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Racionalidades médicas e integralidade

Article in Ciência & Saúde Coletiva · February 2008


DOI: 10.1590/S1413-81232008000100024 · Source: OAI

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2 authors:

Charles Dalcanale Tesser Madel T. Luz


Federal University of Santa Catarina Universidade Federal Fluminense
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TEMAS LIVRES FREE THEMES


Racionalidades médicas e integralidade

Medical rationalities and integrality

Charles Dalcanale Tesser 1


Madel Therezinha Luz 2

Abstract The purpose of this article is to examine Resumo O objetivo deste artigo é discutir as-
integrality as the ruling principle of Brazil’s Na- pectos da “integralidade”, princípio normativo
tional Health System (SUS) from a comparative do SUS, a partir de pesquisas organizadas ao re-
perspective, based on works coordinated by LUZ dor da categoria “racionalidade médica” e da
and cols. on the concept of “medical rationality” epistemologia de Ludwik Fleck. O artigo discute
and also on Fleck’s epistemology. Integrality has a categoria integralidade, defendendo que a mes-
different meanings according to patients and spe- ma tem distintos significados para doentes e cu-
cialized healers; it is more relevant to the latter, for radores especializados; tem maior relevância e
whom it represents a permanent mission, being significa uma missão permanente para estes úl-
linked to the healer patient relationship. Integral- timos; vincula-se ao relacionamento curador-
ity constitutes a difficult problem for biomedicine, doente e à eficácia da ação terapêutica. A inte-
whose expertise has torn the patient apart and gralidade constitui um grave problema para a
focused its actions on “biomedical diseases”. For biomedicina, cujo saber esquartejou o doente e
this field of medicine, the more specialized the en- centrou sua ação nas “doenças biomédicas”. Aí,
vironment, the more integrality is blocked. The a integralidade está tanto mais bloqueada quan-
possibility of mitigating these blocks lies on the to mais especializado o ambiente. A atenuação
outskirts of specialized circles, found in the work desses bloqueios passa pela periferia dos círculos
of multidisciplinary teams, properly ranked by especializados e pelo trabalho em equipes multi-
Brazil’s National Health System (SUS) as the fo- disciplinares, traduzidos no SUS, acertadamen-
cus of Primary or Basic Healthcare. On the other te, como prioridade para a atenção primária ou
hand, other rationalities such as homeopathy or básica. Inversamente, outras racionalidades,
traditional Chinese medicine have facilitative como a homeopatia e a medicina tradicional
knowledge and practice for the inner circles of in- chinesa, comportam um saber/prática facilita-
tegrality, and the challenge − in addition to its dor da integralidade nos seus círculos esotéricos
1
Departamento de Saúde incipient presence in this System − is to draw in- e seu desafio, além de sua presença incipiente no
Pública, Universidade
Federal de Santa Catarina.
tegrality away from its original esoteric circles into SUS, é levar ao mundo de suas práticas, a inte-
Campus Universitário, the world of its practices. gralidade de seus círculos esotéricos originais.
Trindade. 88040-970 Key words Integrality, Medical rationalities, Palavras-chave Integralidade, Racionalidades
Florianópolis SC.
charlestesser@ccs.ufsc.br
Alternative medicine, Public health médicas, Medicinas alternativas, Saúde pública
2
Instituto de Medicina
Social, UERJ.
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Tesser, C. D. & Luz, M. T.

