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Cibele Cheron1
Resumo
1. Introdução
O homem do momento histórico atual tem a faculdade de pensar, sendo que os seus
pensamentos determinam as práticas que se estabelecem e se desenvolvem nas sociedades. O
pensamento humano, que produz conhecimento cada vez com maior rapidez, torna a
necessidade de mudanças de condutas ainda mais e mais urgentes. É necessário mudar antigas
certezas, aprender novos saberes, adequar-se a novos padrões, criar novas alternativas e
desenvolver novos critérios, novos procedimentos éticos, como estratégias de sobrevivência
para a nossa realidade.
Entretanto, há que se perceber que os direitos, conforme orienta Bobbio (1992) sempre
são históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa
de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas. O autor italiano observa que o campo dos direitos sociais está em
contínuo movimento:
uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para
sempre. (BOBBIO, 1997, p.34)
Para chegar a uma real igualdade das chances, a sociedade deve prestar mais atenção
àqueles que são desprovidos de bens desde o nascimento e àqueles que nasceram em
posições sociais menos favoráveis. (RAWLS, 1993, p. 100)
Carvalho (2004) atenta para o fato de que a Constituição Federal do Brasil de 1988
ampliou os direitos sociais, fixando limites inferiores para aposentadorias e pensões,
ordenando pagamento de pensões aos portadores de deficiência física e idosos (mesmo
aqueles que não contribuíram para a previdência social), introduzindo a licença-paternidade,
garantindo a aposentadoria do trabalhador rural, entre outras medidas. Entretanto, as maiores
dificuldades da área social ainda persistem, sob a forma de desigualdade.
Mas as maiores dificuldades na área social têm a ver com a persistência das grandes
desigualdades sociais que caracterizam o país desde a independência, para não
mencionar o período colonial. O Brasil é hoje o oitavo país do mundo em termos de
produto interno bruto. No entanto, em termos de renda per capita, é o 34º. Segundo
relatório do Banco Mundial, era o país mais desigual do mundo em 1989, medida a
desigualdade pelo índice Gini. Em 1997, o índice permanecia inalterado (0,6). Pior
ainda, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a
desigualdade econômica cresceu ligeiramente entre 1990 e 1998. Na primeira data,
os 50% mais pobres detinham 12,7% da renda nacional; na segunda, 11,2%. De
outro lado, os 20% mais ricos tiveram sua parcela de renda aumentada de 62,8%
para 63,8% no mesmo período.
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Na última década do século XX, os países de alta renda, assim como os países
emergentes, verificaram uma aceleração simultânea de quatro aspectos inerentes ao fenômeno
da globalização, segundo Coutinho (1996). No aspecto comercial, verificou-se o grande
crescimento do comércio internacional. No aspecto financeiro, ocorreu grande expansão dos
mercados financeiros mundiais. No aspecto produtivo, deu-se a transnacionalização crescente
de cadeias produtivas intra-corporativas e inter-corporativas. Finalmente, no aspecto
tecnológico, percebeu-se a inovação ininterrupta de tecnologias, possibilitando o crescimento
da produtividade econômica.
[...] há um “lado obscuro” (de fato ameaçador e imprevisível) nas atuais políticas de
internacionalização em nosso continente. [...] as tendências dominantes, no sentido
da modernização e da democracia, abrigam em seu interior efeitos perversos,
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(...) se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço,
e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter a expectativa de milagres. Não
porque acreditemos (religiosamente) em milagres, mas porque os homens, enquanto
puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no
continuamente, quer saibam disso ou não. (ARENDT, 1993, p. 122)
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Sendo assim, percebe-se que a ação coletiva possui uma dimensão identitária inerente
aos atores sociais, que combinam, em suas estratégias ênfases particularistas ou universalistas.
A questão das identidades dos atores sociais aparece em Stevenson (1999), ao observar a
diversificação, inserção e luta dos movimentos sociais na América Latina, movimentos esses
que lograram, cada um em sua medida, em participar da consolidação das instituições
democráticas, promovendo a expansão e a universalização, dentro da esfera social, dos
valores que defendem. A análise desse duplo aspecto da ação coletiva (estratégia e identidade)
é fundamental na compreensão da autonomia que os atores sociais conseguem atingir, não se
deixando absorver pelo controle administrativo ou pelos interesses do mercado.
