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CRONICA E TEMPO: LOBO ANTUNES REVISITADO' Maria Elvira Brito Campos Para Benilde Justo Caniato, Domicio Ferreira Campos ¢ Isauri Ribeiro Brito Campos, sempre. 'E « poesia, no sentido pleno, que nos informa do visto de €espago e tempo que define « nosso condigao de visitanies cde passagem numa casa do ser cujos fundamentos,cuja historia futur, eujaracionalidade - se exist - se encontram ‘muito para além da nossa vontade ¢ da nossa intligéncia” (George Steiner em Presencas Reais) fu) cada vez mais fui prolongando as madrugacias ¢ en ‘curtando os das, na esperanca de que uma noite perpétua ‘me langasse um pudico véu de sombre nas bochechas esverdeadas..".) ‘Afigurave-se-me que a minha fotoara fia de menino havia devorado 0 adulto que sou...” (Antunes. O5 cus de Judas) we As epigrafes acima anunciam 0 que percebemos como lirismo ¢ in- sergao:da ideia de tempo na escrita do portugués Antonio Lobo Antunes, 1, Exe arigo faz parte de um estado desenuolvide no meu Pés-dout Universidade de Coimbra, no ano de 2013. 189 a partir da GeubragiD acerca deVEonsideramos “instante vivido e do in tante imaginado’. Assim o consideramos algumas das eronicas do referido escritor como narrativas poéticas que delineiam o passado a partir de sen- sages advindas de insights epifanicos ocorridos no presente. Para tanto, abarcamos brevemente alguns tesricos que traiam sobre o tema TEMPO para adentrar a leitura dessas crdnicas, mesmo sabendo que nao har como” ‘mensurar 0 itinerério postico por elas alcangado, Mas ha de haver uma tra- dugao teérica para essa imersdo na meméria desde a infancia que, afinal, transita na obra do referido autor, ao sabor dos tebucados da saudade. “Cada ver que oigo um comboio & noite sinto que a vida nao aca- ba’, nos di2 Lobo Antunes em Meu menino, ino, ino, uma das crénicas do seu Quarto livro (2011, p. 213). A partir de analogias como essa, tentare- ‘mos discriminar sensagées esponténeas que teeter a um tempo pasado, numa personificagdo do tempo cronolégico, ¢ de como essa ideia refere um tempo indeterminado, o que assim nos possibilita traté-la também no plano psicol6gico. Par esse entendimento, procuramos diferenciar aitempo~ ralidade psiquica da cronolégica: No primetro caso, referimos a consciéncia reflexiva do homem, que se localiza no “agora”, na sucessao de formas temporais organizadas a partir de objetos psiquicos como estados, qualida- des ¢ atos que se fundamentam na relagao de antes e depois, de modo que esta consciéncia reflexiva do homem encontre sua existéncia nos acontect- mentos do dia-a-dia, como uma reafirmagdo que lembraria 0 individuo da sua realidade e existéncia, J6a segunda, apenas como a temporalizagio ou duragao dos acontecimentos. Como exemplo, nos adiantamos, ancorados rho que nos diz 0 autor-narrador na crénica “O jé e o ainda”: (© meu pai contava que um primo dele, muito novo entao, encon: trou um tio de ambos num bar de alterne, desses que outrora se ‘chamavam dancings. O tio, homem solene e distante, perguntou ‘com severidade ao sobinho =O menino jé por aqui? € 0 primo do meu pal respondeu com outra pergunta, Eo tio ainda? (Antunes 2011, p, 109) ria, © nartador nos arrasta aos ques intos do dia-a-dia, como numa reafir- Iniciada como divert tionamentos acerca dos acon macdo que lembraria 0 individuo da sua realidade e existéncia, do tempo ‘eda alearia e da dor de sentir © passar pela vida sem se dar conta do qué, ‘final, acontece enquanto a estamos a observat, a exemplo da fala do tio ‘¢ do menino: “Este:episédio:ver-me a cabeca porque nao acho maneita de-perceber se:pertengo aos jé ou a0s ainda’(p. 109). O confronto exis- tencial, condensado a partir da dimensdo do tempo, causa no ser estra- nhamento e conflito motivando questionamentos que langam 0 embate do individuo consigo mesmo. A partir dai, perguntamo-nos, afinal, 0 que é 0 tempo. No conheci- do Livro XI das Confiss6es de Agostinho, o tema ver & tona num crescen- fe, alé nos arrebatar com 0 questionamento: Que é, pois, o