Introdução ou causa, sua evolução ou cura), todos embasa-


dos em uma sexta dimensão implícita ou explíci-
O tema da integralidade, princípio normativo do ta: uma cosmologia6,7. Através dessa delimitação,
Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), tem sido precisa e específica, pode-se distinguir entre sis-
objeto de discussão recente no Brasil1,2,3,4. O sen- temas médicos complexos como a biomedicina
so comum do uso institucional e profissional do ou a medicina tradicional chinesa e terapias ou
termo deixa poucas dúvidas: objetiva-se que essa métodos diagnósticos isolados ou fragmentados,
diretriz oriente, no âmbito dos serviços públicos, como os florais de Bach ou a iridologia, que hoje
e da ação de seus profissionais, uma atenção à proliferam na cultura alternativa do pós-anos
saúde de boa qualidade, que considere as múlti- 60 e da nova era8.
plas dimensões e dê conta das várias complexi- Com isso, o grupo de Luz pôde estudar medi-
dades dos problemas de saúde pública e das pes- cinas complexas, averiguando seu potencial de
soas, bem como dos riscos da vida moderna. resposta a estes seis quesitos, tendo produzido
Espera-se, com isso, que os profissionais tenham quadros comparativos sintéticos9,10 de quatro
uma abordagem integral, ampla e pluridimensio- medicinas, analisadas como racionalidades médi-
nal da saúde individual e coletiva. cas: a biomedicina11, a medicina tradicional chine-
Apesar dos esforços em precisar e discutir o sa12, a ayurveda13 e a homeopatia14. Muito diver-
tema da integralidade, ele continua um princípio sas, embora permitindo algum grau de compara-
normativo, um chamamento ético e um slogan ção, estas medicinas mostram-se como portado-
político. Assim, uma polissemia se esconde sob ras de razão médica e de eficácia terapêutica pró-
este “agregado semântico” 4, e as tentativas de prias, coerentes com seu estilo de pensamento,
precisá-lo ou transformá-lo em um conceito têm contradizendo o senso comum de que somente a
sido frustradas. Entretanto, problemas concre- biomedicina seria portadora de racionalidade.
tos, como o comum “baixo teor” de integralida- Os estudos do grupo aprofundaram-se em
de, conhecido dos que enfrentam os serviços, as vários aspectos socioepistemológicos e históricos
filas, corredores e consultórios do SUS, deman- das práticas, dos saberes e da interação sociopolí-
dam uma abordagem urgente do tema. Há um tica de algumas dessas medicinas, mais presentes
grande campo de estudos e trabalho institucio- no Brasil, como a homeopatia15, a medicina chi-
nal de gestão do SUS, no sentido de viabilizar o nesa16,17,18 e, evidentemente, a biomedicina, conti-
acesso a diversos serviços de tipos e complexida- nuando sua produção a expandir-se12,19,20,21,22, 23.
de variada, de modo a melhorar a integralidade Como seria pensado o tema da integralidade
da atenção à saúde. Não nos aprofundaremos a partir da perspectiva e da visão construída e
nesse aspecto do tema, embora reconheçamos acumulada por esse tipo de estudo? Uma possi-
sua importância e urgência. Em vez disso, explo- bilidade é ensaiada neste artigo, através da dis-
raremos outra possibilidade dessa discussão, cussão de alguns aspectos do tema da integrali-
desenvolvendo-a a partir de estudos com novos dade à luz da produção do grupo de Luz e de
enfoques sociohistóricos, antropológicos e filo- uma de suas referências teóricas, a saber, a epis-
sóficos, a exemplo do Grupo de Pesquisas CNPq temologia de Ludwik Fleck24.
Racionalidades Médicas, liderado por Madel Luz. Fleck cunhou os conceitos de estilo de pensa-
Desde 1992, tal grupo enfoca o campo da saúde mento e coletivo de pensamento na década de
coletiva no Brasil, levando em conta a multiplici- 1930. Entretanto, eles permanecem muito a-
dade de saberes e práticas presentes na sociedade tuais25. Pode-se afirmar, como exemplo, que os
e nas instituições de saúde, em sua diversidade conceitos de paradigma e comunidade científica
política, cultural e epistemológica5. de Kuhn26,27 são casos particulares de estilos de
O projeto desse grupo desenvolveu-se inici- pensamento e de coletivos de pensamento. Um
almente em torno da categoria operacional “ra- estilo de pensamento constitui-se em uma ins-
cionalidade médica”, criada por Luz6,7 à moda de tância ao mesmo tempo cognitiva, psicológica e
um tipo ideal weberiano. Uma racionalidade sociológica a orientar e restringir o pensamento
médica é um conjunto integrado e estruturado e as percepções, as práticas e as teorias, as inda-
de práticas e saberes composto de cinco dimen- gações e as respostas dos membros de um coleti-
sões interligadas: uma morfologia humana (ana- vo que o compartilham.
tomia, na biomedicina), uma dinâmica vital (fi- Segundo Fleck24, os estilos de pensamento
siologia), um sistema de diagnose, um sistema estruturam-se em círculos concêntricos quanto
terapêutico e uma doutrina médica (explicativa à especialização: os especialistas esotéricos são os
do que é a doença ou adoecimento, sua origem centros de produção, inovação e desenvolvimen-
