo e dele fa-
los, por meio das quais percebemos o treinamento zem parte. [...]. Os deuses nasceram do mundo.
social envolvido no ato de pensar sobre o que ainda [...] Há, portanto, algo de divino e algo de mun-
nos é incompreensível. Nosso conhecimento da ve- dano nas divindades. Assim, o culto não pode
lhice é quase apenas biológico, pouco sabemos de visar a um ser radicalmente extramundano, cuja
forma de existência não tenha relação com nada
aspectos afetivos e emocionais, um desconhecimen- que não seja de ordem natural, no universo físi-
to que não raro se exprime transmutado em temor. co, na vida humana, na existência social. (VER-
NANT, 2009, p. 04,05)
Sumário
Mas há uma diferença básica que só a transfor- sequentemente, uma participação efetiva nas esferas
mação do homem em um novo deus poderia suprir: decisórias otimizava o poder angariado pela experi-
a imortalidade não pertence aos homens; a mortali- ência e sabedoria adquiridas com o passar dos anos.
dade é nossa característica básica, o que nos torna, É interessante destacar aqui que essa proximi-
essencialmente, humanos. dade com a morte tem um sentido mais complexo
Livros de ficção e mesmo obras não ficcionais do que apenas a morte do homem. Geras também
são carregados de lendas, fórmulas mágicas, expe- era visto como representativo do final das dores, dos
riências científicas, poções milagrosas, relatos da sofrimentos. Não ser eterno lembra que as injusti-
procura constante pela vida eterna, poder nunca al- ças também não o são, que a vida é marcada pela
cançado. E a velhice é uma espécie de aviso prévio: mudança, por alterações. Igualmente, a fragilidade
quando ficamos velhos e quando enxergamos um do corpo implica a necessidade do grupo, necessitar
velho, a conscientização torna-se inevitável. do outro pode ser instrumento de aceitação desse
Três histórias da mitologia grega merecem uma outro e de construção de harmonia social.
abordagem especial quando de debates relativos à A velhice aparece em sua dupla forma nas his-
percepção ficcional da velhice: a de Geras, a da Sibila tórias gregas e tal é a presença de Geras no Olimpo. 628
de Cumes e a de Tithonus. São histórias menos co- Por um lado, desprezado por representar a decre-
nhecidas, o que, por si, já revela diferenciações entre pitude, era tido por muitos como um deus cruel,
a visibilidade concedida à juventude e ao idoso, seja porque apenas os outros deuses escapavam de seu
no universo grego, seja contemporaneamente. poder destrutivo; por outro lado, era procurado por
Geras é a entidade representativa da velhice. Na sua experiência, os deuses respeitavam a sabedoria
cultura grega, a valorização do corpo pela prática que só os anos são capazes de proporcionar, e os
das guerras e dos esportes criava uma ambiguida- homens procuravam por seus conselhos e apoio.
de constante entre a decrepitude e a sabedoria que Duas imagens conservadas em objetos da épo-
acompanham a velhice. Essa ambiguidade mescla-se ca grega antiga denotam bem essa situação. Em
com questões não apenas etárias, mas econômicas e um vaso do século V a.C., preservado no Museu de
sociais, tendo em vista que a posse de riquezas e, con- Louvre2, Héracles aparece em uma cena retratando
² O vaso citado integra o acervo do Museu de Louvre, Paris, França, e pode ser visualizado na página <http://www.theoi.com/
Gallery/N18.2.html.>
Sumário
sua vitória sobre a velhice3. A imagem é bem repre- proximidade da clava, que agora serve de apoio, sua
sentativa, Héracles encontra-se no auge de sua ju- juventude é força, não agressão. Geras apoia-se na
ventude, quase gigante frente ao corpo encurvado bengala, representativa dos anos que viveu e da sa-
e decrépito de Geras. Enquanto o semideus levanta bedoria que carrega. Os braços de ambos erguem-se
sua clava em uma demonstração de força, o idoso, em sinal de debate e respeito. Juventude e velhice
extremamente frágil, apoia-se em uma bengala fina, dialogam, a força física e a sabedoria são elementos
a posição de seu corpo é a de alguém que procura de encontro.
recuar, sendo impedido pela mão de Héracles sobre A cena de diálogo representada serve de con-
sua cabeça, um gesto não protetor, mas de ameaça. traponto a uma citação do livro Memória e socieda-
Cobrindo o corpo, Héracles veste uma armadura que de: lembranças de velhos. Em seu texto, Ecléa Bosi
ressalta seu poder; Geras aparece nu, interior e exte- destaca a forma como não ouvimos o idoso, camu-
rior inferiorizados: a velhice, subjugada, não é vista flando nossa indiferença com uma capa de proteção.
como continuidade, mas como etapa a ser destruída. Proteger, muitas vezes, é sinônimo de desrespeitar
Em outro vaso, também do século V a.C., guar- e subjugar.
dado no Museu Nacional Etrusco de Vila Giulia4, 629
A característica da relação do adulto com o ve-
encontramos Geras e Héracles retratados de forma lho é a falta de reciprocidade que pode se tradu-
mais igualitária. Na imagem, as diferenças não im- zir numa tolerância sem o calor da sinceridade.
plicam necessariamente submissão, antes, um mo- Não se discute com o velho, não se confrontam
mento de diálogo, de tentativa de compreensão e opiniões com as dele, negando-lhe a oportunida-
de de desenvolver o que só se permite aos ami-
aprendizado. gos: a alteridade, a contradição, o afrontamento
Se Héracles ainda aparece como alto e forte, e mesmo o conflito (BOSI, 1994, p. 78).
sua postura e suas vestes não são mais tão marca-
das pela agressividade, mesmo Geras encontra-se Nas imagens fixadas nos vasos gregos, obser-
vestido com um manto que lhe propicia algum con- vamos distintas visões da velhice que ainda hoje se
forto e cobertura. Nessa cena, o semideus mantém a fazem presentes: na primeira, o confronto, a subju-
³ Héracles (Hércules, pela denominação romana) é filho de Zeus e de Alcmena, uma humana. A vitória sobre a velhice ocorre
pela morte prematura do semideus. Mortal, casa-se com Dejanira, que por engano causa sua morte quando o herói ainda é
jovem. O corpo é levado ao Olimpo, onde Héracles casa-se com Hebe, a deusa da juventude.
⁴ O objeto citado integra o acervo do Museo Nazionale Etrusco di Villa Giulia, Roma, Itália, e pode ser visualizado na página <
http://www.theoi.com/Gallery/N18.1.html.>.
Sumário
gação, há um inimigo a ser derrotado e a um inimi- mesclam com as histórias romanas, sendo mesmo
go concedemos atenção, mesmo respeito, não mera citados como guias e auxiliares da governança até
tolerância. A segunda cena amplia por meio do di- serem supostamente destruídos no ano de 83 a.C.
álogo, que pode se traduzir em debate, um falar e Para os cristãos, ela é considerada não raro
um ouvir. Combatida ou vista como instrumento de como profeta do antigo testamento e anunciadora
sabedoria, a velhice é percebida, tem um olhar sobre da vinda de Cristo, o que justifica sua imagem na
si, há uma distinção clara do ambiente retratado por parte lateral do teto da Capela Sistina, pintado por
Ecléa Bosi. Michelângelo. No imaginário popular, sua história
Sibila de Cumes e Tithonus são humanos e, por- é recontada e revisada continuadamente. Diferen-
tanto, diferentemente de Geras, são mortais. Ambos tes versões retratam a saga dessa bela jovem que
alcançam o dom da longevidade, mas pagam um seduziu um deus e recebeu como prêmio a longevi-
alto preço, pois são incapazes de vencer a velhice. dade, a qual, não sendo acompanhada da juventu-
A sacerdotisa de Apolo é conhecida pela pai- de, transformou os anos vividos a mais em castigo e
xão que provocou no deus, tão intensa que o leva a não em recompensa.
prometer a realização de qualquer desejo que a jo- Por situação similar passa Tithonus, irmão mais 630
vem manifestar. Ansiando pela eternidade, Sibila de velho de Príamo, rei de Tróia. Considerado um dos
Cumes pede para viver tantos anos quantos grãos homens mais atraentes de sua época, torna-se obje-
de areia conseguir juntar em suas mãos. Porém, não to do desejo da deusa Eos. Eos fora amaldiçoada por
solicita igualmente a juventude e, ao recusar o assé- Afrodite para que só se apaixonasse por mortais e,
dio do deus, este se vinga cumprindo estritamente dessa forma, sofresse com a constante perda de seus
o que prometera: ela recebe o dom da vida, mas seu amantes. Ao se apaixonar por Tithonus, Eos pede
corpo envelhece como qualquer corpo mortal. Cada a Zeus que conceda a imortalidade ao jovem, para
vez mais enrugada e encurvada, torna-se o retrato que possa desposá-lo sem medo da morte iminen-
da decrepitude e termina por ver na morte o seu te. Porém, comete o mesmo erro de Sibila: Tithonus
maior anseio. envelhece como os demais mortais. Eos, sempre jo-
Em sua vida longa, carregada de visões e sa- vem, acaba abandonando o leito do casal e, quan-
bedoria, a Sibila torna-se personagem de poetas e do o amante se torna tão velho que não consegue
escritores, conduz Enéias, o príncipe troiano, pelo mais andar, é encerrado em um quarto escuro. Sem
mundo inferior, e é autora dos livros proféticos co- forças, Tithonus balbucia, contínua e inutilmente,
nhecidos como Livros Sibilinos, os quais depois se clamando pelo direito de morrer até ser transfor-
Sumário
mado em uma cigarra. Segundo algumas versões, é va de diluição e perda identitária pessoal e coletiva.
a própria deusa que pede a Zeus que o transforme O envelhecimento da população é um processo
em cigarra, terminando com a dor que o envelheci- que não pode mais ser delimitado a um ou outro
mento representava para os dois. país. Hoje, sociedades diferenciadas política, eco-
São duas histórias que retratam a velhice como nômica e culturalmente apresentam estatísticas que
um peso e não como prêmio. A imortalidade dese- se destacam pela queda dos índices de natalidade e
jada o era quando acompanhada da juventude, em pelo significativo crescimento do número de idosos.
uma leitura que leva ao que hoje chamamos quali- Dessa forma, estamos frente a um fenômeno com
dade de vida. o qual precisamos aprender urgentemente a lidar
Narrar é sempre optar por um determinado en- para que essa conquista represente também con-
foque, reduzir, excluir aspectos, adicionar outros. quista em termos de qualidade de vida, possibilida-
Quando pensamos na noção de senso comum como des reais de crescimento pessoal e coletivo, e não
algo fabricado, não natural, vemos a literatura que apenas anos a mais, marcados pela doença, solidão,
abrange o idoso como reforçando estereótipos ou dificuldades e desesperança.
colaborando para a efetivação de um olhar diferen- Essa é a lição básica encontrada nas histórias de 631
ciado? Até onde a literatura propicia ao idoso a sa- Sibila e de Tithonus e é o aprendizado buscado por
ída da invisibilidade e até onde atua como reforço Héracles na cena em que dialoga com Geres, após
de generalizações? No caso de atuar como reforço perceber o preço a ser pago por um mortal no caso
de generalizações, não será essa a maneira pela qual de uma vitória contra a velhice. Não envelhecer sig-
o idoso é visto em nossa sociedade? É realmente a nifica morrer jovem; viver muitos anos é sinônimo
velhice a etapa da vida em que somos mais diferen- de envelhecimento. A conscientização desse proces-
ciados uns dos outros ou algo ocorre no processo so é indispensável para o amadurecimento emocio-
de envelhecimento que homogeneíza e quebra o po- nal e, mesmo parecendo algo óbvio, não se mostra
tencial de diversificação? tão evidente quando observamos peças publicitá-
Questionamentos como esses ressaltam a ne- rias e estilos de vida adotados por grande parte das
cessidade de estudos mais aprofundados dos espa- pessoas em suas rotinas e decisões quotidianas.
ços em que, normalmente, os indivíduos vivem ou Ao entrar em contato com a velhice, o homem
são levados a viver a sua própria velhice, de maior percebe-se frágil e isolado. Vê-se obrigado a assumir
conscientização quanto ao papel exercido por esses papéis para os quais uma vida e um ambiente fo-
espaços, seja de forma positiva, como elementos de cados na juventude não o prepararam. Diminuição
convivência e integração, seja por sua carga negati- do poder econômico, enfraquecimento do corpo,
Sumário
necessidade de ajuda de familiares, internamento -se, fechar-se em si mesmo, as opções são poucas
em instituições assistenciais, públicas ou privadas, e pouco favoráveis, provocando uma espécie de
a fragilidade econômica e física que enfrenta a pes- limbo, de não vivência. As alterações nos relacio-
soa idosa vem acompanhada de um imaginário de namentos sociais são tão drásticas que a própria
impossibilidades não necessariamente verdadeiro, memória sofre bloqueios e retrocessos: lembramos
mas que se consolida progressivamente e se concre- o que somos, somos o que lembramos, esquecemos
tiza a partir da valorização excessiva da juventude. o que deixa de nos constituir e precisamos querer
Fonseca, no ano de 2014, coordenou a publi- lembrar para provocar novas memórias e continuar
cação da obra Envelhecimento, saúde e doença: no- a ser. E a longevidade só tem sentido a partir do mo-
vos desafios para a prestação de cuidados aos idosos. mento em que continuamos a ser, não falamos aqui
No livro, profissionais de diferentes áreas debatem da continuidade de nossas vivências anteriores, mu-
questões relativas ao processo de envelhecimento. danças integram o que é do humano, falamos do di-
O autor, ao analisar aspectos psicológicos envolvi- reito à vida e não à mera sobrevivência submissa e
dos, constata: vegetativa.
Porque algo mudou em nossas trajetórias. Cada 632
Infelizmente, um dos principais obstáculos que
as pessoas idosas têm de enfrentar no seu pro-
vez mais vivemos mais tempo. Antes éramos con-
cesso adaptativo tem a sua origem fora delas e siderados velhos aos 30 anos; hoje nos enxergamos
chama-se estereótipos. Com efeito, quer tenha ainda jovens aos 50. As estatísticas brasileiras, se
mais ou menos idade e uma melhor ou pior apa- exibem uma população predominantemente jovem,
rência, é difícil escapar aos estereótipos negati-
vos acerca do envelhecimento, e o que muitas
também demonstram a rapidez do envelhecimento
pessoas não têm consciência é que, frequente- demográfico. Publicações da Secretaria dos Direitos
mente, ao invés de questionarem a sua validade, Humanos registram que de 2001 a 2011 ocorreu um
aceitam e assumem esses mesmos estereótipos crescimento de 55% do número de idosos e, em 2050,
muito antes de se tornarem, de facto, “pessoas
idosas” (FONSECA, 2014, p. 160).
para cada 100 jovens existirão 173 idosos no Brasil5.
Porém, mais do que mudanças estatísticas, ob-
Nas relações sociais, o idoso não se encontra serva-se a gradativa instauração de uma mudança
em uma situação de igualdade. Adaptar-se, isolar- de pensamento com relação ao assunto. Se durante
⁵ Secretaria de Direitos Humanos, Coordenação Geral dos Direitos do Idoso. Dados sobre o envelhecimento no Brasil. Acessado
em 12 ago 2016. <http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-idosa/dados-estatisticos/DadossobreoenvelhecimentonoBrasil.pdf>
Sumário
a história do homem morrer era o grande impasse, do Tithonus, a leitura leva à consciência do isola-
a dúvida, a grande dor humana, hoje ouvimos, não mento gradativo e da exclusão.
sem um pouco de susto, uma resposta cada vez mais Sibila de Cumes enfrenta a exclusão e o deses-
frequente nas pesquisas: “não tenho medo de mor- pero na velhice, mas, ao mesmo tempo, é marcada
rer, tenho medo de ficar velho”. pela sabedoria. Existe toda uma linha que leva às
A velhice, antes vista como temerária por re- velhas transgressoras, profetisas, sábias, ainda que
presentar a proximidade do fim, mostra-se temida nem sempre do conhecimento considerado positivo,
em si mesma, torna-se retratada quase como não por vezes são vistas como mesquinhas, bruxas, vilãs.
natural, como algo a ser evitado, ainda que cada vez Na história do Tithonus, a exclusão inicia com
busquemos, por meio da ciência, da filosofia, da re- uma manifestação do corpo: os primeiros cabelos
ligião, instrumentos que nos garantam mais tempo brancos levam Eos a abandonar o leito do aman-
de vida. A velhice carrega o ônus da longevidade te. Tithonus perde seu status de jovem ágil, forte
pago por Sibila de Cumes e por Tithonus, os anos e viril. Com a saída de Eos do leito conjugal, é per-
acrescentados pelas inovações tecnológicas cobram cebido e se percebe como velho. A conscientização
seu preço, um preço alto e que tem acarretado de- decorre do olhar do outro. 633
bates por novas formas de vivência e de percepção Depois, o segundo estágio, os problemas de lo-
acerca do direito de viver e, paralelamente, do direi- comoção acarretam a perda do direito à sociabili-
to de morrer. dade. Encerrado em um quarto, ao enfrentar a limi-
Geras, no imaginário coletivo e nas diferentes tação do espaço físico a que tem acesso, Tithonus
versões com que atravessou tempo e espaço, apre- começa a clamar pelo direito de morrer. Apesar de,
senta uma característica peculiar: inicialmente re- no caso, ser uma demonstração de extrema lucidez,
tratado como um homem encolhido e enrugado, implorar pela morte soa à loucura em nossas leitu-
posteriormente sua imagem é a de uma mulher, o ras contemporâneas, pois partimos de um mundo
báculo servindo de apoio no lugar da bengala, e o construído com base em uma mentalidade onde o
olhar voltado atentamente para um poço no qual, clamor generalizado é pela vida: o direito de viver,
em uma alusão ao tempo que nos resta de vida, hoje, vem acompanhado da obrigação de viver. Nes-
se encontra um relógio de areia, os dias escoando se sentido, o isolamento de Tithonus é total.
contínua e rapidamente. Mas, além da passagem do E o isolamento social remete ao texto de Ver-
tempo, o mito é um aprendizado sobre mudanças gílio Ferreira. Duas frases de Em nome da terra
concretas vivenciadas pelo corpo, é um redescobrir- são exemplares: “A hora em que o mundo começa
-se e um aceitar. Nos dois outros mitos, de Sibila e a afastar-se de nós e leva consigo a vida e tudo o
Sumário
que nos tornava plausíveis, mesmo aqui, e em que a Indivíduos ativos, marcados pela convivência
gente podia confiar.” E, um pouco adiante: “O mun- diária com o outro, encontram-se repentinamente
do existe mas não contava comigo” (Ferreira, 2009). solitários e com dificuldades que não imaginavam
O mesmo pode ser visto em Passagens, nas di- antes da aposentadoria. Se problemas financeiros
vagações de Marta: “Lembro-me de uma diferença são frequentes, o preparo para eles costuma ser
muito marcada dos espaços: o dentro e o fora, di- maior do que o preparo para uma vivência sem o
vididos pela porta da entrada, que me parecia es- outro. Ao se aposentar, a sabedoria adquirida com a
pessa como uma montanha. O mundo ficava para idade soa inútil sem a presença do receptor.
trás, quando ela se fechava. Como se se entrasse em Simone de Beauvoir, no livro A velhice6, debate
clausura” (Gersão, 2014). dificuldades desse período, salientando o quanto o
Essa sensação de isolamento, de exclusão, é choque do homem ao se perceber como “velho” é
bem observada com a crise enfrentada pelo idoso decorrente de um despreparo que o acompanha nas
quando do início da aposentadoria. Apresentada etapas anteriores da vida:
como época de descanso, utópica e idealizada, na
A tragédia da velhice é a radical condenação de
média mostra-se um momento de crise, elemen- todo um sistema de vida mutilador: um sistema 634
to desencadeador de processos de depressão. Um que não fornece à imensa maioria das pessoas
olhar mesmo superficial sobre a forma como nossa que fazem parte dele uma razão de viver. O tra-
sociedade encontra-se estruturada deixa evidente a balho e a fadiga mascaram essa ausência: ela se
descobre no momento da aposentadoria. É muito
importância do ambiente de trabalho no processo mais grave do que o tédio. Ao envelhecer, o tra-
de socialização, não raro é inclusive o ambiente de balhador não tem mais lugar no mundo, porque,
maior contato do indivíduo com outras pessoas e na verdade, nunca lhe foi concedido um lugar:
grupos sociais. simplesmente, ele não tivera tempo de perceber
isso. Quando se dá conta, cai numa espécie de
Novas formas de gerenciamento do quotidiano desespero bestificado (BEAUVOIR, 1990, p. 340).
precisam ser encontradas a partir de pilares que não
se sustentem no contato profissional, pois esse já não Ao sair do mercado de trabalho, o idoso enfren-
existe. O eixo passa do trabalho para as relações afeti- ta a falta de projetos e expectativas, denotando o
vas, que se tornam centro de ocupações e interesses.
⁶ A velhice, de Simone de Beauvoir, é publicado na França, em 1970, em realidade temporal e social diferenciada da brasileira,
o que exige cuidado na observação de dados. Contudo, é um estudo profundo e sensível sobre o envelhecimento em diferentes
épocas e culturas.
Sumário
despreparo citado por Beauvoir e que, segundo a É um quadro que vem se alterando gradativa-
autora, não é individual ou exceção, mas pratica- mente. Observa-se, ainda que de forma muito di-
mente coletivo, resultado de uma sociedade incapaz ferenciada entre as pessoas, uma busca pela har-
de aceitar esse momento como parte integrante do monização de interesses, um processo complexo
ato de viver: envolvendo tratativas culturais, afetivas, sociais,
econômicas, etc. Há um caminhar de conscientiza-
O fato de que um homem nos últimos anos de
sua vida não seja mais do que um marginali-
ção sobre direitos e de efetivação desses direitos.
zado evidencia o fracasso de nossa civilização: Igualmente, ressaltam-se as dificuldades resultantes
esta evidência nos deixaria engasgados se con- exatamente desse processo.
siderássemos os velhos como homens, com uma É importante destacar que hoje não podemos
vida atrás de si, e não como cadáveres ambulan-
tes (BEAUVOIR, 1990, p. 13).
mais ver a identidade como algo construído em uma
etapa da vida e que, a partir de determinada idade,
A aposentadoria pode ser vista como um mo- torna-se acabada, fixa, imutável. Cada vez mais são
mentos-chave da experiência de auto e heteroper- aceitas visões de identidade como algo construído
cepção da velhice. Sair do mercado de trabalho continuadamente, em constante mutação. O ser hu- 635
implica um enfrentamento quotidiano com a neces- mano nunca está completo, é um ser em criação e
sidade de se adaptar a um mundo construído para o transformação.
jovem. Essa percepção se reforça e uma nova identi- As identidades não são fatos consumados, fixos,
dade torna-se necessária, são mudanças muito mais mas negociações que fazemos conosco e com o mun-
profundas do que poderiam soar em um primeiro do, num contínuo construir e desconstruir. Somos
olhar. Para Ecléa Bosi: um todo nunca finalizado. Não há um ser humano
que se descobre na infância; se constrói na juventu-
O trabalho [...] Envolve uma série de movimen- de; realiza sua função de vida na idade adulta e, de-
tos do corpo penetrando fundamente na vida
psicológica [...] Simultaneamente com seu ca-
pois, decai e descansa na velhice. Nossa identidade
ráter corpóreo, subjetivo, o trabalho significa não funciona dessa forma, não recebemos um manu-
a inserção obrigatória do sujeito no sistema de al de instruções e profecias não revelam o destino.
relações econômicas e sociais. Ele é um emprego, Somos pessoas em permanente descoberta, constru-
não só como fonte salarial, mas também como
lugar na hierarquia de uma sociedade feita de
ção, atividade e decadência. Começamos a morrer
classes e de grupos de status (BOSI, 2010, p. 471). no momento em que nascemos; começamos a des-
cobrir novas formas de vida no momento da velhice.
Sumário
No livro Passagens, Ana, a personagem femini- BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a
na, refletindo sobre sua vida em um lar de idosos, teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2002.
afirma: “Mas na minha cabeça as coisas podiam an- BEAUVOIR, Simone de. A Velhice. Trad. Maria Helena
dar para a frente e para trás, as manivelas rodavam Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
em todos os sentidos. Ainda há mundos a descobrir,
quando se está só o dia inteiro, sentada numa pol- BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças dos ve-
trona, no pequeno quarto de um lar” (Gersão, 2015). lhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Esse trecho, no livro, adquire um sentido mar- BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: his-
cado pela dor. Porém, lido assim, de forma isolada, tórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim Junior, 26. ed.
carrega-se de expectativas e mesmo curiosidade e Rio de Janeiro, Ediouro, 2002.
deslumbramento. E é essa a visão de velhice aqui
DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. Trad.
defendida. Não a docilidade e submissão, nem a
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras,
busca da eterna juventude, igualmente falsa, mas a 2015.
compreensão desses mundos que, por serem ainda
tão desconhecidos, tornam-se temerários, como se FERREIRA, Vergílio. Em nome da terra. Lisboa: Quetzal,
2009.
636
fossem externos e não fizessem parte do que somos.
A busca deve ser pelo protagonismo do idoso, pela ______. Para sempre. Lisboa: Quetzal, 2008.
compreensão da velhice, das suas aberturas e limi-
tações, aspectos positivos e negativos, mas reais, FONSECA, António Manuel (coord.). Desenvolvimento
que englobem o todo diverso de que somos consti- humano e envelhecimento. Lisboa: Climepsi Editores,
tuídos, como seres em permanente transformação e 2004.
movimento. GERSÃO, Teolinda. Passagens. Porto: Sextante, 2014.
ÁRIES, Phillipe. História social da criança e da família. PEIXOTO, Clarice. “Entre o estigma e a compaixão e os ter-
Trad. Dora Flaksman. Lisboa: LTC Editora, 1983. mos classificatórios: velho, velhote, idosos, terceira idade”,
pag. 69-84. In Barros, Myriam Moraes Lins de (org.) Velhice
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e ou terceira idade?. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe
(coord.). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011.
Sumário
637
Sumário
2013. Desde então, a comunicação que escoa desses avalia os níveis narrativo, estratégico e técnico dos
protestos tem gerado uma série de questões de pes- conteúdos publicados.
quisa para o jornalismo. A adoção de ferramentas
de comunicação digital para a organização e o re- OS PROTESTOS POLÍTICOS NO BRASIL
porte dos acontecimentos nas ruas revela formatos
e dinâmicas que caracterizam o que entendemos Junho de 2013 já é um marco histórico no Bra-
por midiatização do ativismo (AQUINO BITTEN- sil. Foram milhões de pessoas nas ruas de algumas
COURT, 2014a). O fluxo midiático e informacional das principais capitais brasileiras, entre outras 300
que vem configurando-se através de um entremea- cidades do país (PRADO, 2015). Inicialmente, o foco
mento entre rede e rua (TORET, 2012), abre para o dos protestos era pela redução/contra o aumento da
campo da comunicação espaços de investigação so- tarifa de transporte público. Com a forte repressão
bre narrativas, estratégias de circulação e técnicas policial no ato de 13 de junho, os protestos ganha-
comunicacionais. As mobilizações em rede (MA- ram força e as causas defendidas nas ruas foram
LINI E ANTOUN, 2013, TORET, 2012, CASTELLS, além do preço do transporte público. A indignação
2012) e a adoção do ciberespaço para o enfrenta- com os gastos com a Copa do Mundo em 2014, com 639
mento entre as vozes dos diferentes atores sociais a precariedade do sistema de saúde e da educação
e políticos forçam a reflexão sobre usos e apropria- no país e com a corrupção foram algumas das pau-
ções comunicacionais para a produção e circulação tas levantadas em cartazes nas ruas e inúmeras pu-
de múltiplas narrativas. blicações em sites de redes sociais, aplicativos e pá-
Como parte de um projeto que estuda coletivos ginas na web. A cobertura da imprensa foi criticada
midiáticos em contexto de movimentos em rede, pela falta de atualização ao vivo, bem como sobre a
este artigo analisa os conteúdos produzidos pelo carência de notícias em veículos de massa, como a
Mídia Ninja e pelo G1 nos dias 13 e 31 de março Globo News, por exemplo. Toret (2012) explica que
de 2016, datas em que as ruas de diversas cidades no início das ocupações da praça Puerta Del Sol, em
do Brasil foram ocupadas por protestos a favor e Madrid, em 2011, a imprensa espanhola pouco co-
contra o governo de Dilma Rousseff. O texto con- bria os protestos. Quando as informações publica-
textualiza as manifestações que vem acontecendo das nas redes digitais começaram a aumentar e a
no país desde 2013 para em seguida apresentar os se espalhar, foi inevitável para a imprensa divulgar
conceitos que norteiam a pesquisa. O terceiro item o que vinha se passando nas ocupações. No Brasil
Sumário
esse movimento foi semelhante, mas foi a agressão caso de corrupção na Petrobrás. Após os protestos
à uma repórter da Folha de São Paulo, entre outras do dia 15 de março, o Movimento Brasil Livre (MBL)
manifestações nas próprias ruas contra repórteres organizou um novo ato, no dia 12 de abril, pedindo o
de veículos de massa, que desencadearam uma mu- impeachment da presidente. Depois deste ato o MBL
dança na cobertura feita pela imprensa tradicional3. também coordenou uma marcha que iniciou em São
A imprensa internacional também se manifestou Paulo, em 24 de abril, e terminou em Brasília, no dia
sobre a cobertura dos protestos no Brasil, criticando 27 de maio. Em agosto, o MBL, em conjunto com o
a falta de abordagem sobre a violência policial e o Vem Pra Rua e o Revoltados Online organizou outro
fato de a imprensa brasileira utilizar o termo vânda- protesto, desta vez em repúdio a um acordo feito en-
los para se referir a alguns manifestantes4. tre a presidente Dilma, o senador Renan Calheiros e
pós o resultado das eleições presidenciais de o procurador-geral da República Rodrigo Janot. Em
2014, em que Dilma Rousseff foi reeleita com 51,6% dezembro de 2015 houve protestos em diversas ci-
dos votos válidos, em fevereiro de 2015, a presidenta dades em defesa do PT, contra a abertura do pedido
anunciou um pacote de ajustes fiscais que fez seu de impeachment de Dilma Rousseff e pela saída de
índice de aprovação cair de 52% para 23%. Ao mes- Eduardo Cunha da Câmara Federal. 640
mo tempo, a Operação Lava Jato já estava em an- Em março de 2016 aconteceram dois protestos,
damento, investigando políticos envolvidos em um aos quais dedicamos nossa observação sobre as co-
esquema de corrupção. Nesse período, os coletivos berturas feitas pelo Mídia Ninja e pelo G1. No dia 13
Vem Pra Rua, Movimento Brasil Livre e Revoltados os atos foram organizados para protestar contra o
Online organizaram um protesto no dia 15 de março governo Dilma Rousseff e contra a corrupção. Esses
de 2015, contra o governo de Dilma Rousseff. No dia atos se estenderam pelos dias 16, 17, 18, 19, 20 e 21
13 de março partidos de esquerda, centrais sindicais de março, também a favor do impeachment e contra
e movimentos sociais realizaram ato em defesa da a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil,
Petrobrás, contra o ajuste fiscal e contra o impeach- com uma ocupação com barracas em frente ao pré-
ment da presidente, possibilidade mencionada pelos dio da FIESP - Federação das Indústrias do Estado
movimentos contrários ao governo Dilma diante do de São Paulo. No dia 31 de março, um ato chamado
³ Fonte: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-28/abraji-registra-102-casos-de-agressao-jornalistas-duran-
te-cobertura-das-manifestacoes.
⁴ Fonte: http://www.dw.com/pt/imprensa-estrangeira-destaca-trucul%C3%AAncia-da-pol%C3%ADcia-brasileira-em-protes-
tos/a-16883228.
Sumário
pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo Sem nização de protestos de rua, e que podem ou não
Medo gerou protestos em diversas cidades, contra explicitar seus posicionamentos acerca de questões
o pedido de impeachment e a favor da democracia5. e debates políticos. Sobre o caráter comercial, cole-
tivos midiáticos não almejam o lucro, o que não os
CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROJETO E impede de estabelecer mecanismos de contribuição
CONCEITOS NORTEADORES para a realização de atividades diversas, que envol-
vam a produção e circulação de conteúdos e a orga-
O fortalecimento dos coletivos midiáticos vem nização de mobilizações. Esses mecanismos variam
gerando apropriações técnicas e sociais de ferra- entre o envio de quantias em dinheiro através de
mentas de comunicação digital para narrar os acon- contas bancárias ou sistemas de pagamento online,
tecimentos nas ruas. São usos que potencializam a venda de produtos e também projetos de crowdfun-
participação e a colaboração na produção e na cir- ding para causas e ações mais específicas.
culação de múltiplos discursos, mas que também re- Recorre-se ao conceito de midiatização para
produzem práticas e modelos baseados na verticali- pensar o entrelaçamento entre as noções de con-
dade e unilateralidade comunicacionais (AQUINO vergência midiática (JENKINS, 2006, AQUINO 641
BITTENCOURT, 2014b). Assim, nossa compreensão BITTENCOURT, 2012) e mídia de espalhamento
sobre esses coletivos midiáticos engloba grupos que (JENKINS, FORD E GREEN, 2013). A midiatização
através de sites redes sociais, plataformas digitais, do ativismo é cada vez mais nítida com o desen-
aplicativos e dispositivos móveis de comunicação volvimento de dispositivos e suportes que facilitam
produzem e promovem o espalhamento de conte- processos de produção e circulação de conteúdos.
údos sobre protestos decorrentes de mobilizações Por isso, demanda reflexão em função das apropria-
organizadas dentro e fora das redes digitais, e que ções por atores diversos, além da mídia de massa,
buscam atuar de forma desvinculada da mídia de que geram diferentes narrativas sobre os protestos.
massa, com base na participação e na convergên- Castells (2012) aponta a adoção de um suporte téc-
cia, ainda que reproduzam lógicas massivas em seus nico como causa de um novo tipo de manifestação,
processos de produção e circulação de conteúdos. mais horizontal e menos centralizada, na qual os
São grupos que podem ou não participar da orga- fluxos alternativos de informação recebem tanta
⁵ Na finalização deste texto a composição do governo já havia sofrido alterações: no dia 12 de maio de 2016 o Senado Federal
aprovou a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que foi afastada do cargo por 180 dias. Em
agosto de 2016, presidente em exercício é o vice Michel Temer.
Sumário
atenção quanto os da mídia tradicional. Nesse mo- protestos pelo mundo tentando perceber o impac-
mento desponta a atividade de coletivos midiáticos. to dos meios digitais nas ações coletivas. Os autores
Uma das consequências mais significativas da identificam tipos ideias de ações em rede em larga
midiatização, para Braga (2012), é o atravessamento escala que vêm ganhando proeminência no cenário
dos campos sociais específicos que gera situações político contemporâneo. Assim, nesse contexto mi-
indeterminadas e experimentações correlatas. Faus- diatizado o relato dos fatos escapa ao controle da mí-
to Neto (2008) relata a disseminação de novos proto- dia de massa, diante da multiplicidade de vozes que,
colos técnicos na extensão da organização social, a pelas redes, narram os acontecimentos e geram vi-
intensificação de processos que transformam tecno- sibilidade para diferentes opiniões e interpretações,
logias em meios de produção, circulação e recepção suscitando a reflexão sobre os processos de produ-
de discursos. Sua noção de midiatização se baseia ção e circulação de narrativas em contexto de redes.
ideia de apropriação, que provoca a intensificação
de tecnologias convertidas em meio. Essa conversão PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
é cadenciada por apropriações sociais, de modo que
a midiatização é a atividade que ultrapassa o do- Para analisar as coberturas sobre os protestos 642
mínio dos meios em si, expandindo-se ao longo da dos dias 13 e 31 de março de 2016, realizamos uma
organização social, conferindo-lhe uma nova dinâ- coleta de dados nos sites, nas fanpages do Facebook,
mica. Questões fundamentais sobre a interferência e nas contas de Twitter e Instagram do Mídia Nin-
dos meios na cultura e na sociedade decorrem da ja e do G1. Entendemos aqui o Mídia Ninja como
midiatização, explica Hjarvard (2014), que trabalha um coletivo midiático e o G1 como um veículo re-
o conceito a partir do entendimento de que a influ- presentativo da mídia de massa (BELTRÃO, 1972;
ência da mídia acontece não só sobre as sequências DIZARD JR., 2000). Na primeira data, foram mar-
comunicativas entre os atores sociais e as mensa- cados protestos contra o governo da época, a favor
gens, mas também na relação entre os meios e ou- do impeachment da presidente Dilma e, mais espe-
tras esferas sociais. Ele também reflete sobre como cificamente, devido aos sentidos que percebemos no
a midiatização pode propiciar novas condições para detalhamento do empírico, contra o ex-presidente
o desenrolar de conflitos, ainda que não seja deter- Lula e, em consequência, contra o PT - Partido dos
minante sobre como eles se desenvolvem. Trabalhadores. A segunda data foi marcada por pro-
Bennet & Segerberg (2012) investigam esse apa- testos a favor da presidência, contra o impeachment
rato de comunicação digital que sustenta diversos e um possível golpe de estado que poderia emergir
Sumário
nos desdobramentos do caso. Através dos dados, 6 compartilhamentos, 5 matérias e 2 textos. Duran-
procuramos identificar as estratégias de circulação, te o dia 13, uma publicação mantida fixada no topo
os usos das ferramentas e as narrativas que emer- da fanpage levava ao vídeo com título #DesligaTV,
giram nas atividades de cobertura realizadas pelos ao vivo, de um programa denominado Domingão
atores observados. A pesquisa exploratória (FRA- na Mansão7 produzido pelo canal Desliga Televisão,
GOSO, RECUERO, AMARAL, 2011) foi segmentada. no YouTube. Das 65 publicações, 15 possuíam links
Os dados foram coletados através de captura de tela que levavam a esse canal. O uso de imagens reve-
e armazenados em um drive. Optou-se por expor e la o apelo visual através dos conteúdos na fanpage.
discutir aqui apenas as publicações do Mídia Ninja e São imagens que variam entre fotos produzidas nos
do G1 feitas no Facebook, pois é o espaço em que há protestos e que estavam circulando na web, além
mais publicação de conteúdo por ambos. Para não de montagens e apropriações de conteúdos imagé-
comprometer o espaço dedicado ao referencial teóri- ticos. Nesta categoria também surgiram memes, en-
co e à discussão sobre os dados, assim como a quali- tendidos aqui no sentido popular de alta replicação
dade dos materiais, todas as imagens citadas a seguir e não especificamente na complexidade do que pro-
estão disponíveis no link: https://goo.gl/WfzTYd. põe Dawkins (1979), ao entendê-los como a unida- 643
de mais básica da reprodução cultural. As imagens
3.1 As coberturas dos protestos do dia compartilhadas (Fig. 1) trazem denúncias de pre-
13 de março de 2016 conceitos, discursos de ódio e de associações, vis-
tas pelo coletivo, como duvidosas devido as pessoas
3.1.1 Mídia Ninja6 públicas envolvidas nos protestos, como o deputado
Jair Bolsonaro, conhecido por suas declarações ra-
Em agosto de 2016 a página do Mídia Ninja no cistas e homofóbicas. Algumas imagens de outras
Facebook possuía mais de 970 mil curtidas. Foram páginas não são compartilhadas através das possi-
coletadas, no total, 65 publicações do dia 13 de mar- bilidades do site, mas são republicadas na página e
ço de 2016. Desse total foram 39 imagens, 13 vídeos, trazem a fonte de origem na legenda, uma proces-
⁶ Fonte: https://www.facebook.com/midiaNINJA/?fref=ts Como um coletivo que vem cobrindo os protestos no Brasil, entre
outros acontecimentos, o Mídia Ninja tem uma representatividade significativa para um grupo que se declara independente e
que busca construir uma "lógica colaborativa de criação e compartilhamento de conteúdos, característica da sociedade em rede,
para realizar reportagens, documentários e investigações no Brasil e no mundo."
⁷ Fonte: https://www.facebook.com/midiaNINJA/photos/a.164308700393950.1073741828.164188247072662/612290978929051/?-
type=3&theater
Sumário
ficidades já detalhadas. Cinco publicações apresen- Brasil; uma declaração do juiz Sérgio Moro sobre as
taram no total 17 imagens 14 publicações eram de manifestações; o medo do governo em perder alia-
matérias do G1. Vídeos, compartilhamentos e texto dos em decorrências dos movimentos do dia; a hos-
não foram utilizados pelo G1 neste dia. O G1 explora tilização a Aécio e Alckmin quando tentaram parti-
mais de uma imagem nas publicações. O Facebook cipar dos protestos em São Paulo - na qual a hashtag
permite que em uma atualização apareça mais de utilizada é #G1 e que também apareceu em outras 17
uma foto, criando (Fig. 3) um mosaico automático publicações, como demonstrado no gráfico 2.
com as imagens carregadas em uma linha do tempo
. 13 publicações trazem matérias que direcionam ao
portal do G1 e que retratam o cenário dos protestos
através de diversos formatos. Há publicações que
levam ao site para acompanhar as manifestações em
tempo real e que detalham o número estimado de
manifestações e as cidades em que elas ocorreram, Gráfico 2- Hashtags utilizadas pelo G1 no dia 13
compondo um mapa dos protestos, que não contém Fonte: elaborado pelos autores.
645
as manifestações a favor do governo Dilma, desta-
cadas em outras três publicações. Essas publicações O G1 reforça mais as hashtags com o nome do
destacam as manifestações pró-governo, sendo uma portal do que em torno dos protestos, tendo em vis-
delas sobre o coxinhaço promovido no Parque Far- ta a distribuição quantitativa visível no gráfico 2. A
roupilha, em Porto Alegre (Fig. 3), e as outras duas hashtag protesto, no singular, foi utilizada em uma
são uma matéria sobre o apoio a Lula em Fortaleza publicação sobre uma manifestação a favor de Lula
e um mosaico de imagens com três fotos, que traz o em Fortaleza. Enquanto as outras publicações conti-
número de cidades que, segundo o G1, foram cinco nham a hashtag protestos, no plural. #CrisePolítica
que tiveram manifestações a favor do governo Dil- aparece em uma matéria na qual Dilma cobra do
ma e de Lula. governo de São Paulo uma ação referente ao ataque
O G1 também publica no links de matérias que feito a UNE e em outra na qual destaca-se que as
relatam manifestações que ocorreram fora do Brasil: manifestações poderiam afetar a decisão em torno
como a imprensa internacional está repercutindo os do processo de impeachment da presidenta Dilma.
protestos contra o governo; protestos contra o go- #Lula e #Dilma aparecem em publicações que tem
verno na cidade natal de Lula; destacando no título como foco as suas figuras políticas, seja em protes-
da matéria que os manifestantes pedem desculpas ao tos ou em declarações.
Sumário
3.2 Dos protestos do dia 31 de março de 2016 no Fa- sendo publicadas fotos e vídeos das manifestações,
cebook e o streaming, através da ferramenta do Facebook
que permite a publicação de vídeos ao vivo, das ma-
3.2.1 Mídia Ninja nifestações. Percebe-se então uma atividade maior
em termos de produção de conteúdo e também de
No 31 de março, diferentemente do dia 13, as uso das possibilidades ofertadas pelo site. O en-
manifestações marcadas através da circulação em gajamento com os públicos parece motivado pelo
redes sociais colocavam-se como a favor da presi- posicionamento claramente definido pelo coletivo,
denta Dilma Rousseff. Entre 173 publicações foram fortalecendo a midiatização do ativismo através das
128 imagens, 39 vídeos, 4 compartilhamentos, 2 ma- estratégias de circulação adotadas.
térias e nenhum texto. A narrativa do Mídia Nin- Após o movimento denominado Twittaço, o co-
ja no dia 31 é diferente em comparação ao dia 13. letivo fez duas publicações com imagens mostrando
Com mais que o dobro de publicações, as mensa- os Trending Topics do Twitter, em que a hashtag
gens convocam ações de protesto na rua e em sites #BrasilContraOGolpe aparece em primeiro lugar.
de redes sociais, como o Twitter (Fig. 4), e cobrem Em uma das publicações, os atores sociais são con-
646
os protestos ao redor do mundo, mantendo o dis- vocadas a usarem a hashtag em todos os sites de
curso contra a Rede Globo. Há uma forte presen- redes sociais, evidenciando, assim, a relevância da
ça de fotos e vídeos, sendo que algumas imagens hashtag para o coletivo, como é possível perceber
funcionam como ilustração de textos mais extensos no gráfico 3.
e complexos. As imagens possuem sentidos diver-
sos: funcionam como memes de internet (Fig. 4)
com carga ativista, trazem mensagens feministas,
relatam o apoio de movimentos LGBT, estudantes,
mulheres, religiosos (evangélicos e mães de santo) e
MST, sempre trabalhando com cores e com pessoas
das mais diversas etnias e corpos. Há também uma
publicação pedindo a colaboração através do envio
de fotos e vídeos para o Ninja de quem visse alguma
manifestação em sua cidade. Ocorreu, também, a di- Gráfico 3- Hashtags utilizadas pelo Mídia Ninja no dia 31
vulgação do Telegram do coletivo, no qual estavam Fonte: elaborado pelos autores.
Sumário
dias, utilizando em imagens uma multiculturalida- como memes e imagens editadas com mensagens,
de humana (negra, feminista, LGBT, religiosa) que utilizando as hashtags que outros atores sociais es-
conversava com os textos extensos na fanpage no tão circulando. O G1 demonstra um esforço em cha-
Facebook. Ainda assim, fica claro que a motivação mar a atenção para o conteúdo quando explora a
dos protestos influencia na quantidade de conteúdo multiplicidade de imagens através da possibilidade
produzida, tanto pelo G1 quanto pelo Mídia Ninja. oferecida pelo Facebook, mas é limitado ao ampliar
Sob um ponto de vista de usos e apropriações os usos no site. O Mídia Ninja tenta estimular o uso
tecnológicas, o G1 demonstra um domínio de forma- de outros espaços, como o Twitter, o que colabo-
tos desenvolvidos no próprio site, como o mapa das ra para o aumento do alcance de seus conteúdos.
manifestações e a página em tempo real que discur- Ambos exploram outros formatos fora do Face-
sivamente e imageticamente narrou os protestos8. book, mas analisando quantitativamente há uma
O Mídia Ninja explora mais as possibilidades ofere- mobilização maior de conteúdos levados de outros
cidas pelo Facebook para circular seus conteúdos: espaços para o Facebook no caso do Mídia Ninja, e
a utilização da transmissão em vídeo ao vivo, o uso isso contribui para a circulação das mensagens. O
de imagens e vídeos enviados pelos próprios mani- G1 limita-se a divulgar o conteúdo produzido pelo 648
festantes através de capturas feitas com celulares e veículo e publicado no portal, sem complexificar os
não tão produzidas e o compartilhamento de con- usos da fanpage.
teúdo de outras páginas são algumas das técnicas
utilizadas pelo coletivo. Essa exploração tecnológi- CONSIDERAÇÕES
ca converge com o posicionamento adotado, visto a
quantidade de conteúdo em cada dia de protestos. Os usos que o G1 faz do Facebook tem pouco
Estrategicamente, no que concerne aos méto- de apropriação das funcionalidades do site, o que
dos adotados para a circulação dos conteúdos publi- pode inibir o estabelecimento de dinâmicas sociais
cados na fanpage, o G1 foca em circular as matérias em torno dos conteúdos que ampliem a visibilida-
do portal, não desenvolvendo materiais específicos de do que é publicado. É fato que o número de fãs
para o Facebook, nem utilizando as hashtags. O Mí- na fanpage do G1 é alto, mais de 7 milhões, o que
dia Ninja desenvolve conteúdos mais suscetíveis não significa que todas essas pessoas acompanhem
ao espalhamento (JENKINS, FORD, GREEN, 2013), o que é publicado na página. O Mídia Ninja possui
⁸ Fonte: http://especiais.g1.globo.com/politica/mapa-manifestacoes-no-brasil/13-03-2016/contra/.
Sumário
em torno de 900 mil, o que justificaria os esforços no Facebook. Nesse sentido, se o objetivo do G1 é
em diversificar os usos da fanpage com o objetivo (supomos) usar o Facebook para atrair leitores para
de aumentar a visibilidade das publicações. Ainda os conteúdos no portal, ignorar os usos e não apro-
assim, é um número representativo para um coleti- veitar as oportunidades de espalhamento que o site
vo que não tem o mesmo tempo de vida que a Rede oferece é desperdiçar um site de rede social como
Globo. Contudo, indo além dos números, percebe- atrativo para os conteúdos em outros espaços. As
mos que o G1, apropriando-se pouco do Facebook, limitações que o próprio Facebook impõe aos seus
mantém a produção de um jornalismo que pouco usuários, moldando a visualização dos conteúdos de
explora os níveis técnico e estratégico do site de rede acordo com mecanismos de filtragem pouco explí-
social. As formas pelas quais o Mídia Ninja diversi- citos é muito cara ao jornalismo que diversos atores
fica as publicações e tenta promover a interação dos vêm tentando praticar no Facebook, ainda assim,
seguidores com os conteúdos e entre eles através Jeff Jarvis (2016) faz uma consideração pertinente
dos debates, poderiam ser absorvidas por veículos sobre esse cenário, dizendo que é preciso ficar aten-
jornalísticos tradicionais. A aproximação com os to aos sites como Google e Facebook. O argumento
públicos dos conteúdos e o aproveitamento das po- de Jarvis chama a atenção para o fato de que por 649
tencialidades do Facebook fortalecem a circulação mais que se saiba o quanto o Facebook impede a
e o espalhamento das informações, sinalizando, in- livre circulação e o acesso aos conteúdos, é lá que as
clusive, a emergência de um jornalismo que quebra pessoas estão. Ignorar um site de rede social como
a distopia de uma imparcialidade jornalística. o Facebook hoje é deixar de lado os públicos, que
É importante mencionar que a presença dos fil- não são mais apenas leitores ou consumidores de
tros (PARISER, 2012) que o Facebook utiliza tam- informação; são agentes num processo de apropria-
bém interfere na estratégia de circulação. Várias ção e ressignificação de sentidos. Os memes são um
questões podem ser discutidas sobre isso, mas aqui exemplo que representa como o espalhamento dos
é importante mencionar que a quantidade de se- conteúdos depende não só de estratégias de uso de
guidores não necessariamente garante o alcance e ferramentas de comunicação como sites de rede so-
a visibilidade que se busca. Nesse sentido, a baixa cial, por exemplo. O jornalismo demanda cada vez
exploração das potencialidades do Facebook pelo mais uma reflexão estratégica que inclua os públicos
G1 limita a ampliação desse alcance. Ao estimular o como atores ativos não só na produção, mas prin-
debate e o espalhamento, o Mídia Ninja aumenta as cipalmente na circulação dos conteúdos. Quando
chances de suas publicações atingirem mais pessoas se trata de um coletivo midiático isso ganha ainda
Sumário
mais importância, se considerarmos que se tratam seria um ponto positivo no cenário informacional
de grupos que buscam visibilidade e legitimidade sobre os acontecimentos. Partilhamos da ideia de
através de um fluxo informacional que se estabelece que quanto mais informações, de ambos os lados
em paralelo ao que é veiculado pela mídia de massa. de um ambiente polarizado como o que se formou
Por fim, essa análise nos mostrou o quanto o nos últimos anos, forem postas em circulação pelas
posicionamento, declarado ou não nos conteúdos, redes, de mais conteúdo as pessoas poderão dispor
interfere na quantidade de publicações. O Mídia para então formar suas opiniões e compreensões a
Ninja publicou mais quando os protestos foram a respeito dos fatos.
favor do governo Dilma, inclusive lançando mão
de mais possibilidades e formatos comunicacionais
dentro e também fora do Facebook nos protestos REFERÊNCIAS
do dia 31. Nesse mesmo dia, o G1 limitou-se a duas
publicações no site de rede social. Quando os pro- AQUINO BITTENCOURT, M.C. Convergência entre
televisão e web: proposta de categorização analítica. Tese
testos foram contra o governo, o G1 explorou o uso
(Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Comunicação
de hashtags, de imagens e tentou direcionar o públi- e Informação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 650
co que tinha no Facebook para a cobertura feita no 2012. Disponível em: <http://goo.gl/bbzhJ6>.
portal. O Mídia Ninja, no dia 13, produziu bem mais
conteúdo que o G1 no dia 31, buscou construir uma AQUINO BITTENCOURT, M.C. A midiatização do ativis-
mo nas coberturas do G1 e do Mídia Ninja. Comunica-
narrativa de crítica aos protestos daquele dia, mas
ção, Mídia e Consumo (São Paulo. Impresso), v. 11, p. 85-103,
empenhou-se mais nas estratégias de circulação 2014a.
no dia 31, quando os protestos estavam a favor do AQUINO BITTENCOURT, M.C. Movimentos sociais e
governo de Dilma Rousseff. Nesse sentido, enten- mídia de espalhamento: práticas colaborativas pela de-
demos que ambos deixam de praticar o jornalismo mocratização da comunicação em contexto de convergência.
Líbero (FACASPER), v. 17, p. 51-60, 2014b.
que se propõem quando os acontecimentos desto-
am de suas correntes políticas. Com isso não que- BELTRÃO, L. Sociedade de massa: comunicação e literatu-
remos defender o argumento de que o jornalismo ra. Editora Vozes: Petrópolis, 1972.
deve ser imparcial. Entendemos que a transparência
BENNETT, W. L; SEGERBERG, A. The logic of connective
de posições agrega valor ao processo informacio- action. In: Information, Communication & Society. Vol. 15
nal se bem construída, de forma que a produção de no. 5, pp. 739–768, 2012.
conteúdo em ambas as datas por ambos os atores
Sumário
BRAGA, J. L. Uma teoria tentativa. Revista da Associação JORDAN, T. Activism!. London: Reaktion Books, 2002.
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comuni-
cação, Brasília, v. 15, n. 3, set.-dez, 2012. Disponível em: MALINI, F.; ANTOUN, H. @internet e #rua: ciberativismo
<http://goo.gl/dw1QOJ>. e mobilização nas redes sociais. Editora Sulina: Porto Alegre,
2013.
CASTELLS, M. Networks of Outrage and Hope – Social
Movements in the Internet Age. Cambridge: Polity Press, PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escon-
2012. dendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
DAWKINS, R. O gene egoísta. Belo Horizonte, Itatiaia, PRADO, M. Ciberativismo e noticiário: da mídia torpedis-
1979. ta às redes sociais. Alta Books Editora: Rio de Janeiro, 2015.
652
Sumário
¹ Psicóloga, licenciada e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria. UFSM.
² Acadêmica do Curso de Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil/Santa Maria. Participante da iniciação científica pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFSM.
³ Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFSM.
Sumário
ted. In addition, it enables the dialogue of a relevant mais áreas do conhecimento na possibilidade de um
theme today, which proposes achieving results in diálogo. Ainda, tem por intenção, analisar sob que
scientific areas, and in addition, the social spaces. modo às reordenações familiares tem se configura-
Keywords: Homosexuality. Psychoanalysis. Paren- do e identificar possíveis implicações normativas e
thood. reflexos no exercício da homoparentalidade.
Destaca-se ainda, que este estudo decorre de
uma pesquisa realizada durante a graduação em
INTRODUÇÃO psicologia, no ano de 2013 na região central do Rio
Grande do Sul, a qual buscou estudar a compreensão
Este estudo apresenta um recorte da pesquisa de psicólogos clínicos sobre a homoparentalidade.
que está sendo realizada e tem como temática a aná- Estes participantes se reconheciam como atuantes
lise do desejo em exercer a parentalidade por famí- a partir da teoria psicanalítica. A pesquisa se con-
lias homossexuais. O referido tema de pesquisa foi figurou como um estudo de campo, a partir da re-
tomado tendo em vista o processo histórico dos lu- alização de entrevistas semi-estruturadas. Assim, o
gares ocupados pela família na sociedade, os quais estudo realizado, proporcionou um diálogo próximo 654
foram marcados por desafios e novas perspectivas, com a psicanálise e com a cultura, enquanto vicissi-
entre elas os direitos vigorados e reconhecidos para tudes da teoria e prática clínica. No entanto, muitos
o exercício das diversas formas de parentalidade. dos resultados causaram apreensão frente ao que
Elizabeth Roudinesco (2003) em A Família em hoje está posto sobre os reordenamentos familiares.
Desordem lança uma questão que faz luz a temática, Isto ficou evidenciado em discursos que atrelavam
“O que esta demanda representa?”, eis a possibilida- o exercício da homoparentalidade a modelos hete-
de aqui, quando se pretende estudar a homoparenta- rossexuais, levantando a necessidade de figuras do
lidade, de uma demanda que reconstrua ou descons- sexo masculino e feminino, para o desenvolvimento
trua os ideais de família e seus respectivos espaços, saudável de uma criança (PFITSCHER, et.al, 2015).
permitindo assim, caminhos a serem trilhados por Justifica-se ainda esta temática, frente a movi-
meio desta pesquisa que se fundamenta em impor- mentos históricos dos espaços ocupados pelo femi-
tantes lugares e marcos históricos da sociedade. nino e masculino na sociedade, que ao longo dos
Assim, este estudo objetiva problematizar a anos foram reordenando-se e tornando-se mais ma-
implicação de normativas sociais na escolha de ter leáveis, bem como, pelas condições da atualidade,
filhos e toma um percurso psicanalítico junto a de- movimentos opressores e violentos marcados por
Sumário
discursos de poder. Nos dias atuais, a parentalidade lino ou feminino, estes lugares estão intimamente
ainda tem sido determinada pela via estruturalis- atrelados a lógica social, cultural e suas respectivas
ta, convoca-se com a esta pesquisa a possibilidade funções. Para tanto, a necessidade de se promover
de uma desconstrução de ideais, lógicas binárias e discussões, pesquisa e diálogo, onde seja possível
associações ao biológico, como determinantes para reconhecer a singularidades, considerando que as
uma condição “saudável” de desenvolvimento. mudanças sociais devem ser acompanhadas e não
Para tanto, este recorte se constitui a partir de determinadas em um único modelo (ARÁN, 2011).
um levantamento bibliográfico na pretensão de dia- Logo, para a psicanálise, toda relação de sujeito pas-
logar sobre os avanços da pesquisa que resultará sa pela via do sexual, contudo, não restrito ao sexo/
em uma dissertação. A pesquisa realizada tem como biológico, pois não é este que determina as relações
metodologia o cunho qualitativo e se embasa nos com o mundo e a cultura (BELO, 2011).
princípios éticos e legais, com famílias/sujeitos ho- Assim, Pereira (2009), propõe pensar que a psi-
mossexuais que passaram pelo processo de paren- canálise junto a outras áreas do conhecimento, tem
talidade ou desejam este. Propõe-se neste espaço, fortalecido que a constituição de um sujeito, está
uma articulação teórica que circula pelas reconfigu- associada ao simbólico, as funções e seus laços com 655
rações familiares e os efeitos discursivos da cultura. a cultura. Estes produzem e oferecem lugares iden-
tificatórios, para além de determinações naturalis-
PSICANÁLISE, NORMATIVAS SOCIAIS E tas, biológicas, que fixam o masculino e feminio,
HOMOPARENTALIDADE ao campo do homem e mulher. Ávila (2014) instiga
uma leitura sobre a experiência e as construções
Na década de 30, Lacan (1938/2003) havia discursivas dos lugares marcados pelo masculino e
afirmado que a família não se limita ao biológico, feminino na sociedade. Afirma que os sujeitos são
propondo a compreensão de que um grupo natu- produzidos discursivamente e que a experiência
ral de indivíduos se constitui na sua relação com não está em uma ordem pré-estabelecida, então,
o ambiente, na qual as funções asseguradas estão fixa. Destaca que não existe uma universalidade do
nos adultos e nos laços que estes irão estabelecer. masculino ou feminino, a autora produz assim, uma
Anteriormente a Lacan, Freud (1932-1933/1996) faz leitura de que o discurso se traduz em uma via de
questionamentos sobre as distinções anatômicas e base ideológica, enlaçada as normativas sociais de
seus destinos, fala que ordenamentos biológicos, uma respectiva cultura.
são insuficientes para definições do que é mascu-
Sumário
Nesta perspectiva Santos e Zinani (2010) atri- e profissionalização das mulheres, bem como a dis-
buem a palavra uma marca discursiva, de ordenação cussão e evolução de pautas feministas, operou-se
e submissão, quando colocada como detentora de um deslocamento na posição do feminino, assim
interditos. Quando se trata de questões de gênero, como importantes mudanças nas esferas públicas e
esta via discursiva pode contribuir ideologicamen- privadas (ARÁN, 2011).
te, nas produções da cultura e das relações de poder, Nesta via, os reordenamentos simbólicos do
que acabam por bordear os sujeitos, os colocando feminino apontaram para uma modificação no lu-
em posições fixas. As autoras, retomam ideiologias gar ocupado pela figura paterna autoritária, base
como as do século XIX que direcionava a mulher da família tradicional. Soma-se a isso, na déca-
aos espaços privados, do lar e da família. Estas mar- da de oitenta, o movimento de homossexuais, que
cas discursivas, que ainda deixam resquícios, per- inaugurou a problematização da normatividade do
manecem como um desafio de descontrução na atu- matrimônio, da parentalidade e da filiação (ARÁN,
alidade, de tais modelos. Assim, pode-se pensar a 2011), levando ao questionamento da anatomia en-
homossexualidade na mesma via, que encontra-se quanto destino.
na luta e busca pelos seus direitos de experenciar Costa et al. (2013) afirma que tais acontecimen- 656
outros modos de ser e de subjetivar. tos indicaram a possibilidade da família estar em
As representações sobre a família e suas mu- outros espaços, na possibilidade de relacionar-se,
danças ainda repousam sobre construções que mar- a partir de um desejo singular. A família passou a
cam certos posicionamentos ideológicos. De um ocupar um novo espaço, no qual, a família homopa-
lado, invoca-se a ideia de “família tradicional”, cen- rental, caracterizada por casais homossexuais pais
trada na figura do homem. (GAVAINI, 2008). Relem- ou mães, de pelo menos uma criança, apresenta-se
bra-se, que o homem dominava o espaço público, como uma questão de cunho social.
sendo associado a uma representação de inteligên- A homoparentalidade foi um neologismo criado
cia, poder e prestígio. Por sua vez, à mulher desti- em 1997 pela associação de Pais e Futuros Pais Gays
nava-se o espaço privado, doméstico, estando seu e Lésbicas (APGL), na França, com o intuito de se
poder vinculado à sedução e às falácias do corpo nomear uma situação em que pelo menos um adulto
(KEHL, 2004). Estas passaram a reclamar um lugar se designa homossexual, pai ou mãe de no mínimo
de reconhecimento junto ao social que não fosse re- uma criança (ZAMBRANO, 2006). Os direitos de gê-
duzido ou necessariamente atrelado à experiência nero, homossexualidade e relações parentais tem se
de maternidade. Com o aumento da escolarização estendido nas mais diversas áreas de estudo, como
Sumário
nas ciências sociais, onde a temática é discutida por Legalmente, o casamento homossexual foi reco-
Judith Butler em Problemas de Gênero; Kath Weston, nhecido no Brasil, a partir de uma resolução4 aprova-
em Famílias que escolhemos, onde faz uma análise a da pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2013, que
partir de um estudo etnográfico com Gays e Lésbicas dispõe sobre a proibição de recusa a casamentos ci-
da década de 80 na Califórnia. A família, por sua vez, vis entre pessoas do mesmo sexo (BRASIL, 2013). Já
é reconhecida como objeto de estudo da sociologia, mundialmente, o casamento homossexual e a adoção
antropologia, e está cada vez mais próxima do cam- homoparental, percorre por tramitações, entre pro-
po jurídico, visto que tem demandado processos de jetos de leis, definições políticas, aprovações junto a
regulamentação, frente as diversas composições que argumentos conservadores e posições contrárias.
se apresentam (TEPERMAN, 2014). Com o tempo, as famílias homoparentais passa-
A homossexualidade passou por um processo de ram a ser reconhecidas e então, a demanda de paren-
reconhecimento e mudanças que percorreu por dé- talidade ganhou espaço no cenário social. Em uma
cadas. Pois enfrentou desafios, tais como, em 1968, a pesquisa realizada em Portugal, evidencia-se signi-
homossexualidade constava em um manual diagnós- ficativa preocupação frente a posições do país, no
tico como “desvio sexual”, a exclusão deste critério que se refere a aceitação e reconhecimento da ho- 657
deu-se em 1973, a partir de uma luta política do mo- moparentalidade. Este indicio foi considerado preo-
vimento gay. Contudo, embora não considerada uma cupante, diante de conclusões em pesquisas, as quais
doença mental, a homossexualidade seguiu na re- apontaram que os portugueses se sentem menos à
pressão de formas moralizantes de controle. Embora vontade com a ideia de ter vizinhos homossexuais e
despatologizada, na década de 1980 foi reconhecida famílias homoparentais (GATO e FONTAINE, 2010).
como uma ameaça em um imaginário biopolítico da Entre os dados apontados por pesquisas reali-
coletividade sob ameaça, onde a norma heterossexu- zadas na Europa, Gato e Fontaine (2010) destacam
al, seguiu sendo reforçada (ÁVILA, 2014). entre o público pesquisado, a presença de profis-
sionais da área de saúde mental, os quais, em seus
⁴ Na página online do Supremo Tribunal Federal, estão algumas considerações quanto a aprovação: “A Resolução veio em uma
hora importante. Não havia ainda no âmbito das corregedorias dos tribunais de Justiça uniformidade de interpretação e de
entendimento sobre a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da conversão da união estável entre casais
homoafetivos em casamento”, disse o conselheiro Guilherme Calmon. “Alguns estados reconheciam, outros não. Como explicar
essa disparidade de tratamento? A Resolução consolida e unifica essa interpretação de forma nacional e sem possibilidade de re-
cursos” (STF, 2013). Disponível em: <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=news-
letterPortalInternacionalDestaques&idConteudo=238515>.
Sumário
discursos atribuíam mais valor ao modelo heteros- cunho social, na possibilidade de promover questio-
sexual do que homossexual. Este tipo de discurso, namentos sobre determinados padrões e posiciona-
também pode ser observado em uma pesquisa rea- mentos normativos.
lizada, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, que Assim, analisam-se estes dados que contem-
contemplou a percepção de psicólogos clínicos so- plam profissionais e estudantes da área da psicolo-
bre a homoparentalidade. Entre os resultados des- gia para pensar a lógica normativa, visto que estes,
tacaram-se na maioria dos discursos, que a consti- é quem diretamente estão escutando sujeitos. Con-
tuição psíquica de uma criança inserida no contexto siderando os resultados analisados por Gato e Fon-
homoparental, necessitaria de referências do mode- taine (2010), nos quais evidencia-se que muitos não
lo heterossexual, para um desenvolvimento “saudá- são receptivos a homoparentalidade, questiona-se:
vel” (PFITSCHER, et al. 2015). Com isso observa-se, Como isto então, aparece no contexto social? Seria
que o exercício da homoparentalidade ainda está um reflexo normativo nestes discursos? O desejo do
muito vinculado aos modelos heterossexuais, que outro pode ser/é escutado? É analisável que o de-
determinam padrões e modelos de funcionamento sejo, que se discorre aqui, por vezes necessita ser
frente as famílias que se reconstituem. ordenado, normatizado, concreto. Portanto, eis um 658
Já em uma pesquisa realizada com estudantes ponto chave deste estudo, o quão padrões, deter-
de psicologia do Canadá, sobre a homoparentalida- minações, estão implicadas no desejo dos pais que
de, observou-se que participantes do sexo masculino exercem esta parentalidade? Se problematiza isto,
concordavam menos com a adoção homoparental a partir de dados, questões políticas e direitos, e o
do que as participantes do sexo oposto. Nesta pers- quanto uma lógica moral está implicada com este
pectiva, a partir do levantamento realizado pelos lugar da homoparentalidade.
autores, de pesquisas realizadas mundialmente so- Fonseca (2008) propõe pensar na recriação de
bre a parentalidade homossexual, foram identifica- ideologias de parentesco, articulando um diálogo
das na sua maioria uma perspectiva heterossexista com os direitos e instâncias políticas. Para isto, des-
da parentalidade, a qual, tende o favorecimento do taca que primordialmente a homoparentalidade não
modelo heterossexual (GATO e FONTAINE, 2010). consiste em uma organização diferente de outras
Os autores destacam, a partir do levantamento rea- configurações familiares. Porém, como é reconhe-
lizado, a necessidade de espaços reflexivos, que fa- cida a partir de novas ou reconfigurações, promove
voreçam a formação nos cursos que preparam pes- uma desestabilização nas bases e crenças do que a
soas que estão inseridas no contexto psicossocial. sociedade dita como “natural”.