tempo? Quem poder explicé-o clara e brevemente? Quem 0 poderé apreender, mesmo s6 com 0 pensamento, pare depois nos traduzir por palavras, 0 seu conceit? (..) O que é, por cconseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se 0 quiser cexplicar a quem me fizer a pergunta, j& nao sei. Porém, atrevo-me ‘a declarar sem receio de contestacao que, se nada sobrevivesse, nao haveria tampo futuro, e se agora nada houvesse, néo existia 0 tempo presente | De que modo existem aqueles dois tempos ~ 0 passado e o futuro =, se 0 passado ji ndo existe e o futuro ainda nao veic? Quant presente, se fosse sempre presente, e ndo passasse para o pretérito, ji ndo seria tempo, mas eteridade. (Confissoes, p. 304) essa forma, nas crénicas de Lobo Antunes temos um exemplo ivo e um questionamento filosGfico sobre a experiéncia refle- xiva imbuida no “agora”, a ser desvendado a partir dos acontecimentos do dia-a-ia, ou sea, um Ico distogo com a flosofia, que nos sestigat aspectos sobre a construcéo da narratividade da meméria, ci cunscritos por teéricos diversos, como Agostinho, Le Goff, dros, Ricoeur, Agamben. Considerando que Lobo Antunes digressivos de forma a depreender (contrariamente ao que nos diz Agosti- rnho} as circunstancias que perfazem a construgao do tempo, mais um vez lembramos Ricoeur, quando este afirma nos convida a “um grande salto para\OsTempo Redescobertoi(s.) foco da grande elipse da Recherche* ‘quando “a experiéncia da madalena delimita, No Caminho de Swann, um. liicojnan wm antes ¢ um depois" (2010, p. 246). Lobo Antunes, ao narrar a meméria, nos possibilita acompanhar a descrigao de fatos o1 claramente passiveis de serem demonstrados por meio do génera crénica, que, por sua propria natureza, tem como sindnimo o tempo. Por meio da crénica, autor e narrador ou autor-narrador se imiscuem, o que torna os textos mais pessoas, cos, talvez mais, Continuando esse dialogo, temos o revezamento do tempo crono logico com o psicolégico nas crénicas citadas. Em Qyjée-o-ainda e Meu ino, do seu Quarto livro de erdnicas (2011), vemos a reprodu- te vivido e do instante imaginado, ao pensar na construgao squir as deambulagées pela experiéncia . pela apreensdo do momento. A prépria construcio textual os revela 0 questionamento sobre o tempo, no eco reverberado na me- méria reconstruida por palavras e imagens: Este episéclio vém-me muitas vezes & cabega porque nao acho ma: neira de peredber se pertenco aos j4 ou aos ainda. Ou entéo para algumas coisas sou jé e para outras ainda. Sou ainda, por exemplo, uando assisto a um jogo de futebol de miides(..) e nesses mo- ‘mentos recupero instataneaente a infancia e a alegria, Sou jé nas restaurantes, se as ciancas correm mais le um quarto de hora aos gitos, entre as mesasl..) (p. 109) Passam por trés das casas, no fim do bairro, uma fitinha de jane- las iluminadas,répidas, que estremecem as arvores, estremecem as molduras na parede, me estremecem a mimi...) (pp. 213-214) ‘Auerbach (1971), em sua obra Mimesis trata do que ele chama elementos retardadores’ ou mesmo interpolagées, os quais criam um mo- 2 Em A Cicattz de Ulises, capitulo I de Mimass, Auerbach nos aia, a pats da consirugio daquela naratva, 0 episédio do lavaés de Ulisse, pela governanta, {que o weeonece: “A extra cinegéica, narmada com amplidao 308, Agu, somos a expresso para de ernias. vimento ficcional que teproduzem o humanamente vivido. Se Auerbach, naquela obra, alude a falta de tensdo nos versos homéricos, aqui encon- ramos a tensfio provocada pelas digressdes que, recheadas de lirismo, perfazem o ajuste inversamente primitivo da epopéia, ou seja, transfor- mama narrativa em versos estendidos. Desse ponto de partida, outros estudos despontam, como os de Antonio Quadros, acerca da Existéncia Literéria: ‘a mais simples de todas, raduz, na eseala do tempo, ste em que um passado elegiaco ou presente trigico ra sensibildade do poeta. Nao ha uma duragao, no se um fransito capaz de comuniear a vis80 mesmo subjectiva, ‘de uma personalidade em expransio no teatro do mundo. O