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to de saber (os cientistas “de ponta” para a bio- lor importante, porém relativo. Os doentes es-
medicina). Eles são referência para a periferia dos peram e valorizam um compartilhamento sim-
círculos esotéricos (círculos intermediários, mé- bólico e um acolhimento emocional na relação
dicos clínicos), que servem de referência e pres- com o curador. Isso é importante para que uma
tam serviços para os círculos exotéricos, que são reorganização simbólica possa acontecer junta-
os leigos, pacientes dos serviços de saúde, usuá- mente com o tratamento, facilitando o que Lévy-
rios dessa medicina. O saber sofre transforma- Strauss29 designou eficácia simbólica.
ções nas duas vias entre os extratos sociocogniti- Mas os doentes têm uma perspectiva prag-
vos mencionados, que participam ativa e distin- mática. Tal pragmatismo e o sofrimento ineren-
tamente na sua produção, havendo uma interin- te à condição de doente tornam muito flexível e
fluência mútua entre os saberes esotéricos e exo- adaptável esta necessidade de compartilhamen-
téricos. Essa diferenciação será útil para a discus- to, principalmente nos tempos atuais nas popu-
são de integralidade, nosso tema central. lações urbanizadas, onde já não vigora uma cul-
Apesar das dificuldades de precisão do termo tura homogênea muito arraigada (e ali está a
já comentadas, adiantamos um sentido para essa maioria dos pacientes do SUS).
palavra que julgamos satisfatório como descri- Por sua vez, o especialista, o curador, detém
tor do uso clínico corriqueiro e simultaneamente uma expertise própria que lhe permite interpre-
amplo e abstrato o suficiente para nossa discus- tar as queixas do doente, reorganizar o vivencia-
são, que parte de um ambiente de comparação do dando sentido a ele e executar ações em saú-
entre distintas racionalidades médicas: integrali- de-doença, preventivas e/ou terapêuticas.
dade seria um atributo, usado no contexto da A eficácia simbólica exige envolvimento de
atenção à saúde especializada (mas não só), qua- crenças e emoções, mas não é tão detalhada quan-
lificador de uma ação interpretativa e terapêuti- to às explicações. O que interessa para o doente é
ca, preventiva ou “curativa” o mais ampla e glo- uma resolução favorável de seus sofrimentos e
bal possível e, ao mesmo tempo, precisa, que in- adoecimentos; melhor quando facilitado por
tegra muitas dimensões dos adoecimentos e da empatia emocional e por uma reorganização sim-
vida dos doentes, tanto do ponto de vista dos bólica que não exija crenças ou práticas muito
pacientes como do saber especializado que ori- diferentes das habituais do seu universo cultural.
enta o curador. Esse sentido permite algumas Entretanto, os doentes dispõem-se, via de regra,
reflexões que se seguem. a participar de tratamentos e interpretações,
Iniciaremos por uma discussão do ponto de mesmo com precária compreensão dos termos
vista dos doentes (círculos mais exotéricos de especializados. Normalmente, o doente é mais
qualquer racionalidade médica), e depois do pon- exigente quanto à empatia, à relação humana e
to de vista dos curadores especializados (círculos ética envolvidas no “pacto de cura” do que quan-
esotéricos - clínicos e cientistas, na biomedicina). to à compreensão da interpretação e da ação pro-
Relacionaremos, a seguir, o tema com as racio- postas pelos curadores. Ele quer ser curado e sa-
nalidades, dedicando à biomedicina, racionali- tisfaz-se com sentir esse compromisso na inten-
dade médica hegemônica no Brasil, uma atenção ção e na ação do curador, aderindo ao tratamen-
maior para, finalmente, tecermos algumas con- to sem exigir explicações pormenorizadas dessa
siderações à guisa de conclusão. ou daquela natureza19,20.
A partir desse ponto de compreensão genéri-
ca, podemos esboçar a nossa primeira hipótese:
A integralidade e os doentes em termos gerais, a questão da integralidade não
é problemática do ponto de vista dos doentes.
Todo curador é procurado por um doente devido Com isso salientamos que, satisfeita minima-
a algum problema de saúde: sofrimento ou quei- mente a “relação de cura”, os doentes são pouco
xa. Para o doente, a dimensão, o significado, as exigentes: aceitam a explicação e a terapêutica
“verdadeiras” causas de seu problema e sofrimen- orientada de forma relativamente harmoniosa e
to são geralmente obscuras ou desconhecidas. Sua acrítica, independente da profundidade da inter-
limitação no trato autônomo do mesmo, seu so- pretação, da globalidade dela ou da integralida-
frimento e/ou sua impaciência para esperar uma de da abordagem do curador.
remissão espontânea são motivos para a procura Essa tese, por outro lado, ressalta a extrema
do “especialista”28, seja ele qual for. importância para os doentes do pacto de cura, o
A primeira ponderação pertinente é que, para qual diz respeito, por um viés específico, ao tema
o doente, a questão da integralidade tem um va- da integralidade: tal pacto remete sempre à rela-
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Tesser, C. D. & Luz, M. T.

