Você está na página 1de 248

1

ART
2
ART
ART
Reitor da Universidade de Brasília
José Geraldo de Sousa Junior

Vice-reitor
João Batista de Sousa

Diretora do Instituto de Artes


Izabela Costa Brochado

Vice-diretora do Instituto de Artes


Nivalda Assunção Araújo

Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arte


Maria Beatriz de Medeiros

ISBN número: 978-85-89698-34-4


Instituto de Arte da Universidade de Brasília
Programa de Pós-Graduação em Arte
CNPJ: 00038174000143
Edição: 1
Ano: 2012
Local: Brasília - DF

Dados da Obra:
Título: Art - Arte e Tecnologia // MODUS OPERANDI UNIVERSAL
Organizadores: Cleomar Rocha, Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli

3
ART

Conselho editorial
Cleomar Rocha
Maria Beatriz de Medeiros
Suzete Venturelli

Projeto Gráfico
Cleomar Rocha

Capa
Maria Antonia Zanta Nobre

Diagramação Interna
Ronaldo Ribeiro da Silva
Bruno Ribeiro Braga

4
ART
Sumário
8 Apresentação
Cleomar Rocha, Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli
9 Cidade expandida: hibridismo e expansão de um conceito
para o contexto das redes tecnológicas
aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano
23 Objetos Tec­­nopoéticos: uma abordagem da Neuroestética e
da Neuroarte
Alberto Semeler
33 Arte, conhecimento e livros virtuais
Ana Beatriz Barroso
41 Percepção em lá menor
Anna Barros
50 Interação, criação e agência
Cleomar Rocha
56 Posthuman Tantra: BioCyberShamanism
Uma Performance Multimídia Cíbrida.
Edgar Franco
65 Registros e ausências: arte contemporânea como desafio para
historiadores da arte
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
72 A experiência estética: consciência, linguagem e narrativa
Fernando Fogliano
81 Projetos Catavento e Amoreiras
Gilbertto Prado e Grupo Poéticas Digitais
89 Números
Hugo Rodas
93 O universal no imaginário sistêmico das poéticas
cartográficas: aclopamentos e desvios nos processos de criação
transmidiáticos
Lucia Leão
103 A relevância da arte-ciência na contemporaneidade
Lucia Santaella
112 Identidade cultural de grupo no processo de design, produção
e interação na arte de transição, transiarte, uma ciberarte coletiva na
Educação de Jovens e Adultos – EJA
Lúcio Teles e Aline Zim
5
ART

124 Código e linguagem: articulações e construções do visível


Luisa Paraguai
129 Dança, metro e música: geração de arquivos sonoros de textos
da tragédia grega
Marcus Mota e Cinthia Nepomuceno
144 Kant e a neuroestética
Miguel Gally
149 O ato criador (segundo especialistas da indefinição)
Nelson Maravalhas Junior
158 Media Art needs Histories and Archives: New Perspectives for
the (Digital) Humanities
Oliver Grau
174 Narratividade e artes visuais em Brasília
Pedro de Andrade Alvim
180 Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias?
Priscila Arantes
187 Sinapsis bioelectrónica de creación
Raúl Niño Bernal
196 Operando por cruzamentos – processos híbridos na arte atual
Sandra Rey
204 Neuroestética/bioestética no contexto
da arte computacional
Suzete Venturelli
213 Caracolomobile: um simbiote interativo
Tania Fraga
224 A contribuição da disciplina materiais em artes: pesquisa e
aplicação
Thérèse Hofmann Gatti e Daniela de Oliveira
233 Design, arte e tecnologia: princípios e as novas mídias
Virgínia Tiradentes Souto e Rogério Camara
241 Arte, ecologia e redes.
Considerações a cerca de Fritz Müller
Yara Guasque

