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Josefina Álvares
de Azevedo
TEATRO E PROPAGANDA SUFRAGISTA NO BRASIL DO SÉCULO XIX1

Valéria Andrade Souto Maior*

S urgido no Brasil, de forma organizada, durante blica um artigo intitulado “Igualdade de direitos”,
a década de 1920, o movimento pela conquista em que afirma: “Desejamos que os senhores do
dos direitos políticos das mulheres ensaia seus sexo forte saibam que se nos podem mandar, em
primeiros passos já na segunda metade do sé- suas leis, subir ao cadafalso, mesmo pelas idéias
culo XIX, momento em que, por entre as dobras políticas que tivermos, [...], também nos devem a
do projeto modernizador que então começara a justiça de igualdade de direitos, tocante ao direito
se implantar no país, tem início o processo de de votar e o de sermos votadas.”
formação de uma nova consciência acerca das
relações sociais entre os sexos. Assim, ainda Devemos nos lembrar também de Ana Eurídice
que isoladas, podemos identificar algumas vozes Eufrosina de Barandas (1806-?), uma das nos-
femininas que, anteriores à de Bertha Lutz (1894- sas primeiras escritoras a reivindicar publica-
1976), figura central da campanha sufragista bra- mente, embora não pelas páginas de um jornal,
sileira, impõem-se como iniciativas embrionárias o direito das mulheres terem e expressarem sua
da mobilização das mulheres na luta por seus opinião em questões políticas. Num texto intitu-
direitos à cidadania. lado Diálogos, escrito em 1836, e publicado em
coletânea em 1845, Ana Eurídice recrimina du-
Essas outras mulheres – vozes ilhadas, sim, ramente a atitude repressiva dos homens frente
mas que não se deixaram intimidar por isso – se à participação das mulheres no debate político
pronunciaram por meio de seus muitos escritos,
Acervo Valéria Andrade Souto Maior

que faziam circular pela imprensa, buscando for-


mar uma opinião pública a favor do seu ideário
de emancipação feminina, tal como faziam, na
época, quaisquer grupos com pretensão de se
apresentar à sociedade com novas idéias.

Um nome a guardar na memória, neste sentido, é


Francisca Senhorinha da Motta Diniz (séc. XIX-?).
Fundadora, editora e redatora de um dos vários
jornais de orientação feminista surgidos país
afora a partir das três últimas décadas do século
XIX – O Sexo Feminino –, a professora Francisca
Diniz, já nos idos de 1875, não perdeu a chance
de informar o público leitor da época sobre uma
proposta relativa ao sufrágio feminino feita no
país décadas antes pelo senador Manoel Alves
Branco (1797-1855). No final da década de 1880,
seu jornal, rebatizado como O Quinze de Novem-
bro do Sexo Feminino desde a mudança do regi-
me político no país, ganha uma coluna exclusiva
para tratar da questão. E em abril de 1890, pu- Josefina Álvares de Azevedo, retratada por L. Amaral

*
Doutora em Letras, pesquisadora DCR/CNPq, atuando presentemente como professora junto ao Programa de Pós-
Graduação em Letras/UFPB (val_andrade4@yahoo.com.br).
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que agitava a Porto Alegre da época, em torno da está quase todo por desvendar. A data de seu
da Guerra dos Farrapos. nascimento, 5 de março de 1851, é o único dado
mais preciso de que dispomos por enquanto.
Não nos deve escapar o nome de Isabel de Sou- Outros são desconhecidos ou desencontrados.
sa Matos (séc. XIX). Cirurgiã-dentista, no ano de Segundo o registrado por Blake4 (e repetido na
1885, requereu seu alistamento eleitoral na sua maioria das poucas referências sobre a autora),
cidade natal (São José do Norte/RS) com base ela seria natural de Itaboraí (RJ) e irmã – por par-
na Lei Saraiva (09/01/1881) – que garantia o di- te de pai e, ao que parece, ilegítima – do gênio
reito de voto aos portadores de títulos científicos. do nosso romantismo, Manoel Antonio Álvares
Com o advento da República e a convocação de de Azevedo (1831-1852). No entanto, conforme
eleições para a Assembléia Constituinte, Isabel declarações da própria autora (que localizamos
de Matos, que se transferira para o Rio de Ja- há alguns anos no seu jornal, o combativo A Fa-
neiro por aquela época, procura a comissão de mília, sobre o qual falaremos adiante), sua terra
alistamento eleitoral da Capital Federal na tenta- natal era Recife (Pernambuco) e o poeta famoso
tiva de garantir novamente o pleno exercício dos era seu primo e não seu irmão. Evidente que
seus direitos de cidadã. O parecer do governo, não descartamos a hipótese de que, para não
contrário ao pleito da Dra. Isabel, seria o mote se expor socialmente na condição degradante de
para exacerbar os ânimos feministas em torno da filha bastarda, Josefina preferisse não se assumir
inclusão das mulheres no espaço político, como como meio-irmã de Álvares de Azevedo. Contudo,
os da professora Josefina
Acervo Valéria Andrade Souto Maior

Álvares de Azevedo (1851-


?), cujas iniciativas, desde
que se instalara o novo
regime político, vinham se
desenvolvendo, como vere-
mos adiante, como autênti-
co ativismo sufragista. Seja
pelo seu percurso intelec-
tual, literário e profissional
inteiramente dedicado ao
ideal de emancipação fe-
minina no Brasil, seja prin-
cipalmente pelo seu papel
relevante e inquestionável
nas discussões pelo direito
ao voto feminino na nossa
Constituição de 1891, Jo-
sefina Álvares de Azevedo
tem seu nome gravado na
história do nosso sufra-
gismo em seus momentos
inaugurais2.

Apesar do sobrenome fa-


moso e de compartilhar um
lugar de vanguarda na his-
tória do feminismo brasileiro
com Nísia Floresta (1810-
1885)3, quase tudo o que
sabemos sobre Josefina
de Álvares Azevedo guarda
relação apenas com sua
trajetória como escritora e
intelectual.

Seu perfil biográfico, em


termos de vida pessoal, ain- Revista A Família, nº 72, de 21 de Agosto de 1890
6
DAH-ALESP e publicou foi com o objetivo
primeiro de intervir na ordem
social e política do seu tempo,
buscando criar condições mais
justas e igualitárias para mu-
lheres e homens.

Saindo de Recife por volta de


1877, nossa autora segue para
São Paulo. No ano seguinte,
já então radicada na cidade,
a “infatigável feminista, [...],
num livro que fez sensação,
anunciou que se levantava uma
voz de mulher para a grande
reivindicação,” segundo nos
informa Barros Vidal6. No final
de 1888, ainda em São Paulo,
Josefina funda o jornal A Fa-
mília. Seis meses depois, se
transfere para o Rio de Janei-
ro, onde suas expectativas de
melhores oportunidades para
divulgar suas idéias não seriam
frustradas. Sua folha circularia
ali, ininterruptamente até 1897,
ano de publicação de Galleria
illustre (Mulheres celebres)7,
seu terceiro e último livro de
que temos notícia. Em 1898, A
Família volta a circular, como se
depreende da nota de agrade-
cimento da redatora da revista
A Mensageira, que recebera o
primeiro número da “nova fase”
do jornal8. Depois disto, ao que
sabemos, não há registros so-
bre essa mulher que, embora
o caráter testemunhal da informação, como tam- se julgasse “pouco hábil em esgrimir a pena”9, o
bém daquela relativa à naturalidade da autora, fez, com maestria, muita coragem e verdadeira
nos autoriza a considerá-las como mais próximas devoção, em sua luta pela cidadania das mulhe-
da veracidade. Sobre outros fatos da sua vida pri- res brasileiras.
vada, há indícios de que Josefina viveu em Recife
até os 26 anos e vivenciou, de modo exemplar, a Nas páginas do jornal A Família, a educação foi
experiência da maternidade, mas nada sabemos, a primeira causa defendida pela ativista, que a
por exemplo, sobre quantos filhos teve, se foi ca- considerava condição sine qua non para a eman-
sada, quem foi sua mãe, onde fez seus estudos, cipação feminina. A princípio, sua postura arroja-
onde e como passou a infância e juventude, onde da se evidencia por reivindicar para as mulheres
e quando veio a falecer5. uma “educação sólida e desenvolvida”, que as
preparasse “para todos os misteres da vida,
Em contrapartida, sua obra jornalística e lite- como dignas e leais companheiras do homem,
rária, produzida integralmente em função da tão capazes de desempenhar altas funções do
defesa dos direitos femininos, nos oferece uma estado, como as secundárias obrigações que
espécie de retrato de corpo inteiro do que foi sua lhe competem na família”10. Mais tarde, ela se
vida. Suas narrativas (contos, artigos, esboços caracteriza por doses maciças de audácia e
biográficos), seus versos, suas traduções, seu agressividade. Em 1890, por exemplo, quando
texto teatral – praticamente tudo o que escreveu Benjamin Constant, então Ministro dos Cor-
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Acervo Iconographia
reios e Instrução, assinou um decreto vedando
o acesso feminino às escolas de nível superior,
Josefina o atacou frontalmente, recriminando a
doutrina positivista que o inspirava.