Para além disto, demanda-se um espaço reflexivo de
Sumário
De acordo com a autora, a década de 80 foi SECA, 2008), a visibilidade de famílias compostas
marcada por jovens reconhecendo e anunciando por homossexuais na França, esteve diretamente
sua orientação sexual, no caso a homossexualida- relacionada a importância política e social adquiri-
de. A partir disto, houveram muitas rupturas nos da pela APGL, onde era composta inicialmente por
núcleos familiares, marcando o repúdio de pais e homens e mulheres divorciados que passaram as-
familiares a perspectiva homossexual. Destaca que sumir a homossexualidade (TARNAVOSKI, 2013).
em significativa parte dos Estados Unidos a união No ano de 2013, o país passou por um movimento
homossexual é aceita, contudo, a Flórida mantinha de conservadores, vinculados a questões religiosas,
uma proibição explicita quanto aos casos envolven- contra aprovação e reconhecimento da adoção ho-
do homossexuais. moparental. Os movimentos ganharam repercus-
Sobre as relações homossexuais, Fonseca (2008) sões mundiais, contudo, foi aprovado a adoção por
sustenta que argumentos contrários afirmam haver homossexuais no país.
muitos conflitos entre pares homossexuais, porém, Nos Estados Unidos, 21 estados emitiram regu-
defende que o conflito é pertencente a qualquer lações garantindo o direito de homossexuais adota-
relação. Aquilo que anteriormente, era defendido rem. A ampliação e reconhecimento dos direitos a 659
como um amor duradouro e eterno nas relações he- parentalidade, fez com que muitos casais homossexu-
terossexuais foram crenças desconstruídas, por no- ais recorressem as mais diversas possibilidades para
vos parâmetros e perspectivas sociais. A ampliação exercer suas funções parentais, entre elas o processo
das escolhas, determinações, possibilidades, e novas de inseminação artificial e a adoção. Com as mudan-
perspectivas nos terrenos das leis, desloca um ideal ças legislativas e apoios governamentais, bem como,
fixado. No entanto, isso ainda não está evidente nos de movimentos sociais, a homoparentalidade passou
discursos e posicionamentos, pois a homoparenta- a ganhar espaço e reconhecimento. A partir disto,
lidade, ainda possui limitações de ordem mundial se lançaram novas questões frente ao exercício da
(FONSECA, 2008). homoparentalidade: Se trata de um reconhecimento
Muitos países europeus como a Dinamarca, Ho- da lei ou do desejo? Promovendo indagações, sobre
landa e Espanha, reconhecem os direitos a adoção até que ponto a lei5 que é determinante nas relações,
homoparental. Na França, desde 2000 há uma juris- e qual é o seu espaço no cotidiano urbano. O certo e
prudência que proibi a discriminação em função da o errado, se determina em extremos, e a homoparen-
orientação sexual contra candidatos a adoção (FON- talidade é reconhecida de que forma?
⁵ Se discorre não sobre uma lei jurídica, legislativa, e sim de uma lei, simbólica, moral (FONSECA, 2008).
Sumário
De acordo com Tarnavoski (2013) os lugares na sim, práticas que parecem consequências de lógicas
atualidade ainda estão significativamente demarca- institucionais, tomadas por uma reprodução espe-
dos pelo bom e o ruim, o bom pai e a boa mãe, atri- cífica, de um ideal de desenvolvimento infantil, um
buindo seus respectivos papéis. Trata-se, portanto, ideal de família. (FONSECA, 2008).
de reatualizar paradigmas de parentalidade enquan- Nesse sentido, a fluidez das relações afetivas na
to reconhecimento social. Os lugares, não são fixa- contemporaneidade colide com a rigidez do mode-
dos, e sim aqueles contruídos, investidos. lo socialmente aceito, onde o ideal de família ainda
Nesta continuidade, Fonseca (2008) propõe é marcado pela heteronormatividade6 das relações
pensar até que ponto as relações familiares são sub- de parentesco (FONSECA, 2008). Porém, Zambrano
sidiadas e sustentadas por uma lógica contratual. O (2006a), aponta que a multiplicidade, pluralidade e de-
que se reconhece legalmente, poderia manter uma manda de práticas igualitárias tem se encontrado em
família, um laço? Onde há o desejo para além da discussão, visto que, essas famílias tem ocupado lugar
norma? O que é aceito coloca a lógica de durabilida- de reconhecimento e legitimidade de suas relações.
de? As indagações se multiplicam frente a episódios Entre os autores que tem produzido questiona-
destacados pela autora, como, famílias homoparen- mentos, destaca-se Judith Butler, que, também en- 660
tais, que buscam por meio de recursos tecnológi- fatizando a necessidade de diálogo e integração das
cos, como inseminação artificial, fecundação in vi- áreas do conhecimento, propondo conceitos que se
tro, embriões que possuam vínculos consanguíneos, opõem à noção de identidade fixa, definindo que
com características e aspectos biológicos que apro- qualquer pessoa pode se engajar em ativismos, en-
xime a criança da semelhança aos pais. O vínculo tre eles o ativismo anti-homofóbico e dos direitos
parece sustentar por laços biogenéticos, a relação sexuais. Defende que a tarefa está em lutar contra
precisa entrar em uma lógica de naturalização, por aquilo que impede condições de vida, logo, lutar
características que sustentem. (FONSECA, 2008) contra determinadas posições repressoras e estru-
Características ou desejo? O que prevalece? turalistas (PORCHAT, 2011). Sustenta que, o poder
Eis um reflexo das normas hegemônicas, nas é o que opera na produção de uma estrutura binária,
quais, não somente a sociedade, mas os casais aca- e a linguagem é o que produz construção fictícia de
bam seguindo práticas de acordo com modelos he- sexo que sustenta os regimes atuais. E o corpo que é
terossexuais. Não há uma lógica de culpabilidade, e pauta de significativas discussões, é um meio passi-
⁶ A heteronormatividade pode ser compreendida como aquilo que é tomado como parâmetro de normalidade em relação à
sexualidade, para designar como norma e como normal a atração e/ou o comportamento sexual entre indivíduos de sexos dif-
erentes. (PETRY e MEYER, 2011)
Sumário
vo, sobre o qual se inscrevem significados culturais muitas vezes vinculadas a violência. Ao propor tais
(BUTLER, 2015). reflexões, abre-se espaço e campo para problematizar
É pela cultura que a psicanálise se atravessa ao a necessidade de desconstrução destes ideais. Nesta
compreender sujeitos, contextos, mudanças, e par- perspectiva, acredita-se que neste estudo, apresenta
tir disto, possui importante função social, pois tem passos já percorridos dos resultados esperados desta
condições de promover forte crítica à normalização pesquisa, que consiste em abrir espaços para proble-
e às regulações sociais (PORCHAT, 2011). Propõe- matização, diálogo e construção do conhecimento, e
-se um trabalho, nesse sentido, para que a psicaná- que se produzam assim, os efeitos na cultura.
lise possa servir de sustentação a uma escuta que se
permita íntegro, ético e articulado à historicidade REFERÊNCIAS
das relações e do social.
ARÁN, M. Políticas do desejo na atualidade: psicanálise
e a homoparentalidade. Rev. psicol. Polít., 11. 2011
CONCLUSÃO
ÁVILA, S. Transmasculinidades: A emergência de novas
Este estudo propôs um recorte da pesquisa que identidades políticas e sociais. Ed. Multifoco. 2014. 661
está sendo realizada, e com isso apresenta resulta-
dos dos avanços neste percurso científico, cultural, BELO, F. Música e Psicanalise. Afreudite. Ano VIII. 2011.
social e psicanalítico. Trata-se de uma possibilidade
BRASIL. Resolução nº175 de 14 de Maio de 2013. Dispõe
de escrita e escuta, de rever padrões, normativas, sobre sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou
produções discursivas que apontam para lugares fi- de conversão de união estável em casamento, entre pessoas
xos, os quais há uma necessidade de reconstrução de mesmo sexo. Conselho Nacional de Justiça Disponí-
ou descontrução. Aquilo que se refere à cultura, está vel em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%-
C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2016.
estreitamente relacionado à condição e constituição
do social, das marcas da historicidade, no entanto, BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão
evidencia-se a necessidade de acompanhar os pro- da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2015.
cessos, as mudanças e as singularidades de ser sujei- FREUD, S. (1932-1933) Novas conferências introdutórias
tos, nos espaços que estes optarem por ocupar. sobre psicanálise v.XXII. RJ: Imago. 1996
O discurso carregado de preconceito torna-se FONSECA, C. Homoparentalidade: novas luzes sobre o pa-
cada vez mais evidente por padrões e normativas rentesco. Estudos Feministas 16 (3). Florianópolis. 2008.
carregados, instituídos, refletindo em produções
Sumário
ges (SCFV). It is necessary to revisit the concept of Organizações Não Governamentais em contextos
NGOs, such as building spaces of a non-formal edu- periféricos da cidade. Considerando o contexto favo-
cation, to promote youth leadership, citizenship and rável à reflexão sobre as demandas relacionadas às
social participation, favored by social educators and desigualdades sociais, este texto se propõe a trazer
young people in a situation of risk and social vul- à tona os impactos das manifestações de violência,
nerability. Accordingly we reiterate the intention of na constituição das relações que envolvem as traje-
returning to look at the young arising from peri- tórias de aprendizagem constituídas nestes espaços.
pheral regions, which in itself carries the objective Sendo que as atividades pedagógicas, desenvolvidas
and symbolic demands of this context mediated by nestes espaços são compreendidos como importan-
oppressive expressions of social vulnerability. SCFV tes ferramentas que potencializam novos saberes.
are programs related to the area of Social Assistan- Busca-se traçar linhas teóricas que envolvam a
ce, developed in institutions of the third sector, the atividade pedagógica desenvolvida pelos educado-
opposite shift to the school, for the public unders- res sociais junto a jovens que acessam os serviços
tood in an instance in which there is violation of de convivência, considerando o contexto de vulnerabili-
rights, subjects considered vulnerable. Numerous dade social, no qual se desenvolvem está modalidade de
ação interventiva. Estes serviços, estão vinculadas à 664
factors reflect the importance of treating the issue
related to violence aiming at building theoretical área da Assistência Social, por meio da proteção so-
cial básica. Neste ínterim trataremos destas linhas
paths that point alternatives for social inclusion to
teóricas, aliadas à perspectiva que sinaliza a violên-
Young people “invisble” by Society.
cia como uma resultante negativa das engrenagens
Keyword: Violence. Social Educators. Young. Lear-
das desigualdades às quais estão submetidos os jo-
ning
vens oriundos de comunidades vulneráveis.
A partir apresentação das temáticas abordadas,
é possível inferir que este texto tem como premissa
INTRODUÇÃO basilar, colaborar teoricamente com as discussões
que envolvem a temática da juventude e os atraves-
Este ensaio busca compor uma reflexão teórica samentos da violência na constituição e estrutura-
quanto ao Educador Social que desenvolve ativida- ção dos jovens na teia social. Bem como a atuação
des pedagógicas junto a jovens que acessam os Ser- dos Educadores Sociais como mediadores de apren-
viços de Convivência e Fortalecimento de Vín- dizagem no processo de acolhimento destes jovens
culos (SCFV) Projetos destinados à população com nos Serviços de Convivência e Fortalecimento de
parcos recursos financeiros, tendo como cenário os Vínculos (SCFV).
Sumário
No que tange às juventudes, é possível inferir Aqui, cabe ressaltar as esferas às quais nos de-
que a partir de um construto social, são compreen- bruçaremos para formar esta compreensão, onde des-
didas como uma fase de experiências diversificadas, tacam-se condições socioeconômicas, classe social,
inéditas e audaciosas, compondo desta forma dis- tramas de poder, acesso aos bens sociais e culturais,
tintas culturas juvenis. Na contemporaneidade situ- ao mercado formal de trabalho e às instâncias educa-
ar nas discussões teóricas os jovens, torna-se de ex- cionais. Nestes termos reiteramos a intencionalidade
trema relevância, pois este fator corrobora para que de voltar o olhar ao jovem advindo de regiões peri-
num futuro, diante do debate teórico e composição féricas, que em si carregam as demandas objetivas e
de estratégias seja possível alcançar um patamar em simbólicas deste contexto mediatizados pelas expres-
que se alcance maior igualdade de oportunidades, sões opressoras da vulnerabilidade social.
o que resultaria na possibilidade de vislumbrar-se Estes jovens podem apresentar caracteristicas
a minimização dos impactos das desigualdades so- inerentes a esta fase do desenvolvimento, comuns,
ciais, dos impactantes da violência, rechaço do jo- entretanto se deparam, literalmente com fogo cruza-
vem, que advém da periferia. Faz-se necessário re- do no quintal de casa. Jovens de uma periferia não
ver teoricamente os mecanismos que tornam este muito distante, veementemente veiculadas nos noti- 667
jovem “invisível” diante das possibilidades de acesso ciários. Jovens que tem o mundo do trafico, acessível!
à educação, bens culturais, saúde, lazer e liberdade. Torna-se notável a compreensão de vulne-
Considerando os reflexos da realidade social, rabilidade social como um resultante demérito da
é notadamente imprescindível que, não estamos engrenagem que envolve a dimensão dos recursos
tratando de um formato de juventude, mas sim, de materiais ou simbólicos dos indivíduos. Contem-
diferentes formas, cenários e atores que compõem plando a escassez de acesso à mobilidade social e
dessemelhantes estruturas juvenis, que se estrutu- participação em diferentes esferas, seja no que se
ram de maneira diversificada de acordo com o nível refere a aspectos e oportunidades, sociais, econômi-
e qualidade de acesso (educação, moradia, saúde, cas, estudantis que provêm do Estado, do mercado e
alimentação, bens culturais) aos quais estes jovens da sociedade. (Vignoli, 2001; Filgueira, 2001).
estão expostos. Ainda, quanto às juventudes, sina-
“A situação de vulnerabilidade aliada às turbu-
lizam-se os impactos da severa segregação social e lentas condições socioeconômicas de muitos
racial que envolve a desigualdade de oportunidade, países latino-americanos ocasiona uma grande
classe, gênero e etnia. tensão entre os jovens que agrava diretamente
os processos de integração social e, em algumas
situações, fomenta o aumento da violência e da
criminalidade” (UNESCO, 2001, pg. 14)
Sumário
Busca-se compor brevemente um perfil desse buscando amenizar os impactos da exclusão. Com-
jovem que se encontra vinculado aos Serviços de plementarmente a esta análise, é possível destacar:
Atendimento e Fortalecimento de Vínculos, nessa
É preciso garantir a universalização de acessos e
relação de aprendizagem junto ao Educador Social. lidar com a diversidade sem cair na fragmenta-
Numa perspectiva que considera a dimensão psí- ção. O primeiro passo será lembrar sempre que
quica dos sujeitos, essa fase do desenvolvimento de- pobreza e desigualdades sociais se retroalimen-
manda dos jovens uma busca incessante por possi- tam, mas são resultados de dinâmicas sociais
específicas. O desenho de políticas pública diri-
bilidades de pertencimento, independentemente da gidas para a multifacetada juventude brasileira
situação socioeconômica na qual se encontre. En- deve ser feito de maneira a universalizar direitos
tretanto, essa busca por estratégias de pertencimen- e acessos sem reproduzir desigualdades. (NOVA-
to pode se encontrar transversalizada pelas condi- ES, 2003, p. 141)
ções do contexto socioeconômico e por este motivo
apresentar diferentes configurações. Torna-se pos- Esse jovem, morador da periferia, que vislum-
sível identificar que esse jovem, por vezes, sofre os bra a aceitação e a aprovação de sua personalidade,
impactos da precariedade de acesso a bens sociais e de suas escolhas, de suas roupas e acessórios nas
redes sociais, por exemplo, recurso este imediatista 668
culturais, das diferentes manifestações de violência,
do acesso à educação que perpassa sua trajetória de e de supervalorização da imagem, está na direção
constituição enquanto sujeito de direitos. de sua autoafirmação, de posicionamento junto aos
A ausência de um lugar de pertença junto à fa- seus pares. Nessas análises, essas experiências de
mília e aos amigos, vinculada à busca pela aceita- juventude estão distantes dos jovens de classes eco-
ção, são fatores geradores desse sentimento de ina- nômicas mais favorecidas somente no que se refere
dequação e “invisibilidade”. E nessa lacuna, onde as ao preconceito visceral que acompanha os mais po-
figuras identitárias, os pares e os sujeitos ensinan- bres simplesmente por suas origens.
tes construíram incipientes ou nenhuma vinculação O jovem oriundo desse contexto está inseri-
positiva, instaura-se a falta e surge a possibilidade do um campo “minado”, pois ser jovem oriundo
da utilização de recursos “compensatórios” como de classes populares corrobora para o aumento do
o uso das substâncias psicoativas, o envolvimento percentual estatístico nos noticiários de dados que
com o tráfico e o conflito com a lei. Essas ferramen- sinalizam os efeitos trágicos da combinação de ju-
tas podem ser utilizadas com mecanismos de afir- ventude, racismo, periferia e pobreza, que resultam
mação e de pertencimento a determinados grupos, em falta de acesso a educação, bens culturais, lazer,
em discriminação e violência.
Sumário
Nesse contexto, é possível ressaltar a represen- fatores que operam na constituição de um sujeito,
tatividade do jovem negro como uma de suas ca- assim corroborando para a reprodução do cenário
racterísticas relevantes, pois este jovem, oriundo de vulnerabilidades, especialmente, do segmento
de uma família com baixa renda per capita, que re- juvenil. Desse modo, é possível inferir que
conhece a violência desde sua tenra idade, indica a
[...] os direitos sociais são como dimensão dos
ausência do Estado no atendimento de suas princi- direitos fundamentais do homem, são prestações
pais demandas, o rebaixamento de potencialidades positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
e o descrédito de sucesso. Nessa perspectiva, Sousa indiretamente enunciadas em normas constitu-
(2005) reitera a análise, sinalizando o aumento do cionais, que possibilitam melhores condições de
vida aos mais fracos, direitos que tendem a rea-
número de assassinatos de jovens no Brasil. Entre lizar igualização de situações sociais desiguais.
1991 e 2000 a elevação nos índices dessas mortes “São, portanto, direitos que se ligam ao direito
chegou a 76%, aspecto agravado quando se trata de de igualdade.” (SILVA, 1998, p. 289)
jovens negros e de periferia.
Os impactos das impetuosas marcas da violên-
cia atingem diretamente a juventude, que tem altos O PROTAGONISTA: O EDUCADOR SOCIAL,
669
índices quando se trata de mortalidade por homi- E SEU FAZER PEDAGÓGICO COMO ATO
cídios “são adolescentes e adultos jovens, do sexo POLÍTICO
masculino [...] residentes em áreas pobres e às ve-
zes periféricas das grandes metrópoles; de cor negra A partir deste reconhecimento do cenário, o
ou descendentes dessa etnia; com baixa escolarida- Educador Social pode ser considerado um dos pro-
de e pouca ou nenhuma qualificação profissional” tagonistas na atuação e construção de espaços de
(MINAYO; SOUZA, 1999). Frequentemente, no en- cidadania nos locais onde atua, promovendo ações
tanto, “os violentados passam a ser encarados como que possibilitam a interlocução e o diálogo com ca-
os violentos” (NETO; MOREIRA, 1999). madas enfraquecidas, voltada à educação popular,
As políticas públicas visam a superação dos direcionados a uma educação como prática de liber-
efeitos da pobreza, mas têm fragilidades quanto à dade, voltada à compreensão dos engendramentos
sua efetividade, fator que consequentemente impac- que envolvem opressor e oprimido.
ta as condições de acesso a educação, qualidade de Propositalmente, será feito um delineamento
vida, interações junto aos bens culturais, ao traba- da abordagem teórica que adotaremos para funda-
lho, à educação, ao lazer, à segurança, dentre tantos mentar a prática do Educador Social, sinalizando
Sumário
que os fundamentos dessa prática educativa estão suas características marcantes é a atuação junto a
voltados à educação popular, num cenário social em jovens, visando atividades cotidianas que despertem
que a “dinâmica estrutural conduz a dominação de novas perspectivas de compreensão do contexto so-
consciências” (FREIRE, 1977, p. 1). Busca-se, assim, cial, perpassando ações voltadas para o exercício
identificar essa atuação junto a jovens em situação da cidadania, para a criação de espaços de reflexão
de vulnerabilidade social, compreendida pela carac- sobre direitos, posicionamento crítico e reflexivo.
terização do sujeito oprimido e um sistema opres- Visando ações diárias que promovam este jovem
sor. A partir desse recorte intencional, destaca-se a protagonista em tramas que envolvam perspec-
Freire (1996) como fonte de estudos e pesquisas, a tivas positivas de futuro. Além de uma projeção de
partir da qual se propõe um convite à reflexão sobre papéis de empoderamento a serem almejados por
alguns pressupostos teóricos e saberes que se fazem estes jovens.
fundantes a uma prática e que se deleitem sob os
A educação não formal designa um processo
pressupostos progressistas. com várias dimensões, tais como: a aprendiza-
Assim, ressalta-se que gem política dos direitos dos indivíduos enquan-
to cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o 670
[...] a Educação Popular, com característica liber- trabalho por meio da aprendizagem de habilida-
tadora, vai emancipando cada vez mais o sujeito, des e/ou desenvolvimento de potencialidades; a
e sua possibilidade de elaboração e construção aprendizagem e exercício de práticas que capa-
de conhecimentos, por meio do pensamento. citam os indivíduos a se organizarem com obje-
Pensa a sua prática, o seu individual e coletivo, tivos comunitários, voltados para a solução de
aprende o que foi teorizado por outros pensado- problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem
res que escreveram sobre seu pensado, por meio de conteúdos que possibilitem aos indivíduos
de artigos, livros e teses. De posse de suas elabo- fazer uma leitura do mundo do ponto de vista
rações e outras teorias, pode comparar, associar, de compreensão do que se passa ao seu redor.
problematizar, questionar pontos convergentes Em suma, consideramos a educação não formal
e divergentes, contraditórios ou antagônicos en- como um dos núcleos básicos de uma pedagogia
tre os diferentes saberes, visando confirmá-los, social. (GONH, 2006, Pg.02)
verificá-los ou utilizá-los em circunstancias va-
riadas da vida. (GRACIANI, 1999, p. 82).
Para este ator que desenvolve o papel de ensi-
Em uma perspectiva que propõe espaços de nante, o Educador Social, é preciso considerar que
educação não formal, esses atendimentos visam um no decorrer de suas vivências ele agrega e constrói
espaço de promoção e garantia de direitos. Uma de sua bagagem de conhecimentos e de experiências
Sumário
que possibilitam impulsionar novas aprendizagens, Nessa perspectiva, o aprender, com as especi-
na medida em que amplia seu repertório. Nesse mo- ficidades destacadas, permeia a experiência de vida
mento, e na especificidade do trabalho do Educador dos sujeitos. Aprender nos inclina a considerar um
Social, é que se destaca mais um elemento ímpar: a processo construtivo que está intimamente relacio-
relação do ensinante com a aprendente, pois é atre- nado ao processo de autoria. Nestas linhas procura-
lada à história do sujeito aprendente e aos jovens em -se pensar nestes processos psíquicos que possibi-
situação de vulnerabilidade social que hoje estão vin- litam ao ensinante estruturar-se como aprendente,
culados a esses espaços de aprendizagem por vezes, observando a construção subjetiva desse sujeito e
submetidos ao fardo do insucesso escolar e especial- sua constituição profissional. Dessa maneira, torna-
mente à desvalorização de seu potencial aprendente. -se relevante buscar conhecer de que forma esses
É relevante destacar a importância do víncu- educadores compreendem seus processos de apren-
lo afetivo entre o ensinante e o aprendente e de dizagem, considerando que a díade de papéis ensi-
um olhar que o reconhece como sujeito de compe- nantes e aprendentes contempla sua prática como
tências e possibilidades. Este é o desafio, promover eixo articulador da proposta pedagógica, metodo-
ações e situações de aprendizagens que desenca- lógica e interventiva junto a jovens que, por vezes, 671
deiem investimentos no potencial destes jovens. não se reconhecem como sujeitos potencialmente
A partir de uma breve interlocução, torna-se protagonistas de processos de aprendizagens sau-
possível inferir que esses apontamentos subjetivos dáveis e de sucesso. Assim, considera-se, em linhas
que compõem as memórias aprendentes podem ser gerais, o aprender como um ato emancipatório, que
estruturantes desse sujeito que se constitui ensi- possibilita o reconhecimento de diferentes perspec-
nante. E, nessa perspectiva, influencia e corrobora tivas de mundo e das possibilidades do sujeito.
sua maneira de conceber este outro que aprende, E ainda Soares, reitera:
transversalizado pelos sentidos subjetivos atribu-
[...] é a generosidade do olhar do outro que nos
ídos ao aprender. Fernández (2001) contribui para devolve nossa própria imagem ungida de valor,
esta compreensão, destacando que envolvida pela aura da significação humana, da
qual a única prova é o reconhecimento alheio.
[...] aprender é apropriar-se da linguagem; é his- Nós nada somos e valemos nada se não contar-
toriar-se, recordar o passado para despertar-se mos com o olhar alheio acolhedor, se não formos
ao futuro; é deixar-se surpreender pelo já conhe- vistos, se o olhar do outro não nos recolher e
cido. Aprender é reconhecer-se , admitir-se. Crer salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos
e criar. Arriscar-se a fazer dos sonhos textos vi- anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e
síveis e possíveis. (FERNANDÉZ, 2001, p. 36)
Sumário
incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por contexto no qual está inserido, ao pensamento li-
isso, construir uma identidade é necessariamen- bertário, à criticidade e, num ideário, vislumbre, à
te um processo social, interativo, de que parti-
cipa uma coletividade e que se dá no âmbito de transformação social; além de fortalecer laços e res-
uma cultura e no contexto de um determinado gatar suas condições de pertencimento em contex-
momento histórico. (SOARES, 2005, p. 206) tos que reverberem suas potencialidades.
REFERÊNCIAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ABRAMOVAY, M. et.al. Juventude, violência e vulnerabilida-
Em últimas análises desta relação educador/ de social na América Latina: desafios para políticas públicas.
Brasília: UNESCO, 2002.
educando, ensinante/aprendente, vislumbra-se a
composição de relação profícua de confiança, res- FERNÁNDEZ, A. (1991). A inteligência aprisionada. Por-
peito e, especialmente, o fomento de reflexões e to Alegre, RS: Artes Médicas.
ações cotidianas para a construção de pensamentos
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro:
críticos quanto ao lugar ocupado na sociedade por
Paz e Terra, 1996. 672
este jovem; e, primordialmente, a acolhida afetuo-
sa deste educador que investe este sujeito de pos- ______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
sibilidades aprendentes, proporcionando espaços Terra, 1987.
de construção de um projeto de vida que englobe
GOHN, Maria da Glória M. ONGs: a modernidade da parti-
sonhos e novos papéis a serem protagonizados pe-
cipação social na América Latina. In: Os sem terra, ONGs e
los jovens; alicerçando ações, protagonismo juvenil cidadania: a sociedade civil brasileira na era da globalização.
e a acolhida deste sujeito e de toda a sua bagagem São Paulo: Cortez, 2010.
investida de potencial e de significações positivas
quanto aos processos de aprendizagem. Experiência vivida. São Paulo: Cortez, 1997.
E aproximando o fazer do Educador Social ao IAMAMOTO, Marilda V. O serviço social na contempora-
jovem atendido nas atividades pedagógica vislum- neidade: trabalho e formação profissional. 4.ed. São Paulo:
bra-se a consolidação de espaços de construção de Cortez, 2001.
cidadania de dialética entre o fazer pedagógico e di-
nâmica do contexto social, protagonizados por esta
relação que convida este jovem à análise crítica do
Sumário
MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da VIGNOLI, J.R. Vulnerabilidad y grupos vulnerables: un
Saúde Pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. marco de referencia conceptual mirando a los jóvenes. Santia-
10 (supl. 1), p. 07-18, 1994. ________. (Coord.). Bibliografia go de Chile: CEPAL, 2001. (Serie Población y Desarrollo, n. 17)
comentada da produção científica brasileira sobre violência
e saúde. Rio de Janeiro: ENSP, 1990.168 p. ________ et al. WAISELFISZ, J. J. Relatório de desenvolvimento juvenil.
Brasília, DF: Rede de Informação Tecnológica Latino-Ameri-
NETO, O. C.; MOREIRA, M. R. A. Concretização de políticas cana (RITLA), 2007.
públicas em direção à prevenção da violência estrutural.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 1, n. 4, p. 33-52, 1999.
¹ Bacharel em Publicidade e Propaganda (PUCRS). Gestora Estratégica de Marcas. Especializada em Account Planning pela es-
cola holandesa Hoala. Mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. Nicolepcitton@gmail.com
² Jornalista. Mestre e doutora em Comunicação e Informação. Pós-doutora em Comunicação Midiática. Assessora de Imprensa
da Fundação de Economia e Estatística. Docente na Universidade Feevale. Aneliserubescki@feevale.br
Sumário
dia by the look of Jenkins (2006). Among the ob- nhar os movimentos comunicacionais dos meios e
servations, indicates that the ZH explores new for- de seus públicos.
mats and channels of communication as a strategy A investigação evidencia como o veículo está
to adapt to a new market reality, marked by social reinventando sua identidade a partir de uma nova
and technological changes and have had as a result realidade do mercado, investido em novas tecnolo-
a change in brand identity, which does not reflect gias e plataformas como forma de acompanhar os
their transmedia features. movimentos comunicacionais.
Keywords: Culture Convergence. Jornalism. Trans- De cunho teórico-empírico, além do estudo de
media. Communication. Identity. caso, o artigo traz conceitos de Charaudeau (2014),
Wolton (2010), Aaker e Joachimsthaler (2000), Lo-
pez (2010) e Jenkins (2006).
INTRODUÇÃO
A TRANSMÍDIA COMO FERRAMENTA DE
As transformações sociocomunicacionais ori- REINVENÇÃO
ginam movimentos de transmutação ligados tam- 675
bém aos meios e plataformas de comunicação em Viver em sociedade é comunicar-se, é fazer par-
estado convergente. A escolha pela temática se dá te de um sistema complexo e em constante evolução
para verificar se – e de que forma - as identidades social e cultural. O cenário contemporâneo é de sig-
de marcas são influenciadas pelos processos e pelas nificativas transformações culturais e sociais.
manifestações culturais. Assim, neste artigo reflete-
[...] a modernidade se cumpriu, quaisquer que
-se sobre como os avanços comunicacionais estão sejam suas contradições e tensões concretas.
se manifestando na identidade dos conglomerados Nesse sentido estamos tratando de um desen-
jornalísticos contemporâneos, fomentando os deba- volvimento histórico completo. Entretanto, seu
tes relacionados ao jornalismo, identidade e comu- desdobramento segue em frente; continuidades
e rupturas ainda se processam. Na verdade, elas
nicação, de forma interdisciplinar. dependem de nós individual e coletivamente
O estudo investiga questões relacionadas a pla- (DOMINGUES, 2002, p.11).
taforma jornalística do Grupo RBS (Rede Brasil Sul
de Comunicação) assumindo como objeto empíri- As constantes e inacabadas transformações
co o jornal Zero Hora, que tem investido em novas pontuadas por Domingues (2002) causam refle-
tecnologias e plataformas como forma de acompa- xos às formas de comunicação, tanto interpessoais
Sumário
quanto impessoais, via comunicação mediada por O termo convergência é polissêmico. Buscan-
computador e/ou de massa, como transmissões ra- do clarificar a conceituação, Fagerjord e Storsul
diofônicas, televisivas e jornais de ampla circulação. (2007) distinguem entre seis formas de convergên-
No cerne dessa mudança, encontram-se as mídias, cia midiática3. Em primeiro lugar, há a “convergên-
com suas formas e dinâmicas de interação trans- cia de rede", na qual uma rede pode ser usada para
formadas pela necessidade de adaptação aos novos transportar diferentes sinais digitais. Na sequência
sistemas sociais e culturais, conforme atesta Lopez e também de viés tecnológico pelo aparelho em si,
(2010, p.5) ao dizer que “As formas de comunicação a "convergência de terminais", onde um dispositivo
variam de acordo com mudanças pelas quais passa a (um celular, por exemplo) pode oferecer ao usuário
sociedade em distintos campos”. Na obra de Jenkins funcionalidades que até recentemente demanda-
(2006), A cultura da convergência, o autor refere-se vam diferentes plataformas (telefonia e fotos, por
à historiadora Lisa Gitelman a qual afirma que “um exemplo). O terceiro tipo de convergência é a "con-
meio é um conjunto de ‘protocolos’ associados ou vergência de serviços". Ainda que diretamente re-
práticas sociais e culturais que cresceram em torno lacionada com a "convergência de terminais", tem
dessa tecnologia” (JENKINS, 2006 p.41). como foco os serviços que podem ser oferecidos 676
Jenkins (2006) afirma que a produção grupal de de forma convergente em um mesmo dispositivo,
significados na cultura tem ocasionado mudanças como na maioria dos celulares, por exemplo, que,
nos mais diferentes aspectos sociais provocando além dos serviços de telefonia, disponibilizam ser-
processos de inteligência coletiva já que para ele viços de acesso à internet, calendário, despertador,
“Investigar como as comunidades de conhecimento entre outros. A quarta forma de convergência re-
funcionam pode nos ajudar a compreender melhor fere-se narrativa e aos “gêneros textuais”, da qual
a natureza social do consumo contemporâneo de emergem características híbridas entre os gêneros
mídia” (JENKINS, 2006 p.48). Uma mudança cul- estabelecidos. Resultante das mudanças sóciotécni-
tural significante que propicia e/ou demanda que a cas em curso na sociedade, observa-se que a quinta
mídia passe a convergir a informação em seus mais forma de convergência especificada por Fagerjord e
diferentes suportes, a partir da digitalização Storsul (2007) é a “convergência de mercado”, que,
por fim, naturalmente demanda uma “convergên-
³ No original, em inglês: “Convergence of networks, terminals, services, rhetorics, regulatory regimes and markets”. Tradução,
comentários e exemplos das autoras.
Sumário
cia regulatória” que dê conta do cenário/mercado/ São termos utilizados para descrever a “comunicação
mídia atual. Especificamente no campo do jornalis- ou a produção quando duas ou mais plataformas mi-
mo, Rich Gordon (2003) menciona cinco dimensões diáticas estão envolvidas de uma maneira integrada.
da convergência4, que se aplicam a diferentes as- A essência é, então, se e de que maneira as diferen-
pectos em uma organização midiática. Entre elas, tes plataformas “conversam entre si” (ERDAL, 2011,
no âmbito da convergência de conteúdo, observa-se p.217). Na transmídia, o conteúdo, necessariamente,
que a “convergência de coleta de dados” relaciona- não pode ser simplesmente republicado.
-se com as mudanças estruturais das redações e é “Os mercados midiáticos estão passando por
um dos aspectos mais polêmicos da convergência mais uma mudança de paradigma. Acontece de
jornalística, pois demanda o chamado “backpack tempos em tempos” afirma Jenkins (2006, p.31), o
journalists” (Gordon, 2003), isto é, aqueles que es- que não significa que, no meio desse processo de
crevem, entrevistam, tiram fotos, fazem vídeos, edi- modificação, os meios de comunicação foram subs-
tam o áudio e disponibilizam tudo online, em tempo tituídos ou eliminados. Segundo o autor,
real ou que canalizam o material para plataformas
[...] a convergência representa uma transforma-
diversas. A distribuição das notícias em multiplata- ção cultural, à medida que consumidores são in- 677
formas pode ocorrer de forma autônoma ou relacio- centivados a procurar novas informações e fazer
nado-as entre si, incentivando o leitor a buscar mais conexões em meio a conteúdos de mídia disper-
informações em outras plataformas. sos” (JENKINS, 2006, p. 29).
Quando o conteúdo é publicado de forma autô-
noma, tem-se a forma mais simples de distribuição O novo cenário de convergência coloca os con-
multiplataforma. A cobertura jornalística é sobre o glomerados jornalísticos diante do desafio de se
mesmo acontecimento, mas não há referências ou reinventarem, afirma Lopez (2010, p.1) no prefácio
elos de ligação entre as notícias. Por outro lado, se o de seu livro Radiojornalismo hipermidiático: tendên-
meio fornece caminhos (ícones, links, símbolos, por cias e perspectivas do jornalismo de rádio all news
exemplo) e incentiva seus leitores a buscar outras brasileiro em um contexto de convergência tecnológi-
plataformas para continuar a se informar sobre a no- ca “[...] assistimos a uma nova mudança nos siste-
tícia, tem-se então a ‘transmídia’ (JENKINS, 2006). mas de comunicação, que obriga a repensar a forma
de contar dos meios tradicionais”. As mudanças so-
⁴ No original, em inglês: “ownership, tactics (cross promotion and sharing content across platforms), structure (organizational
and functional changes), information gathering (for several platforms) and presentation”.
Sumário
ciais, atestadas por Lopez (2010) como grandes res- Segundo Jenkins (2006), uma mudança na ma-
ponsáveis pela evolução das plataformas e forma- neira como o público passa, a partir de então, a esta-
tos midiáticos dos conglomerados jornalísticos, são belecer uma relação com as mídias e as mídias com
também as responsáveis por conceder ao jornalis- o público. É o momento em que o indivíduo viven-
mo um novo papel como agente social que se inten- cia a possibilidade de ouvir música, por exemplo,
sifica à medida que o processo de convergência vem nas mais diferentes plataformas disponíveis alimen-
sendo implementado aos meios de comunicação. tando a convergência tecnológica. A convergência
Ao final dos anos1990, emissoras de televisão e dos meios, porém, conforme afirma Jenkins (2006,
jornais começaram a se arriscar em ambientes onli- p.43) “[...] é mais do que apenas uma mudança tec-
ne, experimentando uma nova forma de gerar con- nológica. [...] A convergência altera a lógica pela
teúdo e informação através da internet. Uma nova qual a indústria midiática opera e pela qual os con-
realidade que exigiu dos veículos de comunicação sumidores processam a notícia e o entretenimento”.
uma adequação não somente quanto aos meios dis- Um cenário que Lopez (2010) reforça ao trazer para
poníveis para propagar seus textos, mas também o debate o fato de que a convergência nos conglo-
quanto aos padrões impressos e televisivos que ago- merados jornalísticos significa uma nova forma de 678
ra encontravam uma plataforma online. Era um in- exibir o conteúdo gerado.
dício do futuro da comunicação que se desenharia a Entende-se, dessa forma, que a definição de con-
partir dos anos 2000 com a convergência dos meios vergência passa não só por transformações culturais
de comunicação. e sociais, mas também tecnológicas, já que fala-se
aqui do curso múltiplo pelo qual os conteúdos tran-
E a resposta está na própria origem deste novo
cenário: a internet, que estabelece um novo mo-
sitam através das mais diferentes plataforma midi-
delo narrativo baseado na linguagem multimídia áticas, além da “cooperação entre múltiplos merca-
e no hipertexto; que impõe novas rotinas produ- dos midiáticos e do comportamento migratório dos
tivas e novos tempos de programação e escuta; e públicos dos meios de comunicação [...]”, conforme
que gera uma conversação renovada e interativa
com o público. De todos os suportes digitais, a
descreve Jenkins (2006, p.29). Soma-se a esses fatores
internet se apresenta como o espaço propulsor o aspecto mercadológico, foco do artigo, com tensão
[...] exige a atualização das estratégias, concei- inevitável diante do cenário que se desenha.
tos e hábitos de trabalho tradicionais do meio A convergência como protagonista nas mu-
para atender às novas demandas informativas de
uma sociedade convergente e global. E através
danças dos conglomerados midiáticos gera trans-
da internet é possível conquistar também os de- formações também ao mercado do jornalismo.
mais suportes digitais (LOPEZ, 2010, p.2). Segundo Erdal (2009), foi na última década que o
Sumário
jornalista viu seu cenário profissional enfrentar in- INFORMAR NÃO É COMUNICAR
tensas mudanças tecnológicas e processuais rela-
cionados à convergência. Dominique Wolton (2010) é incansável em afir-
mar que informar não é comunicar, assim como é
Nestes processos, fusões e revisões de rotinas e
de definição de padrões de produção de meios de
ativo na defesa de que a comunicação é, por si só,
comunicação que tentavam se integrar ao pro- mais complexa que a informação. Ao classificá-la
cesso de convergência levaram muitos jornalis- dessa forma, Wolton (2010, p.11) traz três caracte-
tas a uma situação de instabilidade e, em alguns rísticas capazes de qualificar tal afirmação.
casos, insatisfação. Estas alterações se fazem
presentes a cada dia em um número maior de
Primeira Segunda Terceira
redações, e levam a posturas de gestão distintas,
com investimento em tecnologia ou em capaci- Da informação Tem-se investido Tanto a informação
depende a muito tempo e quanto a
tação e, em alguns casos, o uso do contexto e
comunicação. É como dinheiro no último comunicação
do debate da convergência como uma estratégia se fosse, segundo a meio século vêm trabalhando
para alterar as dinâmicas de trabalho e sobrecar- autor, uma evolução, na tentativa no combate pela
regar o jornalista (LOPEZ, 2010, p.17). já que a comunicação de aprimorar a emancipação
considera a comunicação entre individual e
alteridade. as pessoas. coletiva. 679
A inevitável mudança previu um período de
Quadro 1 – Comunicação segundo Wolton
transição que, segundo Jenkins (2006, p. 38) serviria Fonte: sistematização das autoras a partir de Wolton (2010).
para que “vários sistemas de mídia competir e cola-
borar entre si, buscando a estabilidade que sempre Ao entender essa diferença, os conglomerados -
lhe escaparia.”. O autor completa que o processo de que enfrentam momentos de incerteza - buscam to-
convergência “[...] opera como uma força consta- madas de decisão relacionadas aos desafios das pla-
te pela unificação, mas sempre em dinâmica tensa taformas de mídias pós-modernas. Wolton (2010)
com a transformação”. Toda a dinâmica decorrente destaca o desafio da comunicação como matéria a
do processo de adaptação exigido dos conglomera- ser estudada e entendida em uma realidade social
dos jornalísticos que pretendem se adaptar a nova em que a tecnologia e a informação são onipresen-
realidade convergente do mercado coloca à prova a tes e acabaram invadindo o cotidiano da sociedade.
identidade das marcas midiáticas. Essa situação gera,
com frequência, incerteza quanto aos próximos pas- O problema não é mais somente o da informa-
sos a serem dados na empresa ao invés de enxergar ção, mas antes de tudo o das condições neces-
sárias para que milhões de indivíduos se comu-
o cenário como uma oportunidade de expansão dos niquem ou, melhor, consigam conviver num
conglomerados, conforme defende Jenkins (2006). mundo onde cada um vê tudo e sabe tudo, mas
Sumário
as incontáveis diferenças - linguísticas, filosó- Assim, o ato de linguagem não deve ser conce-
ficas, políticas, culturais e religiosas – tornam bido como um ato de comunicação resultante
ainda mais difícil a comunicação e a tolerância. da simples produção de uma mensagem que um
(WOLTON, 2010, p.12) Emissor envia a um Receptor. Tal ato deve ser
visto como um encontro dialético (encontro esse
O autor deixa clara a diferença entre informação que fundamenta a atividade metalinguística de
elucidação dos sujeitos da linguagem) entre dois
e comunicação quando coloca a relação qualificada processos: processo de produção [...]; processo de
com o outro exclusivamente no processo de comuni- interpretação [...]. (CHARAUDEAU, 2014, p. 44)
cação aferindo a ela a complexidade necessária que a
mensagem proferida como informação precisa para Charaudeau (2014), então, defende que o pro-
ganhar significado. No avanço do conhecimento no cesso de comunicação se dá entre quatro sujeitos já
sentido de aprimorar a comunicação, Wolton (2010) que o método por ele desenvolvido evidencia que
gera uma separação entre aquilo que é meramente não existe apenas um emissor e um receptor e sim
um avanço tecnológico que possibilita à sociedade dois sujeitos em cada uma das pontas desse esque-
acesso a uma vasta gama de informação, e aquilo ma que em algum momento encontram-se em uma
que é referente ao avanço do conhecimento humano zona de intercompreensão suposta. Os quatro indi- 680
em sociedade que torna possível a evolução que se víduos que compõe o processo são nominados pelo
espera da comunicação no século XXI. Um passo na autor de EUe, EUc, TUd e TUi. Cada qual com um
direção da convivência entre indivíduos. papel específico na situação de comunicação dese-
Com esse contexto desenhado, Wolton (2010, nhada por Charaudeau (2014), conforme Quadro 2:
p. 13) reforça a importância do desenvolvimento de
conhecimento acerca “[...] da relação, da alterida- EUe
Sujeito enunciador, sujeito de fala. Realizado e instituído
na fala.
de e do receptor.”. Um caminho traçado e defendi-
do também por Charaudeau (2014) em sua clássica Sujeito comunicante, sujeito agente. Localizado na
EUc esfera externa do ato de linguagem, mas responsável por
obra Linguagem e Discurso. Nela, o autor defende sua organização
que o bom conhecimento acerca do sujeito desti- Sujeito destinatário, sujeito de fala. Depende do EU já
TUd
natário torna possível a comunicação de qualidade que é instituído por ele.
proferida pelo sujeito emissor. As circunstâncias de TUi Sujeito interpretante que age independente do EU
discurso são, de fato, uma relação indissociável en- Quadro 2 – Os sujeitos segundo Charaudeau
tre o processo de produção e interpretação do ato Fonte: Autoras, a partir de Charaudeau (2014)
Ao estabelecer papéis para os sujeitos no ato desse acordo, a dedução de que “[...] os indivíduos
de linguagem, Charaudeau (2014, p.52) atesta que pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais
o processo desenhado permite “[...] um jogo entre estejam suscetíveis de chegar a um acordo sobre as
o implícito e o explícito [...]” planificado em uma representações linguageiras dessas práticas sociais”.
situação de comunicação composta por um circuito Como conseqüência, presume-se que os sujeitos en-
de fala configurada (espaço interno) e um circuito volvidos na situação de comunicação têm uma com-
externo à fala configurada (espaço externo), confor- petência linguageira de reconhecimento correspon-
me Figura 1 desenvolvida pelo autor. dentes. No que diz respeito à noção de estratégia,
parte-se da hipótese de que o sujeito comunicante
(EUc) faz uso de técnicas de persuasão e sedução
que leva o sujeito interpretante (TUi) a identificar-
-se com o sujeito destinatário ideal (TUd) construído
por quem comunica. Tudo isso a partir da expecta-
tiva do sujeito falante de que seu ato de comunicar
surta efeito e seja bem recebido por seus receptores. 681
Se o desafio já era complexo em um cenário de-
limitado entre revistas, jornais, televisão e rádio, a
convergência complexifica muito mais o desafio.
Percebe-se que só existe uma representação de É nesse momento que ter clareza da sua iden-
uma situação de comunicação se a representação tidade de marca é tão importante, já que é ela que
da situação discursiva for considerada no circuito “[...] oferece lugar para raciocínios que auxiliam a
externo. Desta forma, é nesse espaço que o sujeito marca a ir além de atributos.”, conforme defendem
comunicante se aventura e faz uso de contratos e Aaker e Joachimsthaler (2000, p.69). A identidade
de estratégias para garantir o sucesso jornada comu- possibilita à marca estabelecer uma orientação es-
nicacional. No que diz respeito à noção de contrato, tratégica que guia seus passos em todos os âmbi-
Charaudeau (2014, p.56) afirma que existe, a partir tos de modo aspiracional envolvendo não só todas
Sumário
as áreas da empresa, mas também valores e cultura tas aos clientes (AAKER; JOACHIMSTHALER, 2000,
que são transformados em método de afirmação de p.86). Em um universo cultural regido pela conver-
identificação. gência, fruto da reconfiguração social, conforme
A definição da identidade de marca, porém, deve afirma Jenkins (2006), a revisão de produtos e iden-
passar por um processo de aprimoramento para que tidades torna-se inevitável. Saad (2003, p.56) afirma
deixe de ser somente termo ambíguo e passe a ser que “novas mídias não surgem de forma espontânea
termo que oriente e inspire. Aaker e Joachimstha- e independente, mas sim de uma metamorfose das
ler (2000, p.80) defendem que esse processo tem três velhas mídias que, por sua vez, não morrem, mas
metas: incluir interpretação e detalhes nos elemen- evoluem e se adaptam as transformações”.
tos da identidade para uma melhor tomada de deci- São estas transformações que se mapeia, espe-
são e definição de programas de fortalecimento da cificamente, no jornal Zero Hora, objeto de análise
marca; “[...] intensificar a habilidade dos tomadores do estudo de caso deste artigo.
de decisão ao avaliar a capacidade das dimensões
da identidade de ressoar com clientes e diferenciar A LÓGICA DE PESQUISA E ANÁLISE
a marca.”; além de aprimorar a definição para o me- 682
lhor fornecimento de ideias e conceitos que podem De cunho teórico-analítico, a pesquisa é descri-
ser válidos para criarem vínculos fortes com os pú- tiva e qualitativa, conciliando revisão bibliográfica e
blicos da marca. estudo de caso.”(PRODANOV; FREITAS, 2013). Tem
Segundo os autores, o diagnóstico provenien- por objetivo entender a relação existente entre as
te do estudo desses insumos é capaz de reconhecer teorias aqui apresentadas acerca de comunicação,
na cultura necessidades do ser humano ligadas ao identidade e cultura da convergência e a Zero Hora
seu negócio e que podem significar uma necessária – plataforma do Grupo RBS.
adaptação de produto e discutível mudança de iden- Através do cruzamento dos conceitos já apre-
tidade de marca. sentados, busca-se interpretar os fatos que ocorrem
Um novo produto significa uma mudança estra- a partir do estudo do caso da Zero Hora, plataforma
tégica na organização e, no caso dos conglomerados jornalística de origem impressa com circulação ma-
jornalísticos, pode significar um novo mix de mídia. joritária no estado do Rio Grande do Sul e que vem
Já o desenvolvimento de novos produtos está direta- ampliando seus pontos de contato como forma de
mente ligado com transformações identitárias, o que adaptação de seu conteúdo a novos meios e novos
significa, também, uma mudança nas promessas fei- públicos.
Sumário
A proposta do estudo é observar de que forma a 1990, iniciou um processo de reestruturação que prio-
inclusão de diferentes plataformas de contato entre rizou a flexibilidade e a integração entre as mídias.
a emissora e seu público e as inéditas dinâmicas de A partir desses movimentos, o conglomerado
geração de conteúdo transmídia tem influenciado na passa a entender o futuro como algo ligado ao “(...)
maneira como a identidade da marca vem sendo co- compartilhamento de conteúdos entre todas as mí-
municada. A partir da análise de seus discursos jor- dias e entre todos os veículos de propriedade da em-
nalísticos e publicitários veiculados na sua própria presa (...)”, segundo cita Fonseca (2014, p.51), uma
plataforma no mês de junho de 2016, será possível resposta ao novo capitalismo instaurado na época.
observar como essa ampliação vem sendo divulgada Como planejamento evolutivo do Grupo RBS, a em-
e absorvida como parte da personalidade da marca. presa projetou seus próximos anos a partir da evo-
lução do processo de convergência entre as plata-
A ZERO HORA E SEUS 50 ANOS DE formas de rádio, televisão, jornal e web já no início
HISTÓRIA dos anos 2000.
O jornal Zero Hora do ano de 2016 é o campo
O Grupo RBS, segunda Fonseca (2014), é consi- empírico em que se investiga essa nova realidade 683
derado pioneiro em seus movimentos de adaptação do mercado de comunicação explorado pelo con-
a novos conceitos de gestão e inovação do mercado glomerado jornalístico do Grupo RBS. Ao longo de
capitalista. Capaz de absorver as necessidades do sua história, o jornal – fundado em 1964 - passou
sistema de comunicação vigente, a empresa, segun- por uma séria de modificações editoriais e de leiau-
do a autora, fez boa utilização de novas tecnologias te. Foi em 2014, porém, que, ao completar 50 anos,
de comunicação e informação como ferramentas de a plataforma passou por uma grande reformulação
integração de conteúdos e também plataformas. O tanto âmbito online como offline, seguindo uma
que pode ser entendido como uma boa leitura da tendência mundial de integração de plataformas de
cultura e da sociedade consumidora de seus conte- conteúdo que acompanha o movimento de consu-
údos, um movimento defendido por Wolton (2010) mo dos públicos e investe em novas tecnologias.
para aqueles que buscam vencer o desafio da comu- A adaptação do formato impresso as platafor-
nicação a cada tempo. mas digitais como site, tablets e celulares foi uma
Visando assumir a posição de um grupo comuni- das grandes novidades apresentadas pelo jornal
cacional multiplataforma, o Grupo RBS investiu em Zero Hora na ocasião. “Além do lançamento do
inovação e, após superar a fase de crise dos anos de novo site para web, o endereço também será adap-
Sumário
FERNANDO PESSOA E O DIÁLOGO ízes distantes, mas também o quanto este vínculo
COM OS MITOS contribui para pensarmos a abordagem dos mitos
na atualidade.
FERNANDO PESSOA AND THE DIALOG WITH THE Palavras-chave: Fernando Pessoa. Mitos. Poesia.
MYTHS Grécia. Atualidade.
Odi Alexander Rocha da Silva - PUCRS1 Abstract: Ricardo Reis is, in Fernando Pessoa’s opus,
the writer that approaches the most greek roman
Resumo: O heterônimo Ricardo Reis é, na obra de culture in his Odes. However, is importante to think:
Fernando Pessoa, o que mais se aproxima da abor- how Fernando Pessoa through his “pagan writer”
dagem greco-romana em suas Odes. Entretanto, approaches his mytical shade in a world thoroughly
cumpre pensar: como Fernando Pessoa através de dominated by cristianism? Does the imaginary of
seu “heterônimo pagão” aproveita a abordagem nowadays really influence him? Or does he as stron-
mítica, estando inserido em um mundo (ocidental) gly as possible fix his ideas in the Ancient Greece, ex-
cujo imaginário já está impregnado pelo cristianis- pressing the interaction of religion, nature and poly- 688
mo? Será que se deixa influenciar pelo imaginário theism? Na analyse of some poems of this author can
atual ou procura da melhor forma possível fixar-se reveal how can occur the dialog with the myths in
na Grécia antiga, aproveitando a interação da reli- our era and in what sense this dialog influences in
gião com a natureza e o politeísmo? Uma análise some sense the own Ricardo Reis’ poetical pratice.
de alguns poemas do referido heterônimo pode nos Besides, this discussion help us to understand how
dizer a intensidade com que ocorre o diálogo com myths still can influence the imaginary of our days
os mitos e em que sentido este diálogo influencia a and how they are presente in our thought and in our
própria poética de Ricardo Reis. Tal reflexão ajuda, literatute. Some investigation of this presence can de-
inclusive, a que possamos entender o quanto os mi- monstrate not only our link with these ancient roots
tos gregos ainda influenciam o nosso imaginário e o but also how this link contributes to our thought to
quanto ainda estão presentes em nosso pensamento understand the myths in our days.
na literatura. Uma investigação dessa presença de- Keywords: Fernando Pessoa. Myths. Poetry. Gree-
monstra não apenas a nossa ligação com essas ra- ce. Nowadays.
¹ Doutorando em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Email: o_alexander_r@hotmail.com.
Sumário
² (ELIADE, 1989, p. 12) “O Mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma história verdadeira”.
Sumário
Pela sua importância social, é bastante compre- O elemento mítico, pois, continuou a ser o pa-
ensível, pois, que o mito estivesse na literatura quan- râmetro moral para o cidadão, a simbologia das suas
do esta começou a ser cultivada sistematicamente. raízes e da sua significação no contexto social em
que vivia. O mito, se por um lado educa, também,
O mito ocupava em primeiro lugar, a literatu-
ra; a literatura grega é, em grande parte, mítica,
esclarece questões quanto à natureza do homem.
porque conta mitos, porque os utiliza [...] (Safo
A primeira apresentação dos problemas profun-
inventa aparições anteriores de Afrodite, os cô-
dos da vida humana, incluindo os do amor, se fez
micos inventam mitos). [...] Ocupava o mito a
na Grécia (na épica, na lírica, no teatro) através
escultura e a pintura, [...] ocupava os rituais: o
do mito. Está certo que humanizado, penetrado
que se fazia, muitas vezes, era encenar um mito.
de vida contemporânea. [...] Impossível, em de-
Mil rituais em Atenas e fora dela [...] se referiam
finitivo, compreender a sociedade grega, a vida
às aventuras do deus, incluindo seus momentos
sexual e erótica dos gregos sem saber que, ao lado
eróticos, sua morte ou sono [...]. (ADRADOS,
de suas instituições tradicionais, havia a crítica
1996, p. 109, tradução nossa).
das mesmas [...], e havia, sobretudo o mito, sem
o qual resultaria impensável o desenvolvimento
O mito era, pois, um aporte cultural institucio- intelectual posterior [...]. E impensável também,
nalizado pela sociedade. Tal aporte estava tão vivo é menos sabido, o desenvolvimento dos senti- 690
na arte, na literatura e, enfim, nas culturas locais que mentos individualistas na poesia. (ADRADOS,
ibidem, p. 112, tradução nossa).
não havia como o homem não percebê-lo, já que:
Desde a escola em que se aprendia a musiké, isto Neste sentido, o mito cercava todas as questões
é, a literatura, o cidadão grego estava cercado de sociais, não deixando de atingir, consequentemente,
mito por todas as partes. [...] Havia os deuses e a produção artística. Mas presença do mito se jus-
havia os heróis, todos maiores que o tamanho
humano, mais livres e mais fortes. [...] Mas há
tifica também por um outro aspecto: a literatura a
uma síntese: o mito grego é, com raras exceções, eles relacionada (lírica, épica, dramática) em geral
um mito humanizado. Os deuses são antropo- aborda-os de maneira que “ [...] as imagens trans-
morfos, suas paixões são humanas. Na verdade, mitem associações de ideias que as transcendem e
mais que humanas e que não estão submetidas
a coerções como se passa com as paixões huma-
cooperam com o efeito emocional e imaginativo de
nas. (ADRADOS, idem, p. 111, tradução nossa). um canto, ao elevá-lo até um nível mais misterio-
so que o de sua razão de ser imediata”3. Tudo isto
para dizer que a função básica do mito no contexto mentos históricos (poesia, epopeias, relatos, escri-
da Grécia antiga era fornecer arquétipos de caráter. turas religiosas, peças de teatro) além de artefatos
Partindo do princípio de que as obras de Homero4 arqueológicos, esculturas e edificações. Em linhas
existiram muito mais para educar do que mesmo gerais, sempre que olhamos o mais remotamente
para entreter, o mito tem, no contexto dessas obras, possível para trás (ou pensamos em termos de ori-
um uso muito específico, que é apresentar modelos gens de nosso presente em termos ocidentais), o que
de virtude. vislumbramos é Grécia e Roma.
Entretanto, a presença dos mitos gregos não se Entretanto, não é apenas nas coisas visíveis que
limitou à antiguidade. Ele se propagou ao longo dos a antiguidade se faz presente. Ela se faz sentir, tam-
tempos e chegou até os nossos dias. Muitos escrito- bém, em certos aspectos da nossa maneira de ver o
res, seja romancistas ou poetas, buscaram amparo mundo. Até hoje, agimos de forma aproveitar bem
nos mitos para incrementar a sua prática literária. o momento presente, tendo a consciência de que ele
Abordamos aqui um dos que fez isso: o poeta Ri- logo se acabará, uma herança do provérbio “Dum
cardo Reis. loquimur fugerit invida aetas; carpe diem quam mí-
nima credula postero” (“enquanto estivermos aqui 691
2 ALUSÕES AO MITO EM RICARDO REIS falando o maldito tempo fugirá; aproveita o dia e te
preocupa o mínimo possível com o amanhã) .
As alusões ao mito em Ricardo Reis expressa Quando determinadas coisas acontecem rapi-
um fenômeno ocorrente em nossos dias atuais. Em damente para logo perderem o efeito emotivo do
maior ou menor grau, os mitos estão de alguma princípio, falamos em “fogo de palha”; trata-se, fre-
forma presentes em nossas vidas. Entende-se por quentemente, de certo sentimento que se expande
cultura clássica, todo o patrimônio social, histórico grandemente para logo exaurir-se com a mesma ra-
e artístico formado pela civilização greco-romana pidez com que começou. Para falar sobre isso, apro-
e cuja perenidade é perceptível em nossa era. Este veitamos um dito de Virgílio ut quondam in stripulis
patrimônio se verifica mais especificamente nas he- magnus sine viribus ignis (“na palha, o fogo é grande
ranças legadas pela antiguidade na forma de docu- e sem força”) .
⁴ Para os efeitos de nossa discussão, consideramos Ilíada e Odisseia como obras de Homero. Foge aos objetivos deste trabalho
abordar a questão homérica, a qual problematiza a questão da autoria do poeta grego. Para maiores detalhes sobre este assunto,
remetemos o leitor para AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. São Paulo: USP/DIFEL, 1968 e MORRIS, Ian & POWELL,
Barry. A New Companion to Homer. New York: Brill, 2011.
Sumário
Quando desejamos dizer que a beleza de alguém A criação do heterônimo Ricardo Reis deu-se
é definida pela medida de apreço que temos por esse antes de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, cria-
indivíduo, sem o saber, estamos utilizando um dito dos no conhecido “dia triunfal”. Pessoa escreve na
proverbial da lírica da Grécia do séc. VII a.C., que diz biografia de Ricardo Reis que este surgiu da seguin-
“κάλλιστον, ἐγὼ δὲ κῆν’ ὄττω τις ἔραται (“o mais te maneira:
belo, para mim, é aquele a quem se ama”) . Quando
O dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma
desejamos dizer da falsidade de certas pessoas que no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 da noite.
“choram” por algo que tenha sido por elas provoca- Eu estivera ouvindo na noite anterior uma dis-
do, ou que fingem se compadecer da desgraça alheia cussão extensa sobre os excessos, especialmente
(mas interiormente se regozijam com ela) usamos a de realização, da arte moderna. segundo o meu
processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-
expressão “lágrimas de crocodilo”, que é uma tradu- -me deixando ir na onda dessa reação momentâ-
ção da expressão grega κροκοδείλια δάκρυα, utili- nea. Quando reparei em que estava pensando, vi
zada por Miguel Apostólio5. que tinha erguido uma teoria neoclássica e que
Ricardo Reis, o chamado “poeta clássico”, é um a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei inte-
ressante se a desenvolvesse segundo princípios
heterônimo do poeta Fernando Pessoa. Em linhas que não adoto nem aceito7. 692
gerais, um heterônimo consiste em
(...) um personagem criado pelo poeta que es-
Ricardo Reis se propõe, portanto, a cultivar uma
creve a sua própria obra. Tem nome próprio, ressonância dos mitos, dos valores da Grécia clássi-
biografia própria, obra própria e, sobretudo, um ca em nossa era. Embora segundo menciona Pessoa,
estilo próprio. Esse nome, essa obra e esse estilo ele defenda princípios não aceitos ou adotados pelo
são diferentes do nome da obra, da biografia e
do estilo do poeta criador do personagem (TU-
TIKIAN, 2006, p. 12)6.
⁵ Literalmente, “lágrimas crocodilescas”. Miguel Apostólio (1422-1478) nasceu em Constantinopla e faleceu em Creta. Trabalhou
toda a sua vida como professor e copiador de manuscritos gregos e latinos. A expressão em questão, a ele atribuída, se encontra
em uma obra satírica bizantina do séc. XV. Muito embora a criação da expressão não remeta necessariamente à antiguidade,
plasmou-se em uma língua, o grego, a qual possui vínculos com o passado remoto do Ocidente. Para outras informações, ver
TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas p. 105. Para maiores detalhes, vide referências
⁶ TUTIKIAN, Jane. Apresentação de Fernando Pessoa. in: Fernando Pessoa Obra Poética III – Odes de Ricardo Reis. Porto
Alegre: L&PM, 2006. p. 7-20.
⁷ PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-interpretação. LIND, Georg Rudolf & COELHO, Jacinto do Prado (orgs.). Lis-
boa: Ática, s/d., p. 385
Sumário
ortônimo8, o que importa realmente é que Ricardo Pessoa. Antes de discutir o texto, primeiramente o
Reis surgiu com o fito de ser uma encarnação dos citemos na íntegra:
valores e, por extensão, da Grécia clássica em nos-
O deus Pã não morreu/ Cada campo que mostra/
sos dias. Aos sorrisos de Apolo/ Os peitos nus de Ceres/
Os tempos atuais, entretanto, notadamente no Cedo ou tarde vereis/ Por lá aparecer/ O deus
Ocidente, apresentam um imaginário religioso aci- Pã, o imortal. Não matou outros deuses/ O triste
ma de tudo impregnado pelo cristianismo. A cons- deus cristão/ Cristo é um deus a mais/ Talvez um
que faltava. Pã continua a dar/ Os sons da sua
ciência desse fato, traz à baila a questão de se Ri- flauta/ Aos ouvidos de Ceres/ Recumbente nos
cardo Reis consegue de fato ficar totalmente isolado campos/ Os deuses são os mesmos/ Sempre cla-
sobretudo do imaginário religioso cristão existente ros e calmos/ Cheios de eternidade/ E desprezo
na atualidade para cultivar o paganismo no micro- por nós,/ Trazendo o dia e a noite/ E as colheitas
douradas/ Sem ser para nos dar/ O dia e a noite e
cosmo particular da sua obra. Com efeito, a sua obra o trigo/ Mas por outro e divino/ Propósito casual
evidencia que Ricardo Reis não consegue ficar alheio (PESSOA, 2006, p. 36-37).
à cultura que o cerca. A fim de constarmos isso, ana-
lisemos dois textos de “autoria” do poeta clássico. Embora o poema fale de Pã, o deus grego da na- 693
tureza, ele estabelece um interessante diálogo com o
2.1. O deus Pã não morreu cristianismo. Tal diálogo não se limita apenas à men-
ção de Cristo e do “triste deus cristão”. O texto de
O poema “O deus Pã não morreu”9 é um dos forma geral, apresenta os dois universos aos quais a
momentos em que se percebe na obra de Ricardo matéria do imaginário do autor está atrelada. Ricar-
Reis a percepção da existência do cristianismo. Na do Reis é uma criatura de dois mundos. Embora o
verdade, a nosso ver, não se trata exatamente de mundo clássico predomine, ele não pode ignorar o
uma percepção, mas algo ainda mais sutil: uma por- cristianismo. Este “resvala”, escorrega do imaginário
ção que resvala do imaginário do autor para dentro poético, uma vez que a espontaneidade da criação
de sua prática poética. Claro que, em termos práti- poética lida com os elementos mais intrínsecos do
cos, isso nada mais é do que um sinal do ambiente autor: seus valores e a noção do mundo que o cerca.
sociocultural em que vive seu ortônimo, Fernando
⁸ O criador no heterônimo.
⁹ Os poemas de Ricardo Reis não são titulados. Adotamos, aqui, a praxe de fazer a referência ao texto pelo primeiro verso.
Sumário
Não é possível dialogar com o cristianismo catória que separa as culturas cristãs e pagãs, ainda
quando ele não faz parte da cultura de quem escre- que o poeta, paradoxalmente, apresente-as como
ve. Mas quando ele está presente, ainda que seja incorporadas uma na outra.
para ser criticado ele aparecerá. Entretanto, mais do Entretanto, trata-se de uma incorporação espe-
que a aparição ou não do cristianismo em um poeta cífica: é o cristianismo incorporado ao paganismo e
de obra convictamente pagã não é o que de fato im- não o contrário. O paganismo absorve porque ele,
porta. Importa, sim, é como esses dois mundos con- aqui, é o maior. Ele absorve sem esquecer de si. Por
vivem, tendo, cada um, suas próprias vicissitudes. isso, os deuses pagãos continuam na sua imortalida-
O texto ensaia uma resposta a isso. O deus Pã, de, “claros e calmos” e “cheio de desprezo por nós”,
não mata outros deuses. A mitologia nos dias atu- ao contrário do deus cristão que cuida das pessoas
ais não ignora o que se formou depois que o cris- como um pastor cuida de suas ovelhas e que, em
tianismo surgiu. O deus Pã considera apenas o seu cuidando do ser humano, assemelha-se a um pai
mundo, tem seu mundo como permanente, mas este cuidando de um filho e daí o motivo de ser chamado
mundo não ignora elementos estranhos a ele. Então de Pai (com “P” maiúsculo por ser tido como maior
ocorre a incorporação, ou seja “o deus Pã não mata do que todos os pais, maior do que o pai que cada 694
outros deuses”, mas os incorpora ao seu cosmos. homem consegue ou imagine ser).