ção curador-doente. Ou seja, o doente espera ser que transcendem a já complexa questão da “re-
ele mesmo o objeto da atenção do curador. Isso lação de cura” e da eficácia simbólica, aos quais
parece ser óbvio, mas é um detalhe que ganha retornaremos adiante. Por ora, frisamos que a
grandes dimensões e implica dificuldades consi- integralidade, nessa perspectiva, está ligada à
deráveis, merecendo consideração. missão ética/social de cura do doente enquanto
Grosso modo, a relação de cura está pautada pessoa e à função que o saber especializado, sua
na díade curador-doente, ou, ensinam os antro- articulação interna e seu uso, desempenham nes-
pólogos, na tríade curador-doente-comunida- sa missão.
de. Para simplificar a discussão, usaremos a día- A segunda perspectiva, que pode ser etique-
de mencionada. O doente espera, como pessoa, tada de epistemológica, mais restrita aos ambi-
ser o destinatário de quaisquer que sejam as in- entes esotéricos, é que quanto mais ampla, deta-
terpretações e ações do curador. Este carrega um lhada, global, profunda, sofisticada, precisa e
cabedal que permitirá uma interpretação e uma acurada a interpretação do curador - ou seja,
terapêutica. Ambos, diagnóstico e terapêutica, quanto mais integral a abordagem - maior será
devem estar a serviço da cura do doente e do a completude, a extensividade e a veracidade da
reforço ou recuperação de sua saúde. Esse aspec- interpretação construída: melhor será o diagnós-
to “primitivo” da integralidade, esse centramen- tico e mais eficaz, precisa, harmoniosa e susten-
to da atenção e da ação no sujeito, é o mais rele- tável poderá ser a ação terapêutica.
vante do ponto de vista dos doentes. O desvio A extensividade diz respeito à capacidade de
desse foco pode significar um enfraquecimento interligar, unir, simplificar e ressignificar vários
da “relação de cura” e um rebaixamento signifi- aspectos distintos de um fenômeno, ou mesmo
cativo do grau de integralidade possível. Esse pres- vários fenômenos aparentemente distintos, atra-
suposto ético e quase emocional é estritamente vés de uma única interpretação (explicação ou
necessário, porém não suficiente, do ponto de compreensão). A veracidade refere-se ao conteú-
vista do curador especializado. do de verdade, que na terapêutica está ligada à
Isso nos permite adiantar uma segunda hi- eficácia e efetividade do tratamento, estando
pótese: a integralidade constitui-se em um pro- ambas entrelaçadas e embebidas no estilo de pen-
blema essencialmente do ponto de vista dos cu- samento orientador da interpretação/ação espe-
radores especializados. Ela é uma questão tanto cializada (se houver um). A completude refere-se
mais relevante quanto mais esotérico for o am- à capacidade da interpretação especializada de
biente de discussão, dentro de um estilo de pen- integrar os vários aspectos ou fenômenos do
samento especializado em saúde-doença. adoecimento e da vida do doente num conjunto
com sentido e significado simbólico, histórico e
existencial para ambos, curador e paciente30,31.
A integralidade nos ambientes esotéricos Assim, pode-se entender a integralidade como
idéia reguladora do ambiente esotérico, ou seja,
A questão da integralidade ganha importância um objetivo permanente dos curadores, nunca
dentro do universo dos curadores especializados suficientemente alcançável, porém indispensável.
a partir de duas perspectivas entrelaçadas. A pri- As interpretações esotéricas gerarão verdades
meira, comum aos doentes, é a já mencionada sempre parciais e incompletas (os diagnósticos,
dimensão ética e emocional: é o doente o objeto biomédicos ou não), e as ações terapêuticas e seu
de atenção primordial e final do saber e fazer do resultado, ou sua avaliação, também serão par-
curador. Quanto mais integral a interpretação ciais e limitadas, passíveis de aperfeiçoamento.
produzida sobre o universo trazido pelo doente, Em racionalidades médicas com um estilo de
maior será a intimidade da relação com o doen- pensamento complexamente elaborado, todo o
te, o pacto de cura, a comunicabilidade da inter- processo interpretativo e terapêutico é restringi-
pretação/ação e, assim, a eficácia simbólica. do e dirigido por suas características, valores,
Essa perspectiva ética não se reduz à missão métodos e limites estilísticos, sendo que todo sa-
social do curador ou a princípios, como o da ber e ação em saúde/doença serão mais ou me-
beneficência (da bioética), nem a uma questão nos completos, extensos e verazes em coerência
de confiança e de adesão. É mister compreender com as respectivas concepções e características
que ela está amalgamada com questões episte- das racionalidades.
mológicas, referentes: a) à estrutura e configura- Avaliações comparadas sobre eficácia, vera-
ção do saber especializado do curador; e b) à cidade, extensividade e completude de diversas
relação do curador com esse saber; temas esses medicinas podem ser feitas, mas demandam ade-
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são a algum padrão ou critério norteador meta- ticas especializados. Nessas racionalidades mé-
teórico ou metaparadigmático. De nosso ponto dicas, ela é também alicerce fundador de que se
de vista, qualquer padrão desse tipo será sufici- parte, organizador do saber, sobre o qual se tra-
entemente abrangente somente se levar em conta balha na construção da diagnose e da terapêuti-
a versão do interessado maior, objeto de qual- ca. Isso não significa que, nos ambientes inter-
quer medicina: o doente, com alguma referência mediários da prática clínica, ela estará sempre
geral à evolução de seus adoecimentos enquanto garantida de forma absoluta, mas que será sub-
unidade individual. Parece-nos que o adoecimen- produto natural da ação e da interpretação sufi-
to reduzido pela interpretação paradigmática ou cientemente esotéricas, certeiras e eficazes, con-
estilística de uma ou outra medicina nunca será forme o significado desses termos para essas pró-
suficientemente amplo para esse fim. prias medicinas. Desse modo, essas racionalida-
des parecem administrar tranqüilamente o tema
da integralidade, tanto do ponto de vista dos
A integralidade e as racionalidades médicas doentes como dos curadores (na perspectiva éti-
ca e epistemológica).
Para estabelecer relação entre integralidade e raci- Seus problemas evidenciam-se, como é de se
onalidades médicas, convém considerar dois prever, nas limitações das práticas intermediárias
movimentos distintos: primeiro, um olhar dirigi- e exotéricas. Por exemplo, a homeopatia trabalha
do ao mundo das outras racionalidades médicas geralmente com boa dose de individualização in-
presentes em nossa cultura ou em outras, com terpretativa e terapêutica nos seus ambientes muito
estilos de pensamento estruturados e elaborados. esotéricos. Mas pode ser trabalhada, na prática
Segundo, uma imersão na própria biomedicina. intermediária e no uso popular (exotérico), com
No primeiro movimento, estudos do grupo integralidade bem menor, sem ampla abordagem
Racionalidades Médicas contribuem sobremanei- ou grande integração dos aspectos dos adoeci-
ra. Segundo Luz32, as medicinas homeopática, mentos, apresentando eficácia relativa. Ou seja,
chinesa e ayurvédica tem traços teóricos vitalis- pode ser usada quase sem escrúpulo individuali-
tas, caracterizando-se por uma abordagem dos zador, com baixo “coeficiente de integralidade”,
problemas de saúde em perspectiva integradora, ao modo sintoma-remédio, como se faz com a
centrada na unidade individual do doente e suas dipirona no mundo biomédico. Nesses usos, a
relações com seu meio. Suas cosmologias, que homeopatia apresenta, como outras racionalida-
integram o homem e natureza numa perspectiva des, vários graus de eficácia e efetividade relativa,
de macro e microuniversos, e que postulam a in- com maior ou menor integralidade sob o ponto
tegralidade do sujeito humano como constituída de vista dos seus círculos esotéricos.
de dimensões psicobiológica, social e espiritual,
têm profundas repercussões tanto em suas dou-
trinas médicas quanto nos sistemas diagnósticos A integralidade e a biomedicina
e terapêuticos. Esta dupla integração as leva a con-
siderar a doença como fruto da ruptura de um No segundo movimento, voltado para a biome-
equilíbrio interno e relacional ao mesmo tempo. dicina, é necessário compreender que muitas ca-
Interno no que concerne ao microuniverso que racterísticas epistemológicas e práticas dessa me-
constitui o homem; relacional no que concerne às dicina são indissociáveis de seus processos socio-
relações entre o homem e o meio no qual se inse- históricos, e algumas delas merecem destaque para
re: natural, social e espiritual. Tal integração é per- uma compreensão do problema da integralida-
mitida, estimulada e ativamente buscada pelos de. Esboçaremos alguns comentários sobre elas,
saberes/práticas esotéricos dessas medicinas. objetivando sustentar nossa terceira hipótese: a
Uma vez que o saber/fazer especializado está integralidade é um problema epistemológico para
remetido ao sujeito doente, visando à recupera- a racionalidade biomédica e, sendo esta a referên-
ção e ao fortalecimento da sua saúde, em sua cia teórico/prática e institucional do SUS, o pro-
unidade e globalidade, a integralidade está pres- blema desloca-se para o próprio SUS.
suposta como prática e como valor estruturante Na biomedicina, a construção das teorias das
da articulação dos saberes e de sua função na doenças associou-se à organização institucional
missão de cura desses curadores. Ela, assim, não de prática clínica especializada e de produção de
é somente uma missão ética, um projeto ideal e saber esotérico em torno das especialidades. E
uma idéia reguladora, deslocada da estrutura e estas se organizaram em torno das doenças e
dos valores que configuram os saberes e as prá- partes específicas do homem (órgãos, aparelhos,
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Tesser, C. D. & Luz, M. T.

