Flavio de Souza
Amigos, vizinhos e parentes todo mundo tem. Uns têm primo artista que engole
fogo, ou uma avó estrangeira que fala esquisito com as amigas no telefone. Tem gente
que o avô foi soldado e lutou na guerra... tio que faz mágica nas festas de aniversário...
Tem até uns que são filhos de ator de televisão.
Mas eu era mais original que toda essa gente junta. Eu tinha um amigo invisível.
Que só eu enxergava e ouvia. Ele não tinha nome. Ele era... ele!
Eu dividia tudo com ele. Meu quarto, meus brinquedos, meu prato. Era melhor
que um gato. Maior que um cachorro. Mais bonito que um pato, mais esperto que uma
raposa.
Então lá em casa moravam quatro: meu pai, minha mãe, eu... e ele.
Um dia comecei a perceber que minha mãe estava barriguda. Ela começou a usar
roupas largas pra disfarçar. Não andava mais naquela bicicleta que não sai do lugar. Não
corria mais de uniforme em volta da casa. E não fazia regime, comia feito louca. Estava
cada vez mais bochechuda. Corada. Feliz.
Parecia que estava meio biruta também. Andava dando risadinhas pela casa,
cantando, falando sozinha. Eu até pensei que tinha encontrado uma amiga invisível pra
ela também. Mas que nada! Gente grande não acredita nessas coisas.
Eu pensei que era maluquice mesmo. Uma noite, quando já estava todo mundo
deitado pra dormir, ela fez meu pai se vestir e sair pra comprar manga, dizendo que não
ia conseguir pregar o olho se não comesse manga. E o mais biruta de tudo é que meu pai
foi sem reclamar, todo satisfeito. Como se fosse a coisa mais normal do mundo. Olhei
pro meu amigo invisível e nós dois concordamos:
– A mãe pirou!
Então percebi que estavam escondendo algum segredo de mim. Minha avó
começou a ir mais vezes lá em casa, quase todo dia. Depois ia todo dia. E trouxe uma
mala e se mudou de vez. Ela estava com a mesma esquisitice da minha mãe. Ria e
cantava à toa. As duas passavam a tarde inteira na frente da televisão, fazendo tricô e
falando pelos cotovelos.
Foi pelas coisinhas que começaram a sair das agulhas de tricô que comecei a
descobrir o que estava pra acontecer: eram só meiazinhas, casaquinhos, gorrinhos...
coisinhazinhas que só cabem em... nenezinhozinhos!
Aí ouvi meus pais cochichando na cozinha. Um falava que o outro devia me
contar alguma coisa. Minha mãe dizia que meu pai devia ter uma conversa de homem
pra homem. E meu pai dizia que minha mãe devia me contar o que era pra contar,
porque senão eu podia ficar achando que ela não gostava mais de mim, sabe como é?
Era aquele monte de bobagem que os adultos falam e pensam que as crianças não
entendem. Eles estavam é morrendo de medo de me falar alguma coisa e estavam
inventando desculpas. Às vezes os adultos parecem mais crianças que criança, coitados,
dá até pena. Então resolvi dar uma mãozinha pra eles e entrei correndo na cozinha
perguntando:
– O que é, hein? O que que vocês precisam me contar?
Os dois ficaram com cara de criança que é pega chupando o pirulito que era pra
chupar só depois do jantar. Eu fiquei com mais pena deles e falei:
– Não precisa ficar com medo não. Pode contar que eu não vou ficar bravo!
Eles então riram meio amarelo e me anunciaram, os dois juntos:
– Você vai ganhar um irmãozinho!
Eu tinha prometido que não ia ficar bravo, mas fiquei bravíssimo. Não era
possível! Eu já sabia, mas não queria acreditar. Meu amigo invisível já tinha me falado,
mas eu não quis ouvir. Eu era o rei da casa. E não ia dividir meu reino com nenhum
invasor!
Chorei, esperneei, fiz bico. Ameacei de tapar a respiração até ficar roxo e
desmaiar. Meus pais tentaram me agradar e me explicar e me convencer. Então, quando
perderam a paciência, gritaram bem alto pra eu ouvir, bem alto mesmo porque eu tinha
tapado os ouvidos:
– Você vai ter um irmãozinho, querendo ou não. Mas que coisa, menino!
E desse dia em diante não falei mais com ninguém. Tentaram me fazer falar, todo
mundo: meus pais, meus avós, meus primos. Os vizinhos, os colegas, a professora. o
jornaleiro, o pipoqueiro, meu amigo invisível. Mas nada! Pus até um durex na boca pra
deixar bem claro: eu não vou mais falar!
Eles insistiam, escreviam bilhetes. Davam presentes. Contavam que gostoso ia ser
quando meu irmão chegasse. Foi difícil, mas continuei mudo como um jabuti. Será que
jabuti não fala? Bom, então eu fiquei mudo como um jabuti mudo. Pronto!
Minha mãe foi a primeira a se cansar da brincadeira: não fez mais doce de
abóbora. Não veio mais me dar o beijo de boa-noite. Não falou mais comigo.
Fingi que nem liguei. Mas toda noite chorava até pegar no sono. O invasor – que
já estava morando na barriga dela – acabou ficando com ela inteira pra ele.
Eu tinha vontade é de dar um chute no barrigão que estava cada dia mais parecido
com uma bexiga de festa de aniversário, daquelas que parecem que vão estourar. Mas
tinha medo de machucar minha mãe. E o invasorzinho também, porque ele era um
inimigo, mas não tinha culpa. Estava lá porque tinha sido encomendado. E eu comecei a
olhar feio pro meu pai, porque sabia que tido sido ele que tinha posto a sementinha
dentro da minha mãe...