Dentre os “outros deuses”, curiosamente, está O universo pagão é diferente. Se os deuses aju-
Cristo. Este é tratado como um “deus a mais”, “um dam o homem, é porque têm um “propósito casual”
que faltava”. Considerando-se o mundo grego como para isso e tal propósito o mais das vezes está rela-
plêiade divina, é natural que motivos específicos fi- cionado ao culto que recebem dos humanos. É uma
zessem surgir vários deuses. E aqui está mais um relação de troca, onde o humano tem por princípio
deus: Cristo, um deus pagão para figurar entre os pagar (com culto, veneração) pelo que recebe.
deuses pagãos. O universo de Ricardo Reis não “ma-
tou” o universo externo a si, no qual Cristo e o Deus 2.2. Vós que, crentes em Cristos e Marias
cristão estão incluídos. A expressão “deus cristão”
é acima de tudo identitária, não tanto para o deus Enquanto que, em “O deus Pã não morreu”,
como para o poeta que escreve. a expressão deus poeta absorve o cristianismo e, em certo sentido,
cristão o afasta do cristianismo e permite a consta- transforma-o em paganismo, considerando um dos
tação sutil de que o universo cristão não é o univer- seus ícones como “um deus a mais”, aqui em “Vós
so do autor. Tem-se aqui a fronteira, a linha demar- que, crentes em Cristos e Marias”, o poeta se dedica
Sumário
a tomar uma posição acerca desse mundo. Dito de deste mundo (cristão) o poeta precisa descrevê-lo. O
outro modo, este poema nos revela o que Ricardo deus cristão não é visível, mora em um lugar vago,
Reis pensa sobre o mundo cristão. É o que se depre- que seus adoradores não conhecem. O cristianismo,
ende do texto do poema, que transcrevemos abaixo na visão do poeta, não conhece a proximidade com
quem é cultuado.
Vós, que, crentes em Cristos e Marias,/ Turvais
da minha fonte as claras águas/ Só para me dizer-
Da mesma forma como ocorre com “O deus Pã
des/ Que há águas de outra espécie/ Banhando não morreu”, aqui Ricardo Reis refere-se aos mitos,
prados com melhores horas/ Dessas outras regi- colocando o cristianismo em paralelo. Entretanto,
ões pra que falar-me/ Se essas águas e prados/ aqui, há um elemento a mais: a referência aos que
São de aqui e me agradam?/ Esta realidade os
deuses deram/ E para bem real a deram externa/
creem no cristianismo, o que se depreende já pelo
Que serão os meus sonhos/ Mais que a obra dos primeiro verso “Vós que, crentes em Cristos e Ma-
deuses?/ Deixai-me a Realidade do momento/ E rias”. Os crentes “turvam” as águas do eu-lírico na
os meus deuses tranquilos e imediatos/ Que não medida em que propalam uma crença diferente da
moram no Vago/ Mas nos campos e Rios. Deixai-
-me a vida ir-se pagãmente/ Acompanhada pelas
que ele possui. O eu-lírico se identifica com entida-
avenas tênues/ Com que os juncos das margens/ des, deuses que ele pode ver, já que, segundo ele, 695
Se confessam de Pã./ Vivei nos vossos sonhos e possuem uma “visível presença” e não são deidades
deixai-me/ O altar imortal onde é meu culto/ E vagas, tal como é a deidade cristã e da qual os que a
a visível presença/ Dos meus próximos deuses./
Inúteis procos, do melhor que a vida/ Deixai a
veneram, segundo o eu-lírico, não possuem nenhu-
vida aos crentes mais antigos/ Que a Cristo e sua ma noção acerca da forma desta entidade.
cruz/ E Maria chorando./ Ceres, dona dos cam- O poema estabelece a identificação do eu-lírico
pos me console/ E Apolo e Vênus e Urano anti- com o cenário pagão na medida em que esse cenário
go/ E os trovões com interesse/ De irem da mão
de Jove (PESSOA, 2006, p. 61-62).
é descrito, considerando o caráter dos deuses como
“calmos” e “imediatos”, que presidem um contex-
A caracterização do universo pagão reforça a to de “avenas10 tênues”, os juncos das margens que
identidade do poeta e seu distanciamento em rela- se confessam de Pã”, dentre outros elementos. Pã é
ção ao mundo cristão. Para expressar por que não é um nome grego que significa “Tudo” ou “o Todo”.
10
Avena é o nome dado à Flauta, formada por pedaços de cana de vários tamanhos, unidos uns aos outros. O instrumento é
atribuído ao deus Pã, o qual, segundo a mitologia, tocava-o frequentemente. Avena é o nome latino para syrinx, nome pelo qual
esta flauta é conhecida em grego. O nome greg teria sido dado pelo próprio deus em homenagem a uma ninfa que era assim
chama e pela qual o deus se apaixonara.
Sumário
Constitui uma divindade intrinsecamente ligada à Ricardo Reis por Pessoa representou, pois, uma re-
natureza. Neste texto, Pã é mais relacionado ao seu ação à arte moderna com uma retomada dos valo-
elemento ou, dito de outra forma, neste texto Pã é res do passado. Representa, como disse Pessoa, uma
abordado considerando-se os elementos da nature- “teoria neoclássica” que retoma a racionalidade e o
za, que a ele estão ligados. equilíbrio formal observáveis na poesia, especial-
O eu-lírico aceita que os crentes em Cristos e mente na lírica, da antiguidade. Mas a proposta
Marias têm prazer em seu culto e por isso diz “vi- de Ricardo Reis, para que de fato funcionasse, pre-
vei vossos sonhos e deixai-me”. De fato, o eu-lírico cisava trazer consigo as características presentes
compreende que esse culto, o cristão, seja prazeroso na poesia do passado. Daí, então, haver pontos de
a quem o pratica. Mas quando pede para que eles vi- contato, por exemplo, com a poesia de Horácio. De
vam seu próprio culto, isso significa também deixar fato, sobre a relação de Ricardo Reis com o poeta
a ele, o eu-lírico, viver o seu culto, o qual, segun- romano, pode-se afirmar que:
do ele, também tem as suas belezas, também possui
[...] a relação de Ricardo Reis com Horácio se dá
suas virtudes. sob o ponto de vista da forma das composições,
Os crentes das divindades expressadas pelo eu- na criação de odes clássicas, ricas em inversões 696
-lírico são, segundo ele mais “antigos que a cruz de vocabulares, mas também no modo de estar no
Cristo”. Sendo mais antigos, eles possuem suas pró- mundo, quando alia o estoicismo, com seu enor-
me poder de aceitação e de resignação diante
prias questões, sua própria liturgia, enfim, sua pró- da vida e seus acontecimentos e o epicurismo,
pria fé. Assim sendo, por terem sua própria fé eles ao entender que o supremo bem está no prazer
não necessitam ser consolados pelo deus cristão, já (TUTIKIAN apud PESSOA, 2006, p. 23)
que possuem Ceres, deusa das colheitas, Apolo, deus
do conhecimento e Jove (Júpiter) deus dos deuses. Com efeito, dois são os pontos de contato entre
aqui, o diálogo com o mito enfatiza o fato de que o Ricardo Reis e Horácio: a forma (odes) e o conteúdo
eu-lírico de Ricardo Reis, tem consciente de que o dos textos. Sobretudo no conteúdo da poesia, as ca-
mundo cristão existe, mas ele, entretanto, rejeita as racterísticas que mais se destacam são a constante
ideias propostas por esse mundo. Ele é até capaz de presença da morte, a busca do equilíbrio estético e o
incorporá-lo (tal como ocorre em “O deus Pã não conflito paganismo x cristianismo. Cumpre salien-
morreu”), mas não pode adaptar-se a ele. tar que tais pontos de contato são importantes para
Este conflito cristianismo/paganismo pode ser a coerência – e principalmente a verossimilhança
lido, também, por outra perspectiva: a criação de do Ricardo Reis pessoano. De fato, Horácio, aborda
Sumário
“[...] a vida interior do homem, que vê o equilíbrio Assim sendo, a evocação dos mitos funcio-
da existência no viver, contentando-se com pouco, na como uma expressão de identidade. O poeta se
no aproveitar a hora que foge, no fugir das grandes identifica a partir dos mitos, dos deuses que fazem
ambições [...] (Leoni, 1967, p. 79). parte do universo que escolheu integrar. É plausível
pensar que Ricardo Reis tenha feito uma escolha,
CONSIDERAÇÕES FINAIS visto que os dois universos, pelo que se depreende
dos textos examinados, coexistem em sua obra. Ao
Ricardo Reis evoca o mundo cristão que resvala que parece, não há como não falar no mundo cris-
de sua consciência. Entretanto, considera esse mun- tão porque ele existe, deu uma nova formatação ao
do menor do que o mundo pagão. Se a ele se refere Ocidente, o que vem perdurado há mais de dois mil
em sua obra, é porque este mundo está aí. Faz parte anos. Esta formatação é tão veemente, tão pungente
do universo do mundo em que o poeta nasceu. Ri- que se torna difícil ignorá-la, mesmo para um poeta
cardo Reis transita entre os dois mundos na medida de convicções pagãs.
em que sabe o que esses dois mundos são. Entre- Evidentemente que as discussões acima expos-
tanto, faz sua escolha. Prefere o mundo pagão, com tas não pretendem esgotar o tema do diálogo de Ri- 697
quem mais se identifica. cardo Reis com os mitos. Trata-se apenas de início
Há mais textos em que Ricardo Reis se refere ao de discussão, que é nosso desejo que se amplie em
cristianismo. Escolhemos os dois, acima analisados futuros trabalhos, seja nossos ou alheios, a fim de
uma vez que eles se coadunam com os propósitos que possamos jogar novas luzes sobre a prática po-
de nossa discussão no que diz respeito a apresen- ética deste notável heterônimo de Fernando Pessoa.
tar uma visão de Ricardo Reis sobre o cristianismo
e por que maneira ele se desvincula deste mundo REFERÊNCIAS
cristão que apresenta como distante de si, mas que,
ADRADOS, Francisco Rodríguez. Sociedad, Amor y Poe-
curiosamente, o incorpora a si. Esse é um aspecto
sia en la Grecia Antigua. Madrid: Alianza, 1996.
de seu diálogo com os mitos. Ricardo Reis evoca os
mitos para mostrar quem é e se posiciona sobre o AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. São Paulo:
cristianismo para enfatizar a sua, de Ricardo Reis, Difusão Européia do Livro, 1968.
identidade. Eis, portanto, a necessidade do diálogo
BOWRA, C. M. Historia de la Literatura Griega. Tradu-
com os mitos.
ção de Alfonso Reyes. Fondo de Cultura Económica México-
-Buenos Aires, 1958.
Sumário
¹ Graduada e mestre pela Universidade de Brasília, UnB. Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Feevale, Novo
Hamburgo, RS. Professora de Direito Constitucional, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, email: pfmarcal@gmail.com.
² Professora no Doutorado em Diversidade Cultural e Inclusão social, Feevale, Novo Hamburgo, RS email: Dinorá@feevale. br.
Sumário
darium (full, compact). Defines the term as a way of lo de sociedade ao elencar como um dos objetivos
thinking contrary to selfishness. The Constitutions da nação é construir uma sociedade justa, livre e
of 1824 and 1891 even contain the word “solidari- solidária. É a primeira vez depois de séculos que o
ty”. The 1937 Constitution in art. 40 assured cha- princípio da solidariedade estampa a Carta Política
racter contributory pension scheme and solidarity. como um dos objetivos do Estado sobre a sociedade
Durkheim in his book “The division of labor”, 1978 brasileira. O principio da solidariedade no artigo 3º,
divides solidarity in organic and mechanical. Me- tecnicamente, juridicamente, socialmente integra a
chanical solidarity is primitive, archaic, organic is inclusão dos não-cidadãos e de toda a pluralidade
predominant in modern societies applicable in ca- e diversidade social como sujeitos de direito e não
pitalist societies. The CF 1988 in Article 3 requires mais coisas de favores. O artigo 3º da Constituição
a study from the perspective of Durkeim to a better Federal consagra dentre outros princípios da Carta
understanding of the concept, its evolution in time Maior “Construir uma sociedade justa, livre e soli-
and space. The two visions bring a reflection on the dária”. É, portanto, a primeira vez que a palavra so-
interpretation of the concept of solidarity today. lidariedade aparece na Constituição brasileira como
Keywords: Solidarity. Constitution. Fraternity um objetivo de Estado. 700
Trata-se um termo novo constitucionalmente,
embora velho lexicamente. Novo porque a solida-
INTRODUÇÃO riedade tinha um cunho religioso e não uma dimen-
são coletiva de sociedade. Neste diapasão, portanto,
Por muito tempo a solidariedade tratava-se de construir esta nova sociedade com base no prin-
um conceito filantrópico, uma ação formada por re- cípio da solidariedade é um dos desafios da nova
ligiosos para atender aqueles que não possuíam di- Constituição.
reitos, digo isso porque, esses “não-cidadãos”3 eram Segundo Rosso (2008, p. 28), solidariedade,
vistos pela sociedade como coisa (res) de favores conforme definido pelos dicionários é “sentimen-
e não sujeitos de direito. Essa benevolência durou to que leva os homens a ajudarem-se mutuamen-
até 1988, com o advento do Estado Democrático te”; outro vocábulo, bastante próximo e por vezes
de Direito que passou a consagrar um novo mode- utilizado como sinônimo é “fraternidade”, definível
³ A cidadania concedida, que está na gênese da construção de nossa cidadania, está vinculada, contraditoriamente, à não-ci-
dadania do homem livre e pobre, o qual dependia dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando,
para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil. (SALES, 1994)
Sumário
como “parentesco de irmãos, convivência como de gógica sobre o conceito e alcance conforme estam-
irmãos, amor ao próximo”. O termo solidariedade pa o artigo 3º da Constituição Federal já citado e a
tem sua origem associada ao étimo latino solida- internalização do sentido da solidariedade nos dias
rium, que vem de solidum, soldum (inteiro, compac- hodiernos para se construir uma sociedade, plural,
to). O termo é tratado como uma forma de pensar diversa, em um modelo justo para todos e, princi-
contrária ao egoísmo. Prossegue: palmente solidário.
No Estado clássico, de orientação liberal, a soli-
dariedade não é posta como um princípio bási-
SOLIDARIEDADE NA HISTÓRIA
co de atuação estatal. Embora não chegue a ser CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
desestimulada, a liberdade é tomada como valor
mais importante parecendo que a solidariedade No Brasil no fim do século XIX e início do sécu-
é vista como preocupação da sociedade civil e
não do Estado. No moderno Estado social, não se
lo XX o discurso solidarista não passou despercebi-
tem a mera pretensão de se garantir a liberdade, do por Rui Barbosa, Tobias Barreto e Joaquim Nabu-
mas também de estimular a atuação de toda a co. Após 1919 Rui Barbosa negou o individualismo
sociedade em prol da igualdade. Daí a intenção jurídico e passou a reconhecer a superioridade do
de que a solidariedade deixe de ser apenas algo 701
“desejável” para se tornar atuação obrigatória de
trabalho sobre o capital e, que deu as constituições
toda a sociedade. O estado social não quer ser políticas um sentido puramente econômico. Para o
neutro e propõe-se a corrigir as desigualdades, jurista as velhas cartas precisavam ser revistas, uma
posicionando-se como protetor do mais fraco. A vez que foram elaboradas sob o influxo dos princí-
solidariedade surge como justificadora dessa in-
tenção. (ROSSO, idem, p. 29)
pios individualistas de 1789, insubsistentes diante
da chamada socialização, que era aclamada por todo
Conforme salienta Farias (1998, p. 190) a lógica o mundo. Alguns juristas defendiam o direito como
da solidariedade se traduz por uma nova maneira de uma disciplina social. A luta estava sendo travada
pensar a sociedade e por uma política concreta, não entre o individualismo jurídico e político já definido
somente de um sistema de proteção social, mas tam- e a implantação do solidarismo, uma nova concep-
bém como “um fio condutor indispensável à cons- ção de sociedade. Verificou-se que venceu a primei-
trução e à conceitualização das políticas sociais. ra teoria a do individualismo, por séculos. O próprio
Trata-se de um tema de grande relevância no Código Civil de 1916 é um diploma de regramentos
atual momento democrático brasileiro e que requer individualistas sobre posse, propriedade, família,
uma analise histórica, jurídica, sociológica e peda- empresas. Não tem nenhum condão solidarista, in-
Sumário
clusive o novo Código de 2003 acabou reproduzindo o espaço da sociedade civil, onde os grupos so-
o discurso individualista. ciais são sujeitos de direitos no sentido de que
são produtores de direitos autônomos em rela-
À luz de Farias (1998, pag. 185) ção ao Estado.
No início do Século XX, a ideia de solidariedade,
lançada por filósofos, sociólogos e juristas, se- Segundo FARIAS (idem, p. 194) a solidariedade
gue seu curso. Em 1902, na França, por exemplo, é uma ideia-força de nossa contemporaneidade, e
a Comissão parlamentar e segundo e de previ- isso nos remete a um grande paradoxo, pois em uma
dência toma uma resolução segundo a qual “a democracia plural e social, a força motora está na li-
República deve instituir um serviço público de
solidariedade social”. Essa resolução representa- berdade e a sociedade ainda persiste em uma forma
va uma política nova, um outro universo político de vida individualista, com um Estado liberal.
e social diferente daquele do Estado liberal. Há Portanto, ao longo da história constitucionalista
um entendimento de que a dinâmica do reforço brasileira podemos observar que as Constituições de
do Estado não é dissociável da emancipação da
sociedade civil. A estatização e autonominização 1824 e 1891 sequer continham a palavra “solidarie-
do social são dois vetores essências da lógica do dade”. A Constituição de 1937 apresentava somente
Estado de solidariedade. É nessa maneira especí- no art. 40 que: “Aos servidores titulares de cargos 702
fica de se organizar que o imaginário político do efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e
Estado de solidariedade não pode ser reduzido
ao imaginário político do Estado liberal. Para o dos Municípios, incluídas suas autarquias e funda-
discurso solidarista, o espaço social é formado ções, são asseguradas regime de previdência de ca-
pelas relações existentes na teia da solidariedade ráter contributivo e solidário”, [...]. Ainda no campo
social. O espaço social é o campo da solidarie- da educação afirmava no artigo 130 que: “o dever
dade social. O discurso solidarista procura criar
um espaço social intermediário a fim de romper de solidariedade dos menos para com os mais ne-
com as oposições tradicionais entre o público e cessitados”. A Constituição de 1967 mencionava ser
o privado, o Estado e a sociedade civil, o Estado princípio da ordem econômica a “harmonia e soli-
e o mercado, o político e o econômico, conce- dariedade entre as categorias sociais de produção”
bendo uma nova forma de Estado que não pode
mais ser classificada no quadro do Estado liberal (art. 160, inc. IV). Citava-se a solidariedade como
(Estado Protetor. um princípio da área educacional (art. 176) o mes-
...no discurso solidarista, a solidariedade social mo ocorrendo com as Constituições de 1946 (art.
não se realiza exclusivamente pela via do Esta- 176) e de 1934 (art. 149) que também lembravam o
do; esta não é a única forma de vida coletiva. O
discurso solidarista supõe a existência de uma princípio da solidariedade humana, mas limitado ao
pluralidade de solidariedades realizadas em todo capítulo educacional. A Constituição de 1937 que
Sumário
e solidariedade orgânica. Este registro foi um marco põe uma estrutura moral minimamente ordena-
no campo do social sobre o individual. Afirmava que da. Assim, subjacente à utilização do conceito de
“solidariedade mecânica” repousa a convicção
a solidariedade mecânica se referia ao vínculo moral de que é a sociedade que funda o indivíduo e
entre indivíduo e sociedade, enquanto a solidarie- não ao contrário, como pretendiam os represen-
dade orgânica se referia a uma relação puramente tantes do pensamento utilitarista. Prova disso é
econômica – interdependência funcional dentro da o alargamento das liberdades individuais decor-
rente do advento moderno. Como tratou de de-
divisão do trabalho. Prossegue o autor que na soli- monstrar, o individualismo – entendido em um
dariedade mecânica cada indivíduo permanece lar- sentido muito especial, que nada tem a ver com
gamente inconsciente em seu “isolamento” como o sentido que os utilitaristas lhe davam – é pro-
indivíduo já que, dominado pelo conscience colletive, duto da emergente sociedade moderna, em que
a forma de solidariedade difere da que caracteri-
ele compartilha traços similares com outros mem- zava os organismos primitivos.
bros da sociedade, os limites da sua autonomia estão
estritamente confinados. Já a solidariedade orgânica Para Durkheim (idem, p. 39) a solidariedade
estava no fato de que o vínculo do indivíduo com a real liga as coisas as pessoas, mas não as pessoas
conscience colletive era mediado por seus laços com entre si. As pessoas poderiam viver sozinhas no 705
outros grupos, especialmente os criados pela espe- mundo fazendo abstrações entre si. Neste caso a so-
cialização ocupacional na divisão do trabalho. lidariedade seria absolutamente negativa, pois ela
Segundo Vares (2013, p. 153) não gravita a favor do bem comum, mas orbita en-
torno da vontade uns dos outros, e, portanto, não há
O conceito de “solidariedade mecânica”, tal
como Durkheim o empregava, permite-lhe ex- consenso tampouco entram em conflito. Admite o
por as fragilidades da argumentação utilitarista, autor que se imaginássemos uma sociedade em que
que combateu nesta fase da vida. Segundo os um único indivíduo reinasse, ele reinaria sozinho,
seus representantes, a solidariedade social re- se parecerá com uma grande constelação, mas, nes-
sultava de trocas econômicas espontâneas entre
os indivíduos. Na contramão das explicações te caso esta solidariedade não contribuiu em nada
oferecidas pela filosofia utilitarista, Durkheim para a unidade do corpo social. Há um esvaziamen-
demonstra que não é o indivíduo que funda a to do sentido da solidariedade.
sociedade, pois, enquanto categoria sociológica, A solidariedade mecânica para Durkheim é típi-
sua emergência é mais recente do que os utili-
taristas podiam antever. Ademais, este também ca de sociedades primitivas, tribais, onde a compar-
não podia ser responsável pela solidariedade so- tilham-se cultura, noção de valores, tanto sociais e
cial, visto que qualquer laço contratual pressu- de interesses materiais. Essas vontades comuns que
Sumário
irão assegurar a coesão social. A sociedade orgânica no que se instalava no país após 60 anos da Carta
já aparece nas sociedades mais modernas, mais com- Monárquica.
plexas, plural e diversa. Neste caso diante da com- Vários são os teóricos que procuram entender
plexidade e da crescente divisão do trabalho para e explicar o sentido de solidariedade novo cenário
a sociedade funcionar faz-se também necessária a democrático.
interdependência entre os indivíduos. Para garantir Segundo Diniz (2007, p. 172)
o fluxo normal desta sociedade a solidariedade fica
O primeiro contato com a noção de solidarieda-
resguardada não na cultura, religião, nas crenças, de mostra uma relação de pertinência: as nossas
nos valores sociais, mas, também fica garantida atra- ações sociais repercutem, positiva ou negativa-
vés de códigos e regras de conduta que irão discipli- mente, em relação a todos os demais membros
nar acerca dos valores, dos direitos e dos deveres da Comunidade. A solidariedade implica, por
outro lado, a co-responsabilidade, a compreen-
que se darão através do direito. Por isso ressaltamos são da transcendência social das ações humanas,
neste opúsculo o artigo 3º da Constituição Federal vem a ser, do co-existir e do conviver comuni-
e a afirmação do direito de solidariedade como um tário. Percebe-se, aqui, igualmente, a sua ine-
dos objetivos da nação reafirmados na carta maior gável dimensão ética, em virtude do necessário
reconhecimento mútuo de todos como pessoas, 706
de nosso país, uma vez tratar-se de um país plural, iguais em direitos e obrigações, que dá supor-
diverso, e que foi colonizado por várias etnias. te a exigências recíprocas de ajuda ou sustento.
A solidariedade, desse modo, exorta atitudes de
POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES FINAIS apoio e cuidados de uns com os outros. Pede di-
álogo e tolerância, reconhecimento ético e, por-
tanto, co-responsabilidade.
Diante das achegas teóricas pode-se verificar
que o sentido do significado da palavra solidarie- Santos (1999, p. 205) assevera que
dade ainda resta obsoleto, sem expressão em nosso
país, embora passados 28 anos da promulgação da Todo ato de conhecimento é uma trajetória de
um ponto A, que designamos por ignorância,
Carta de 1988 que edificou o Estado Democrático para um ponto B, que designamos por conhe-
de Direito. cimento. No projeto da modernidade, podemos
Ao longo da história brasileira percebe-se um distinguir duas formas de conhecimento: o co-
esforço hercúleo de Rui Barbosa na implantação, nhecimento-regulação, cujo ponto de ignorância
se designa por colonialismo e cujo ponto de sa-
não só da palavra solidariedade na Carta de 1891, ber, de solidariedade. Apesar destas duas formas
como a sua adequação no novo modelo Republica- de conhecimento estarem ambas inscritas na
Sumário
matriz da modernidade eurocêntrica, a verdade Ser solidário é pensar no todo, é pensar no ou-
é que o conhecimento-regulação veio a domi- tro como colaborador de uma sociedade justa, livre
nar totalmente o conhecimento emancipação.
Isso deveu-se ao modo como a ciência moder- e solidária. Um grande desafio para nós brasileiro,
na se converteu em conhecimento hegemônico oriundos de um país de uma elite autoritária, ver-
e se institucionalizou como tal. Ao negligenciar tical e hierárquica. Esse novo modelo de valor irá,
a critica epistemológica da ciência moderna, a sem dúvida, agregar um novo olhar para aqueles
teoria critica, apesar de pretender ser uma for-
ma de conhecimento-emancipação, acabou por que nunca foram vistos e com a sua constituição de
se converter em conhecimento-regulação. Para sujeito, com olhar solidário iremos construir uma
a teoria crítica-moderna, ao contrário, todo co- sociedade não só justa, livre e solidária, mas acima
nhecimento crítico tem de começar pela crítica de tudo emancipatória.
do conhecimento. Na atual fase da transição pa-
radigmática, a teoria crítica pós-moderna cons- E para tal desafio precisamos de políticas públi-
trói-se a partir de uma tradição epistemológica cas que não só tenham políticas de proteção como
marginalizada e desacreditada da modernidade, também de promoção ao desenvolvimento huma-
o conhecimento-emancipação. Nesta forma de no e consequentemente a emancipação do sujeito
conhecimento, a ignorância é o colonialismo e o
colonialismo é a concepção do outro como obje- brasileiro. 707
to, e, consequentemente, o não reconhecimento Em uma sociedade, como a nossa, brasileira,
do outro como sujeito. Nesta forma de conhe- constituída sobre uma estrutura patrimonialista,
cimento, conhecer é reconhecer, é progredir no patriarcalista, vertical, individualista e autoritária
sentido de elevar o outro da condição de objeto
à condição de sujeito. Este conhecimento-reco- que somente produzia herdeiros e mão de obra a
nhecimento é o que designo por solidariedade. serviços dos herdeiros, sem conseguimos nos des-
ligarmos do modelo escravagista, como constituir
Ainda segundo Farias (idem, pag. 188); novos sujeitos em um novo paradigma de socieda-
de, ou seja, horizontal, solidarista, comunitária, co-
No pensamento ocidental, a ideia de solidarieda-
de não é nova. A origem da ideia de solidarieda- letiva e harmônica e respeitando as diversidades?
de teria duas vertentes intelectuais. O estoicismo Como podemos produzir novos sujeitos de di-
e o cristianismo primitivo. Os juristas romanos reito em um novo paradigma societário, estatuído
também utilizavam a palavra solidariedade par na nossa Carta Política? Somente positivar não re-
designar o laço eu une os devedores de uma
soma, de uma dívida, cada um sendo responsá- forma, é necessário conscientizar: Que tipo de pes-
vel pelo todo, era a responsabilidade in solidum, soas (sujeitos de direito) queremos inserir nesta
a responsabilidade solidária. nova sociedade democrática brasileira? E, para isso
Sumário
709
Sumário
¹ Doutoranda e Mestre em Comunicação e Informação pela FABICO/UFRGS. Graduada em Design Gráfico pela UFPel e em
Comunicação Social Hab. Publicidade e Propaganda pela UCPel. E-mail: pldamasceno@gmail.com
Sumário
² BARNHURST, 1994; FROST, 2003; GARCIA, 1987; LAREQUI, 1994; LOCKWOOD, 1992; ZAPPATERRA, 2007.
Sumário
desdobramentos possíveis a partir da obra do filóso- sign integrou-se cada vez mais ao fazer jornalístico,
fo. Saliente-se que também não se tem a intenção de contribuindo para consolidação desses periódicos
reduzir os conceitos, nem mesmo construir um pre- (SOUSA, 2005). A relação entre forma e conteúdo
tenso ar de familiaridade com uma concepção pro- revela a atuação especializada do design, uma vez
positalmente complexa. Como o próprio Bourdieu que passa a operar em um universo de códigos e
(1989, p. 63) lembra, a pesquisa científica pode for- práticas próprios, nesse caso, vinculados a uma
necer métodos de pensamento, princípios de com- cultura bastante particular que configura a práxis
posição, porém adverte que essa não é uma tarefa fá- jornalística. Correspondendo a isso, o design passa
cil: “a apropriação ativa de um modo de pensamento a incorporar tais práticas de modo indissociável de
científico [...], é tão difícil e tão rara, não só pelos sua atividade nesse contexto. Com efeito, entender
efeitos de conhecimento que produz, mas pela sua mais sobre o campo de produção do jornalismo, é
elaboração inicial”. Então, nossa intenção não é a de conhecer os parâmetros que guiam a atuação do de-
esmiuçar as teorias bourdieusianas, tem-se finalida- signer editorial de jornais e revistas.
de de levantar ideias-chave, parâmetros para pensar Em segundo lugar, essa situação da presen-
o campo de atuação em design editorial de jornais e ça de designers nas redações é recente. No passa- 712
revistas, esboçando possibilidades analíticas que si- do, observa-se que os profissionais que detinham a
tuem e contextualizem a atuação do designer3. responsabilidade pela configuração gráfica de jor-
Considerando essa contextualização, de ante- nais e revistas eram oriundos das oficinas gráficas,
mão já alertamos sobre dois pressupostos importan- aprendiam a função com outros profissionais que
tes antes de iniciar o desenvolvimento deste ensaio. os precediam ou, ainda, o cargo era exercido pelos
Primeiro, de acordo com Mouillaud (2002) podemos próprios jornalistas que se especializavam na ativi-
considerar jornais e revistas como dispositivos, que dade de planejamento gráfico. Mesmo assim, hoje
dependem de sua forma para construir sentido jun- se pode observar que essa é uma atividade predo-
to ao leitor. Igualmente, a perspectiva histórica nos minantemente desenvolvida por designers4 (GRU-
mostra que ao longo do tempo a atividade de de- ZYNSKI; SANSEVERINO, 2014).
³ Para dar conta do questionamento central da pesquisa de doutorado, além da recuperação teórica, intentamos realizar entrevistas com
profissionais do setor da produção editorial de jornais e revistas, a fim de captar os valores compartilhados por esse grupo e o que dizem
sobre si, aspectos que se inserem tanto no conceito de campo como de habitus.
⁴ O campo do design em projeto editorial dispõe de uma condição estabelecida, haja vista o surgimento de escritórios espe-
cializados nessa área e a preocupação com espaço visual das publicações, que tem recebido evidente atenção por parte dos
principais periódicos do país.
Sumário
trajetória e um campo. Assim, percebe-se a impor- dutos se acham objetivamente situados, pela sua
tância da busca pela gênese do fenômeno a partir de pertença ao campo artístico, em relação a outros
artistas e aos seus produtos [...] (BOURDIEU,
um viés histórico que dá conta da sua constituição 1989, p. 71 -72).
enquanto produto da própria trajetória. A história,
portanto, permite contextualizar o campo analisado Em relação a história do campo que pretende-
em sua relação com os acontecimentos de modo a mos investigar, nota-se que o design passa a se es-
emergir sua essência5. tabelecer enquanto profissão sob condições especí-
Disso, também podemos depreender a impor- ficas de uma época em que o processo de fabricação
tância do produto do produtor para compreender o já atingia recursos de produção em série por meios
campo, pois as relações objetivas entre os agentes mecânicos. Cardoso (2004) explica que os primór-
são também definidas por sua própria obra, passada dios da profissão caracterizam-se pelo momento de
ou presente, fato que também confere a autonomia uma transição entre as etapas do processo fabril, em
relativa. As formas de expressão e representação, ou que antes o artesão era responsável por conceber o
seja, aquilo que distingue e define de modo exclusi- projeto e executar o artefato, passando, então, para
vo a prática de um campo, encontram-se também a circunstância em que a tarefa de projetar sepa- 714
situadas em sua trajetória histórica. A exemplo, é ra-se da de fabricar. Assim, estabelece-se uma das
pertinente resgatar o que o autor esboça sobre esse principais conceituações sobre atividade, a de que o
aspecto no campo artístico design opera em duas instâncias: “atribuindo forma
material a conceitos intelectuais” (CARDOSO, 2004,
Para explicar o fato de arte parecer encontrar
nela própria o princípio e a norma de sua trans- p. 14). Disso, podemos depreender uma das essên-
formação – como se a história estivesse no in- cias do design: o fato de ser uma atividade intelec-
terior do sistema e como se o devir das formas tual ligada a concepção formal de objetos.
de representação ou de expressão nada mais fi- Diante de tal perspectiva, uma das primeiras
zesse além de exprimir a lógica interna do siste-
ma – não há necessidade de hipostasiar, como manifestações genuínas de design se dá na produ-
frequentemente se faz, as leis dessa evolução; ção de projetos gráficos para livros, paralela à intro-
se existe uma história propriamente artística, é, dução no século XV da imprensa com tipos móveis.
além do mais, porque os artistas e os seus pro- Fato que marca na gênese da atividade sua relação
⁵ A exemplo Bourdieu (1989, p. 71) observa: “Com efeito, de depuração em depuração, as lutas que têm lugar no campo da
produção poética conduziram a que se isolasse, pouco a pouco, o princípio essencial do efeito poético, quer dizer, o essencial
daquilo que separa a poesia da prosa [...], o efeito poético de desbanalização das palavras e das coisas”.
Sumário
com a produção editorial. Inclusive, segundo o que mente, ao ensino e à arte6. (CARDOSO, 2004; NIE-
indica a Associação Nacional dos Designers (2003), a MEYER, 2000). Mesmo assim, o conceito de design
atuação do designer em projeto gráfico para livros ainda é recente, pois se firmou no século XX. Sua
auxiliou a atividade a popularizar-se. consciência enquanto profissão e o entendimento
A primeira vez que a palavra designer foi em- do que faz seu profissional não é algo claro. Um dos
pregada data, segundo registro do Oxford English aspectos que fortalece a confusão acerca da origem
Dictionary, do século XVII. No entanto, seu uso mais e das atribuições do designer diz respeito às muitas
frequente ocorreu somente no início do século XIX, segmentações e especializações de design espalha-
já com um número considerável de profissionais que das pelo Brasil. Conforme exposto, outro fator é o
assim de intitulavam. Logo depois, com a primeira caráter acessório atribuído ao design, como se este
Revolução Industrial, houve uma divisão mais mar- fosse algo superficial, cuja função seria puramente
cante do trabalho nas indústrias com a instituição de a ornamentação.
diversas etapas do processo produtivo que amplia-
ram as possibilidades de atuação desse profissional. 3 A LEGITIMAÇÃO
Além disso, esse período testemunhou uma mudan- 715
ça profunda nas relações sociais, em que o consumo 3.1 As esferas legítimas primárias
passou a expressar a identidade de pessoas ou de
grupos. Assim é que a figura do designer emerge do Para Montagner e Montagner (2011) textos
anonimato das grandes fábricas e se constitui como posteriores de Bourdieu7, ampliam a teoria geral
um profissional liberal mediante a afirmação de sua dos campos e fornecem novas nuances para refle-
identidade social (CARDOSO, 2004). xão. Dentre elas se situa a luta pela legitimidade um
Paralelamente, a história do design também nos campo particular. Nessas construções o autor inves-
mostra o quanto a sua origem esteve relacionada à tiga mais detidamente o campo do poder e o campo
diferentes áreas como a arquitetura e, principal- da produção de bens simbólicos. Assim, Bourdieu
⁶ Muitos dos professores da Bauhaus (primeira escola de design, criada na cidade alemã de Weimar, em 1919) ou de Ulm (Escola
Superior da Forma de Ulm, 1953-1968), até mesmo da brasileira ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial, criada no então
estado da Guanabara, em 1962) foram artistas. Durante a primeira fase da Bauhaus, sob a direção de Gropius, a proposta do
ensino sempre esteve relacionada ao fazer artístico e arquitetônico.
⁷ Por exemplo, presentes em seu livro A economia das trocas simbólicas, como: Mercado de bens simbólicos; Campo do poder,
campo intelectual e habitus de classe; Gênese e estrutura do campo religioso; entre outros.
Sumário
inicia um processo de desvendar relações comple- fia, ou ainda admitir feições populares (MONTAG-
xas entre as formas de poder e o modo de funcio- NER; MONTAGNER, 2011).
namento de cada campo. No que se refere ao campo Sob esse aspecto, verifica-se que encontramos
da produção em específico, o autor percebe tensões instâncias de legitimação da “esfera do legítimo”
entre o campo da produção erudita e o da indústria que marcam a existência do design como profissão.
cultural e as formas com que lutam pela legitimação Haja vista que as universidades formam um campo
de suas obras. de legitimação dos mais influentes para o autor, ve-
As invariantes estruturais que geram um campo rifica-se que em 1976 já existiam dezesseis cursos de
específico integram sua luta pela legitimidade. Essa design no país, fenômeno desencadeado pelo incen-
legitimidade seria a luta de um campo pelo domínio tivo do governo federal às áreas tecnológicas e os
e posse de um elemento simbólico específico, refe- sucessivos cortes nas áreas sociais e artísticas que
rente ao espaço social ao qual pertence. Assim, tor- culminaram na transformação, às pressas, de quase
na-se reconhecível que cada campo apresenta suas a metade dos cursos de artes em design (NIEMEYER,
“esferas de legitimação”, aquelas oficiais, reconheci- 2000). No ano de 1985 foi feito um levantamento
das pelo poder político e pela sociedade. Por exem- pelo CNPq, do qual resultou a publicação Desenho 716
plo, no contexto do campo artístico seriam as uni- Industrial: uma perspectiva educacional, atestando
versidades, as academias, as galerias e museus, onde que havia no Brasil 19 Instituições de Ensino Supe-
estariam situadas todas as artes ditas nobres, como rior (IES) com cursos de design, das quais 42% eram
a música clássica, a pintura, a escultura, a literatura do setor público. No início de 2000 já estavam em
e o teatro. E as esferas extraoficiais, as “esferas do funcionamento no Brasil 54 IES com cursos na área.
arbitrário”, que compreenderiam instâncias de le- Em pouco tempo, 2004, tem-se outro crescimento
gitimação não reconhecidas socialmente enquanto notável, onde 107 instituições e 201 cursos já eram
tais, como a publicidade, jornais, revistas, eventos autorizados no país (DIAS, 2004).
públicos, exposições, etc. Desse modo, entre essas A partir da instauração das novas Diretrizes
duas dimensões pode existir uma produção cultural Curriculares8 no Brasil, destaca-se outro aspec-
limiar que pode assumir feições de legítima, quando to dentre as esferas de legitimação, a criação, em
tratada de maneira culta, como o cinema, a fotogra- 1998, da CEEDesign – Comissão de Especialistas de
⁸ DCNs, por intermédio dos Pareceres CES/CNE 0146/2002, 67/2003 e 0195/2003 –, onde foram constituídas as mais recentes
orientações para elaboração dos currículos, tendo em vista conteúdos comuns, a flexibilidade e a qualidade da formação, mov-
imento em resposta a rígida estrutura proposta pelo Currículo Mínimo (LDB 4.024/61) (COUTO, 2008).
Sumário
Ensino do Design –, composta a partir da consul- rante o VIII Encontro Nacional de Ensino Superior
ta realizada pela então SESu/MEC – Secretaria de de Design – ENESD, em 1998, onde o modelo básico
Educação Superior do Ministério da Educação e do anteriormente desenvolvido recebeu ajustes (COU-
Desporto – às instituições de ensino de bacharelado TO, 2008; DIAS, 2004).
em design do país. Saliente-se ainda que, com base na nomencla-
Para alcançar tais objetivos, foi realizada uma tura adotada pelo V Encontro Nacional de Desenho
série de eventos e atividades, que contaram com Industrial (ENDI), realizado em 1988, em Curitiba,
ampla participação de docentes e alunos de boa par- o termo design9 foi adotado no Brasil e foram suge-
te das IES do país, dentre eles: o primeiro Fórum ridas duas habilitações, design de produto e design
de Dirigentes de Cursos de Desenho Industrial, em gráfico, sendo o profissional nomeado designer. As
1997, com a participação da Associação de Ensino próprias Diretrizes Curriculares específicas dos cur-
de Design do Brasil (AEnD-BR) e de quatro Asso- sos de design definiram que a designação deveria
ciações Independentes; na sequência, o II Fórum ser ‘Bacharelado em Design’, seguido do nome da
de Dirigentes de Cursos de Desenho Industrial, du- habilitação ou ênfase, conforme cada caso. Con-
rante o VII Encontro Nacional de Ensino Superior forme apontado anteriormente, o design editorial 717
de Design – ENESD, também em 1997, desta vez, é uma área de atuação específica do design gráfico
com a presença do Conselho Nacional dos Estudan- que se dedica à elaboração de projetos para publica-
tes de Design – CONE Design. Até esse momento, ções – edições como livros, jornais e revistas.
como resultado do trabalho desenvolvido, foi possí- O exposto permite notar que muitas são as ins-
vel determinar um modelo básico que relacionava tâncias legítimas e arbitrárias que atestam a atuação
quatro grandes áreas de conhecimento relativas à profissional em design, tendo como centro o ensino
formação do designer: (1) fundamentação, (2) pla- superior, característica que até poderia representar
nejamento e configuração, (3) sistemas de utilização reserva de mercado a ser garantida pela regulamen-
e (4) sistemas de produção; por último o III Fórum tação da profissão que não foi aprovada10. Mesmo
de Dirigentes de Cursos de Desenho Industrial, du- sem a intenção de entrar no mérito dessa questão,
na atividade de planejamento gráfico desenvolvida Souza e como o Jornal do Brasil (JB), com projeto
nas redações de jornais, a qual nos interessa, obser- gráfico de Amilcar de Castro, consagraram uma nova
va-se que nos primórdios esse posto normalmente dinâmica gráfica nas publicações (BAHIA, 1990).
era ocupado por um profissional de formação não
ortodoxa. De um lado existia o profissional que 3.2 As esferas legítimas secundárias
emergia das oficias gráficas ou aprendia o “ofício”
com outros que desempenhavam a função. De ou- Nessa perspectiva, Bourdieu (2007) explica que
tro lado também encontramos a situação em que os após o renascimento surgiram outras instâncias de
próprios jornalistas realizavam o planejamento grá- legitimidade, dessa vez criadas e reguladas por seus
fico dos periódicos. próprios agentes. Nessas o processo de autonomi-
zação da produção é decorrente da constituição de
Na imprensa, por exemplo, projetos gráficos de
revistas e suplementos de grandes jornais são
categorias de profissionais, então mais vinculados a
comumente realizados por jornalistas que se corresponder a demanda de um público consumidor
especializam neste tipo de atividade (e que, no crescente, situação que propicia a independência
jargão do jornalismo, ainda são errônea e gene- econômica dos produtores. Essa profissionalização
ricamente identificados como diagramadores) 718
(VILLAS-BOAS, 2000, p. 35).
faz com que grupos de profissionais reconheçam
um tipo de conhecimento próprio, de domínio téc-
Foi somente no século XX que as páginas de jor- nico e passem a estabelecer suas normas – também
nais trouxeram nomes de profissionais responsáveis herdadas de seus predecessores – que dão acesso a
por sua configuração gráfica. Conforme indica Souza profissão e marcam esse ponto de ruptura dos con-
(2005), no Brasil na década de 1930 o design começou troles sociais exclusivamente externos, como o aca-
a ser uma expressão mais recorrente na imprensa dêmico e o político. Esse princípio de legitimação
com a introdução de conceitos de composição. Po- paralelo possibilitou a diversificação e a multiplica-
rém, expandiu sua atuação entre as décadas de 1950 ção das instâncias de consagração e difusão, que no
e 1970, quando o setor gráfico vivenciou um grande caso editorial inclui o próprio mercado especializa-
crescimento, também graças ao desenvolvimento in- do, como as editoras e veículos.
dustrial do governo da época. Tal desenvolvimento Desse modo, o capitalismo e a revolução in-
atingiu também as redações, e a imprensa presenciou dustrial forneceram as condições necessárias para
um momento de prestígio. Experiências editoriais ampliação do campo de produção de bens culturais
como o Diário Carioca, reformulado por Pompeu de que, de acordo com o autor, são também os fatores
Sumário
que determinam o processo de diferenciação das es- bem simbólico. Por outro lado, cria-se outro tipo de
feras da atividade humana e da constituição de sis- dependência, que não mais somente a política ou re-
temas dotados de independência relativa e regidas ligiosa, mas às leis do mercado de bens simbólicos,
por leis próprias11, situação na qual inferimos que um mercado regido por sua própria dinâmica que se
Bourdieu (2007) situaria a produção editorial vincu- submete às exigências do seu grande público.
lada ao jornalismo e os seus profissionais. A partir disso, percebe-se esse processo de le-
gitimação é altamente hierarquizado no campo de
O desenvolvimento do sistema de produção de
bens simbólicos (em particular do jornalismo,
disputas conforme constata Bourdieu (2007). Para
área de atração para os intelectuais marginais observar esse aspecto, primeiro necessitamos con-
que não encontram lugar na política ou nas pro- siderar o pressuposto de que o campo da produção
fissões liberais), é paralelo a um processo de di- deriva sua estrutura da oposição entre o campo de
ferenciação cujo princípio reside na diversidade
dos públicos aos quais as diferentes categorias
produção erudita do campo da produção industrial,
de produtores destinam seus produtos, e cujas “separados tanto pela natureza das obras produzi-
condições de possibilidade residem na própria das, pelas ideologias políticas e teorias estéticas que
natureza dos bens simbólicos. Estes constituem as exprimem, como pela composição social dos di-
realidades com dupla face – mercadorias e sig- 719
nificações –, cujo valor propriamente cultural
versos públicos aos quais tais obras são oferecidas”
e cujo valor mercantil subsistem relativamen- (BOURDIEU, 2007, p. 138). Mesmo assim, ambos
te independentes, mesmo nos casos que a san- modos de produção possuem em comum os proces-
ção econômica reafirma a consagração cultural sos de divisão do trabalho e a composição de esfe-
(BOURDIEU, 2007, p. 103).
ras de fora da atividade que explicitam as funções
De um lado notamos que a partir do momento competentes a cada uma delas e a organização dos
em que existe um mercado para o produto, seus pro- meios técnicos adequados a estas funções.
fissionais podem afirmar a singularidade da sua con- Em segundo lugar, também é necessário conside-
dição intelectual e específica. Igualmente, a distinção rar que seus produtos derivam de uma consagração
e a condição de existência reside na natureza de cada desigual, pois os valores materiais e simbólicos não
11
Bourdieu (2007) observa que o aparecimento do direito como “esfera autônoma” surge a partir da divisão do trabalho que leva
a constituição de um corpo de juristas profissionais. Para o filósofo o mesmo acontece na religião com a instituição de um corpo
sacerdotal e na arte, na correlação que os artistas possuem com os não artistas e os demais artistas, “resultando na constituição
de um campo artístico relativamente autônomo e na elaboração concomitante de uma nova definição da função do artista e da
sua arte” (BOURDIEU, 2007, p. 101).
Sumário
são os mesmos, há sempre um mercado dominante de que artefatos manufaturados são obras de arte”.
do ângulo da legitimidade, o qual impõe suas normas Uma visão estimulada pelo tratamento que certos
de consagração. O valor social de um campo de pro- produtos de design receberam ao ocuparem certas
dução confere sua posição no sistema, um sistema esferas de legitimação, como exposições em museus
mais ou menos integrado, mas sempre hierarquizado de obras artísticas, e de declarações de que “o design
– culturas distintas, mas objetivamente hierarquiza- industrial é arte do século XX” (FORTY, 2007, p. 13).
das. Assim, a indústria voltada a um público popular Nessa perspectiva, a respeito das hierarquias,
– ou médio como Bourdieu se refere – possui uma nota-se que o design também se subordina à cultura
posição dominada na hierarquia das legitimidades. de trabalho jornalística que é dominante. Conforme
Desse modo, o que é produzido para o grande pú- Traquina (2005), o jornalismo obteve êxito incom-
blico só poderia renovar suas técnicas e suas temáti- parável a outras profissões no que diz respeito à ela-
cas quando se aproximando da cultura erudita. Para boração de sua cultura, valores e identidade profis-
Bourdieu (2007) é a arte erudita que impõe as trans- sional, os quais atingiram uma dimensão mitológica
formações técnicas e as leis da concorrência. dentro e fora da mesma.
Com base nisso, percebe-se que os bens cultu- Sousa (2006) explica que, em essência, o jor- 720
rais situados fora da esfera erudita, aparecem como nalismo corresponde, dominantemente, à ativida-
pertencentes à esfera legítima, à medida que reco- de de divulgação mediada, periódica, organizada e
nhecem essa subordinação e alcançam patamares hierarquizada de informações com interesse para
de consagração legítimos, como o sistema de ensino o público. Já para Franciscato (2005) o que justifica
citado, pois é desse sistema que depende a compe- a existência do jornalismo e de seus veículos dis-
tência e o seu grau de legitimidade. Nesse sentido, seminadores de informação é a necessidade que as
observamos no campo do design, até hoje, a valo- pessoas possuem de se informar sobre os aconteci-
rização de um discurso sobre o indivíduo criador e mentos. Traquina (2005), além de reconhecer isso,
seu “poder criativo”, gestando a falsa sensação de apresenta duas dimensões que auxiliam no entendi-
que o profissional é absolutamente autônomo no mento da profissão de jornalista. Tendo como base
exercício de sua prática. Esse discurso veiculado a formulação de campo de Bourdieu, o autor afirma
nas publicações de referência e nas universidades que o jornalista não só disputa o espaço designado
acaba por promover um profissional que não tem ao campo intelectual, mas também, a partir de seu
consciência da sua condição de agente. Forty (2007, conhecimento especializado, luta pelo monopólio
p. 12) destaca que essa é uma herança cunhada “pela desse saber, precisamente o saber de produzir notí-
confusão do design com a arte e a consequente ideia cias. Igualmente, apresenta outra contribuição a de
Sumário
pensar o jornalismo a partir de dois polos: o polo eco- Assim como o jornalismo, longe de ser uma
nômico (a definição das notícias como um negócio) atividade neutra, o design confere forma tangível e
e o polo ideológico (a noção das notícias como um perene às ideias a partir de seus produtos, conforme
serviço público). Sobre as questões que envolvem já exposto. Com efeito, para Forty (2007) a essên-
o polo ideológico, percebemos mais uma afinidade cia do fazer em design está, sim, ligada a aparência
com o que Bourdieu propõe, a defesa da existência das coisas, já que disso decorre as condições de sua
de uma autonomia relativa do campo jornalístico, existência, bem como aparência é uma das consequ-
característica que confere poder aos jornalistas. ência das condições de sua produção. Porém, con-
Conforme explica Neveu (2004), a origem das forme indica o autor, é uma atividade, por natureza,
práticas jornalísticas, que constituem a referência social e, desse modo, não faz sentido as associações
dessa profissão em boa parte dos países, se concen- puramente superficiais longamente atribuídas a
tram nas características do modelo anglo-americano esse, relegando por vezes seus aspectos econômicos
que responde: a) à lógica utilitarista, ou seja, neces- e ideológicos e obscurecendo “o fato de que o design
sidades práticas e cotidianas, a partir de editorias de nasceu em um determinado estágio da história do
serviços dos mais variados; b) outro traço decorre do capitalismo e desempenhou papel vital na criação 721
status da imprensa como atividade empresarial, que da riqueza industrial” (FORTY, 2007, p. 11).
provem de fatores como: ampliação do público lei- Esses aspectos apontados referentes as práticas
tor, o entendimento da notícia como mercadoria e de jornalismo e design, no que diz tange seus agen-
do interesse pela atenção da publicidade. Acrescen- tes, ao se subordinarem aos imperativos da concor-
te-se que com esse contorno – no final do século XIX rência pela conquista de mercado, é ressaltado por
60% da renda dos jornais já vinham da publicidade Bourdieu (2007), cujo esclarece que essa sujeição,
– criam-se grandes grupos economicamente podero- além de corresponder a demanda do público, se
sos; c) e por último, desse contexto, deriva a forma- dá em relação aos detentores dos instrumentos de
lização do modelo anglo-americano, constituindo a produção e difusão, ao passo que a estrutura de seu
profissionalização do jornalista. Então, tornando-se produto procede de condições econômicas e sociais
um assalariado com carteira profissional, distingue- de sua produção, os quais comandam suas esco-
-se pelo domínio de habilidades técnicas e investiga- lhas técnicas e estéticas, com o objetivo final de ser
tivas, por uma escrita normatizada e pelo surgimen- acessível ao maior número de pessoas12. Com efeito,
to dos cursos de jornalismo nas universidades. Bourdieu (2007) destaca que tal tipo de produção re-
12
Qualidade também reconhecida no discurso jornalístico, conforme explica Traquina (2005), partindo do pressuposto de que
o público das notícias é heterogêneo, é possível ressaltar a qualidade de ser compreensível, a utilização de uma sintaxe direta,
econômica e concisa com o uso de palavras simples.
Sumário
sulta da conjunção de dois processos principais: a) o posição que ocupam? Qual o princípio da existência
produto de um sistema dominado pela rentabilidade dos produtos editoriais (jornais e revistas)? Existem
e pela extensão máxima do público, orientado sem- rupturas, dos que defendem uma certa tradição e
pre para ampliação desse público; b) e o resultado daqueles que se esforçam por quebra-la? De fato,
de transações entre diferentes categorias de agentes como salientou o próprio autor, que uma pesquisa
do campo da produção técnica e socialmente dife- que se propõe a iniciar esse modo pensamento é en-
renciada, onde estão envolvidos, além do proprietá- volvido por processo nada fácil, entende-se como
rios dos meios de produção, as diferentes categorias um esforço válido e necessário. Desse modo, são
dos próprios produtores13. propriamente essas questões que dão luz à inves-
tigação e que forneceram parâmetros importantes
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS para buscar no quadro teórico algumas das respos-
tas pretendidas.
Muitas são as possibilidades de desdobramen- Ainda assim, acredita-se que, mesmo incial-
to a partir das formulações de Bourdieu. Nesse en- mente, conseguiu-se responder o que motivou a
saio, considerando o espaço disponível e o recorte construção desse ensaio, se realmente era possí- 722
necessário, optamos por alguns aspectos mais ge- vel afirmar a existência de um campo de atividade
rais, concentrando atenção sobre a teoria geral dos profissional de design editorial em jornalismo aos
campos em detrimento de outras noções que ainda termos de Bourdieu. Percebe-se que a condição de
podem ser consideradas, como o próprio conceito dupla necessidade como propõe o filósofo, da ne-
correlato de habitus. cessidade própria do campo em existir e da neces-
Com efeito, identifica-se que ficam mais inda- sidade externa de sua própria existência é contem-
gações que respostas, existe uma história própria plada. Nesse sentido, nota-se que para desvendar a
do design editorial de jornais e revistas? Qual a ne- essência dessa existência é impossível dissociar a
cessidade social do campo? Como se situam obje- pesquisa da perspectiva histórica, parece que de al-
tivamente os designers e seus produtos no campo guma maneira sempre nos remetemos a isso. Porém
editorial, inclusive em relação aos demais profissio- há a igual necessidade de relativizar para o contexto
nais e produtos (posição relativa)? Qual a função da atual em que a pesquisa se insere, pois hoje as con-
13
“[...] que se encontram, de maneira mais ou menos rigoroso, presos ao papel de puros técnicos encarregados de executar uma
encomenda externa e mais ou menos dispostos e aptos a afirmar os direitos de sua competência específica” (BOURDIEU, 2007,
p. 137-138).
Sumário
dições de produção da notícia são muito diferentes gência, marcado por profissionais polivalentes, pela
de seu surgimento. primazia do conteúdo digital sobre o impresso, mes-
Atualmente tanto o jornalismo como o design mo assim, com a coexistência das diferentes ofertas
vem sendo desafiados com o desenvolvimento de de conteúdo, cada uma com sua especificidade de
conteúdo para as mídias digitais, seja do ponto de produção, circulação e consumo.
vista tecnológico, seja comercial, editorial e gráfico. Portanto, vivemos um momento de extraordi-
Ao confrontar o que era feito antes e depois da publi- nária mudança social, marcada por tecnologias que
cação de conteúdo na internet e em aplicativos para estão transformando radicalmente as formas como
dispositivos móveis é possível notar que o imediatis- nos relacionamos com o mundo. No atual contexto,
mo desencadeado por esse novo cenário fez com que diante de sua complexidade, é preciso reconfigurar
jornais e revistas tivessem que prestar um serviço as discussões sobre design e seus profissionais de-
diferenciado a seus leitores. Assim, é possível notar vem ter mais consciência do papel que desempe-
dois movimentos que modificam profundamente o nham na sociedade (BERWANGER, 2016).
modus operandi do designer nesse contexto: um de-
les é a necessidade de atualização constante de suas 723
habilidades práticas, técnicas e conceituais, bem REFERÊNCIAS
como o conhecimento do campo jornalístico; a outra
é desfiguração da fronteira daquilo que pertence a Associação dos designers gráficos. O valor do design: guia
ADG Brasil de prática profissional do designer gráfico. São
ordem da forma e o que é da ordem do conteúdo
Paulo: Editora SENAC; ADG Brasil, 2003.
(ZAPPATERRA; CALDWELL, 2014).
Ao mesmo tempo em que a tecnologia propor- BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: história da im-
ciona a incorporação ainda mais enraizada do de- prensa brasileira. São Paulo, Ática, 1990.
signer – e de outras habilitações como os programa-
BRAGA, José Luiz. Para começar um projeto de pesquisa.
dores – na prática jornalística, é ela que o desafia.
Revista Comunicação e Educação, v. 10, n. 3, 2005.
Nessa nova fase não é mais possível pensar essa
profissão sem o conhecimento básico de codifica- BERWANGER, Ana. Os usos sociais do design e a sociedade
ção, domínio de gráficos interativos e imagem em dividida em classes: alguns apontamentos sobre a obra A
movimento, por exemplo, elementos que agora fa- distinção: crítica social do julgamento, de Pierre Bourdieu.
Revista Estudos em Design, v. 24, n. 1, 2016.
zem parte do vocabulário gráfico das novas mídias.
Essa característica aponta para o cenário de conver-
Sumário
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1989. geral dos campos de Pierre Bourdieu: uma leitura. Revista
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¹ Mestranda em Comunicação Social pela PUCRS, com bolsa integral PROSUP/CAPES. Graduada em Comunicação Social –
Publicidade e Propaganda pela UCPel. E-mail: paularviegas@gmail.com
Sumário
ela, a interseccionalidade não se dá como uma hie- como uma categoria de análise sócio-histórica, de-
rarquia de opressão, mas como diferentes tipos de vemos buscar igualdade política não apenas nas di-
dominação, que combinados, potencializam a desi- ferenças sexuais, mas também relacionadas à classe
gualdade e a violência estrutural. e raça, apesar de estes marcadores não terem pa-
ridade (SCOTT, 1989). Um ponto de vista possível
O FEMINISMO INTERSECCIONAL E AS é o feminismo interseccional, que permite proble-
ESFERAS PÚBLICO/PRIVADO matizar ainda mais a questão da democracia e da
pluralidade, onde gênero se tenciona com outros
A luta em prol da igualdade de gênero, apesar marcadores, estendendo esta luta política.
dos avanços significativos nos últimos anos, está De acordo com Hirata (2014), questões relacio-
longe de terminar. Scott (2012) aponta que até mes- nadas a sexo, raça e classe representam um ponto
mo a questão mais básica relacionada ao gênero, central na questão da desigualdade, mas a intersec-
sobre a relação entre sexo biológico e papéis cons- cionalidade vai muito além dessas questões. O ter-
truídos culturalmente para mulheres e homens, ain- mo “interseccionalidade” foi usado pela primeira
da não foi resolvida. E dessa forma, “em vez de [...] vez por Kimberlé Crenshaw em 1989, para designar 727
tornar-se mais claro ao longo do tempo, gênero se a interdependência das relações de poder de raça,
tornou mais impreciso” (SCOTT, 2012 p .331). Neste sexo e classe, e simboliza uma herança do black fe-
sentido, ela afirma que: minism. Interseccionar desigualdades sociais é levar
em conta as múltiplas fontes de identidade e, nesse
Parece não haver um único lugar no qual o gê-
nero possa confortavelmente ou finalmente re-
sentido, “a interseccionalidade é vista como uma das
pousar. E é justamente por isso que, estes de- formas de combater as opressões múltiplas e imbri-
bates são políticos. As disputas políticas que se cadas, e portanto como um instrumento de luta polí-
seguem a partir da incerteza sobre gênero, levam tica” (HIRATA, 2014, p. 69). Para Collins (2015), con-
a uma proliferação dos seus significados, e deste
modo, nas palavras de Barbara Johnson’s, ‘exce-
siderar o feminismo dessa forma não é apenas um
deu os limites de controle estável ou coerência. projeto de conhecimento, mas também, uma arma
Tornou-se algo para se estar infinitamente em política. Para a autora, “raça, classe, gênero, sexua-
luta’ (SCOTT, 2012 p. 332). lidade, idade, capacidade, nação, etnia e categorias
de análise semelhantes são melhor compreendidas
Neste sentido, pensar sobre as questões de gê- em termos relacionais do que isoladamente uma da
nero se torna um processo sem fim, algo para se outra” (COLLINS, 2014, p. 14). Para isso, é preciso
estar sempre em luta. E quando pensamos gênero considerar os diferentes pontos de vista, realidades
Sumário
e experiências, a diferença de tempo e espaço entre De acordo com Okin (2008), público e privado
esses marcadores, levando em consideração que este não podem ser interpretados isoladamente. Para
é um processo social complexo. ela, o âmbito privado é a raiz da desigualdade de
Em relação ao âmbito político, não são apenas gênero e a família vem se tornando um foco prio-
as questões púbicas que se tornam luta, mas tam- ritário da teoria feminista. Biroli (2014) relembra
bém questões das esferas privadas. Apesar de não que por muitos anos as mulheres não eram consi-
possuírem fronteiras perfeitamente definidas, es- deradas cidadãs, ou seja, estavam excluídas da vida
sas esferas são conceitos-chave no debate, assim pública. Para ela “o feminismo mostra, assim, que é
como indica o jargão da segunda onda feminista: impossível descolar a esfera política da vida social,
“the personal is political”, ou “o pessoal é político”. a vida pública da vida privada, quando se tem como
Outro exemplo de problema pessoal/privado que objetivo a construção de uma sociedade democrá-
merece atenção política é a violência doméstica. De tica” (BIROLI, 2014, p. 33), apesar de não ser um
acordo com Giffin (1994), as mulheres sofrem vio- debate consensual no feminismo. Segundo Biroli
lência principalmente no âmbito doméstico, onde o (2014) para haver democracia é preciso haver rela-
agressor é, normalmente, o próprio parceiro. Para ções igualitárias em todas as esferas da vida, inclu- 728
a autora, “anunciando que ‘o privado é político’, as sive na esfera doméstica, pois a pluralidade demo-
relações sexuais/de gênero são enfocadas como um crática só pode ser garantida se houver respeito no
campo de luta estruturado, fundamentalmente, pe- florescimento de identidades baseadas em crenças e
las recorrentes diferenças de poder entre homens práticas distintas.
e mulheres (GIFFIN, 1994, p. 150). Atualmente, no
Brasil, 70% da população acredita que a mulher so- DELIBERAÇÃO DEMOCRÁTICA EM REDE
fre mais violência dentro de casa do que em espaços
públicos4. Este tipo de violência é normalmente na- Assim como nas teorias feministas, nas teorias
turalizado tanto pela mulher e pelo homem quanto deliberacionistas as esferas pública e privada tam-
pelas testemunhas envolvidas5 e, consequentemen- bém ganham destaque. Público, na antiguidade, era
te, pouco questionado, podendo até mesmo chegar sinônimo de política e para o privado sobravam a
a um feminicídio. vida doméstica e o trabalho. Atualmente, há uma
⁴ FONTE: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/07/DATAPOPULAR_IPG_violenciaeas-
sassinatos2013.pdf> Acesso em 5 jul.2016.
⁵ FONTE: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/08/Cejus_FGV_feminicidiointimo2015.
pdf>. Acesso em 5 jul. 2016.