Embora menos radicais em suas posições, as co-


laboradoras do avançado jornal11 enfatizavam que
somente através de uma educação completa se
poderia elevar o status da mulher na sociedade,
inclusive fora do lar. Algumas delas, como Nar-
cisa Amália (1852-1924), Júlia Lopes de Almeida
(1862-1934) e Inês Sabino (1853-?), eram escri-
toras de renome, enquanto outras, como Anália
Franco (1859-1919), se destacavam por sua ex-
celência como educadoras. A maior parte delas
residia no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas
muitas enviavam suas colaborações de outras
partes do país, como Revocata de Melo (1860-
1945) e Julieta de Melo Monteiro (1863-1928),
do Rio Grande do Sul, Presciliana Duarte de
Almeida (1867-1944), de Minas Gerais, e Maria
Amélia de Queiroz (séc. XIX-?), de Pernambuco.
Outras, como a portuguesa Guiomar Torrezão
(1844-1898) e a francesa Eugénie Potonié Pierre
(séc. XIX-?), mandavam escritos de seus países,
tornando mais evidente a extensa rede formada
pelos diversos grupos de escritoras que, na épo-
ca, mantinham entre si intenso intercâmbio e for-
tes relações de solidariedade12, através do que as
A feminista do Rio Grande do Sul, Natércia da Silveira,
mulheres se viam e se mostravam como seres ca- comemora a concessão do voto feminino
pazes de se equiparar socialmente aos homens. no Rio Grande do Norte, em 1928
Tal como outros jornais editados por mulheres,
A Família servia como “caixa de ressonância do das próprias mulheres que, em geral, aos artigos
movimento feminista brasileiro”13, inclusive divul- pró-emancipação feminina, preferiam leituras mais
gando, assiduamente, exemplos estrangeiros e amenas, com direito a figurinos de moda, receitas
nacionais de mulheres que se distinguiam por de beleza e culinária. Mas não se deixava abater,
sua atuação profissional, fosse nas letras, fosse sempre determinada a “levar adiante uma propa-
em outras áreas, entre elas advocacia, medicina ganda acérrima em prol da educação das minhas
e artes plásticas. patrícias, uma propaganda eficaz, que as liberte
dos estólidos preconceitos da acanhada rotina a
Quando da transferência d’A Família para o Rio que temos sempre obedecido”15. E o fato em si
de Janeiro, em maio de 1889, seu grupo de co- de conseguir manter uma folha redigida exclusi-
laboradoras, já então bem mais numeroso, era vamente por mulheres aparecia-lhe como prova
formado em grande parte por professoras que, a cabal da capacidade feminina de construir sua
exemplo da redatora-chefe, utilizavam suas pági- autonomia16.
nas para protestar publicamente contra a precária
situação da educação feminina, bem como contra Como parte dessa determinação em expandir
a opressão social sobre o sexo feminino. Ao mes- seus ideais libertários, em julho de 1889, a mili-
mo tempo, essas mulheres se serviam do jornal tante faz uma viagem a algumas cidades do Nor-
para dar vazão a suas aptidões literárias, como te-Nordeste do Brasil. Em seu roteiro, inclui as
tantas outras o faziam através dos vários outros capitais da Bahia, Pernambuco, Ceará e Pará,
jornais editados por mulheres que então prolifera- nas quais, recepcionada por colegas da impren-
vam pelo país14. sa, visita educandários públicos e particulares,
sedes de vários jornais, além de órgãos públi-
Desde o início das atividades à frente do jornal, cos, entre os quais as Assembléias Provinciais
Josefina se viu confrontada com as maiores di- de Pernambuco e do Ceará, visando sempre
ficuldades, sobretudo com relação à indiferença conquistar mais assinantes para A Família e,
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desse modo, mais adesões para a causa que – revela suas “primeiras intenções”, que foram,
abraçara17. sem dúvida, fortalecer sua propaganda sufragista
e fixá-la em páginas menos efêmeras que as de
Marco de uma nova fase da mobilização em tor- um jornal. Bastante elogiada pela imprensa em
no da emancipação feminina, a proclamação da geral, a publicação teve seu “potencial bélico”
República foi também a ‘deixa’ para a feminista destacado pelo redator da Gazeta de Notícias,
entrar em cena, ofensivamente, em busca do di- que, apesar de minoria na ala masculina, defen-
reito de voto para as mulheres. A Família, embora dia abertamente os direitos das mulheres23.
conservasse sua proposta primeira de lutar pela
emancipação da mulher via educação, passa a Pouco depois, em abril do mesmo ano, a jorna-
reivindicar para as mulheres também “o direito de lista decide levar ao palco o acalorado debate
intervir nas eleições, de eleger e ser eleitas, como então aberto na imprensa sobre essa questão,
os homens, em igualdade de condições”. Daí em transformando o espaço cênico numa espécie de
diante, Josefina transforma seu jornal em veí- tribuna – o que, aliás, já se fizera na cena brasilei-
culo de propaganda do direito feminino ao voto, ra entre 1855 e 1865, quando, sob inspiração do
através do qual, inclusive, tenta convencer suas teatro realista francês, foram discutidos no palco
contemporâneas da urgência de cada uma tornar- vários problemas sociais enfrentados pela então
se também, em seus lares, uma “propagandista emergente burguesia brasileira24.
acérrima” da causa, da qual dependia sua “eleva-
ção na sociedade”18. Passa então a escrever uma Instigada pelo parecer negativo do então ministro
série de artigos sob o título “O direito de voto”, do Interior, Cesário Alvim, em relação à consulta
argumentando basicamente que, sem o exercício que lhe fizera a comissão de alistamento eleitoral
desse direito pelas mulheres, a igualdade pro pro- referente ao pleito de Isabel de Matos, mencio-
mencio
metida pelo novo regime não
Acervo Valéria Andrade Souto Maior

passava de uma utopia19.