Aí foi meu pai que cansou da brincadeira. Não me trouxe mais brinquedo,
revistinha, figurinha. Não ficou mais no gol pra eu chutar. Não leu mais histórias antes
de eu dormir. Ele tinha até inventado um jeito pra ver se eu falava. Ele parecia um
palhaço fazendo mímicas e caretas, escrevendo uns bilhetinhos com desenhos, eu tinha
que me segurar pra não cair na gargalhada. Eu já estava quase respondendo, mas,
teimoso, demorei. Meu pai perdeu a paciência. E desistiu.
Pouco a pouco fui ficando sozinho. Meus amigos e primos e tias e vizinhos
também desistiram. Só meu amigo invisível falava comigo. Só ele sabia ouvir meu
silêncio...
Uma noite eu acordei assustado. Ouvi barulho na garagem. Abri a porta do quarto
e olhei pro corredor. Meu pai subiu as escadas e desceu amparando minha mãe. Ela
estava de camisola e roupão e carregava uma mala na mão. Meu pai fumava nervoso.
Minha mãe tentava se ajeitar, arrumar o cabelo, mas sorrindo, sem se importar de estar
descabelada.
Eu pensei que ela ia embora pra sempre. E, no desespero, perguntei se estava
doente. Sorrindo mais ainda, ela respondeu:
– Não, é seu irmão que está chegando! Está na hora dele sair da barriga...
E os dois foram pro hospital. Eu esqueci que tinha prometido não falar e perguntei
pra minha avó que história de hospital era aquela. Ela me disse que pro nenê sair da
barriga da mãe ela tinha que fazer muita força, e um médico presava ajudar e depois dar
o nó que vira o umbigo. E como o nenê ia sair da barriga, que é quentinha e escondida
de bichinhos que causam doenças, isso tudo tinha que acontecer num lugar bem limpo e
arrumado pelas enfermeiras.
Fiquei pensando, pensando. E então lembrei:
– Chegou o dia!
Tinha chegado o dia de pôr em prática meu plano. Eu tinha resolvido que ia fugir
quando o invasor chegasse. Fiz uma trouxa. Peguei umas comidas na geladeira. Escrevi
um bilhete me despedindo dos meus pais, da minha avó, do meu quarto, dos brinquedos,
da sala, da televisão, das poltronas, do lustre de bolinha, da geladeira, do pinguim.
Esperei minha avó roncar no sofá. E saí correndo pela porta dos fundos.
Foi aí que descobri que não tinha pensado pra onde ir. Pra rua, fiquei com medo.
Podia passar a polícia e pensar que eu era um menor abandonado. Pra casa dos vizinhos
não dava, eu tinha brigado com todos eles.
Fiquei um pouco no quintal, mas estava escuro e ouvi mil barulhinhos
assustadores. Então voltei correndo pra casa. E descobri que tinha acontecido o pior de
tudo: meu amigo invisível tinha sumido. Me deixado. Abandonado! Eu chamei, chamei,
chamei. Ninguém respondeu.
Eu estava sozinho. E nunca tinha me sentido tão infeliz em toda minha vida!
No dia seguinte meu pai voltou. E três dias depois minha mãe chegou trazendo o
invasor no colo. Eu nem quis ver. Passei uma semana escondido no meu quarto. Eles
nem notaram. Só iam de um lado pro outro esquentando mamadeiras, dobrando fraldas
e limpando xixi e cocô. Minha mãe ficou mais descabelada que nunca, meu pai também.
E até minha avó. Todos cansados, com muito sono e... felizes!
Aí, uma noite em que eu estava acordado e falando sozinho porque meu amigo
invisível não estava mais lá pra conversar comigo, ouvi o choro do invasor. Ele chorou,
chorou, chorou. Comecei a ficar com pena. Ele tinha invadido meu reino, mas mesmo
assim parecia que estava tão triste! E ninguém ia ver o que era? Ele era pequeno,
coitado, não podia ir pegar alguma coisa na geladeira pra matar a fome. Nem ir no
banheiro pra fazer xixi...
Então resolvi dar uma espiadinha. Entrei no quarto todo enfeitado, não tinha
nenhum adulto. Deviam estar todos desmaiados de cansaço, dormindo. Mas não era
justo. O invasor não tinha pedido pra vir, tinha?
Cheguei devagar perto do berço. E olhei...
Ele era tão pequenininho e tão bonitinho! Parecia com alguém que eu conhecia
mas não sabia bem quem era...
Como não tinha ninguém olhando, comecei a balançar o berço. Bem devagarinho.
E a cantar uma música que meu pai cantava quando eu era pequeno, pequenininho.
Logo ele parou de chorar. E olhou pra mim, parecia que estava dando uma
risadinha... Foi aí que eu descobri que ele não era parecido com uma pessoa. Ele ERA
uma pessoa que eu já conhecia. ELE ERA MEU AMIGO INVISÍVEL! Só que agora
estava ali, olhando e sorrindo pra mim, visível pra mim e pro mundo todo! Eu só tinha
que esperar ele crescer um pouco pra poder fazer as coisas que fazia com ele antes. E o
que não dava pra ele fazer também, porque meninos invisíveis não podem jogar futebol,
damas, dominó. E meninos visíveis podem brincar de lutar, brincar de ser gente grande,
brincar de brigar e logo ficar amigo, brincar!
Eu ia dividir tudo com ele. Meu quarto, meus brinquedos, meu pai, minha mãe.
meus truques, minhas ideias, meu amor pelas coisas certas e minha raiva pelas coisas
erradas.
E assim, lá em casa moram quatro: meu pai, minha mãe, eu e... ELE!