6
ART
Autores
aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano / USP
Alberto Semeler / UFRGS
Aline Zim / UnB
Ana Beatriz Barroso / PPG-Arte - UNB
Anna Barros
Cleomar Rocha / UFG
Daniela de Oliveira / UnB
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira / PPG-Arte - UNB
Fernando Fogliano / Centro Universitário do SENAC
Gilbertto Prado / USP
Lucia Leão / PUC - SP
Lucia Santaella / PUC-SP
Lúcio Teles / UnB
Luisa Paraguai / Universidade Anhembi Morumbi
Marcus Mota / Departamento de Artes Visuais- UnB
Cinthia Nepomuceno / IFB-DF
Miguel Gally / Departamento de Artes Visuais- UnB
Nelson Maravalhas Junior / PPG-Arte - UnB
Oliver Grau / Danube University - Austria
Pedro de Andrade Alvim / PPG-Arte - UNB
Priscila Arantes / PUC-SP
Raúl Niño Bernal / Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá
Sandra Rey / UFRGS
Suzete Venturelli / PPG-Arte - UNB
Tania Fraga / PPG-Arte - UNB
Thérèse Hofmann Gatti / Departamento de Artes Visuais- UnB
Virgínia Tiradentes Souto / Departamento de Artes Visuais- UnB
Rogério Camara / Departamento de Desenho Industrial - UnB
Yara Guasque / UDESC

7
ART

Apresentação
Cleomar Rocha1, Maria Beatriz de Medeiros2 e Suzete Venturelli3

O Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (# ART) é o principal evento do


Programa de Pós-graduação em Arte (PPG-Arte) da Universidade de Brasília,
em 2011 ocorreu sua 10ª edição. O PPG-Arte, cuja área de concentração é Arte
Contemporânea, possui cinco Linhas de Pesquisa: Arte e Tecnologia; Educação em
Artes Visuais; Poética contemporâneas; Processos Composicionais para a Cena e
Teoria e História da Arte, todas aqui representadas pensando a partir do eixo “modus
operandi universal”.
O presente livro traz, revistos e ampliados, textos de destaque da programação
do 10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#10 ART): modus operandi
universal. Além de pesquisadores do PPG-Arte / UnB e dos departamentos de
Arquitetura e Desenho Industrial da UnB, participam, da presente publicação,
pesquisadores idependentes e das seguintes instituições: Centro Universitário
do SENAC, Danube University (Áustria), Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Brasília (IFB), PUC – SP, Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá
(Colômbia), Universidade Anhembi Morumbi, UFG, UFRGS e USP.
Esta publicação discute um conhecimento que se dá pela arte. Este
conhecimento se distinue daquele que se adquire e/ou se expressa pela linguagem.
O que se busca, aqui, é ir além de diferenças culturais para encontrar recorrências.
O #10 ART foi realizado de 10 a 17 de agosto de 2011, no Museu Nacional da
República e na Universidade de Brasília, nas dependências do Departamento
de Artes Visuais. Além dos textos supracitados, neste livro encontram-se, no DVD
anexo, os Anais, contendo todas as apresentações e o vídeo da exposição
EmMeio#3.04, com curadoria de Tania Fraga, Maria Luiza Fragoso e Suzete
Venturelli.
Agradecemos à direção do Museu Nacional da República, Wagner Barja (diretor)
e equipe. Destacamos o apoio das instituições de fomento à pesquisa na realização
do evento: CAPES, CNPq e a parceria da Faculdade de Artes Visuais/Universidade
Federal de Goiás, representada por Cleomar Rocha.
Os livros, os anais e os vídeos das exposições encontram-se no site www.
medialab.ufg.br/art.
Brasília, 2 de abril de 2012