Sumário
o processo de deliberação colabora tanto as insti- ser a única responsável pela democracia ideal ape-
tuições presentes no processo quando as formas de sar da grande visibilidade que produz. Isto porque,
ver, entender e reconhecer o outro. acima de tudo, a instância midiática é uma indústria
Segundo Cohen (2009), o procedimento deli- baseada em lógicas econômicas, nem sempre dando
berativo ideal deve: (1) ser livre, onde as decisões foco exclusivamente no interesse público. A demo-
são alcançadas a partir da deliberação e por isso a cracia deliberacionista, então, deve ser exercida pela
importância de participar dos debates; (2) ser uma sociedade, através de redes conflito-colaborativas,
troca de razões em que todas as partes devem parti- tanto na internet quanto nas ruas.
cipar; (3) ter partes formais e iguais, onde todos que
possuem capacidades deliberativas tem igual status; Conversações em rede, comunidades virtuais e a deli-
(4) chegar a um consenso racionalmente motivado, beração online
para que todas ajam de acordo com os resultados. O
bem é comum é questão central neste debate, pois Para entender como se dá a deliberação em rede
é em torno dele que o debate político é organizado é preciso entender como se dá o funcionamento
em uma democracia bem-ordenada. Uma barganha da conversação em rede. De acordo com Recuero 730
entre grupos, onde cada um persegue seu interesse (2011), analisamos as pessoas envolvidas na rede e
particular, não pode ser considerada justa (COHEN, suas conexões, não as próprias redes sociais. Neste
2009). Eis a importância da interseccionalidade: as sistema, “os atores atuam de forma moldar as es-
discussões acerca da desigualdade de gênero devem truturas sociais, através da interação e da consti-
considerar outras formar de opressão de forma cola- tuição de laços sociais (RECUERO, 2011, p. 25). As
borativa entre elas e não hierarquizada. Este debate deliberações em grupos do Facebook se dão atra-
não pode impor o que é uma vida adequada para o vés das conversações em rede que são compostas
outro, e sim, utilizar da empatia para compreender por “milhares de novas formas de trocas sociais que
as necessidades de cada um em prol do bem comum. constroem conversações públicas, coletivas, síncro-
Para isso é preciso que as diferentes vozes sejam ou- nas e assíncronas, que permeiam grupos e sistemas
vidas, em uma deliberação baseada no pluralismo, diferentes, migram, espalham-se e semeiam novos
onde ideias diferentes são tencionadas e “os inte- comportamentos” (REUCERO, 2012, p. 121). São
resses, objetivos e ideais que compreendem o bem conversas que permanecem, ou seja, se alguém não
comum são aqueles que sobrevivem à deliberação” estava online no momento que o debate começou, o
(COHEN, 2009, p. 96). A comunicação pública plural mesmo pode ser retomado.
não deve vir apenas da mídia de massa, pois ela não
Sumário
De acordo com Recuero (2012), as conversações atores são capazes de orientar movimentos através
em rede “podem organizar movimentos de ocupa- da circulação de interesses e afetos, apontando na
ção em todo mundo e influenciam revoltas armadas. direção de uma nova ordem democrática (MALINI e
São, fundamentalmente, conversações amplificadas, ANTOUN, 2013). O feminismo debatido em grupos
emergentes e complexas, nascidas da interconexão do Facebook, por exemplo, cria uma rede de apoio
entre os atores” (REUCERO, 2012, p. 122). Recue- virtual que muitas vezes ultrapassa os limites do
ro (2012) defende que a comunicação mediada pelo computador. Eles podem ser considerados comuni-
computador é uma conversação que se apropria das dades virtuais, que para Castells, são comunidades
ferramentas digitais, fazendo emergir novos usos não físicas, mas
através da coletividade.
não são ‘irreais’, funcionam em outro plano da
A conversação em rede é, assim, pública, ca- realidade. São redes sociais interpessoais, em sua
paz de alastrar-se pelas redes sociais pela ação maioria baseadas em laços fracos, diversificadís-
de seus participantes. Pode ter aspectos que se simas e especializadíssimas, também capazes de
originam no espaço privado, mas a visibilidade gerar reciprocidade e apoio por intermédio da
é uma necessidade para que ela possa migrar dinâmica da interação sustentada (CASTELLS,
dentro dos grupos. É uma multiconversação, no 1999, 446). 731
sentido que conecta várias outras conversações,
várias discussões em vários grupos (RECUERO, Para Recuero (2011), as comunidades virtuais
2012, p. 217). são estruturas dinâmicas e dependem de um núcleo
fortalecido “que mantém um determinado grupo
De acordo com Malini e Antoun (2013), a inter- social coeso, porque é ali que existe o comprometi-
net não produz um movimento orquestrado e mui- mento, a organização e a predominância dos laços
tas vezes “a narrativa mais se assemelha a um filme fortes” (RECUERO, 2011, p. 146). Nos grupos do Fa-
experimental que vai sendo escrito não só pelo dire- cebook, esse núcleo normalmente é formado pelos
tor, mas pelos atores e equipe, conforme a filmagem moderadores e seus contatos mais próximos, que se
se desenrola” (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 80). Há interessam pelo assunto e, normalmente, publicam
fundamentos políticos sendo disseminados pelos mais que os demais usuários. A dinâmica das redes
atores que constroem a internet, como discursos de sociais na internet envolve cooperação e conflito,
liberdade, que geram novas narrativas que privile- ruptura e agregação, em uma lógica de adaptação e
giam a ação coletiva nos movimentos, onde a comu- auto-organização (RECUERO, 2012). As comunida-
nicação tem papel determinante. Nessas redes, os des virtuais colaboram não apenas em um nível de
Sumário
“concepção mental do mundo” a partir de uma rede, 2004, p. 43). Para Lévy (2004), hoje em dia, é pos-
mas também gera efeitos fora do ambiente online sível entender questões que não tínhamos acesso,
O movimento feminista na era da internet, se- pois dependíamos apenas de meios de comunicação
gundo Castells (2013), se propagou e ganhou visibili- como TV, rádio e jornal impresso ou do conheci-
dade, a partir de uma imagem diferente, talvez mais mento de familiares e amigos. Por fim, Lévy aponta
abrangente e inclusiva. Por outro lado, também gerou que a principal vantagem da internet é que ela per-
certo mal estar àqueles que estão satisfeitos com as mite que qualquer “cibercidadão” se expresse sem o
estruturas socais baseadas na desigualdade de gêne- filtro dos editores. “Resultado: a esfera pública está
ro. Quando um grupo de pessoas fica indignado por se estendendo, diversificando e complexificando-se
algum problema social, como é o caso da deliberação de modo particular. Esta transformação da esfera
nos grupos feministas no Facebook, os movimentos público constitui um dos fundamentos da ciberde-
sociais surgem, ressurgem ou apenas se reencontram mocracia” (LÉVY, 2004, p.46).
para compartilhar emoções como medo, indignação Segundo Gomes (2011), a participação política
e raiva, que fazem ações coletivas serem potenciali- é um dos temas mais tradicionais na pesquisa sobre
zadas. Para Castells (2013), “nos últimos anos, a co- democracia. O autor diferencia o tipo de participa- 732
municação em ampla escala tem passado por profun- ção que nasce na internet, onde este canal de co-
da transformação tecnológica e organizacional, com municação é essencial, do tipo de participação que
a emergência do que denominei autocomunicação se estende no meio online, mas é existente longe do
de massa, baseada em redes horizontais de comuni- computador. O feminismo nasceu muito antes da
cação multidirecionais, interativa, na internet (CAS- internet e já mobilizou diversas pessoas pela igual-
TELLS, 2013, p. 158). Este é o novo contexto em que dade de gênero, mas a comunicação pública media-
se encontram os movimentos sociais no século XXI. da pelos sites de rede social possibilitou novas for-
Porém, para Castells (2013), a internet é um compo- mas de interação e conversação para o movimento.
nente necessário para um movimento social, mas Primeiramente, é preciso diferenciar ação de par-
não suficiente, pois ela une indivíduos com indigna- ticipação. De acordo com Gomes (2011), ação é ler
ções comuns que devem se expandir. jornais online e visitar sites políticos, enquanto par-
Neste sentido “a opinião pública vai se forjan- ticipação é quem está presente e ativo em fóruns,
do progressivamente por meio dos marcos de dis- compartilha vídeos e imagens, escreve um blog de
cussão, fóruns, salas de chat, redes de sites interco- política, escreve petições eletrônicas, manifesta em
nectados e de outros mecanismos de comunicação fóruns eletrônicos, etc.
característicos das comunidades virtuais” (LÉVY,
Sumário
De acordo com Sampaio (2011), nem toda parti- CASO: CDMJ TALK
cipação civil é deliberativa, visto que existem diver-
sas outras formas de participação política. Entretan- Para ilustrar o fenômeno da deliberação em
to, os conceitos caminham juntos. Alguns autores rede será analisado o grupo do Facebook “Casa da
apontam que em uma política mais deliberativa os Mãe Jonna TALK”6, que é uma iniciativa da Casa da
cidadãos devem racionalizar sobre problemas pú- mãe Joanna7 (CDMJ), idealizado por Joanna Burigo.
blicos em conjunto, resolvendo questões através do Segundo Burigo (2016), mesmo entendendo que já
discurso (SAMPAIO, 2011). A deliberação se trata existiam diversos projetos feministas no Brasil, es-
de “processo aberto, contínuo, ou, ainda, a delibe- pecialmente na internet, a CDMJ surgiu para suprir
ração sempre estaria aberta para uma revisão dos a falta de um projeto que contemplasse epistemi-
posicionamentos dos participantes ou para uma camente todas as correntes do feminismo e que se
mudança das escolhas” (SAMPAIO, 2011, p. 198). posicionasse como um espaço aberto para diálogo
Neste sentido, no feminismo, a deliberação se torna dentre todas essas vertentes. A CMDJ foi idealizada
essencial, pois cada contexto social e histórico me- em março de 2015, enquanto o grupo no Facebook
rece uma retomada nas discussões. Sampaio (2011) foi lançado em maio do mesmo ano. No começo, 733
faz um resgate nos trabalhos sobre deliberação on- o grupo era composto por aproximadamente cin-
line ou deliberação na rede, observando que não é quenta pessoas e continha, principalmente, amigos
um assunto ainda muito discutido no Brasil. Além e amigas da rede de Joanna, que já produziam con-
disso, Sampaio (2011) apresenta um modelo de de- teúdo feminista no Facebook. Atualmente, o grupo
liberação online um pouco mais completo, partindo possui 2175 membros, o que não era algo esperado
de autores que já desenvolveram técnicas de análise pela idealizadora do projeto. O objetivo inicial era
dessas redes. Este modelo será utilizado no estudo ter um espaço para diálogo sobre pontos difíceis do
de caso a ser desenvolvido a seguir, combinado com feminismo, como o debate sobre prostituição, mas
outras técnicas de pesquisa. o grupo recebe diversos tipos de publicações como
desabafos, memes engraçados, etc. (BURIGO, 2016).
A metodologia utilizada na presente investiga-
ção será o estudo de caso combinado com algumas
técnicas de pesquisa. De acordo com Yin (2005), estrutural e a análise das falas. Visto que é possível
“um estudo de caso é uma investigação empírica “valorizar mais determinados operadores analíticos
que investiga um fenômeno contemporâneo dentro em detrimento de outros” (SAMPAIO, 2011, p. 216),
de seu contexto da vida real” (YIN, 2005, p. 32). Sen- na análise do presente estudo, a primeira categoria
do a deliberação em rede e o feminismo aconteci- de análise será utilizada de forma mais abrangente
mentos contemporâneos e em processo, esta parece que a segunda.
ser a metodologia adequada. Além disso, o estudo
de caso permite lidar com vários tipos de evidên- A análise estrutural: contexto em que o fórum está
cia. Muitos grupos no Facebook se propõem a abrir inserido
espaço para debate sobre o feminismo e o empo-
deramento da mulher, funcionando como fóruns. a) Estrutura comunicativa: esta categoria tem
O grupo Casa da Mãe Joanna TALK foi escolhido, relação com o anonimato, a abertura dos discursos,
principalmente, por propor foco na diversidade de a agenda da discussão, a moderação e a força do es-
correntes e vertentes feministas. Sendo o pluralis- paço público. Em primeiro lugar, na CDMJ TALK, os
mo, a diversidade e o choque de ideias questões fun- participantes não são anônimos e sim identificados, 734
damentais para uma democracia deliberativa, este por ocorrer no Facebook, que é um site que necessi-
grupo se mostrou um objeto interessante para en- ta criar um perfil para visualizar o conteúdo e inte-
tender como tem funcionado a deliberação em rede. ragir com os demais usuários. Em relação à abertu-
Isto porque, “qualquer iniciativa dedicada a garan- ra dos discursos, não há limite de postagens, o que
tir canais de expressões de minorias representa um gera liberdade para todos participarem. A agenda
passo da democracia digital” (GOMES, 2011, p. 35). de discussão é feita pelos próprios participantes,
Para entender se há espaço para os grupos mi- apesar da mediação sugerir pautas. Além disso, no
norizados, na lente do feminismo interseccional, fo- grupo há moderação, contando com a supervisão e
ram utilizadas algumas técnicas como observação e intervenção de 13 moderadoras. O trabalho da mo-
participação no grupo, entrevista com a idealizadora deração normalmente é intervir em comunicações
do projeto, aplicação de questionários para as par- violentas e conflitos extremos, visando sempre a li-
ticipantes do grupo, que serão analisados dentro do berdade da conversação.
modelo de deliberação online proposto por Sampaio
Já tiveram conflitos no grupo que a gente fez
(2011). Este modelo aponta pontos a serem observa- intervenção/moderação, justamente para que
dos dentro de duas categorias de análise: a análise as pessoas não se sintam coibidas de expressar
Sumário
a sua voz. O grupo para mim, como fundadora Eu espero que a casa seja um espaço democráti-
dele, é democrático, no sentido de que eu faço co, espero que seja assim que as pessoas vejam
questão que todas as pessoas saibam que a voz a casa, mas claro, a gente tem um problema que
delas é tão válida quanto qualquer outra voz que é a questão de representatividade, que está rela-
exista dentro do grupo (BURIGO, 2016). cionada à minha rede. Então a casa é majorita-
riamente branca, majoritariamente classe média,
Porém, de acordo com as respostas do questio- está restrita a quem está na internet e especifi-
camente no Facebook. Mas dentro desses parâ-
nário, 50% das participantes já se sentiram coibidas metros, eu acho que é democrático, no sentido
ou censuradas, não especificando se isso ocorreu de que toda voz é válida no grupo. Inclusive, a
no grupo ou fora dele, o que pode ser uma questão gente faz um esforço enorme para que ninguém
aberta e pouco esclarecedora. Por último, é impor- se sinta ridicularizado por conhecer um pouco
menos (BURIGO, 2016).
tante entender se o CDMJ TALK é um espaço públi-
co forte ou fraco. De acordo com Sampaio, “o espa- Há homens no grupo, mas entre as pessoas que
ço será forte quando os participantes acharem que responderam o questionário divulgado no grupo,
sua participação será lida e considerada pelos outros todas eram mulheres, cisgêneras, heterossexuais e
usuários” (SAMPAIO, 2011, p. 203). Segundo as res- de classe média, sendo 80% da região sul do Bra- 735
postas dos questionários aplicados, 80% das usuárias sil. Entre as respostas do questionário, também há
se sentem ouvidas e consideradas pelo grupo, o que pessoas do sudeste e centro-oeste. Quanto ao que
parece caracterizar a CDMJ TALK como um espaço consideram que é o feminismo, as respostas se di-
público forte, baseado na deliberação democrática. vergem. Uma pessoa defende o feminismo intersec-
Cultura política e ideologia dos participantes: cional, outra é mais teórica, outra é mais empírica e
essa análise se dá por quatro níveis que são as dife- outra apenas define feminismo como uma luta das
renças culturais, o tipo de ator político, a ideologia mulheres por direitos iguais. Em relação ao grupo,
das pessoas atraídas por esse ator e o tópico do de- algumas sentem falta de mais articulação teórica,
bate. Aqui, é necessário, principalmente, observar o outras de mais ações em conjunto. Isto demonstra
pluralismo do debate, por esta ser uma característica uma multiplicidade no debate feminista, o que é
central da democracia. Para isto, é preciso entender considerado fértil para a deliberação democrática
qual é o espaço para as diferenças comportamen- no grupo. Porém, de acordo com uma participan-
tais, os pontos de vista diferentes e, consequente- te, o exercício de reflexão e de crítica é importan-
mente, para a democracia deliberativa. te, mas “há uma falta de uma articulação, de ação,
pois no fim, todas permanecem sós e inertes”. Outra
Sumário
participante acredita que é preciso abrir ainda mais do feminismo [...] mas nas formas como o diálogo
os conceitos, pois “não existe um feminismo, mas acontece” (BURIGO, 2016). Para a idealizadora do
vários”. Talvez em um ideal democrático, a CDMJ projeto, as brigas decorrentes desse debate se dão
TALK esteja bem alinhada com os princípios da de- por motivos como falta de educação, falta de arti-
liberação em rede, mas sempre há espaço para apri- culação para o debate, por uma personalidade nar-
moramentos, visto que é um processo. císica e diversas outras personalidades. Neste sen-
tido, “conflitos não precisa existir quando o debate
A análise das falas: tópicos, debates e relevância é bem fundamentado e as pessoas estão dispostas a
conversar e dialogar com ouvidos generosos, usan-
Como o foco principal deste trabalho não se dá do comunicação não violenta” (BURIGO, 2016). Por
no discurso e sim na contextualização do ambien- fim, Burigo (2016) conclui que
te online, este operador analítico não será utiliza-
deliberar sobre o feminismo fortalece e muito o
do de forma integral. Aqui serão refletidas questões movimento, não tem nada que tenha oferecido
propostas por Sampaio (2011) como radicalização, progressão à causa que não tenha passado por
respeito, reciprocidade e continuidade. O objetivo conflitos entre vertentes, é absolutamente ne- 736
é entender o quão deliberativo é o grupo CDMJ cessário que isso aconteça. [...] É fundamental
que o feminismo seja debatido e é só assim que a
TALK, isto porque, “um alto índice de mensagens teoria progride (BURIGO, 2016).
irrelevantes tende a indicar baixo comprometimen-
to com a discussão e, provavelmente, baixo índice Apesar da importância do debate, nem todos os
de deliberatividade, sendo o inverso também ver- participantes do grupo produzem conteúdo e parti-
dadeiro” (SAMPAIO, 2011, p. 206). Em primeiro cipam das publicações. Segundo os resultados dos
lugar, é preciso de entender se no grupo, o debate questionários aplicados apenas 50% publica conteú-
acerca do feminismo, mesmo através de conflitos, do no grupo, o que pode ser considerada uma parti-
pode ser considerado um bem comum. Esta reflexão cipação política, de acordo Gomes (2011), enquanto
considera dois pontos importantes: a radicalização 60% curte e comenta publicações e 10% apenas ob-
e o respeito. Segundo Burigo (2016), o conflito so- serva, o que, segundo o mesmo autor, pode ser visto
bre o feminismo é um tema central no grupo, pois como uma ação. Quanto à continuidade do deba-
“ela não existe em função de deliberações a respeito
Sumário
te, em uma análise quantitativa, com uma coleta de pante alega: “o grupo melhorou meu entendimento
apenas uma semana8, foram postadas 134 publica- sobre feminismo e refletiu muito positivamente na
ções, uma média de 19 publicações por dia. Quando minha vida”, o que também nos traz um resultado
ocorrem grandes polêmicas, o número tende a au- mais qualitativo. Por outro lado, as respostam apon-
mentar consideravelmente. Quanto à reciprocidade tam que elas não sentem que a participação delas
do debate, foi contabilizado o número de interações colaboram com o grupo. A nota para este questio-
com as publicações desta semana e constatou-se namento teve média de 4,3, em uma escala de zero
que neste período, cada publicação recebeu em mé- a dez – sendo zero “não colabora” e dez “colabora
dia 18,9 curtidas e 3,2 comentários, o que parece ser muito”. Isto pode indicar que a principal colabora-
uma quantidade significativa para grupos no Face- ção vem de um grupo pequeno, mas quem se be-
book. Outra questão aparentemente não proposta neficia disso, como receptores, é um grupo maior.
por Sampaio (2011), e que tem grande importância Esta questão parece estar relacionada ao funciona-
nesta análise, é compreender se o grupo promove mento da comunidade virtual apontado por Recue-
o bem comum, de acordo com definição de Cohen ro (2011), que são estruturas dinâmicas que depen-
(2009). Segundo Burigo, dem de um centro que possua comprometimento e 737
organização. Neste núcleo, há uma predominância
conhecer o feminismo torna ele um bem comum,
no sentido que ele visa melhorias sociais no viés
dos laços fortes, ou seja, é formado por usuários que
de gênero, que estão pautadas nos direitos hu- possuem várias conexões com o grupo.
manos, na justiça e no bem de todos. Então, é
possível dizer que o feminismo, como movimen- APONTAMENTOS FINAIS
to, visa o bem comum (BURIGO, 2016).
De acordo com as respostas dos questionários A deliberação democrática não dá fim ao pro-
aplicados, em uma escala de zero a dez, a nota para blema da desigualdade de gênero, mas fortalece o
a questão “você acredita que sua participação no movimento feminista através de debates agonísti-
grupo traz benefícios para ti?” teve média 9 – sendo cos e plurais. O tencionamento das esferas pública e
zero “não traz benefícios” e dez “traz muitos bene- privada parecem atravessar os três eixos propostos
fícios”. Quantitativamente, isso pode ser um indício neste estudo: (1) o feminismo em sua visão intersec-
de bem comum e também particular. Uma partici- cional e a importância da deliberação pública sobre
questões que, por muitos anos, se mantiveram no CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz
âmbito privado, como a violência doméstica; (2) a e Terra, 1999
deliberação democrática através da prática da publi- ______. Redes de indignação e esperança: movimentos
cidade, buscando sempre o bem comum; (3) e como sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
estes fenômenos ocorrem através da conversação
em rede, através de sites de rede social, se estabe- COHEN, Joshua. Deliberação e legitimidade democrática. In.
lecendo como um espaço público forte. Esta é uma MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro (org). A deliberação
pública e suas dimensões sociais políticas e comunica-
colaboração no sentido simbólico, mas não menos tivas: textos fundamentais. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
real, que quebra processos históricos da desigual-
dade de gênero e de outros tipos de opressão, apon- COLLINS, Patricia Hill. Intersectionality’s Definitional
tados pelo feminismo interseccional. Os grupos Dilemmas. Annual Reviews of Sociology, v. 41, n. 1, p. 1
- 20, 2015. Disponível em: <http://www.annualreviews.org/
no Facebook, como a Casa da mãe Joanna TALK,
doi/pdf/10.1146/annurev-soc-073014-112142>. Acesso em: 23
tonificam o empoderamento discursivo da mulher, jun. 2016.
trazendo novas reflexões e mudanças de compor-
tamento. Neste sentido, deliberação online colabora ESTEVES, João Pissara. Sociologia da comunicação. Lis-
boa: Gulbenkian, 2011.
738
como um dispositivo, através de ações e participa-
ções políticas, que se desenvolvem em redes atra- GIFFIN, Karen. Violência de Gênero, Sexualidade e Saúde.
vés da conversação mediada pelo computador. As Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 146-
redes se auto-organizam através de uma lógica con- 155, 1994
flito-colaborativa e, por este motivo, a pluralidade
de crenças e vivências são extremamente benéficas GOMES, Wilson. Participação política online: questões e
hipóteses de trabalho. In. MAIA, Rousiley; GOMES, Wilson;
para o diálogo, sem o risco de enfraquecer o movi- MARQUES, Francisco. (org.) Internet e participação polí-
mento, desde que visem o bem comum. tica no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2011.
¹ Mestre em Letras (UFRGS). Doutorando em Letras (UFRGS), na área de Estudos da Linguagem. Professor efetivo de inglês e
português da UFRPE. E-mail: pauloroberto.souzaramos@gmail.com.
Sumário
Language Acquisition, and more specifically, from quem sanar dúvidas relativas à pronúncia de itens
E-Lexicography and Pedagogic Lexicography. Me- lexicais do português falado no Brasil quanto como
todologically, this study will include gathering and instrumento de ensino-aprendizagem para aprendi-
analysing data related to the Brazilian Portuguese zes e professores. Seu caráter interdisciplinar pode
(BP) lexicon, using for this, whenever necessary, the ser visto no arcabouço teórico, que compreende áre-
theory and practice of linguistic research based on as relacionadas diretamente ligadas a aspectos do
corpus, when these date were not available in pre- universo dos sons, como a Fonética e a Fonologia,
vious works. It will also conduct an on-line survey to mas também bebe nos achados da Sociolinguística
determine the preference of literate Brazilian Portu- e das Teorias de Aquisição de Segunda Língua e, de
guese speaker regarding lexical itens with competing maneira mais especifica, na Lexicografia Eletrônica
pronunciations, such as the noun <liquidificador> e na Lexicografia Pedagógica. Metodologicamen-
(Blender), which may be pronounced as [ki]dificador te, este estudo incluirá levantamento e análise de
or li[kwi]dificador. The combination of the different dados relativos ao léxico do português brasileiro
areas mentioned above aim to guide the lexicogra- (PB) usando para isso, quando necessário, os re-
phic and lexicological work in order to fill in an exis- ferenciais teóricos e ferramentas encontrados em 741
ting gap in Pedagogical Lexicography in terms of te- pesquisas linguísticas com corpus quando estes já
aching of Brazilian Portuguese pronunciation. não estiverem à disposição em trabalhos anteriores;
Keywords: Lexicography. Pronunciation. Portu- este trabalho também fará uso de um questionário
guese. Interdisciplinarity. on-line que verificará qual a preferência de falantes
escolarizados brasileiros para aquelas pronúncias
de itens lexicais que têm realizações concorrentes,
INTRODUÇÂO como é o caso do substantivo <liquidificador>, que
pode ser realizado como li[ki]dificador ou li[kwi]
O presente trabalho objetiva detalhar uma pro- dificador. A junção das diferentes áreas menciona-
posta de um desenho de um dicionário on-line de das aqui busca orientar o trabalho lexicográfico e
pronúncia do português brasileiro direcionado a fa- lexicológico a fim de preencher uma lacuna existen-
lantes do inglês. Esse dicionário deverá servir tanto te na Lexicografia Pedagógica quanto ao ensino de
como obra de referência para consulentes que bus- pronúncia do PB.
Sumário
PROPOSTA DE ELABORACAO DE UM dar conta dos fonemas que não fazem parte do re-
DICIONÁRIO ON-LINE DE PRONÚNCIA pertório fonético-fonológico da língua do aprendiz.
Para exemplificar, tomemos o som representado na
Crystal (2005) define dicionário como “um li- escrita pelo encontro consonantal <lh> na palavra
vro de referência que lista as palavras de uma ou <melhor>. Ele é fonte de dificuldade de pronún-
mais línguas, geralmente em ordem alfabética, jun- cia para falantes do inglês por não fazer parte do
tamente com informações sobre sua escrita, pro- repertório fonético-fonológico desses falantes. Um
núncia, classe gramatical, significado, história e dicionário de pronúncia interativo com amostras de
uso.”2 Esse livro de referência, justamente por tra- áudio apoiado em transcrições fonéticas e que, ao
zer informações de cunho linguístico, é passível de mesmo tempo, traga explicações de como proceder
ser usado por aprendizes de uma dada língua como para a articulação dos sons da língua que se está
ferramenta de aprendizado e por professores como aprendendo pode facilitar a busca do aprendiz pela
ferramenta de ensino. Um dicionário, por exemplo, pronúncia, não somente de forma receptiva, mas
pode ser usado por um consulente como fonte de também produtiva.
novas palavras para a produção de um texto, como O interesse por dicionários para uso no proces- 742
ocorre com os chamados dicionários escolares. No so de ensino-aprendizagem no Brasil parece assu-
entanto, como já foi listado acima, essa obra de re- mir um carácter mais rigoroso no momento em que
ferência traz também outros tipos de informação so- o Programa Nacional do Livro Didático cria a Co-
bre a palavra lematizada. Entre as informações que missão Técnica de Avaliação de Livros Didáticos e
traz um dicionário, Crystal inclui a pronúncia das com ela busca avaliar a qualidade e eficácia de dicio-
palavras, que, em geral, é apresentada por meio de nários para o uso nas escolas do país. Além do pa-
transcrições fonéticas usando ou o Alfabeto Fonéti- pel pedagógico desses dicionários, o PNLD também
co Internacional (AFI) ou uma aproximação usando passou a classificar os repertórios lexicais dessas
letras do idioma em que o dicionário foi feito. O AFI obras conforme etapas do processo de alfabetização
pressupõe um conhecimento de seus símbolos para e letramento. Cabe esclarecer que esses dicionários
sua adequada interpretação; já as aproximações são do tipo monolíngues e voltados a falantes do
feitas com letras do alfabeto são exatamente isso português como língua materna (L1).
-- aproximações -- e muitas vezes não conseguem
² [A book of reference that lists words of one or more languages, usually, in alphabetical order, along with information about
its spelling, pronunciation, grammar class, meaning, history and use.]
Sumário
mejam imitar essa pronúncia poderia justificar sua Tradicionalmente, as formas do sudeste do Bra-
inclusão no dicionário, acrescido da classificação re- sil, em especial das capitais dos estados de São Pau-
gionalismo. O mesmo poderia acontecer com a pro- lo e Rio de Janeiro, se apresentam como centros pa-
núncia dita sulista do substantivo <leite>, que da radigmáticos de pronúncia no que tange um padrão
forma lei[tʃi] poderia também trazer o lei[te], pois a ser seguido. Historicamente, isso de explica pelo
tal pronúncia faria parte do imaginário fonético fato de o Rio de Janeiro ter sido por muito tempo não
mesmo de falantes de outras comunidades de fala, só a capital do Brasil, mas também um centro cultu-
seja por meio de estereótipos associados à fala dos ral e econômico no país. São Paulo-SP também teve
habitantes do Rio Grande do Sul e Paraná ou assim desde muito tempo um papel importante no cenário
como <mu[tʃu]> por conta de representações hu- econômico e cultural da nação. Cabe se questionar
morísticas apresentadas em programas de TV como se essa explicação histórica justificaria a opção por
a empregada Bozena de Pato Branco-PR, persona- um falante nativo de um desses centros para regis-
gem do programa humorístico Toma Lá Dá Cá , da tro dos clipes de áudio representando a pronúncia
Rede Globo, interpretada pela atriz Alessandra Ma- da fala padrão do português brasileiro. Seguindo as
estrini. O levantamento de quais formas regionais opções tomadas por compiladores de dicionários de 744
são conhecidas nacionalmente pode também ser língua inglesa tanto na variedade dita americana
feito por meio de questionário seguindo os moldes quanto britânica, se diria que a resposta é não, pois
dos aplicados nas pesquisas sociolinguísticas. Sem se pegássemos um falante tipicamente carioca ou
entrar no mérito de qual região usa a forma, como é paulistano para a gravação, falantes pertencentes a
o caso de lei[te] que poderia ser uma pronúncia en- outras comunidades de fala seriam rápidos em ro-
contrada em Pato Branco-PR ou Santo Ângelo-RS, tular tal pronúncia como tal, i.e., essa é uma pro-
por exemplo, o enunciado do questionário poderia núncia carioca ou uma pronúncia paulistana. Um
ofertar para uma dada pronúncia tida como padrão aprendiz já traz na sua pronúncia as características
nacional de uma palavra, e.g., lei[tʃi], uma ou mais fonético-fonológicas do sistema de sua língua ma-
variações regionais, que seriam marcadas pelo res- terna; dessa forma, seria desejado uma forma que
pondente como conhecida ou não. Assim, ao clicar fosse não marcada. A referência às opções toma-
no ícone para ouvir lei[te], a pessoa respondendo das pelos compiladores de dicionários de língua
o questionário teria como opção marcar ‘conheço’, inglesa se deve ao que eles entendem por língua
i.e., já ouvi esta forma de pronunciar esta palavra’ padrão. Primeiramente, uma explicação sobre qual
ou ‘não conheço’, i.e., nunca ouvi essa forma de pro- língua inglesa estou me referindo aqui. Por ques-
nunciar esta palavra. tões mercadológicas, falo das duas variedades mais
Sumário
hegemônicas: a dos Estados Unidos da América e Por se tratar de um dicionário de aprendiz vol-
da Grã-Bretanha. Como os adjetivos ‘americano’ e tado para a pronúncia do português brasileiro, a
‘britânico’ associados a ‘inglês, do ponto de vista pesquisa beberá de outras fontes além da Lexicolo-
linguístico, não oferecem muitos detalhes sobre o gia e a Lexicografia. Das subdivisões da Lexicogra-
que esperar do inglês falado por um determinado fia, aquela que mais apresenta consonância com a
indivíduo, os autores de obras sobre o inglês padrão proposta de um dicionário voltado a aprendizes do
desses dois países usam os termos General Ameri- português brasileiro é a chamada Lexicografia Pe-
can (GA) (Americano Geral3), nos EUA e o chamado dagógica, que, segundo Welker (2008) inclui “todos
‘ Standard Southern British (SSB) (Britânico Sulista os dicionários concebidos para aprendizes de uma
Padrão) na Grã-Bretanha. O GA é o inglês america- língua estrangeira ou uma língua materna”.
no padrão obtido da mistura das formas faladas na Se não há em estado pronto para uso de um le-
costa leste, em especial, da cidade de Nova York, das vantamento numérico sobre os itens lexicais que um
principais cidades do centro-oeste e da costa oeste falante escolarizado do português brasileiro tem ao
(por exemplo, Los Angeles). Já o SSB, mais que a seu dispor, os achados dos estudos na área de fonéti-
fala da cidade de Londres, seria a forma amalgama- ca e fonologia do português brasileiro têm ofertado 745
da usada por comunicadores nos meios de comuni- muitas respostas sobre o universo dos sons nas co-
cação de massa. Oferecida essa explicação sobre a munidades de fala no nosso país. Há vários estudos
opção feita por dicionaristas em língua inglesa, pas- sobre os falares do Brasil, de forma que além da parte
semos agora para o que poderíamos ter aqui no Bra- de pesquisa empírica proposta para levantamento de
sil como formas amalgamadas. Essa forma poderia opções por formas concorrentes de pronúncia, esta
ser extraída de variantes tidas como não marcadas pesquisa também poderá fazer uso da ampla litera-
a partir das falas de apresentadores de telejornais tura da área de fonética e fonologia do Português.
de grande audiência, que trazem formas que são ou- Se não há na literatura disponível sobre o lé-
vidas de norte a sul e que têm como características xico do PB um levantamento sobre o vocabulário
a eliminação consciente de marcas regionais dos in- básico que um falante escolarizado e efetivamente
divíduos que apresentam esses jornais. letrado precisa ter para realizar a leitura de um jor-
nal popular ou empregue em uma conversa formal
3 Tradução do autor e uma consciente referência à Língua Geral falada no Brasil de forma ampla até a imposição do português
como língua oficial por decreto do Marquês do Pombal em 1757.
Sumário
com outro indivíduo que compartilhe de suas ca- veis como frequência de uso ou número de falantes
racterísticas, questões voltadas aos sons do portu- que empregam essa pronúncia no país, seríamos le-
guês têm estudos novos e antigos em boa escala . vados a incluir essas variedades de pronúncia para
Para ilustrar, pode-se citar Pádua (1942) e Leite & uma dada entrada (headword). O mais comum das
Callou (2004) para discussões sobre os dialetos do escolhas em manuais didáticos é pela pronúncia de
PB de uma forma ampla. Temos Votre (1978) sobre uma comunidade apenas, digamos, do sudeste, e.g.,
o dialeto carioca e Bisol & Collischonn (2010) sobre São Paulo-SP ou Rio de Janeiro-RJ ou por uma forma
os falares do sul, para se citar apenas duas regiões. não marcada que faria um amálgama do que se tem
Esses e outros estudos na área de Fonética e Fono- como português padrão falado e que poderia ser ob-
logia do português brasileiro e da dialetologia têm tida através de uma garimpagem da fala de âncoras
gerado muitas respostas sobre o universo fônico nas e demais repórteres de jornais nacionais de grande
comunidades de fala no nosso país. audiência como o Jornal Nacional da rede Globo e o
Já da sociolinguística, esta proposta de desenho Jornal da Band, da rede Bandeirantes. Para um maior
de dicionário traz o cuidado necessário no momento detalhamento sobre o enfoque dispensado à pronún-
de prescrever uma forma como padrão nacional ou cia nos materiais didáticos disponíveis no mercado 746
de como classificar outra variante como regional. Há para ensino do PB, ver Silveira e Rossi (2006).
que se compreender que o que se elege como modelo Contrariamente a situação do inglês, que con-
traz em si opções de cunho extralinguísticos, como ta com vastos corpora disponíveis para acesso via
o poder econômico da região em que aquela comu- Internet (e.g. o COCA, the corpus of Contemporary
nidade de fala se insere. Outro aspecto a ser levado American English, http://corpus.byu.edu/coca/), o
em consideração aqui é a co-ocorrência de formas português brasileiro está na infância de um corpus
de pronúncia. Os brasileiros podem dizer XErox e representativo da(s) sua(s) comunidade(s) de fala. O
xeROX; poder dizer, como já mencionado, li[kui] Grupo de Estudos de Linguística de Corpus (GELC)
dificador e li[ki]dificador. O dicionário de pronún- na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo é
cia terá de dar conta de incluir essa co-ocorrência, responsável pela criação e disponibilização de um
posto que não se trata de uma ocorrência restrita a corpus com um bilhão de palavras do português bra-
uma região ou comunidade de fala fora do eixo de sileiro contemporâneo com o projeto Corpus Brasi-
prestígio, como é o caso do abaixamento do vogal leiro, que se propõe a apresentar um corpus geral do
pretônica em <Petrolina> na fala de muitos falan- português brasileiro. O problema com esse corpus é
tes nordestinos. Na verdade, se formos usar variá- que ele é o que se chama de corpus geral, que visa
Sumário
ilustrar de forma genérica o léxico de uma comuni- rência na Internet, mediante o uso de questionário
dade de fala, no caso, os falantes do PB. Para os fins simples com duas ou mais formas de se pronunciar
desta pesquisa, teríamos de ter corpora montados a uma palavra. Assim, quem acessar o questionário
partir do léxico contido em jornais, revistas, receitas poderá marcar qual é a sua preferência de pronún-
e outras formas populares de veiculação de textos cia, i.e., qual é a forma que esse falante prefere.
escritos posto que para um aprendiz do português, O desenho aqui proposto é voltado a falantes do
as formas mais eruditas encontradas em textos ju- inglês e isso se explicada pela necessidade lexicográ-
rídicos ou em alguns textos do legislativo estariam fica de se ter um grupo de consulentes em mente
fora do que se esperaria encontrar no português en- na hora de se conceber um dicionário, mas tal foco
contrada no dia a dia, seja na fala de um comunica- também apresenta consequências para o trabalho
dor de rádio ou televisão receptivamente ou na inte- lexicográfico envolvido aqui. O guia de pronúncia
ração com outros falantes de forma mais produtiva. deve apresentar subsídios gerais sobre a pronúncia
Dentro da proposta de elaboração do desenho do PB, mas também já direcionar tanto na recepção
de um dicionário de pronúncia, há alguns pontos quanto na produção aqueles aspectos nos quais os
preliminares que precisam ser levantados antes anglófonos apresentam dificuldades constatadas na 747
mesmo da construção desse dicionário: literatura de aquisição de L2 e em estudos contras-
- Com relação ao modelo de fala que será usado tivos. Temos no PB o uso na nasalidade com função
para a gravação dos verbetes, poder-se-á usar um fonológica em pares como s[aw] e s[ãw] para <sal>
padrão regional hegemônico nacionalmente como o e <são>, respectivamente e o som representando na
português padrão usado na cidade de São Paulo, ou escrita pelo encontro consonantal <lh>. Apesar da
uma forma amalgamada nos moldes da língua usa- diferentes perspectivas teóricas existentes nos estu-
da nos jornais televisivos de grande audiência como dos de aquisição de segunda língua, diferenças no
o “Jornal Nacional” ou o “Jornal da Band”. repertório fonético-fonológico entre o português e o
- Em havendo pronúncias concorrentes de cir- inglês são aspectos que necessitam de atenção tanto
culação nacional (em oposição às chamadas varia- nas partes de suporte geral sobre pronúncia como o
ções regionais), incluem-se as formas que têm maior equivalente on-line das front matters dos dicionários
incidência de uso. A mensuração dessa incidência impressos ou no tipo de informação que se incluirá
poderá ser avaliada por meio de pesquisa de prefe- na microestrutura desse dicionário on-line.
Sumário
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Sumário
CICLO DE VIDA DAS DESTINAÇÕES tísticas 21 para tratar os dados e verificar a fase que
TURÍSTICAS: O ESPAÇO RURAL DO mais se destacava no destino em questão. Através
dessas informações foi possível inferir que a desti-
COREDE DAS HORTÊNSIAS, RIO
nação se encontra na fase de envolvimento, na qual
GRANDE DO SUL a população começa a despertar para o turismo ado-
tando medidas locais para que este comece a se de-
CICLO DE VIDA DE LOS DESTINOS TURÍSTICOS: EL senvolver de forma eficiente.
ESPACIO RURAL DEL COREDE DAS HORTÊNSIAS, RIO
GRANDE DO SUL Palavras-chave: Turismo. Destinações turísticas.
Ciclo de vida das Destinações Turísticas. COREDE
Rafael Lima de Souza (UCS)1 das Hortênsias.
Marlei Salete Mecca (UFSC)2
Resumen: El turismo aparece como una alternati-
Resumo: O Turismo surge como alternativa de de- va de desarrollo para muchas zonas rurales. Estos,
senvolvimento para muitas localidades rurais. Es- cuando se han integrado los productos turísticos y
tas, quando possuem produtos turísticos integrados un área geográfica definida, forman un destino tu- 753
e uma área geográfica definida, formam uma des- rístico. Esta asignación pasa por diferentes etapas
tinação turística. Essa destinação passa por diver- desde el nacimiento, capaz de llegar a disminuir
sas fases desde o seu nascimento, podendo chegar o rejuvenecimiento. El objetivo de este trabajo es
ao declínio ou rejuvenescimento. Assim, o objetivo identificar en qué fase del ciclo de vida de los des-
desse trabalho é identificar em qual fase do ciclo de tinos turísticos propuestos por Butler (1980), es la
vida das destinações turísticas, proposto por Butler asignación que comprende las zonas rurales de CO-
(1980), se encontra a destinação que compreende o REDES Hortênsias, RS. Para este fue un estudio de
espaço rural do COREDE das Hortênsias, RS. Para caso exploratorio y cuantitativo carácter cualitati-
isso foi realizado um estudo de caso exploratório de vo, a través de entrevistas semi-estructuradas con
caráter qualiquantitativo, através de entrevistas se- empresas públicas y privadas. Se utilizó el programa
miestruturadas com a iniciativa pública e privada. estadístico SPSS Statistics 21 para procesar los datos
Utilizou-se o programa estatístico IBM SPSS Esta- y comprobar la fase que la mayoría tomó el destino
¹ Doutorando em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. E-mail: Rafael@giraomundo.com.br
² Doutora em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: msmecca@ucs.br
Sumário
de que se trate. Con esta información, se puede in- da vêm trazendo o turismo como uma solução para
ferir que el destino se encuentra en la fase de com- o quadro de estagnação ou de declínio de muitas
promiso, en el que la población empieza a despertar economias, ou mesmo como propulsor de uma ati-
al turismo adopción de medidas locales para que se vidade econômica significativa para os fluxos pro-
empieza a desarrollar de manera eficiente. dutivos em locais com potencial para o turismo sus-
Palabras-clave: Turismo. Destinos turísticos. Ciclo tentável. Esta visão apenas econômica da atividade
de vida de los destinos turísticos. COREDE das Hor- está ultrapassada como se pode observar:
tênsias.
O turismo tem sido tratado como uma alternati-
va [rentável] e que pode trazer desenvolvimento
para as comunidades que o recebem, sem ge-
INTRODUÇÃO rar grandes impactos ambientais. Entretanto, o
tratamento da atividade turística apenas sob a
ótica do aspecto econômico é limitado, uma vez
O turismo, como fenômeno cultural, social e que grande parte de seus impactos é social e,
atividade econômica dos tempos modernos, apre- especialmente, cultural. (PÁDUA; LOMBARDO,
senta-se como um dos principais setores produtivos 2010, p. 350). 754
do cenário global. Em termos de perspectiva econô-
mica, o turismo é visto hoje, como uma alternativa A partir da citação pode-se notar que deve exis-
para muitas regiões com forte potencial de atrati- tir uma relação entre os três pilares da sustentabi-
vidade ambiental e cultural, de maneira que diver- lidade para que se alcance o sucesso da atividade
sos atores sociais como governantes, empresários e turística, são eles: pilar econômico, pilar social, pi-
cientistas, têm se interessado em compreender me- lar ambiental. Cada pilar é sustentado pela solução
lhor este fenômeno, a fim de transformá-lo em uma de outras necessidades, por exemplo, para que haja
ferramenta para o desenvolvimento. equilíbrio social deve haver a participação e o diálo-
No entanto, o que se vê, é um caminho ainda go entre todos os agentes envolvidos.
nebuloso para os setores públicos e privados e até A realidade explícita no Brasil está longe do
mesmo para a sociedade civil que em muitos casos ideal teórico e nela encontram-se desequilíbrios
não se sente parte do processo. Este caminho ainda em todos os pilares da sustentabilidade, seguindo
é, por tanto, difícil de ser planejado, a cima de tudo, o mesmo exemplo, poder público e poder privado
se percorrido por um único setor social. pouco dialogam, a falta de continuidade das políti-
Fica claro, à medida que a realidade vem sendo cas adotadas por um governo pelo que sucede pre-
descrita, que no Brasil, a iniciativa pública e priva- judicam o processo, a sociedade civil na maioria dos
Sumário
casos não participa do mesmo e em outros tantos A teoria de ciclos de vida da atividade turísti-
casos é marginalizada e completamente afastada ca de Butler (1980) fundamenta muitos estudos que
das etapas de tomadas de decisão. buscam evidenciar a necessidade do alinhamento de
Assim sendo, um ciclo vicioso e prejudicial para todos estes pilares para que se efetive o turismo nas
a aplicação do turismo se instala: a inércia dos ato- mais diversas regiões. Segundo Fernandes e Cepe-
res, que sempre esperam a atuação do outro, con- da (2000), tendo em vista o caráter de produto que
solida uma condição de pouco aproveitamento das o turismo ganha, este modelo pode ser aplicado na
potencialidades das cidades brasileiras e como con- análise da evolução dos destinos turísticos median-
sequência, pouco aproveitamento do turismo como te o estudo das fases do seu desenvolvimento.
potencial de atividade econômica, social, cultural, O conceito de Ciclo de Vida das Destinações
ambiental, político e comunitário. Turísticas de Butler (1980) é um modelo teórico que
Desta maneira pode-se evidenciar que a ativi- auxilia na identificação do estágio em que se encon-
dade turística deve abranger todos os atores sociais tra uma localidade quanto ao desenvolvimento da
envolvidos, todos devem participar do processo de atividade turística desde a sua implementação ou
maneira que seus interesses sejam colocados em surgimento até seu declínio ou reinvenção. Ao ser 755
pauta no momento em que serão traçadas as diretri- aplicado em uma determinada localidade, este mo-
zes a serem seguidas coletivamente. O planejamen- delo possibilita a identificação do estágio atual da
to da atividade turística se torna por estes fatores mesma permitindo assim um melhor entendimento
elencados a cima fundamental para que o destino da realidade, bem como corrobora para a criação de
se consolide, e mais, para que o ciclo de vida desta um plano de desenvolvimento turístico que possi-
atividade se torne cada vez maior. bilite o monitoramento, ajustes e direcionamentos
Péres fala sobre a criação de um modelo teóri- necessários para que se possa criar expectativas fu-
co que vem sendo utilizado como uma importante turas. Péres acrescenta:
ferramenta no planejamento de destinos turísticos:
Foi nos anos oitenta que o modelo começou
A teoria TALC foi criada em 1972 por Richard a chamar a atenção de pesquisadores da área.
W. Butler e James Brougham em uma conferên- Desde lá o modelo vem chamando atenção e
cia da Travel Research Association canadense. sendo utilizados em muitos lugares do mundo
Em um primeiro momento, não causou grande como o Havaí, Austrália Gold Coast, a Veneza, e
sensação em estudos de turismo da época. (Pé- Lancaster Pensilvânia, terra de ammish. (Pérez,
rez, 2012, p. 22). 2012, p. 22)
Sumário
Cabe salientar que segundo, Fernandes e Cepe- regional e foram criados oficialmente pela lei 10.283
da, (2000), esta metodologia se adéqua a evolução de 17 de Outubro de 1994.
de um destino turístico, mas não pode ser tida como O COREDE das hortênsias é composto por sete
universal uma vez que os mesmos nem sempre pas- municípios (Cambará do Sul, Canela, Gramado, Ja-
saram ou virão a passar por todas as fases descritas quirana, Nova Petrópolis, Picada Café e São Francis-
por Butler (1980). co de Paula), abrange uma área territorial de 6.261,7
Portanto surge a questão de pesquisa: em que Km², possui população total de 128.865 habitantes
estágio se encontra a atividade turística na área ru- e sua densidade demográfica é de 20,4 hab./Km². O
ral do COREDE das Hortênsias no Estado do Rio PIB per capita (2010) foi de R$17.474, de acordo com
Grande do Sul de acordo com o modelo teórico de os dados da Fundação de Economia e Estatística do
Butler (1980)? Rio Grande do Sul (FEE, 2011).
Sendo assim o objetivo geral deste artigo é
identificar em que estágio se encontra a atividade
turística na área rural do COREDE das Hortênsias
no Estado do Rio Grande do Sul de acordo com o 756
modelo teórico de Butler (1980), como recorte para
tal selecionou-se a as propriedades rurais ativas
em relação a atividade turística cadastradas no site
da SETUR (Secretaria Estadual de Turismo do Rio
Grande do Sul).
sempre que necessário. O ciclo de vida de uma região destinados ao turismo. A informação, assim passa a
turística depende de muitos fatores, por exemplo, a ser disseminada e com a implementação do Marke-
substituição de um atrativo natural por um artificial ting o número de turistas tende a aumentar signifi-
no caso de intensa deteriorização do mesmo, falta de cativamente, atraindo investimentos maiores. Pode
interesse da comunidade local em participar do pro- acontecer, de determinada localidade possuir uma
cesso, etc. Os estágios do ciclo de vida das destina- capacidade de carga menor e o número de turistas
ções turísticas estão ilustrados no Gráfico 1. diminuir, esse limite poderá ser identificado a partir
de diversos fatores como: ambientais (escassez de
terra, qualidade da água, qualidade do ar), da infra-
estrutura (transportes, acomodações, outros servi-
ços) ou de fatores sociais (multidões, descontenta-
mento da população local). Quanto maior o número
de visitantes, maior o impacto e possivelmente mais
rápida é a perda de atratividade desta localidade que
deve se reinventar para se recolocar no mercado. 758
Segundo Ruschmann (1997), constatou-se que
de acordo com o serviço oferecido em cada fase,
dependendo do preço e qualidade, o tipo de turista
tende a mudar. Nas primeiras fases do desenvolvi-
mento da localidade, aventureiros que buscam lu-
Gráfico 1 – O Ciclo de Vida das Destinações Turísticas gares inexplorados, que “abrem as trilhas”, são os
Fonte: Butler, 1980, p.7.
primeiros frequentadores, estes turistas são deno-
minados alocêntricos, ou exploradores. Os turistas
Butler (1980) descreve o ciclo de vida das desti-
psicocêntricos, esperam que a localidade chegue em
nações turísticas da seguinte maneira: No início, os
seu ponto máximo de desenvolvimento, pois bus-
visitantes vão chegar a uma determinada localidade
cam conforto, qualidade e segurança nos serviços.
de forma espontânea, em busca de algum atrativo
Já os visitantes “de massa” (mesocêntricos) são ca-
que lá exista (na maioria dos casos os atrativos são
racterizados por serem pessoas que desejam “co-
naturais), o contato com os locais é informal. O au-
nhecer” ou passar pelo maior número de destinos
mento deste fluxo de visitantes faz com que haja um
possível, pelo menor preço, sendo assim, buscam
proporcional aumento no número de equipamentos
destinos que já estão em declínio.
Sumário
Butler (1980) inicia o conceito de ciclo de vida sua imagem. A sazonalidade pode fazer com que se
das destinações turísticas com o estágio da explo- crie uma temporada para o turismo e alguns ajustes
ração (exploration), que se caracteriza por um baixo na maneira de viver desta comunidade pode ter que
número de turistas alocêntricos que buscam novos ser feito. Nesta fase também começam as pressões
destinos e aventuras. A partir do modelo de Chris- para que o poder público comece a participar do
taller, Butler (1980) afirma: processo e investir em melhorias na infraestrutura
e no transporte.
Estes visitantes “de fora” podem ter sido atraí-
dos para este local por suas características na-
A terceira fase, do desenvolvimento (develop-
turais e culturais únicas e peculiares. Naquele ment) corresponde a um momento onde o destino
momento, não haveria infraestrutura específica faz parte de um mercado turístico bem definido, é
voltada para atender os visitantes. Desta forma, conhecido e o marketing funciona muito bem. Du-
o uso de equipamentos públicos e o contato com
a comunidade local provavelmente tenha sido
rante esta fase, a população local perde o controle do
mais frequente, o que pode ter constituído em crescimento do destino e seu envolvimento decresce
um fator de atratividade para esta destinação vertiginosamente. Neste momento os equipamentos
turística. Naquele contexto, a chegada e partida locais passam a ser substituídos por equipamentos
dos turistas para a localidade teria tido relativa- 759
mente pouco significado para a economia e vida
maiores provenientes de grandes investimentos ex-
social da população local. Butler (1980, p. 8). ternos. Atrações naturais e culturais do local serão
desenvolvidas e na falta de opções serão criadas atra-
À medida que o expoente de turistas cresce, al- ções artificiais. Podem ocorrer alterações físicas mar-
gumas pessoas da localidade passam a se envolver cantes na região que nem sempre são de acordo com
no processo, criando infraestrutura e equipamentos a vontade dos locais. Segundo Butler, “este momento
turísticos para atender esta demanda que se criou de pode ser facilmente identificado em regiões do Mé-
maneira espontânea, este estágio é a fase de envol- xico, nas ilhas mais desenvolvidas do Pacífico e no
vimento (involvement), este contato entre visitante litoral norte e oeste da África” (BUTLER, 1980, p. 8).
e visitado se torna cada vez mais frequente e tende Nesta etapa do desenvolvimento, na alta tem-
a aumentar visto que alguns dos visitados passam porada da destinação pode haver (normalmente há)
a trabalhar em atividades exclusivamente ligadas uma importante inversão no que diz respeito ao ex-
ao turismo. Neste estágio, normalmente começa a poente de visitantes que não muito raro são às ve-
haver uma segmentação e a localidade passa a se zes, passa a quantidade do número de moradores da
especializar em determinada atividade e cria assim localidade. Neste momento, muitas vezes se inicia a
Sumário
busca de mão de obra de fora e se instalam pequenos O quinto estágio é a fase da estagnação (stag-
equipamentos auxiliares como locadoras e lavande- nation), onde o número máximo de visitantes já
rias. O tipo de turista também muda, se tornando terá sido alcançado. O destino terá uma imagem
mais exigente e este passa a buscar o conforto e a bem estabelecida, mas não estará mais “na moda”.
qualidade dos equipamentos turísticos. O custo de A capacidade de carga terá sido alcançada ou ex-
vida local tende a aumentar muito neste momento. cedida, como consequência, impactos ambientais,
Ao passo que se dá o inicio da fase da consoli- sociais e econômicos serão percebidos. Nesta fase,
dação (consolidation), lembrando sempre que o de- normalmente as localidades buscam captar even-
senvolvimento de um destino turístico não é algo tos que tragam de volta os visitantes. A localidade
estático e que a realidade é dinâmica e que uma lo- fica conhecida pelos seus resorts e não mais por seu
calidade nunca está somente nesta fase ou naquela, verdadeiro ambiente geográfico. Neste momento o
o número total de turistas tende a diminuir mesmo perfil do turista também muda, passando a ser con-
sendo maior que a população local em algumas es- siderado turista de massa.
tações ou temporadas (no caso de destinos que so- Na sexta fase, o estágio de declínio (decline), ou-
fram com a sazonalidade). tras destinações turísticas entraram no mercado do 760
Grande parte da economia desta localidade segmento específico e a localidade perde força de
estará ligada de alguma forma ao setor turístico e atração, deixa de ser competitiva. Butler corrobo-
estratégias de marketing e propaganda serão adota- ra, “tais tendências podem ser facilmente percebi-
das com a finalidade de aumentar a permanência do das em antigas áreas de resort na Europa, como por
turista no local. O grande número de visitantes e os exemplo, Firth of Clyde na Escócia Ocidental. Mia-
investimentos públicos no setor podem causar des- mi beach está no início desta fase” (BUTLER, 1890,
contentamento na população local, principalmente p. 9). Neste momento começam a ser substituídos
a que se encontra marginalizada do processo, “tais os grandes equipamentos voltados para o turismo
tendências estão presentes em áreas do Caribe e ao por equipamentos voltados a outras áreas, mudam
norte na costa do Mediterrâneo.” (BUTLER, 1980, p. os donos e os investimentos externos recuam e mui-
8). Estas cidades concentram sua atratividade em tas vezes deixam de existir. Neste processo, o autor
“ilhas” formadas pelos resorts e fazem com que o acredita que “Cada vez mais as instalações turísti-
restante seja considerado de segunda linha e assim cas desaparecem na medida em que as destinações
indesejável para o turista. turísticas se tornam menos atraentes aos olhos dos
turistas” (BUTLER, 1980, p. 9).
Sumário
Esta fase também se caracteriza por uma volta sua competitividade. Somente em casos de áreas
da comunidade à atividade, isso por que os imóveis verdadeiramente únicas seria possível manter uma
estão com os preços baixos e ainda existe uma de- atratividade atemporal capaz de suportar a pressão
manda para pequenos equipamentos e instalações, das visitações.
passa-se a ter novamente o envolvimento da comu- Dos exemplos citados por Butler (1980) de
nidade local. As grandes redes de hotéis acabam por destinos que já passaram pelo rejuvenescimento e
sair da localidade, deixando ociosos grandes cons- que sua atratividade parece se perpetuar frente aos
truções que se tornam condomínios, lares para ido- olhos dos visitantes são a Disneylândia e Niágara
sos ou asilos. Em fim, o que antes foi uma destinação Falls no Canadá.
turística pode deixar de ser neste momento. Existe Estas destinações que atraem constantemen-
também a possibilidade de uma destinação ter o te os visitantes se renovam e se reinventam todo o
declínio forçado por uma catástrofe natural como, tempo, não deixando chegar à fase do declínio sem
por exemplo, o sudeste asiático após os tsunamis antes já ter traçado um plano de rejuvenescimento.
de 2005. Se esta fase perdurar por muito tempo esta A velocidade com a qual a sociedade pós-moderna
destinação pode não voltar a ser mais atraente mes- muda seus estilos e gostos refletem na velocidade 761
mo após solucionar os problemas. com a qual os destinos devem se reinventar, ofere-
Ainda assim, o ciclo de vida da atividade turís- cendo novas experiências e criando oferta para uma
tica apresenta possibilidades. O rejuvenescimento demanda criativa que está sempre atrás do novo, da
(rejuvenation) pode ocorrer, mas para isso devem descoberta.
ocorrer drásticas mudanças na destinação. Butler
(1980) mostra duas maneiras de se alcançar o rejuve- METODOLOGIA
nescimento, a primeira pela construção de um novo
atrativo pelo homem, cassinos, shoppings Center, O método científico é a estrutura do conheci-
etc. A segunda, de acordo com o autor, é aproveitar mento em que são elaboradas e testadas as hipóte-
de melhor maneira os atrativos naturais do local. ses que dizem respeito à ciência (Magalhães, 2005).
Nos dois caminhos, são necessários esforços com- A escolha da metodologia depende do problema de
binados entre o governo e o setor privado. Butler pesquisa, pois este delineará as melhores alternati-
(1980, p. 9) acrescenta um dado importante à sua vas a serem utilizadas com vistas a solucionar o pro-
análise: pode-se esperar que até mesmo as atrações blema em questão e atingir os objetivos propostos
de uma destinação turística rejuvenescida perderão (Boaventura, 2004).
Sumário
Para a realização deste estudo de caso, o turis- estudo. Para isso, foram utilizados dados disponi-
mo no espaço rural foi abordado a partir do bojo bilizados pela Secretaria Estadual de Turismo, pela
dos estudos turísticos, levando em consideração administração do COREDE, pelas prefeituras dos
que nesta pesquisa foi analisada somente a óptica municípios, bem como pelas secretarias de turis-
do proprietário rural. mo dos municípios onde foram feitas as pesquisas e
O tipo de pesquisa escolhido para o desenvol- ainda informações dos proprietários rurais.
vimento deste trabalho foi a quali-quantitativa de No segundo momento foram visitados todos
natureza exploratória. Segundo Malhotra (2006), a (censo) os estabelecimentos abaixo citados, e que se
pesquisa pode ser classificada como exploratória encontravam ativos no período de setembro a no-
ou conclusiva. A pesquisa exploratória tem como vembro de 2014 para a realização de uma entrevista
principal objetivo ajudar a compreender a situação- em profundidade com os proprietários dos mesmos.
-problema enfrentada pelo pesquisador. Já a pesqui- Percebe-se que os municípios de Gramado e Picada
sa conclusiva é realizada para determinar, avaliar e Café não possuem propriedades ativas em relação a
selecionar o melhor curso de ação, e é eficaz para atividade turística cadastrados na SETUR – RS.
identificar características de determinada popula- 762
ção ou fenômeno (BOAVENTURA, 2004). Tabela 1 - Lista das propriedades ativas do COREDE das
Hortênsias
O problema de pesquisa do presente estudo está
Propriedades Localização
ligado à visão geral de uma situação, que envolve a
Pampa Rural, Pesca e Lazer Cambará do Sul
compreensão da fase em que o Conselho Regional
Pousada das Corucacas Cambará do Sul
de Desenvolvimento (COREDE) das Hortênsias, no Eco parque Sperry Canela
Estado do Rio Grande do Sul, Brasil se encontra de Parque Fazenda da Serra Canela
acordo com a atividade turística no modelo teóri- Pousada Fazenda a Casa do Morro Jaquirana
co proposto por Butler (1980). As respostas obtidas Associação Linha Brasil Nova Petrópolis
não são conclusivas; têm por objetivo compreender Pousada Bienenfreund Nova Petrópolis
uma situação para, posteriormente, levantar hipóte- Pousada Verde Vale Nova Petrópolis
ses que poderão ser testadas. Recanto dos Pioneiros Nova Petrópolis
Sendo assim, a pesquisa foi realizada em dois Fazenda Hotel Invernadinha São Francisco de Paula
momentos, o primeiro de caráter exploratório para Fazenda Remanso do Faxinal São Francisco de Paula
Para a realização da entrevista, foi marcado um É importante ressaltar que nem sempre é pos-
local, com data e horário previamente combinado e sível encontrar todas as características de uma fase
agendado com os proprietários rurais. Esta entre- em um destino, pois se trata de um modelo evoluti-
vista foi registrada por escrito no momento de sua vo. Dessa forma, podem existir destinos que se en-
realização, tendo em média duração de duas horas. contram passando de uma fase para outra e ainda
As respostas das questões fechadas foram tabu- destinos que possuem algumas características de
ladas e analisadas a partir das categorias de respos- cada fase do modelo. O que vale é a predominância
tas apresentadas nas entrevistas, analisando-se de de características de um modelo para que se possa
forma descritiva conforme a frequência de respos- enquadrar o destino em tal fase.
tas apresentadas a cada categoria. As abertas foram Pôde-se verificar que o primeiro estágio, da
analisadas através de analise de conteúdo. “exploração”, em que poucos turistas chegam até a
região de maneira espontânea, estes normalmente
RESULTADOS são turistas alocêntricos, ou seja, turistas aventurei-
ros, que não se preocupam com roteiros preestabe-
Estágio, de acordo com o modelo teórico proposto por lecidos, que procuram aspectos naturais e culturais, 763
Butler, das atividades turísticas desenvolvidas nas sem se preocupar com a infraestrutura, turismo de
propriedades. alto contato com os locais, sem influenciar o meio
social e com pouco retorno econômico foi totalmen-
A fim de responder ao objetivo desta pesqui- te ultrapassado na região.
sa, os resultados foram resumidos em um quadro Já a segunda fase proposta por Butler (1980) é
dos estágios pelo qual a atividade turística passa a do “envolvimento”, e nessa fase encontra-se a co-
no COREDE das Hortênsias de acordo com o mo- munidade receptora do Corede das Hortênsias to-
delo teórico desenvolvido por Butler na década de talmente engendrada. Os motivos foram o início do
1980 ─ ainda muito utilizado nos dias de hoje. Neste envolvimento do setor público a fim de suprir as
mesmo quadro, foram colocados extratos retirados necessidades básicas de infraestrutura como acesso,
das entrevistas realizadas com os proprietários ru- abastecimento de água e luz, entre outras necessida-
rais, que traziam informações importantes e valio- des, certo aumento no número de turistas e na regu-
sas para que se pudesse evidenciar em qual estágio laridade de visitas dos mesmos e certo grau de envol-
a atividade turística se encontrava na região. vimento da comunidade local que começa a enxergar
no turismo alguns benefícios, principalmente econô-
micos, como a geração de emprego e renda extra.
Sumário
764
¹ Graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UCPel), Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS) e doutorando em Comu-
nicação e Informação (UFRGS). Professor na UNISC na Univates.
Sumário
sive. The inner film analysis reveals the humorous Atualmente (agosto de 2016), o canal do Porta
narratives and the representation of characters in dos Fundos no Youtube alcança a marca de doze mi-
their relations with the media. We conclude that the lhões, quatrocentos e setenta mil, cento e sessenta
collective mood updates its web content from the e nove (12.470.169) seguidores. Ainda contabiliza2
TV by sliding the discursive focus to the charac- um total de 2.694.062.793 visualizações (somados
ters more symbolic capital (politicians and candida- os views de todos os vídeos) desde sua abertura.
tes), satirizing and mocking of government power, Além de produzir esquetes humorísticas (vídeos de
its institutions and the media itself in the effort to curta duração, com arco narrativo fechado em si),
build these personas. o canal ainda reproduz teasers de outros produtos
Keywords: Humor. Media. Politic. Audiovisual. midiáticos produzidos pelo grupo (chamadas para
Porta dos Fundos. o programa exibido pelo canal Fox da TV por as-
sinatura, anúncio do filme longa metragem exibi-
do nos cinemas, etc.). Outras opções de canais de
O PORTA DOS FUNDOS E O HUMOR NA WEB conteúdo administrados pelo grupo são Fundos da
Porta (making of e erros de gravação), Porta Afora 767
O Porta dos Fundos é um grupo de produto- (programa de entrevistas voltado ao turismo com
res-autores de conteúdos audiovisuais que utiliza o apresentação de Fabio Porchat e Rosana Hermann),
Youtube como principal plataforma de difusão do Portaria (programa de comentários sobre o proces-
material produzido. Fundado em setembro de 2012 so produtivo das esquetes e interação com os inter-
por Gregório Duvivier, Fábio Porchat, Ian Raul Sa- nautas por meio de mensagens eletrônicas lidas e
ramão Brandão Fernandes (Ian SBF), Antonio Tabet respondidas, apresentado por vários integrantes da
e João Vicente de Castro, utilizaram a web como trupe em rodízio), Back Door (canal em que as es-
plataforma de exibição de esquetes humorísticas quetes são exibidas com legendas em inglês). Os ca-
(num primeiro momento). Em menos de três anos nais Portaria e Back Door ainda disponibilizam seus
o canal do coletivo atingiu a marca de um dos cinco conteúdos, mas não são atualizados há dois anos.
maiores canais mundiais em número de seguidores Este artigo elegeu utilizar o produto midiático
na plataforma. esquete como objeto empírico para discutir as es-
tratégias estéticas e narrativas que vão configurar
O riso exige do espectador certa medida de re- Assim, tomamos a narrativa textual e estética
conhecimento dos valores e do habitus num contex- das esquetes do Porta dos Fundos para analisar o
to social determinado para que haja decodificação que há nelas que faz rir. Como recorte, propomos
Sumário
tão de Ordem, Discurso, Palavras, Reforma, Reunião A preocupação constante com a forma e a apli-
de emergência 3 e Bloqueio. cação maquinal das regras criam aqui uma espé-
cie de automatismo profissional, comparável ao
Para analisar a comicidade dos vídeos selecio- que os hábitos do corpo impõem à alma, e risível
nados é necessário antes elencar as categorias de como ele. (...) o espírito se imobilizando em cer-
comicidade detalhadas por Bergson (1983). São de tas formas e o corpo se retesando segundo certos
quatro tipos: a) o cômico das formas; b) o cômico defeitos. Quer a nossa atenção se volte do fundo
para a forma, ou do moral para o físico, a mes-
dos gestos; c) de situações; d) das palavras. O autor ma impressão se transmite à nossa imaginação
enfatiza que cada uma delas encerra em sí, na es- nos dois casos; é, em ambos os casos, o mesmo
sência, um automatismo que contradiz a fluidez e a gênero de comicidade. (BERGSON, 1983 p.29-30)
flexibilidade da vida cotidiana, a que ele insiste em
chamar de rigidez. O autor conclui que se torna risível o humano
Pelo primeiro tipo, a comicidade das formas, o que é transformado em coisa, ou em outras pala-
autor enfatiza o que há de cômico na caricatura, na vras, a pessoa que confunde-se com a profissão ou
deformidade e no não natural. função que exerce.
A comicidade de situação, terceiro tipo, enfatiza
Automatismo, rigidez, hábito adquirido e con- a relação entre histórias e acontecimentos aparente- 770
servado, são os traços pelos quais uma fisiono- mente independentes, mas que são agrupadas, reu-
mia nos causa riso. Mas esse efeito ganha em
intensidade quando podemos atribuir a esses nidas na diegese, interferindo umas sobre as outras.
caracteres uma causa profunda, e relacioná-los Em suas palavras, explica que “É cômico todo arran-
a certo desvio fundamental da pessoa, como se a jo de atos e acontecimentos que nos dê, inseridas
alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de
materialidade de uma ação simples. Teremos en-
tão compreendido a comicidade da caricatura. uma montagem mecânica.” (BERGSON, 1983, p. 36)
(BERGSON, 1983, p. 16) Para melhor ilustrar como essa mecanicidade
se manifesta na comicidade, o autor faz uso de três
No segundo tipo, a comicidade dos gestos, o figuras de linguagem buscando analogia entre brin-
teórico explica que a comicidade habita na repre- quedos de crianças e as estratégias narrativas em-
sentação mecânica de gestos, repetíveis e imitáveis, pregadas pelos roteiristas das peças teatrais a que
que negam a fluidez e a espontaneidade da vida. Aí ele se refere como objetos empíricos na formulação
reside a essência humorística da paródia. de sua teoria sobre o riso e a comicidade. A primeira
figura de linguagem é o brinquedo de mola ou pa-
Sumário
lhaço de mola, que comprimido dentro de uma caixa inimagináveis. E ela se apresenta de forma direta e
causando tensão sobre a mola, em determinado mo- linear ou em forma circular, como explica Bergson:
mento salta diante da criança liberando a energia
A característica peculiar de uma combinação
acumulada e distendendo-se, para logo em seguida mecânica é de ser em geral reversível. (...)Em
ser comprimido novamente, repetindo o movimen- outras palavras, o mecanismo que há pouco des-
to entre tensão e distenção. Essa figura de lingua- crevemos é já cômico quando retilíneo; fica mais
gem busca expressar a estratégia da repetição por engraçado quando se torna circular e os esforços
do personagem conseguem reconduzi-lo pura e
meio do jogo entre duas forças (morais ou físicas). simplesmente ao mesmo lugar, por um encadea-
mento fatal de causas e efeitos. (Bergson, p. 42).
a repetição de uma expressão não é risível por si
mesma. Ela só nos causa riso porque simboliza
certo jogo especial de elementos morais, por sua Para fechar sua teoria sobre o riso e a comici-
vez símbolo de um jogo inteiramente material. dade presentes na categoria de gestos, o autor apre-
(...)Numa repetição cômica de expressões, há em senta três tipologias de análise dos textos cômicos
geral dois termos em confronto: um sentimento
comprimido que se distende como uma mola, e
(aqui aplicados sobre audiovisualidades). São elas:
uma ideia que se diverte em comprimir de novo repetição, inversão, interferência de séries. 771
o sentimento. (BERGSON, 1983, p. 37) A repetição não consiste
A segunda figura de linguagem são os títeres de uma palavra ou expressão repetidas por cer-
to personagem, mas de uma situação, isto é, uma
ou fantoches manipulados por cordas que aparente- combinação de circunstâncias, que se repete exa-
mente demonstra vontade própria, mas que ao ser tamente em várias ocasiões, contrastando viva-
observado de perto o personagem revela ser apenas mente com o curso cambiante da vida. (...)Elas se-
uma marionete nas mãos de alguém que o manipu- rão tanto mais cômicas quanto a cena repetida for
mais complexa e na medida em que representada
la. A comicidade, neste caso, surge “por um instinto do modo mais natural. (BERGSON, 1983, p. 45)
natural, e porque se prefere, pelo menos em imagi-
nação, enganar-se a ser enganado, é do lado dos tra- Já a inversão se dá quando os papéis entre dois
paceiros que se põe o espectador.” (Bergson, 39-40) personagens são invertidos. Essa comicidade não
A terceira é a analogia proposta entre a bola exige grandes caracterizações destes, mas apenas
de neve e a comicidade que reside em uma causa uma lembrança da ordem natural das coisas. O au-
simples que por força das circunstâncias vai se so- tor exemplifica com a figura do ladrão que dá lição
mando a outras, ampliando o resultado a dimensões de moral no juiz.