sistemas). Essa racionalidade apresenta uma cos- cular proliferação de tecnologias diagnósticas
mologia de caráter analítico, embasada no ima- “duras”, que se interpõem entre curador e doen-
ginário mecânico da física clássica, e uma doutri- te, levou a um progressivo desleixo, na prática,
na implícita que vê a doença como entidade con- desses curadores quanto à construção micros-
creta, que se expressa por sinais e sintomas obje- social de legitimidade, comunicabilidade e cum-
tiváveis, manifestações de lesões que devem ser plicidade, fundadoras da ancestral relação de cura
buscadas no âmago do organismo físico e corri- e da eficácia simbólica da medicina.
gidas por algum tipo de intervenção concreta11. Outra influência está relacionada a um dinâ-
As patologias não só ganharam centralidade mico equilíbrio entre duas dimensões existentes
teórica e metodológica no ambiente de produ- em qualquer medicina. Segundo Luz32, em toda
ção de saber esotérico, como sofreram um pro- racionalidade médica, há uma lógica mais racio-
cesso de ontologização que lhes imprimiu exis- nal ou teórica, centrada no saber, e outra, sintéti-
tência independente no ideário biomédico. E esse ca, intuitiva, “artística” (que também porta um
processo simbólico permeou todos os extratos saber historicamente construído), centrada na
sociocognitivos desse estilo de pensamento, dos missão curadora de acolher, mobilizar os doen-
mais esotéricos aos mais exotéricos. Assim, as tes e orientar o tratamento individualmente. Na
doenças dominaram cognitivamente o exercício biomedicina, essas duas lógicas estão em flagrante
clínico dos círculos intermediários, dos clínicos, e progressivo desequilíbrio, com a primeira par-
transformando-se no objeto principal da aten- te sobrepujando e dominando a segunda26. Isso
ção dos curadores biomédicos32,33. é incentivado pela supremacia de caráter mitoló-
Desse modo, a interpretação e a ação biomé- gico que a ciência conquistou no mundo moder-
dicas ficaram progressivamente centradas no di- no e nessa medicina.
agnóstico das doenças, o que hipertrofiou so- Se a integralidade pode ser fomentada e faci-
bremaneira a diagnose. Mais ainda, uma dicoto- litada pelo saber especializado, e assim construí-
mia instalou-se entre diagnose e terapêutica: aque- da parcialmente pela primeira parte mencionada
la, acomodando-se bem ao ambiente de práticas (“teórica”), como ocorre nas outras racionali-
e ao imaginário científico das ciências naturais, dades já citadas, deve ficar claro que sua concre-
desenvolveu-se espetacularmente. O saber tera- tização se dá eminentemente na segunda parte
pêutico ficou centrado no combate e controle das (prática), toda voltada para o doente em sua si-
doenças, desviando-se do paciente e sua vida, tuação de vida real. Essa segunda parte é a prota-
tornando-se progressivamente padronizado, gonista da integralidade e é ela que, na biomedi-
num processo de apagamento e desindividuali- cina, está sendo sufocada e enfraquecida pela
zação da ação biomédica em relação aos sujeitos primeira e seus infinitos saberes e tecnologias es-
reais. Estes passam a serem vistos cada vez mais pecializadas, que não vislumbram um retorno à
como unidades homogêneas34. globalidade do sujeito doente. Esse é um dos fa-
O tratamento dos doentes, ligado à missão tores importantes que tornam a integralidade
social e ética da cura, longe de poder conformar- nessa medicina um problema grave de difícil re-
se e enquadrar-se nos cânones científicos, foi ex- solução.
ternalizado para o lado artístico da prática clíni- Mas esse problema é agravado por outro,
ca, ou atribuído a especialidades que abordari- que pode ser considerado nossa quarta hipóte-
am o sujeito em termos de sua psique, instituin- se: a primeira dimensão mencionada, vinculada
do-se a dicotomia psique-soma típica da cultura aos saberes biocientíficos nessa medicina, não
ocidental. ajuda a construir a integralidade, pelo contrário.
Por sua vez, a vitória espetacular da ciência Seu saber e sua terapêutica são dirigidos às do-
como produtora oficial de verdades no mundo enças em seus mecanismos fisiopatogênicos e se-
moderno e a cientificização progressiva da medi- miogênicos ou respectivos riscos, de forma ide-
cina, a partir do século XIX, significaram influ- almente específica35,36. Tal saber não contribui
ências importantes na conformação da recente para a construção da integralidade e o mesmo
tradição biomédica. domina a ação cognitiva e terapêutica dos clíni-
Uma delas foi uma dose grande de impuni- cos biomédicos.
dade nas relações de seus curadores com os do- Reconhecemos aqui as dificuldades essenciais
entes, já que sua legitimidade está garantida pelo inerentes à biomedicina para o trato da questão
pertencimento a uma corporação. Isso, associa- da integralidade, nos seus círculos esotéricos e em
do com a ideologia da eficácia técnica “compro- aspectos eminentemente epistemológicos, além de
vada” - depurada do efeito placebo – e a espeta- éticos e político-institucionais: a centralidade ope-
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racional e teórica dessa medicina nas doenças e Outras características epistemológicas dessa
seus riscos, além de sua pulverização institucional medicina também dificultam a integralidade.
nas especialidades médicas, excluiu dos seus cír- Segundo Lacey30, a ciência em geral é rica em ex-
culos esotéricos a pretensão de integralidade. tensividade e relativamente pobre em completu-
A influência centrífuga e poderosa desses cír- de, e isso certamente vale para a biomedicina. A
culos se deu para a periferia intermediária e exo- extensividade científica é de uma espécie particu-
térica de forma coerente, contribuindo muito para lar. Ela está atrelada a um valor ao mesmo tem-
o processo de medicalização social37,38. Nesse pro- po cognitivo, social, político e psicológico: o con-
cesso, os leigos (exotéricos) aprendem a concebe- trole. Ou seja, unifica e simplifica vários fenôme-
rem-se apenas como carentes de exames para di- nos ao explicá-los de um modo tal que almeja
agnósticos precisos e quimioterápicos (ou cirur- sempre uma intervenção controladora sobre os
gias) de ação quase mágica. Assim, a concepção mesmos, sobre os sintomas, as doenças e seus
de uma integralidade possível vai sendo transfor- riscos, na ação curadora ou preventiva.
mada na biomedicina, tanto no meio esotérico O saber biomédico desenvolveu sua extensi-
como exotérico, direcionando-se para o consumo vidade eminentemente nas direções de um tipo
de procedimentos especializados que devem su- particular de controle, o controle heterônomo,
prir as necessidades de saúde-doença do cidadão. por um agente especializado e cientificizado,
Nessa medicina, a unidade fundamental, o como é comum na ciência. Sua extensividade é