Através da participação popular, os direitos civis são ampliados, assim como o direito
que a sociedade civil tem de lutar por sua conquista e defesa, de forma direta. Dentro desse
processo, as cidades têm um papel estratégico. Aliada à crise do Estado-nação e ao
desenvolvimento das estruturas supranacionais está a transferência de competências e
responsabilidades para as autoridades regionais e locais. Logicamente, esta transferência
reveste de novo poder tais autoridades, aumentando sua relevância no contexto político.
3. O capital social
Uma definição mais sistemática do termo surge na década de 1980, com Pierre
Bourdieu. Capital social, na definição de Bourdieu, é o conjunto de recursos atuais ou
potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações de conhecimento e
reconhecimento mútuo em diferentes graus de institucionalização, ou seja, a vinculação a um
determinado grupo. Refere-se à participação do indivíduo em determinadas redes de
relacionamentos que lhe permitem acessar certos recursos econômicos, como também
aumentar seu capital intelectual através do contato com outros indivíduos e grupos. A análise
de Bourdieu demonstra que todas as formas de capital social podem ser reduzidas, em última
instância em capital econômico, na forma de trabalho humano acumulado. Os pilares desse
conceito instrumental são os benefícios obtidos pelos indivíduos quando se inserem em
grupos e as iniciativas de criação de sociabilidade visando, especificamente, a construção do
capital social. A solidariedade e a pertença a redes sociais não são naturais, dentro dessa
perspectiva, mas os benefícios que se podem angariar a partir de sua existência justificam a
elaboração de estratégias de investimento orientadas para criá-las e estruturá-las. A aquisição
do capital social demanda investimentos de recursos de ordem econômica e cultural, e os
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processos que levam a tal aquisição desenham-se de diferentes maneiras, cada qual com sua
própria dinâmica, tendo em comum uma menor transparência e uma maior incerteza.
Coleman faz uso das contribuições do pensamento do economista Glen Loury (1981),
que também elaborou uma definição de capital social através de seu trabalho crítico às teorias
neoclássicas da desigualdade racial de rendimento se às suas implicações políticas. Para
Loury, as teorias econômicas ortodoxas pecavam pelo excesso de individualismo. Outras
influências presentes no trabalho desenvolvido por Coleman são o economista Ben-Porath
(1967), com seu modelo de otimização dinâmica de investimento no capital humano, e os
sociólogos Nan Lin (2001) – o qual define capital social como o conjunto de recursos
enraizados nas redes sociais que são acessíveis e utilizados pelos indivíduos nas suas ações –
e Mark Granovetter (1985) – que trouxe à tona a relevância dos fatores sociais nas questões
econômicas, propondo uma análise fundamentada no entendimento das ações dos indivíduos
inscritos em sistemas concretos de relações sociais.
A definição de Coleman para o capital social parte de sua função, tratando de uma
variedade de entidades dotadas de dois elementos em comum: consistirem num certo aspecto
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Ainda que não tenha feito referência direta à obra de Bourdieu, a difusão das idéias deste último é constante da
obra de Coleman.
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das estruturas sociais e facilitarem as ações do atores, individuais ou coletivos, dentro dessas
estruturas. Coleman também identifica alguns dos mecanismos geradores de capital social,
como as expectativas de reciprocidade e as normas impostas pelo grupo. Também identifica
algumas conseqüências inerentes a sua obtenção, como o acesso a informações. Como liame
entre esses aspectos, o autor percebe a organização social apropriável.
capital social personificado pelo engajamento cívico por sistemas de participação influenciam
positivamente a performance governamental e o nível de desenvolvimento econômico e social
da região a qual pertencem.
Robert Putnam, ao estudar por quase 25 anos a criação de instituições sociais nos
governos regionais da Itália, estabelecidos a partir do início dos anos 1970, comparou o
desempenho institucional das regiões Norte e Sul. Putnam (2000-a) parte da constatação de
que a descentralização política promovida na Itália e o fortalecimento do poder local não
foram suficientes para dissipar as diferenças no desenvolvimento das regiões Norte e Sul. A
explicação para tal fato é fornecida através do conceito de capital social que, deferentemente
do capital convencional, se auto-reproduz. Tal afirmativa remonta a Albert Hirschman (1986),
que trata dos recursos morais cuja oferta aumenta de forma diretamente proporcional ao uso,
ao invés de diminuir, e que, não sendo usados, esgotam-se.
quando sistemas de intercâmbio vertical são utilizados nas relações sociais, não há
sustentabilidade para a confiança e cooperação, substituindo-se essas práticas por
oportunismo e clienteleismo e redundando num menor desenvolvimento econômico e social4.