A partir daí, não se satisfazen-


do em travar sua luta apenas
através da imprensa perió-
dica, Josefina vai ampliar e
diversificar seus espaços de
engajamento sufragista. Logo
no início de 1890, manda
imprimir, na própria tipografia
do seu jornal, um opúsculo
intitulado Retalhos20, em que
reproduz vários dos seus ar-
tigos já publicados em A Fa-
mília: os da série “O direito de
voto”, os relativos à questão
da educação da mulher, reu-
nidos sob o título “A mulher
moderna”, bem como uma
crítica impiedosa à comédia
A Doutora, em que ataca
duramente o autor, recrimi-
nando-o por ter pretendido
“chegar à conclusão absurda
de que a profissão médica é
incompatível com a honra de
uma moça”21. A inclusão de
alguns outros textos, meio
desligados da temática cen-
tral da coletânea – como um
artigo sobre problemas de
Imagem do Teatro Recreio do Rio de Janeiro, em 1909.
algumas cidades paulistas e O local, um dos mais populares da cidade, foi palco,
alguns versos humorísticos22 em 1890, da comédia O voto feminino
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nado no início deste artigo, Josefina escreve a que, embora típica da então desgastada comédia
comédia O voto feminino, que vai à cena, no final realista francesa, casava perfeitamente com a in-
do mês seguinte, no Teatro Recreio Dramático25, tenção de expor racionalmente os seus argumen-
um dos mais populares do Rio de Janeiro na épo- tos a favor do voto feminino. Em grande parte da
ca. Levando para o centro da ação dramática uma ação dramática, essa função de porta-voz da au-
querela doméstica gerada pela expectativa da tora fica a cargo do Dr. Florêncio, posto em cena
posição do governo sobre a procedência ou não estrategicamente como a encarnação do homem
do alistamento eleitoral das mulheres, O voto fe- público consciente, sensato e progressista, ideali-
minino enfatiza o ridículo da resistência masculina zado por Josefina para apresentar no Congresso
em aceitar a participação feminina nas questões propostas de extensão da cidadania plena às
políticas da Nação, como também a confiança mulheres31. Ainda assim, é também pela voz das
que as mulheres podiam e deviam depositar nos personagens femininas – Inês, a protagonista, e
congressistas, cuja reunião em Assembléia para sua filha Esmeralda, ambas mais inteligentes,
elaborar a nova constituição do país se anunciava mais fortes e mais decididas que seus maridos
para o semestre seguinte. Nesse sentido, a última – que escutamos o discurso sufragista da autora.
cena da comédia expressa inequivocamente a Em relação ao porta-voz masculino, vale anotar
intenção da autora, já explicitada em seus artigos, que suas intervenções, embora um tanto senten-
de seguir “compelindo os constituintes a firmarem ciosas, são feitas através de frases curtas, muitas
de uma vez para sempre o nosso direito obscu- vezes interrogativas, que se afinam perfeitamente
recido”26. Diante da euforia da grande maioria ao ritmo ágil do diálogo da comédia e, como uma
do bloco masculino, comemorando a exclusão espécie de jogo de pergunta-e-resposta, evoca a
das mulheres do universo de eleitores, uma das dinâmica de uma disputa forense. Ressaltamos a
personagens femininas avisa esperançosa: “Não argúcia da autora ao colocar em cena um raison-
se entusiasmem tanto. Ainda temos um recurso. neur menos problemático que o do modelo fran-
Aguardemos a Constituinte!”27. cês, pois em sua rápida aparição mal há tempo de
começar a ser maçante32.
Embora bastante aplaudida – e, aliás, saudada
calorosamente antes da estréia pela imprensa –, Em termos de eficiência com relação aos seus ob-
O voto feminino termina por subir ao palco apenas jetivos imediatos, impossível pensar que O voto
uma vez. Mas a urgência de continuar com o lo- feminino foi uma experiência bem-sucedida, já
bby junto aos constituintes leva a ativista a buscar que as brasileiras só conquistaram seus direitos
alternativas para exibir sua comédia novamente. políticos quase meio século mais tarde, em 1932.
Nesse mesmo ano, O voto feminino reaparece Mas isso, obviamente, só confirma o caráter de
publicamente outras duas vezes: nos rodapés do vanguarda do ativismo sufragista de Josefina.
jornal A Família, de agosto a novembro e, segun- Como também da sua obra teatral. Quanto a isso,
do consta, em forma de livro28. Além disso, como importa salientar igualmente que a amostra deixa-
parte da coletânea, intitulada A mulher moderna: da pela autora no campo da dramaturgia eviden-
trabalhos de propaganda29, a segunda organizada cia que, se não tivesse sido uma experiência tão
por Josefina e editada no ano seguinte, quando isolada, seu nome estaria, certamente, entre as
a Constituinte ainda se encontrava reunida. Em grandes influências do teatro brasileiro.
cada uma dessas oportunidades, fica patente
o senso estratégico da autora, sempre voltado De outro lado, quanto ao uso das técnicas de
para a necessidade de fortalecer a propaganda dramaturgia, a comédia é um sucesso. Apesar do
sufragista, em especial junto aos parlamentares, fôlego curto e certas fraquezas de composição,
no sentido de que a omissão da Constituição de seus diálogos têm vivacidade, suas personagens
1824 quanto aos direitos eleitorais das mulheres são convincentes, seu humor é afiado e inteligen-
não se repetisse no novo texto constitucional. te. Vale citar, por exemplo, a perspicácia da autora
na caracterização do ex-ministro e ex-conselheiro
Visando, ainda, sensibilizar a opinião pública de Estado Anastácio. Delineado como o mais me-
o mais amplamente possível, Josefina escolhe díocre dos homens – preconceituoso, autoritário,
o caminho sugerido pelo então popularíssimo retrógrado, inescrupuloso e intelectualmente es-
teatro musicado e escreve um texto com traços túpido –, Anastácio é mostrado também como a
de comédia de costumes recheada com breves personificação do egoísmo masculino. Percebido
números musicais. E como pretendia também por Josefina de Azevedo como uma perturbação
intervir na ordem social, tornando-a compatível do espírito dos homens, que os tornava “inaptos
com os avanços do novo tempo inaugurado pelo para as grandes generosidades”, esse egoísmo
novo regime político, inclui um raisonneur30, figura já fora inúmeras vezes apontado por ela, desde
71

seus primeiros artigos sobre o voto feminino, Importa salientar, ainda, que a utilização de
como a única razão pela qual as mulheres ainda alguns dos recursos formais e estilísticos que,
estavam impedidas do pleno exercício dos seus mais tarde, viriam a compor o perfil do teatro
direitos de cidadãs33. No palco, ela não poderia de agitprop34– tais como tipificação hiperbólica
ter sido mais feliz ao materializar esse egoísmo, e maniqueísta das personagens, inclusão de
logo na cena de abertura da comédia, através da números musicais, substituição da organicidade
figura ridícula e desprezível do homem avarento dramática pela montagem ou sucessão de cenas
que, apesar de riquíssimo, se dá ao trabalho mes- – faz da pequena comédia de Josefina Álvares
quinho de conferir uma pequena nota de compras de Azevedo um texto que antecipa, em mais de
do armazém, item por item, preço por preço e, em meio século, a experiência mais efetiva desse
seguida, arma um escândalo, exigindo a presen- teatro no Brasil, só desenvolvida no início dos
ça e as explicações da esposa, porque descobre anos de 1960 pelo movimento teatral do CPC
uma diferença de míseros onze vinténs. Outra da UNE (Centro Popular de Cultura da União
característica risível incluída inteligentemente no Nacional dos Estudantes), sob a liderança de
perfil de Anastácio, para mostrar que os argumen- autores que, como Oduvaldo Vianna Filho,
tos masculinos contrários ao voto das mulheres já então haviam assimilado o arsenal técnico
não tinham qualquer consistência, é um cacoete brechtiano35. Utilizado como instrumento de
lingüístico. As falas de Anastácio são, em geral, ‘agitação e propaganda’ na luta pelos direitos
iniciadas, encerradas ou entremeadas por uma políticos das mulheres, O voto feminino impõe-
expressão completamente esvaziada de significa- se, portanto, como texto teatral emblemático
do, “Ora figas”, que a autora usa para desnudar a do sufragismo à brasileira em sua fase de
incapacidade intelectual da personagem. gestação.

NOTAS

1
O presente artigo tem como ponto de partida nossas pesquisas realizadas desde 1993, com a
proposta de reconstituir a trajetória literária e intelectual da escritora, cujos primeiros resultados
fundamentaram nossa dissertação de mestrado, intitulada O florete e a máscara: Josefina Álvares
de Azevedo, dramaturga do século XIX, defendida na UFSC, em 1995, e publicada em 2001, pela
Editora Mulheres.
2
Para saber mais sobre estas e outras precursoras da nossa literatura de autoria feminina e do pen-
samento feminista brasileiro, ver especialmente BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti.
Mulheres de ontem? São Paulo, T. A. Queiroz, 1989; MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras
brasileiras do século XIX: antologia. 2ª ed. Florianópolis, Mulheres/Edunisc, 2000; SCHUMAHER,
Schuma e VITAL BRAZIL Érico (orgs.) Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000; SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. Entre/linhas e máscaras:
a formação da dramaturgia brasileira de autoria feminina no Brasil do século XIX. João Pessoa,
UFPB, 2001. (Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras); HAHNER, June E.
Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis,
Mulheres/Edunisc, 2003.
3
Um estudo circunstanciado sobre essa fundadora do pensamento feminista no Brasil encontra-se
em DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal, Ed. UFRN, 1995.
4
BLAKE, Augusto V. Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro, Typ.
Nacional, 1883-1902. v. 5, p. 237-8.
5
Para uma abordagem pormenorizada desse quebra-cabeça-ainda-por-montar a que se assemelha
a trajetória de vida de Josefina Álvares de Azevedo, ver SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. O peso
de um nome, uma obra de peso. In: _____. O florete e a máscara: Josefina Álvares de Azevedo,
dramaturga do século XIX. Florianópolis, Mulheres, 2001, p. 39-81.
6
VIDAL, [Olmio de] Barros. Precursoras brasileiras. Rio de Janeiro, A noite, [1944], p. 162. O autor,
infelizmente, não informa sequer o título do livro a que se refere.
Acervo histórico