momen: to 6 tudo, Por muitas e variadas formas que o lirisno vista, desde a cangio & elegia, em citima anélise fica ume fraccéo infinitesimal de tempo, reproduzindo através da palavra as vivencias sensoriais, sentimentais ou até intelechuais de um momento isolado de qualquer continuidade temporal. Antes e depois anulam-se no instante canta do, O poeta que aspira a sinceridade méxima, para ser sincero, reduz averdade a um des seus atomos dispersos. (1959, p. 54) .Esse:tempo que é preenchido pela experiéncia memorialistica a nés, nos parece: uma espécie de vacuo ‘elipse), que tentamos explicar como “um espago fenomenolégico que abriga sensagées que mais facilmente por. ‘meio da experiencia literaria é possivel descrever, depurar ou depreender: © tempo experienciado, vivido ontologicamente (seria a tensao que o pre- sente nao consegue preencher). O que se pensa, o que se imagina, assim ‘como 0 modo como as personagens vivern ou o que esté no mundo da imaginacéo, causam, da mesma forma do vivido, segundo o tempo ero- nolégico, emogio. Ou seja, a experiencia ontologica promove sensacdes, ‘mesmo quando néo partilhada no tempo “real”, Na crénica O jd e 0 ain- da, 0 narrador lucubra cao de para qué me visita, e fico no ia nas manhas difusas em que depois do banho com a toalha, recebendo o vapor de agua (..). smpo.o primo do meu pai © o tio de ambos ¢ ainda talvez um tereeiro, nem care nem peixe, ue escreve isto (..). (Lobo Antunes. 0 je o ainda, Terceira livro de eronicas, pp. 110 ¢ 111) Esse déslocamento do sujeito para um recanto da consciéncia, pro- movido na narrativa como fluxo de consciéncia, nos mostra uma paisagem interior, A partir de Heidegger, Sartre,* dentre outros pensadores que apro- funclam as quest6es existenciais no século XX, o estudo da condicéo hua na nos revela as possibilidades de visualizacao da inquietagao do homem diante do tempo. E 0 tempo, para o homem, é indissociavel do conceito de EU. O que chamamos EU, pessoa, individuo, é experimentado e pro- duzido pela sucesso de momentos e mudangas temporais que constituem sua biografia. A busca de um conhecimento do Eu leva a recherche du femps perdu, E quanto mais se aprofunda essa busca, maior consciéncia do tempo e seu significado para a vida humana, Era uma vez... “Karingana Ua-Karingana’... A meméria se corisitui da lembranca de fatos ocorridos, € 0 dado imediato da consciéncia de fatos, como nos diz Hans Meyethoit (1976: 19) “6 0 reservatorio de registos (..). Nao ha meméria do futuro. A meméria serve como base subjetiva para o passado experimentado”, como também afirma Agamben ante a ideia de experimento: Todo discurso sobre a experiéncia deve partir atualmente da cons- tavel ~ como diana. (2008, p. 21) wento algum no passado ~ a existéncia coti Acessa reflexao, podemos acrescentar, com as palavras do Meyerho: ff (p. 25), que “o tempo é um veiculo da narragao como é também o veicu- lo da vida". Pensando nisso, podemos contemplar a obra Mrs. Dalloway: umdia que se'estende por uma vida inteira, 5. OSereeNade Sobre as questoes do tempo, é valioso 0 que nos lembra a escritora Luzia de Maria, em seu Drummond: um olhar amoroso, quando a mesma extrai da obra de Virginia Woolf a sequinte reflexao: te do he ranhamente sobre 0 como do tempo. Uma vee que se alo no singular elemento do espirto humano, uma hora pode ser esticada cinquenta ou cem vezes sua durago no te l6qho: por outro lado, uma hora pode ser precisamente representada por um segundo através do reldgio da mente. (Maria 2002, p. 72) Essa possibilidade de extenso temporal, por meio do tempo pre- sente, inclui elementos da meméria e da experiéncia, como os percebemos nas crénicas de EoborAntunes, quando olirismio'é regido em movimentos’ -diegéticoss Assim como na citagao da Woolf, Lobo Antunes nos faz par no movimento delicado, quando recolhe, metaforicamente, cacos de vida em ‘pedagos de louca partida, tal qual Proust em sua busca do tempo perdido, nndo com saltos de meméria, que resquarclam memiérias afe- téricas, como a sta vida em Africa e 