Sumário
A interferência de séries é explicada da se- mente dois sistemas de ideias totalmente inde-
guinte maneira: “Uma situação será sempre cômi- pendentes, ou enfim se a obtivemos transpondo
a ideia a uma tonalidade que não é a sua. Essas
ca quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries são de fato as três leis fundamentais do que po-
de fatos absolutamente independentes, e que possa deríamos chamar de a transformação cômica das
ser interpretada simultaneamente em dois sentidos proposições. (Bergson, p. 57-58)
inteiramente diversos.” (BERGSON, 1983, p. 47-48)
Nesta estratégia reside a habilidade do autor em Elizabeth Bastos Duarte sintetiza as categorias
constantemente chamar a atenção do espectador de Bergson em poucas palavras, descrevendo as es-
para a coincidência e para a independência dos fa- tratégias na arquitetura do cômico:
tos postos em relação. A repetição de situações, comportamentos, ati-
Na comicidade das palavras, quarta categoria tudes; a referenciação, a alusão ao que não é do
da comicidade proposta por Bergson (1983), cor- conhecimento de todos; a reversibilidade, a in-
responde à comicidade dos gestos e das situações, versão de papéis, de situações; a ruptura com as
expectativas sociais, a transgressão de gêneros,
ponto a ponto, no âmbito das palavras. Fazem par- de convenções; a inflexibilidade, a falta de jei-
te destas estratégias a repetição ou a fala desloca- to; a oposição, a apresentação do que é no lugar 772
da (sem querer dizer, por impulso) ocasionada por daquilo que deveria ser, a ironia; o exagero na
uma rigidez do corpo. Rimos quando nossa atenção imitação dos personagens, das situações, a ca-
ricatura, a a paródia; a exibição da casualidade,
é desviada de uma questão moral para uma ques- dos revezes da sorte, das incoerências inerentes
tão física da pessoa. Ainda torna-se risível a fala é à vida; a superposição e interferência de duas
tomada no sentido próprio quando era aplicada no ordens de fatos, de dois planos de realidade que
sentido figurado. Também é alvo de riso quando a permitem interpretações diversas, o quiproquó;
a exibição do grotesco, do simplório, do grossei-
interlocução é prolongada ao ponto do porta-voz ro. (DUARTE, 2012, p.166).
tornar-se “vítima” de suas próprias palavras. O au-
tor sintetiza a comicidade das palavras: Assim, partimos dessas categorias de análise do
cômico propostas por Bergson (1983) para analisar
É cômico porque significa obter da vida que ela
se deixe tratar de modo mecânico. Mas o pensa- os produtos audiovisuais exibidos pelo canal Porta
mento, por sua vez, é coisa que vive. E a língua, dos Fundos no Youtube, caracterizados como esque-
que traduz o pensamento, deveria ser também tes e veiculados entre julho de 2015 e julho de 2016
tão viva quanto ele. Pressente-se, pois, que uma reunindo em suas narrativas os campos midiático
frase se tornará cômica se ainda tiver sentido
mesmo invertida, ou se exprimir indiferente- e político. A análise se dará pela identificação das
Sumário
categorias acima expostas e descrição de como elas O efeito de realidade designa, pois, o efeito pro-
são empregadas / manifestas nos conteúdos audio- duzido no espectador pelo conjunto dos índi-
ces de analogia em uma imagem representativa
visuais. A partir daí, propomos uma reflexão entre (quadro, foro ou filme, indiferentemente). Tra-
os conteúdos, contextos e a representação midiática ta-se no fundo de uma variante, recentrada no
e política na comicidade proposta. espectador, da ideia de que existe um catálogo
Estereótipos serão tratados a partir de algu- de regras representativas que permitem evocar
ao imitá-la, a percepção natural. (...) o efeito do
mas formulações apresentadas por Flavia Biroli que real, que é mais original (...) designa assim o fato
elenca e sintetiza o conceito como de que, na base de um efeito de realidade supos-
to suficientemente forte, o espectador induz um
dispositivos cognitivos que facilitam o acesso a “julgamento de existência” sobre as figuras da
novas situações e informações. São simplifica- representação e atribui-lhes um referente real.
ções que permitem a previsibilidade (Newman, Ou seja, o espectador acredita, não que o que vê
1975, p. 207). Equivalem a padrões que corres- é o real propriamente, mas, que o que vê existiu,
pondem às expectativas normativas sobre os ou pôde existir, no real.” (AUMONT, 2002, p. 111).
comportamentos dos atores numa dada socie-
dade e, nesse sentido, remetem diretamente aos Assim, podemos entender que efeito de realida-
papéis socialmente definidos (Goffman, 2008 773
[1963]). (BIROLI, 2011, p. 76) de são os índices imagéticos e textuais que remetem
a uma situação real e extra-diegética. Já o efeito de
Aqui vale ressaltar que os estereótipos não são real seria o julgamento por parte do espectador de
entendimentos falsos da realidade, mas esquemas que a história é credível, ou seja, se ela não existiu
cognitivos reducionistas. Essa diferenciação procu- ela poderia ter existido.
ra afastar a ideia de que todo constructo mental em
torno do estereótipo seja falso, ou pelo contrário, ANÁLISE
afirma assim que haja um fundo de verdade (mesmo
que proveniente de um conhecimento empírico) na Por ordem cronológica decrescente, ou seja, do
experiência que o ordena e dá origem. mais antigo ao mais recente dentro do recorte sobre
Ainda fechando o referencial teórico temos os o objeto empírico, o primeiro produto audiovisual
conceitos de efeito de real e efeito de realidade ofe- analisado será o intitulado Questão de Ordem3, vei-
recidos por Aumont (2002) para explicar como essa culado em 31 de agosto de 2015. Nele é mostrada
sensação construída na experiência estética e de con- a transmissão televisiva de uma sessão do Plená-
sumo audiovisual se dá no espectador. Para o autor rio da Câmara dos Deputados. Tal identificação é
³ Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4D3oZXuWiPQ .
Sumário
possível pelo reconhecimento das tarjas inseridas é tensionado até que se distende e volta a ser ten-
sobre os parlamentares que fazem uso da palavra, sionado descrito por Bergson (1983) quando obser-
onde são inseridos caracteres identificando-os, bem vamos as agressões e acusações trocadas entre os
como a inserção de horário, símbolo do Congresso dois parlamentares. A distensão se dá no momento
Nacional como selo de identificação da emissora, em que o presidente da Câmara, deputado Fernan-
funcionando como uma espécie de moldura à ima- do Cunha (interpretado por Antonio Tabet e fazen-
gem transmitida. Além dos nomes e da identifica- do referência ao ex-presidente da Câmara Eduardo
ção como deputado e deputada, os caracteres ainda Cunha) revela no microfone a condição dos dois de-
explicam a localização da cena com o dizer “Sessão putados trocando agressões – são cônjuges. A ten-
deliberativa no plenário – Projeto de Lei da Câmara são volta a se formar quando a situação, parecendo
nº95, de 2015”. A redundância de informações, os estar resolvida, ganha novo impulso na fala da de-
trajes formais, a postura em púlpito com microfo- putada Maria da Rosa que relata ter ficado empolga-
ne a frente, os caracteres inseridos sobre a imagem da e “quando vi estava tudo preto na minha frente”.
dos deputados, o símbolo de TVCâmara sobreposto A alusão à cor é tomada no sentido literal pelo de-
às cenas (como uma marca d’água) identificando o putado (negro) Orlando de Ogum (interpretado por 774
canal de veiculação das imagens reforça a percep- Gustavo Chagas) no lugar do sentido figurado como
ção de uma transmissão midiática. O próprio corte foi proferido pela deputada, tal como descreve Ber-
de cenas que revela a interlocução entre os depu- gson na categoria de comicidade das palavras.
tados Maria da Rosa (numa referência à deputada A superposição entre os âmbitos do privado e
Maria do Rosário) e o deputado Welder Montenegro do público se torna um elemento de comicidade as-
(numa referência metalinguística ao papel desem- sociado à função de deputado, cargo político ocupa-
penhado pelo ator Vitor Leal na esquete intitulada do por cidadãos eleitos e que deveriam, via de regra,
Galã Global, onde ele grava cenas para a novela in- ocupar os espaços de tribuna e midiáticos de cober-
titulada Correntes da Paixão) revela ao espectador tura do Legislativo para se fazerem ouvir a partir das
habituado à gramática televisiva a relação entre o reivindicações e do interesse público. Em vez disso,
que é mostrado e o conteúdo televisionado a partir por uma automação mecânica, o espetáculo midiá-
de um dos lugares de exercício da política partidária tico produzido e reproduzido pela TV na transmis-
e do governo (representado pelo Poder Legislativo). são exibida é de uma discussão de cunho pessoal,
A comicidade desta cena pode ser analisada por íntimo, desviando a função e o espaço em que se
um crescente de tensão entre os dois deputados em encontram os protagonistas. Esse desvio de função,
embate, tal como a figura do brinquedo de mola que essa atitude mecânica da resposta à provocação, tal
Sumário
como um boneco preso às cordas que o conduzem, A segunda esquete, sob o título Discurso4, exibi-
também revela a comicidade explorada na esquete. da em 21 de setembro de 2015, explora um discurso
Por fim, o tom cômico e a relação entre a me- sobre um plano econômico para o país, proferido
talinguagem e o espetáculo midiático são revelados por uma mulher em um púlpito, com a palavra Bra-
pela encenação revelada, pela mecanicidade das sil escrita às suas costas em um quadro de giz e a
interpretações frente à câmera, num texto que faz bandeira nacional colocada ao lado do púlpito, re-
alusão direta ao processo de Impeachment da presi- forçando o aspecto formal e oficial deste discurso. A
denta Dilam Roussef. A crítica social aplicada aqui mulher está de pé, em frente a uma plateia compos-
é feita pela transformação dos deputados em atores, ta por jornalistas, que logo na primeira interven-
remetendo à ideia de interpretação, ficção e falsida- ção identificam-na com presidenta (em referência à
de dos discursos proferidos na defesa do processo Dilma Roussef). Em plano fechado para responder
que pode vir a cassar o mandato da presidenta elei- as perguntas, outro elemento reforça a presença da
ta. A suavidade disso está na alusão à novela Cor- mídia na cobertura do discurso: microfones amon-
rentes da Paixão, segunda parte, apresentada pela toados em frente à presidenta, com identificações
claquete ao início da cena que é retomada. A repe- de diferentes veículos midiáticos. 775
tição mecânica (tanto da fala, quanto da gravação) A sequência de perguntas feitas à presidenta
é o artifício tônico nesta sequência, mostrada após pelos jornalistas insiste no enfoque sobre moda e
a vinheta que identifica o grupo e o fim da primeira vestuário, desconsertando a mulher frente à serie-
narrativa, ganhando contornos de “acréscimo” ou dade do tema de seu discurso – um novo plano eco-
“making of”, como uma narrativa extra. Pela edi- nômico. A comicidade segundo as categorias pro-
ção, esta história está ligada à primeira, porém pela postas por Bergson (1983) está na comicidade das
pontuação audiovisual proposta pela vinheta, há palavras, onde rimos do deslocamento das questões
autonomia entre as duas. A comicidade das pala- morais para as questões físicas. Esse deslocamen-
vras e do gesto, pelo exagero e trejeito expressos na to fica evidente também no trecho após a vinheta,
pronúncia da palavra Impeachment na fala deputa- onde a conversa entre dois comentaristas (de polí-
do Welder Montenegro, sobrepõe as duas circuns- tica, imagina-se) tratam da sandália e do vestido da
tâncias (a ficcionalidade da novela e a “verdade” da presidenta em vez do seu discurso. A comicidade
transmissão das sessões da Câmara). também está presente na repetição mecânica (insis-
tência dos jornalistas nas questões ligadas ao vestu-
⁴ Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tXeqYKdTjwU .
Sumário
ário da presidenta) e na reviravolta dada à entrevista atitude mecância dela em tentar adivinhar o signifi-
quando, pelo constrangimento causado pela per- cado dos gestos do assessor ou a incompetência em
gunta voltada à questão econômica e tomada como articular as palavras descritas em cartazes torna o
embaraçosa pela presidenta, esta volta-se para as discurso inteligível. A situação ainda piora quando
perguntas relacionadas à moda falando sobre a sua o assessor lhe volta as costas para atender o telefo-
aposta na tendência de cor verde-musgo para o ve- ne celular e ela incorpora ao discurso já truncado
rão (que pode ser caracterizada como a tensão pro- algumas frases que fazem alusão à atitude do asses-
vocada – boneco de mola – pelas perguntas fora de sor. A mídia, neste caso, é representada pela presen-
contexto, sobre moda, o ápice desta com a pergunta ça dos microfones que identificam diferentes veícu-
sobre economia e escândalos no BNDS e a tensão los de comunicação, colocados em frente à mulher
que dissipa com a resposta dada sobre a cor). que discursa, como numa transmissão ao vivo. Tal
Também percebe-se aí um tratamento irônico situação pode ser encarada como plausível / credí-
dispensado aos jornalistas, num humor dedicado à vel a partir das tentativas de improviso em alguns
profissão, quando estes são representados por pes- discursos da presidenta Dilma Roussef que ganha-
soas desinteressadas em temas como economia e ram as mídias sociais na forma de memes e edições 776
que facilmente substituem-no por elementos super- audiovisuais 5enaltecendo a fala truncada, os erros
ficiais e de cunho menos impactante na vida e socia- gramaticais e as frases confusas por ela proferidos.
bilidade de uma nação. Essa perspectiva é expressa A caricatura pela imitação e a repetição mecânica
quando a repórter pergunta o que a presidenta cal- tornam-se os motes desta comicidade.
çava enquanto escrevia o plano econômico, em vez A esquete, exibida em 03 de março de 2016 com
de preocupar-se com o conteúdo desse. o título Reforma, mostra um homem chegando em
A esquete Palavras, exibida em 27 de fevereiro casa e encontrando um trabalhador da construção
de 2016, exibe o discurso de uma mulher, política, civil dentro da sua cozinha. Surpreendido, outro pe-
de pé, em um púlpito, dirigindo-se a uma plateia. dreiro o ameaça com um uma chave de fenda no
Atrás dela a palavra Brasil escrita em um painel e pescoço. O homem interpretado por Antonio Tabet
ao lado dela duas bandeiras nacionais. Durante o se identifica como político e diz que os supostos la-
discurso, a mulher busca no assessor posicionado drões podem levar o que quiserem. O pedreiro que
ao lado da plateia apoio na escolha das palavras. A o ameça com a ferramenta explica que eles são pe-
dreiros a mando de uma empreiteira e que vão fazer A mídia, neste caso, aparece como coadjuvante e é
uma reforma na residência do político (contra a sua representada como aquela que exige explicações do
vontade). A comicidade, num primeiro plano, reside político sobre a reforma em seu apartamento, reali-
na mecanicidade da repetição (pedreiros insistem zada pela empreiteira beneficiada em esquemas de
nos itens a serem reformados na casa do político, corrupção junto ao governo que este representa.
mesmo sob protestos deste). A virada da narrativa Em Reunião de Emergência 3, a Delação 2, dis-
(plot) se dá quando nos segundos finais a cena cor- ponibilizada em 14 de abril de 2016, o mote é uma
ta para uma coletiva de imprensa (identifica-se os reunião entre os integrantes do Porta dos Fundos
veículos de comunicação pelos microfones posicio- para tratar sobre a perda de seguidores no canal por
nados em frente ao político num púlpito e os flashes conta do desmascaramento da vinculação entre eles
de fotógrafos disparados sobre o homem que diz re- e o governo do PT. A comicidade se dá pela carica-
latar os fatos tal qual aconteceram). turização e exagero dos personagens (vestidos com
Aí encontram-se dois elementos risíveis: a) camisetas com símbolos do PT e da Central Ùnica
aquilo que Bergson (1983) chama de interferência dos Trabalhadores) e pela comicidade das palavras
de séries independentes, onde um acontecimento (pronúncia correta e mecânica de palavras como 777
reflete num outro acontecimento aparentemente “dinheiros” remete à figura do fantoche preso por
desconexo; b) o efeito de verossimilhança (e até de fios que age manipulado por alguém). Mais uma vez,
certa forma metalinguagem) da alusão à acusação6 o efeito de real e de realidade aparecem quando os
feita contra o ex-presidente Luis Inácio Lula da Sil- personagens interpretados são os mesmos atores. A
va de que teria sido favorecido por empreiteiras em referência à mídia aparece quando as redes sociais
esquemas de corrupção e ganho “de presente” uma são citadas como parâmetro de sucesso do grupo,
reforma em seu apartamento. Esse efeito de real e quando os supostos agentes do desmascaramento do
efeito de realidade (Aumont, 2002) constroem junto grupo são os comentaristas políticos do Facebook,
ao espectador um aspecto credível na história relata, quando os elementos sígnicos utilizados no discurso
e o absurdo da cena remete à mecanicidade da vida, midiático (inclusive nas mídias sociais, por internau-
que em seu fluxo deveria ser livre das repetições e tas em geral) como por exemplo o rótulo de “comu-
dos “engessamentos” do mecanismo representado. nista caviar” (Gregório Duvivier é taxado assim e,
no vídeo, come algo de uma latinha com um adesivo vamente operacional se intercalam. Ainda a meca-
identificado como caviar), o sanduíche de mortade- nicidade é reforçada quando para fazer funcionar ou
la como símbolo daqueles afinados com o governo suspender o serviço, basta um apertar de botão do
de Dilma Roussef, entre outros. Neste caso, satiri- homem à mesa, solicitando a uma mulher que faça a
camente, a mídia é tratada como watchdog (cão de ativação / desativação do aplicativo. O efeito de real
guarda) que zela pelos interesses públicos e desmas- e de realidade, mais uma vez, são tomados como ce-
cara vinculações (inclusive políticas) e favorecimen- nário já que o serviço do Whatsapp realmente foi
tos (as vezes ilícitos) entre governo e organizações. desabilitado no país em mais de uma oportunidade.
Na última esquete deste pequeno recorte sobre
o objeto empírico, sob o título Bloqueio7 e exibida CONSIDERAÇÕES FINAIS
em 05 de maio de 2016, a narrativa explora o que
seria o processo de determinação judicial para blo- Se o humor do Porta dos Fundos utiliza as es-
queio do Whatsapp8 (aplicativo de conversação para tratégias descritas por Bergson (1983) para promo-
dispositivos móveis). Na história, um homem não ver a comicidade e o riso, há, porém, dois fatores
identificado usa como argumento o aborrecimento importantes para contribuir ao sucesso e à inovação 778
por receber vídeos que ele não gostou ou porque do coletivo em seus esquetes. A primeira podería-
um parente parece chatear a família com postagens mos chamar de deslizamento do “alvo” das críticas,
contínuas para solicitar a outro, numa mesa, ambos passando dos desvalidos e do grotesco para os abas-
engravatados, a suspensão do aplicativo ou seu re- tados e poderosos. É verdade que a crítica social e
torno. Elementos de cunho pessoal pautam decisões política sempre existiu na TV brasileira, em perío-
judiciais que afetam a dinâmica comunicacional de dos mais explícita ou mais velada. Porém, depois da
um país inteiro (já que os bloqueios efetivamente exibição do último episódio do programa Casseta e
deixaram o aplicativo fora do ar) neste vídeo. A co- Planeta pela Rede Globo de Televisão em 21 de de-
micidade está na mecanicidade com que a decisão é zembro de 2010, instaurou-se uma lacuna na grade
tomada e com que é posta em prática. A repetição é de programação da emissora com maior audiência
explorada como estratégia narrativa quando os ar- em sinal aberto no país.
gumentos para suspender o serviço ou deixa-lo no-
⁷ http://www.portadosfundos.com.br/video/bloqueio/
⁸ Conforme pode ser conferido em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/05/1766869-justica-determina-bloqueio-do-
whatsapp-em-todo-o-brasil-por-72-horas.shtml e https://tecnoblog.net/198626/justica-bloqueio-whatsapp-brasil-de-novo/ .
Sumário
Associada a esta lacuna, em que nenhum outro -how adquirido (no caso dos integrantes do Porta
programa de humor televisivo explorou intensamen- dos Fundos) junto ao broadcast televisivo pode ser
te a crítica política e social ou mesmo o humor pelo outro elemento importante na construção da rede de
viés do realismo, com alusão a fatos e situações do relações que levam a marca a ocupar determinado
cenário político e midiático (metalinguagem) con- espaço e produzir determinadas relações no campo
temporâneos, pode-se também sobrepor a expansão do audiovisual. Essas percepções serão melhor dis-
dos serviços de internet para dispositivos móveis e o cutidas em outro momento, a partir das incursões
relativo barateamento dos hardwares do tipo smar- realizadas pelo autor sobre o objeto empírico e con-
tphones, importantes atores na consolidação de uma texto brasileiro da produção audiovisual para web.
cultura digital brasileira contemporânea.
Essas duas instâncias indicam conjunções entre
a redundância e mesmice no humor audiovisual bra- REFERÊNCIAS
sileiro, porém com pistas a uma possível conjunção
de fatores que imprimem sobre a contemporanei- AUMONT, Jacques. A imagem. 7 ed. Campinas: Papirus,
2002.
dade uma inovação, pelo menos em relação ao pro- 779
grama vigente em termos de grade de programação BERGSON, Henry. O riso: ensaio sobre o significado do
televisiva em sinal aberto. E também sinaliza que a cômico. 1983. Disponível em http://www.filoczar.com.br/
migração entre televisão, cinema e web, o fluxo en- filosoficos/Bergson/BERGSON,%20Henri.%20O%20Riso.pdf .
tre plataformas de acesso ao audiovisual, não confi- Consultado em 28/08/2016.
gura necessariamente uma “perda” de audiência de
BIROLI, Flavia. Mídia, tipificação e exercício de poder: a
um ou outro veículo, mas trânsitos possíveis entre reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico. In Re-
telas numa época de cultura da convergência digital. vista Brasileira de Ciência Política, nº 6. Brasília, julho
Para finalizar, um dado empírico ainda foco de - dezembro de 2011, pp. 71-98. Disponível em http://www.
estudo na construção de tese do autor está a im- scielo.br/pdf/rbcpol/n6/n6a04 . Consultado em 28/08/2016.
portância do produtor-autor de conteúdos audiovi- BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão seguido de a influên-
suais na administração da liberdade criativa e das cia do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge
estratégias estéticas e discursivas empregadas nas Zahar, 1997.
suas obras. Essa figura do produtor que descobre e
“aposta” em determinadas situações em detrimento ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002.
de outras, a partir do empreendedorismo e do know-
Sumário
780
Sumário
HERANÇA E ERRÂNCIA EM BARBA Abstract: This paper analyzes two connecting the-
ENSOPADA DE SANGUE, DE DANIEL mes in the novel Beard soaked of blood, by Daniel
Galera, namely the ancestry bequeathed from ge-
GALERA
neration to generation and the curse of wandering.
The main character on his journey to find out who
HERITAGE AND WANDERINGS IN BEARD SOAKED OF
BLOOD, BY DANIEL GALERA was his grandfather, relflects the journey of self-
-discovery . Therefore, to know who he is the cha-
Ricardo Postal1- (UFPE) racter has to leave Porto Alegre to the place where
his grandfather died. He must leave his own space
Resumo: Esse trabalho analisa dois temas conju- to go to the wandering space and find the moving
gados no romance Barba ensopada de sangue, de roots of its own history. Thus, we seek to unders-
Daniel Galera, quais sejam, a ancestralidade legada tand the role of recurrent myths and imagination in
de geração em geração e a maldição de errância. O contemporary Brazilian literature.
protagonista, em sua jornada para descobrir quem Keywords: Displacement. Contemporary literatu-
foi seu avô, empreende por espelhamento a jorna- re. Daniel Galera 781
da de descoberta de si mesmo. Portanto, para saber
quem é, a personagem tem de sair de Porto Alegre
e partir para onde o avô morreu. Ele deve sair do Barba ensopada de sangue (2012), de Daniel Ga-
espaço seu para ir ao espaço de errância e encontrar lera, acompanha a jornada de um homem em busca
as raízes moventes de sua própria história. Deste da resolução do mistério do assassinato do avô, ao
modo, busca-se compreender o papel de mitos em mesmo tempo em que empreende uma fuga de sua
recorrência e do imaginário na literatura brasileira Porto Alegre natal para a pacata Garopaba, no lito-
contemporânea. ral de Santa Catarina.
Palavras-chave: Deslocamento. Literatura con- O abandono da vida regular, que por vezes nem
temporânea. Daniel Galera é conhecida do leitor, em prol dessa aventura aberta
que não necessariamente leva a uma nova condição
tem sido recorrente na literatura brasileira contem-
¹ Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto de Literatura na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). ricapostal@gmail.com
Sumário
porânea (sendo Bernardo Carvalho talvez o exem- vida como um legado memorial, da cultura, e no
plo mais eloquente em que essa trama se encontra presente caso, de atitude frente à vida, ao mundo
como tema). Isso promove a sensação de que a mi- e à família. Também estaremos propondo uma dis-
gração (e o que se desenvolverá mais adiante como cussão sobre a errância, sua conotação negativa e
migrância) é uma condição que precisa ser obser- sua possível substituição pela deambulação, um es-
vada teórica e criticamente pelos estudos literários, tado daquele que não quer se fixar e que não con-
visto que está sinalizando algo ao reverberar num sidera isso “errado”, pois se satisfaz na movência e
conjunto de romances coetâneos. que aporta consigo, ao migrar, sua cultura, sua me-
No caso específico de Barba ensopada de sangue mória, seus bens maiores através das histórias que
queremos propor que o desenraizamento do pro- pode contar, instigar e promover.
tagonista provém já de sua inadequação no espaço O enredo se desenvolve a partir de um fato es-
original, no cepo da família em que ele não vinga, pecífico, um pai chama seu filho para uma conver-
e da qual se vinga com o afastamento. O protago- sa e lhe conta que vai se suicidar no dia seguinte,
nista, a quem chamaremos de “Barba”, uma vez que pedindo que o filho faça um último favor e leve a
o mesmo não é nomeado, sai da proximidade dos cachorra, sua companheira, para ser sacrificada. 782
seus a partir do corte realizado pelo pai, e tenta, ao Depois da morte do pai o filho, que não cumpre o
encontrar o avô (a história de sua morte) propor al- que tinha prometido, chega a Garopaba no dia de
gum sentido para si próprio. seu aniversario para viver ali e investigar a morte/
Cremos que ao fazer o trajeto do avô, para além assassinato de seu avô paterno. Começa a trabalhar
da herança que recebe do pai, assume a errância como instrutor de natação (ele é triatleta), envolve-
como legado vindo do pai do pai, encontrando para -se com algumas mulheres, faz algumas amizades,
si uma ancestralidade que o projeta, em essência, mas em geral a população local se mantém distante,
para ser algo além do que era antes da jornada. O visto que ele faz perguntas sobre o Gaudério, o avô,
curioso é que Barba encontra o que há de mais seu de quem todos querem esquecer. Ele deixa para trás
ao desenraizar-se e fugir da proximidade confortá- Porto Alegre, a morte do pai, que ele acha absurda,
vel da origem. a mãe com quem pouco convive e a história de de-
Estaremos tencionando o conceito de herança, savença com o irmão, homem pelo qual foi abando-
o que vem diretamente do pai e o de ancestralidade, nado por sua antiga namorada.
o que no sujeito provêm de um antepassado mais A conversa inicial como pai, que abre o roman-
antigo e que promete fazer sentido na história de ce, é definidora de vários elementos, visto que Bar-
Sumário
ba, que possui uma condição neurológica rara que que não sabe se pode cumprir o pedido do pai, mas
o impede de lembrar dos rostos das pessoas, passa a o neto que pode encontrar e encerrar o enigma do
se considerar parecido com o avô que ele acreditava desaparecimento do avô.
ter desaparecido da vida deles, mas de quem não Quando estiver em Garopaba, a transformação
conhecia a história, que seu pai descortina durante vai se ampliando, pois ele tem uma foto sua em ta-
a despedida. Existe então, no final da vida do pai, manho passaporte, recente, que usa para lembrar do
uma passagem de bastão, a transferência de respon- próprio rosto:
sabilidade pelos cuidados de Beta, a cachorra, e sem
Encontra a fotografia do avô que ganhou de
que o pai intua, do legado provindo do avô, na apa- presente do pai e a compara com sua foto de
rência, no jeito, na trajetória. passaporte. Depois vai ao banheiro e ergue a fo-
O pai, ainda que ache que o gosto pelas mulhe- tografia do avô ao lado do espelho. Olha alter-
res ruivas o Barba herdou dele, lhe diz: nadamente para o rosto do avô e para o próprio
reflexo. Passa a mão na barba que está crescen-
O teu sorriso é igual ao do teu avô, sabia? [...] do em seu rosto desde que conversou com o pai
O pai diz que ele e o avô não eram semelhantes pela última vez. (GALERA, 2012, p. 67-68)
apenas no sorriso, mas em numerosos aspectos 783
físicos e de comportamento. Que o vô tinha esse Recorta a foto do avô e a guarda onde antes le-
mesmo nariz, mais estreito que o dele próprio. O vava a própria foto. Assumindo a errância do avô,
rosto meio largo, os olhos meio afundados no crâ-
nio. A mesma cor de pele. Que aquele sanguezi-
ele assume o avô em si, torna-se um novo Gaudério
nho indígena do avô tinha pulado o filho e caído (como o vô era conhecido). Ele é a rasura da imagem
no neto. Esse teu porte atlético, diz o pai, pode ter já fugida do avô.
certeza que vem do teu vô. (GALERA, 2012, p. 18) Herda muito pouco do pai, o bem mais precioso
é Beta, não pelo animal em si mas pela lembrança
Para Barba, que normalmente não reconhece o de sua incapacidade de cumprir o dever de levá-la
próprio rosto, esses detalhes de contexto, essas pis- à morte, e quer distância de qualquer inventário, já
tas da geografia da face são muito importantes, por- que teria que dividir com o irmão qualquer que fos-
que vão imprimindo o rosto possível do avô e, ago- sem as vantagens. Do irmão não quer nada, nem
ra descobre, dele mesmo. O pai lhe está entregando mesmo vê-lo no velório do pai.
uma cara, uma parecença com alguém que não é ele. De uma mensagem da mãe a Dante, lida em
Barba pede a foto que sabe que o pai tem do avô, nota de rodapé do romance, sabemos, porém:
vai ao espelho e se compara, encontrando então sua
identidade num outro. Passa a ser não mais o filho
Sumário
Nunca vi teu irmão desse jeito, parecia apavora- também o liga ao avô, que quando morto, foi espe-
do. Tava com medo de te ver, é claro. Ele ficou rado na praia pela população como se fosse possível
um tempo ali no caixão. [...] [teu pai] ia querer
que vocês fizessem as pazes, e teu irmão só riu. seu retorno, redivivo.
[...] não sei por quê, não entendi, mas ele e teu Ao perguntar aos pescadores sobre a história
pai sempre tiveram uma coisa só deles, vai en- do assassinato do avô ouve: “Muita gente passa por
tender. Ele tava com a Beta dentro do carro. [...] aqui. A maioria acaba esquecida” (GALERA, 2012, p.
também acho estranho demais, mas tenho medo
até de perguntar. Tinha um bilhete do teu pai... 67). Porém para ele é fundamental que essa história
ele deixou a casa pra mim e um dinheirinho pra não seja esquecida, visto que ela o constitui como
vocês. A gente vai ver o testamento amanhã. Ele sujeito no presente.
não tinha mais nada, é incrível. Torrou tudo. E
agora demora porque tem uma burocracia [...] [...] a invocação do passado constitui uma das
(GALERA, 2012, p. 53) estratégias mais comuns nas interpretações do
presente. O que inspira tais apelos não é apenas
Significativo é que essa mensagem nos chegue a divergência quanto ao que ocorreu no passado
entrecortada, cheia de elipses marcada pelos colche- [...], mas também a incerteza se o passado é de
fato passado, morto e enterrado, ou se persis-
tes com reticências. Não sabemos de outras coisas te, mesmo que talvez sob outras formas. (SAID, 784
que foram ditas, assim como sabemos da conversa 1995, p. 11)
do pai com o filho a que a mãe não teve acesso, por
isso não entende o riso de Barba. Ele não espera bu- A busca de um elo com o passado que justifique
rocracia alguma, e parte. a existência presente, no caso de Barba, elide o pai
Ao chegar em Garopaba e encontrar o seu ele- e sua herança para centrar o foco naquele que não
mento, o mar, vem a memória do pai: conheceu, que precisa construir a partir de pistas
minúsculas provindas de pessoas que não querem
A água muito fria e transparente molha sua barri- mostrar o que sabem e o que realmente aconteceu.
ga e ele ergue os braços em reflexo. Enfia as mãos
na água para molhar os pulsos e minimizar o cho- Desse modo, o Gaudério, esfumado que era, vai to-
que térmico, coisa que aprendeu com o pai. Não mando corpo na própria inscrição que Barba faz de
funcionava, mas nunca deixou de fazer. Em dias sua presença na cidade, uma fantasmagoria que é
assim o mar faz ressuscitar nele uma visão infan- o avô a reviver e ao mesmo tempo é o neto a so-
til que miniaturizava tudo. (GALERA, 2012, p. 38)
breviver às suas perdas, seus fracassos, sua falta de
O ritual inútil do pai o infantiliza frente ao ele- memória e de perspectiva.
mento em que ele se perde por horas a nadar, e que
Sumário
O homem estável, o escritor de sucesso e sujeito [...] tu e ele são de outra espécie. E vocês são
promissor é aquele a quem a mãe respeita, a quem parecidos no temperamento também. Teu vô era
meio quieto assim que nem tu. Sujeito calado e
a sua antiga namorada ama e com quem foi viver, disciplinado. Não era de encher linguiça, falava
seu irmão Dante. Ele, errado, parte na errância que só quando precisava e se irritava com os outros
depois da migração (deslocamento que se conclui quando falavam demais nos ouvidos dele. Mas
na chegada ao espaço outro) segue provocando uma a semelhança para por aí. Tu é mansinho, edu-
cado. Teu vô tinha pavio curto. Ô velho desafo-
sensação de desacerto, inadequação e não fixidez. rado. Era famoso por puxar a faca por qualquer
Essa flutuação poderia fazer surgir uma memória coisa. [...] uma vez tua avó me disse que ele era
do local de origem, uma nostalgia recuperadora do daquele jeito porque tinha alma de artista mas
lugar abandonado, e a reiteração e renarração do vi- tinha escolhido a vida errada. Que ele deveria ter
percorrido o mundo tocando música e botando
vido promoveria a migrância, estado de interstício pra fora os sentimentos filosóficos dele [...] (GA-
cultural em que há a afirmação do seu no território LERA, 2012, p.19)
do outro, no desajustamento do diálogo intercultu-
ral. Não é nosso caso presente. Aqui compreendemos que a vida errada para o
Para além da falta de memória visual de ros- avô era a fixa, a estável, trabalhar a terra e casar e
785
tos, Barba cortou rente e definitiva a vida anterior, ter filhos. A vida correta teria sido a errância, a li-
não trouxe consigo nenhuma ritualização do passa- berdade e o deslocamento. O embotamento da natu-
do a não ser nadar e manter Beta viva e saudável. ral essência desse homem fez dele amargo, e extra-
A memória ancestral ele não tem como bagagem, vasava-se em violência (não realizada, mas sempre
mas como projeto, que é o saber, entender e poder amedrontadora). Depois de viúvo ele parte para o
contar a história do avô. Ele faz um movimento con- deslocamento que o fará mais realizado. Não deixa-
trário ao migrado, já que não afirma nada em seu rá de ser violento e não aflorará seus sentimentos
deslocamento a não ser o deslocamento em si, o que filosóficos, já que os anos na vida “correta” podaram
possui de mais ancestral através dos traços a per- algo de sua essência. Sem saber ele, tal fundamento
correr para se tornar tão fluido quanto o avô. existencial agora é passado adiante no exemplo não
O pai lhe havia dito: de errância, já que se está na via correta, mas de de-
ambulação em prol da fruição do próprio ser2.
2
Estamos sugerindo, com vida certa e errada, uma interpretação a ser desenvolvida em outro momento, que elabore essas pistas
sobre a “diritta via era smarrita”, provinda da abertura do Inferno da Divina Comédia. Isso é insinuado com as mais referências,
como o irmão chamado Dante, a jornada com auxílio de um guia (Bonobo), a subida da montanha, etc. Parece que Barba enso-
pada de sangue bebe muito de referências da Divina Comédia.
Sumário
Barba entra em contato com um morador local, Depois de um tempo sem procurar mais infor-
Bonobo, dono de uma pousada, que lhe oferece ami- mações sobre seu ancestral, consegue a informação
zade, alguns conselhos, percepções sobre a vida em sobre a mulher de seu avô. Ao encontrá-la, descobre
discussões sobre budismo, e simbolicamente lhe dá a verdade sobre o assassinato:
um instrumento que lhe liga ao avô: um arpão para
Apagaram a luz e botaram faca nele. Foram vá-
pesca em apnéa, prática em que o avô fora insupe- rios homens ao mesmo tempo e sei o nome de
rável durante sua permanência em Garopaba. cada um. Tentaram esconder de mim, mas com
Entre místico e fanfarrão, Bonobo conta uma o tempo descobri tudo. Essa gente que tentou
história local para explicar forças insondáveis: um matar ele já morreu toda. Diz que botaram mais
de cem furos nele. Acenderam a luz e o corpo
homem saia para pescar garoupas todos os dias e estava ali. Alguém foi trazer um lençol para en-
encontrou uma delas gigante que mais nenhum rolar e largar em alguma cova no meio do mato.
pescador tinha visto, ainda que ouvissem histórias Isso demorou um tempo e antes de arrumarem
a respeito. Ele quase a pesca e obcecado, a persegue. o que precisava ele levantou. Depois de ficar um
tempão deitado ali. Começou a se mexer e levan-
Quando o filho do pescador percebe que há algo er- tou. Ele ainda tava com a faca dele na cintura e
rado, o pai já não volta. É encontrado enrolado à tirou. Abriram distância dele e ele ficou olhando 786
corda do arpão, que havia ferido, mas não matado o no olho de cada um dizendo que ia matar. Co-
peixe. Bonobo diz: meçou uma gritaria mas ninguém teve coragem
de chegar perto e terminar o serviço. Não era
É como uma fábula. Tu vê que a vida do cara e possível que ele ainda tivesse vivo. Em volta
a vida da garoupa tavam ligadas de alguma for- era como se tivessem carneado um boi. Foram
ma, como a tua vida e a dessa cachorra. A gente acuando ele na direção da praia. Ele fazia assim
não consegue entender exatamente como, não com a faca e dizia que ia voltar pra pegar cada
consegue ver o caminho todo que os dois seres um. Que ia matar as mulheres e os filhos de cada
percorreram até ali. Mas uma coisa dessas faz a um. Tem gente que diz que ele gritou coisas em
gente pensar, não faz? Não pode ser por acaso. línguas que não existem. Tem gente que diz que
(GALERA, 2012, p.124-125) ele tinha fogo nos olhos. Ele foi tropegando pela
areia e entrou no mar. Saiu nadando pro fundo
e desapareceu. Até hoje o povo acha que ele é
Percebe-se pela lição dessa fábula que Barba
assombração. (GALERA, 2012, p. 306-307)
está ligado à Beta sem que saiba dos caminhos, as-
sim como está ligado ao avô, sem que se conheçam Apesar de longa, a citação é importante tanto
seus descaminhos. porque afirma, em sua sequencia, que o avô está
vivo e vive nas montanhas, pelos matos, como de-
Sumário
monstra um aspecto sobrehumano do Gaudério, al- Os detalhes, que são muito importantes para
guém que voltou à vida quando deveria ter morrido gerar contexto de reconhecimento, delineiam no
pela conspiração dos que não o entendiam, sobrevi- rosto do velho as características também suas, é seu
veu e sumiu no mar. Essa ligação inexplicável com o avô morto que está diante dele.
neto se provará pelo legado da ancestralidade quan-
O velho se inclina um pouco para a frente e faz
do do encontro definitivo entre ambos. sinal com o indicador para que ele se aproxime.
Barba parte na caçada ao velho da gruta, passa [...] O que tu quer comigo, diz o velho. É a voz
dias enfrentando chuva, as matas, a solidão, e vai de seu pai. Queria te conhecer. Veio me buscar?
encontrando pistas, pessoas, indicações que lhe fa- Não, só vim te ver. Eu sou teu neto. É mesmo? O
velho ri pelo nariz. Que interessante. (GALERA,
zem se aproximar de seu objetivo. À noite, debaixo 2012, p.364)
de chuva, carregando Beta no colo, ele parece estar
enfrentando uma prova de exaustão física até che- Barba tira um espelho da mochila para lembrar
gar e esgueirar-se na “caverna do velho”, como é da própria aparência, ao que o velho diz: “Já duvidei
conhecida; da minha imagem no espelho, [...] mas é a primeira
O velho está de frente para ele, olhando, aco-
vez que a minha imagem duvida dela mesma.” (GA- 787
modado no que parece ser uma velha cadeira de LERA, 2012, p.365). Numa sequência de espanto e
balanço forrada de pelegos de ovelha. A lumi- reconhecimento, Barba mostra a foto ao velho. Este
nosidade do lampião a gás pendurado numa das tem então a prova do que o estranho (sua imagem
paredes de rocha revela de imediato o tamanho
da caverna mas esconde os detalhes na penum-
mais jovem, está dizendo): “Seus olhos pulam algu-
bra. O velho está com os dois braços apoiados mas vezes do retrato para o rosto do homem mais
nos encostos e sua barba cinzenta desce até a jovem à sua frente e sua fisionomia vai se transfi-
metade do peito. Ainda possui alguns fios bran- gurando aos poucos em algo mais perplexo e ame-
cos nos lados da cabeça. Tem o rosto largo, um
nariz estreito e olhos afundados no crânio. É um
açador.” (GALERA, 2012, p.365) A tensão então vai
homem alto que encolheu. [...] a intensidade de aumentando, num diálogo em que pouco escuta o
sua figura cadavérica é reforçada pela presença velho, cada vez mais ameaçado e nervoso: “tu é real?
de uma moça mulata de no máximo vinte anos [...] tu não devia tá aqui. [...] isso não tá certo, tu não
sentada num banco bem ao lado, um pouco atrás
da cadeira de balanço. [...] um de seus braços
devia tá aqui. [...] Fora.” (GALERA, 2012, p. 366).
está pousado com delicadeza no ombro do velho. Note-se que as coisas ficam fora do lugar quan-
Os dois observam o invasor com o mesmo olhar do o passado e a vida deixada para trás, a correta
petrificado e reluzente. (GALERA, 2012, p.363) vida enraizada, vem se mostrar lembrando que ele
Sumário
não está seguro na deambulação que construiu para sim que tu prefere, né? Que te procurem. Que ve-
si. Fazendo-se quem sempre foi, Gaudério puxa a nham atrás de ti” (GALERA, 2012, p.422).
faca e ataca o neto, ferindo-o no abdômen. Barba Fica a sugestão de que ao se tornar um novo
foge depois de empurrar o velho, sai da caverna, Gaudério, alguém que assumiu um legado ancestral
teme ser perseguido, perde-se, despenca do penhas- de deambulação, Barba deixa a linha solta para que
co ao mar. Está sem a mochila, perdeu a cachorra, mais alguém a ele vinculado venha procurar sua his-
sangra e nada tentando vencer mais esse obstáculo tória, seu exemplo e sua vida, mesmo que ele nada
da jornada. Acorda na praia, é ajudado por um pas- faça para isso, como também não o fez seu avô.
sante a se erguer, e nega a receber maior auxílio. Sabemos que isso realmente aconteceu pelo
Depois de recuperar-se por uns dias, acontece prólogo em que conhecemos os caminhos da histó-
a reatualização do ato sobrehumano do avô. Ao en- ria que só agora, finda a leitura, sabemos reconhe-
contrar a cachorra num quiosque, presa, e pedir que cer, pelos detalhes formadores de contexto e produ-
a soltem e a devolvam, é surrado por um grupo de tores de memória:
nativos, levado até a praia quase desfalecido, se er-
Quando meu tio morreu eu tinha dezessete anos
gue, retorna e ameaça o líder do grupo, que lhe bate, e o conhecia somente a partir de fotografias an- 788
e a quem se atira às partes viris e à traqueia prome- tigas. Por algum motivo insondável, meus pais
tendo não mais soltar. São apartados pela multidão diziam que a iniciativa da visita deveria partir
incrédula com a tenacidade, coragem e resiliência dele e se recusavam a me levar para o litoral
catarinense com esse propósito. [...] meu tio
do Barba. Ao fim da briga, ouve um “ele é neto do morreu afogado tentando resgatar uma banhista
Gaudério”, fechando assim o ciclo e assumindo em [...] o corpo do meu tio nunca foi encontrado.
si, na valentia, na teimosia e nas cicatrizes, a ances- Houve um enterro simbólico em Garopaba e
tralidade do avô que ao reconhecê-lo, o negou. nós comparecemos. [...] O enterro tinha pouca
gente. Minha mãe teve uma crise de choro in-
Do epílogo, ou seja, do capítulo final em que a compreensível e mais tarde ficou cerca de meia
antiga namorada, esposa agora de seu irmão, vem hora olhando para o mar e falando sozinha, ou
contar que está grávida, não trataremos nesse pon- conversando com alguém. Havia outras pesso-
to, só anotaremos algo da fala derradeira dela, fa- as olhando o mar como se esperassem alguma
coisa e tive a estranha impressão de que todos
lando do filho que terá: “se tu não tiver a dignidade, estavam pensando no meu tio, embora ele fosse
a hombridade de ir conhecer ele, talvez um dia ele descrito como uma figura reclusa e pouco co-
mesmo te procure, quando tiver idade. Porque é as nhecida, um remanescente de outra época. (GA-
LERA, 2012, p. 7-8)
Sumário
A população local, mesmo que não diga, imagi- atitude que permite, se não a fuga, mas a busca. Par-
na, uma vez que não há corpo, que ele possa voltar, te o Barba em direção não a um Gaudério preciso,
como o fez o avô, e histórias novas devem surgir afinal essa figura inapreensível na família é ainda
sobre o Barba como houve sobre o Gaudério. mais esfumada pelos mitos gerados a respeito dele
Herdeiro, barba foi em busca de seu eu possí- em Garopaba. Ele empreende a viagem tanto para
vel na busca do avô e encontrou a ambos no abraço cortar o laço com o tronco quanto para encontrar
cortante da violência em que lhe é passada a imor- seu lugar entre os ramos da árvore genealógica. Ele
talidade, isso depois de ter insistido na errância, na deseja se tornar águem que não é ninguém, seu avô,
busca sem descanso por encontrar esse laço com o um homem que era inexistente para a família, foi
que não se pode enlaçar. dado como morto, renascido, desaparecido, porém
Barba ensopada de sangue nos diz de um deslo- é presença constante na ameaça que a população
camento, de um desacerto do indivíduo e de como sente quando desaparecem garotas na região, que
se encontrar nesse mesmo deslocamento, fazendo- eles julgam ser a vingança do Gaudério.
-se história. Esse homem viveu malquisto na cidade que es-
Essa narração torna-se o vínculo possível com a colheu para morar, devido ao seu paviu curto, essa 789
ancestralidade e garante, minimamente, uma iden- constante possibilidade de violência, ainda que não
tidade dentro do desenraizamento. concretizada, que o tornava não abordável, isola-
Dentro do espaço e comunidade original, esse do. Também era afamado pela sua capacidade para
sujeito não conseguia ser ninguém. Barba vive a apneia, tornando-o um pescador lendário entre
tensionado entre o pai – publicitário de sucesso e os nativos. Esse homem aguerrido e sobrehumano
corpo em decadência pela doença que o acomete e atrai para si a violência suprema do assassinato em
contra a qual não tem mais vontade de lutar – e o uma celebração pública de ódio ao diferente, numa
irmão, escritor de sucesso que pela vivacidade que desconcertante afirmação da comunidade e da regu-
promete levou dele Viviane, a namorada com quem laridade, em que ele, um forasteiro, um errante, um
poderia ter tido um futuro tranquilo, preso à terra solitário casmurro não se enquadra. Depois da ex-
e à vida correta. tinção do elemento diverso, ocorre o inimaginável,
Ao não se saber a si mesmo, esquecível que é ele não morre, sangra em público e singra mar aden-
dentre todos os rostos que também não apreende, tro para não mais ser visto. Ferido, imbatível, bestial
ele encontra um ancoramento na parecença com o e íntegro, Gaudério vai à água onde afundava sem
avô, o rosto que conseguem ver em si próprio, e a temor para não mais voltar. Na mitologia local ele
Sumário
pode ter morrido, pode ter se tornado outra coisa. confrontados por uma multiplicidade descon-
Saberemos depois que ele passou a viver no centro certante e cambiante de identidades possíveis,
com cada uma das quais poderíamos nos iden-
da terra, na caverna que tomou como lar depois que tificar – ao menos temporariamente.” (HALL,
não mais foi possível ajudá-lo, como conta a Barba 2005. p.12-13)
sua antiga companheira. Alguns lhe dão comida na
beirada da cerca, ninguém de lá se aproxima. Nin- Alguém que não tem identidade visual estabe-
guém o vê. Gaudério ganha uma existência sendo lecida para si nem para os que o rodeiam está cons-
ninguém para a cidade litorânea, mas ofuscando a tantemente posto em contato com desconhecidos,
vida de todos os descendentes de seus assassinos, com identidades novas que lhe são apresentadas
sendo alguém que pode voltar para matá-los a qual- constantemente. Ele deveria ser a personagem sím-
quer momento. bolo da pós-modernidade, porém não existe uma
Estranhamente Barba corta-se, lança-se no perfomance afirmativa ou uma imersão no oceano
desprendimento dos galhos, perde-se nessa queda das não-identidades, na fragmentação ou na cons-
no absoluto buscando a raiz primeva, o avô, que tante mutação.
iniciou o processo de não se radicar. Assumir a he- Barba procura fixar-se num “eu coerente”, cen-
790
rança da errância é o ponto fundamental de seu trado na prática profissional, no cuidar de Beta, na
processo de construção identitária e diz muito não preocupação com os alunos de natação e corrida
só sobre a personagem, mas também sobre o mun- nessas regularidades que parecem cada vez mais fi-
do em que vivemos: xá-lo a Garopaba. Tal como fez o avô, ele, depois
da deambulação, procura a resolução do enigma do
Este processo produz o sujeito pós-moderno, avô e do seu mesmo.
conceptualizado como não tendo uma identida-
de fixa, essencial ou permanente. A identidade O neto entra em território estranho e vai sendo
torna-se uma “celebração móvel”: formada e recusado pelos nativos ao fazer perguntas sobre o
transformada continuamente em relação às for- que ninguém quer falar nem lembrar. Ele é parecido,
mas pelas quais somos representados ou inter- cada vez mais, com aquele de quem eles não querem
pelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.
[...] O sujeito assume identidades diferentes em mais saber, num esquecimento que é rompido pela
diferentes momentos, identidades que não são presença incômoda dessa nova versão de Gaudério.
unificadas ao redor de um “eu” coerente. [...] A Ele é tomado como diferente (desligado, aquele que
identidade plenamente unificada, completa, se- não se lembra das pessoas), o grande “outro” e só é
gura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso,
à medida em que os sistemas de significação e aceito no que melhor sabe fazer, ensinar a nadar e
representação cultural se multiplicam, somos a correr. No mundo imenso da solidão aquática, ele
Sumário
é senhor de sua técnica, de seus músculos, de seu diciará indiretamente por mensagens de outrem (no
vigor. Porém ele falhou em uma competição e car- presente caso conversas telefônicas ou mails troca-
rega o peso desse fracasso enquanto atleta, somado dos por personagens secundárias); existe um cha-
ao fracasso enquanto namorado, já que não foi tão mado à aventura decifratória que não foi imposto,
bom quanto o irmão para Viviane. mas que descentra a personagem principal fazendo
Revivendo os passos do avô ele pode ser bem su- com que aquilo, a peregrinação, se torne o funda-
cedido em algo, o desvelamento do mistério. Porém, mento accional da existência. Para Barba, em certo
ele revive os mesmos enganos, o mesmo desconforto momento do romance, esse assunto até se esvai, mas
e desconfiança provocados pelo Gaudério. Ninguém retorna com força definitiva. Existe o encontro deci-
lhe disse para ali ir, mas também ninguém quer que sivo que nada resolve: em Bernardo Carvalho tanto
ele volte a Porto Alegre, nem mesmo há muita von- a ida à Nova York em Nove Noites, o encontro final
tade de que ele ali fique. Tanto não tem ele para onde na festa de As Iniciais em que nada é provado, ne-
voltar como não possui para onde ir. Esse abando- nhum ciclo se fecha e as personagens seguem suas
nar-se reverbera outras obras da literatura contem- vidas sem que saibamos à que “harmonia inicial” re-
porânea brasileira, em especial, como já referimos, a tornarão, visto que não existe harmonia alguma na 791
de Bernardo Carvalho, sobre a qual já dissemos: contemporaneidade. Barba definitivamente encon-
tra seu avô, tem a prova quando o mesmo lhe toca
As personagens se reelaboram na missão e pre-
enchem sua vida com as vidas outras a serem
o rosto e faltam-lhe dedos na mão, o que bate com o
resgatadas e contadas para salvar do esqueci- relato que lhe fizera seu pai.
mento o que buscam, mas nesse processo não O choque de tal encontro, porém, não produz
se salvam a si mesmas. Mostram-nos que a frag- uma harmonia entre ancestral e descendente e sim
mentação e a incompletude são chaves possíveis
para compreendê-las e a nós mesmos quando
um assombro inexplicável. Gaudério se manifes-
confrontados com tamanhas angústias e com a ta como sempre fora, Barba não entende que não
facilidade de abandonar as identidades pré-e- poderia ser de outra forma. Cristalizado dentro da
nigmas por existências transitórias vividas no pedra, rudimentarmente radicado, o avô não é mais
centro da incompreensão e insolubilidade dos
mistérios. (POSTAL, 2012, p. 09)
a essência da deambulação, mas sim da fuga, do
encerramento fora do mundo correto das comuni-
Note-se que ecoa a mesma formulação de jor- dades, alheio à família, memória e descendência. O
nada arquetípica da pós-modernidade: nada se sabe legado é o da imortalidade, a ferida, o sangramento
na narração da vida pregressa, somente o que se in- e a ida ao mar, elemento que os liga.
Sumário
¹ Doutoranda em Letras, em Teorias críticas da Literatura, pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e professora
adjunta do Curso de Teatro, da Universidade Federal do Tocantins – UFT. E-mail: roseliteratura@hotmail.com.
2
Hermilo Borba Filho (nasceu em Engenho Verde/Palmares, PE, em 1917 e faleceu em Recife, em 1976). Autor, encenador, professor, crítico e
ensaísta. Diretor artístico do Teatro do Estudante de Pernambuco e fundador do Teatro Popular do Nordeste.
Sumário
gédia grega inspira a tragédia brasileira, recheada O fato de as narrativas míticas serem conside-
de intrigas, relação incestuosa e assassinato. radas como “verdadeiras” não é surpreendente, uma
Para iniciar a reflexão, cabe abordar, inicial- vez que tinham como meta primordial a educação
mente, dois conceitos importantes para o estudo: do ser humano pelo exemplo dos antepassados, cuja
mito e tragédia. Esses elementos são relevantes para estirpe era tida como vinculada aos deuses. Neste
se pensar como o mito de Electra se apresenta nos sentido, fica bastante claro que a função do mito era
três tragediógrafos, para só então abordá-lo na sua “(...) revelar os modelos exemplares de todos os ritos
transposição para o teatro moderno nordestino. e atividades humanas significativas” (ELIADE, 1989,
De modo geral, os mitos consistem nas len- p. 13, grifo meu). Por modelos exemplares, entende-
das “(...), isto é, nas narrativas maravilhosas (...) e -se, sobretudo, os exemplos de caráter e de conduta
porque fazem intervir forças ou seres considerados que eram transmitidos ao longo das gerações, valo-
superiores aos humanos, pertencem ao domínio da res estes que tinham a religião por veículo e susten-
religião” (GRIMAL, s/d, p. 17). táculo.
Este vínculo com o contexto religioso conferia Teriam sido de fato os personagens míticos se-
acima de tudo realidade a essas narrativas: res históricos? Ou estes personagens e suas ações 794
seriam criação do imaginário coletivo? Muito se tem
O Mito é considerado uma história sagrada e,
portanto, uma “história verdadeira” porque sem-
discutido a respeito do tema. Uma vez que os obje-
pre se refere a realidades. O mito cosmogônico3 tivos deste trabalho não contemplam uma descrição
é “verdadeiro” porque a existência do Mundo aprofundada sobre a natureza histórica do mito, não
está aí para prová-lo; o mito da origem da mor- se abordará a questão. De todo modo, há certo con-
te é igualmente “verdadeiro” porque é provado
pela mortalidade do homem e assim por diante
senso no sentido de que os mitos carreguem consi-
(ELIADE, 1989, p. 12, grifo do autor). go um fundamento básico trazido do momento de
sua formação, o que permite pensar que o ponto de
partida das lendas teriam sido fatos reais4.
3
Isto é, da origem do mundo.
⁴ “Não há, podemos afirmar, nenhum mito que seja pura fantasia destituída de fundamento. Os que assim hoje se nos apresen-
tam não foram exceções; são, apenas, mitos cujo sentido íntimo ainda não conseguimos penetrar ou que ainda não logramos
compreender” (SPALDING, 2004, p. 14). Ver também: VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento Grego; ELIADE,
Mircea. Mitos, sonhos e mistérios; do mesmo autor: Mito e realidade; SNELL, Bruno. A descoberta do Espírito. SCHÜLER,
Donaldo; GOETTEMS, Miriam Barcellos (Orgs.). O mito ontem e hoje. GRIMAL, Pierre. A mitologia Grega.
Sumário
Uma vez que os mitos na Grécia antiga eram O mito, trazido ao poeta pela inspiração das
formados por um conjunto de histórias que se pre- musas, é, pois, o amparo da tradição para que esta
tendiam como reais, não há problema algum no fato possa reafirmar-se e perpetuar-se. Entretanto, já a
de tais histórias serem contadas/repetidas mesmo partir do século VII a.C., as narrativas míticas come-
por quem não tenha visto de fato às questões por çaram a ser contestadas pelos primeiros filósofos, os
eles abordadas. Por exemplo, na Grécia homérica, pré-socráticos, que “(...) inauguram um novo modo
os aedos (recitadores), embora não houvessem teste- de reflexão concernente à natureza que tomam por
munhado os eventos citados nas narrativas míticas, objeto de uma investigação sistemática (...)” (VER-
recitavam as narrativas, acreditando na veracidade NANT, 1986, p. 73). As iniciativas destes filósofos
das mesmas e elas eram recebidas como reais, o que promovem a queda do pensamento mítico enquanto
era proporcionado principalmente pelo contexto explicação única para o mundo e seus fenômenos. É
social do momento. neste estado de coisas que surgem as peças trágicas.
Em seu sentido primordial, a tragédia consistia
Como tornar plausível a veracidade de um can-
to de que o poeta não foi testemunha ocular?
em um evento em honra do deus Dionísio, no qual
Ao contrário do que se dá na idade da razão, na havia um concurso de recitações (odes) de caráter 795
cultura mítica os ouvidos são testemunhas mais satírico, nos quais os participantes do coro “(...) ar-
verdadeiras do que os olhos. O mito se sustenta ranjavam os cabelos de modo a imitarem a figura
na veracidade da palavra. A palavra inspiradora
das musas, da tradição, do passado é mais verda-
dos bodes (trágoi)”5. Da mistura de duas palavras,
deira do que uma possível observação do poeta tragos (bode) e ode, (canto, recitação), provém a ori-
(SCHÜLER, 1972, p. 21, grifo meu). gem do termo tragédia, uma modalidade teatral, a
qual, segundo Aristóteles (Poética 1449a 9-14) era
uma arte “(...) nascida dos solistas do ditirambo6 (...)
pouco a pouco foi evoluindo à medida que se desen-
volvia tudo quanto nela se manifestava”7.
A partir de seu elemento primordial, a face sa- contra afinal o que determina todo nosso ser:
tírica evoluiu para a tragédia tal qual a conhecemos o perigo e a afirmação da existência humana. E
quando vemos que nisso se trata sempre da exis-
hoje: a dramatização de elementos retirados da mi- tência humana, que não há compromisso nem
tologia grega, e que enfatiza determinados aspec- fuga diante das forças inimigas, e da vontade
tos da conduta dos heróis, permitindo uma reflexão indomável em nosso próprio peito, com isso já
sobre o caráter de suas ações. De fato, Aristóteles temos determinado de antemão um dos traços
essenciais da humanidade trágica, que, em igual
menciona que medida pertence também às figuras do mito he-
lênico (LESKI, 1996, p. 80).
(...) a tragédia é a imitação de uma ação e se exe-
cuta mediante personagens que agem e que di-
versamente se apresentam conforme o próprio Neste sentido, o que ocorre na tragédia é ba-
caráter e pensamento (porque é segundo essas sicamente uma humanização do herói. O mito for-
diferenças que de caráter e pensamento que nós nece o arquétipo, isto é, a descrição conhecida das
qualificamos as ações), daí vem por consequên- ações do herói, de suas experiências. Entretanto, na
cia o serem duas as causas naturais que deter-
minam as ações: pensamento e caráter; e, nas tragédia, ele é afastado das ações, das experiências
ações assim determinadas, tem origem a boa ou pelas quais ele é conhecido para configurar-se em
796
má fortuna dos homens (POÉTICA, 1449b 35 - outra esfera: a existência humana com todos os seus
1450a 2). dilemas, indecisões e fraquezas. O herói trágico não
se destaca pelo vínculo com os deuses, mas pela
Basicamente, a tragédia reexamina a figura dos
atitude diante do inevitável. Distante da perfeição
heróis míticos não raro expondo as suas fragilida-
mítica, o herói está à mercê da falibilidade humana
des. O reexame do caráter do herói constitui uma
e a sua conduta diante desta falibilidade humana o
“atualização do mito” (SCHELL, 1999, p. 109). Ou
identifica com o homem comum face às questões
seja, o mito é relido, reinterpretado à luz das con-
complexas da existência tais como, religião, mo-
cepções sociais, históricas e culturais do momento
ral, ética, dentre outras. Assim, a expressão de ca-
em que a reinterpretação ocorre. Qualquer que seja
racterísticas humanas tais como falhas de caráter,
a “nova” interpretação a ser dada, o mito é o ele-
maldade, insegurança, aproxima o herói do homem
mento fundamental de que o poeta trágico se vale
comum que assiste à peça. É justamente tal aproxi-
para a expressão de sua visão da existência humana.
mação que proporciona a compaixão do espectador
Por trás de todos os heróis que, lutando, livram na medida em que este se projeta para o palco e vive
os países de grandes desgraças ou sucumbem a experiência do personagem trágico, purgando a
heroicamente a forças superiores, (...) se en- experiência e a desgraça dos dilemas vividos pelo
Sumário
herói, fenômeno que Aristóteles chama de Catarse, Nota-se, na evolução da tragédia, um amadure-
termo grego para “purificação”8. cimento progressivo não apenas da arte dramática
A expressão trágica se configura mediante a em si, mas principalmente do próprio ser humano
percepção de elementos trágicos no ser humano. no constante devir de suas reflexões sobre o mundo
Tais elementos se manifestam mediante várias pers- e seu papel nele, já que “(...) o homem arrebatado
pectivas, todas elas ligadas à própria imperfeição pelo deus, transportado para o seu reino por meio
humana; uma vez que o homem não está acima de do êxtase é diferente do que era no mundo cotidia-
suas próprias limitações, ele está sujeito ao que tais no. Mas a transformação é também aquilo de onde,
limitações possam causar em sua vida: e somente daí, pode surgir a arte dramática (LESKY,
1996, p. 74).
Como explicar a dimensão trágica da realidade
humana? Deve haver algo no homem que pos-
A tragédia, em linhas gerais, constitui, pois,
sibilite a vivência trágica. poderíamos chamar uma transformação do mito. É bastante claro que os
de finitude, de contingência, de imperfeição ou tragediógrafos forneçam aos espectadores de suas
ainda de limitação o elemento possibilitador do peças um mito com novos sentidos, novos símbo-
trágico. (...) Portanto, se o homem é um dos su-
postos fundamentais do trágico, outro suposto
los, novas perspectivas. Entretanto, a atualização 797
não menos importante é constituído pela ordem do mito só faz reafirmar a importância do próprio
ou pelo sentido que forma o horizonte existen- mito não apenas para a tragédia, mas para a cultura
cial do homem (BORNHEIM, 1965, p. 94-97). grega em si.
O trágico se abastece das circunstâncias ligadas 1 AS TRÊS ELECTRA(S), NA TRAGÉDIA
ao existir do homem. O mito mascara a realidade GREGA: APROXIMAÇÕES E DIFERENÇAS
humana quando apresenta o homem com qualida-
des que se confundem com as dos deuses. A tragé- O mito de Electra é o fio condutor de três tra-
dia lança o homem nas circunstâncias da mera vida, gédias gregas: As Coéforas, de Esquilo; Electra,
nos desafios da realidade nos quais o indivíduo é de Sófocles; Electra, de Eurípedes. A fatalidade
obrigado a ser como de fato é, sujeito a erros e fa- que perseguia Agamêmnon e seus filhos forneceu
lhas de caráter. o mote para o teatro grego, dando origem a várias
8
POÉTICA, 1449b24-27. “É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão (...), [imi-
tação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação,
dessas emoções”.
Sumário
versões trágicas do mito. Entre três delas, duas ver- Desconhece-se a data exata da peça, contudo a par-
sões levam o nome de Electra, em grego Ἠλέκτρα, tir de critérios literários, pode-se situá-la por volta
e a outra, supõe-se que a mais antiga, recebe o título -420 e -410, portanto, bem anterior a peça de Eurí-
de As Coéforas, em grego Χοηφόροι. pedes. Existe uma probabilidade que essa peça te-
Ésquilo escreveu uma trilogia chamada Ores- nha sido apresentada nas Dionísias Urbanas. Nessa
téia, com a qual venceu o concurso de tragédias tragédia sofocliana, Orestes volta a Micenas a fim
das Dionísias Urbanas, de - 458, composta pelas se- de vingar a morte de seu pai Agamêmnon. Electra
guintes tragédias: Agamêmnon; As Coéforas; As encontra Crisótemis, sua irmã, a caminho do túmu-
Eumênides, acrescido do drama satírico Proteu9. lo do pai, onde deverá fazer libações, a pedido da
Essas peças foram escritas por volta de -420/- mãe, depois de um sonho que a preocupara. Orestes
410. A tragédia As Coéforas, possui este título, faz correr o boato de sua morte, no entanto, Elec-
em virtude do coro de escravas troianas “as coéfo- tra ao saber do fato, entra em desespero, o que faz
ras”, entrarem em cena levando libações para o tú- com que o irmão se revele a ela. Depois disso, Ores-
mulo de Agamêmnon. tes procura a mãe e mata-a cruelmente, auxiliado
Nesta peça, Ésquilo mostra como Orestes e por Electra. Egisto chega para comprovar a suposta 798
Electra conspiram para matar Clitemnestra e Egis- morte de Orestes e percebe horrorizado de que se
to10. Orestes e Pílades apresentam-se sob disfarce no trata do corpo de Clitemnestra. Em seguida, Egisto
Palácio real de Argos, a pretexto de informar a Cli- é assassinado.
temnestra à morte de seu filho. Na sequência Ores- Eurípedes apresenta os mesmos fatos e as mes-
tes mata Egisto, todavia hesita em matar a mãe, vin- mas personagens das outras duas tragédias em sua
do a matá-la somente quando Pílades recorda que Electra, datada de -413. Nesta versão, um campo-
essa era uma ordem do Oráculo de Apolo. Depois da nês narra os primeiros fatos e relata que fora coagi-
morte de Clitemnestra, surgem as “Fúrias vingado- do, por Egisto, a se casar com Electra, mesmo contra
ras” e Orestes foge apavorado. a sua vontade. Esse casamento objetivava fazer com
Sófocles retoma o mito na tragédia Electra. que Electra tivesse filhos sem estirpe e sem nobreza,
A peça foi representada em Atenas pela primeira desta forma, não se tornariam sucessores ao trono.
vez quando o autor já estava consagrado e idoso. Diante desse cenário, o camponês não consuma o
9
Infelizmente esse drama satírico se perdeu, ao contrário das tragédias que alcançaram o nosso tempo, praticamente intactas.