7
AZEVEDO, Josephina Álvares. Galleria illustre (Mulheres celebres). Rio de Janeiro, A Vapor,
1897.
8
Cf. [ALMEIDA, Presciliana Duarte de.] A Mensageira, São Paulo, p. 240, 15 maio, 1898.
9
AZEVEDO, Josephina Alvares de A mulher moderna: trabalhos de propaganda. Rio de Janeiro,
Montenegro, 1891, p. 133.
10
[AZEVEDO, Josephina Alvares de]. A Família, Rio de Janeiro, 23 fev. 1889, p. 1.
11
Franqueando “suas colunas a todas as senhoras que a queiram honrar com a sua colaboração”, A
Família distinguia-se dos jornais editados por mulheres na segunda metade do século XIX no Brasil,
que eram, em geral, abertos à colaboração de pessoas de ambos os sexos, como nos informa BI-
CALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de Janeiro
em fins do século XIX e início do XX. Rio de Janeiro, Museu Nacional (Dissertação de Mestrado em
Antropologia Social, UFRJ), 1988, p. 12.
12
A esse respeito, ver BERNARDES, op. cit., p. 118-121 e SOARES, Pedro Maia. Feminismo no Rio
Grande do Sul: primeiros apontamentos (1835-1945). BRUSCHINI, Maria Cristina e ROSEMBERG,
Fúlvia (orgs.). Vivência: história, sexualidade e imagens femininas. São Paulo, Brasiliense, 1980, p.
145-6. Há, neste sentido, um interessante artigo de Eugénie Potonié Pierre, que foi traduzido por
Josefina Álvares de Azevedo e publicado na revista A Mensageira, em 1899, no qual sua autora con-
vida as mulheres a se unirem não apenas para proveito próprio, mas para benefício e renovação de
toda a sociedade; cf. PIERRE, [Eugénie] Potonié. A solidariedade feminina. Trad. Josephina Alvares
de Azevedo. A Mensageira, São Paulo, p. 206-8, 15 dez. 1899.
13
A expressão é de SOARES, op. cit., p. 146, em relação ao jornal Corimbo, editado por Revocata
de Melo no Rio Grande do Sul.
14
Ao contrário de A Família, parte dos periódicos femininos surgidos nessa época, como a citada
revista A Mensageira, privilegiava a veiculação dessa produção literária, dedicando-se secundaria-
mente às questões relativas à condição da mulher; cf. PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-menos: a repressão
do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro, Numen, 1991, p. 38.
15
AZEVEDO, Josephina Alvares de. A Família, Rio de Janeiro, 30 jan. 1890, p. 1.
16
Idem. Ibid., p. 1, 27 fev. 1890.
17
Idem. Carnet de voyage. A Família, Rio de Janeiro, 30 nov. 1889, p. 2; 7 dez. 1889, p. 2; 14 dez.
1889, p. 2; 21 dez. 1889, p. 6. No início desse mesmo ano, quando ainda residia em São Paulo,
Josefina anunciou uma viagem sua ao norte do país, para observar o sistema de educação apli-
cado às meninas, informando que, com objetivo idêntico, visitaria também Lisboa, Paris, Espanha,
Estados Unidos e Argentina; cf. [AZEVEDO, Josephina Alvares de.] Novidades. A Família, 19 jan.
1889, p. 8.
18
AZEVEDO, Josephina de. A Família, Rio de Janeiro, 30 nov. 1889, p. 1; 19 abr. 1890, p. 1.
19
[Idem]. O direito de voto. A Família, Rio de Janeiro, 21 dez. 1889, p. 1; 30 nov. 1889, p. 1.
20
Até agora não localizamos nenhum exemplar desse opúsculo. A maior parte das informações
sobre essa publicação foi recolhida nas notas de agradecimento publicadas nos vários jornais que
a receberam e transcritas por Josefina em sua folha; cf. (AZEVEDO, Josephina Alvares de). Como
nos tratam. A Família, Rio de Janeiro, 20 fev. 1890, p. 7-8; 9 mar. 1890, p. 7-8; 16 mar. 1890, p.
8; 23 mar. 1890, p. 8; 14 jun. 1890, p. 3; AZEVEDO, Josephina de. O Apóstolo. A Família, Rio de
Janeiro, 3 maio 1890, p. 6.
21
AZEVEDO, Josephina Alvares de. A doutora. A Família, Rio de Janeiro, 9 nov. 1889, p. 4.
22
Parece razoável pensar que a autora terá aproveitado a ocasião para reproduzir os versos que
publicara em A Família, 7 dez. 1889, p. 5, com o título de “Cidadã ou cidadoa”, em que, sob o
pseudônimo de Zefa, celebra a principal vitória advinda da adoção do termo cidadã: “já se não diz
mais – senhora,/ninguém mais já tem – senhor.”
73

23
[AZEVEDO, Josephina Alvares de]. Como nos tratam. A Família, Rio de Janeiro, 14 jun. 1890,
p. 3.
24
Sobre esse período da história do teatro brasileiro, ver FARIA, João Roberto. O teatro realista
no Brasil: 1855-1865. São Paulo, Perspectiva, 1993. Vale ressaltar que o processo de formação
da tradição de autoria feminina brasileira no campo da dramaturgia desencadeia-se neste pe-
ríodo, tendo como figura central a dramaturga Maria Angélica Ribeiro (1829-1880); cf. SOUTO-
MAIOR, Valéria Andrade. Gabriela e Cancros sociais: a estratégia palimpséstica no teatro de
Maria Angélica Ribeiro. In: AQUINO, Ricardo Bigi e MALUF, Sheila Diab (orgs.). Dramaturgia e
teatro. Maceió,
���������������������������������
Edufal, 2004, p. 305-318.
25
[Idem]. Teatros. A Família, Rio de Janeiro, 17 maio 1890, p. 3-4; 24 maio 1890, p. 3.
26
[AZEVEDO, Josephina Alvares de]. O direito de voto. A Família, Rio de Janeiro, 19 abr. 1890, p.
1; [Idem]. Ainda o nosso direito. A Família, Rio de Janeiro, 26 abr. 1890, p. 1.
27
AZEVEDO, Josephina Alvares de. O voto feminino. ����
In: �������
_____. A mulher moderna, p. 72.
28
Cf. BLAKE, op. cit., v. 5, p. 238. ����������������������������������������������������������������
Até agora, no entanto, nenhum exemplar desse livro foi localiza-
do. Curiosamente, A Família nada registra a respeito desta publicação de O voto feminino.
29
AZEVEDO, A mulher moderna.
30
Encarregado de fazer com que se conheça, através de seus comentários, uma visão ‘objetiva’
ou ‘autoral’ da situação, o raisonneur representa a moral ou o raciocínio adequado. Não ocupan-
do nunca o lugar de protagonista, essa personagem é uma figura marginal e neutra, que dá sua
opinião abalizada, tentando uma síntese ou uma reconciliação dos pontos de vista segundo e,
muitas vezes, é considerado porta-voz do/a autor/a. Herdeiro do coro trágico grego, o raisonneur
aparece sobretudo na época clássica, no teatro de tese e nas formas de peças didáticas; cf. PA-
VIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria L. Pereira. São Paulo, Perspectiva,
1999, p. 323.
31
Ao criar esta personagem, a autora inspirou-se, provavelmente, no médico e jornalista José Lo-
pes da Silva Trovão (1848-1925), deputado pelo Distrito Federal no Congresso Constituinte, que
apresentou emenda concedendo o direito de voto às mulheres. Ver HAHNER, June E. A mulher
brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981. p. 87. Em
seus artigos da série O voto feminino, Josefina refere-se a “opiniões respeitáveis” a favor do voto
feminino na imprensa, mas não o cita nominalmente, como fizera meses antes, conclamando suas
contemporâneas a trabalharem pela eleição de um candidato cuja plataforma incluía o direito elei-
toral das mulheres; cf. AZEVEDO, Josephina de. As mulheres e a eleição. A Família, 6 jul. 1889.
p. 1; Idem. O direito de voto. A Família. 19 abr. 1890. p. 1.
32
Um raisonneur típico da comédia realista de inspiração francesa aparece em O crédito (1857),
de José de Alencar, na pele do protagonista Rodrigo, cujas preleções infindáveis acerca do papel
do dinheiro na sociedade burguesa acabam comprometendo, segundo FARIA, op. cit., 176, a
qualidade formal da peça.
33
AZEVEDO, Josephina Alvares de. A Família, 14 dez. 1889, 21 dez. 1889, 19 abr. 1890. p. 1; 26
abr. 1890. p. 1; 31 maio 1890. p. 1; 11 dez. 1890. p.1.
34
O termo agit-prop vem do russo agitatsiya-propaganda, agitação e propaganda; cf. PAVIS, op.
cit., p. 379. Sobre a gênese e as realizações do teatro de agitprop, ver GARCIA, Silvana. Teatro da
militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo, Perspectiva/EDUSP, 1990.
35
Para mais detalhes sobre essa experiência dramatúrgica realizada por Josefina Álvares de
Azevedo que antecipa a proposta agitpropista desenvolvida no Brasil, ver SOUTO-MAIOR, Valéria
Andrade. A intuição feminista do agitprop no teatro brasileiro em fins do século XIX. Estudos femi-
nistas, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, v. 5, n. 2, p. 275-289, 1997. Uma versão revista deste ensaio
encontra-se no sexto capítulo do nosso Entre/linhas e máscaras, citado acima.
Acervo histórico
Acervo Valéria Andrade Souto Maior

Anúncio da festa artística em benefício do ator Castro, publicado em A Família, 24 de Maio de 1890, p. 4

O voto feminino*
Comédia em um ato

Josefina Álvares de Azevedo

Personagens: CENA 1a.


