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Livro Primeizo A critica psicanalitica da filosofia Capitulo I A FILOSOFIA E O OBSTACULO CONSCIENCIALISTA 1, A RESPOSTA FREUDIANA A PERGUNTA FILOSOFICA Em que consiste o obstaculo epistémico de que a filosofia 6 geradora? Para detect4-lo, devemos, antes, discernir seu enor- me efeito: ela poe o inconsciente jora do estado de pensar. E 0 “consciencialismo” da filosofia dominante! que faz dela 0 obs- téculo decisive para a ciéncia psicanaliticat ¢ o fundamento correntemente alegado por Freud da oposigio entre a filosofia e a psicandlise. Para apreendermos a génese dessa temética, dispomos de ‘um notdvel documento que mostra, no calor de uma resposta epistolar, a reagio tipicamente freudiana face interrogacao filos6fica ¢ a0 fundamento imediato que a justifica. Uma profes- sora francesa de filosofia, Favez-Boutonicr, tendo solicitado a Freud sua opinido sobre “questées de ordem metafisica”, obte- ve sua resposta numa breve carta datada de 11 de abril de 1930, cujo predmbulo estipula: “Os problemas filos6ficos ¢ suas formulagoes me sio tio estranhos, que nio sei o que dizer 23 sobre cles (nichts anzrfangen), nem sobre a filosofia de Spi- noza” (a respeito da qual sua correspondente the havia mais especialmente interrogado). A resposta & radical: a solicitagio filoséfica desenca em Freud essa recusa e esse siléncio. Face a exigéncia que 0 leva a tomar a palavra filoséfica, apela para uma incapacidade total. Nao pode nem mesmo esbocar uma Tesposta; declara nfo poder dizer a primeira palavra, néo en- contrando nada para dizer nessa linguagem, Hé, aqui, uma re- cusa de torar-se, por mais conjuntural ¢ oficiosamente que seja, 0 sujeito de um discurso filoséfico, e de engajar o conteddo analitico na formulacio filoséfica. A serenidade com que Freud recusa 0 convite filoséfico, como se o interlocutor houvesse se enganado de pessoa, s6 faz. exprimir methor a radicalidade da recusa. Evidentemente, nao se trata tanto de uma questo de “tempo”, de disponibilidade ou de humor, ¢ a ninguém podem enganar as desculpas fornecidas por Freud, Trata-se do sinto- ma de um discurso impossivel, por conseguinte, que néio deve ser mantido. Nao obstante, a seguir, encontramos uma breve resposta que, de fato, constitui apenas a explicitaglo da recusa precon- ceituosa, Ela € interessante por sua forma, pois se apresenta como um encadeamento de enunciados proposicionais dispostos em sucesso, Ora, essa forma corresponde a uma finalidade bem precisa: fornece-nos a ocasiéo para apreendermos 0 sentido da recusa de Freud em relagéo a demonstratividade fitoséfica. Seja, pois, “o objeto filoséfico” proposto em sua for- mulacao filos6fica: as relagdes entre 0 universo fisico ¢ 0 uni- verso psiquico. Ao invés de lancar-se numa demonstracio exaustiva das relagdes entre esses dois termos, com a ajuda de um aparelho de definigées e de axiomas, Freud se contenta em partir da oposicio imediata, tal como ela ¢ dada, e em enunciar quatro proposigdes (Sdtze, segundo seus termos): 1. A nao-problematicidade da existéncia do universo fisi- co: “Limito-me a dizer o seguinte: no vejo nenhuma dificul- dade em admitit um universo fisico ao lado do universo psi- quico”. 2. A necessidade de se afirmar a relacdo do ponto de vista psiquico: “A questio de saber em que relacio eles se encontram, um em relacdo ao oulro, s6 merece consideracao quanto ao tiltimo: 0 psiquico”. 24 3. © primado cognitive da consciéncia como fundamento do privilégio do psiquico no sentido 2: “O universo fisico s6 possui um cardter psiquico porque & conhecido por nés apenas através de uma tomada de consciéncia psiquica”. 4. A necessidade da postulagio de um substrato material da representagio: “Pos outro lado, nossas tomadas de cons- cigncia psiquica impdem-nos também a necessidade de admitir ‘uma realidade fisica por detrés da vida da alma”®, Consideradas do ponto de vista filosético, essas proposi-

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