1 Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab


UFG. Tem experiência nas áreas de Artes, Comunicação e Design, atuando principalmente nos
seguintes temas: Arte Tecnológica, Design de Interfaces e Mídias Interativas.
2 Doutora em Arte e Ciências da Arte- Universite de Paris I, Pantheon-Sorbonne, pós-
doutorado em Filosofia no Collège International de Philosophie, Paris. Atualmente é professora
associado 2 da Universidade de Brasília.  Pesquisadora 1C do CNPq. Coordenadora Adjunta
para a área de Artes na CAPES (2005-2010). Suplente na cadeira de Artes Digitais no Conselho
Nacional de Cultura. Presidente da ANPAP. Coordenador do Programa de Pós-graduação em
Arte-UnB.
3 Professora pesquisadora da Universidade de Brasília, Instituto de Artes,
Departamento de Artes Visuais. Coordena o MídiaLab Laboratório de Pesquisa em Arte
Computacional desde 1989. Bolsista pesquisadora do CNPq.
4 Exposição coletiva que ocorreu de 05 a 15 de agosto de 2011 no Museu da República.

8
ART
Cidade expandida: hibridismo e expansão de um conceito
para o contexto das redes tecnológicas
aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano1

Resumo: Este artigo discute o conceito de cidade expandida, desde sua


conotação geopolítica na área de arquitetura e urbanismo até o enfoque
artístico do campo expandido da escultura, para repensá-lo enquanto
cidade digital, no âmbito das redes informáticas. O texto apresenta
o agenciamento estético-político de experiências artísticas, como
“vendogratuitamente.com” (2006), intervenções e-urbanas conduzidas
por Agnus Valente nos mecanismos de busca do Google, e “Auto-Retrato
Coletivo” (1987-) de Nardo Germano, cujas intervenções participativas
urbanas dialogam com obras interativas on-line. Ambos os casos entendem
e problematizam a cidade expandida como absorção híbrida das duas
modalidades de cidade.
Palavras-chave: Hibridismo Arte/Urbanismo/Tecnologia, Cidade
Expandida, Cidade Digital, Campo Expandido, Intervenção e-Urbana.
Abstract: This article discusses the concept of expanded city, from its
geopolitical connotation in architecture and urbanism to the artistic focus of
the expanded field of sculpture, to rethink it in regard to the digital city in the
context of technological networks. The text presents the aesthetic-political
agency of artistic experiences as “vendogratuitamente.com”(2006), e-urban
interventions conducted by Agnus Valente in the Google Search, and “Collective
Self-Portrait” (1987-) by Nardo Germano, whose participatory interventions
performed at urban space dialogue with interactive artworks online. Both
cases understand and problematize the concept of expanded city as the hybrid
absorption of the two modalities of city.
Keywords: Arts/Urbanism/Technology Hybridism, Expanded City, Digital
City, Expanded Field, e-Urban Intervention.

Este texto corresponde às palestras que ambos apresentamos durante


a Mesa Temática “Cidade e Tecnologia: interrelações”, que coordenamos no
10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#10.ART): Modus Operandi
Universal, que teve lugar no Auditório do Museu Nacional da República em
agosto de 2011, na qual discorremos sobre o conceito de cidade expandida
no contexto híbrido das redes tecnológicas.
Para essa mesa, convidamos Fred Forest, Suzete Venturelli e
Christine Mello que discorreram conosco sobre diferentes abordagens
e experiências artísticas circunscritas à nossa proposta de discutir uma
espécie de e-urbanidade na sociedade contemporânea, nas  relações
da cidade com a tecnologia ou por ela mediadas, criando situações que
ressignificam e ampliam as acepções de «cidade» à medida que exploram
contrastes entre sua fisicalidade e suas dimensões política, psicológica e
virtual, à luz dos conceitos de «site-especific”, “campo expandido“, “cidade
digital“, “cidade expandida” e “galeria expandida”.
9
ART