Anastácio (só)
CONSELHEIRO ANASTÁCIO – Castro
(Ao subir o pano, está sentado com um pequeno
DR. RAFAEL, deputado – Bragança
papel na mão, fazendo contas)
DR. FLORÊNCIO – Germano
ANTONIO, criado – Pinto ANASTÁCIO – Cebolas, 200 réis; azeite doce,
ESMERALDA – Isolina uma garrafa, 640; fósforos, um pacote, 200 réis;
toucinho, um quilo, 1$500: (parando a leitura).
INÊS – Elisa Castro Como está caro o toucinho! (continuando a ler)
JOAQUINA, criada – Luisa Pomi carvão, um saco, 2:000 réis; batatas, 240. Soma 4:
780. Quatro mil setecentos e oitenta, bem certos.
Mas em que foi então que minha mulher gastou
Ação – Rio de Janeiro cinco mil réis?! (chamando para dentro) Senhora!
Oh! Senhora! (pausa) Há de estar lendo os artigos
Época – Atualidade de fundo dos jornais diários. É a sua mania! E en-
quanto lê vai tudo por água abaixo como numa cor-
Sala em casa do conselheiro Anastácio. renteza; não há dinheiro que chegue! (chamando)
Mobília rica. Decoração de luxo. Senhora D. Inês! Oh! Senhora D. Inês

*
Transcrita da versão inserida na coletânea A mulher moderna: trabalhos de propaganda, organizada pela autora da
comédia, publicada em 1891. Foi feita a atualização ortográfica conforme as normas em vigor na língua portuguesa; a
pontuação foi mantida tal como no original; foi feita a correção de erros tipográficos óbvios.
75

INÊS (de dentro) – Já vou, já vou. filha, que anda-me também com as mesmas
ANASTÁCIO – Arre! Que a senhora minha mulher idéias.
em se metendo no gabinete de leitura, não se INÊS – Sem dúvida alguma. E há de aproveitar
lhe importa que a casa caia. Isto é demais. Ora muito, a nossa querida Esmeralda.
figas! ANASTÁCIO – Há de ser muito divertido.
INÊS – Que bonito futuro está reservado à nossa
CENA 2a. filha!
Anastácio e Inês ANASTÁCIO – Se for uma boa mãe de família...
INÊS – Há de ser; e também uma das melhores
INÊS (entrando) – Aqui estou, Senhor Anastácio. figuras da nossa política...
Que barulho! Vão ver que é para aí qualquer ni- ANASTÁCIO – Que diz?
nharia! INÊS – Se passar a lei...
ANASTÁCIO – Ah! Para a senhora tudo é ninha- ANASTÁCIO – Ó senhora, eu já lhe disse que
ria!... não me meta a mulher na política!
INÊS – Decerto. INÊS – Que! Não meter a mulher na política! Oh!
ANASTÁCIO – Pois não é, não senhora, são onze Senhor Anastácio, a mulher não é porventura um
vinténs que faltam nesta conta ... ser humano, perfeitamente igual ao homem?
INÊS – Ora, louvado seja Deus! Por onze vinténs ANASTÁCIO (com calma) – Sei lá! O que sei
um barulho tão grande! é que a política não foi feita para ela. A mulher
ANASTÁCIO – Pois sim, pois sim; mas é que mui- metida em política, santo Deus!... Não me quero
tos onze vinténs arruínam um homem e ... incomodar senhora D. Inês. Vou à chácara tomar
INÊS – E o senhor queria que eu deixasse os um pouco de fresco. Até já. (sai).
meus afazeres para estar a tomar conta destas
insignificâncias... CENA 3a.
ANASTÁCIO – Sem dúvida. É este o dever de Inês (só)
uma boa dona de casa.
INÊS – Meu dever?! Oh! Senhor Anastácio, pois INÊS – São insuportáveis estes monstros de
o senhor quer que a mulher de um ex-conselheiro egoísmo! E quando se lhes fala em concorrermos
esteja a ridicularizar com a criada? com eles na vida pública, é um Deus nos acuda;
ANASTÁCIO – Ridicularias! Ridicularias! Para fazem logo vir o céu abaixo...
a senhora só são importantes as discussões de
política, a literatura piegas desses franchinotes CENA 4a.
que andam peralteando pela rua do Ouvidor, as Inês e Esmeralda
borradelas dos pintores, os teatros, os partidos, e
até os duelos! Senhora D. Inês, a senhora não se ESMERALDA (entra lendo um jornal) – Que que-
sai bem desta vez. Os duelos! reis fazer de uma mulher como vós inteligente,
INÊS – Naturalmente. Então queria o senhor que como vós ativa, como vós ilustrada, como vós
assim não fosse? amante da pátria, e que lhe quer, pode e deve
ANASTÁCIO – Está visto. Ah! Mulheres!... Mu- prestar todos os serviços?!
lheres!... INÊS (que tem estado a prestar muita atenção)
INÊS – Já não estamos no tempo da mulher – Sim, sim, o que querem os homens fazer de
objeto de casa, escrava das impertinências mas- uma mulher assim?
culinas. ESMERALDA – Oh! Minha mãe, que belo artigo
ANASTÁCIO – Ora figas, senhora Inês! o do Dr. Florêncio, publicado no Correio do Povo
INÊS – Estamos no fim do século XIX, em que de ontem.
o livre arbítrio faz de cada criatura um ser igual- INÊS – É um grande talento!
mente forte para as lutas da vida, ouviu? ESMERALDA – Tem feito do voto feminino uma
ANASTÁCIO – Tá, tá, tá, tá. Ora figas! Qual lutas campanha célebre.
da vida! Qual livre arbítrio! Qual século XIX! Qual INÊS – E há de vencer.
nada! A mulher foi feita para os arranjos de casa ESMERALDA – Se vencerá!
e nada mais! INÊS – Em passando a lei, já se sabe, hás de te
INÊS– O senhor está me desacatando! apresentar para deputada1.
ANASTÁCIO – Ora figas! A senhora é que não ESMERALDA – Eu, minha mãe?
está em si; perdeu a razão. INÊS – Sem dúvida. Pois não estás habilitada
INÊS – Ah! Não quer que nós tenhamos direitos?! para isso?
ANASTÁCIO – Não, decerto. O pior é que a se- ESMERALDA – Sim, estou habilitada. Mas meu
nhora já está transtornando a cabeça de minha marido?
Acervo histórico

INÊS – Ora, o teu marido! Que se empregue em INÊS – Que demora!