10
Egisto era filho de Tiestes, irmão gêmeo de Agamêmnon, portanto, sobrinho de Agamêmnon e Clitemnestra.
Sumário
casamento, e vive uma relação fraternal com Elec- Pela leitura de Eurípedes é possível perceber a
tra. Ela lamenta sua sina e o coro “das jovens mice- diferença de estilo com Ésquilo e Sófocles, em es-
nianas” tenta confortá-la. Neste momento, surgem pecial, porque as cenas e as personagens por ele
Orestes e Pílades disfarçados, com o pretexto de imaginadas se aproximam mais da realidade, com
trazer notícias a ela do seu irmão. Os dois forastei- uma construção mais próxima do agir e do sentir
ros hospedam-se na casa de Electra. Electra envia dos mortais. Por isso, talvez, dos três dramaturgos é
o camponês, como portador, para buscar um pre- a obra que mais inspira versões modernas.
ceptor, já ancião, que havia salvado a vida de Ores- Após abordar o mito de Electra nas três tragé-
tes ainda criança. O objetivo desse encontro, entre dias, percebe-se que todas as peças trazem Electra
o preceptor e os forasteiros, seria para demonstrar como agente mitológico e Orestes como o agente
hospitalidade e para obter o maior número possível trágico. Obviamente que o mito pode ser lido das
de informações a respeito do paradeiro de seu ir- mais diferentes maneiras e por diversos pontos de
mão. Ao chegar, o ancião reconhece imediatamen- vista ou áreas do conhecimento.
te Orestes, por meio de uma cicatriz. Após o (re)
encontro e feitas todas as justificativas sobre o dis- 2 ELECTRA NO TEATRO NORDESTINO: DO 799
farce, Electra, Orestes e o ancião tramam a morte CASTELO AO CIRCO
de Egisto e Clitemnestra. Orestes sai para executar
Egisto, enquanto isso o ancião parte em busca de As três tragédias têm Electra como figura cen-
Clitemnestra. O ancião armou um ardil com uma tral. Como toda a lenda, oriunda da tradição oral, o
falsa notícia de que Electra havia dado à luz. Esse mito de Electra sofreu algumas variações no enredo,
estratagema deu certo, trazendo Clitemnestra a casa dependendo da versão.
de Electra. Orestes hesita em matá-la, porém con- Neste trabalho, dialoga-se com a versão de
suma o ato instigado pela irmã e pela lembrança da Sófocles, por ser a versão que possui mais pontos
ordem oracular. Mais tarde, arrepende-se. Em segui- de contato com Electra no circo, de Borba Filho,
da, surgem os Dióscuros (Castor e Pólux) anuncian- como, por exemplo, o desejo latente de vingança de
do o julgamento do crime de Orestes pelo Tribunal Electra; a ameaça de Clitemnestra em encarcerar a
de Palas (Minerva), em Atenas. Orestes é absolvido filha viva, caso não mudasse seu comportamento
graças a sentença da deusa e os mesmos deuses de- agressivo para com ela e para com o padrasto; o so-
cidem o destino de Electra, ao determinar que ela nho de Clitemnestra com o marido morto; a chega-
fosse dada em casamento a Pílades e que partisse da de uma “suposta mensagem” contendo a notícia
com seu marido para o novo lar. da morte de Orestes.
Sumário
Sófocles, em Electra, revela a vingança dos fi- executam o padrasto, condenando-o a uma morte
lhos contra Clitemnestra, que assassinou o marido, idêntica ao do Dono do Circo.
com o objetivo de unir-se ao amante. O espaço re- Na peça, os diálogos são fragmentados e, por
tratado é a cidade grega, especificamente as cenas vezes, desconexos, porque unem e confundem as
se passam no palácio, na porta do palácio e no tú- vozes do plano da realidade com as vozes do plano
mulo de Agamêmnon. da alucinação. Infere-se que as vozes desconectadas
Borba Filho revisita o mito, mas faz transpo- da ação principal e do plano da realidade pertencem
sição para o espaço circense, em uma cidadezinha ao plano da alucinação e são utilizadas, apenas, pela
qualquer, do sertão nordestino. E, para marcar o Moça do Trapézio, no primeiro e segundo atos, con-
ambiente, Borba Filho canibaliza o discurso do es- forme se pode observar nas falas marcadas como
petáculo circense: “Hoje vai ter espetáculo? Vai ter pertencendo a “voz”:
sim senhor!” (BORBA FILHO, 2007, p. 32). Ainda,
Voz: Os pés estão pesando como se fossem de
há outro espaço, bem marcado no texto dramático, chumbo. Que pressentimento! Eu não posso
o sanatório, em que se passa o último ato. continuar a viver assim. É como se sentisse al-
Electra no circo divide-se em três atos e apre- guém do meu lado... (pausa) Os meus pés estão 800
senta três planos superpostos: realidade, memória pesando... estão pesando... Como posso andar
no arame? E logo hoje, que vai estrear o meu
e alucinação (ou delírio). Peça ação sabe-se quando novo companheiro... (p. 30).
é um ou outro plano. O primeiro ato é chamado de Voz: Estarei mesmo louca? (p. 39).
“Antes do espetáculo”, sendo apresentados a trama, Voz: Quando chegará meu irmão? (p. 39).
o espaço circense e o ambiente de intriga e de sus- Voz: Sozinha. Mas tenho que matá-los. Sozinha
mesmo (p. 43).
pense que antecede o espetáculo. Neste ato sabe-se Voz: Helena? (p. 45).
da morte do dono do circo e do desejo de vingança Voz: Meu irmão... meu irmão... meu irmão...
da Moça do Arame que arquiteta um plano para eli- meu irmão... (p. 45).
minar a mãe e o padrasto. O segundo ato, “Durante Voz: O tempo passou... e chegou o momento (p.
51).
o Espetáculo”, os dois irmãos recebem apoio e in- Voz: Papai... (p. 52).
centivo na logística e concretização dos assassina- Voz: Não, meu irmão. Não o mate. Traga-o aqui.
tos, tanto pelo pai (em aparições em flashes fantas- Ele deve morrer como morreu o meu pai. Ele
magóricos) como do Palhaço e do Homem Lagarto. tem que morrer assim (p. 57).
Voz: Agora, cortar as amarras! (BORBA FILHO,
Os filhos cegados pelo ódio e pelo desejo de vingan- 2007, p. 60).
ça matam a mãe, no camarim do circo e, em seguida,
Sumário
O terceiro ato, “Depois do espetáculo” tem iní- cenas como essas. Grandes acontecimentos vis-
cio com o mestre de cerimônias que se desculpa tos a uma nova luz. Grande dores estranguladas
por uma gargalhada brutal. Apenas um pouco da
pelos artistas desvirtuarem o espetáculo, preferin- vida do Grande Circo do Mundo. E vai começar
do “viver” a própria tragédia, em vez de realizar o a função! Vai começar! Música, maestro! (BOR-
espetáculo propriamente dito. Neste ato, o Rapaz do BA FILHO, 2007, p. 29).
Arame é internado em uma clínica psiquiátrica e as-
sume a identidade de Orestes. Há uma justaposição O fio condutor da peça é a trama articulada pela
de cenas, mesclando realidade e alucinação. Moça do Arame para eliminar a mãe e o padrasto.
Neste ato, há dois palcos superpostos, o de Ela remete ao mito, sobretudo, pelo ódio exacerba-
cima, representa a sala do sanatório, onde se mo- do, nutrido pela mãe e, o amor desmedido, dedicado
vimentam “pessoas reais” e, o debaixo, é “a repre- ao pai.
sentação do cérebro do Rapaz do Trapézio”, criadas É possível observar esses fatos nos seguintes
pelo processo de delírio. No último ato, desaparece trechos da peça:
a “voz” não nomeada, do plano da alucinação, fican- A voz: Ela assassina. Ela! Meu irmão...
do todas as vozes vinculadas a algum personagem. A equitadora: O que é que você está fazendo 801
Borba Filho, assim como outros dramaturgos aqui?
modernos, especialmente, europeus e americanos11, A voz: Não respondo. Não respondo.
A equitadora: Já recomeçou com as suas men-
retomam a tragédia antiga para pensar o “sofri- tiras?
mento humano”. Esse fato vem de encontro à peça A moça do arame: Eu não digo mentiras.
estudada, pois o narrador ou mestre de cerimônias A equitadora: Diz mais do que isso. Diz infâmias.
anuncia ironicamente que o espetáculo não terá fe- A moça do arame: Eu só falo a verdade.
A equitadora: Vive gritando aos quatro ventos
ras, terá somente humanos, homens e mulheres que matei seu pai. Não me tem o menor respeito.
A moça do arame: Como posso ter?
(...) sofrendo, amando, rindo, chorando. Um es- A equitadora: Está vendo?
petáculo, respeitável público, um espetáculo! A voz: Ela matou o meu pai (BORBA FILHO,
Nem sempre vocês têm, a preços tão razoáveis, 2007, p. 40)
11
Pode-se citar como exemplo Mourning becomes Electra (Electra fica bem de luto), considerada uma das obras mais im-
portantes, de Eugene Gladstone O'Neill. Essa trilogia é composta por três peças: The homecoming (A volta para casa), The
hunted (O caçado), The haunted (Os assombrados) e foi montada em 1931, com duração de cerca de seis horas consecutivas
de espetáculo. A trilogia teve como inspiração a trilogia Orestéia, de Ésquilo. A peça Mourning becomes Electra ganhou
adaptação para o cinema em 1947, com direção e adaptação de Dudley Nichols.
Sumário
Coro dos meninos: Charuto! Este fato volta à cena, durante um episódio de
Segundo servente: Vocês viram que pedaço de psicose, sofrido pelo Rapaz do Arame, em que ele
homem é o rapaz do trapézio?
Terceiro servente: Cada braço! recebe a visita da irmã vestida de noiva. Durante
Quarto servente: A moça até se esqueceu um bo- a visita, A moça do Arame, informa que é o dia do
cadinho do pai dela. Você não viram como eles casamento deles. O irmão tenta lembrá-la de que
dois estavam conversando lá dentro? são irmãos e que por isso não devem se casar. Neste
Quinto servente: Como se fossem velhos conhe-
cidos. exato momento chega o Dono do Circo, pai de am-
Coro dos meninos: Olhe a hora! Olhe a hora! bos, e que se dá o seguinte diálogo:
Sexto servente: Também, aqui pra nós, nem pa-
rece que foi o pai que morreu. Parece até que ela O dono do circo – Já está na hora?
perdeu um marido. A moça do arame – Já. Vamos embora.
Terceiro servente: Coitadinha... Eu tenho pena A voz do rapaz – O que ele quer?
dela. A moça do arame – Nada. É o meu noivo.
Segundo servente: Ela vive dizendo horrores da A voz do rapaz – Esse? Esse é o nosso pai?
mãe. A moça do arame – E que tem isso?
Quarto servente: E do domador. A voz do rapaz – O noivo sou eu.
Palhaço: Que é que vocês tanto conversam ai? A moça do arame – (Ao dono do circo) – Ele esta- 802
Olhe que o público chega e não fazemos o ensaio va pensando que era o noivo.
(BORBA Filho, 2007, p. 50). O dono do circo – Coitado...
A voz do rapaz – Você não pode se casar com
O texto possui elementos para que se possa ob- esse homem. É seu pai.
A moça do arame – E você não ia se casar co-
servar a existência de uma tensão sexual entre a fi- migo?
lha e o pai. Neste sentido, pode-se perceber, na peça, A voz do rapaz – Mas eu sou somente seu irmão.
clara referência ao complexo de Electra. De acordo A moça do arame – Que cínico! (Ri e toma o bra-
com o Dicionário técnico de Psicologia, a Síndro- ço do dono do circo)
A voz do rapaz – Vocês não podem fazer isso.
me de Electra, possui suas raízes na infância, pois Que diria a mãe?
A moça do arame – E você já não a matou?
no decurso de seu desenvolvimento psicossexu- A voz do rapaz – Ah!
al, a criança também busca um objeto externo A moça do arame – Matou-a. E agora vamos nos
para satisfazer seus desejos eróticos e, em virtu- casar, não é, paizinho?
de, da proximidade e da ternura parental, o ob- O dono do circo – Vamos. Tenho pressa.
jeto escolhido é a mãe (ou o pai, isto é, sempre A moça do arame – Vê como ele está impacien-
o indivíduo de sexo oposto ao da criança). No te?
rapaz, esse complexo de desejos recebeu o nome A voz do rapaz – Miseráveis! (BORBA FILHO,
de Complexo de Édipo; na menina, Complexo de 2007, p. 73)
Electra (CABRAL, 2006, p. 312).
Sumário
O dramaturgo pode ter se inspirado nas peças ravés da lenda reconfigurada, o mito de Electra so-
de Nelson Rodrigues, para construir sua tragédia, brevive e se faz eterno como sombra do passado e
sobretudo, na peça Vestido de Noiva (1943), que foi intuição do futuro.
a precursora na elaboração e no uso cênico de três
planos: realidade, memória e alucinação. Borba Fi- REFERÊNCIAS
lho, como um homem de teatro, escrevia com fre-
quência em jornais, sobre suas impressões estéticas BORBA FILHO, Hermilo. Teatro selecionado. Vol. I, II e
III. Leda Alves; Luís Augusto Reis (Org.) Rio de Janeiro:
e leituras. Ele publicou, no Jornal do Commercio,
Funarte, 2007.
ao longo do ano de 1944, algumas notas sobre tea-
tro12, entre elas destacam-se duas, uma escrita sobre ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza.
O’Neill e outra sobre Nelson Rodrigues. Na mesma Porto Alegre: Globo, 1966.
proporção que Borba Filho se revelava entusiasma-
BORNHEIM, Gerd. O Sentido e a máscara. Porto Alegre:
do diante da obra do americano, mostrava-se, igual-
UFRGS, 1965.
mente, encantado pela escrita rodrigueana.
Neste sentido, as influências detectadas na peça CABRAL, Álvaro. Dicionário técnico de Psicologia. São 803
estudada podem ter advindo de ambos os drama- Paulo: Cultrix, 2006.
turgos, ainda muitas outras influências diretas, pois
ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e mistérios. Tradução de
Borba Filho era um leitor atento, também tradutor, Samuel Soares. Lisboa: Edições 70, 1989.
do teatro americano e europeu. Igualmente, era um
profundo conhecedor e divulgador da cultura erudi- ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Pola Ci-
ta e popular brasileira. velli. São Paulo: Perspectiva, 1989.
Para concluir, é evidente que Borba Filho se
GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. Lisboa: Europa-Ame-
inspira na tragédia grega para criar a sua tragédia rica, s/d.
brasileira, com muitos pontos de contato e alguns
distanciamentos. Contudo, percebe-se também seu GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia Grega. São
diálogo com O’Neill e Nelson Rodrigues. Paulo: Cultrix, 1972.
A releitura enfatiza a importância do que é (re)
LESKI, Albin. A Tragédia Grega. Tradução de J. Guinsburg,
lido e, na reflexão sobre a existência do humano at Geraldo de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva,
1996.
12
Consultar Borba Filho, in Jornal do Commercio, 27/08/44.
Sumário
¹ Mestre em Letras, doutoranda em Letras – Linguística (PUCRS) e bolsista integral do CNPQ. Email: sabrine.martins@acad.
pucrs.br.
² Mestre em Letras, doutoranda em Letras – Linguística (PUCRS), professora do IFRS - Câmpus Ibirubá e bolsista parcial da
CAPES. Email: fernanda.schneider.001@acad.pucrs.br.
³ Mestre em Letras, doutoranda em Letras – Linguística (PUCRS), e bolsista integral da CAPES. Email: lisandra.rodrigues@
acad.pucrs.br.
Sumário
racteristics of the experimental studies conducted te vascular encefálico (AVE). Ele corresponde, hoje,
in Brazil between 2012 and 2015, in order to verify às principais causas de internações hospitalares de
the instruments for the assessment of aphasia, the adultos e idosos e são um problema de saúde públi-
neuropsychological instruments, the criteria adop- ca, uma vez que é ainda precária a infraestrutura dos
ted to participants’ recruitment, and the language hospitais brasileiros para as demandas da doença. Ele
skills investigated. The article search was conduc- ocorre quando há uma anormalidade do tecido ence-
ted in the following databases: SCOPUS, PEPSIC, fálico, como uma “lesão da parede do vaso, alteração
ScienceDirect, EMBASE, EBSCO, LILACS, PubMed/ da permeabilidade vascular, oclusão da luz vascular
Medline, Web of Science, SCIELO Brasil and Digital por trombo, ruptura do vaso e alteração da viscosida-
Library of UNICAMP. From the 407 articles found, de ou qualidade do sangue” (FUKUJIMA, 2010, p. 34).
8 were selected. The results identified an urgency to Uma das principais sequelas decorrentes do AVE
expand the representative data of the Brazilian po- é a afasia, concebida como uma redução ou disfun-
pulation and the development of more batteries and ção da capacidade linguística (CHAPEY, 1996; COU-
efficient instruments for the assessment and treat- DRY, 1988/2008; FABBRO, 2003; MORATO, 2010;
ment of language, since the tests and parameters ORTIZ, 2010), alterando, em diversos graus, o conte- 806
used do not contemplate the unique characteristics údo, a forma e o uso da linguagem e processos cog-
of the population. Thus, we understand, from this nitivos subjacentes (CHAPEY, 1996; ORTIZ, 2010).
review, that there is a need for a multidisciplinary Pode afetar a produção oral/escrita, a compreensão
approach in the research on language in aphasia for auditiva/leitora, e também a nomeação de objetos e
a growing understanding of the problem. a organização sintática de frases. Ela é prevalente
Keywords: Aphasia. Stroke. Language. Assess- em 38% dos casos de AVE (PEDERSEN et al., 1995), e
ment. Neuropsycholinguistics. Brazil. uma das consequências mais graves da doença.
Nesse contexto, com o objetivo de prover mais
dados e assim oferecer contribuições ao diagnósti-
INTRODUÇÃO co e ao tratamento, pesquisas sobre os distúrbios de
linguagem, particularmente a afasia, são um campo
As mudanças no ritmo de vida dos brasileiros, em plena expansão e podem apresentar contribui-
junto a fatores como o sedentarismo, hipertensão, ções promissoras para o entendimento do processa-
diabetes, tabagismo e consumo de bebidas alcóolicas mento da linguagem no cérebro. Longe de se poder
(CHAVES, 2000), podem contribuir para o apareci- considerar como um tema recente, a afasia tem sido
mento de doenças cardiovasculares, como o aciden- investigada por diferentes grupos de pesquisadores
Sumário
e muitas têm sido as contribuições, tanto de estudos escolha por essa delimitação parte da necessidade
experimentais4 quanto não-experimentais. de se investigar o tipo de pesquisa experimental e
Assim, esta revisão tem o objetivo de discutir seu enfoque linguístico no período selecionado. A
pesquisas experimentais que abordem a linguagem partir da análise, pretende-se discutir as seguintes
na afasia, realizadas com amostras da população questões norteadoras: 1) quais são as características
brasileira e publicadas entre 2012 e 2015. Para tan- metodológicas dos estudos sobre linguagem e afasia
to, optou-se pela revisão sistemática, em bases de realizados com a população brasileira nos últimos
dados internacionais e nacionais, atentando para anos? e 2) quais aspectos da linguagem, como pro-
questões metodológicas como: os instrumentos uti- dução oral e escrita, compreensão leitora e escrita,
lizados para a avaliação da afasia e suas respectivas são avaliados nessas investigações? Para discutir
adaptações/versões; instrumentos neuropsicológi- essas questões, foi realizada uma busca sistemáti-
cos aplicados nas pesquisas e critérios de seleção ca de estudos sobre afasia, nas bases de dados da
dos participantes, bem como inclusão ou não de da- Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) LILACS, Scielo
dos de neuroimagem funcional e/ou estrutural. O Brasil, PubMed/Medline, PEPSIC, da CAPES, Web
presente estudo tem também, como pano de fundo, of Science e SCOPUS, da Elsevier EMBASE e Scien- 807
o objetivo de conhecer os estudos linguísticos ex- ceDirect, do portal EBSCO e da Biblioteca Digital da
perimentais realizados no Brasil, verificando assim, UNICAMP. A escolha dessas bases justifica-se por
que aspectos, sob uma perspectiva neuropsicolin- disponibilizarem artigos nacionais e internacionais
guística, têm sido abordados. interdisciplinares incluindo áreas como linguística,
A seguir, é apresentado o método adotado para biomedicina, psicologia, medicina e fonoaudiologia.
a elaboração desta revisão. A consulta foi feita a partir das palavras-chave
<afasia>, <linguagem > e <Brasil>, podendo apare-
MÉTODO cer tanto nos títulos dos artigos quanto no corpo
do resumo ou abstract. Para as bases que utilizam
Este artigo tem como objetivo apresentar uma descritores, foram usados os termos <afasia> e <lin-
revisão de estudos experimentais sobre afasia rea- guagem>, obtidos no DeCS (Descritores em Ciên-
lizados no Brasil e publicados entre 2012 e 2015. A cias da Saúde). Adicionalmente, o local <Brasil> foi
⁴ Os estudos experimentais – de acordo com a psicolinguística experimental – têm o objetivo de descrever e analisar a forma
como o ser humano compreende e produz linguagem, ou seja, os fenômenos linguísticos relacionados ao processamento da
linguagem (LEITÃO, 2008).
Sumário
usado, embora não seja comumente indexado como atender aos critérios de adequação: 1) tratar de le-
descritor nas publicações. Para as bases que permi- sões circunscritas ao hemisfério esquerdo; 2) incluir
tiam palavras-chave, foram feitas as seguintes as- afasia por decorrência de AVE; 3) tratarem-se de
sociações para a busca: <aphasia> AND <langua- estudos experimentais. Foram excluídos artigos que
ge> AND <stroke> AND <Brazil>. Destaca-se que não se enquadravam nos seguintes casos: 1) artigos
as palavras-chave foram selecionadas com base no repetidos nas bases de dados; 2) amostras de indi-
objetivo deste artigo. Monografias, dissertações e víduos com afasia primária progressiva; 3) artigos
teses foram excluídas por se partir do pressuposto sem relação com a linguagem; 4) revisões sistemáti-
de que os resultados desses estudos são publicados cas; 5) estudos conduzidos por pesquisadores brasi-
em forma de artigos, evitando assim a repetição de leiros, mas não realizados no Brasil; e 6) monogra-
estudos com os mesmos dados analisados. fias, dissertações, teses e capítulos de livros. Após a
A partir das buscas, 407 artigos foram encon- aplicação dos critérios, 8 artigos completos foram
trados, sendo que desses, 377 foram excluídos após selecionados. O fluxo de seleção de artigos pode ser
a leitura do título e do resumo. Foram selecionados visualizado na Fig. 1.
para a leitura 30 textos completos, que deveriam 808
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante o processo de pesquisa, foram encontrados muitos estudos de natureza não experimental, ou
em forma de dissertações ou teses, por isso não incluídos. Frisa-se que, por se tratar de uma revisão siste-
mática em bases de dados e ser necessário adotar uma série de critérios de exclusão, alguns estudos podem
não ter sido contemplados. Assim, as restrições comuns a esse tipo de trabalho podem ter feito com que o
universo de pesquisas experimentais em afasia no país não fosse totalmente contemplado, em especial as
que não foram publicadas nas bases selecionadas. O Quadro 1 sintetiza alguns dados, incluindo o perfil dos
participantes, objetivos e resultados.
AUTORES PARTICIPANTES OBJETIVOS RESULTADOS
ARRUDA, 17 H e 14 M (16 de Homens com menos de 65 anos e escolaridade maior que 8 anos apre-
Estudar a ocorrência de distúrbios
1 REIS, FONSE- 30-65 anos e 15 de sentaram escores mais altos. Ainda, houve prevalência dos distúrbios de
de linguagem em vítimas de AVE.
CA, (2014) 66-94 anos) compreensão na amostra.
KUNST et al.
Relato de tratamento fonoaudi- O tratamento imediato após o AVE pode ter influenciado positivamente 809
2 1 H (68 anos) ológico com mutismo de indivíduo a expansão do vocabulário e outros avanços relativos ao mutismo do
(2013)
afásico. indivíduo afásico.
1 H e 4 M afásicos Verificar se a CSA influi positi-
BAHIA; CHUN A CSA foi um facilitador da comunicação, diminuindo a incidência de
3 não fluentes (59, 37, vamente na produção oral de
(2014) adivinhações e aumentando a produção oral.
50, 59, 67 anos) afásicos.
FRANCO et al. 2 H (53 e 77 anos) Averiguar se o uso da CSA auxilia A CSA beneficiou os participantes, tornando sua comunicação mais efici-
4
(2015) afásicos não fluentes na leitura e na recuperação lexical. ente e aprimorando habilidades de leitura e nomeação.
CARDOSO; Referenciar o desenho de afásicos
Os dados encontrados consolidam a ideia de (re)significação da linguagem
5 BISSO; BRAGA 8 participantes como comunicação escrita, sob a
utilizada por estes participantes.
(2012) ótica do discurso.
Apurar se o programa de estru-
SILAGI; 1 M (35 anos) afásica
turação de sentenças é eficaz O indivíduo afásico apresentou generalização e resultados positivos na fala
6 HIRATA; MEN- de Broca (na fase
na reabilitação a longo prazo da espontânea somente durante a reabilitação e não a longo prazo.
DONÇA (2014) aguda afasia global)
afasia.
Verificar a recuperação da lingua-
SANTOS et al. 9 H e 10 M (idade Houveram diferenças relevantes nas etapas pré e pós-estimulação para
7 gem através de estimulação tran-
(2013) média 53,3 anos) compreensão de frases simples, nomeação e fluência verbal para animais.
scraniana em indivíduos afásicos.
13 afásicos e 18 não
SANTOS;
afásicos (14 desses Analisar aspectos da linguagem
GAGLIARDI; Não foi observada relação direta entre a topografia da lesão, a afasia e o
8 entre 15-39 anos, 11 em afásicos correlacionando com a
MAC-KAY desempenho nas provas de linguagem.
entre 40-69 anos e 6 topografia da lesão.
(2012)
acima de 70 anos)
Nota: M = mulher; H = homem
Quadro 1 - Detalhamento dos estudos selecionados para a revisão
Fonte: As autoras
Sumário
O estudo 1 (ARRUDA; REIS; FONSECA, 2014) outras características (FONSECA et al., 2011). Além
(ver Quadro 1) teve por objetivo averiguar qual ha- disso, Kiran, Balachandran e Lucas (2014) afirmam
bilidade linguística foi mais afetada na ocorrência de que o protocolo dos testes precisa de aprimoramen-
afasia no estado do Sergipe. O trabalho apresentou tos, pois examinar o número de palavras corretas
dados da afasia gerada por AVE com uma popula- não é o suficiente para avaliar alguns aspectos lin-
ção de idade, escolaridade e gênero distintos, com o guísticos, como a nomeação em afasia. Para o Teste
objetivo de investigar as habilidades mais compro- de nomeação de Boston (TNB), Mansur et al. (2006)
metidas e promover foco na reabilitação. O estudo consideram que é possível a aplicação da versão tra-
apresentou testes e baterias adaptados e validados duzida sem adaptações para a população brasileira,
para o português e, durante seis meses, analisou a desde que o nível educacional seja observado nos
ocorrência de distúrbios de linguagem em indivídu- resultados. Portanto, ainda há muita discussão so-
os que sofreram AVE atendidos em um centro de bre as variáveis consideradas na confecção das ba-
saúde. Dois pontos são salientados: a avaliação da terias e testes de avaliação da linguagem na afasia.
linguagem e a heterogeneidade dos participantes. O Porém, é inegável que deve haver cautela na aplica-
Teste de Reabilitação do Rio de Janeiro foi utilizado, ção de testes não validados. 810
tendo sido adaptado às condições sociolinguísticas O aspecto heterogeneidade dos participantes
do país. A partir dos dados desse teste, que avalia também precisa ser destacado. Em Arruda, Reis e
diversos aspectos da comunicação linguística, po- Fonseca (2014), foram selecionadas 31 pessoas, 17
deria haver uma descrição das habilidades mais co- homens e 14 mulheres, com idades entre 30 e 94
mumente prejudicadas na população investigada, anos, entre analfabetos e alfabetizados. Houve o
fornecendo evidências para a seleção de um deter- cuidado de não incluir indivíduos com qualquer
minado tratamento. acometimento demencial e/ou neurodegenerativo
As adaptações dos testes internacionais para a pré-morbido, ou que apresentassem histórico de
realidade brasileira são, de fato, um grande desafio. distúrbios de linguagem antes do AVE. É bastante
Não basta uma tradução para o português brasilei- comum observar nas pesquisas internacionais uma
ro. Para que não haja um viés, devem ser contro- heterogeneidade nos grupos pesquisados. Em se tra-
ladas as possíveis variáveis que se apresentam na tando de afasia, considerando que não existem dois
adaptação de um teste, tarefa ou bateria para ou- afásicos iguais (ORTIZ, 2010), o grupo heterogêneo
tra língua, como a frequência das palavras, a ima- é uma opção de pesquisa, assim como os estudos de
geabilidade, categoria dos termos, extensão, dentre caso. É sabido que os AVEs acometem também adul-
Sumário
tos jovens – de 30-40 anos – e idosos – com mais de O estudo 2 (KUNST et al., 2013) apresenta um
60 anos. Nas pesquisas com um grupo de faixa etá- estudo de caso com um afásico que apresenta afasia
ria variada, deveriam ser consideradas, para aque- de expressão oral e escrita, com diagnóstico obti-
les com mais de 60 anos, as mudanças funcionais do por meio de dois instrumentos fonoaudiológi-
e neurológicas que decorrem do envelhecimento, cos validados – o teste para avaliação da afasia da
uma vez que mesmo os indivíduos sadios tendem Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação
a demonstrar uma diminuição em algumas capaci- (ABBR) e o Token Test. O foco foi essencialmen-
dades cognitivas, especialmente na memória, muito te a eficácia da atuação fonoaudiológica já nos pri-
avaliada nos testes de afasia. meiros dias pós AVE, pois a melhora é considerada
Além da questão da faixa etária, é necessário mínima sem o devido tratamento. O participante
investigar influência de gênero na avaliação das afa- apresentou inicialmente um quadro de mutismo,
sias. Sabe-se que mulheres têm mais AVE por causa comunicando-se com uma única estereotipia ver-
do uso de métodos contraceptivos de via oral, maior bal. Ao iniciar a terapia, ele conseguiu expandir seu
incidência de fumantes, sobrepeso e sedentarismo vocabulário, apresentando ainda muitas parafasias
(ANDRÉ, 1999), além do fato de sua expectativa de e neologismos, partindo da produção de poucas pa- 811
vida ser maior que a dos homens (IBGE, 2009; KAI- lavras e aumentando de forma gradual para a emis-
SER, 2004). são de frases simples. É interessante observar que
Em países como o Brasil, o AVE é a segunda cau- se trata de um participante que apresentou uma re-
sa de morte mais prevalente, enquanto que em países cuperação bastante positiva quando consideradas a
desenvolvidos, é a terceira, perdendo para cardiopa- extensão e localização da lesão, fato que se atribuiu
tias e câncer (FUKUJIMA, 2010). Em um hospital de principalmente à precocidade – 15 dias após AVE –
São Paulo, Mansur et al. (2002) apontaram que, da das medidas terapêuticas. O estudo também salien-
amostra de 192 pacientes brasileiros vítimas de AVE, ta a importância de elementos como a estimulação e
70% apresentavam afasia. Todavia, não é possível o papel da família do paciente para evitar a solidão
afirmar que esse índice seja referência, pois ainda há que pode se instaurar a partir da ruptura do proces-
muito poucos dados sobre a população afásica brasi- so de comunicação e ao longo da recuperação.
leira. Em muitos casos, para a realização das pesqui- Os artigos 3 (BAHIA; CHUN, 2014) e 4 (Franco
sas, é preciso adotar os parâmetros internacionais, et al., 2015) apresentam estudos longitudinais sobre
que não condizem com a realidade etária, social e a eficácia da Comunicação Suplementar e/ou Alter-
educacional brasileira (MANSUR et al., 2002). nativa (CSA) (VON TETZCHNER; JENSEN, 1996),
Sumário
a qual se utiliza de recursos visuais (figuras) para todas essas pesquisas a contribuição desses meios
auxiliar os pacientes afásicos que precisam de re- para o aumento da qualidade de vida dos afásicos,
cursos não verbais para se comunicarem, servindo, visto que muitos encontram-se deprimidos por te-
assim, de substituição das formas de produção e in- rem sua habilidade de comunicação restringida pelo
terpretação verbal. Embora os dois estudos tratem distúrbio. É importante destacar que os estudos so-
da tarefa CSA, apenas o último explica que as gra- bre comunicação alternativa na afasia podem in-
vuras foram selecionadas conforme sua iconicidade fluenciar a confecção, validação e adaptação de ba-
e como foram confeccionados os álbuns ou as pla- terias para a avaliação não só da linguagem, como
cas contendo as figuras utilizadas com os afásicos. de outros construtos cognitivos. Sabe-se que há li-
O estudo 5 (CARDOSO; BISSO; BRAGA, 2012) mitações em testes de memória porque normalmen-
procura responder de que forma é possível inter- te sua avaliação é mediada pela linguagem. Em afá-
pretar os desenhos utilizados por alguns pacien- sicos, é preciso considerar sua limitação linguística
tes afásicos como comunicação escrita. Os autores e buscar alternativas para os testes utilizados em
apontam para o fato de que o funcionamento da lin- não afásicos, para que haja uma avaliação justa des-
guagem em um afásico “dispõe de recursos de pro- se construto cognitivo. Um exemplo é o Mini Exame 812
dução e interpretação, os quais podem ser afetados do Estado Mental (MMSE) (FOLSTEIN; FOLSTEIN;
em diferentes medidas pelo acometimento neurofi- MCHUGH, 1975), normalmente utilizado para eli-
siológico, o que gera diferenças individuais quan- minar a suspeita de problemas neurológicos, que
to ao desempenho linguístico” (CARDOSO; BISSO; possui quase metade dos itens avaliados em tarefas
BRAGA, 2012, p. 42). Os autores afirmam que a es- linguísticas. A afasia, por sua restrição, dificulta ao
crita desses indivíduos e os traços dos estágios do indivíduo realizar as tarefas pedidas com acurácia,
grafismo, como os da aquisição infantil, podem ser podendo, erroneamente, se não consideradas as li-
uma pista de reorganização da linguagem dessas mitações linguísticas, uma pessoa com afasia ser
pessoas. De acordo com a perspectiva discursiva diagnosticada com comprometimento neurológico.
adotada pelos autores, a representação da lingua- Uma versão alternativa do MMSE, incluindo figu-
gem escrita por meio do desenho indica um estágio ras, particularmente nas tarefas que envolvem lin-
de (re)significação da linguagem. guagem, mostra-se aplicável a afásicos com prejuízo
Os estudos 3, 4 e 5 focam em opções alternati- na compreensão e/ou produção de respostas envol-
vas de comunicação dos afásicos, as quais não são vendo linguagem (ver MATOS; JESUS, 2011). Outra
propriamente linguísticas ou verbais. É notável em adaptação realizada para a população afásica é o
Sumário
Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve afásicos com seu desempenho nas tarefas linguís-
para pacientes com afasia expressiva – NEUPSILIN- ticas, incluindo grupos de faixas etárias e graus de
-Af (FONTOURA et al., 2011), que propõe formas escolaridade diferentes, apresentando uma descri-
alternativas e variadas de avaliação da comunicação ção bastante detalhada da topografia da lesão, tipo
e da cognição, com uma adequação de seus parâme- de afasia, escolaridade e o desempenho nos testes
tros de pontuação. linguísticos, bem como os dados sobre os partici-
O artigo 6 (SILAGI; HIRATA; MENDONÇA, pantes controle não afásicos. Contudo, os pesquisa-
2014) apresenta um estudo de caso com um pacien- dores afirmam não terem encontrado significância
te com afasia de Broca, com o objetivo de discutir, relevante entre a topografia das lesões e os dados
entre outras questões, o agramatismo como um dos dos testes linguísticos.
déficits morfossintáticos na produção de sentenças. Os estudos 6, 7 e 8 contribuem para uma ten-
As autoras apontam para a escassez de estudos den- dência internacional de utilização de dados de exa-
tro dessa temática no Brasil e alegam que a falta mes de neuroimagem estrutural, de estimulação
de homogeneidade entre os pacientes com agrama- transcraniana por corrente contínua e da topografia
tismo justifica que se façam estudos de caso com de lesão. Esses exames foram relacionados às ha- 813
foco na reabilitação do repertório gramatical dos bilidades que permaneceram após o acometimento
afásicos. O estudo faz um detalhamento, advindo de de AVE. Embora ainda embrionários no Brasil, estu-
dados de neuroimagem estrutural e funcional, sobre dos que se utilizam dos dados desses exames podem
os locais das lesões e a evolução do quadro de afasia. contribuir para a descrição e detalhamento da afasia
Por fim, os estudos 7 e 8 (SANTOS et al., 2013; na população brasileira.
SANTOS; GAGLIARDI; MAC-KAY, 2012) utiliza-
ram os mesmos instrumentos para caracteriza- CONSIDERAÇÕES FINAIS
ção das respectivas amostras, o Montreal Toulou-
se Battery (Alpha version), o Boston Naming Test Apesar de o número final de trabalhos selecio-
e o Verbal Fluency Test (FAS). Santos et al. (2013) nados para a realização deste estudo ser reduzido, é
utilizaram estimulação transcraniana por corrente possível ter uma visão geral e atualizada dos instru-
contínua a fim de induzir plasticidade e facilitar a mentos utilizados nas pesquisas e uma ideia sobre os
recuperação da linguagem em pacientes afásicos. Já aspectos linguísticos contemplados. Nesse contexto,
Santos, Gagliardi e Mac-Kay (2012) investigaram as equiparando-se a produção de pesquisa em afasia
relações entre a topografia das lesões cerebrais dos no Brasil à produção internacional – dada a impor-
Sumário
tância dos Estados Unidos e Europa nesse tema – te, para a realidade brasileira são: o de avaliação de
faz-se necessário não só produzir mais pesquisas, lesados de hemisfério direito MAC-BREVE (CASA-
como também considerar fatores como a escolarida- RIN et al., 2014); o de avaliação da afasia, Bateria
de, que pode influenciar nos resultados de testes lin- Montreal-Toulouse – MTL Brasil (PARENTE et al.,
guísticos. E, por fim, é preciso publicar, divulgando 2016); e o Instrumento de Avaliação Neuropsico-
e compartilhando dados, em bases internacionais e lógica Breve para pacientes com afasia expressiva
nacionais indexadas, possibilitando assim a amplia- – NEUPSILIN-Af (FONTOURA et al., 2011). Cabe
ção das pesquisas e conhecimentos dos dados. ressaltar que há restrições quanto à administração
No que diz respeito aos componentes linguísti- por linguistas ou fonoaudiólogos de certos testes de
cos avaliados, destaca-se que é preciso desenvolver, avaliação da linguagem e da comunicação na afasia,
adaptar, validar e/ou divulgar mais baterias, testes bem como os neuropsicológicos, o que implica a ne-
de avaliação da linguagem na afasia, bem como os cessidade de formação de equipes multidisciplina-
testes neuropsicológicos mais eficientes e necessá- res para as pesquisas em geral.
rios para uma avaliação cognitiva mais abrangente. Nesse sentido, acredita-se que o aspecto mais
Há uma dependência muito grande dos renomados importante a ser destacado é a necessidade da in- 814
testes internacionais traduzidos para o português terface de áreas distintas para estudar o tema. Cada
brasileiro e dos parâmetros de avaliação interna- área pode contribuir com sua especificidade para
cionais, fazendo com que, muitas vezes, os contex- um maior aprofundamento nos estudos em afasia.
tos educacional, demográfico, cultural e linguístico No entanto, reforça-se que a linguística pode ocu-
da população brasileira sejam ignorados. E, nesse par maior espaço nos estudos experimentais em
sentido, reforça-se o cuidado que se deve ter na afasia, colaborando com a medicina, a psicologia
adaptação – visto que aspectos como familiaridade, e a fonoaudiologia, que já têm tradição no tema. É
frequência, categoria das palavras, dentre outros, interessante formar uma equipe multidisciplinar e
influenciam nos resultados dos testes. Outro fato a dialogar sobre os dados encontrados sob óticas dis-
ser destacado é, por um lado, a existência de poucos tintas, considerando que essas áreas estão interes-
bancos de dados sobre a população acerca dessas sadas em facetas diferentes da afasia. Nesse contex-
características, e por outro lado, a pouca utilização to, Hübner (2015) destaca que a cooperação entre
e divulgação dos bancos existentes. essas áreas vem sendo cada vez mais amparada por
No que se refere aos testes mencionados ante- técnicas de imageamento estrutural ou funcional do
riormente, exemplos deles, adaptados, recentemen- cérebro, além das técnicas eletrofisiológicas e ele-
Sumário
tromagnéticas e de estimulação magnética trans- CHAPEY, Roberta (Ed.). Language Intervention in Adult
craniana. Sampaio, França e Maia (2015) destacam Aphasia and Related Neurogenic Communication Di-
sorders. Baltimore: Williams & Wilkins, 1996.
que a união dessas áreas pode corroborar e permi-
tir novas perspectivas aos modelos de computação CHAVES, Márcia. Acidente vascular encefálico: conceitua-
linguística. Portanto, é crucial o desenvolvimento ção e fatores de risco. Revista Brasileira de Hipertensão,
de mais pesquisas multidisciplinares para que haja 7(4), p. 372-382, 2000.
mais testes e baterias e, principalmente, mais dados
COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de narciso: Discurso
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Sumário
¹ Me. em Comunicação Social (PUC/RS), Jornalista (UPF/RS), Esp. em Jornalismo: Gestão de Novas Mídias (ESPM-Sul) e douto-
randa em Comunicação Social (PUC/RS). E-mail: samarakalil@gmail.com
Sumário
connection, today it has a multitude of other tools filosofia, um pressuposto é comum: “o jogo se acha
that provide a differentiated immersion, either with ligado a alguma coisa que não seja o próprio jogo,
motion sensors, virtual reality or mobile commu- que dele deve ter alguma espécie de finalidade bio-
nications, games that merge with their daily lives, lógica” (p.4). No entanto, esse caminho de análise
making it a great game and providing unique expe- não leva em consideração elementos que ele julga
riences related both to personal issues - body, heal- imprescindíveis no jogo e que estão relacionados à
th, nutrition, self-esteem - and social, as awareness, intensidade, como o prazer e a paixão dos jogadores.
environment, simulators and others.
A intensidade do jogo e seu poder de fascinação
Keywords: Serious Games. Porpouse Games. Ga- não podem ser explicados por análises biológi-
mes for Change. cas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fasci-
nação, nessa capacidade de excitar que reside a
própria essência e a característica primordial do
jogo. O mais simples raciocínio nos indica que a
INTROUÇÃO: JOGO É SÉRIO natureza poderia igualmente ter oferecido a suas
criaturas todas essas úteis funções de descarga
Os jogos e toda a sua complexidade de produção de energia excessiva, de distensão após um es- 819
nos dias atuais, utilizam de uma trajetória primitiva forço, de preparação para as exigências da vida,
de compensação de desejos insatisfeitos etc., sob
de construção, ligada ao comportamento dos seres a forma de exercícios e reações puramente me-
há milhares de anos. Huizinga (1971, p.3) ao teori- cânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria
zar sobre a natureza e o significado do jogo como e o divertimento do jogo (p.5)
fenômeno cultural, enfatiza características impor-
tantes dos jogos. Para ele, “mesmo em suas formas Huizinga (1971) defende o divertimento como
mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que essência do jogo e entende que ele é uma “realida-
um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. de autônoma”, imaterial e voluntária. Considera-o
Ultrapassa os limites da atividade puramente física em suas análises como um fator cultural da vida e
ou biológica”. O autor refere-se ao jogo como porta- busca entender por meio do valor e do significado,
dor de uma função significante, munida de sentido as imagens de realidade propostas que preenchem a
que “transcende as necessidades imediatas da vida e “imaginação”. Para tanto, um ponto que ressaltamos
confere sentido à ação”. de suas pesquisas é o conflito existente no senso co-
Dentro dessa ideia, Huizinga aponta que, nos mum de que o jogo “é uma função que facilmente
estudos sobre os jogos da área da psicologia ou da poderia ser dispensada, algo supérfluo. Só se torna
Sumário
uma necessidade urgente na medida em que o pra- to. Para ele, as tecnologias aplicadas na criação de
zer por ele provocado o transforma em uma neces- novos formatos demonstram o mesmo ímpeto do
sidade.” (p.10). A característica relacionada ao ima- passado. Segundo o autor, a história dos jogos ele-
ginário, ao “faz de conta”, exprime, de certa forma, trônicos tem início na concepção das primeiras má-
um sentimento de inferioridade. quinas de pinball e nos fliperamas. Entre as décadas
de 60 e 70 o jogo tomou outro rumo – o primeiro
Numa tentativa de resumir as características
formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma
dispositivo de jogos em televisão é criado em 1968.
atividade livre, conscientemente tomada como
(...) a partir da década de 70 os videogames vão
“não séria” e exterior à vida habitual, mas ao
começar a fazer parte da vida das pessoas. Mas
mesmo tempo capaz de absorver o jogador de
durante a década de 80 é que se começa a evi-
maneira intensa e total. É uma atividade desli-
denciar um cuidado com a criação de jogos. (...)
gada de todo e qualquer interesse material, com
Essa [Atari] vai ser uma empresa pioneira do
a qual não pode obter qualquer lucro, praticada
desenvolvimento do processo criativo de jogos,
dentro de limites espaciais e temporais próprios,
fazendo com que este se aproxime ainda mais da
segundo uma certa ordem e certas regras. (p.16).
forma de criação dos produtos midiáticos. (Pi-
nheiro, 2007, p.6). 820
Por essa perspectiva, entendemos o jogo como
elemento cultural que, presente ao longo do de- A ligação dos games com a comunicação de
senvolvimento da sociedade, evoluiu em diferentes massa e com o cotidiano das pessoas só se intensi-
frentes. Talvez o advento dos jogos eletrônicos e a fica com o tempo. E, segundo Pinheiro (2007), tem
sua explosão junto a indústria de entretenimento relação direta com as características técnicas – que
façam com que, até os dias atuais, ainda existam hoje são muito mais complexas – e as narrativas
barreiras relacionadas a sua seriedade. No entanto, exigidas pela demanda de novos jogos. O autor res-
é inegável que, o avanço da tecnologia, aliada a pro- salta que, apesar de historicamente marginalizado
dução de jogos eletrônicos, vem angariando espaços pela cultura ou fora do cenário “sério”, o jogo re-
cada vez mais significativos na vida das pessoas e, nasce nos anos de 1990, junto a um movimento de
a indústria de games, se ramificado em diferentes cultura pop. Por isso, quando pensamos em jogos,
áreas e para atender os mais diversos anseios. na maioria das vezes, pensamos em entretenimento,
De acordo com Pinheiro (2007), a indústria dos envolvimento e diversão/satisfação. E, sem dúvidas,
jogos eletrônicos está inteiramente ligada ao desen- é explorando essas características que as diversas
volvimento de toda a indústria do entretenimen- frentes da sociedade se apropriaram dos jogos para
Sumário
transmitir mensagens e diversificar seus canais de campo minado. Os “jogos sérios” ou serious games
comunicação. não objetivam ao entretenimento, mas sim a algum
Quando os jogos foram para as telas e puderam aspecto específico da aprendizagem – alguns exem-
fazer parte da vida das pessoas, eles entraram em plos aparecem em setores estratégicos da sociedade,
outra esfera. Com o advento da internet uma outra como segurança e educação. Os advergames mes-
porta se abriu. Caracterizados como uma mídia de clam características dos outros dois jogos para per-
entretenimento, passaram a contar com o elemento suadir e são comumente utilizados junto aos setores
da interação homem-máquina em rede. E mais re- de marketing e propaganda.
centemente, com a popularização do uso de smar- Todavia, é nos “jogos sérios” que focaremos
tphones e da comunicação móvel, ganharam ainda nossa atenção. Essa linha de jogos busca, de forma
mais força. específica e intencional, resultados de aprendiza-
gem, alterações de comportamento e desempenho
ENTENDENDO OS JOGOS SÉRIOS: GAMES dos jogadores.
FOR CHANGE
Este gênero de videojogos permite ao jogador
testar condições reais baseadas em situações 821
Os jogos, de uma forma geral, são muito efica- culturais, econômicas ou governamentais. Para
zes na transmissão de informações e sua natureza além do potencial de representar a realidade, os
multimídia e interativa potencializam isso. É nes- Jogos Sérios podem modelá-la através de simu-
lações. Este formato pode ser usado para repre-
se caminho que queremos intensificar nosso olhar, sentar a realidade não apenas numa junção de
pois existe uma vertente de jogos que usam da di- imagens e textos, mas como um sistema dinâmi-
nâmica do jogo tradicional para ir além do objetivo co no qual o utilizador pode intervir, sendo este
contido no jogo em si, fazendo do jogo, inclusive, processo conhecido como agenciamento (Mar-
ques, 2013, apud Pereira, & Carvalho, 2005: 478).
uma ferramenta de mudança social. Consideramos
três categorias de jogos online expostas por Marques Mitgutsch e Alvarado (2012, p.2) explicam que,
(2013 apud Derryberry, 2007), como importantes em a denominação “jogos sérios” ou serious games foi
se tratando de jogos com um propósito: jogos ca- cunhada por Clark Abt nos anos de 1970 e que na-
suais, ”jogos sérios” e advergames. O primeiro está quela época ele já defendia a ideia de que esse tipo
mais ligado ao entretenimento e sua aprendizagem de jogo, que nasceu com um propósito mais educa-
deve ser considerada um subproduto – um exem- cional, ligado às simulações, apesar de não terem
plo são os jogos de origem nos computadores, como
Sumário
uma concepção calcada no entretenimento, não é 1.Jogos para Entretenimento (ou Jogos de Trei-
sinônimo de chatice, muito menos desinteressan- no): Aqueles que têm como objetivo o treino do
jogador em relação a uma tarefa que ele vai de-
tes. Uma característica importante é que os “jogos sempenhar na vida real. 2. Jogos Educacionais:
sérios” estão em ambientes lúdicos com propósitos Aqueles que têm como objetivo a transmissão de
destinados a impactar os jogadores para além do ob- conhecimento ou treino específico. 3. Jogos Pu-
jetivo contigo no jogo”. Ao mesmo tempo, esse tipo blicitários (ou Advergames): Aqueles cujo obje-
tivo é transmitirem uma mensagem ou divulgar
de jogo busca ser agradável e eficaz e, por meio do um produto comercial. 4. Jogos de Simulação:
seu design, angaria resultados específicos de apren- Aqueles cujo objetivo é experimentar um deter-
dizagem focados em um objetivo. minado cenário, seja ele um cenário social, um
processo natural, um esquema de relações eco-
(...) pode-se argumentar que o que todos os jo- nómicas, entre outros. 5. Jogos Noticiosos (ou
gos sérios têm em comum não é seu conteúdo, a Newsgames): Aqueles cujo objetivo é informar
sua capacidade de persuasão ou a falta de entre- e refletir acerca de um evento real de grande ou
tenimento, mas sua finalidade orientada para o pequena relevância.
impacto. Jogos sérios são intencionalmente pro-
jetados para ter um impacto proposital na vida Mitgutsch e Alvarado (2012, p. 1) destacam
dos jogadores para além do objetivo contido no que a intenção nesses formatos geralmente é a de 822
jogo em si.
apresentar ideias, valores, persuadir o usuário e, até
Marques (2013) atenta para as características mesmo, influenciar pensamentos e ações em con-
vantajosas próprias dos jogos eletrônicos, como in- textos da vida real. De acordo com os autores, essa
teratividade e envolvimento, para ressaltar que nos modalidade ascendeu rapidamente na última déca-
jogos sérios elas podem ser utilizadas para melho- da, em especial, pela popularidade dos videogames
rar a qualidade de vida dos jogadores, ajudando-os e pelo desenvolvimento da tecnologia audiovisual
em uma consciência crítica, por exemplo. Diversos e da conexão.
jogos visam a conscientizar jogadores para determi- Jogos sérios são muitas vezes considerados bem-
nadas causas, que podem ir de questões ambientais -sucedidos se eles geram discussão e atraem a
e sociais até questões de saúde e políticas. O autor atenção - a qualidade do design do jogo ou o im-
retoma em sua pesquisa a classificação de Alvarado pacto real sobre os jogadores permanece prati-
camente despercebido. Muitas vezes, a sua "boa"
(2009, p.5) e destaca cinco tipos de “jogos sérios”. causa e conteúdo sério supera preocupações so-
São eles: bre sua capacidade real para evocar a aprendiza-
gem dos jogadores ou para impactar suas vidas.
(Mitgutsch e Alvarado 2012, p. 1).
Sumário
² O movimento Games for Change nasceu durante a conferência Serious Issues, Serious Games ("Problemas sérios, jogos sérios"),
realizada na Academia de Ciências de Nova York, em 8 de junho de 2004. Disponível em: http://www.gamesforchange.org/
about. Acesso em: 07 jun. 2016.
Sumário
simula a operação por um robô que precisa destruir incluídas no game. Esta abordagem é particu-
células cancerígenas e controlar efeitos colaterais larmente crítica em um jogo sério para a saúde,
onde o objetivo é ajudar o jogador modificar um
do tratamento dentro do corpo de um jovem doente. comportamento de saúde. (p. 809)
Outra linha destacada por Thompson (2012)
relacionada ao comportamento é a opção por pes- Thompson (2012, p.809) não descarta de forma
soalizar a experiência. “Segundo a teoria social cog- alguma o caráter divertido e interessante dos jogos,
nitiva, uma importante maneira de aprender uma uma vez que os jogadores esperam isso dos jogos.
nova habilidade ou comportamento é para realizá- “É essencial que os componentes de mudança de
-lo com sucesso a si mesmo”, com metas específicas comportamento e os recursos de entretenimento
e precisas que devem ser alcançadas no mundo real sejam perfeitamente integrados para alcançar um
e relatadas no mundo do jogo. De acordo com o equilíbrio entre diversão e seriedade”. Para ele, um
autor, a automonitorização e a revisão do objetivo jogo sério e divertido para a saúde provavelmen-
no mundo do jogo, com comentários específicos re- te motive e incentive um jogador continuar a jo-
lacionados com o desempenho provável facilita esse gar, em última análise, proporcionando uma maior
processo. O uso de avatares pode também ser uma oportunidade para a mudança de comportamento 824
técnica útil para a promoção do domínio pessoal. pela exposição crescente aos componentes de mu-
A observação do comportamento alheio é também dança de comportamento incorporados no game.
uma maneira de os jogadores entenderem os possí- No portal Games For Change, na categoria saú-
veis efeitos de suas escolhas sobre os outros e isso de, estão postados 28 jogos. Desses, escolhemos
pode ser aplicado a essa categoria de jogos com analisar o Zombies, Run!, um game que possui uma
tranquilidade. pontuação alta junto aos jogadores/público (9,7
pontos) e é executado em smartphones com sistema
Para atrair e manter a atenção, mensagens e op-
ções no jogo, especialmente em um jogo sério iOS ou Android. Além de ser possível experenciar o
para a saúde, devem ser adaptados às percepções, jogo, sem ser necessária a compra, o game destaca-
expectativas, problemas, soluções e situações dos -se pela quantidade de usuários: em 2015, no Brasil,
jogadores. A pesquisa formativa deve ser realiza- 15 mil estavam cadastrados. Isso representa 1% do
da ao longo do desenvolvimento para assegurar a
compreensão dos participantes e o apelo e pesso- total naquele ano.3 O jogo objetiva motivar o joga-
al relevância das mensagens, opções e atividades dor a se exercitar, basicamente.
7) Coerência e coesão do sistema de jogo: A ma- a tomada dos zumbis. Diversos personagens fazem
neira como os elementos se relacionam entre parte desse canal. A base informa objetivos, locali-
si e com o propósito do jogo. Oferece poten- zações de zumbis, alertas, incentivos e outros. Em
cial para um discurso crítico sobre a força e determinados momentos os zumbis seguem o joga-
as fraquezas de um jogo sério. dor via GPS ou acelerômetro no smartphone e ele
Mitgutsch e Alvarado (2012, p.7) constatam que precisa intensificar o exercício. Missões são passa-
a vantagem da aplicação da análise com o SGDA Fra- das ao jogador, que as executará fora dos muros da
mework é que um debate estruturado sobre os ele- base. Diversos sinais sonoros utilizados para aler-
mentos de design do jogo em relação a finalidade dos tar e informar o jogador de determinadas situações,
jogos é possível e oferece insights construtivos. Ou como por exemplo, se os zumbis estão próximos ou
seja, o objetivo do jogo precisa ser refletido em todo longe; o jogador vai, ao longo dos percursos, reco-
o sistema/projeto conceitual formal de forma coeren- lhendo itens e utilizando-os para fortalecer a aju-
te, caso contrário, haverá conflito. “O Quadro SGDA da vinda da base e para manter sua motivação para
propõe um quadro construtivo para avaliar “jogos jogar e exercitar-se. Há a possibilidade de acompa-
sérios”, mas ainda deixa espaço para diferentes in- nhar as estatísticas da missão e o progresso, além de 827
terpretações e deve ser entendida como um primeiro mapas das corridas.
passo que leva a ainda mais discursos”, ressaltam. Após essa breve apresentação, aplicaremos a
metodologia já ressaltada anteriormente do SGDA
ANALISANDO O GAME ZOMBIES, RUN! Framework, seguindo as categorias apresentadas,
descrevendo e analisando o que nos é pertinente
O jogo Zombies, Run!, está no portal Games for em cada uma delas para o todo do jogo. Na catego-
Change desde 24 de fevereiro de 2012. Já possui di- ria Propósito, identificamos que o jogo Zombie, Run!
versas versões e segue em atualização. O game uti- Objetiva a transformar o exercício em um jogo, in-
liza o mote da sobrevivência a um apocalípse zum- serindo o jogador em uma história fictícia. Dentro
bi para motivar o jogador a se exercitar – ele vira dessa ideia, e da esfera lúdica do jogo, esse objetivo
um personagem da história. Enquanto o jogador se está em conformidade com o tema do jogo: incentivo
exercita e escuta suas músicas preferidas, interfe- e motivação para exercitar-se. O impacto específico
rências/mensagens são transmitidas pela rádio da desse objetivo junto aos jogadores, no seu contex-
base Abel Township, como um rádio de ondas cur- to de vida, é o de melhorar seu desempenho físico,
tas, reportanto que está acontecendo na cidade após fazendo com que toda a dinâmica e a coerência do
Sumário
sistema do jogo circundem esse ponto – o jogador ele passa de fase – e vai para a próxima missão. Um
fica imerso na narrativa, buscando garantir a sobre- objetivo maior dentro do jogo, além de garantir a
vivência por meio de missões em uma cidade toma- própria sobrevivência, é o de auxiliar na constru-
da por zumbis. Como a ideia é correr/caminhar/me- ção da base central, onde os sobreviventes estão se
xer-se, a experiência de jogo acontece, basicamente, reunindo e de onde a rádio faz suas transmissões.
pelo som. O jogador pode ajustar o tempo que vai Dentro dessas missões, existe um sistema de re-
realizar o exercício, dentre outros ajustes. compensa, que faz com que o jogador empolgue-se
Em relação ao Conteúdo e informação, podemos para continuar jogando, obstáculos, que podem ser
separar em duas situações, aquilo que é transmitido exemplificados pela orda de zumbies que a qualquer
pela rádio e aquilo que o jogador pode acessar via momento podem atacar o jogador e itens que são
smartphone, no aplicativo. Pela transmissão via rádio, coletados ao longo do exercício, que podem ser uti-
destacamos que, nessa comunicação, está a base do lizados dentro do próprio jogo. As missões podem
game e, principalmente, o envolvimento do jogador ter seu tempo e sua quilometragem ajustadas pelo
com a narrativa. Além de chamadas para ação e in- jogador. A cada nova temporada do jogo – já está
centivos, são canalizadas nesse espaço as descrições na quinta – aproximadamente 40 diferentes missões 828
das missões a serem realizadas, os alertas de zumbis são adicionadas, com inúmeros roteiros e desafios.
e outras situações. O ambiente sonoro criado para a Ainda vale ressaltar que é possível se conectar com
imersão é bem completo e chama atenção pela rique- outros usuários por meio do prórpio aplicativo ou
za de detalhes. Tanto informações quanto conteúdos compartilhar em outras redes sociais.
são apresentados por meio da rádio e de interferên- A Ficção e narrativa do Zombies, Run!, ligada
cias audíveis constantes, mantendo o jogador infor- ao conteúdo e as possibilidades dentro do jogo, faz
mado sobre a situação do local. Dentro do aplicativo com que o jogador sinta-se imerso em um mundo
do jogo é possível visualizar mapa por geolocaliza- no qual os zumbis estão atacando e é preciso, literal-
ção, estatísticas, desempenho relacionado à missão/ mente, correr para sobreviver. O interessante é que,
atividade física e outras infomações complememen- a presença e o envolvimento no mundo ficcional -
tares, como suprimentos coletados, situação da base, o contato com a base, o personagem, o auxiliar na
missões, artefatos encontrados e suprimentos. construção de um espaço e a desbravar a cidade que
Sobre a Mecânica do jogo, ou as regras do jogo, foi dominada pelos zumbis – são um reflexo do que
identificamos que a cada tempo de exercício, mis- se está fazendo fora (exercício), auxiliando, de certa
sões são dadas ao jogador e, que ao completá-las, forma, na criação na narrativa. A história é baseada
Sumário
na ideia de que os zumbis estão dominando o pla- jogo um filão para qualquer público, no entanto, é
neta. Existem sobreviventes, e o jogador é um deles. a sua mecânica de fácil compreensão e a facilidade
Além do jogador, outros personagens aparecem via de instalação e uso. Os desafios são equilibrados e
base, pelo rádio. Diversos problemas são distribu- atraentes e, realmente, empolgam o jogador.
ídos nas missões. Poderiamos pesar que dentro de Em relação a Coerência e coesão do sistema de
um todo, pequenas histórias são desenvolvidas. jogo, entendemos que em conformidade com o pro-
Sobre a Estética e gráficos do jogo – linguagem pósito e a finalidade do jogo, todos os elementos
audiovisual – por se tratar de um jogo para utiliza- encontram-se interligados para uma experiência
ção em smartphone, sem que o usuário consulte a de jogo diferenciada. Tanto o conteúdo quanto sua
todo tempo, há uma utilização e uma ambientação contextualização ficcional não esquecem do real ob-
através do som com muito mais ênfase. A contextu- jetivo do jogo. Diante dessas relações, destacamos a
alização se dá através do áudio da base, onde outros força do jogo para uma mudança de comportamen-
sobreviventes estão. Diálogos entre outros sobre- to e uma motivação ao exercício.
viventes e impressões sobre o espaço também são
apresentadas por meio desse canal. Cada nova fase CONSIDERAÇÕES FINAIS 829
ou nova missão começa com as instruções. Mesmo
assim, as telas e as opções dentro do aplicativo, as- Quando idealizamos esse artigo, queríamos es-
sim como os gráficos, são bem-construídos e de fácil tudar como aconteceu ao longo do tempo a inte-
navegabilidade – informações importantes podem ração corpo-videogame-games. Passamos a enten-
ser consultadas por ali. der como os jogos são ricos para os mais diversos
No Enquadramento do game, observamos que o setores e como eles podem auxiliar no cotidiano
tema pode, em um primeiro momento, afastar pos- das pessoas e influenciando ou motivando-as para
síveis jogadores. A ideia de um mundo com zumbis determinadas ações. A partir de uma breve revisão
parece casar bem com aficcionados por histórias bibliográfica, fizemos um recorte sobre o porquê,
com essa temática ou com pessoas mais curiosas, muitas vezes, os jogos não são considerados sérios.
mas também pode parecer muito espetaculosa para A partir daí, direcionamo-nos para uma esfera mais
outros. Imaginamos que o público-alvo seja tanto específica, pensar os “jogos sérios” relacionando-os
pessoas sedentárias, que precisam de uma motiva- com aplicativos voltados para a área da saúde.
ção, quanto pesoas que já se exercitam e que gosta- Ao analisarmos o Zombies, Run!, constatamos
riam de ter uma experiência diferente. O que faz do que a essência do jogo ressaltada por Huizinga não
Sumário
é perdida. Além do divertimento, o game permite COSTA, Rachel. A dica dos britânicos para sair do seden-
um preenchimento da realidade com o lúdico, com tarismo é um app para ‘correr de zumbis’. Disponível em:
<http://brasileiros.com.br/2015/08/correr-de-zumbis-sera-es-
um objetivo específico e sério relacionado ao com- te-o-futuro-fitness>. Acesso em: 20 jun. 2016.
portamento. Identificamos, ainda, que nesse caso, o
objetivo encontra-se ao longo de todo o jogo. O ca- FREIRE, Raquel. Zombies, Run! estimula usuários a se exer-
ráter fitness e de incentivo ao exercício, promovidos citar através de jogo Disponível em: <http://www.techtudo.
por uma narrativa envolvente e muito diferente de com.br/tudo-sobre/zombies-run.html>. Acesso em: 20 jun.
2016.
qualquer aplicativo ou jogo do gênero, são trabalha-
dos no projeto com muito êxito. HUIZINGA, Johan. Natureza e Significado do Jogo como
Percebe-se ao desmembrarmos os itens do qua- Fenômeno Cultural. In: HUIZINGA, Johan. Homo ludens.
dro SGDA que as conexões foram desenhadas e as São Paulo: Perspectiva, 2000. 4ª edição. Disponível em: <ht-
tps://dl.dropboxusercontent.com/u/66600754/huizinga_lu-
propostas calcadas em uma demanda comporta-
dens.pdf>. Acesso em 07 jun. 2016.
mental real (pessoas que precisam de incentivo para
se exercitarem). O jogo transformou a necessidade HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da
em um desafio dentro da sua lógica e com os seus cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971.
830
mecanismos. Os recursos de entretenimento atuam
LOURES, Renata Rocha. Zombies, Run! Disponível em:
como componentes de mudança. A chance de o jo- <http://www.aplicativosdesaude.com.br/zombies-run-aplica-
gador voltar ao jogo é muito grande, o que aciona tivo-para-corrida/>. Acesso em: 20 jun. 2016.
diretamente o objetivo.
MARQUES, Pedro Dias. 2013 (32-39) Jogos Sérios: Fer-
ramentas do Novo Jornalismo. 24 de maio de 2013. 515
p. Dissertação – Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa,
REFERÊNCIAS 2013. Disponível em: <https://www.repository.utl.pt/bits-
tream/10400.5/6172/2/Dissertac%CC%A7a%CC%83o_Pedro_
ALVARADO, Narda; MITGUSCH, Konstantin. Purposeful by Marques.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2016.
Design. A Serious Game Design Assessment Model. IN-
TERNACIONAL CONFERENCE ON THE FOUNDATIONS ORIN, Andy. Behind the App: The Story of Zombies, Run!
OF DIGITAL GAMES, 2012, Anais… Nova York: ACM New Disponível em: <http://lifehacker.com/behind-the-app-the-s-
York, 2012. Disponível em <http://gambit.mit.edu/readme/ tory-of-zombies-run-1632445358>. Acesso em: 07 jun. 2016.
academic_papers/fdg2012_submission_82-1.pdf>. Acesso
em: 07 jun. 2016. PINHEIRO, Cristiano Max. A história da utilização dos
games como mídia. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
Sumário
831
Sumário
Seli Blume Alles (Feevale)1 Abstract: The teaching of literature and language
Juracy Assmann Saraiva (Feevale)2 is the central theme of this article. It intends to pre-
sent a new approach to the reading practice of lite-
Resumo: O ensino de literatura e língua é o tema rary texts in high school. Theories supporting the
central do presente artigo, que visa apresentar uma research deal with the reading and its functions, the
nova abordagem de prática de leitura de textos lite- role of literature and also its teaching approach in
rários no ensino médio. As teorias que sustentam the classroom. From the theory, a possibility for li-
a pesquisa versam sobre a leitura e suas funções, terary text approach is proposed to the fostering of
o papel da literatura, e o ensino de literatura em literary reading performed by youngsters through 832
sala de aula. Partindo da teoria, propõe-se uma pos- reading scripts from stories, and building a blog to
sibilidade de abordagem de textos literários para o record the activities performed. In addition, there
estímulo da leitura de textos literários pelos jovens, is a focus on the daily lives of youngsters towards
por meio de roteiros de contos e da construção de their reading habits and interests added to digital
um blog, para registro das atividades realizadas. So- technologies presented in the contemporary world.
mado a isso, a abordagem enfoca o cotidiano dos The research aims to show there are other possibili-
jovens, considerando seus hábitos de leitura e in- ties to work with literature, which goes beyond the
teresses, além de valer-se das tecnologias digitais periodization and the work with literary fragments.
que se fazem presentes no mundo contemporâneo. Keywords: Reading. Literature. Tales. Teaching.