doente, objeto da atenção do curador especializa- explorada através dos mecanismos moleculares
do, é rompida e esquartejada, tanto no saber e agora genéticos, como peças constituintes e de-
como no fazer. A integralidade foi deslocada na terminantes do processo saúde-doença, sendo a
sede, no espaço e no tempo: da relação com o terapêutica desenvolvida a partir dos saberes daí
curador para o conjunto dos serviços e curado- derivados, ao menos idealmente. Assim, a exten-
res das profissões da saúde. Do espaço dos en- sividade biomédica restringiu-se praticamente às
contros entre curador-doente para o périplo pe- dimensões biológicas e biomecânicas das doen-
las profissões, especialidades, instituições e labo- ças e do corpo, ou às relações (anti)ecológicas
ratórios. Do tempo de tratamento personaliza- com outros seres vivos, tratados via de regra
do centrado na evolução do doente e com ele como “inimigos” a serem exterminados quando
compartilhado, que pode ser muito longo, para envolvidos em adoecimentos.
o tempo variável, indefinido e muitas vezes an- Compreensivelmente, a completude do sa-
gustiante e vitalício dos prazos, filas, consultas, ber biomédico está diminuindo nos círculos in-
coletas e realização de exames, retornos aos es- termediários: conforme a máquina humana é
pecialistas, uso dos remédios, administração e esquadrinhada em peças cada vez menores, os
consertos dos efeitos adversos (estes, por vezes, saberes especializados hipertrofiam-se e seu fun-
geradores de novos diagnósticos, exames, trata- cionamento geral vai ficando cada vez mais longe
mentos, etc.); tempo este que pouco se liga com a da visada. Parece que as possibilidades merca-
perspectiva do doente e “sua” evolução clínica, já dológicas abertas pela tecnologia e pelo assim
que centrado na evolução das investigações e con- chamado complexo médico-industrial, bem
troles das doenças e riscos. como a crença nas promessas científicas e tecno-
Há saberes múltiplos sobre partes e aspectos lógicas para o futuro, tornam cada vez mais dis-
dos pacientes, ou sobre patologias e seus riscos, tante a possibilidade de uma completude.
sem um saber a integrá-los. A integralidade nes- Com tudo isso, os termos explicativos bio-
sa medicina só pode ser obtida no exercício do médicos tendem a afastar-se do mundo vivido
seu aspecto artesanal, através de um discurso que pelos doentes de forma global, restringindo-se
busque dar algum sentido à lista, por vezes ex- às “peças”, riscos e ao poder de intervenção sobre
tensa, de diagnósticos e riscos de doenças. As re- os mesmos. A integralidade, parenta próxima da
gras ou tradições práticas para a construção desse completude, vai ficando também longínqua.
discurso não têm tido lugar na biomedicina en- A biomedicina vive um situação sui generis:
quanto saber-síntese aplicado, já que não há em bloqueada internamente pela sua própria con-
seu interior saber ou tradição amplamente insti- formação institucional e paradigmática, perdeu
tuída, reconhecida e legitimada como suficiente- progressivamente, ou não desenvolveu sua ca-
mente competente para tal (embora movimen- pacidade de exercício clínico com alto teor de in-
tos ou especialidades se proponham essa mis- tegralidade - tanto do ponto de vista dos doentes
são, como, atualmente, no âmbito da atenção quanto do ponto de vista dos círculos esotéricos.
clínica, a Medicina de Família e Comunidade). Na verdade, a situação dos biomédicos é tris-
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te: eles são “cobrados” pelos doentes e pela sua uma ordem mais geral de razões: todo o conjun-
missão ética de curadores, e agora pelo SUS e to das especialidades e serviços biomédicos é li-
pelo PSF, para que façam uma atenção integral à mitado e isso vale para quaisquer outras racio-
saúde, mas seu saber e sua tradição recentes são nalidades médicas, em que pese o fato delas po-
centrados em algo que se assemelha ao contrário derem ser mais “integrais”. Sabemos que todas
mesmo da integralidade. as medicinas e culturas apresentam limites no
Essa missão hercúlea só pode ter alguma seu trato do processo saúde-doença, na sua efi-
chance de sucesso no ambiente intermediário e cácia/efetividade/veracidade, tanto na promoção
exotérico, a ser levada a cabo pela inventividade, da saúde como na diagnose e prevenção de ado-
pela criatividade, pela intuição e dedicação ética e ecimentos e terapêutica. São esses limites que fa-
artística dos profissionais em equipes multidis- zem com que seja relevante e de interesse público
ciplinares. Estas tornam-se agora indispensáveis o tema da integralidade, independente da racio-
para qualquer tentativa de construção de um nalidade médica analisada.
mínimo de integralidade na atenção à saúde, seja
na atenção ambulatorial ou hospitalar.
Logicamente, as melhores possibilidades re- Considerações finais
caem sobre a atenção básica, ambiente, de certo
modo, mais exotérico e menos comprometido Vimos que os problemas, desafios e reivindica-
historicamente com a cultura das especialidades ções sintetizados no princípio normativo da in-
biomédicas. Todavia, mesmo na rede básica e no tegralidade dizem respeito eminentemente à bio-
PSF, tal equipe multidisciplinar mantém-se con- medicina contemporânea, que sedimentou a aten-
dição necessária, já que cada profissional está ção à saúde, fragmentando-a por inúmeros es-
habilitado e preparado, no geral, para aborda- pecialistas a partes restritas do corpo humano,
gem de problemas e aspectos específicos dos ado- suas doenças e riscos de adoecimento. Quando
ecimentos, com ações a eles restritas, bem longe têm acesso, os doentes são tratados por muitos
do global adoecimento do doente. especialistas de doenças distintas, sofrendo vari-
Certamente que essa situação está presente adas intervenções, como se fossem pacientes di-
na crise da medicina em sua relação com os do- ferentes. Acaba ocorrendo freqüentemente um
entes, e mesmo com a sociedade, já que os seus “conluio do anonimato”, em que ninguém se res-
custos astronômicos não correspondem a equi- ponsabiliza pela globalidade do cuidado e do tra-
valentes melhorias da saúde, e suas iatrogenias tamento, nem pelas suas conseqüências, como já
vão sendo aos poucos reconhecidas39,40. Essa per- discutia Balint42 na década de 1950. Enquanto
cepção pode estar envolvida na gênese da cres- sujeitos, vivos e individuais, os doentes não são
cente procura por outras racionalidades médi- tratados por ninguém, embora sejam “tratados”
cas, cujo saber e prática parecem apresentar maior de várias doenças35. Espera-se que a soma dos
teor de integralidade. tratamentos parciais e especializados resulte num
tratamento integral. O que gera frustração tanto
em curadores como em pacientes.