Participando presencialmente da mesa em Brasília, Agnus Valente


palestrou sobre “vendogratuitamente.com”, sua intervenção e-urbana
desde 2006 no GoogleSearch, e Suzete Venturelli apresentou o projeto
“Ciberintervenção urbana interativa” (Ciurbi), desenvolvido no MídiaLab-
UnB em 2011, que se constitui de projeções interativas na arquitetura em
espaços da cidade de Brasília e entorno, inclusive na fachada convexa do
Museu Nacional, envolvendo performance, intervenção urbana, grafite, arte
computacional, redes sociais e cartografia colaborativa (ciurbi.wordpress.
com). Os demais convidados participaram telepresencialmente, via Skype.
Fred Forest conversou com o público a partir de New York-EUA sobre o seu
recente projeto “Flux et Reflux, La Caverne d’Internet”, de 2011. Nas palavras
do artista, a alegoria de Platão é transposta para formas contemporâneas,
configurando uma dupla rede ativada pela presença física dos visitantes e
presença virtual dos públicos conectados que, juntos, com sombras, textos
e vídeos, dão forma à exposição, conexão por conexão (flux-et-reflux.net).
No Brasil, a partir de São Paulo, Nardo Germano apresentou a série “Auto-
Retrato Coletivo” (1987-, nardogermano.com/autoretratocoletivo), focando
nas relações entre cidade, identidade e tecnologia, enquanto Christine
Mello discorreu sobre a exposição “Galeria Expandida”, realizada em 2010
na Luciana Brito Galeria em São Paulo (galeriaexpandida.wordpress.com),
cuja plataforma curatorial reflete sobre os circuitos da arte e da mídia,
associada a uma operação curatorial que traz para a galeria trabalhos que
ocorrem fora dela, sugerindo uma expansão da galeria enquanto ambiente
de relações e trocas, como fluxo informacional.
Desse modo, configurou-se a palestra em (tele)presença de convidados
dispostos geograficamente em três pontos diferentes de convergência,
numa situação de descentralização da emissão de informação que
expandiu as fronteiras de Brasília, nacional e internacionalmente, bem
como as fronteiras de São Paulo e New York, para a realização da própria
mesa temática sobre cidade e tecnologia, constituindo-se numa prática
afirmativa do conceito de cidade expandida tratado neste presente texto.

Cidade expandida: percurso conceitual


If clothing is an extension of our private skins [...],
housing is a collective means of achieving the same end
for the family or the group. Housing as shelter
is an extension of our bodily heat-control mechanisms
– a collective skin or garment.
Cities are an even further extension of bodily organs
to accommodate the needs of large groups.
McLUHAN

A cidade, um dos meios pensados como extensão do homem


(MACLUHAN, 1994)2, é aqui considerada no contexto do hibridismo de meios
e sistemas (VALENTE,2008); para isso adotamos o conceito de “expanded
city” (ARNOLD, 1972), advindo do urbanismo, que nos permite associações
teórico-críticas mais produtivas para a expansão conceitual que propomos
para o estudo do cruzamento híbrido entre arte, urbanismo e tecnologia, de
10
ART
modo a superar a dicotomia entre cidade real e cidade digital, pois nos parece
cada vez mais evidente a relação intrínseca entre as duas modalidades, que
demanda uma reflexão sobre o conceito de cidade híbrida que se configura
nos seus trâmites, partindo do contexto geopolítico ao tecnopolítico e vice-
versa.
No âmbito da linguagem, ao nos referirmos à Internet, amparamo-nos
no hibridismo de conceitos de diferentes áreas do conhecimento. A web, do
ponto de vista de sua associação com a urbanística, apresenta-se nos termos
“endereço”, “portal”, “site”, “home” que sugerem um “mapeamento” espacial da
rede, bem como nos termos de uma percepção da Internet como “ambiente”
– conceito que empregamos preferencialmente ao de “espaço”. A noção de
“ambiente” (ARGAN, 1983, p.223-224) instaura-se na articulação conjunta
de relações e interações entre a realidade física e a realidade psicológica,
parecendo-nos mais adequada para pensar a virtualidade e o expansionismo
da rede, estabelecendo um contraponto necessário, e dialético, à concepção
cartesiana de projeto racional de organização do “espaço”. O “ambiente”
interconectado das redes telemáticas constitui uma cidade em escala
planetária que efetiva uma “cidade digital” (FOREST in DOMINGUES, 1997,
p. 333) para além de uma arquitetura material, pois a ela agrega-se uma
arquitetura virtual antes imaginada do que fisicamente percebida.
O conceito de cidade expandida fundamenta esta reflexão por
corresponder a um fenômeno urbano que hoje observamos em andamento
na cidade digital, nos mesmos moldes da expansão das áreas metropolitanas.
É importante recordar que, “por mais caótica que tenha sido a constituição da
forma do território metropolitano, ele é um todo”, sendo necessário considerar
nesse processo “a dimensão da representação da metrópole enquanto cidade
expandida, que abarca os vários territórios das cidades que as integram,
formando um único território urbanizado” (LACERDA; ZANCHETTI; DINIZ,
2000, p.2-3), não somente sob a perspectiva de uma expansão geográfica,
mas também por articulações de outra ordem:
A metrópole se organiza a partir de um núcleo (a cidade centro regional) que
articula espacial, econômica, política e culturalmente os outros núcleos urbanos
a ele ligados em uma relação de dependência e/ou complementaridade. A
conurbação entre os núcleos urbanos é extensa, embora não seja total, pois
continuam a existir espaços ‘livres’ entre as diversas manchas urbanas. Apesar
dessa fragmentação e descontinuidade espacial, a metrópole compõe um
conjunto articulado e hierarquizado. (2000, p.3, grifo nosso).

