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A repórter Sônia Bridi e o cinegrafista Paulo Zero percorreram mais de mil quilômetros
pelo sertão do Nordeste. É mais uma reportagem da série Brasil: Quem Paga é Você.
Já são dois anos, a estação das chuvas chega, as nuvens se formam, mas não deixam cair
uma gota de água. Estamos em Cabrobó, Pernambuco. A apenas 20 quilômetros das
margens do Rio São Francisco, a seca espalha suas vítimas na beira da estrada. O gado
morto se incorporou à paisagem, num tempo em que só os urubus conhecem fartura.
Na fazenda, o homem de 90 anos está sozinho. Chama o filho, que saiu para cuidar do
gado. Ele chega, rasgado, desgrenhado, e revoltado. “Eu não tenho tempo de sair daqui
para pedir socorro ao povo. Três vacas caídas ontem só por que eu saí”, conta Seu
Avenor.
Dono de 270 hectares de caatinga, Seu Avenor é considerado rico demais para ter
aposentadoria rural. Durante meses comprou comida para o gado, mas o dinheiro
acabou. “Se a senhora quiser ver como é que dá um jeito, caminha atrás d‟eu que a
senhora vê o que eu estava fazendo, nos chama o homem”, diz ele.
Ele prepara o único alimento que resiste a vinte meses de seca: o xique-xique. Os galhos
vão para o fogo, tempo suficiente para queimar os espinhos, mas não demais, para não
consumir a água que o cactus armazena. Os bichos famintos disputam os galhos ainda
quentes.
“Ah, isso aí não tem preço, não, porque diz logo: „Não, está magra. Vai levar para lá e
não tem o que comer para dar. Aí querem dar o quê? Cem contos, cento e cinqüenta”,
diz Seu Avenor.
“Uma rês grande dessa aí gorda é mil e tantos contos”, diz Seu Avenor.
O sertanejo ainda vai ter que esperar três anos para ver a água correndo por esses canais.
Além disso, nesse período o custo disparou. Começou em R$ 4,7 bilhões e já chega a
R$ 8,2 bilhões. Um aumento de 80%.
Durante cinco dias, percorremos 1,2 mil quilômetros ao longo do eixo norte, passando
por três estados.
“Eu não posso dizer que não vai chegar. Agora, no momento, eu olho e não vejo como é
que essa água, como vem uma perna d‟água para aqui”, lamenta Seu Avenor.
Em Cabrobó, o canal chega pertinho do rio, mas não está ligado a ele. A obra para
permitir a captação da água ainda nem começou. Ao lado, o início das obras de uma
estação elevatória é só uma amostra da colcha de retalhos que é a obra da transposição.
Quarenta e três por cento estão prontos, mas em pedaços que não se conectam, nem uma
gota d‟água passa pelos canais.
O canteiro de obras mais ativo fica em Salgueiro, Pernambuco. No local está sendo
construído um grande reservatório de onde a água vai ser bombeada para o ponto mais
alto da transposição. Em cima, a água vai passar 180 metros acima do leito do São
Francisco. Dali em diante, só com a força da gravidade vai percorrer mais de 100
quilômetros.
Foi este o cenário que o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, escolheu
para dar entrevista.
Por que essa obra ficou tão mais cara, quase dobrou de preço, e atrasou tanto?
Ministro: “O projeto básico foi concluído em 2001. Esse projeto básico serviu de base
para licitações. E os projetos executivos foram desenvolvidos ao longo da obra. Ocorreu
uma grande discrepância entre o projeto básico e o projeto executivo da realidade
encontrada em campo”.
O projeto básico foi feito ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Quando as
obras começaram, em 2007, o projeto não foi revisado ou atualizado. Projeto mal feito é
a causa mais frequente de atrasos de obras públicas no Brasil. A empreiteira ganha a
licitação e, ao começar as obras, descobre que tem mais trabalho, e com custo diferente
do que o previsto.
Fantástico: Mas o projeto básico não deveria ser mais detalhado do que é?
Ministro: “A legislação não define regras muito claras para esse projeto básico, se
cumpriu toda a legislação. Só que é preciso lembrar que essa é uma obra de engenharia
muito complexa”.
“A Lei de Licitações e Contrato é muito clara. E nela se você verificar lá no artigo
sexto, que ela tem vários incisos detalhando o projeto básico. Que é exatamente para ele
ser um projeto detalhado. Então, quando você começa um projeto, bota uma licitação na
rua com um projeto básico mal feito, deficiente e sem planejamento, o resultado é a
obra paralisada. São obras mal feitas, com má qualidade e sem o resultado esperado pela
população”, esclarece o Ministro do TCU, Raimundo Carreiro.