Porém, é preciso atentar para o fato de que a sociedade é dinâmica, e as mudanças que
incapacitam as antigas instituições no acompanhamento das mudanças não necessariamente
querem dizer perdas para o capital social. Antes, conforme Boggs (2001) e Rich (1999),
significam modificações no perfil do engajamento cívico, diversificando o tecido social e suas
clivagens étnicas, de gênero, de idade, de estilo de vida, de nível de educação e de
preferências. Conforme Forni, Siles e Barreiro (2004), a construção do capital social depende
da capacidade dos atores para estabelecer deferentes relações fora do seu grupo de pertença,
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Tal observação diz respeito ao Norte da Itália, identificado com sistemas de intercâmbio horizontal, e o Sul,
identificado com sistemas de intercâmbio vertical, como a máfia e a igreja católica.
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transpondo os laços forjados nas redes primárias (família, por exemplo) e estabelecendo laços
transversais entre grupos diferentes.
O conceito de capital social inclui não somente redes e relações sociais, mas também
aspectos psicológicos, como habilidades sociais, cooperação, honestidade, e medidas
políticas, como a liberdade civil, por exemplo, o que permite que o capital social possa ser
utilizado como um fator de crescimento econômico.
A idéia de gestão social, segundo Jacobi (2000) pretende que os agentes sociais, a
sociedade e o poder público (Estado, mercado e sociedade) se façam presentes em todos os
momentos do processo, desde a mobilização e a conscientização dos atores a serem
envolvidos, até o acompanhamento e o controle social que devem inclinar-se sobre as ações
empreendidas.
A solidariedade, item essencial para o agir coletivo de cooperação, é vista por Morin
(1998), como fundamental para a sobrevivência da humanidade. O princípio da cooperação
entre as pessoas é o elemento chave na constituição de uma nova humanidade. A cooperação é
o elemento balizador das relações sociais humanas, e a solidariedade tem papel central na
adaptação às mudanças e transformações vivenciadas pela sociedade. Lévy (2003) aponta a
evolução técnica, o progresso da ciência, as turbulências geopolíticas e os elementos
aleatórios dos mercados são dissociativos da coesão comunitária, obrigando as pessoas a se
deslocarem em busca da satisfação de suas necessidades de sobrevivência. O autor afirma: “a
riqueza das nações depende hoje da capacidade de pesquisa, de inovação, de aprendizado
rápido e de cooperação ética de suas populações” (LÉVY,2003, p. 44).
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[...] a capacidade de organização social de uma região como fator endógeno para
transformar o crescimento em desenvolvimento, através de uma intensa malha de
instituições e agentes de desenvolvimento, articulados por uma cultura regional e
por um projeto político regional. (HADDAD, 2004, p. 11)
Rolim (1997) ressalta como principais metrópoles São Pulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza, Belém e Curitiba. As partes periféricas,
geralmente vinculadas a bases de recursos naturais, especializaram-se gradativamente,
promovendo certo grau de desconcentração da economia da região Sudeste e integrando, a
partir dos anos 70, o país economicamente.
Boisier (1989) percebe que para as regiões periféricas, não apenas as forças exógenas
são determinantes para o desenvolvimento, nem apenas ele pode ocorrer de cima para baixo,
vindo do Estado. O desenvolvimento endógeno, que ocorre de baixo para cima, é
determinante para a condição regional, desde que as estratégias locais contem com a
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articulação e organização dos seus próprios elementos. O autor identifica cinco questões
básicas que determinam a capacidade de uma região para promover o seu desenvolvimento
endógeno: o conhecimento de seu entorno paramétrico, a fim de avaliar sua possibilidade de
ação; a compreensão das indicações emitidas pelo restante do sistema; com quanto dos
recursos nacionais a região pode contar; os efeitos das políticas macroeconômicas sobre a
região; e a capacidade de organização regional, o capital social da região.
O desenvolvimento local tem estreita relação com a história de cada região, com a
cultura de sua comunidade e com suas características naturais. O desenvolvimento de uma
região relaciona-se diretamente com a vida da comunidade que nela habita. Para Buarque
(2002, p. 25), o desenvolvimento local é “um processo endógeno de mudança, que leva ao
dinamismo econômico e à melhoria da qualidade de vida da população em pequenas unidades
territoriais e agrupamentos humanos.” Envolver a comunidade no processo de
desenvolvimento de sua região é envolvê-la, imediatamente, no processo de ganho de
qualidade para sua própria vida.
uma mera doação ou transferência efetuada de forma vertical, por altruísmo ou benevolência,
onde o sujeito empoderado seria passivo, conforme salientam Schiavo e Moreira (2005).
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