Williams (1989) e Roncayolo (1997), desenvolvendo o conceito de


cidade expandida, consideram que, tal como no processo de expansão das
metrópoles, também não existe ruptura nem autonomia entre o campo e a
cidade: ao contrário, campo e cidade são interdependentes. Nesse sentido,
para nós, esse conceito é uma premissa para se pensar a relação entre a cidade
real e a cidade digital, na medida em que a cidade digital não se configura
necessariamente como uma ruptura absoluta ou como elemento totalmente
autônomo em relação à cidade real, mas, ao contrário, pode ser pensada como
sua expansão. Nessa perspectiva da cidade expandida, poderíamos então,
numa paráfrase, afirmar que, no contexto tecnológico, a metrópole promove
uma articulação espacial, econômica, política e cultural dos núcleos urbanos
11
ART

da web naquela mesma relação de dependência e/ou complementaridade.


E, ainda que se considere a fragmentação e a descontinuidade espacial, bem
como a ubiquidade do sistema, constatamos que se organiza um conjunto
igualmente articulado e hierarquizado, sem ruptura nem autonomia, entre
as duas modalidades de cidade, o que coloca a problemática sobre cidade e
tecnologia num nível mais complexo.
Focalizando “a Internet como campo expandido da urbe” (VALENTE,
2006), a noção da web como cidade expandida encontra sua coerência
artística. O conceito de “campo expandido” de Rosalind Krauss (1979)
demarca a passagem da arte para locações específicas do espaço rural ou
urbano, em diálogo com seu entorno e não mais como objeto suspenso num
entorno neutro. Conforme Krauss, “within the situation of postmodernism,
practice is not defined in relation to a given medium [...] but rather in relation
to the logical operations on a set of cultural terms, for which any medium […]
might be used” (1979, p.42). Nesse sentido, o deslocamento das operações
artísticas para o campo expandido na década de 60 em direção à paisagem
e à arquitetura, tendo a cidade real como meio, incrementa-se agora em
relação ao ambiente da web, tendo como meio a cidade digital – e isto
porque a prerrogativa da prática pós-moderna ou contemporânea não se
fixa a um dado meio, mas a operações e agenciamentos poético-políticos
necessários à realização de um programa artístico.