A transcendência Na biomedicina, a integridade do “pacto de
da questão da integralidade cura” está sempre sob ameaça e limitação, já que
a ação dos curadores biomédicos está constan-
Contextualizada a maior pertinência do proble- temente se desviando do doente como pessoa.
ma da integralidade ao ambiente dos curadores Ela tende a focalizar-se nas doenças e seus riscos,
especializados, resta comentar sobre sua trans- e não raramente aí se fixam a mente e o coração
cendência desse ambiente. Essa transcendência desses curadores. E isso é percebido mais ou
está justamente assentada na relação estreita e menos conscientemente pelos doentes. Assim,
direta, já comentada, entre integralidade e eficá- mesmo na perspectiva dos doentes (uma pers-
cia/efetividade num sentido geral, tanto do pon- pectiva pouco problemática, como vimos), a in-
to de vista dos doentes como dos curadores. tegralidade na biomedicina torna-se um grande
Comentamos que a integralidade na biome- problema.
dicina é precária, por várias razões que dizem Por sua vez, o desenvolvimento do saber eso-
respeito à sua construção sociohistórica, sua con- térico biomédico no século XX na direção indica-
formação epistemológica e institucional, hoje da ressalta as dificuldades para uma atenção inte-
hegemônica. Todavia, a transcendência do pro- gral nessa medicina do ponto de vista esotérico,
blema da integralidade torna-se relevante por tanto do ponto de vista ético como epistemológi-
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co. A integralidade foi remetida para o lado artís- trário, como vem fazendo a tendência hegemô-
tico da prática clínica, uma missão difícil para a nica biomédica31.
qual o saber esotérico parece contribuir cada vez Em paralelo, nas outras racionalidades mé-
menos. A tal ponto ficou dificultada a integrali- dicas mencionadas, a situação é inversa: a inte-
dade nessa racionalidade médica que há tempos gralidade é pouco problemática e pode subsistir
não se almeja uma integralidade centrada na rela- nos círculos esotéricos tanto no saber como em
ção doente-curador, em que o curador é uma só sua aplicação clínica, ficando seus desafios reme-
pessoa. A fragmentação e a especialização de seu tidos à propagação dessa integralidade para a
saber e prática são tamanhas que a integralidade periferia intermediária e exotérica dessas medici-
passou a ser projetada para o conjunto das ações nas, cuja amplitude no Brasil é pequeníssima se
institucionais, à famosa equipe multidisciplinar comparada à biomedicina. E ainda menor, se le-
ou multiprofissional, que aparece então como varmos em consideração o acelerado processo
uma necessidade incontornável para aumentar o de medicalização social ora em vigor no Brasil.
seu “coeficiente de integralidade”. Por outro lado, o consistente aumento na
Desse modo, fica clara a imperativa necessi- procura dessas outras racionalidades médicas
dade de reforçar e transformar as práticas clíni- torna importante para o SUS e a Saúde Coletiva
cas intermediárias e mais exotéricas, em torno o desafio da propagação da sua integralidade dos
das quais se deve priorizar e centralizar a organi- meios esotéricos, muito restritos em nosso país,
zação da atenção à saúde: a atenção primária, a para a periferia intermediária e exotérica, bem
rede básica. Esse ambiente onde, e quase somen- como a própria expansão dessa periferia.
te onde, alguma integralidade pode ocorrer para Tal desafio é importante também por outras
a maioria da população. Tal recomendação é já razões associadas entre si: tal procura se dá num
antiga pelos organismos de saúde pública inter- país globalizado, marcado por grande injustiça
nacionais e nas experiências de vários países com social e pobreza, no qual sempre há certa urgên-
sistemas públicos bem organizados de atenção à cia na resolução dos problemas de saúde; as pes-
saúde. Nossa discussão indica que a construção soas estão progressivamente medicalizadas, cada
da integralidade como um atributo das políticas vez mais dependentes de procedimentos, rituais
e ações de saúde institucionais no SUS está na e exames com alta tecnologia; há uma mercanti-
direção correta enquanto aposta na absoluta lização das medicinas alternativas e complemen-
priorização da rede básica como local principal tares, decorrente de sua existência no mundo
da atenção à saúde, e na responsabilização de privado e liberal das práticas curadoras, que en-
um equipe local multiprofissional de referência fatiza certos aspectos das mesmas; há uma in-
pelo cuidado personalizado dos cidadãos. corporação lenta, mas progressiva, ao establish-
Por paradoxal que seja, nessa medicina, os ment biomédico de técnicas dessas racionalida-
centros esotéricos de produção de saber médico des como procedimentos especializados restri-
afastaram-se tanto das suas missões éticas e so- tos a especialistas (acupuntura, por exemplo).
ciais que é preciso afastar-se deles para que uma Tudo isso significa uma pressão formidável no
“arte da cura” com alguma integralidade possa sentido contrário ao desejável: no sentido do des-
ocorrer. monte dos valores éticos e da fragmentação dos
De outra parte, nossa tese de que a integrali- saberes e práticas mais integrativos, promotores
dade na biomedicina só é possível no ambiente e preventivos, relativamente comuns nos círcu-
de sua prática clínica, e não de seu saber, não los esotéricos dessas racionalidades e em seus
significa uma condenação ou um desencanto com ambientes de origem, transformando-os em te-
tal medicina. Ao contrário, ela reforça a impor- rapias e procedimentos especializados e fragmen-
tância histórica, cultural, pedagógica e epistemo- tários, a serem consumidos no mercado, de for-
lógica do redirecionamento do SUS e das insti- ma semelhante à biomedicina, relativamente po-
tuições formadoras de profissionais para a prio- bres em integralidade.
rização da rede básica (de que o PSF é um exem- O SUS constitui-se em locus privilegiado de
plo), local privilegiado de prática clínica, que per- desenvolvimento da expansão dessas outras ra-
mite atenção e acompanhamento continuado das cionalidades médicas e de sua integralidade. E,
pessoas, e que pode viabilizar uma necessária re- recentemente, inicia-se um movimento de reco-
volução copernicana nessa medicina: fazer as nhecimento e valorização das mesmas, através
doenças biomédicas, seus riscos, seus tratamen- da edição da primeira Política Nacional de Práti-
tos e seus respectivos especialistas e profissionais cas Integrativas e Complementares no SUS (PN-
orbitarem ao redor dos doentes, em vez do con- PIC SUS), pela Portaria 971 do Ministério da Saú-
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de de 03 de maio de 2006, em consonância com Parece-nos que outras formas de legitimação