Ninguém saiu ferido. Mas foi um ano e meio parado, para finalmente fazer um projeto
detalhado, e recomeçar tudo, bem ao lado.
O novo túnel segue as técnicas para a contenção das paredes frágeis, mas só avançou 20
metros. Do outro lado da montanha, a frente de trabalho que vem na direção oposta deu
a sorte de cavar rocha firme já perfurou quatro quilômetros e meio.
Agora, quando se bota as máquinas em campo, ministro, sem saber exatamente que tipo
de solo vai encontrar, que tipo de projeto vai ser executado, como vai ser
detalhadamente essa obra, não é botar o carro na frente do boi?
Antes e depois do túnel, dois trechos completamente parados. De lá, a água viria
reforçar o açude Boqueirão, já na Paraíba, que está só com 17% da capacidade. O nível
da água baixou tanto que expôs as ruínas da antiga cidade de São José de Piranhas,
transferida há 80 anos para a construção da represa. A obra do canal também desloca
agricultores que têm suas terras no caminho para vilas agrárias.
“De imediato, a gente sentiu uma grande alegria, porque morávamos em uma fazenda,
recebíamos água de carro-pipa, mas aí aos poucos depois da mudança que a gente foi
vendo alguns sentem tristez”, disse uma moradora.
Com relação ao dinheiro público investido aqui, como é que você se sente?
“A gente vê que foi uma quantia bem grande e que de certa forma sai do nosso bolso”,
disse a moradora.
Cada família teria um lote de cinco hectares, um deles irrigado, para plantar. Mas
passados dois anos, eles continuam vivendo de uma mesada do governo.
“É a mesma coisa, a gente está numa invalidez. Porque o que a gente é acostumado
mesmo é trabalhar, trabalhar na roça para obter o sustento da pessoa, cada um de nós”,
disse Seu Lindoval.
A caixa d‟água também rachou. E só não falta água nas casas porque Seu Lindoval fez
uma gambiarra mandando a água direto, racionando, uma rua de cada vez.
“O gado veio para cá porque a situação é difícil lá. Se ficasse lá, talvez amanhã não
tivesse nem mais a metade vivo. Porque não tinha o que dar a eles hoje. Aqui está
melhor, tem uma folhinha murcha. Eu acredito que eles, comendo essa folhinha murcha,
vão sobrevivendo. E lá no meu terreno não choveu nem para isso, nem para fazer água,
não fez água nem para passarinho”, conta Francisco Tadeu.
Treze meses depois, já se foram 60. O Conselho Nacional de Pecuária de Corte estima
que o Nordeste perdeu 12 milhões de cabeças de gado por causa da seca. Metade
morreu e a outra metade foi abatida antes da hora ou mandada para outras regiões.
“Essas vaca aqui eram das melhores vacas de leite que eu já possui. Isso dá uma tristeza
tão grande! Essa vaca aqui mesmo quando ela tava morrendo, eu olhei para ela e dos
olhos dela corria água. Para ela, é como se ela tivesse se despedindo”, se emociona
Tadeu. “Eu estou andando aqui. Estou andando aqui agora, porque vim com vocês. Mas
não gostei de olhar para cá, não. Quando olho pra uma situação dessa...”
No curral ficaram as que estão fracas demais para ir embora. “Esse era para ser um
animal bonito. É filho de vaca boa, vaca cara. Era para ser um animal bonito. Quando
está assim não dura mais muitos dias, não”, lamenta. “Vaca como essa aqui eu comprei
oito de uma vez. Essas foram a R$ 2, 5 mil. Era vaca acima de dez litros de leite”.
Enquanto pôde, ele comprou ração. Mas a seca fez o preço se multiplicar por quatro.
“Tem não. Eu nem penso isso. Se for pensar isso aí, fico doido”.
A transposição do São Francisco, o senhor acha que se estivesse pronta ajudava aqui?
“Se for como eles dizem,o pessoal diz, acredito que ajudava. Acredito que melhor do
que está fica. Muito, porque água é riqueza”.
A três anos de ver a água correndo, a família se agarra na fé. “Vamos esperar pela
vontade de Deus, né? Se for para acabar até a última, acaba. Vamos ver se pelo menos a
gente sobra para contar a história”.