Non-site vendogratuitamente.com, de aGNuS VaLeNTe


Cidade expandida: site e non-site entre o real e o digital
A intervenção e-urbana “vendogratuitamente.com” é desdobramento de
um projeto autoral de intervenção no espaço físico, denominado “Cogito Ergo
Ludo: Logo/Jogo”, formado a partir da repetição do pattern de “Logo/Jogo”
(1997), obra concebida e produzida em meio digital e proposta inicialmente
como um wallpaper artístico para exibição em monitores de computador. O
pattern constitui-se no díptico de um logo da palavra “logo” e de seu reverso, um
logo da palavra “jogo”, que “brinca” com a função estética e referencial do signo
publicitário. Posteriormente, o pattern torna-se objeto de várias proposições,
configurando-se uma série artística: transferido para plotter de recorte sobre
vinil auto-adesivo, ganha o espaço físico, materializando-se em milhares de
logos aplicados em espaços urbanos numa sequência de intervenções nas
quais ironicamente esses logos
se espelham e se espalham no espaço público sem finalidade de divulgação
nem venda de produto ou marca. O propósito é demarcar uma tomada de (o)
posição poético-política em relação à voracidade do sistema capitalista, criando
uma pausa nesse sistema ao oferecer ao público em geral a fruição gratuita e
desinteressada de uma forma. Nesse sentido, a idéia que perpassa o projeto é
hipostasiar no signo a sua função poética em oposição à função referencial e
simbólica. Instauro e preservo assim uma questão ética: um “logo” contestatório
na medida mesma de sua opção pela estética. (VALENTE, 2006, p.6).

Essas intervenções urbanas cumpriram um trajeto que se iniciou no


Edifício Copan, em São Paulo, onde a obra, intitulada “Atlântica” (2002),
dialogou com a arquitetura de Oscar Niemeyer, interpretada como
12
ART
uma parede de azulejos de Athos Bulcão; em versão intitulada “Occulo”
(2002/2003), os logos foram adesivados na extensão inteira das duas
vitrines da Galeria ACBEU, em Salvador, configurando um filtro que oculta
e ao mesmo tempo deixa ver o espaço interno da galeria pelos transeuntes
que passavam pelo Corredor da Vitória; no Complexo Argos, em Jundiaí,
a versão “Arbor” (2003) adotou como objeto de reverência uma goiabeira
nascida no interior do espaço e cuidada pelos funcionários, metaforizando
uma ação ecológica; e no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, a versão
“Atrium” (2004) constituiu-se de cinco gravuras, uma no chão e as outras
nas janelas, hibridando os logos com o átrio e com a visão do jardim de
inverno. Em cada uma dessas intervenções, os logos absorveram o entorno,
ressignificando-se conforme as características do lugar, numa proposta
conceitual de site-specific.
Em 2006, decidi recolocar a série “Cogito Ergo Ludo: Logo/Jogo” no
seu ambiente digital de origem bem como reforçar a discussão em seu
princípio anticonsumista. Com esse propósito, concebi o projeto-piloto
de uma intervenção na web que intitulei “vendogratuitamente.com”, num
jogo de palavras com a similaridade e oposição de seus termos, enfatizando
ironicamente o contraponto entre a idéia estética de “ver” e a idéia
consumista de “vender”. Apesar do caráter individual de minha iniciativa,
esta intervenção não é uma luta solitária e quixotesca de um artista contra
moinhos de vento: o meu “Logo/Jogo” – o “Logo Lúdico que não se vende”
(VALENTE, 2002) –, integra o projeto acompanhado de obras de outros
artistas que em suas poéticas investem em intervenção urbana. O projeto-
piloto já incluía obras e artistas convidados por afinidades ideológicas
– ou poético-políticas: Regina Silveira e Julio Plaza, respectivamente
com as obras “Dígito” e “Luz Azul”, que foram exibidas na década de 80
num painel eletrônico no Vale do Anhangabaú que usualmente exibia
campanhas publicitárias; Carmela Gross, com a obra “Eu Sou Dolores”,
exibida no Belenzinho numa das edições de “Arte/Cidade”, mega-projeto
de intervenção urbana concebido por Nelson Brissac; e Nardo Germano,
com a obra “Neon”, que integrou “Leit-Uras”, um projeto itinerante de
poesia concreta e imagética que circulou por diversos bairros de São Paulo
entre 1995-96. Posteriormente, escolhi “On Translation: Warning” de Antoní
Muntadas que aceitou meu convite e cedeu imagens de sua intervenção
urbana em vários idiomas para a inauguração do projeto. Recentemente,
convidei Fred Forest com uma proposta de transposição para Internet de
sua intervenção “Space-Media”, da década de 70, que invadia a transmissão
da TV francesa Channel 2 com uma tela branca. Em 2010, convidei Augusto
de Campos, outro artista da intervenção no painel eletrônico do Vale do
Anhangabaú nos anos 80, que passa a integrar o projeto a partir desta
edição de agosto de 2011 com o poema concreto “nãomevendo”.
Penso essa intervenção numa perspectiva híbrida da cidade – perspectiva
anteriormente circunscrita à relação arte/arquitetura e agora expandida
para a relação arte/urbanismo/web. Por isso não conceituo minha ação
como uma intervenção urbana, uma vez que não ocorre no espaço físico
da cidade, mas na web. Assim configurou-se “vendogratuitamente.com”
enquanto intervenção e-urbana, pois elege a Internet, esta cidade digital,
como campo expandido de ação – uma cidade expandida –, colocando em
13
ART