outra coisa. ESMERALDA – É possível que seja decretada,
ESMERALDA – É bom de dizer, a senhora sabe, não? E o que dizes tu?
que ele tem sido sempre deputado... E não há INÊS (aparte) – O que diz? Nada, como de cos-
melhor emprego do que esse. tume.
INÊS – De ora em diante serás tu. Se lhe hás de RAFAEL – Eu!... Eu!... Aplaudo com entusiasmo
estar todas as noites a ensinar o que ele há de essa propaganda.
dizer, vai tu mesma dizer o que sabes. ESMERALDA (sorrindo) – Aplaudes? Fazes muito
ESMERALDA – Pobre Rafael! Ele que deseja bem.
tanto subir!... RAFAEL – E dou-lhes o meu voto.
INÊS – Sobe tu. Faz-te deputada, (aparece ao ESMERALDA – Enfim, vamos ter o direito de
fundo a criada) depois senadora, depois ministra, voto.
e talvez que ainda possas chegar a ser presidente INÊS – E o de sermos votadas.
da república...
CENA 7a.
CENA 5a. Os mesmos e Anastácio
Inês, Esmeralda e Joaquina
ANASTÁCIO (entrando, furioso) – Que pouca
JOAQUINA (entrando) – Quem? O senhor Rafael? vergonha!
INÊS – Não tola; a Esmeralda. INÊS – Ora, até que enfim, já se pode ser mulher
JOAQUINA (admirada) – Uê! nesta terra!
ESMERALDA – Ora, mamãe, isso não se faz ANASTÁCIO – Como diz?
assim. INÊS – Digo-lhe que o direito de voto às mulheres
INÊS – Como não; faz-se sim, senhora. E eu hei vai ser decretado pelo ministro.
de ser tua secretária. ANASTÁCIO – Está doida, minha senhora.
JOAQUINA (contente) – Que belo! Nesse tempo ESMERALDA – Está em consulta, meu pai.
eu ficarei sendo sua criada grave. RAFAEL – Está, não; subiu para o ministro.
INÊS – É verdade, poderás proteger essa rapari- ANASTÁCIO – Figas! Figas, é o que é. Pode lá
ga arranjando-lhe algum emprego razoável. dar-se semelhante patifaria.
JOAQUINA – Olhe, minha ama, sabe o que eu INÊS – Patifaria, não. É a coisa mais justa deste
queria ser? mundo.
ESMERALDA – Diz lá. ANASTÁCIO – Se tal acontecer pode-se dizer
JOAQUINA – Aquele homem que anda num carro que o Brasil é uma terra de malucos.
fechado e com dois soldados a cavalo... INÊS – Senhor Anastácio, não me faça falar...
ESMERALDA – Oh! Mulher! Querias logo ser ANASTÁCIO – Senhora D. Inês, lembre-se de
ministra? que eu sou um ex-conselheiro de Estado do ex-
INÊS – Isso é impossível, Joaquina. Império e já fui ministro!
JOAQUINA – Eu sei lá! Queria ser uma coisa que INÊS – Lembro-me, sim; e por sinal que não era o
pudesse mandar os soldados. senhor quem escrevia os despachos; mas sim eu
ESMERALDA – Mandar soldados, para quê? e minha filha, que nem sequer tínhamos o direito
JOAQUINA – Para nada, não senhora. (aparte) de assiná-los.
Para mandar prender aquele ingrato do seu Anto- ANASTÁCIO – Figas! Figas! A senhora não sabe
nico que não se quer casar comigo. (sai) que é mulher?
INÊS (que tem estado a conversar com Esmeral- INÊS – E o senhor não sabe que uma mulher não
da, durante o aparte de Joaquina) – No dia em é inferior ao homem?
que for decretado o nosso direito de voto... ANASTÁCIO – É, é, e será sempre. Para mim
nem há dúvida.
CENA 6a. ESMERALDA – Isto é conforme, papá.
As mesmas e Dr. Rafael RAFAEL – Sim, é conforme.
ANASTÁCIO – Qual conforme! É e é!
RAFAEL (entrando) – Esmeralda, minha boa ami- INÊS – Não é, não é e não é. Que desaforo! A
ga! Senhora D. Inês... mulher inferior ao homem! Então foi para ser infe-
ESMERALDA – Foi decretada? rior a um carroceiro que o senhor mandou educar
RAFAEL – A lei do voto feminino... sua filha?
INÊS – O ministro já decidiu? ANASTÁCIO – Foi para ser uma belíssima mãe
RAFAEL – Ainda não. Espera-se a todo o de família. Ora figas!
momento. RAFAEL (entusiasmando–se) – Apoiado.


INÊS (olhando para Rafael) – Foi para ensinar ao ANASTÁCIO – Que querem que façam os ho-
marido, assim como eu ensinei ao senhor. Ora aí mens? Que cedam o lugar às mulheres? Que vão
está para o que foi! para a cozinha? Que vão dar ponto nas meias?...
ANASTÁCIO – Pois que fosse; mas não para ser Que vão... amamentar crianças?
votante... Ora figas! Figas! ESMERALDA – Ninguém diz isso. Ninguém quer
RAFAEL (baixo a Inês) – D. Inês, olhe que isso é tirar o lugar aos homens, sem por isso continuar-
muito pesado! mos nós na humilhante condição em que temos
ESMERALDA – Mas isso não é justo, meu pai. jazido até hoje.
ANASTÁCIO – Ah! Também pensas como tua ANASTÁCIO – É o mesmo estribilho. Esta gente
mãe! Aqui está o que são as mulheres de hoje! O está idiota.
que todas vocês querem é ficar livres... para não INÊS – O Senhor é que parece que perdeu a razão.
prestarem mais obediência a ninguém. Mas tal ANASTÁCIO (dirigindo–se a Rafael) – Meu gen-
não há de acontecer. Figas! ro, estamos perdidos, a revolução das saias en-
ESMERALDA – Mas meu pai... trou-nos porta dentro: é preciso reagir. A mulher
ANASTÁCIO (colérico) – Qual teu pai, qual votante! Com direito aos cargos públicos! Que
nada! desgraça! Que calamidade!
ESMERALDA – Acalme-se! INÊS – Calamidade é a de termos homens como
ANASTÁCIO – Isto não tem cabimento. o senhor que procuram aniquilar os nossos direi-
INÊS – Ah! Querem a eterna humilhação! tos em proveito da sua vaidade.
ANASTÁCIO (passeando, agitado) – Figas! Figas! ANASTÁCIO (para Rafael) – O que diz a isso?
INÊS – Havemos de ser iguais; se a mulher está RAFAEL (atrapalhado, olhando para Esmeralda)
habilitada para ser mãe, essa missão sublime e – Eu... eu não digo nada.
grandiosa, porque o não há de estar para exercer ANASTÁCIO – Se o senhor tem aprovado a ati-
o direito de voto? tude delas.
Acervo Iconographia

Charge publicada na revista O Malho, em 23 de junho de 1917


Acervo histórico

ESMERALDA – Porque é justo meu pai. JOAQUINA (entrando) – Que balbúrdia! Parece
ANASTÁCIO – Até a senhora! Está desejosa por um dia de juízo o dia de hoje nesta casa. Ouvi
votar e ser votada, ir ao parlamento, sobraçar uma falar em conspiração! Há de ser a política das
pasta, andar de coupé e ordenanças! São assim patroas! Até que desta vez vou ser aquele homem
todas as mulheres. Ah! Mas eu hei de ensiná-las! do carro e dos soldados. A patroazinha vai ser
Agora é comigo. Senhor meu genro, venha daí. É uma grande coisa! E eu apanho o meu lugarzi-
preciso ser homem, ouviu? Ser homem! (empur- nho. Então sim, (aparece Antonio à porta) mando
rando-o na frente) Ande, mexa-se. Até já, D. Inês. prender o Antonio e se ele quiser que o solte há
(saem os dois). de casar-se comigo.

CENA 8a. CENA 10a.


Esmeralda e Inês Joaquina e Antonio

INÊS (indo a porta) – Vão conspirar? Pois vão, ANTONIO – Para isso não é preciso prender-
que os havemos de ensinar. me.
ESMERALDA – O quê! Pois pensa que eles serão JOAQUINA – Ui!
capazes... ANTONIO – Não te assustes, meu quitute; sou eu.
INÊS – Teu marido não, que é uma mosca morta, JOAQUINA – Que medo! (canta)
um toleirão; mas teu pai...
ESMERALDA – Meu marido tenho a certeza de DUETO
que não se atreveria ...
INÊS – Ora, ora! Teu pai o convencerá. JOAQUINA – Oh! Que medo tão danado!
ESMERALDA – Mas isto é horrível. Conspirarem Me fizeste agora entrando.
contra os nossos direitos é matar-nos a esperan- ANTONIO – Pois te assustas, meu bem, quando
ça de... Meu prazer é ter entrado?!
INÊS – É horrível! E diante disso não podemos JOAQUINA – Tenho nervos, sou medrosa
cruzar os braços! ANTONIO – Nervos assim, tentação?...
ESMERALDA – Mas os outros homens? JOAQUINA – Esta surpresa!...
INÊS – São todos iguais. ANTONIO – Vaidosa! Se tivesses coração...
ESMERALDA – Que fazer, então?
INÊS – Vamos ao encontro da sua conspira- JUNTOS – Pode o amor vir de surpresa,
ção. Que bem vale um susto o amor.
ESMERALDA – Neste caso, vamos! Passa o susto e se despreza
INÊS – É a conspiração das saias. Hei de mostrar Toda a idéia de terror.
a esses homenzinhos para quanto presta uma
mulher. Vamos Esmeralda. ANTONIO – Não foi nada; passou.
JOAQUINA – Não faça outra; ainda estou a tre-
DUETO mer. Para outra vez...
ANTONIO – Para outra vez, hei de pedir licença...
ESMERALDA – Eia à luta! para entrar.
INÊS – Eia à luta! Pois é certa esta vitória. JOAQUINA – Por força; cá não se entra sem mais
ESMERALDA – Batalhemos sem temor. aquela...
INÊS – Sem temor que é nossa a glória. ANTONIO – Ora, adeus! Eu é que, em gostando
ESMERALDA – Seja o homem forte embora... dum derriço como tu, não estou com cerimônias...
INÊS – Sempre é forte o vencedor! vou entrando... E não faço caso de que me man-
ESMERALDA – Sejamos fortes... dem prender, porque como tu sabes, o pássaro
INÊS – Lutemos! preso na gaiola também canta, depois da prisão
ESMERALDA – Venceremos pelo amor! vem a soltura...
JOAQUINA – E quem falou em prendê-lo? (apar-
JUNTAS – Caia o homem! Mulher acima! te) Ouviu tudo!
Homem abaixo é o que se quer. ANTONIO – Você mesmo. E não sei para quê...
Pois que é chegado o reinado se eu já estou preso pelo beicinho...
Glorioso da mulher! (terminado o JOAQUINA – Eu cá me entendo. Os homens... É
dueto saem) verdade: que vieste aqui fazer?
ANTONIO – Eu? Vim procurar o patrão... e ver-te.
CENA 9a. Ora, aí está!
Joaquina (só) JOAQUINA – Ver-me? Só?... (suspira)