recomendações internacionais sobre o tema41. e validação epistemológica e social estão para se-
Nossa reflexão sugere que um investimento rem construídas no SUS, de forma a viabilizar a
cuidadoso num movimento de legitimação de ou- contribuição de outras racionalidades médicas
tras racionalidades médicas no SUS e sua oferta à para o cuidado dos doentes e a promoção da
população na rede básica é uma estratégia pro- saúde. Formas mais democráticas, discutidas e
missora de enriquecimento e ampliação do coefi- “co-responsabilizadoras” de pacientes, institui-
ciente de integralidade nas práticas do SUS. Algu- ções e profissionais. As poucas iniciativas nesse
mas experiências pioneiras de municípios, entre sentido têm tido êxito, recebem ampla aceitação
os quais podemos mencionar Rio de Janeiro, Vol- de profissionais de saúde (não sem tensões e re-
ta Redonda, Campinas e São Paulo, indicam que ceios de alguns e suas corporações, em geral mé-
tais racionalidades são amplamente aceitas e alte- dicos) e principalmente de usuários. Em geral,
ram para melhor a prática da biomedicina, nos tais iniciativas transcorrem harmoniosamente
locais em que com ela coexistem e interagem. nos interstícios das instituições ou legitimadas
Por fim, deve-se ressaltar a necessidade de cla- em ambientes institucionais locais, raramente
reza política e epistemológica, pelos gestores pú- mais amplos que o município, e indicam que a
blicos e pelos movimentos sociais, quanto aos participação ativa e a co-responsabilização con-
perigos da simples submissão à validação cientí- junta microssocial de gestores, profissionais e
fica para a legitimação de outras racionalidades usuários podem ser um caminho complementar
médicas no SUS. A biomedicina se considera “a” e eficaz, ao lado das regras corporativas das pro-
representante da Ciência e sempre busca, feroz- fissões da saúde, para legitimação e instituciona-
mente, ser a única capaz de validar qualquer prá- lização de outras racionalidades médicas nos ser-
tica em saúde-doença, mantendo sua hegemonia viços púbicos de saúde. Na construção da pre-
socioinstitucional. Submeter tal legitimação e sença das medicinas tradicionais e complemen-
validação social ao seu controle pode significar o tares no SUS, para que contribuam no que elas
sacrifício de grande e relevante parte da integrali- são fortes, como, por exemplo, na sua integrali-
dade das outras racionalidades médicas. dade, praticamente tudo está ainda por fazer.
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