0 que dela reverberou e a construcdo desses instantes se mesclam entre poesia e historia. (..) Trés da manha de vinte e sote de julho, onze e quarenta e oito de doze de novembro, Suspendo esta crdnica, poiso a cabeca nos cotovelos dobracios vejo a minha mae, tio nova, a subir a traves- sa de regresso das compras. Era bonita, tinha olhos da cor do mus- {90 que cresce nos muros antigos. Na primeira fotografia que existe dde mim estou ao seu colo, Sei que nunca nos demos bem mas no {quer pegar-me ao colo outra vez nem que seja um bocadinho 54? [Meu menino ino, ino, p.215) Assim, voltamos ao que trouxemos como mote a ser glosado: a po- esia tesquarcia nossa experiéncia de vida ¢ constr6i nossa meméria experi- mentada. A poest 1ca na crdnicas que trazem 0 menino de dentro do homem, que, mo de sequndo se expande e nos assombra com @ exata escolha da palavra que recupera a imagem, essa, 0 ProfessorBési™® J nos apresentava, ha tempos, em seu'Sere:tempo da poesia (197), de onde extraimos 0 excerto que citcunscreve certamente o que nesse estudo ficou encoberto. E, nesse enlevo, refletimos: Mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sia experigncia de ‘gem. O tempo “eterna” da fala, cielico, por isso antigo e novo, ab: sorve, no seu codigo de imagens e recorréncias, os dados que the fornece 0 mundo de hoje, egoisa e abstrato. Nessa perspectiva, a insténcia poética parece tirar do passado © ‘existéncia: néo de um passado cronolégico puro — 0 dos tempos jé mortos —, mas de um passado presente ccajas dimens6es miticas se atualizaam no modo de ser da infancia e do inconsciente. A épica e alta S80 expressées de um tempo forte (sociale individual) que ja se adensou o bastante para ser reevoca- do pela meméria da linguagem. (p. 104) Referéncias AGAMBEN, Giorgio (2008). Infancia e Histéria. Destruicdo da experiéncia € origem da hist6ria, Belo Horizonte: Editora UFMG. AGOSTINHO, Santo (1981). “Livro Onze: O homem eo tempo", in: Con- fissoes. 10° ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa ANTUNES, Anténio Lobo (2012). Quarto livro de erénicas, Lisboa: Publi- ‘cages Dom Quixote. ARNAUT, Ana Paula (2009). Anténio Lobo Antunes, Lisboa: Edigdes 70, AUERBACH, Erich (2011). Mimesis. Sa0 Paulo: Perspectiva Ser € tempo da poesia. Sao Paulo: Cultrix. LIMA, Luiz Costa (1993). “Auerbach e a hist6ria lteréria.” Coléquio Letras nt 129-130. Lisboa: Fundagao Calouste Gulbenkian, MARIA. Luzia de (2002). Drummond: um olhar amoroso. Sao Paulo: Es- crituras, MEYERHOFF, Hans (1976). O tempo na literatura. Séo Paulo: MeGraw Hill do Brasil REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. (2000). Dicionério de Narratolo- gia, Lisboa: Almedina. RICOEUR, Paul (2010). A c ‘Sao Paulo: Martins Fontes, juragdo do tempo na narrativa de ficgao. FLORBELA E PESSOA. UM CASO DE AMOR?! Maria Lucia Dal Farra A Casa: a noite com Pessoa ‘Antes de’delucidar o titulo desta palestra, que pode parecer um tanto esdriixulo pra voces vou procurar situé-los no contexto que me levou atais cogitacoes. E que, no ano passado, fui convidada pela Casa Fernando Pessoa a fazer parte de um programa criado por sua diretora, a extraordindria jomalista ¢ romancista Inés Pedrosa. O evento, que ficou conhecido como “Uma noite com Pessoa”, consiste em localizar (a cada vez) um escritor, para que ele se desloque até o referido lar do Pessoa (ainda hoje preservado ‘em Lisboa Rua Coelho da Rocha 16) a fim de que ali pernoite sozinho, no quarto do Poeta, usufruindo das benesses fantésticas (e também dos desassossegos) da cama original de Pessoa ~ 56 nao do colchao, claro esta, porque o do Poeta jé se arruinou hé tempos. 0 iinteresse do programa € 0 de buscar conhecer, por meio des- sa experiéncia de encerramento do felizardo num local que foi privativo do Poeta — quais foram as impresses que esse ambiente acabou por lhe desperiar. Ou seja: que efeito a morada, onde Pessoa viveu os seus derra- deiros 15 anos de vida, causou no espirito daquele visitante. O que essa

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