ANTONIO – Só... e procurar o patrão! JOAQUINA – Sim, senhor! Agora somos nós que
JOAQUINA – Ver-me só!... (suspira) Ai! Ai! vamos para os empregos.
ANTONIO (suspirando) – Só!... se nós já fosse- ANTONIO – Oh! Joaquina! Ou tu estás doida, ou
mos casados!... estás brincando...
JOAQUINA – Casados! Ah! O fingido! Como sus- JOAQUINA – É sério! Eu já pedi a patroa o meu
pira! emprego. É aquele em que a gente anda sentada
ANTONIO – Casados, sim. Pois tu não és a minha num carrinho com os soldados a cavalo atrás...
noiva? ANTONIO – E eu que fico fazendo?
JOAQUINA – Sou. E podemos ser muito felizes. JOAQUINA – Tu não precisas trabalhar, não, ficas
Olha, vai passar-se aqui uma cons... uma cons... em casa.
Como é mesmo? ANTONIO – Para lavar as tuas saias e esfregar
ANTONIO – Eu sei lá mulher! Seja o que for. a tua roupa? Eu nunca tive jeito para esfrega-
JOAQUINA – Pois sim! A patroazinha vai ser mi- ções...
nistro... JOAQUINA – Como é bom!
ANTONIO – O quê ? ANTONIO – O quê? As esfregações? Nada, eu
JOAQUINA – Ministro! não sou homem para estas coisas. Não quero...
ANTONIO – Estás doida, mulher! JOAQUINA – Ah! Se não quiseres assim...
JOAQUINA – Ministro, sim! Ora aí está. E eu vou ter ANTONIO – Que descaramento!
um bonito emprego. Depois me casarei contigo... JOAQUINA – Qual nada! A mulher está na pon-
ANTONIO (desconfiado, aparte, olhando-a muito) ta!
– Que diz ela? Estará doida? Hom’essa!... (conti- ANTONIO – Sim... sim... na ponta da cozinha ou,
nua a olhá-la) quando muito, na do quintal!
JOAQUINA – E tu também terás emprego... JOAQUINA – Olha, eu gosto muito de ti; mas lá
ANTONIO (resoluto) – Menos essa! Eu é que não por isso não é que eu hei de deixar o meu empre-
quero esse emprego! go. Se quiseres casar comigo é assim; se não é
JOAQUINA – Então é porque não sabes o que há. chuchar no dedo. (sai)
ANTONIO – O que há?
JOAQUINA – As mulheres agora vão ser como os CENA 11a.
homens. Antonio, Rafael e Anastácio
ANTONIO – Como os homens? E os homens?
JOAQUINA – Como as mulheres. ANTONIO (só) – E esta! Ser obrigado a fazer
ANTONIO – Livra! de mulher para fisgar este diabo! É horroroso!
FGV/CPDOC. Col. Almerinda Farias Gama

Após quatro décadas, as brasileiras conquistam, em 1932, o direito de voto.


Na foto, a representante classista Almerinda Farias Gama vota na Constituinte de 1934
Acervo histórico

Porque afinal de contas, se isto acontecer, serei CENA 12a.


obrigado a escamar o peixe, limpar o quarto da Os mesmos e Dr. Florêncio
mulher, lavar a roupa e fazer a goma para as
saias! Isto põe um homem na espinha! Porém DOUTOR – Bom dia! Que é isso? Vejo-os exal-
no meio disto tudo, do que eu tenho birra é da tados!
cozinha! Cozinhar, eu?... Que sempre tive quizí- ANASTÁCIO – Muito obrigado! O senhor é que é
lia pelas panelas! Qual! Isto não pode nem deve o causador de toda esta balbúrdia, de toda esta
acontecer. Prefiro morrer de fome a ter de mexer exaltação!
em panelas! RAFAEL – Sim, o senhor mesmo.
ANASTÁCIO (entrando, sem reparar em Anto- DOUTOR – Mas, senhor conselheiro...
nio) – Irra! É uma calamidade! O mulherio está ANASTÁCIO – Figas! Meu amigo! Figas! A cidade
alvoroçado! está em desordem! O mulherio está alvoroçado!
RAFAEL – O caso está tomando proporções RAFAEL – Até a minha mulher!
assustadoras. DOUTOR – Meu colega, que é isto? Explique-
ANASTÁCIO – Não pode ser! É uma desgraça se.
se tal acontecer! É o fim do mundo! É... é... (a ANASTÁCIO – Não há explicações. Agora é cada
Rafael) O que é que é? um tratar de defender os seus direitos.
RAFAEL – Eu sei lá o que é! RAFAEL – Até a minha Esmeralda!
ANASTÁCIO – Pois sei eu... É... é... (com custo) ANASTÁCIO – E afinal de contas, também a se-
é uma figa, ora, aí está o que é. nhora Inês!
RAFAEL – Estamos bem servidos, não há dúvi- DOUTOR – Mas o que tenho eu com isto?
da! ANASTÁCIO – Minha mulher está doida! Compre-
ANASTÁCIO – Está claro! Votam as mulheres, ende, doida!
as mulheres são votadas! Para elas os empre- RAFAEL – E eu estou aqui e estou sem mulher,
gos, as honras, as posições, e tudo, tudo! Que sem a minha Esmeralda!
há de fazer o homem? Ficar em casa pregando DOUTOR – Mas senhores, digam–me o que te-
colchetes nas saias? nho que ver com isso.
RAFAEL – Isso nunca! RAFAEL – Foi o colega que andou introduzindo
ANTONIO (aparte) – Os homens estão danados! esta trapalhada por aí.
ANASTÁCIO – É preciso conspirar!
RAFAEL – Mas como? De que modo? CENA 13a.
ANTONIO (aparte) – Sim, eu também sou inte- Os mesmos, Esmeralda e Inês
ressado na questão!
ANASTÁCIO – De que modo? Ir contra as mu- INÊS – Que grande vitória! Ah! Ainda bem que
lheres! Impedir que isso se dê. os encontro reunidos. Tenho boas notícias a
RAFAEL – Ir contra as mulheres?! Mas vê que dar-lhes. (vendo o doutor) Oh! Doutor! Não sabe
isso é difícil! quanto prazer sinto com a sua visita.
ANTONIO (aparte) – Eu cá por mim, já estou ANTONIO (aparte) – O que estará a Joaquina a
resolvido a lavar as saias da Joaquina. fazer na cozinha?
ANASTÁCIO – Qual difícil! Vou fazer um mee- ESMERALDA – Aceite os meus cumprimentos
ting! Estamos já aqui dois homens (reparando pelo seu brilhante artigo de ontem.
em Antonio), com este que apesar de ser o DOUTOR – Oh! Minhas senhoras! VV. EExs.
criado do Dr. Florêncio, há de acompanhar-nos, confundem-me. (dirigindo–se a Antonio) Que
três; (agarra-o pelo braço) o compadre Izidro, fazes aqui?
quatro... ANTONIO – Vim aqui para saber de meu amo a
RAFAEL – O Silva cinco. que horas vai jantar.
ANASTÁCIO – Qual Silva! Qual nada! Aquilo é INÊS – O doutor janta conosco.
um banana! Um pancada! É capaz de tomar as ANTONIO – Nesse caso...
saias da mulher e ir para o lado delas. Queremos DOUTOR – Podes retirar-te.
homens que não se entreguem a essas lambis- ANTONIO (aparte, saindo) – Graças a Deus!
góias. (segurando Antonio, que ainda o conserva Que estou livre das unhas e das figas do velho!
seguro) Você é homem?
ANTONIO – Pelo menos pareço. CENA 14a.
RAFAEL – Nesse caso, é uma guerra de morte? Os mesmos, menos Antonio
ANASTÁCIO – De morte? Não, de honra!
ANTONIO – Ui! Não me aperte o braço! INÊS – Pois como ia dizendo, tenho boas notícias
ANASTÁCIO – Fora com o voto às mulheres! a dar.
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ANASTÁCIO – É escusado, não quero aqui mais cer cargos públicos, porque não há de poder de-
discussões. sempenhar o mandato?
INÊS – Pois quero eu! De ora em diante mandam ANASTÁCIO – Mas nesse caso, teremos também
todos igualmente. E para o futuro, seremos iguais de ser governados por elas.
perante a lei. RAFAEL – Virão ocupar os nossos lugares.
ANASTÁCIO – Nunca, senhora Inês; nunca! DOUTOR – Quando provarem competência para
RAFAEL – Nunca, repito. O direito de voto não há eles, porque não?
de vir. ANASTÁCIO – Seria horroroso! Isso não! A desti-
ESMERALDA – Olá, senhor meu marido, então o tuição do homem, o predomínio nefasto da fragili-
senhor também?... dade feminina! Figas!
RAFAEL – Não... sim... Mas isso é uma invasão ESMERALDA – Seria a mais bela das conquistas
de atribuições... humanas, porque nós não somos senão iguais
DOUTOR – Perdão, eu creio que se trata do voto aos homens, apenas tendo diferenças sexuais e
feminino. É uma coisa perfeitamente justa! virtudes para melhor.
ANASTÁCIO – Justa! Isso diz o senhor. E sabe ANASTÁCIO – Cala-te! Cala-te! E que farão os
porque o diz? É porque não é casado. homens?
RAFAEL – Descansem! O direito de voto à mulher INÊS – O que puderem e souberem fazer.
não veio nem virá! ESMERALDA – É a compensação das iniqüida-
ESMERALDA – Lá isso não. A consulta está em des de tantos séculos!
mãos do ministro; hoje ou amanhã será introduzi- DOUTOR – Demais, nem todas as mulheres irão
da na lei. ocupar cargos importantes, assim como nem to-
DOUTOR – Sem dúvida alguma. É uma das mais dos os homens hoje os ocupam.
belas conquistas deste fim de século; a reparação ANASTÁCIO – E o escândalo?
de uma injustiça secular, dos tempos bárbaros. ESMERALDA – A moralidade existe por si.
INÊS E ESMERALDA – Muito bem, doutor; muito INÊS – Senhor Anastácio, fique certo de que o
bem! domínio das calças está para acabar.
RAFAEL – É o ridículo sobre os homens! ANASTÁCIO – Nunca! Ora figas!
DOUTOR – Mas senhores, sejamos todos cordatos. RAFAEL – Senhora minha sogra, cuidado com os
O direito de voto às mulheres é de toda a justiça. homens!
ANASTÁCIO – Não é só o direito de voto que elas ANASTÁCIO – Pois fiquem certas de que não hão
querem, é o direito de votar e ser votadas. É o de levar o melhor. (sai)
reinado das saias!
Acervo Iconographia