¹ Mestranda do Mestrado Profissional em Letras, da Universidade Feevale, Especialista em Educação: Espaços e possibilidades
para a Educação, pelo Instituto Federal Sul-Rio-Grandense- IFSUL, Graduada em Letras Português/ Inglês, pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
² Pós-doutorado em Teoria da Literatura, professora e pesquisadora da Universidade Feevale e do CNPq.
Sumário
interesses pessoais, diverte, transforma. (BLOOM, Como se verifica, as funções da leitura são vá-
2001) “[...] ler é realmente participar mais crítica e rias, pois ela é algo essencial tanto no que se relacio-
ativamente da comunicação humana”. (SILVA, 1987) na ao conhecimento, quanto ao que se refere à vida
LAJOLO (2002) enfatiza que “ninguém nasce do ser humano. O ato de ler articula-se ao sucesso
sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. escolar, propicia instrumentos que favorecem a in-
Portanto, as vivências, o meio e o que fazemos e teração mais significativa entre sujeitos, pois leva a
buscamos é o que enriquece ou não o nosso repertó- discussões críticas, e à compreensão do lugar do eu
rio, nossa visão de mundo. Ainda conforme LAJOLO e do outro na sociedade, possibilita a instalação de
(2000) “em nossa cultura, quanto mais abrangente a diferentes pontos de vista, que contribuem para a
concepção de mundo e de vida, mais intensamente formação de um ser humano mais crítico, original e
se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve autêntico. (SILVA, 1987)
começar na escola, mas não pode (nem costuma) No ato da leitura, o leitor está exposto a um plu-
encerrar-se nela. Somado a isso, JOUVE (2002) de- ralismo de significados, que fazem com que, ao fina-
fine a leitura “[...] como uma atividade de antecipa- lizar a leitura, esteja diferente em relação ao que era
ção, de estruturação e de interpretação”. no início. Fato que se pode equiparar com um dito 835
A leitura para BLOOM (2001) é um hábito pes- popular que diz que ninguém se banha duas vezes
soal, que leva à reflexão, à avaliação e à transfor- no mesmo rio. Assim, também ocorre com o texto
mação. “Uma das funções da leitura é nos preparar literário: cada vez que for lido, haverá um novo di-
para uma transformação, e a transformação final álogo entre leitor e texto, pois novas nuanças, antes
tem caráter universal”. (BLOOM, 2001). Isso ocorre não percebidas, se tornam evidentes, mesmo se o
por que as experiências decorrentes da leitura re- texto for o mesmo, por que o leitor se transforma.
fletem-se sobre a conduta do sujeito leitor e, conse- O ato de mergulhar neste universo literário de-
quentemente, na sociedade. pende de muitos fatores, desde a acessibilidade ao
entendimento da essência da literatura, até a capa-
As experiências conseguidas através da leitura,
além de facilitarem o posicionamento do ser hu-
cidade de compreensão do leitor. No momento em
mano numa condição especial (o usufruto dos que ela se torna realmente significativa, é que o leitor
bens culturais escritos, por exemplo), são, ainda, passa a buscar avidamente por mais conhecimento. E
as grandes fontes de energia que impulsionam é esse despertar para a leitura de textos literários que
a descoberta, elaboração e difusão do conheci-
mento. (SILVA, 1987, p. 38).
se torna necessário estimular na sala de aula, pois a
literatura é fundamental na formação do ser humano.
Sumário
ENSINO DE LITERATURA EM SALA DE Para tanto, Saraiva (2005) enfatiza que “[...] a
AULA aprendizagem da língua materna e a experiência da
leitura de textos literários devem progredir pari passu,
Como parte do acesso cultural, a literatura não porque ambas se completam e se associam formando
pode estar desvinculada da língua, visto que ela se um conhecimento único”. Todavia, vale ressaltar que
utiliza das palavras para fazer arte. Portanto, o ensi- os textos literários não devem servir exclusivamente
no da língua e da literatura deve caminhar junto, ser como um meio de estudo da língua, porque o ensino
uma única via, mantendo uma relação de unidade, da língua não deve se ater somente a esta modalida-
para formar um leitor competente, com habilidades de, mas servir-se também da pluralidade de gêneros
que permitam perceber o que não está explícito nos e de discursos, no processo de aprendizagem.
textos literários. Conforme Saraiva, Superada a divisão entre o ensino de língua e de
literatura, o que fazer do ou com o texto literário em
a separação do ensino da língua e da literatura
se alicerça em duas perspectivas aparentemente
sala de aula é uma dúvida frequente. Além disso, os
opostas, mas que têm em comum a compreensão professores queixam-se de que os alunos não leem,
equivocada de que as manifestações da língua e que consideram os textos literários difíceis de serem 837
a literatura se situam em campos distintos, sen- compreendidos, em função da linguagem.
do tão-somentes produtos acabados, e não um
processo de produção de sentido. (SARAIVA,
Muitas são as propostas de projetos de leitura
2005, p.46). elaborados e aplicados, permeados de boas inten-
ções, mas que não é o suficiente para lhe dar com a
A construção de sentido na literatura está liga- superficialidade com que os clássicos da literatura
da à compreensão da língua. Assim como o escritor são trabalhados em sala de aula.
necessita de técnicas e sensibilidade para escrever, De acordo com Lajolo (2002, p. 14)
também o leitor precisa desses recursos para conse-
Propor palavras cruzadas, sugerir identificação
guir abstrair o máximo do texto. Portanto, conhecer com uma ou outra personagem, dramatizar tex-
a língua e fazer o uso adequado dela permite ao lei- tos e similares atividades que manuais escolares
tor se aproximar do texto literário. Sob esse enfoque, propõem, é periférico ao ato da leitura, ao conta-
o papel do professor é de mediar o diálogo do aluno to solitário e profundo que o texto literário pede.
Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não
com o texto literário, desenvolvendo sua capacidade tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer
linguística, para que a leitura seja significativa. de nossas aulas.
Sumário
Assim, embora o texto literário possa integrar- tor, o ato da leitura exige procedimentos de análise,
-se ao ensino da língua, isso não é o suficiente para compreensão e interpretação que não se restringem
transformar alunos em leitores. É preciso que o pro- à reconstituição de uma mensagem, passível de es-
fessor procure inserir o cotidiano do aluno, para que gotar-se na apreensão superficial de seus significa-
ele se identifique e se encontre no texto literário. dos”. (SARAIVA, 2006)
A interação entre texto e leitor deve ser mediada
UMA POSSIBILIDADE DE ABORDAGEM DE pelo professor, pois o aluno, que se inicia no univer-
TEXTOS LITERÁRIOS so literário, nem sempre consegue preencher as la-
cunas do texto e compreender o explícito e alcançar
Os interesses e temáticas comuns ao cotidiano o implícito. A falta de domínio do processo comu-
dos alunos são uma boa opção para o trabalho com nicativo do texto literário pode implicar a não com-
textos literários na disciplina de literatura. As letras preensão, ou até o estranhamento que leva o leitor
de canções, filmes, seriados e programas de televisão, a desistir da leitura, devido à dificuldade encontrada
por eles apreciados, e até mesmo romances “água no que se refere às lacunas textuais e à linguagem.
com açúcar”, podem servir de ponto de partida para Em uma obra literária, há muitas significações 838
chegar aos textos literários de escritores brasileiros. explícitas e outras tantas, implícitas, cabendo ao lei-
Despertar o interesse dos alunos é fundamental para tor a percepção do que está dito ou não dito, o que o
que se tenha uma participação ativa em sala de aula. obriga a dialogar constantemente com o texto. Jauss
Somado a isso, atividades de leitura que envolvam (1979) ressalta que a relação dialógica texto e leitor
contos, podem ser uma boa escolha em detrimento ocorre devido à carga cultural e vivências que ambos
da leitura de obras literárias mais amplas, para um possuem. Tanto o leitor quanto o texto estão carre-
público que não tem o hábito da leitura. gados de trajetórias e influências de textos e de lei-
O trabalho com a literatura nas escolas, muitas turas diferentes. E essa carga, esse baú de tesouros,
vezes, é direcionado somente a periodização e ao que é a bagagem cultural do leitor, interfere direta-
estudo de textos fragmentados, apresentados, em mente na recepção de uma obra literária e, ainda, no
grande parte, nos livros didáticos. Além disso, a in- prazer que o processo dialógico pode proporcionar.
terpretação é deixada por conta do livro didático, O baú de tesouros pode ser rico ou pobre. Isso está
sem uma preparação prévia do professor, que limita diretamente ligado à prática leitora do leitor.
o estudo do texto literário, prejudicando a interação Segundo Saraiva (2006, p. 37),
texto-leitor. “Para que ocorra a simbiose texto-lei-
Sumário
a leitura do texto literário é um exercício que Na elaboração dos roteiros de leitura é conside-
pressupõe comportamentos antagônicos: por rada a realidade da turma onde serão aplicados, com
um lado, ela exige do leitor a fidelidade à inten-
ção do texto, que determina o ponto de partida base na pesquisa previamente realizada acerca de
das interpretações, deixando, porém, uma mar- suas práticas de leitura e sobre seu leque de interes-
gem para a imprevisibilidade; por outro, ela pre- ses. Somado a esse contexto, busca-se contemplar
vê a liberdade de interpretação do leitor e a in- as mais variadas tecnologias, como ferramentas de
fluência de sua historicidade no ato que realiza.
aprendizagem, pois as TICs3 se fazem presente no
Sob esse enfoque, o ensino de literatura, a par- cotidiano dos jovens.
tir de contos de autores consagrados da literatura O registro de todo processo de leitura e pro-
brasileira, tais como Machado de Assis, Rubem Fon- dução, sugerida pelos roteiros, é feito em um blog,
seca, Sergio Faraco, Jane Tutikian, Dalton Trevisan onde os alunos são os autores juntamente com o
entre outros, propõe-se um trabalho com roteiros professor, deixando as marcas de suas leituras e
de leitura, que se organizam em três etapas nortea- produções para posteriores estudos e análises. Os
doras. A primeira é a atividade introdutória à recep- alunos se tornam autores não só do blog, mas tam-
ção do texto, depois vem a leitura compreensiva e bém do registro de sua formação como leitores. 839
interpretativa e a terceira etapa é a da transferência
e aplicação da leitura. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta metodologia se baseia nos estudos de Sa-
raiva (2006) e visa contemplar vários aspectos, como As teorias sobre a temática deste artigo são vá-
o desempenho do professor; a clareza de critérios na rias, e muito ainda precisa ser feito em relação à
seleção dos textos; a leitura voltada para a explora- abordagem dos textos literários em sala de aula. Por
ção e produção textual; o envolvimento do contexto mais que grande parte dos professores busque con-
educacional; o uso de estratégias diversificadas para templar os textos literários, ainda o fazem de forma
o estimulo à leitura e à apreensão da significação do superficial. A tarefa não é fácil, mas se torna neces-
texto. Todos os textos selecionados tratam da ques- sária quando se objetiva formar leitores de literatu-
tão da violência e seguem os aspectos acima rela- ra brasileira, que façam valer seu direito à literatu-
cionados, conforme a metodologia da autora citada. ra, parte de sua herança e da história da sociedade
em que estão inseridos.
841
Sumário
¹ Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (UFRGS), Mestre em História (UFRGS), Especial-
ista em História do Brasil (UFF), Jornalista (UFRGS). Sinara.sandri@gmail.com
Sumário
a fotografia do século XIX. Naquele momento, a sença e vítima, a circulação de fotografias retratan-
fotografia não seria apenas uma representação do do os campos ampliaria a importância da imagem
visível, seria uma forma de tornar visível, como par- como testemunho.
te do esforço contemporâneo de desvelamento do
A partir das fotos dos campos no momento de
mundo e da luta contra o obscurantismo. Esta agen- sua liberação, a parcela cada vez maior do visu-
da do invisível só seria rompida com o surgimento al no testemunho (‘As fotos não mentem’, dizia
do modernismo e da fotografia do século XX, mo- o editorial de 26 de abril de 1945 do Stars and
mento em que a superação do choque pelo novo e o Stripes) é constitutiva de sua autenticidade e de
sua verdade. As fotos republicadas desde então
entediamento da sociedade moderna teria o instan- na imprensa por ocasião das comemorações, as
tâneo – fetiche da interrupção - como instrumento fotos nas exposições e nos museus. Essas fotos
de uma nova percepção da realidade. que, a partir de então, são a referência para me-
Além disso, ao longo do século XX, a testemu- dir o horror. Quanto mais cercado e encurralado,
mais o real parece escapar. (HARTOG, 1999).
nha ocupa um lugar novo ao ser vista como porta-
dora de memória. Segundo Hartog, a reflexão sobre Além da questão do testemunho, a fotografia
testemunho parte da centralidade de Auschwitz e também deve ser analisada como suporte e projeção 844
do Holocausto. O plano de extermínio previa a su- de memória. Fernando Catroga analisa a relação da
pressão das testemunhas e dos vestígios do crime, memória e da história e observa que a recordação é
por isso o testemunho assumiu um lugar crucial e uma possibilidade de atribuir novos futuros ao pas-
colocou-o em primeiro plano. O velho imperativo sado. A memória é ativa e a recordação não resulta
de checar a versão de duas testemunhas deixa de da oposição ou separação entre passado, presente
vigorar dando lugar ao esforço de permitir que cada e futuro. Toda retrospectiva seria uma pretensão já
uma conte sua história. A passagem a primeiro pla- que o passado enquanto memória participaria da
no muda a noção de testemunha, principalmente edificação do futuro.
diante do fato de que o peso de testemunhar é ainda Na formulação do autor, a memória tem neces-
mais forte em um acontecimento sem possibilidade sidade de liturgias próprias, centradas em reaviva-
de atestação partilhada, pois os que sobreviveram mentos, motivados por traços que são vestígios do
não encontram parceiros de experiência. passado. Como o conteúdo da memória é insepará-
Neste contexto, além da testemunha deixar de vel dos seus campos de objetivação e transmissão –
ter como expectativa transformar-se em historia- linguagem, imagens, relíquias, escrita, monumentos
dor para reivindicar seu reconhecimento como pre-
Sumário
- não haveria memória coletiva, sem suportes ritu- Estados-Nação buscavam legitimação, resgatando
alisticamente compartilhados. E qual suporte seria um passado –em atitude típica da antiga aristocra-
mais adequado a rituais de compartilhamento que cia – ou construindo rapidamente uma procedên-
a fotografia? A partir de reminiscências comuns, cia, tarefa que encontrou na fotografia uma enorme
criam-se sentimento de pertencimento que ligam aliada capaz de gerar uma posteridade imediata e
os indivíduos verticalmente – a grupos ou entida- criar um novo circuito de pertencimento, muito evi-
des – e em uma vivência horizontal e encadeada no denciado pela ampla circulação de retratos e vistas
tempo (subjetivo e social) que integra cada existên- urbanas e paisagens.
cia numa “filiação escatológica” garantida pela re-
produção (sexual e histórica) das gerações e por um FOTOGRAFIA E CIDADE
ideal de sobrevivência da memória dos vivos.
O italiano Virgílio Calegari chegou a Porto
A raiz da memória mergulha, portanto, num ‘es-
paço de experiência’ aberto tanto à recordação
Alegre, em 1881, aos 13 anos. Aprendeu a profis-
como às expectativas, horizonte que o recebe são com fotógrafos experientes e, no início do sé-
como herança e como possibilidade de se vencer culo XX, era considerado o principal retratista da 845
a morte, num jogo ilusório que finge esquecer pequena capital, justamente em um período em que
que, tarde ou cedo, também os mortos ficarão
órfãos de seus próprios filhos. (HARTOG, 1999).
a cidade vivia uma longa sucessão de governos de
orientação positivista e esforçava-se em constituir-
O autor observa que a seleção do passado é feita -se como urbe moderna. Como fotógrafo, participou
sob condicionantes, em um processo psicológico em de vários eventos e foi premiado em concursos na-
que as escolhas são acompanhadas do que se deseja, cionais e internacionais, sendo reconhecido como
de forma consciente ou não, esquecer. Na moderni- exemplo de sucesso entre os imigrantes na América.
dade, este processo ocorreria no âmbito da família Para Santos (1998, 30), estes prêmios colaboraram
e sublinhamos novamente a presença da fotografia para gerar uma “aura civilizatória” em torno do seu
no rol de artefatos que assumem grande impor- nome e de sua ligação com a Europa.
tância também em ambiente privado. Além disso, Em Porto Alegre, o processo de reforma urbana
o aparecimento da fotografia marca o século XIX, não teve a mesma intensidade que o vivido nas cida-
considerado como século da memória e da constru- des que serviram como referência para o processo
ção das nacionalidades, momento onde a ideia de de modernização. Mesmo em escala menor, foram
Nação toma corpo. Indivíduos, classes e os novos oferecidos à população elementos para perceber a
Sumário
capital como metrópole, ancorando este desejo em Belém Velho, igualam e por vezes superam em im-
marcos edificados que funcionariam como uma re- portância os marcos da cidade construída. Seu in-
presentação simbólica da modernidade. Na cidade teresse não estava dirigido apenas à materialidade
que sonhava ser moderna e atualizada, o trabalho do espaço urbano e não deixou escapar o que hoje
de Calegari perpetuou o progresso e ajudou a pro- convencionamos chamar de patrimônio cultural
jetar um futuro, mas foi igualmente atento à cidade imaterial. Na cidade que ia sendo modificada, ativi-
que desaparecia. O desafio enfrentado pela elite na dades como o movimento nas docas do mercado e o
pequena capital sulista era incorporar os padrões trabalho de carga e descarga junto à ponte de pedra
de urbanidade, em um processo tensionado pela do Arroio Dilúvio, antes da retificação, fariam parte
intensa presença de aspectos marcadamente rurais de um passado retido como memória de vivências já
fundadores da sociedade gaúcha. Na capital, o dile- impossíveis na urbe modernizada. Retido também
ma era o fato da intervenção humana ter resultados como imagem.
aquém da intensa beleza natural da cidade2. Neste inventário do imaterial, não ficou restrito
Calegari observou de forma sistemática as à apresentação de “tipos” peculiares do cenário lo-
transformações de Porto Alegre, repetiu tomadas cal, como gaúchos, carreteiros, viajantes colonos e a 846
e registrou a evolução da conformação urbana em precariedade dos ranchos habitados pela população
locais como o bairro Menino Deus e a Praça Mare- pobre. Na sua atividade como retratista, registrou a
chal Deodoro, confirmando o interesse particular e presença de personagens e hábitos que não faziam
o investimento pessoal do fotógrafo no tema, trans- parte do código de comportamento autorizado pela
formando-o em um leitor privilegiado da cidade e onda modernizante. Em alguns momentos, o fo-
uma fonte importante para estudos históricos. Na tógrafo tentou representar setores não integrados
sua longa trajetória de apreensão e interpretação da sem assinalar de forma negativa seu descompasso
cidade, algumas evidências que puderam ser reco- com o ritmo do desejado progresso.
lhidas permitem assinalar que ao recortar a nature-
za para transformar a geografia da capital em pai-
sagem, construiu imagens bucólicas que, em casos
como as vistas feitas a partir do rio e da série sobre
² Apesar do aumento da edificação no “quadriênio glorioso” (1910-1914), o Plano de Melhoramentos (1914), considerado o
marco de instalação de modernidade em Porto Alegre, precisou ser reeditado em 1927 e, com exceção da abertura da Avenida
Borges de Medeiros, as grandes obras propostas só foram realizadas entre 1938 e 1943.
Sumário
cia e a função que ocupava não passaram desper- zou uma profissão em vias de extinção e ofereceu
cebidas pelo fotógrafo. Longe da imagem do exóti- a possibilidade de salvar do esquecimento algumas
co, o retrato de Mãe Rita poderia ser tomado como vítimas inevitáveis do progresso e da modernidade.
exemplo da preocupação do autor com personagens,
hábitos e modos de viver existentes na cidade.
Dessa foram, apesar de um desejo manifesto de ______. Rastros na paisagem: a fotografia e a proveniên-
adequar-se aos novos padrões, a cidade não tinha cia dos Lugares. Grupo de Trabalho Comunicação e Expe-
riência Estética. XX Encontro da Compós, na Universidade
chegado a uma síntese de modernidade eficaz, tanto Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
do ponto de vista do volume de espaços moderni-
zados quanto da constituição de uma visualidade HARTOG, François. A testemunha e o historiador. In
urbana necessária para consolidar estes ideais. Esse PESAVENTO, Sandra (org). Fronteiras do Milênio. Porto
descompasso é percebido pelo fotógrafo e aparece Alegre: UFRGS, 1999.
em suas imagens. SANDRI, Sinara. Um fotógrafo na mira do tempo. Porto
Na pequena capital do início do século, Virgílio Alegre, por Virgilio Calegari. Dissertação de mestrado.
Calegari operava uma máquina capaz de produzir PPG História UFRGS. Porto Alegre, 2007.
um passaporte para a modernidade, mas em mo-
SANTOS, Alexandre Ricardo dos. O gabinete do Dr. Calegari
mentos substanciais de sua obra parece ter os olhos
: considerações sobre um bem-sucedido fabricante de ima-
e objetivas apontados para o passado. Calegari vi- gens. In. Achutti, Luiz Eduardo. Ensaios sobre o fotográfi-
veu e fotografou uma cidade que não era e faltava co. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Porto Alegre, 1998.
muito para parecer moderna. Em um presente em- 850
penhado em construir o futuro, parece estranhar o
novo mundo e volta-se para trás, imortalizando es-
paços e vivências condenados ao desaparecimento.
REFERÊNCIAS
¹ Doutor. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade, Universidade de Caxias do Sul,
Caxias do Sul-RS. susanagastal@gmail.com
² Graduando do curso de Bacharel em Turismo no Programa de Hospitalidade, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul-
RS. Bolsista IC-CNPq. fzsa@ucs.br
Sumário
³ Optou-se por utilizar a palavra de forma abrasileira, pois, a mesma já se encontra dicionarizada.
Sumário
a objetos cotidianos ou com diferencial artístico. A mesmo raciocínio poderia ser aplicado a objetos mais
pesquisa baseia-se em revisão de literatura. singelos, cotidianos e anônimos, como uma canção
O texto a seguir inicia por discutir o conceito de ninar, o pão ou o sanduíche, todos integrados ao
‘cultura’, já em associação aos ditames da Economia que temos denominado como cultura.
Criativa, para depois percorrer as construções de A Economia Criativa, de certa maneira, in-
sentidos de ‘memória’, pois este seria o significado corpora tal significação da Cultura, ao destacar a
implícito no suvenir. Na parte seguinte, retomam-se criatividade como diferencial a ser valorizado [eco-
‘cultura’ e ‘memória’, para discutir as possibilidades nomicamente] no trabalho de produção de bens
da expressão suvenir cultural. e serviços. A ênfase no valor mercado, antes cen-
trada na materialidade do produto final, passa a
CULTURA E MEMÓRIA considerar os aspectos intangíveis do fazer, assim,
valorizando-o. No caso brasileiro, os saberes estão
Em textos anteriores (GASTAL, 2012) propôs-se, destacados quando a então Secretaria da Econo-
seguindo Bosi (1992) e outros, que a definição de Cul- mia Criativa4 propunha a diversidade cultural entre
tura implicaria a presença de expressões materiais ou seus princípios norteadores, ou seja, a valorização, 853
imateriais, em ambos os casos resultante do trabalho proteção e promoção dos saberes e fazeres locais,
de alguém e significativas de saberes e fazeres huma- não se restringindo aqueles dos grupos hegemôni-
nos acumulados, que os gera mas que também nelas cos ou eruditos. Como registrado nos documentos
se marca. Por fim, tais expressões devem apresentar oficiais, a diversidade cultural “não deve mais ser
valor simbólico para um determinado grupo. Um compreendida somente como um bem a ser valo-
exemplo seria a Mona Liza, resultado de dois anos rizado, mas como um ativo fundamental para uma
de trabalho de Leonardo da Vinci, que a pintou en- nova compreensão do desenvolvimento. [...] Assim,
tre 1503 e 1504. Mas o trabalho também foi possível seja na produção de vivências ou de sobrevivências,
graças aos avanços pictóricos, ao aperfeiçoamento a diversidade cultural vem se tornando o ‘cimento’
das telas e do quadro de cavalete como suporte, e do que criará e consolidará, ao longo desse século, uma
desenvolvimento de tintas e pigmentos. Hoje, a pin- nova economia” (BRASIL, 2012b, p. 19).
tura de Leonardo agrega alto valor simbólico, mas o
⁴ A Secretaria da Economia Criativa foi Instituída pelo Ministério da Cultura através do decreto 7743/2012 e extinta em 12 de
maio de 2016.
Sumário
Essa diversidade cultural atua como forma de teram a importância da tecnologia para impulsionar
diferenciar os bens e serviços artesanais, pois cada tanto a produção como a acessibilidade aos produ-
técnica, saber ou fazer são coletivos a um grupo, tos e serviços o que, certa forma, vem na contramão
suas características únicas levando a que não haja de outro dos princípios da mesma proposta, qual
produtos parecidos. Na atualidade tal situação se ex- seja, a inclusão social como forma de gerar emprego
pande, pois, as “veias globais de distribuição da pro- e renda. As palavras do autor De Marchi (2014, p.
dução cultural impulsionam a criatividade de atores 194, tradução dos autores) reforçam essa preocupa-
sociais que buscam diferenciar seus produtos viven- ção, quando afirma ser importante promover “dife-
do a localidade de sua cultura”. (COSTA, 2006, p. 3). rentes setores produtivos que possuam como deno-
Poder-se-ia acrescentar, ainda, que a Economia minador comum a capacidade de gerar inovação a
Criativa está associada às definições mais contempo- partir de um saber local, agregar valor simbólico a
râneas de Cultura, passando a ser “entendida como bens e serviços, além de gerar e explorar direitos de
algo mais amplo que a arte, acolhendo um conjunto propriedade intelectual”.
de crenças, costumes, valores e hábitos adotados por Retomando os fazeres e saberes, estes se cons-
sociedades ou grupos de pessoas. Esse insumo cultu- troem ao longo do tempo e são transmitidos, de di- 854
ral é empregado como fator de diferenciação e mes- ferentes maneiras, de geração em geração, sendo
mo de inovação” (LIMA, 2011/2012, p. 12) e, preten- ato contínuo associá-los à memória. Esta tem duas
de-se, em um novo modelo econômico. A inovação origens etimológicas, que podem contribuir para
era outros dos itens na proposta oficial brasileira, melhor entendimento do proposto no âmbito des-
entendendo-se por tal, por um lado, a capacidade de te artigo: memor, do latim, refere aquele que lem-
gerar novos produtos ou aperfeiçoar os já existentes, bra5. A lembrança está presente no convívio social
ou seja, ampliar e valorizar os fazeres e saberes. e aquele que lembra, lembra de algo, o que é fun-
Ainda seguindo a proposta brasileira, a inova- damental para manutenção dos processos sociais.
ção também deverá estar presente no identificar Outra derivação remete à mitologia greco-romana,
oportunidades de produção [fazeres e saberes] e co- na figura da “deusa Mnemosyne, mãe das Musas,
mercialização e, seguindo a construção teórica aqui que protegem as Artes e a História” (CHAUI, 2000,
proposta, agregar valor simbólico aos mesmos. Os p.159). Olhando por essa segunda perspectiva, am-
discursos associados à Economia Criativa ainda rei- plia-se a questão, pois se colocam as formas de ex-
pressão, como a escrita e poesia, o desenho e a pin- tangível o que seria, caso contrário, apenas um es-
tura, o artesanato, o design e a arte, sob o manto da tado intangível7” (GORDON, 1986, p. 135), que desta
memória, já que “a deusa Memória dava aos poetas forma "ajuda a localizar, definir e congelar no tempo
e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lem- uma experiência passageira, transitória, e trazer de
brá-lo para a coletividade” (Idem). volta para experimentar algo ordinário da qualidade
Ambas as derivações apresentadas têm como de uma experiência extraordinária8” (Idem).
base o lembrar; no “francês se souvenir, significa-
ria um movimento de ‘vir de baixo’: sous-venir vir SUVENIR CULTURAL
à tona o que está submerso” (BOSI, 1994, p.47). A
memória seria um afloramento do passado, trazi- A pós-modernidade – ou o momento e a for-
do pela lembrança, estando ligada a percepção do ma de expressão cultural do capitalismo avançado
sujeito, que para Bosi significaria uma concepção (JAMESON, 1996) – traz como marca novas percep-
de passado a ser incorporada ao presente. Outra ções em termos de tempo e espaço; a hegemonia
perspectiva interessante, trás que o venire, do latim, do urbano; e uma nova maneira de ver e tratar a
teria como raíz o indo europeu ‘gwa’, significando cultura. Em termos temporais, a vivência de novos 855
andar e/ou vir, daí passando para o grego bainein tempos acelerados e simultâneos sobrepõe-se ao
também como caminhar6, e permitindo associar o tempo cíclico marcado pelas forças naturais e mes-
suvenir ao movimento, ao deslocamento e à viagem. mo ao tempo cronológico, objetivado pelo relógio e
Os viajantes teriam sido os primeiros sujeitos a pelo calendário. Quanto ao espaço, a ligação direta
ter interesse em manter vivas as memórias, no caso, com o território é substituída pela ideia de espaços
as ‘lembranças de viagens’, caracterizadas como su- globalizados, anulando distâncias e o reduzindo ao
venir. Elas se associam ao turismo de forma mais in- tempo necessário para percorrê-las (GASTAL, 2006)
trínseca na Modernidade, quando as viagens ganham Sob o paradigma pós-moderno, as concepções e
expressão e envolvem maior número de pessoas. O tipologias intituladas como ‘Cultura’ foram amplia-
suvenir “como um objeto real, concretiza ou torna das. Em termos temporais, porque não apenas os
bens centenários são reconhecidos como expressão A produção industrial permite que o suvenir
patrimonial-cultural significativa, haja visto os pré- seja fabricado em quantidade e velocidade (que a
dios dos neomuseus – caso do Guggenheim espa- produção manual não alcança), mas também que
nhol ou do Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre passe a contar com a intervenção do desenho in-
–, prontamente incorporados como signos do pa- dustrial e do design. Entretanto, tanto no artesana-
trimônio local. Tipologicamente, porque se rompe to-suvenir como no suvenir-turístico propriamente
com caracterizações tradições de expressões como dito, mantêm-se a marcas do lugar e da identidade
‘arte maior’, ‘cultura erudita’, ‘cultura popular’, para do local, ou, nas palavras de Santana (1997), o cono-
tratá-las, de forma direta, como bem cultural. Outra tar simbolicamente a área visitada. Ou seja, consti-
alteração importante é o reconhecimento e incorpo- tui-se como concentração de memória sobre o lugar,
ração aos discursos, dos bens imateriais, incluindo a qual se soma uma segunda camada de rememora-
entre outros, saberes, fazeres, falares, sotaques, gas- ção: a experiência pessoal da viagem do turista.
tronomia e intervenções de design. Mas, cada vez mais, a suvenir turístico será cons-
Neste contexto, o artesanato transforma-se no tituído não num deslocamento de função – sua fun-
objeto turístico (SANTANA, 1997 p. 63). Para o turis- ção original, desde sua concepção, será a de objeto 856
ta que o adquire, além de ser a expressão da cultura turístico –, mas em um deslocamento semiótico,
visitada, ele significaria recordação, uma memória no qual abandona o significado, para construir-se
da memória: um objeto memorialístico a alimentar como significante. Ou seja, neste deslocamento, o
a memória da viagem, no retorno ao lar. Mas, se ob- objeto recua na sua função de significar a identida-
jeto turístico, ele deverá também se adequar às con- de local, para passar denotar simbolicamente a área
tingências do viajante, ou seja, ser pequeno, barato, visitada, ou seja, tornar-se um significante, uma in-
não demasiadamente exótico, além de conotar sim- tensidade significativa da experiência única realiza-
bolicamente a área visitada, para cumprir a função da por cada turista, na visita ao local. As alterações
recordatória (Idem, p. 100). Nasce o suvenir que, na na percepção do tempo e, portanto nas concepções
Modernidade, desenvolver-se-á em paralelo ao ar- de memória, trazendo novo olhar sobre a Cultura (e
tesanato, primeiro como cópia em série e miniaturi- sobre as viagens), levam a que o suvenir transcen-
zada da peça original, mas, depois – e hoje, cada vez da o turismo e se faça presente em novas situações,
mais – ganhando independência do artesanal para entre outras, agora associado à Economia Criativa.
tornar-se o objeto turístico por excelência.
Sumário
Mais recentemente, à experiência acumulada que não o tenha como temática. Sacolas e embala-
pelo artesanato suvenir e pelo suvenir turístico, gens charmosas, peças tão cobiçadas como o pró-
agrega-se o que se denomina, no âmbito deste ar- prio objeto adquirido, se encarregaram de instituir
tigo, como suvenir cultural, que poderá estar asso- e ou reforçar a construção memorialística. Escalona
ciado, mais precisamente, a uma instituição cultural também destaca os percursos das relíquias buscadas
ou a uma cidade, sem ter como consumidores prio- pelos peregrinos medievais, talvez um momento
ritários, necessariamente, o turista. Os souvenires importante na proto história do suvenir:
institucionais talvez tenham no grupo Disney, sua
La común concha de un molusco se transforma
primeira grande visibilidade. A corporação Disney en reliquia de la peregrinación a Santiago, y hoy
apresentaria cinco grandes áreas de negócios: Cine- en objeto de comercialización, reproducción en
ma, Entretenimento [onde estão os parques], Tele- diferentes formato y material, y marca del itine-
visão, Música e Produtos e Serviços, onde se inclui rario en puentes, bifurcaciones, pueblos y alber-
gues, sirviendo de logotipo y guía del ‘Camino’.
a criação de suvenires e de outros produtos com a La comercialización de los recuerdos representa
marca da empresa. As cinco áreas atuam com fortes diferentes memorias de distintas personas en
sinergias, “dentro da ideia de ‘magia da simbologia’ una sociedad de consumo en donde se intenta 857
[onde] absolutamente tudo que é da Disney fala mediante un producto reproducir una experien-
cia: la infancia del hijo mediante la metalización
dela mesma, de forma que quem é responsável por del chupete o la botita; la reunión empresarial,
montar e manter a imagem da empresa em vigor regalando un objeto de escritorio con el logotipo
é ela mesma, através de seus produtos e serviços” de la firma, y el congreso científico mediante la
(SOUZA, 2012, p. 3). consiguiente carpeta, además de la variedad de
pins, pegatinas, imanes, gorros, camisetas, etc.,
Outro momento dessa nova inserção do suve- que conlleva la celebración de cualquier evento
nir, mais uma vez pela sua visibilidade midiática, foi deportivo o cultural (ESCALONA, 2006, p. 402).
à introdução da Pirâmide como área de comerciali-
zação, no complexo do Museu do Louvre, pois, “bajo Gordon (1986, p. 139), propõe uma diferencia-
la misma se ofrece un gran complejo de tiendas que ção e caracteriza os souvenires a partir do ponto de
permite adquirir reproducciones, libros, souvenirs, vista memorialístico; segundo ela, quando se acres-
sin entrar en el museo. El significado espacial viene centa ‘souvenir de...’, cria-se uma memória do local
determinado por donde se vende […]” (ESCALO- visitado, o que o leva a classificá-los em: (a) Picto-
NA, 2006, p. 402), o que transforma em objeto me- rial Images9, incluindo cartões postais, fotos, livros,
morialístico associado ao Museu, mesmo um livro etc; (b) Pieces-of-the-rock são objetos salvos do meio
a considerar outros parâmetros para sua sustenta- BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças dos velhos.
bilidade, mesmo quando frente a proposta sem fins São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
lucrativos. Para isso, enquanto conceitos, produção BRASIL. Ministério da Cultura. Secretaria da Economia
e comercialização, o suvenir cultural, como propos- Criativa. Relatório da economia criativa 2010: economia
to nestes estudos iniciais, mostra sua qualidade e criativa uma opção de desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cul-
possibilidades de estudos, em múltiplas derivações. tural, 2012a.
O grupo Disney sinaliza caminhos, assim como
______. Plano da Secretaria da Economia Criativa: polí-
a experiência da Pirâmide do Louvre e de outros ticas, diretrizes e ações, 2011 – 2014. Brasília: Ministério da
grandes Museus. Mas o importante é considerar que Cultura, 2012b.
a memória – e o colecionismo de objetos que ajudem
a demarcar momentos, lugares e agora instituições CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Áti-
ca,2000. Disponível em: http://home.ufam.edu.br/anderson-
– é parte integrante do modo de ser contemporâ-
lfc/Economia São Paulo _Etica/Convite%20%20Filosofia%20
neo. Assim, poderíamos dizer que estamos qualifi- -%20Marilena%20Chaui.pdf. Acesso em: 10 fev. 2016.
cando o antigo colecionismo de cartazes de cinema,
de programa de teatro ou mesmo dos tickets de in- COSTA, Aline de Caldas. Rumo à Economia Criativa: Arte-
859
gresso, com novos objetos memorialísticos. A área sanato e Turismo em Itabuna. In: SEMINÁRIO DE PESQUI-
SA EM TURISMO DO MERCOSUL,4., 2006, Caxias do Sul.
cultural precisa tratar dessas questões com carinho, Anais... Caxias do Sul: UCS, 2006. Disponível em: <http://
para que não sejamos vítimas de intervenções pu- www.ucs.br/ucs/tplSemMenus/eventos/seminarios_semin-
ramente mercadológicas, que ao invés de ampliar a tur/semin_tur_4/gt07>. Acesso em: 25 AGO 2016.
presença do fato cultural, precarizam a sua inserção
no rol das memórias pessoais e coletivas. DE MARCHI, Leonardo. Analysis of the Secretariat of the
Creative Economy Plan and the transformations in the
relation of State and culture in Brazil. Intercom, Rev. Bras.
REFERÊNCIAS Ciênc. Comun., São Paulo , v. 37, n. 1, p. 193-215, 2014.
ALMEIDA, Isabele Oliveira; SALAZAR, Viviane Santos; LEI- ESCALONA, Emilia García. De La relíquia al souvenir. Re-
TE, Yákara Vasconcelos Pereira. Consumidor colecionador vista de Filología Románica, v. 4, p. 399-408, 2006.
de pratos da boa lembrança. Rosa dos Ventos – Turismo e
Hospitalidade, v. 6, n. 1, p.76- 86, 2014. GASTAL, Susana. O tempo na tissitura pós-moderna:
entre o museu-acontecimento e o souvenir-memória, 2012.
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Com- Anais... Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.
panhia das Letras, 1992. br/pdfs/82485475616077616163715567597342740708.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2016.
Sumário
rities and differences of the creative process. In ad- velopment, defende-se que a indústria criativa é ca-
dition to the literature review, this study took place paz de gerar novos empregos e renda, promovendo
through participatory observation and not partici- a diversidade cultural e o desenvolvimento humano,
patory by monitoring a job at an advertising agency o que, por fim, é capaz de promover o crescimento
and advertising of Porto Alegre / RS, from briefing econômico e o desenvolvimento (HANSON, 2012,
to delivery of the final creative product to the cus- p.224). No Brasil, segundo dados do Sistema FIRJAN
tomer. Finally, we used the comparative research to de 2014, o Produto Interno Bruto (PIB) da indústria
detect the similarities and differences of the creative criativa cresceu 69,8% no período de dez anos, ge-
process in different sectors of the agency. rando um PIB de R$126 bilhões ao ano.
Keywords: Creative process. Advertising. Creativi- Neste contexto inegável de crescimento econô-
ty. Creative Industries. mico e desenvolvimento encontra-se a publicidade
como um dos setores mais representativos da indús-
tria criativa, pela sua própria natureza de transfor-
INTRODUÇÃO mação da criatividade em um produto criativo com
alto potencial de comercialização e geração de valor 862
O presente artigo tem por objetivo descrever econômico.
como se dá o processo criativo em uma agência de Portanto, pelo anteriormente exposto e pelo
publicidade e propaganda, sendo este um segmento reconhecimento de que, como defende Howkins
compreendido pelas indústrias criativas. (2013, p. 14) um produto criativo com valor eco-
De acordo com Bendassoli, Wood, Kirschbaum nômico reconhecível é resultado de uma atividade
e Cunha (2008), nos anos 90 o termo indústrias cria- criativa, este trabalho tenta elucidar, num primei-
tivas foi cunhado para agrupar os setores nos quais ro momento, questões sobre o talento criativo. Na
a criatividade é matéria prima primordial. Para sequência a investigação procura identificar onde
Howkins (2013, p.12) esta indústria é o resultado do (em que setores) e de que maneira se dá o processo
talento individual e da exploração econômica deste criativo em uma agência de publicidade e propagan-
talento, gerando valor e riqueza em forma de um da, para então passar para a observação das pecu-
produto criativo. Já em estudo realizado pela UNC- liaridades, semelhanças e diferenças desse processo
TAD – United Nations Conference on Trade and De- criativo nos diferentes setores da agência.
Sumário
⁴ Do original: “creativity is a mental phenomenon that results from de application of ordinary cognitive processes”.
Sumário
O processo criativo segundo Howkins ções acumuladas ao longo da vida, que dizem res-
peito às emoções. O primeiro é o conjunto de in-
Este estudo é baseado no conceito de HOWKINS formações sobre o produto ou serviço e a intenção
(2013, p.37-38) para processo criativo, que é o con- que o departamento de marketing tem a respeito de
junto dos cinco itens explicados a seguir: como aquele produto ou serviço deve se posicionar
- Exame: é o processo de avaliar e questionar diante do seu público alvo. A segunda é o conjunto
atentamente as ideias e coisas. de vivências que o publicitário traz consigo. A asso-
- Incubação: é o tempo de repouso necessário ciação das vivências (emoções) ao briefing (razão) é
para a maturação das ideias. o que faz a diferença na mensagem publicitária.
- Sonhos: é deixar que a mente vagueie livre- O autor explica que não existe fórmula para ser
mente, aberta a influências externas, aos devaneios criativo e sim uma forma de agir, aberta a todo tipo
e ao desconhecido. de informação e a reflexão:
- Entusiasmo: é a permissão da impulsividade
A criatividade é um estado latente em todos nós;
e da intuição, das respostas sem reflexão anterior, não a ignorássemos tanto, não a desprezássemos
sem se preocupar com a sensatez. tanto, não a maltratássemos tanto, provavelmen- 864
- Cair na real: é a volta à realidade, depois dos te muitos mais de nós comporíamos o palco das
sonhos e intuições. É dar-se conta de onde se está e pessoas chamadas iluminadas. Pode-se dizer que
iluminado é aquele que não deixa faltar em sua
analisar se as respostas que surgiram são coerentes lamparina o combustível que alimenta a chama.
ao problema inicial. (VIEIRA, 2001, p. 19).
O autor ressalta que não existe uma ordem lógi-
ca no processo criativo, as etapas acontecem de acor- Sant’anna (1998, p. 147) concorda com o fato de
do com o modo de pensar e agir de cada indivíduo. não existirem fórmulas na propaganda, mas acre-
Por fim, o resultado de todo esse processo po- dita que algumas práticas podem estimular o pen-
derá tomar a forma de um produto provido de valor samento criativo, tais como ter clareza sobre qual
comercial, o produto criativo. problema a publicidade precisa resolver; procurar
obter o máximo de informação possível em torno do
O raciocínio criativo na publicidade tema; desenvolver número razoável de alternativas
para resolver o problema; estabelecer prazos condi-
Vieira (2001, p.17) trata o processo criativo na zentes com o trabalho e realizar atividades que esti-
publicidade como a soma de dois tipos de dados: o mulem a imaginação.
briefing, parte racional do processo, e as informa-
Sumário
Na segunda etapa do trabalho, identificaram-se mento que foram criadas todas as cenas do audiovi-
os itens exame, quando foi apresentado o briefing sual, incluindo o texto da narrativa e a descrição das
do trabalho à dupla de criação; incubação quando situações vividas pelos personagens que, através da
os criativos refletiram sobre o problema a ser resol- sua atuação como super-heróis e dos seus super-
vido; sonhos no momento em que a dupla realiza o poderes, passarão a mensagem de eficiência que o
brainstorming; entusiasmo quando as ideias foram cliente quer transmitir aos seus colaboradores.
apresentadas e defendidas para o head de criação; e Aqui se verificou a ocorrência dos itens sonhos
cair na real quando a ideia criativa foi discutida com e entusiasmo quando da criação das personagens e
o produtor gráfico, que propôs formas de viabilizar situações do roteiro, e exame e cair na real quando o
o trabalho dentro do prazo e da verba disponíveis. redator redige o texto, atentando para que o conteú-
Para encerrar esta segunda etapa, os criativos do desejado seja transmitido, seja factível dentro da
defenderam a ideia criativa e formatos propostos linguagem aprovada pelo cliente (animação) e fique
para o audiovisual ao atendimento, aqueles dando dentro do limite de tempo pré-estabelecido para o
argumentos para que este possa “vender” a ideia ao audiovisual (dois minutos de duração).
cliente. 867
Etapa 5: apresentação e ajustes do roteiro
Etapa 3: apresentação da ideia criativa
O material é, mais uma vez, apresentado ao
Nesta etapa, que consistiu na apresentação ao cliente, que avalia questões como forma, conteúdo
cliente da ideia criativa e formas de produção da e pertinência com o briefing.
mesma, não se deu o processo criativo, e sim a ar- Neste momento do trabalho começa a aconte-
gumentação do atendimento sobre o resultado final cer uma sucessão de alterações no material. A fim
de todo o processo: o produto criativo em forma de de tornar mais claro o fluxo do trabalho e sua aná-
sinopse do audiovisual. lise, faz-se aqui o registro dessas várias alterações,
porém não se descreve todas elas. Não cabe aqui
Etapa 4: desenvolvimento do roteiro analisar o motivo dessas alterações (que podem
acontecer devido ao briefing incorreto e/ou incom-
Após aprovação da ideia criativa pelo cliente, pleto, produto criativo que não obedece ao briefing,
o trabalho voltou para a pauta do redator para que mudança de briefing no decorrer do trabalho, defesa
fosse redigido o roteiro do audiovisual. É neste mo- inconsistente do material apresentado, entre outras
Sumário
razões), e sim o impacto delas no processo criati- Etapa 7: apresentação e ajustes do storyboard
vo. O que se vê é que, diante dos vários pedidos do
cliente de inclusão e supressão de informações e O storyboard foi apresentado ao cliente, que so-
mudanças no estilo e técnica do roteiro, o processo licitou alguns ajustes. O trabalho foi alterado pelo
criativo cessa, transformando-se em uma atividade diretor de arte consecutivas vezes, até sua aprova-
quase burocrática de realizar os ajustes solicitados. ção definitiva. Idem ao item 5, como os ajustes soli-
O trabalho “mecânico” segue até que o roteiro seja citados foram totalmente direcionados pelo cliente
totalmente aprovado pelo cliente. Portanto, pelo e apenas executados pelo diretor de arte, considera-
acima exposto, não se detectou a ocorrência do pro- -se inexistente o processo criativo nesta etapa.
cesso criativo na realização da maioria dos ajustes
ocorridos nesta etapa. Etapa 8: finalização do storyboard
Toda a evolução do trabalho foi sendo apresen- Etapa 11: entrega do material
tada ao produtor eletrônico e à dupla de criação na
medida em que ia sendo realizada. Desta forma a Após correções pontuais, o material foi entre-
agência supervisionou e influenciou no trabalho gue ao cliente e exibido no evento ao qual se desti-
durante todo o processo. nava.
Nesta etapa observou-se a ocorrência dos itens
ETAPA DO DEPTO DA AGÊNCIA ITENS DO PROCESSO
exame e cair na real, da parte da dupla de criação e TRABALHO ENVOLVIDO CRIATIVO*
do produtor eletrônico que conduziam o trabalho Briefing Atendimento Exame
criativo da produtora, e os itens sonhos, entusiasmo, Criação
Atendimento | dupla de Exame | incubação | sonhos |
criação | produtor eletrônico entusiasmo | cair na real
exame e cair na real durante o processo de anima-
Apresentação
ção, edição e sonorização do audiovisual realizado da ideia criativa
Atendimento Não ocorreu o processo criativo
872
Sumário
“A GENI” MORA AQUI?!: FEMINISMOS das e tratadas. Objetivamos com essa reflexão mul-
E VIOLÊNCIAS tiplicar os olhares, sentidos, lacunas e possibilida-
des destas ações, a fim de multiplicar iniciativas de
GENI LIVES HERE?! FEMINISMS AND VIOLENCES combate à invisibilidade a violência cotidiana que
meninas e mulheres são submetidas diariamente,
Tatiana Marques da Silva Parenti Filha (UFRGS)1 numa sociedade em que “Geni” somos todas em al-
Tatiane Plentz (SMEE)2 gum momento de nossas vidas, com vistas a cons-
Kênia Carvalho da Silva (SMEE)3 trução de uma sociedade equânime.
Palavras-chave: Relações de gênero. Escola. Vio-
Resumo: O presente texto trata-se de uma reflexão lências. Relações de poder.
sobre as diferentes formas de violência que mulhe-
res têm vivido reiteradamente em nossa sociedade, Abstract : This text it is a reflection about the diffe-
bem como algumas ações que realizamos para des- rent forms of violence that women have repeatedly
naturalizar tais situações. Selecionamos duas situ- been living in our society, as well as some actions
ações ocorridas em ambiente escolar que intitula- we take to denature such situations. We selected two 873
mos cenas da vida de Geni para descrever, analisar situations that occurred in school environment that
e problematizar, multiplicando olhares, sentidos das have entitled scenes Geni's life to describe, analyze
relações de poder envolvidas nas cenas. A partir de and problematize, multiplying viewpoints, sense of
tais análises organizamos um colóquio para ampliar power relations involved in the scenes. From the-
a discussão acerca das diferentes formas de violên- se analyzes organized a colloquium to broaden the
cia a que mulheres são submetidas diariamente. No discussion about the different forms of violence to
colóquio propomos pensar junto com os diferentes which women are subjected daily. In the conference
sujeitos, instituições e setores sociais os trânsitos e we propose to think along with the different indi-
as formas como as mulheres têm sido vistas, pensa- viduals, institutions and social sectors transits and
the ways in which women have been seen, thought
¹ Mestre em Educação (UFRGS), doutoranda em Educação (UFRGS), especialista em Culturas Juvenis, Subjetividade e Educação
(UNILASALLE), licenciada em Filosofia (UNISINOS) tatianafilha@gmail.com
² Licenciada em Pedagogia (UNINTER), Curso Normal (Instituto Estadual de Educação Professor Pedro Schneider) e Assessoria
pedagógica SMEE. taty.aplentzs@gmail.com
³ Bacharel em Direito (ULBRA), Magistério (LA SALLE) e Assessoria pedagógica SMEE. kenia.carva@hotmail.com
Sumário
and treated. We aim with this reflection multiply (2003, p.175), “não se dá, não se troca nem se retoma,
the looks, way, gaps and possibilities of these ac- mas se exerce, só existe em ação, como também da
tions in order to multiply to combat invisibility ini- afirmação que o poder não é principalmente manu-
tiatives everyday violence that girls and women are tenção e reprodução das relações econômicas, mas
subjected daily, in a society where "Geni" we are all acima de tudo uma relação de força”. De maneira ge-
at some point in our lives with a view to building an ral, os/as profissionais que trabalham na instituição
equitable society. escola pouco propõem reflexões relacionadas a tais
Keywords: Gender Relations. School. Violences. conflitos em seu cotidiano, contudo, proliferam-se
Power Relations. no contexto escolar situações que revelam violên-
cia simbólica, práticas discriminatórias e, em casos
extremos, agressões físicas, verbais e evasão escolar.
CENAS NO CONTEXTO ESCOLAR: FACES Intitulamos a presente reflexão “A Geni estuda
DA “GENI”: UMA INTRODUÇÃO aqui?!”: Reflexões sobre gênero no contexto escolar
em alusão à música “Geni e o Zepelin”, de Chico Bu-
Somos professoras da rede municipal de Esteio. arque de Holanda, composta para o musical Ópera 874
Atualmente trabalhamos como assessoras pedagógi- do Malandro, do mesmo autor, lançado em 1978. A
cas da Secretaria Municipal de Educação e Esportes letra descreve a história de Geni, uma travesti que
(SMEE), sendo requisitadas por equipes diretivas era hostilizada na cidade onde vivia: “Dá-se assim
e educadores/as4 para auxiliar tanto na reflexão, desde menina na garagem, na cantina, atrás do tan-
quanto nos encaminhamentos de situações envol- que, no mato. É a rainha dos detentos, das loucas, dos
vendo conflitos decorrentes de questões de gênero lazarentos, dos moleques do internato. E também vai
e sexualidade no contexto escolar. Para este texto, amiúde com os velhinhos sem saúde e as viúvas sem
selecionamos duas situações ocorridas na rede mu- porvir. Ela é um poço de bondade e é por isso que a ci-
nicipal de ensino que intitulamos cenas, para descre- dade vive sempre a repetir: Joga pedra na Geni! Joga
ver, analisar e problematizar, multiplicando olhares, pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de
sentidos e relações de poder em tais situações. Onde cuspir! Ela dá pra qualquer um!
o poder, a partir do pensamento de Michel Foucault
⁴ Por uma posição política e teórica escrevemos as palavras com terminação indicada para o masculino seguida de barra e a
terminação indicada para o feminino por uma questão de representatividade de gênero.
Sumário
Maldita Geni! ”. A cidade é visitada por um Ze- Nesta perspectiva, trazemos à tona duas cenas do
pelin que destrói os lugares por onde passa. Ocorre cotidiano escolar. Aparentemente cenas desconectas
que o comandante se encanta com os dotes de Geni, e independentes. Mas se analisadas com mais cuida-
e esta acaba sendo, provisoriamente, tratada de um do, podemos perceber a estreita relação entre estas
modo diferenciado pelos seus detratores. Assim é cenas, Geni e tantos outros corpos femininos, todos
convencida a ter relações sexuais com o comandan- os dias acusados, acuados, agredidos e explorados.
te do Zepelin, em troca de poupar a cidade da des- As cenas escolhidas para descrever e proble-
truição: “Acontece que a donzela (E isso era segredo matizar esta reflexão tratam de situações distintas
dela) Também tinha seus caprichos e ao deitar com ocorridas em duas escolas da rede municipal. Em
homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre, ambas, os conflitos não foram desencadeados por
preferia amar com os bichos. Ao ouvir tal heresia a atitudes das alunas envolvidas, contudo, no decorrer
cidade em romaria foi beijar a sua mão. O prefeito de dos encaminhamentos, foi atribuída a elas a centra-
joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com lidade dessas situações. Tais encaminhamentos fo-
um milhão: Vai com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, ram pautados em concepções moralistas, machistas
Geni! Você pode nos salvar. Você vai nos redimir. Você e sexistas, haja vista que o machismo se manifesta 875
dá pra qualquer um Bendita Geni!” Passada a amea- de diversas formas: desde uma palavra que ofende,
ça, ela retorna ao seu dia-a-dia normal, voltando a menospreza e/ou inferioriza a pessoa - pelo fato de
ser tratada como alguém que merece todo tipo de ser mulher - até formas de violência consideradas
mau trato: “Num suspiro aliviado ela se virou de lado mais graves como a violência física, sexual e patri-
e tentou até sorrir; Mas logo raiou o dia e a cidade em monial (Balestrin, 2007).
cantoria não deixou ela dormir. Joga pedra na Geni! Na descrição das cenas selecionadas para de-
Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa senvolver essa reflexão as meninas posicionadas
de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! ” como protagonistas de tais situações foram julga-
Essa narrativa fictícia demonstra o grau de in- das e, por isso, as denominamos, respectivamente,
tolerância e hipocrisia relacionado à sexualidade, como “Geni Um”, por se tratar da aluna protagonista
em especial à feminina. Enquanto servindo às ne- da primeira cena descrita que denominamos “Geni
cessidades sociais, o corpo feminino é valorizado e no banheiro da escola” e “Geni Dois”, a aluna pro-
destacado. No momento em que se torna livre e au- tagonista da segunda cena que intitulamos “A es-
tônomo, deixa de ser “bendito” e passa a carregar o colha e o julgamento de Geni”. Não poderíamos, no
peso e a cobrança da “moral” e dos bons costumes. entanto, dar início a descrição e problematização de
Sumário
tais cenas sem situar a palavra protagonista. Segun- nojo dela e que não ia ficar com ela. E ela ficou
do o dicionário Houaiss, de língua portuguesa, por com raiva e saiu do banheiro correndo e beijou
o primeiro guri que encontrou no pátio. Só que
protagonista (s.m e s.f) “compreende-se pessoa que o guri que ela fez o “boquete” contou pra todo
possui um papel relevante ou de destaque numa situ- mundo. Dizem, que o pai dela bateu nela de cinta
ação, acontecimento”. Contudo, acreditamos que tais na rua, na frente da casa dela. Daí os pais deles
meninas receberam destaque e relevância negativa foram chamados e eles saíram da escola e até
hoje tem gente que passa na frente da casa dela,
sob o julgo de adultos, homens e mulheres que as ela mora aqui pertinho da escola, e chama ela
recriminaram, insultaram e excluíram do ambiente de tudo. Dizem até que filmaram com o celular!”
escolar, que as inferiorizaram e humilharam, assim
como Geni de Chico Buarque e muitas de nós em Esse registro é oriundo da escuta de seis cole-
nosso cotidiano e ao longo de nossas vidas. gas de escola dos jovens envolvidos nessa situação.
Foi coletado em uma conversa no grupo focal du-
CENAS NO AMBIENTE ESCOLAR: rante a pesquisa para a elaboração de minha dis-
VIOLÊNCIAS E INVISIBILIDADE sertação5. Indaguei-as sobre o que pensavam sobre
tal situação e as jovens explicitaram que “achavam
876
Cena 1: “Geni no banheiro da escola” muito errado”, pois “todo mundo ‘tava’ falando da
guria”. “Ela estragou a vida dela” – ressaltou uma
“Dá-se assim desde menina delas. Indaguei-as sobre o que aconteceu depois do
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato” “episódio do banheiro”, e elas explicaram que ficou
(HOLANDA,1978.) mais difícil “ficar”6 com alguém dentro da escola,
pois agora os banheiros ficavam chaveados.
“É que tinha uma guria que tava afim de um guri Ao conversar com a equipe pedagógica sobre
há um tempão, mas ele não queria ficar com ela.
Então um dia, numa aula de Educação Física, o tal situação, as professoras se declararam “choca-
guri chamou ela no banheiro e disse que pra ela das” com o fato ocorrido. “Que foi uma situação di-
ficar com ele, ela tinha que fazer um “boquete” fícil de ser encaminhada”, pois, após uma reunião
em um outro guri... E ele chamou esse outro guri com os pais dos alunos/as dessa turma foi decidida
e ela fez, ali mesmo, no banheiro da escola. Só
que daí ele disse que depois disso ele estava com a saída definitiva de “Geni Um” e do aluno, que re-
cebeu o sexo oral, da escola. Segundo as educadoras
⁵ MEIRELLES, Tatiana. “Pegar, ficar” namorar... Jovens mulheres e suas práticas afetivo/sexuais na contemporaneidade.
UFRGS, 2011.
Sumário
integrantes da equipe diretiva “não havia condições tre outras, uma vez que essa foi e em muitos locais
dos mesmos permanecerem na escola”. Perguntamos, ainda é a narrativa dominante quando se trata da
então, como tal situação fora encaminhada junto constituição do feminino e das expectativas acer-
aos professores/as, e fomos informadas de que ocor- ca dos modos de ser mulher. Nesta perspectiva não
rera uma reunião pedagógica, na qual o afastamen- se concebe o fato de que jovens mulheres desejem
to da aluna e do aluno tinham sido decididos cole- e anseiem as práticas de afetividade e sexualidade
tivamente. Nesta situação, todos os olhares foram tanto quanto os garotos. Contudo “os corpos não se
focados na menina que realizou o sexo oral, dando conformam, nunca, completamente, às normas pelas
centralidade a ela e às possíveis e hipotéticas conse- quais sua materialização é imposta” (BUTLER, 1999,
quências desse ato, como a possibilidade de alguma p.154). Frente a tal fato, surgem reações repressivas e
criança ter entrado no banheiro no momento em que agressivas, afim de punir tais transgressões e reafir-
o fato ocorria, ou ainda, de tal prática ser repetida, mar comportamentos adequados às normas vigentes
de que poderiam fazer “coisas piores” entre outras impostas. Essa é a concepção que nos parece pau-
hipóteses. Em momento algum os adultos refletiram tar a repugnância como reação ao comportamen-
sobre o envolvimento do menino que solicitou que to dessa jovem. O fato desse grupo de pessoas não 877
a menina fizesse sexo oral em outro menino como compreender e aceitar que essa e outras jovens mu-
condição para ele a beijar, ou do menino que serviu lheres anseiam e desejam as práticas de afetividade/
de mensageiro e articulador da situação. Todos os sexualidade tanto quanto os homens. Em nenhum
relatos, sejam das alunas ouvidas que souberam de momento foi questionado ou refletido o fato dessa
partes dessa história pelos corredores da escola, seja menina ter sido chantageada e, talvez, coagida por
dos/das professoras, como da equipe diretiva, a cen- seus colegas à prática do sexo oral. É unânime que
tralidade estava na “Geni Um” e em como punir os tais práticas sejam inadequadas e devam ser proibi-
envolvidos. Não havendo reflexões das razões que das no ambiente escolar. O que nos questionamos é
desencadearam tal situação, escuta de como a garo- sobre a ausência de escuta e reflexão sobre tais fatos,
ta e os garotos se sentiram e como se envolveram de sobre a falta de diálogo com os alunos dessa escola,
fato no ocorrido. sobre como podem ou devem ser as dinâmicas de
Ainda hoje, muitas das construções sociocultu- afetividade. O que é se valorizar? O que cada um/
rais em torno do “universo feminino” são pautadas uma de nós já fez para conquistar alguém? O que
em concepções essencialistas de docilidade, sensi- temos direito ou não de exigir, esperar, solicitar ao
bilidade, discrição, passividade (PERROT, 2007), en- outro que gostamos? Essas são algumas das ques-
Sumário
tões que poderiam ser pautadas a partir de tal cena. sora chegou a conversar com a aluna com o obje-
Em vez disso... Joga pedra na Geni! Joga pedra na tivo de convencê-la a namorar o garoto. No dia se-
Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela guinte, todos compareceram ao enterro do aluno.
dá pra qualquer um! Maldita Geni! Assim como os demais colegas, a menina também
foi se despedir do amigo. Ao chegar, foi xingada,
empurrada, levou tapas e cuspidas. Os professores
Cena 2: “A escolha e o julgamento de Geni” presentes não tomaram nenhuma atitude, alegando
que não poderiam “se meter”, já que estavam fora
“Vai com ele, vai, Geni! do espaço escolar. A mãe dela teve que tirá-la do ve-
Você pode nos salvar lório antes que apanhasse mais. Nas aulas seguintes
Você vai nos redimir Bendita Geni! a “Geni Dois” passou a ser alvo de vários episódios
(HOLANDA,1978)
de brigas e provocações dos colegas de turma.
Uma dessas colegas era uma mulher em torno
O segundo caso veio à tona quando um aluno
de cinquenta anos que, segundo relatos de alunos/
da EJA6 (Educação de Jovens e Adultos) de outra es-
as e professores/as, inventava e aumentava fatos, in- 878
cola municipal suicidou-se. O rapaz de 17 anos foi
citando a turma e, principalmente, outra estudante
para casa, após a aula e se enforcou. Segundo fami-
de 16 anos da mesma turma, a agredir “Geni Dois”.
liares, ele sofria de depressão desde que fora aban-
Essa menina passou a perseguir a colega insultan-
donado pelos pais na casa do avô, juntamente com
do-lhe e ameaçando lhe bater.
irmãos mais novos. Na mesma noite do suicídio, os
As situações ocorridas no ambiente escolar re-
colegas da escola e alguns professores, através das
verberavam, diariamente, nas redes sociais, tendo
redes sociais, começaram a especular sobre as pos-
inclusive a participação de professores no julga-
síveis causas da atitude do colega. Logo surgiram
mento e desmoralização da aluna. A professora que
comentários de que ele seria “apaixonado” por uma
tentara convencê-la de ficar com o colega se empe-
colega, que seria namorada de outro. Segundo re-
nhava em apontar a “Geni Dois” como causadora
latos de algumas professoras, o menino mantinha
desta fatalidade.
uma “paixão platônica” por essa menina, que che-
Após três semanas de discussões e brigas, a alu-
gou a ficar com o colega algumas vezes, mas não
na pediu transferência para outra escola municipal
tinha interesse em namorar com ele. Uma profes-
próxima a esta. Como a comunidade era pratica- em que vivemos, na qual a mulher é vista e julgada
mente a mesma, quando “Geni Dois” chegou à nova a partir da expectativa do homem. Neste caso, assim
escola, a versão sobre o suicídio do colega, em que a como a Geni da música do Chico Buarque deveria
posicionava como culpada, já se espalhara e fora ab- servir à necessidade da sociedade naquele momen-
sorvida por alunos e professores desta segunda es- to (apaziguar a fúria do comandante do Zepelin),
cola, por decorrência, as provocações continuaram. “Geni Dois” deveria ter ficado com seu colega, para
Tal situação tomou proporções que extrapolaram os que ele se sentisse melhor, tivesse um sentido para
muros das referidas escolas e comunidades até que a sua vida. Não importando o que essa jovem sentia
a família resolveu sair da cidade. por ele, ou planejava para si. “Vai com ele, vai, Geni!
Como apontado anteriormente, de maneira ge- Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar. Você vai
ral em nossa sociedade, as meninas são criadas para nos redimir. Você dá pra qualquer um Bendita Geni!”
serem contidas e recatadas no que se trata de sexu-
alidade. Desde muito cedo as orientamos a fechar RESPONSÁVEIS SOMOS TODOS/AS NÓS...
as pernas, falar baixo e “se comportar”, como uma
princesa. Pois que as criamos para serem “salvas “(...) é por isso que a cidade vive sempre a repetir:
Joga pedra na Geni! 879
por um príncipe”. Tais discursos vão sendo repeti- Joga pedra na Geni!”(HOLANDA,1978)
dos e cristalizados como verdades. De acordo com
Foucault (1995, p.12) “os discursos enunciados em Tais narrativas nos impeliram a refletir sobre a
determinadas épocas constituem regimes de ver- implicação dos educadores/as nestas situações, não
dades nas sociedades em que são proferidos e rea- no sentido de avaliar os encaminhamentos docen-
firmados, onde “cada sociedade tem seu regime de tes, muito menos de julgar moralmente tais práticas
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os juvenis, mas, talvez, de pensar acerca da importân-
tipos de discurso que aceita e faz funcionar como cia da escola, enquanto espaço de convivência para
verdadeiros”. Partindo de tais “verdades”, enqua- os/as jovens de periferia. Ao que parece eles/elas
dramos e excluímos os sujeitos, entre outros, por atribuem à escola um papel que não está na lista de
seus comportamentos. A “Geni Dois”, ao contrário suas funções usuais. Aliás Dayrell (1999, p. 144) já
da situação da aluna narrada na cena anterior, foi destacava a importância de olhar-se a escola como
julgada e agredida por não ter se relacionado com o um espaço sociocultural ao salientar que “a escola
colega que queria ficar com ela. O que nos leva a re- é polissêmica (...) e que não podemos considerá-la
fletir quão perversa e discriminatória é a sociedade como um dado universal, com um sentido único,
Sumário
principalmente quando esse é definido pelos siste- as relações de poder envolvidas nelas, uma vez que
mas ou pelos professores”. Assim, segundo o referi- acreditamos sermos corresponsáveis pelas relações
do autor ela é tanto o lugar de conviver com os ami- sociais (re)produzidas no espaço escolar, como nos
gos, quanto o lugar onde se aprende a ser educado, aponta Guacira Lopes Louro (2008, p.85)
e, ainda, o lugar onde se aumentam os conhecimen-
Admitimos que a escola não apenas transmite
tos ou “onde se “tira” o diploma que possibilita pas- conhecimentos, nem mesmo apenas os produz,
sar em concursos”. A escola é também o lugar onde mas que ela fabrica sujeitos, produz identidades
as identidades sociais podem ser (re)produzidas, étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos
(re)significadas, problematizadas ou reafirmadas. E que essas identidades estão sendo produzidas
através de relações de desigualdade; (...) a escola
junto com os estudantes, a escola recebe através de está intrinsecamente comprometida com a ma-
seus corpos, suas práticas e seus discursos, a sexua- nutenção de uma sociedade dividida e que faz
lidade, pois “a sexualidade está na escola porque ela isso cotidianamente, com a nossa participação
faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser ou omissão (...).
desligado ou algo do qual alguém possa se “despir”.