DOUTOR – Não há tal.


Será antes o reinado das
competências. De ora em
diante não veremos mais
na sociedade a impostura
de serem as mulheres
que façam as coisas e os
homens que recebam as
honras... como por aí se
dá...
ANASTÁCIO (baixo a Ra-
fael) – Isto agora é com o
senhor.
RAFAEL (o mesmo)
– Comigo, não; é com o
senhor.
DOUTOR – Se a mulher
tem aptidão para adquirir
títulos científicos, porque
não há de ter para os car-
gos públicos?
INÊS – Apoiado; e aqui
está a Esmeralda para
Charge de Pereira Netto, publicada na Revista Ilustrada, em 23 de março de 1890,
prova. ilustra o Secretário de Estado dos Negócios do Interior, José Cesário de Faria Alvim,
DOUTOR – Se pode exer- divulgando resolução contrária ao voto feminino
Acervo histórico

CENA 15a. INÊS – Horror!


Os mesmos, menos Anastácio ANTONIO – Então Joaquina, ainda pensas em
ser ministra?
DOUTOR – Tenho certeza de que a mulher será JOAQUINA – Só se for do teu coração!
emancipada; e com o direito que lhe cabe à ele- ANTONIO – Visto não teres o tal emprego, nem o
gibilidade, far-se-á representar no parlamento, já carrinho, nem os soldados a cavalo atrás, eu peço
nesta sessão. a tua mão.
RAFAEL – Meu colega, olhe que isto é muito. JOAQUINA – Aqui a tens!
ESMERALDA – Rafael, lembra-te que és meu DOUTOR – Ainda não me dou por vencido.
marido. ANTONIO – O patrão se me desse licença, eu
INÊS – Sem dúvida. O senhor Rafael deve ser sempre diria uma coisa...
razoável. DOUTOR – Dize lá.
DOUTOR – Há de ser. Ainda hei de vê-lo cabalan- ANTONIO – A mulher não foi feita de uma costela
do pela candidatura da senhora D. Esmeralda. do homem?
INÊS – O que me dá cuidado é o Anastácio. Que DOUTOR – Foi.
iria aquele homem fazer agora à rua? ANTONIO – A costela é o emblema do descanso.
RAFAEL (com malícia) – Naturalmente foi ao Portanto, a mulher não foi feita para a calaçaria
ministro. das ruas.
INÊS E ESMERALDA – Ao ministro?! ESMERALDA – Para que foi então?
DOUTOR – Não há de ser nada. Não conseguirá ANTONIO – Para os arranjos da casa... e etc. e
coisa alguma. tal.
ANASTÁCIO – Ele tem razão. O verdadeiro lugar
CENA 16a. da mulher é no centro da família.
Os mesmos e Anastácio ESMERALDA – Não se entusiasmem tanto. Ainda
temos um recurso. Aguardemos a Constituinte!
ANASTACIO (fora) – Meu genro! Meu genro! (en-
tra esbaforido, com um jornal na mão) ENSEMBLE
INÊS E ESMERALDA – Céus! Que foi!
ANASTÁCIO (mostrando o jornal) – Está aqui! ESMERALDA – A querida vitória há de, creio
Aqui! Dar-nos ganho de causa por fim
RAFAEL – Isso não, q’eu não marcho no meio!
CENA 17a. INÊS – Ah! Respiga! Pois sim! Oh! Pois sim!
Os mesmos, Joaquina, depois Antonio ESMERALDA – Venceremos, ou não? Doutor,
diga!
INÊS – O decreto?! DOUTOR – Por que não?! A vitória é fatal!
ANASTÁCIO – Qual decreto, qual nada! Não ANASTÁCIO – Ora figas! Ora figa! Ora figa!
votam! Esta gente ‘stá doida, afinal!
TODOS – Ah!
JOAQUINA (aparte) – Lá se foi o meu emprego! AS MULHERES – Pois veremos, senhores, ve-
ANASTÁCIO – O ministro despachou a consul- remos,
ta que lhe foi submetida, nestes termos: (lê) O Vencerá a razão, vencerá
governo resolvendo a questão apresentada não Justo é pois q’ por isso espe-
considera nem oportuna, nem conveniente, qual- remos
quer (aparece Antonio) inovação na legislação vi- Confiantes daqui até lá!
gente no intuito de admitir as mulheres sui juris ao
alistamento e ao exercício da função eleitoral! OS HOMENS – Ora qual! Ora qual! Não teme-
ANTONIO – A-q-u-i! Menéres! mos!
RAFAEL – Bravo! Muito bem! Ficará tudo assim como está!
ANASTÁCIO – Já vêm que não votam, minhas E seguros do caso esperemos
senhoras. Confiantes daqui até lá

NOTAS
1
[Nota da dramaturga] – A palavra como significação de emprego que só convém ao homem é inva-
riável; mas no caso da tese que se discute varia logicamente.

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