(LOURO, 2008, p. 81). O não posicionamento frente às situações coti-
dianas e o silenciamento também demarca, inscreve 880
O desfecho das duas cenas foi a saída das Genis
da escola. Em nenhum momento a palavra expulsão e comunica. Pela perspectiva foucaultina, acredita-
é explicitada, contudo, os relatos apontam que as mos que algumas escolas, ainda hoje, são institui-
alunas passaram a ser alvo de brincadeiras jocosas, ções de regulação e vigilância por via de discursos
comentários agressivos, distanciamento de cole- e do disciplinamento dos corpos, visando produzir
gas, entre outras situações que as levaram a, jun- sujeitos obedientes e normatizados. O poder nor-
to com suas famílias, decidir a sair das escolas em malizador permeia todas as relações existentes no
que estudavam e se afastaram dessas comunidades. espaço escolar, criando padrões, sancionando con-
Tais comunidades escolares não reconhecem estes dutas, punindo desvios. (FOUCAULT, 1987). Tais
afastamentos como resultantes de seus encami- aprendizagens ocorrem no seio do cotidiano e das
nhamentos, silenciam-se, isentam-se e incentivam práticas escolares. Contudo, a escola é também lugar
o desligamento como medida de segurança para as de resistência (...), de questionamentos, reflexões e
mesmas. O que nos aponta para o envolvimento de produção de outros modos de ser. Nas duas cenas, a
pais, colegas e educadores/as, ainda que estes não desigualdade entre gêneros é evidente e acentuada
se vejam como parte dessas cenas, assim como para desde a maneira como os fatos inicialmente foram
interpretados até o desfecho dos mesmos.
Sumário
lheres transsexuais, meninas... mulheres que vivem sexualidades, identidades de gênero, enfim, respeite
essa condição das mais diferentes maneiras... A par- a todas as pessoas participantes das diversas insti-
tir do referido colóquio constituímos um grupo de tuições sociais que compõem a sociedade.
discussão permanente chamado “Geni” que preten- Geni Três: Minha mãe! Geni Quatro: Eu! Geni
de se reunir mensalmente para debater a situação Cinco: Tu! Geni Seis: Tua irmã!
da mulher em nossa cidade. Geni Sete... E as pedras são a cada dia mais pe-
Objetivamos com essa reflexão multiplicar os sadas, violentas e nocivas.
olhares, sentidos, lacunas e possibilidades destas Pedra: A desigualdade salarial entre os gêneros
ações, a fim de multiplicar iniciativas de combate à naturalizada em nosso país, mantêm-nos trabalhan-
invisibilidade, à violência cotidiana que meninas e do a mesma quantidade ou mais horas e recebendo
mulheres são submetidas diariamente, numa socie- menos. Segundo o Observatório Brasil da Igualdade
dade em que “Geni” somos todas em algum momen- de gênero o Brasil apresenta um dos maiores níveis
to de nossas vidas, com vistas a construção de uma de disparidade salarial. No país, os homens ganham
sociedade equânime. aproximadamente 30% a mais que as mulheres de
mesma idade e nível de instrução. 882
GENI TRÊS, GENI QUATRO, GENI CINCO... Pedra: A violência doméstica, muitas vezes in-
GENI SOMOS TODAS: REFLEXÕES visibilizada e reafirmada em nossa cultura, entre
NECESSÁRIAS, ENCAMINHAMENTOS outras, por músicas, piadas e ditos populares, como
POSSÍVEIS – CONSIDERAÇÕES FINAIS “em briga de marido e mulher não se mete a co-
lher”, segue vitimando brasileiras. De acordo com
“Bendita Geni!” (BUARQUE, 1978). a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Pre-
sidência da República (SPM-PR) 43% das mulheres
Pensamos que as ações aqui descritas são alter- em situação de violência sofrem agressões diaria-
nativas para possibilitar visibilidade e reflexões acer- mente; para 35%, a agressão é semanal. Em 2014,
ca das questões envolvendo gênero e sexualidade do total de 52.957 denúncias de violência contra a
não só no contexto escolar, mas na cidade como um mulher, 27.369 corresponderam a denúncias de vio-
todo. São passos pequenos e, muitas vezes de impor- lência física (51,68%), 16.846 de violência psicológi-
tância negada, contudo, a cada passo que trilhamos ca (31,81%), 5.126 de violência moral (9,68%), 1.028
juntas, pedras são recolhidas e não arremessadas. de violência patrimonial (1,94%), 1.517 de violência
Acreditamos que a sociedade urja de atitudes sexual (2,86%), 931 de cárcere privado (1,76%) e 140
ativas de combate ao sexismo, respeito às múltiplas
Sumário
envolvendo tráfico (0,26%). Dos atendimentos re- guimos sendo submetidas, não podem ser discuti-
gistrados em 2014, 80% das vítimas tinham filhos, das isoladamente, como um fato escolar, ou uma
sendo que 64,35% presenciavam a violência e 18,74% “briguinha”, mas devem ser analisadas e problema-
eram vítimas diretas juntamente com as mães. tizadas, situando os sujeitos, as relações de poder
Pedra: A violência sexual, que nos persegue des- e as relações histórico culturais a que todos/as nós
de os primórdios da humanidade, continua nos fe- estamos envolvidos/as. Não podemos mais fazer de
rindo, conforme dados do Anuário 2013 do Fórum conta que tais questões não nos dizem respeito, não
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que apontou fazem parte do contexto e realidade, pois tais ques-
que em 2012 foram notificados 50.617 casos de estu- tões são partes constituintes de todos/as nós, bali-
pro no Brasil, onde 88,5% das vítimas eram do sexo zando o que e como falamos, fazemos, podemos e
feminino, mais da metade tinha menos de 13 anos de somos... Ops olha a pedra aí!
idade, 46% não possuía o ensino fundamental com-
pleto (entre as vítimas com escolaridade conhecida, REFERÊNCIAS
esse índice sobe para 67%), 51% dos indivíduos eram
de cor preta ou parda e apenas 12% eram ou haviam BALESTRIN, P. A. Onde está a sexualidade? Represen-
tação de sexualidade num curso de formação de profes- 883
sido casados anteriormente. Por fim, mais de 70%
sores. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Dissertação (Mestrado)
dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes. – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Essas são algumas das pedras que nos esprei- Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
tam, das quais nós, mulheres, somos o alvo. Pedras, Alegre, 2007.
pedras e mais pedras decorrentes de uma ideologia
BUTLER, Judith. Corpos que pensam: sobre os limites dis-
patriarcal que demarca e determina as relações de
cursivos do sexo. In: Louro, Guacira L. (Org.) O corpo edu-
poder entre homens e mulheres. Sob a égide da cul- cado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
tura machista, algumas vezes reproduzida e forta- 1999. p. 151-172.
lecida pela escola, mulheres são posicionadas como
objeto de desejo e propriedade do homem, tendo CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz.
Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da
como consequência, entre outras, a naturalização Saúde (versão preliminar) Brasília, março de 2014. IPEA.
dos diversos tipos de violência, além da culpabiliza-
ção das vítimas. Compromisso e Atitude. Disponível em: http://www.com-
Cenas como as descritas nesta breve reflexão, promissoeatitude.org.br/dados-nacionais-sobre-violencia-
que apontam para a violência a que todas nós se- -contra-a-mulher/ Acesso em 06 ago. 2016.
Sumário
¹ Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter. Especial-
ista em Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa. valfontanella32@gmail.com
Sumário
is based on studies of Schleiermacher, Berman and da Tradução têm discutido o papel da tradução, o
Venuti. It is hoped that this work can contribute as qual, tradicionalmente, conduz à ideia de um dizer
a stimulus to reflection on the reading studies and de outra forma, de um dizer pelo outro, mesmo que
translation of literary narratives, taking into accou- tenha que moldar esta fala para adaptar-se ao seu
nt the otherness based on an ethical relationship meio. Contrariando esta tradicional ideia, começou
that is established in a foreignizing translation. a se organizar uma noção de responsabilidade em
Keywords: Language. Otherness. Translation. função do que foi dito pelo outro. Assim, o pensa-
mento contemporâneo que vem ocupando espaço
nos Estudos de Tradução consideram a relação com
INTRODUÇÃO o “diferente” como fundamental para a formação in-
telectual e cultural do indivíduo.
O autor, ao escrever suas obras, independente Este trabalho propõe uma reflexão sobre a evi-
do gênero que segue a sua escrita, obviamente, usa dência do fenômeno da alteridade no exercício da
uma língua que o representa e que também identifi- tradução literária que pensa na língua estrangeira a
ca culturalmente a sua narrativa. Uma obra literária ser traduzida e na cultura do outro em primeiro lu- 886
costuma ser repleta de cultura, por refletir as tra- gar, com o objetivo de manter as estranhezas como
dições, a vida, a sociedade e seus costumes, assim uma forma de respeito e, também, como uma forma
como abrange e sinaliza um pouco do conhecimen- de enriquecer a cultura receptora de tal tradução.
to de mundo que o autor e também o seu possível Ao se pensar na tradução não como um ato de repe-
leitor possuem. tição, mas como um meio de transformar um texto
Por considerar todos estes fatores, sabe-se que em outro texto, o qual procura manter e respeitar
traduzir uma obra literária é muito mais do que as estranhezas e excentricidades do primeiro, perce-
decodificar os códigos linguísticos de uma língua be-se que o fenômeno conhecido como “alteridade”
estrangeira, visto que a tradução trata-se de um encontra um campo de atuação que lhe pertence, e
amplo processo e envolve diversos elementos, en- mostra-se como o princípio fundamental na prática
tre eles a parte sociocultural, considerada como o da tradução conhecida aqui como “estrangeirizan-
elemento fundamental para a formação do caráter te”, denominação esta, particularmente, dada por
identitário da língua e de suas representações. Per- Lawrence Venuti.
cebe-se que, ao longo das últimas décadas, grande O trabalho estrutura-se da seguinte forma: pri-
parte dos estudos realizados na área dos Estudos meiramente é analisado como o fenômeno da alte-
Sumário
ridade configura-se na linguagem, segundo os estu- Iniciando sob uma concepção ampla e genéri-
dos da área linguístico-filosófica. Para isto, aborda ca, o termo alteridade compreende a figura do outro
as principais considerações realizadas por Mikhail e expressa o modo como uma pessoa se relaciona
Bakhtin e Emmanuel Lévinas. A segunda seção ex- com a outra e como essa relação acontece. A Gran-
plora as ideias de Schleiermacher, Antoine Berman de Enciclopédia Larousse Cultural define o termo
e Lawrence Venuti a fim de se observar a alteridade alteridade como o “estado, qualidade daquilo que
como o fenômeno que permeia o processo de tra- é outro, distinto (antônimo de Identidade)” (1998,
dução por eles defendido. Espera-se que o presente p.220). A mesma enciclopédia apresenta o significa-
trabalho possa gerar uma reflexão sobre o concep- do de alteridade para a filosofia como “... a relação
ção de tradução que prima por uma postura ética de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o ob-
em relação ao outro, e que possui um importante jeto pensado (o não eu)” e, em relação à psicologia,
papel social, ao manter os diversos elementos que como as “relações com outrem”.
envolvem a língua a ser traduzida, aproximando o Ainda no âmbito da filosofia, o Dicionário de
leitor de uma outra cultura e, consequentemente, Filosofia de Abbagnano apresenta o termo Alterida-
conduzindo-o à reflexão e à ação sobre a sua pró- de como: “ser outro, pôr-se ou constituir-se como 887
pria realidade. outro” (2007, p. 35). No E-dicionário de termos lite-
rários, Ceia (2015) define o termo em questão, em
A ALTERIDADE PRESENTE NA linhas gerais, como o fato ou estado de ser outro; a
LINGUAGEM diferenciação do sujeito em relação ao outro, o que
se opõe à identidade, ao mundo interior e à subjeti-
Esta seção expõe algumas definições atribuídas vidade. O autor ainda acrescenta que um dos prin-
ao fenômeno conhecido como “alteridade”, sob uma cípios fundamentais da alteridade é que o homem
perspectiva linguístico-filosófica. Para isto, o estudo no seu meio social tem uma relação de interação e
realizado nesta seção apoia-se, principalmente, nas dependência com “o outro”. Por esse motivo, o "Eu"
ideias de Lévinas e Bakhtin. Busca-se aqui analisar na sua forma individual só pode existir através de
como esses teóricos, de áreas diferentes, mas afins, um contato com “o outro". Esse tema tem apareci-
abordam a questão da alteridade e, especialmente, do com frequência em estudos pós-coloniais, femi-
como este fenômeno torna-se visível no processo nistas, desconstrucionistas e psicanalíticos, assim
de tradução literária que opta pelo método estran- como observa-se a presença, igualmente, no dialo-
geirizante. gismo de Bakhtin e na filosofia da ética de Lévinas.
Sumário
A alteridade na filosofia de Lévinas um outro. Esse modo de relação com o outro tem
também um papel fundante e constitutivo deste ou-
A nova filosofia proposta por Lévinas conside- tro, possibilitando que o outro tenha o seu próprio
ra a ética como filosofia primeira e aborda o concei- espaço como um outro “outro”, pelo fato de sua al-
to de alteridade como o princípio fundamental das teridade ser irredutível.
relações humanas. Para Lévinas (2009, p.28), o outro O outro é pensado em suas semelhanças e dife-
não é objeto de compreensão nem interlocutor, só renças em relação a nós, mas também quanto àquilo
se compreende uma pessoa “ao falar-lhe”. Cons- que nele se diferencia além da relação que tem co-
cientizar-se sobre a existência do outro, deixando-a nosco. Pensar o outro a partir de suas continuida-
ser, é já ter aceitado essa existência. Porém, o “ter des e descontinuidades implica, também, pensar na
aceitado” e o “ter considerado” não correspondem a possibilidade do corte e da interrupção serem consi-
uma compreensão, a um “deixar ser”. “Compreendo derados como gestos constitutivos da percepção do
o outro, a partir de sua história, do seu meio, de seus outro em sua alteridade.
hábitos”. (LÉVINAS, 2009, p.28) Por meio de Lévinas, surge então uma reorien-
A filosofia de Lévinas aponta para uma respon- tação como uma ética da não-indiferença na leitura 888
sabilidade que pode ser pensada na dimensão prá- do outro em tradução: a não-indiferença à tendência
tica e ética dos deveres que a tradução, hoje, parece de reduzir o outro a um continuum de nós mesmos;
tentar seguir. Sabe-se que, tradicionalmente, os de- a não-indiferença à condição de recorte e assinatu-
veres da tradução partem da ideia de um dizer no- ra de toda a leitura; a não-indiferença ao trabalho
vamente, de dizer em nome do outro. A partir de en- de escutar, o qual funda toda a tradução. Conforme
tão, instaurou-se a noção de uma responsabilidade acrescenta Cardozo,
que se organiza em volta do dito do outro. Contudo,
a responsabilidade para o outro revela-se com
o perfil da arte do pensamento contemporâneo não o próprio gesto da relação tradutória, um gesto
admite reduzir o outro apenas à esfera do dito, sem que assina o outro com o nome do outro na re-
considerar, também, os silêncios que o constituem. lação. Um gesto que transforma o outro, a fim
A noção levinassiana propõe a responsabilida- de mantê-lo como a força que ressignifica o eu.
(CARDOZO 2013, p.33)
de para o outro como o princípio ético da relação,
porém não se limita apenas a uma forma de res-
peito, cuidado, solidariedade ou piedade para com
Sumário
A alteridade nos estudos de Bakhtin Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto
de vista, uma opinião sempre tem expressão ver-
balizada. Tudo isso é discurso do outro, e este
Toda a obra intelectual de Mikhail Bakhtin não pode deixar de refletir-se no enunciado. O
aborda a linguagem em uma dimensão social. O au- enunciado está voltado não só para seu objeto,
tor vê o sujeito como um indivíduo que se cons- mas também para os discursos dos outros sobre
titui discursivamente, na medida em que interage ele. (2006, p.300).
com vozes sociais que fazem parte de sua realidade
De acordo com Pucci (2011), a consciência do
semiótica. Para Pucci, “Essas vozes possibilitam o
“Eu” se realiza e é percebida através da consciência
encontro do sujeito com as consciências de outros
que o outro tem sobre ela. As palavras do outro é
indivíduos, isto é, diferentes sentidos constituem o
impregnada de valores, de intenções, de um conjun-
discurso do outro e abrem possibilidades para novas
to de ideologias que fazem parte de um grupo social
construções discursivas”. (2011, p.44).
e de uma época. A constituição do discurso do su-
Para Bakhtin, todas as instâncias que consti-
jeito acontece de forma dialógica, quando ele entra
tuem o sujeito, a sua consciência, o seu pensamen-
na sequência da interação verbal,quando ele perce-
to, a sua individualidade e responsabilidade são 889
be as vozes e faz delas suas próprias palavras. Con-
guiadas pelo fenômeno da alteridade. O sujeito para
forme Pucci afirma, “Em cada palavra ressoam duas
Bakhtin é inteiramente social, e assim nega a po-
vozes, a minha e a do Outro”. (2011, p.45). Bakhtin
sição da consciência como individual e a ideologia
também refere-se à palavra:
como social. Dessa forma, “O indivíduo, enquanto
detentor dos conteúdos de sua consciência, enquan- Na realidade, toda palavra comporta duas faces.
to autor dos seus pensamentos (...) apresenta-se Ela é determinada tanto pelo fato de que proce-
como um fenômeno puramente sócio ideológico”. de de alguém, como pelo fato de que se dirige
para alguém. Ela constitui justamente o produ-
(BAKHTIN, 2006, p.58). to da interação do locutor e do ouvinte. Toda
A partir destas considerações, percebe-se que palavra serve de expressão a um em relação ao
a teoria bakhtiniana fundamenta-se no discurso do outro. Através da palavra, defino-me em relação
Outro, porque é para o Outro que o sujeito se refe- ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte
re e também responde, concorda ou discorda, como lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia
explica Bakhtin: sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o territó-
rio comum do locutor e do interlocutor. (BAKH-
TIN,1990, p.113).
Sumário
Nesse encontro dialógico de duas culturas elas rados pelo teórico americano. A seguir, será expos-
não se fundem nem se confundem; cada uma to um panorama geral das propostas de Berman,
mantém sua unidade e sua integridade aberta,
mas se enriquecem mutuamente. (BAKHTIN, as quais parecem unificar as idéias e as teorias de
2003, p. 365-6). Schleiermacher e de Venuti, por meio da reflexão
sobre a prática tradutória.
Segundo a perspectiva bakhtiniana, a tradu-
ção é, portanto, uma espécie de estratégia dialógica Schleiermacher e o interesse pelo Outro na tradução
para adentrar a cultura do outro, por meio de uma
interpretação que aproxima, mas mantém as suas Segundo a professora britânica de Estudos da
particularidades e a individualidade como marca de Tradução Snell- Hornby (2012, p.188), em 24 de ju-
sua própria cultura. Assim, para Bakhtin, o tradu- nho de 1813, Schleiermacher leu na Academia Real
tor deve utilizar todos os recursos lingüísticos que de Ciências, em Berlim, o seu ensaio “ Ueber die
possui para recriar o espírito do texto original, o verschiedenen Methoden des Uebersezens”. Em seu
mais próximo possível, das formas de ser do outro, discurso, o professor, tradutor e filósofo alemão res-
revelando a cultura estrangeira pela tradução. salta que existem apenas dois possíveis métodos de 891
tradução: o que leva o leitor até o autor, mostran-
A ALTERIDADE NA TRADUÇÃO do-lhe as diversidades existentes entre as culturas
ESTRANGEIRIZANTE envolvidas, ou aquele tipo de tradução que leva o
autor até o leitor, adaptando e modificando alguns
A presente seção tem como objetivo apresen- elementos para que o estranhamento entre as cultu-
tar as teorias e reflexões realizadas por Scheleier- ras seja menor.
macher, Berman e Venuti, assim como outros auto- Após a publicação deste ensaio, em 1890,
res que, em suas obras, consideram a o fenômeno Schleiermacher ficou conhecido como o teórico
da alteridade como a ética norteadora do método que sistematizou os dois possíveis métodos de tra-
de tradução que respeita e preserva a identidade do dução, embora saiba-se que Goethe já havia men-
Outro. Para isso, primeiramente, será realizada uma cionado as mesmas máximas da tradução anterior-
análise, com base, principalmente no estudo realiza- mente. Contudo, a conferência de Schleiermacher é
do por Snell- Hornby sobre como Venuti recepciona mais conhecida do que os textos de outros autores,
os conceitos mais importantes de Schleiermacher e, e grande parte de sua notoriedade deve-se ao fato
também, sobre os aspectos que não foram conside- dele ter sido o primeiro a clamar por uma disciplina
Sumário
autônoma, que se dedicasse ao tema e que tivesse ocupa e que propriamente lhe é estranho. Mas,
um perfil próprio. Percebe-se que, mesmo após mais se a tradução quer fazer, por exemplo, que um
autor latino fale como, se fosse alemão, haveria
de duzentos anos, os postulados de Schleiermacher falado e escrito para alemães, então, não apenas
são bastante conhecidos e aparecem frequentemen- o autor move-se até o lugar do tradutor, pois,
te entre as mais recentes teorias tradicionais de tra- tampouco para este o autor fala em alemão, se-
dução. Além de todos os conceitos formulados por não latim; antes coloca-o diretamente no mundo
dos leitores alemães e o faz semelhante a eles; e
Schleiermacher, foram as suas máximas sobre os este é precisamente o outro caso.” (SCHLEIER-
métodos de tradução que entraram para a história, MACHER 1813 in HEIDERMANN 2010: 57-59,
que aqui são citadas: apud SNELL-HORNBY 2012, p. 190).
Mas, agora, por que caminhos deve enveredar É possível distinguir a clássica dicotomia de
o verdadeiro tradutor que queira efetivamen- palavra e sentido, a tradução “literal” em oposição
te aproximar estas duas pessoas tão separadas,
seu escritor e seu leitor, e propiciar a este últi- à tradução “livre”, que permeia a teoria tradicio-
mo, sem obrigá-lo a sair do círculo de sua língua nal da tradução. Schleiermacher formula distinta-
materna, uma compreensão correta e completa mente: ou o método de alheamento de um lado,
e o gozo do primeiro? No meu juízo, há ape- ou o de familiarização, de outro. A discussão sobre 892
nas dois. Ou bem,o tradutor deixa o escritor o
mais tranqüilo possível e faz com que o leitor a dicotomia persiste e Schleiermacher deixa claro,
vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tran- posteriormente, sua preferência pelo método de
qüilo possível o leitor e faz com que o escritor alheamento, porque considera o método de “ levar
vá ao seu encontro. Ambos os caminhos são tão o autor até o leitor” equivalente ao tradutor que
completamente diferentes que um deles tem que
ser seguido com o maior rigor, pois, qualquer produz um texto, considerando aquilo que o autor
mistura produz necessariamente um resultado original faria se escrevesse sua obra na língua de
muito insatisfatório, e é de temer-se que o en- chegada; o primeiro método revela um tradutor que
contro do escritor e do leitor falhe inteiramente. se esforça para escrever um texto, da mesma forma
A diferença entre ambos os métodos, onde resi-
de a sua relação mútua, será mostrada a seguir. que o autor original faria, se realmente quisesse que
Porque, no primeiro caso, o tradutor se esforça sua obra fosse traduzida para a língua alemã. Como
por substituir com seu trabalho o conhecimento Schleiermacher exemplifica:
da lígua original, do qual carece o leitor. A mes-
ma imagem, a mesma impressão que ele,com seu A primeira tradução será perfeita a sua manei-
conhecimento da língua original, alcançou da ra, quando se puder dizer que, se o autor tives-
obra, agora busca comunicá-la aos leitores, mo- se aprendido tão bem alemão quanto o tradutor
vendo-os, por conseguinte, até o lugar que ele
Sumário
aprendeu romano, então aquele não teria tradu- língua; a configuração de seus conceitos, a forma
zido sua obra original composta em romano de e os limites de sua combinabilidade lhe são apre-
forma diferente de como o tradutor realmente sentados através da língua na qual nasceu e foi
o fez. A outra tradução, porém, ao não mostrar educada, inteligência e fantasia são delimitadas
o autor como ele mesmo teria traduzido, mas através dela. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 37).
como ele teria originalmente escrito em alemão,
dificilmente tem outro critério de perfeição, além Como uma segunda alternativa de método,
de que se pudesse garantir que todos os alemães
em conjunto tivessem se deixado transformar
Schleiermacher sugere que a língua materna abra
em conhecedores e contemporâneos do autor; as portas para receber novas expressões e conceitos
assim, a própria obra teria se tornado no que é advindos de outras línguas, conforme expõe:
agora a tradução para eles, pelo fato de o autor
ter se transformado em um alemão. (SCHLEIER- Toda pessoa que pensa de uma maneira livre e
MACHER, 2001, p.45) intelectualmente independente também forma
a língua a sua maneira. Pois, se não por essa
A diferença entre os métodos é bastante distin- influência, como poderia ela ter se desenvolvi-
do de seu estado inicial cru para a sua forma-
ta. Um deles é traduzir uma obra considerando o ção mais avançada na ciência e na arte? Nesse
que o autor original teria feito se tivesse original- sentido, pois, é a força viva do indivíduo que dá 893
mente escrito sua obra em língua alemã, e assim, novas formas à matéria formadora da língua,
desta forma, limita-se o texto traduzido ao formato inicialmente só para comunicar um estado de
consciência passageiro para a finalidade do mo-
das expressões que existem em alemão. Schleier- mento, das quais, às vezes mais, às vezes menos,
macher afirma que: “Cada pessoa é dominada pela algumas vão ficando na língua e, acolhidas por
língua que fala, ela e todo o seu pensamento são outras, vão se propagando e se aperfeiçoando.
um produto dela (...)” (SCHLEIERMACHER, 2001, (SCHLEIERMACHER, 2001, p.37).
p. 35-37). Em outras palavras, o autor alemão quer
dizer que seus compatriotas são condicionados pela Para Schleiermacher (2001, p.37), todo discurso
língua materna, o alemão é que lhes determina os livre e mais elevado requer ser concebido de duas
limites de suas compreensões de mundo, ou seja, se formas: em parte pelos elementos que formam o es-
alguma expressão estiver fora das formas determi- pírito da língua e, por outro lado, requer ser conce-
nadas pela língua materna não poderá ser compre- bido pela alma do enunciador como forma de ação.
endido pelo indivíduo. O discurso deve ser entendido como um produto da
língua que formou o enunciador. Ou seja, é pela
Uma pessoa não poderia pensar com total cer- presença do Outro que o enunciador se constitui.
teza nada o que estivesse fora dos limites dessa
Sumário
O filósofo alemão defende a idéia de que a cultura A alteridade na tradução segundo Antoine Berman
de um povo está ligada intrinsecamente à sua língua,
e ambas atuam e representam-se mutuamente. O Antoine Berman, filósofo contemporâneo fran-
termo cultura abrange um conjunto de valores como cês, também busca apoio nas teorias tradicionais,
a identidade, as características, a personalidade e as principalmente nas alemãs do século XIX, com o
idéias de um povo, ou seja, fatores extralinguísticos intuito de abrir um espaço para que os estudos da
–repletos de cultura – que podem influenciar no re- tradução discutam os problemas e, também, as solu-
sultado das possíveis escolhas feitas pelo tradutor. O ções encontradas pelos tradutores durante o decor-
termo cultura pode abranger muitas interpretações, rer dos seus trabalhos. No ensaio “A Tradução em
porém aqui neste trabalho, o conceito limita-se nos Manifesto”, em 1981, o teórico expõe que:
âmbitos da sociologia e da antropologia.
[...] a reflexão sobre a tradução tornou-se uma
Segundo Schleiermacher (2001, p. 39) “para que necessidade interna da própria tradução, como
os leitores de uma obra traduzida entendam, eles o havia sido parcialmente na Alemanha clássica
precisam captar o espírito da língua própria do au- e romântica. Essa reflexão não apresenta forço-
tor, precisam olhar a forma de pensar e sentir par- samente a feição de uma “teoria”(...) Mas, em to-
dos os casos, ela indica a vontade de definir-se 894
ticular do autor.” Para apresentar essas particulari- e situar-se por si mesma e, por conseguinte, ser
dades do autor estrangeiro aos leitores da tradução, comunicada, partilhada e ensinada. (BERMAN,
Schleiermacher afirma que isso só é possível se a 2002, p. 12).
língua alemã se curvar diante da língua estrangeira,
e não o contrário. Para Schleiermacher, a tradução Para Berman, a idéia de tradução não é apenas
que leva o leitor até o autor é o método que acres- uma simples questão técnica, mas relaciona-se com
centa ganhos para que a tradução se desenvolva ple- a idéia de formação cultural de um povo, a partir do
namente. Segundo ele, um dos principais objetivos contato com o Estrangeiro. Desta forma, a tradução
da tradução é “iluminar a língua com o espírito pró- assum seu princípio fundamental de agregar valo-
prio de um mestre estrangeiro, mas este totalmente res à cultura de chegada. Percebe-se que seu pen-
separado e desligado de sua língua” (SCHLEIER- samento é inspirado na teoria desenvolvida pelo
MACHER, 2001, p.81). Assim, pode-se perceber a pensador alemão Friedrich Schleiermacher, sem o
alteridade como o fundamento ético norteador da intuito de criar uma nova teoria da tradução. O au-
ação do tradutor que opta por mostrar as diferenças tor francês não acreditava na possibilidade de exis-
do outro, com respeito e com o objetivo de agregar tir apenas uma regra geral para a tradução, e afirma
valores à cultura receptora. que “o espaço da tradução é babélico, isto é, recusa
Sumário
qualquer totalização”. (BERMAN, 2002, p. 21). Sua glo-americano contemporâneo, o tradutor é tratado
intenção é clara: quer apenas promover uma refle- como se fosse invisível, isto é, as traduções são lidas
xão sobre o fazer tradutório, sobre o que está sendo como se fossem os textos originais e o nome do tra-
realizado e, com isso, promover uma “nova visada” dutor não tem relevância. Além disso, apresentou
do processo tradutório. várias evidências para provar a invisibilidade da
Berman aproxima-se da filosofia de Lévinas e o tradução, incluindo fatores como a baixa remunera-
cita, em linhas gerais, quando se refere à ética: ção dos tradutores, entre eles.
Venuti reconhece que as condições de trabalho
O ato ético consiste em reconhecer e em receber
o Outro enquanto outro. Refiro-me aqui a toda
dos tradutores são tão críticas a ponto de interferi-
meditação de Levinas em Totalidade e infinito.10 rem na percepção que eles têm de si mesmos, levan-
Essa natureza do ato ético está inserida implici- do-os a conceberem as suas relações com o texto
tamente nas sabedorias gregas e hebraicas, para estrangeiro como se fosse um processo de identifi-
as quais, sob a figura do Estrangeiro (por exem-
plo, do suplicante), o homem encontra Deus ou
cação com o próprio autor. Segundo ele,
o Divino. Acolher o Outro, o Estrangeiro, em
a invisibilidade do tradutor, portanto, é em parte
vez de rejeitá-lo ou de tentar dominá-lo, não é 895
um efeito estranho de sua manipulação da lín-
um imperativo. Nada nos obriga a fazê-lo. (BER-
gua, um auto-aniquilamento que resulta do pró-
MAN, 2002,p.68).
prio ato da tradução como ele é concebido e pra-
ticado hoje [...]. Entretanto, os tradutores não
podem senão se opor a esta invisibilidade, não
Venuti e a defesa pelas visibilidades do tradutor e do apenas porque ela constitui uma mistificação de
Outro todo o projeto da tradução, mas também porque
ela parece estar relacionada ao baixo status ain-
da atribuído ao seu trabalho. (1995, p. 111-112)
Em 1995, com a publicação do livro The trans-
lator´s Invisibility: A history of translation, Venuti Venuti aponta a exigência de fluência na tradu-
esclarece as diferenças entre “posturas” e “estraté- ção como grande responsável tanto pela desvalori-
gias discursivas”. Para o autor, a “estrangeirização” zação da tradução quanto pelo trabalho do tradutor.
e a “domesticação” são posturas, enquanto a escrita Segundo Venuti (1992, p.11-12) o termo “fluência”
fluente e a resistente são estratégias discursivas. Seu significa uma escrita livre de peculiaridades linguís-
trabalho obteve destaque no âmbito dos Estudos da ticas ou estilísticas que dão a impressão de que o
Tradução, com a tese sobre a invisibilidade do tra- texto traduzido foi originalmente produzido na cul-
dutor. Segundo Venuti (1995, p.111), no cenário an- tura de chegada, isto é, cria a ilusão de que a tradu-
Sumário
ção não é mesmo uma tradução, e sim o texto origi- para traduzir um texto estrangeiro excluído pe-
nal. Esta ilusão está associada com o esforço que o los cânones literários da cultura receptora, por
exemplo, ou usando um discurso marginal para
tradutor faz para garantir que a leitura do texto tra- traduzi-lo. (VENUTI, 2008, p. 15-16).
duzido seja fácil. Para isso, aderem ao uso corrente
da linguagem, mantendo a continuidade da sintaxe CONCLUSÃO
e fixando um significado preciso.
Venuti procura, então, uma forma de salvar a Este trabalho procurou evidências nas teorias
tradução e o tradutor da invisibilidade e sugere uma lingüístico-filosóficas para demonstrar que a tradu-
prática de tradução “resistente”, ou seja, o tradutor ção estrangeirizante pode ser um dos meios mais
deve tentar tornar-se visível e resistir às condições radicais de se conhecer a alteridade na prática, pois
sob as quais a tradução é tratada, teorizada e pra- entende-se que, sempre depois da tentativa frustra-
ticada atualmente, sobretudo nos países de língua da de fusão entre o eu e o outro, a alteridade mos-
inglesa. Segundo Venuti, o tradutor deve dar prefe- tra-se como o resultado de tudo o que foi subtraído
rência à tradução que lida com a estranheza do tex- dessa união, como a sobra que não pertence ao Eu,
to estrangeiro, pois só assim é possível uma reflexão que é, portanto, do outro. Desta mesma forma, a tra- 896
sobre as condições, os dialetos domésticos e discur- dução pode ser considerada como uma vã tentativa
sos em que ela é escrita e a situação de recepção em de fusão do eu na identidade alheia, pois para apro-
que é lida. O autor acrescenta ainda que: ximar-se do texto do outro é preciso antes entender
o estrangeiro, na tradução estrangeirizadora, o mundo em que ele está inserido. O “eu” sabe que,
não é uma representação transparente de uma por mais que se esforce, nunca será o outro. Contu-
essência que reside no texto estrangeiro e que do, não tem como de ir ao encontro do estranho se-
tenha valor em si, mas uma construção estraté- não abandonando a subjetividade e aventurando-se
gica cujo valor depende da situação em vigor na
cultura receptora. A tradução estrangeirizadora na essência e na identidade daquele que se apresen-
mostra as diferenças do texto estrangeiro, po- ta como diferente do “eu”.
rém somente por meio da ruptura dos códigos Além disso, o tradutor que trata de uma obra
culturais que prevalecem na cultura-alvo. No de ficção deve levar em consideração o fato de que
empenho de fazer o que é próprio à cultura de
partida, essa prática tradutória deve fazer o que não opera com significados, mas com sentidos, tal
é impróprio à cultura de chegada, desviando-se como ocorre com a própria literatura enquanto vis-
o suficiente das normas para apresentar uma ta como arte. A tradução como arte é produto de
experiência de leitura estranha — escolhendo uma subjetividade especial que, mesmo traduzindo
Sumário
obra alheia, procura dar vida própria na língua de fundo conhecimento da vida histórico-cultural de
chegada, fazendo do original uma obra independen- um povo, apresenta de forma mais precisa possível
te numa outra língua, numa outra cultura, dando- algumas obras e seus autores. Ou seja, tomam as
-lhe uma nova existência histórica. estranhezas e as diferenças do outro como o pon-
Pode-se concluir que a tradução é um diálogo to de partida para a tradução. Pôde-se igualmente
entre culturas, uma interação do que é “meu” com perceber as principais convergências entre os tra-
o que é “do outro”, uma troca solidária na qual a balhos desses teóricos, pelo modo como defendem
língua de chegada, transformada em narrativa pelo um método de tradução que propicia a aproximação
tradutor, empresta-se à obra do outro para torná-la multilateral com outra cultura, através de uma prá-
uma realidade estética em um contexto estranho. tica que dá ênfase à estranheza do texto traduzido,
Primeiramente, ela pertence à arte da palavra co- apresentando-o como um texto estrangeiro e não
mum ao sistema literário da língua de partida, de- como uma obra produzida originalmente, segundo
pois à arte da palavra comum ao sistema literário eles, em alemão ou em língua inglesa.
da língua de chegada. A partir daí, a obra traduzida Assim como Lévinas defende a ética como a
ganha vida própria e autonomia em relação ao siste- filosofia primeira, Schleiermacher, Berman,Venuti 897
ma que a gerou. Passa a integrar o sistema da língua também propõem a sistematização do processo tra-
da tradução, e, por meio desse, alcança o sistema da dutório por meio de uma abordagem ética. Percebe-
literatura universal. A arte de traduzir possibilita a -se que a alteridade presente nesta metodologia visa,
uma obra transcender seu espaço, seu tempo e sua entre outras coisas, a realização de um trabalho que
cultura e universalizar-se na língua do outro, trans- respeita as diferenças lingüístico-culturais do texto
cendendo seu espaço e seu tempo. (2012, p.52) de partida e que acredita no reconhecimento da vi-
Associa-se a idéia de alteridade, presente nos sibilidade do tradutor como um caminho para que
pensamentos de Bakhtin e Lévinas, à prática da tra- isto aconteça. De acordo com Spivak (2005, p. 58),
dução estrangeirizante, uma vez que esta se funda- nenhuma fala é fala enquanto não é ouvida. É esse
menta no respeito às estranhezas que demandam do ato de ouvir-para-responder que se pode chamar de
outro. Ao que se refere aos estudos da Tradução, o imperativo para traduzir. A tradução fundadora
constatou-se que os pontos de vista de Schleierma- entre as pessoas é um ouvir atentamente, com afeto
cher, Berman e Venuti delineiam a mesma imagem e paciência, a partir da normalidade do outro, o su-
do verdadeiro tradutor como sendo aquele que, por ficiente para perceber que o outro, silenciosamente,
meio da apreciação da língua e através de um pro- já fez esse esforço. Isso revela a importância irredu-
Sumário
tível do idioma, que uma língua padrão, por mais BERMAN, Antoine. “A tradução em manifesto”. In: A Prova
nativa que seja, não pode anular. do Estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha românti-
ca: Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleier-
Com base nas considerações realizadas, espera- macher, Holderlin. Tradução: Maria Emília Pereira Chanut.
-se que este trabalho tenha contribuído, ao propor São Paulo: EDUSC, 2002.
reflexões sobre a presença do fenômeno da alterida-
de na linguagem em geral e, especialmente, na área ______. A Tradução e a Letra, ou, O Albergue do Lon-
dos estudos de tradução literária. Acredita-se que os gínquo. Tradução: MarieHélène Catherine Torres, Mauri
Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007.
pensamentos dos teóricos analisados neste trabalho
aproximam-se pelo fato de defenderem a posição de CARDOZO. Maurício Mendonça. Escuta e responsabilidade
que é a partir da palavra do outro que as relações na relação com o outro. Programa de Pós- Graduação. Uni-
se constituem e se enriquecem. A alteridade na lin- versidade Federal de Santa Catarina. Outra Travessia. 15,
p.13-35, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/in-
guagem e no discurso mostra-se como elemento in-
dex.php/Outra/article/view/30875. Acesso em: 13 abr. 2016.
trínseco, constante e fundamental, tanto no discur-
so interpessoal, como também na tradução literária CEIA. Carlos. E-dicionário de termos literários. Dispo-
estrangeirizante. Este tipo de tradução assume a éti- nível em: http://www.edtl.com.pt/business-directory/6596/
898
ca de responsabilidade pelo outro, no momento em alteridade/> Acesso em: 02 mar. 2015.
que traz para a cultura receptora as diferenças deste GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL.São
universo estrangeiro, além de defender a atuação Paulo: Ed. Nova Cultural Ltda.1998
de um tradutor cada vez mais livre, que age como
mediador cultural e que agrega elementos novos à LÉVINAS. Emmanuel. Entre Nós. Ensaios sobre alteridade.
cultura receptora. Petrópolis: Vozes, 2005.
CULTURA E AUDIOVISUAL: O CAMPO teria nacional, dentre eles cinco dos dez filmes mais
DO CINEMA CONTEMPORÂNEO vistos no período –, de modo a problematizar como
certos modelos de produção e de representação têm
E OS DESAFIOS POLÍTICOS DA
agido como uma força de moldagem no mercado.
REPRESENTATIVIDADE Palavras-chave: Cultura. Cinema comercial brasi-
leiro. Lereby Produções. Representatividade.
CULTURE AND AUDIOVISUAL: CONTEMPORARY
CINEMA FIELD AND THE CHALLENGES OF POLITICAL
REPRESENTATION Abstract: This article aims to discuss the organiza-
tion of the Brazilian film market having as discursi-
Vanessa Kalindra Labre de Oliveira (UFRGS)1 ve base the historiographical trajectory of the con-
cept of culture and its implications for the political
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir context of current representative practices. Deve-
sobre a organização do campo comercial do cine- loping the notion of culture in a historical way, we
ma brasileiro tendo como base discursiva a traje- seek to connect this concept to the cinematographic
tória historiográfica do conceito de cultura e suas practices of the Brazilian post-recovery market, 900
implicações para o contexto político das práticas concentrating on an analysis of the performance of
representativas na contemporaneidade. Desenvol- Lereby Produções, in order to discuss how certain
vendo historicamente o conceito de cultura, busca- modes of production and representation have acted
-se aproximar tais concepções às dinâmicas cinema- as a shaping force in the market. Created by direc-
tográficas do mercado brasileiro da pós-retomada, tor Daniel Filho Lereby has its productions among
principalmente a partir de uma análise acerca da the national highest-grossing films, including five
atuação da empresa Lereby Produções – criada out of the ten most viewed movies in the period.
pelo diretor Daniel Filho e que tem participado ati- Keyword: Culture. Brazilian commercial cinema.
vamente dos principais recentes sucessos de bilhe Lereby Produções. Representativity.
pensada no contexto social, em função das práticas mológica no cenário mundial, contribuindo para que
socioculturais que ocorrem fundamentalmente no o conceito de cultura passe a ser central nas pesqui-
espaço público e coletivo, sendo este formado histo- sas das Ciências Humanas e Sociais, e novos sistemas
ricamente (CAUNE, 2014). De cunho aristocrático e discursivos e classificatórios sejam adotados. Muito
popular, o conceito obteve, pois, um valor descritivo disso se deve à fundação do Centro de Estudos Cul-
ao romper com qualquer tipo de distinção valora- turais Contemporâneos, em 1964, na Universidade
tiva entre as culturas, excluindo, no âmbito acadê- de Birmingham, na Inglaterra.
mico, os juízos de valores sobre elas. Na contempo- Considerando essas proposições, Hall (2003)
raneidade, por sua vez, Eagleton (2011) sugere que define cultura como o conjunto de práticas de signi-
o conceito passa por outra grande mudança. Nesse ficação que constitui a vida social a partir da produ-
contexto, não se pensa mais em uma cultura, e sim ção, circulação e consumo de bens materiais e sim-
em diferentes culturas, dentro de diferentes perío- bólicos. Ela possui dimensão subjetiva, institucional
dos, entre nações, ou mesmo dentro de uma mesma e estrutural e revela-se a partir da relação com o
nação e território. Assim, os estudos sociais passam outro, perpetuando-se em função de seu comparti-
a ser desenvolvidos no sentido de abarcar essa mul- lhamento, como uma herança social – embora para 902
tiplicidade, dando legitimidade e autonomia a tais Mattelart (2005) as relações sociais que revelam o
culturas – gerando o que o autor denomina de polí- princípio da alteridade sejam quase sempre assimé-
tica de identidade. tricas no contexto da globalização. É neste sentido
O que este cenário nos mostra, como afirma Stu- que Caune (2014) vê cultura como acontecimento
art Hall (2003; 1997), é que ao longo dos tempos pas- social, já que ela não existe se não manifestada,
samos por uma espécie de revolução cultural, resul- transmitida e vivenciada pelos sujeitos, pois como
tado de uma série de mudanças empíricas, tais como: afirma o autor (2014, p.02), “a cultura existe, antes
as novas proposições do tempo-espaço na contem- de mais nada, como herança e para compreendê-la
poraneidade, a homogeneização das trocas e fluxos devemos analisar os modos de transmissão desta,
simbólicos, a revalorização do local, o sincretismo que é elemento da cultura”.
cultural e novas perspectivas sobre identidade, que Assim, além de pensar as práticas culturais
tornam-se cada vez mais múltiplas e fragmentadas em si, nos vale também considerar seus modos de
– tanto que o autor prefere pensar em identificações produção, condições inerentes que perpassam as
e não identidades, visto sua fluidez e mutabilidade. instâncias de poder e de representatividade dos di-
Essa realidade vai gerar toda uma mudança episte- ferentes grupos sociais existentes em uma dada re-
Sumário
alidade. Pensando, pois, a cultura como conjuntos sualidade dos agentes sociais, a construção de vi-
de manifestações de diversas ordens, ela reproduz sões múltiplas sobre o mundo, bem como na mis-
sentido, informação e valores, criando determina- tificação e no potencial para a desmistificação de
dos centros e esferas marginalizadas no âmbito da olhares e discursos hegemônicos, em especial pelo
representação. Nessa perspectiva, tendo em vista o alcance global que possui.
conceito de cultura associado às esferas do poder,
faz-se necessário analisar as condições materiais e CAMPO COMERCIAL DO CINEMA
institucionais que criam e transformam a produção BRASILEIRO E O CASO LEREBY
simbólica, ou seja, conhecer os aparelhos de repro- PRODUÇÕES
dução simbólica que estruturam a sociedade e o co-
tidiano (BOURDIER, 2009). O campo cinematográfico comercial brasileiro
Se para Bourdieu (2009), as opiniões e gostos tem suas particularidades na contemporaneidade,
dos sujeitos são formados culturalmente através de tendo em vista o contexto de Retomada e pós-Reto-
jogos de socialização, tendo como principais esferas mada do cinema nacional, quando o mercado con-
de fomento as instituições familiares, religiosas e segue, a partir de uma reestruturação institucional, 903
escolares, na contemporaneidade, no entanto, ou- legislativa e estética, recuperar-se da crise instau-
tra instância tem se valorizado: as mídias. É dentro rada no primeiro biênico da década de 1990. Com a
deste contexto teórico e epistemológico, isto é, onde economia e a política nacionais novamente estáveis,
possuímos uma concepção múltipla e dinâmica de ele entra em um momento de crescimento, amplian-
cultura, tendo os meios de comunicação de massa do a produção e o escoamento do filme nacional,
importância basilar em sua propagação, que se res- bem como alargando os imaginários acerca da pro-
salta a relevância de pensar o cinema, uma vez que dução brasileira de filmes, até então muito arraiga-
este meio age tanto como arte, mecanismo usado da na estética do Cinema Novo (ROSSINI, 2007).
pelos sujeitos para se expressarem, quanto como Neste período, ainda que sempre múltiplo e di-
meio de comunicação de massa, prestando-se à for- nâmico, algumas tendências estético-narrativas se
mação, consolidação e veiculação de ideias e sim- sobressaem, como os filmes que exploram a violên-
bologias. Sua indústria cultural tem impacto direto cia e a favela como espaço urbano de aproximação
no contexto político das práticas representativas na com o real e seus efeitos de verdade – embora res-
contemporaneidade, agindo sobre os espaços de vi- gatem a dimensão da exclusão sem o caráter políti-
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co da mobilização social visto na década de 19602; representatividade à cultura nacional, tem se desta-
filmes que dialogam com as questões da migração, cado essencialmente por (1) buscar parcerias com
onde os personagens são, por diferentes motivos, distribuidoras estrangeiras, as chamadas majors, (2)
levados a sair de suas cidades ou países para encon- promover aproximações com a televisão, através
trar aquilo de que necessitam – às vezes a si mes- de narrativas que se assemelham à teledramatur-
mos, revelando um tom existencialista marcado, gia brasileira, (3) por fazer uso de atores e atrizes
principalmente, pelas coproduções internacionais3; da telinha, (4) explorar produções ágeis, muitas ve-
e, sobretudo, filmes que dialogam com os códigos e zes realizadas em estúdios e (5) com o propósito de
as convenções historicamente consolidados na cul- atender ao grande público. Essas estratégias benefi-
tura brasileira pela televisão, marcados principal- ciam o processo de marketing dos filmes, geralmen-
mente pela abordagem do gênero da comédia4. te muito caro, ampliando o alcance dos produtos,
Mas alcançar representatividade em um mer- as possibilidades de competitividade no setor e de
cado tão hostil continua sendo o maior desafio do visualidade em outras janelas de exibição de grande
cinema nacional. Segundo dados atualizados da apelo popular.
Agência Nacional do Cinema, por exemplo, possu- Dentro desse contexto de dominação do cine- 904
ímos atualmente 3.005 salas de exibição no país5, e ma estrangeiro no mercado nacional, as estratégias
anualmente cerca de 85% delas são ocupadas por utilizadas por esta parcela do cinema brasileiro con-
produtos estrangeiros, cenário que dificulta a exibi- temporâneo podem ser vistas como estruturas de
ção do produto nacional e conduz o filme brasileiro resistência, pois sem conseguir estabelecer barreiras
a uma posição de marginalização dentro de nosso ao produto importado, principalmente aos filmes de
próprio mercado. Quem melhor tem conseguido li- origem estadunidense, a produção nacional preci-
dar com esse cenário hostil são as produções da ter- sou se organizar e ressignificar o modo de atuação
ceira tendência apontada acima, pois para vencer as no mercado como mecanismo de manobra dentro
barreiras dos eixos mais problemáticos do campo, do contexto de produção e de consumo.
isto é, os setores da distribuição e da exibição, e dar
² Tais como: Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), O invasor (Beto Brant, 2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007).
3
São exemplos: Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes,2005) e
Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014).
⁴ Como: Se eu fosse você (Daniel Filho, 2006), A grande família: o filme (Maurício Farias, 2007) e De pernas pro ar (Roberto San-
tucci, 2010).
5
Informação disponível em: http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/DadosMercado/2301-2016.pdf. Acessado em agosto de 2016
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Essas estratégias são utilizadas, por exemplo, Muitas de suas produções nascem com um dis-
pela empresa de audiovisual Lereby Produções, curso pertinente e relativamente necessário para a
criada pelo diretor Daniel Filho em 1996, e que des- representatividade cultural, que é a necessidade de
de então tem participado dos maiores sucessos de proteger a cultura brasileira da intervenção simbóli-
bilheteria da Retomada e Pós-Retomada do cinema ca do produto estrangeiro, partindo do pressuposto
nacional. A empresa tem sido referência na inter- que o poder simbólico interfere no âmbito social,
locução do cinema com a televisão, imprimindo no influenciando ações e eventos, pois como destacam
mercado um modelo de produção e de representa- Shohat e Stam (2006, p.262) “o fato de que filmes são
ção que tem se valorizado em função do resultado representações não os impede de ter efeitos reais
de público obtido, tornando-se hegemônico no país. sobre o mundo”6. Esse discurso, no entanto, não é
Daniel Filho, que começou suas atividades ar- algo novo. Ao longo dos anos, o cinema nacional
tísticas no circo e no teatro de revistas, fez sua car- encontrou como estratégia midiática de apelo ao
reira como diretor e produtor cultural na televisão, consumo do filme brasileiro o fato de ser brasileiro,
atuando nas principais funções do campo do entre- de representar a realidade nacional, a suposta iden-
tenimento brasileiro (FILHO, 2003). Depois de dé- tidade verde-amerela. Ou seja, independentemente 905
cadas de experiência e grande recepção do público do valor artístico e linguístico do filme, um discur-
nas telinhas, migrou para o cinema em meados dos so patriótico instaurou-se como estratégia de supe-
anos 1990, contribuindo para rearticular o campo ração das barreiras do mercado, ganhando espaço
do audiovisual brasileiro e transformar as expecta- desde os anos 1920 (AUTRAN, 2008).
tivas do público em relação ao produto nacional, na O fator negativo desse tipo de discussão e estra-
medida em que passa a ser responsável por gran- tégia de apelo popular está no ato de tornar super-
des sucessos de bilheteria, os blockbusters brasilei- ficial a problemática da identidade cultural de um
ros (ROSSINI, 2014). Tornou-se, com isso, um dos país tão grande, diverso e múltiplo como o Brasil.
principais agentes do cinema nacional na contem- Certamente, a representatividade é um ato político
poraneidade, imprimindo uma nova cara ao cinema e ela deve sempre estar calcada na multiplicidade de
comercial no país e contribuindo para desenvolver representações que abarquem o máximo possível de
industrialmente o setor. questões e pontos de vistas. Mas frente à dificulda-
⁶ Exemplo disso são os filmes nazistas realizados durante a Segunda Guerra Mundial, responsáveis por consolidar e legitimar
frente à sociedade as iniciativas bárbaras do regime alemão, liderado por Adolf Hitler.
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de em se chegar às salas de exibição, são poucas os sa vinculada à Rede Globo de Televisão, também
tipos de produtos culturais que conseguem grande idealizada e criada por Daniel Filho em 1998. Sua
visualidade, fazendo com que o grande público re- proposta estética e narrativa tem sido empreendi-
lacione o conteúdo nacional a uma parcela pequena da em diferentes gêneros, conseguindo, no entanto,
de filmes e estéticas, e que muitas vezes restringem demarcar um certo estilo identificável às produções,
o tipo de abordagem, modo de produção e de repre- tornando-se, com isso, responsável por importantes
sentação não ao conteúdo diversificado da expres- sucessos de bilheteria. Constam em sua lista os fil-
são cultural do país, mas ao alcance de público e, mes: O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000),
portanto, às chances de lucro. filme adaptado de uma minissérie realizada em 1999
A empresa Lereby Produções tem inferência na Rede Globo de Televisão; Cazuza - o Tempo Não
neste sistema e tem tido espaço privilegiado no cam- Para (Sandra Werneck e Walter Carvalho, 2004), que
po do cinema desde 1999, quando passou a produzir enaltece a tendência das cinebiografias do período;
para a sétima arte. Desde então, suas estratégias de e A mulher invisível (Cláudio Torres, 2009), comédia
mercado, com intensos resultados positivos, passa- que devido ao sucesso inspirou o seriado homônimo
ram a agir como uma espécie de moldagem para o transmitido dois anos depois na Rede Globo de Te- 906
meio, levando outros profissionais e produtoras a levisão. Todos eles atingiram mais de dois milhões
reproduzirem seu modo de produção e represen- de espectadores, e contribuíram na formação de um
tação para alcançarem igual abertura no mercado, modelo de produção mainstream no Brasil.
principalmente em relação ao setor de exibição, que Impera ainda no portfólio da empresa outros
tende a selecionar produtos com maior potencial grandes sucessos: Carandiru, do argentino naturali-
de retorno de público e capital – logística que pode zado brasileiro Hector Babenco, de 2003; Dois Filhos
acarretar relevantes implicações políticas na esfera de Francisco: a História de Zezé Di Camargo & Lucia-
da representatividade de uma cultura fundamenta- no, dirigido por Breno Silveira, de 2005; Se eu fosse
da na multiplicidade e na alteridade. você e sua continuação, Se eu fosse você 2, ambos di-
Em função da trajetória artística de Daniel Fi- rigidos por Daniel Filho, em 2006 e 2009, respectiva-
lho na televisão, a Lereby Produções tem sido uma mente; e Até que a sorte nos separe 2, filme de Rober-
das principais produtoras cinematográficas do cam- to Santucci, lançado em 2013. Além de possuírem a
po audiovisual contemporâneo a articular códigos, produção da Lereby e a participação ativa de Daniel
convenções e um sistema articulado de parcerias Filho, uma outra coisa une esses últimos filmes: to-
com a televisão – ao lado da Globo Filmes, empre- dos estão presentes na lista dos dez filmes brasileiros
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mais vistos na contemporaneidade, demonstrando, Entre 1999-20107, seguindo dados do site oficial
de fato, a importância da empresa e seu espaço no da Lereby Produções, bem como da Ancine, a em-
mercado. O próprio Daniel Filho, que dirigiu 10 fil- presa de Daniel Filho participou de 48 produções, e
mes lançados desde 2001 – sendo que cinco deles em termos de gênero, o que pode nos conferir um
conseguiram ultrapassar a margem de um milhão de entendimento melhor sobre a natureza de seus in-
espectadores –, pode ser uma chave importante para vestimentos no mercado, os filmes são classificados
compreender como se organiza o cinema comercial da seguinte forma: 24 dramas (50%), gênero de maior
brasileiro atualmente e como tem imperado as rela- importância quantitativa, 16 comédias (33,33%), 4
ções de poder neste campo, justificando, pois, nosso documentários (8,33%), 3 infantis (6,25%) e 1 ação/
interesse em pensar a atuação da Lereby Produções policial (2,08%) – desses, apenas um não possui a
frente as questões de diversidade cultural. coprodução da Globo Filmes, qual seja: O Homem
Esses sucessos de bilheteria elencados acima Que Engarrafava Nuvens (Lírio Ferreira, 2010).
destoam do campo como um todo, demonstrando Em relação a distribuição desses filmes, embora
grande assimetria entre as produções nacionais. a Lereby estabeleça ao longo do período observado
Silva (2011) aponta que, na primeira década do sé- parceria com 19 distribuidoras diferentes, as prin- 907
culo XX, por exemplo, foram lançados 519 filmes cipais empresas associadas aos seus projetos são as
brasileiros, 68% deles alcançaram no máximo 50 majors, isto é, conglomerados comunicacionais es-
mil espectadores e apenas 5% superaram a marca trangeiros que tem um grande trânsito e apelo co-
de um milhão de espectadores, controlando 70% da mercial no mercado. É o caso da Columbia Pictures,
bilheteria do período. Estes dados acentuam, pois, a da Buena Vista internacional, da Fox Film do Brasil
noção de controle de mercado e a importância das e da Warner Bros, presentes em nove dos dez filmes
estratégias adotadas para reconfigurar e recompor de maior bilheteria da Lereby Produções no período
o campo do audiovisual na contemporaneidade, selecionado, como consta na tabela abaixo.
onde atua com grande importância Daniel Filho e a
Lereby Produções.
⁷ O recorte de tempo foi selecionado em função da página oficial da Lereby Produções, que se manteve atualizada apenas até 2010.
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Se eu fosse você 2 Daniel Filho 2009 Fox Film do Brasil 6.112.851 315 Comédia
2 filhos de Francisco Breno Silveira 2005 Columbia TriStar 5.319.677 329 Drama
Carandiru Hector Babenco 2003 Columbia TriStar do Brasil 4.693.853 298 Drama
908
Cidade de Deus Fernando Meirelles 2002 Lumière 3.370.871 176 Drama
Se eu fosse você Daniel Filho 2006 Fox Film do Brasil 3.644.956 197 Comédia
O auto da Compadecida Guel Arraes 2000 Columbia Pictures do Brasil 2.157.166 199 Comédia
Sexo, amor & traição Jorge Fernando 2004 Fox Film do Brasil 2.219.423 157 Comédia
2.353.646 Comédia
A mulher invisível Cláudio Torres 2009 Warner 220
romântica
Fonte: Dados da Ancine e do site oficial da Lereby Produções organizados pela autora
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Dos dez filmes mais vistos produzidos pela Lereby no período apenas um não é distribuído por uma
empresa major, é o caso de Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), que teve distribuição realizada pela
Lumière filmes, uma empresa nacional. Esse é um critério fundamental, também, para observar a com-
posição dos filmes de menor bilheteria da empresa, haja vista que nestes constata-se um predomínio de
distribuidoras nacionais, como pode ser observado na tabela abaixo, revelando um forte indicativo de orga-
nização do mercado.
Tabela 2 - Os dez filmes de menor bilheteria da Lereby Produções entre 1999-2010
O Homem Que
Lírio Ferreira 2010 Espaço Filmes 19.247 15 Documentário
Engarrafava Nuvens
Assim, enquanto entre os filmes mais vistos a produções dramáticas as mais produzidas, já em re-
distribuição das majors é predominante, na tabela lação aos gêneros dos filmes menos populares, con-
das piores bilheterias oito produções são distribu- centram-se os dramas e os documentários. Assim,
ídas por empresas nacionais. Isso ocorre porque as além das distintas bases no setor de distribuição,
majors têm grande influência e autonomia no cam- entre empresas nacionais e internacionais, e de exi-
po cinematográfico brasileiro, em função do catá- bição, se considerarmos a imensa diferença no nú-
logo de sucessos que possuem e dos altos recursos mero de cópias que os filmes de maiores bilheterias
para marketing e reprodução de cópias. A atuação chegaram ao mercado em comparação aos demais,
destas empresas contribui para o controle do seg- outra discrepância entre estas duas tabelas está no
mento cinematográfico nacional, problematizando, fato de que nenhuma comédia consta entre os fil-
assim, o tema da diversidade cultural na medida em mes de pior êxito de público, mostrando-se, nova-
que impõe ainda mais empecilhos ao filme brasilei- mente, como o gênero de maior responsabilidade no
ro independente (RUY, 2011). Seus alcances de mer- crescimento da empresa.
cado dificilmente são comparáveis a atuações de No recorte de tempo selecionado, isto é, entre
empresas nacionais – ainda que quantitativamente 1999 e 2010, a Lereby Produções desenvolveu seus 910
a Downtown Filmes se mostre relevante no mapea- trabalhos como produtora, coprodutora e produtora
mento realizado, seu retorno de mercado é infinita- associada, crescendo consideravelmente ao longo
mente inferior. dos anos. Em termos de bilheteria: quatro dos seus
Isto aponta uma dificuldade da atividade ci- filmes alcançaram até 50 mil espectadores, 22 deles,
nematográfica no Brasil de superar as barreiras da a grande maioria, encontram-se na faixa entre 50
distribuição e exibição, uma desvantagem histórica mil e 500 mil espectadores; nove estão entre 500 mil
que pouco conseguimos reaver, ainda que no con- e um milhão de espectadores; e 13 dos 48 filmes es-
texto de pós-Retomada do cinema nacional algumas tudados alcançaram mais de um milhão em público.
mudanças tenham sido realizadas em todos os eixos A quantidade e continuidade de filmes de-
do campo – muito em função do Fundo Setorial do senvolvidos pela empresa não são comuns a uma
Audiovisual, medida legislativa criada em 2006 para produtora brasileira, e seu alcance de bilheteria é
atender e apoiar, justamente, os gargalos mais pro- igualmente representativo no mercado, como já
blemáticos da indústria do audiovisual no Brasil. apontamos. Parte desse espaço foi conseguido atra-
Além disso, vale ressaltar que são comédias os vés da parceria que constantemente estabelece com
filmes da Lereby mais vistos, ainda que sejam as a Globo Filmes e pela própria história e atuação de
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Daniel Filho como homem de negócio e mente cria- e no que Justin Wyatt (2006) chama de high concept,
tiva da empresa. Essa relação de aproximação es- ou seja, produções com características claras, de fá-
tética e produtiva entre televisão e cinema é o que cil compreensão visual e temática, filmes definidos
permite, por exemplo, que o próprio Daniel Filho rapidamente e baseados em gêneros estabelecidos
seja diretor de três dos dez filmes mais vistos na pri- historicamente pelo meio, trilhas sonoras com apelo
meira década dos anos 2000, além de ser o segundo popular e grande atuação de marketing, impulsio-
cineasta de produção ficcional que mais produziu nando muitas vezes sequências de grandes sucessos.
no período, depois do potiguar Moacyr Góes, com Assim, pensando na lógica do mercado e na repro-
onze produções lançadas (EDUARDO, et al. 2011). dução de fórmulas já testadas e aceitas pelo público,
A existência dos filmes da Lereby Produções os filmes comerciais acabam muitas vezes represen-
é importante para a representatividade da cultura tando a realidade, que é, no contexto da contempo-
brasileira no circuito comercial das salas de cine- raneidade, múltipla, instável e fragmentada, como
ma, no entanto faz-se necessário pensar também algo estável, sem ambiguidades e de fácil apreensão.
nas implicações que tais estratégias suscitam para Essas decisões têm impactado o mercado de fil-
a perspectiva cultural do povo brasileiro. Como o mes comerciais no Brasil, atuando como uma força 911
mercado não consegue atender a quantidade total de moldagem – não por acaso, cada vez mais é pos-
de filmes produzidos no País, e a parcela disponível sível encontrar filmes brasileiros em salas de exibi-
é muito pequena e competitiva, o setor de exibição ção explorando narrativa com códigos e convenções
tende a priorizar filmes com potencial de bilheteria televisivos, uso de atores famosos em outras mídias,
alto, acabando por dar espaço a uma parcela muito distribuição feita por empresas internacionais, pro-
pequena de representatividade cultural e fazendo duções ágeis, lineares, uso de estúdios e foco no
deste modelo um imperativo no mercado, um fator grande público. Um modelo que tomou forma e for-
de moldagem (BOURDIEU, 2009), se perpetuando e ça na contemporaneidade.
dominando certos sistemas de valores.
Inserindo-se dentro da logística da indústria CONSIDERAÇÕES FINAIS
cultural, que obedece à lei da concorrência para a
conquista do maior mercado possível, a produção da A discussão sobre a representação da identida-
Lereby procura atender a um grande número de es- de brasileira sempre existiu no cinema nacional, mas
pectadores, fazendo uso, para isso, de uma produção conquista ainda mais força a partir de meados da dé-
pautada no gosto do público médio (MORIN, 1997), cada de 1990. Depois de um breve período de crise,
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há um desejo evidente no cinema nacional de voltar a Assim, considerando que a linguagem cinema-
falar coisas sobre e para o povo, ressaltando as múlti- tográfica, como outra qualquer, é um sistema de
plas realidades existentes no país. Embora uma certa representação onde são veiculados os significados
diversidade de representação e de modos de produção sociais, sendo estes móveis, fluídos (HALL, 1997), e
sejam evidenciados no campo cinematográfico con- na medida em que o outro é importante para a for-
temporâneo, a disputa pelas salas comerciais engen- mação de nossa própria cultura e identidade nacio-
dra uma batalha difícil para os pequenos investidores nal, pois nenhuma cultura é isolada, se construindo
independentes, sufocando o mercado e favorecendo na relação com o(s) outro(s), dentro do processo de
uma parcela muito pequena de produções. alteridade (HALL, 2003), entende-se que o mercado
Em termos de representatividade, esse fator é cinematográfico não pode ser um caminho de vei-
prejudicial para o cinema nacional e, principalmen- culação de tradições dominantes, e sim um campo
te, para o povo brasileiro, tendo em vista que, como artístico-comunicacional que articule as diversida-
sugere Goffman (2006), não há cultura homogênea, des e multiplicidades da sociedade na qual se insere,
e a indústria precisa representar a diversidade de e que precisam, em alguma instância, poder se re-
manifestações, crenças, ideologias e identidades da presentar e se ver representadas. 912
sociedade. O problema não está essencialmente nos
discursos fílmicos como os desenvolvidos pela Lere- REFERÊNCIAS
by Produções, pois é natural que em toda cinemato-
grafia exista um modelo com mais capital financeiro AUTRAN, Arthur. As concepções de público no pensa-
mento industrial cinematográfico. Revista FAMECOS,
e simbólico capaz de abrir espaço midiático, mas está
Porto Alegre, nº 36, p. 84-90, agosto de 2008.
efetivamente na organização do mercado que tende
a supervalorizar esse sistema, beneficiando-o mui- BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.
tas vezes em função do apelo comercial que possui, São Paulo: Perspectiva, 2009. 361 p.
e negligenciando a esfera política que a dominação
CAUNE, Jean. Cultura e comunicação: convergências
das salas de exibição nacionais acarreta para o país.
teóricas e lugares de mediação. São Paulo: Editora Unesp,
Desta forma, além de bombardeados por referências 2014. 137 p.
norte-americanas, a única grande representação que
temos acesso no mercado comercial nos apresenta EAGLETON, Terry. A Ideia de Cultura. São Paulo: Editora
uma visão limitada de cultura brasileira, quando na UNESP, 2011. 208 p.
verdade somos múltiplos e fragmentados.
Sumário
EDUARDO, Cléber; VALENTE, Eduardo & VIEIRA, João SHOHAT, Ella & STAM, Robert. Crítica à imagem euro-
Luiz. Cinema Brasileiro Anos 2000, 10 Questões. Centro cêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 528 p.
Cultural Banco do Brasil, 2011. Disponível em: http://www.
revistacinetica.com.br/anos2000/downloads/Catalogo_com- SILVA, João Guilherme Barone e. Assimetrias, dilemas
pleto.pdf. Acessado em 08 de agosto de 2016. e axiomas do cinema brasileiro nos anos 2000. Porto
Alegre: Revista Famecos, vol. 18, nº3, p. 916-932, 2011.
FILHO, Daniel. O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 259 p. WYATT, Justin. High concept: movies and marketing in
Hollywood. Austin: University of Texas Press, 2006. 249 p.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida coti-
diana. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006. 236 p.