xeque a nova configuração de fl’uxo e difusão do repertório de imagens do


mundo contemporâneo.
Um campo expandido significa, a meu ver, absorver um campo novo
sem, contudo, perder o lastro de conhecimento acumulado no campo de
origem. Compreendendo a net como ambiente de redes e-urbanas, amparo-
me na Urbanística e na Arte Pública, cujo conceito de “disponibilidade”,
curiosamente também empregado no meio digital, é o que coloca toda a
web sob a égide do “público”, ainda que essa disponibilidade represente
uma mera probabilidade de acesso (e não um acesso efetivo) na rede.
Entretanto, minha intervenção busca a efetividade dessa esfera pública da
rede – assim, inscrevo meu projeto de intervenção numa dimensão ética,
estética e política, através de estratégias de ação da Arte Pública em termos
de cobertura, disponibilidade, interação, acesso e frequência de usuários
em trânsito na web.
Reiterando minha compreensão de que esfera pública na
contemporaneidade deve pressupor (ou incluir) o contingente humano
enquanto fluxo vital que circula no fluxo telemático (de bits) da comunidade
Internet, e detectando nesse fluxo uma fonte de potenciais espectadores;
empreendi a e-intervenção de web-art infiltrando-a nos mecanismos
de busca – um dos serviços mais requisitados da Internet –, elegendo a
busca do Google como campo de ação. Numa perspectiva ideológica, a
e-intervenção concentra-se especificamente no contexto do e-commerce,
explorando o conceito de links patrocinados nas páginas da web. Além
das traduções intersemióticas ou transposições das obras para o novo
meio, cada uma delas passou também pelo que denomino “pequenas
traduções intersemióticas”, que correspondem aos ads artísticos, à direita
dos resultados da busca, cuja exibição visa a atrair o interesse e a curiosidade
do público-internauta.
Trata-se de um projeto de site-specific on-line estruturado em dois
endereços. O logradouro que sofre a intervenção artística é o portal do
mecanismo de busca do Google <www.google.com.br> onde o público-
alvo é interceptado com a exibição desses singulares ads que são
lançados subliminarmente durante sua pesquisa do resultado da busca,
até que, detectados e clicados, o redirecionam para o outro logradouro,
que disponibiliza todo o projeto artístico que está sediado no endereço
eletrônico <www.vendogratuitamente.com>. Essa articulação entre dois
logradouros mobiliza os conceitos da Land Art: “site” e “non-site” (SMITHSON,
1979). Nesse contexto, “site” é o logradouro onde ocorre a ação, no qual o
público-alvo é interceptado e surpreendido pelo ad artístico e pela exibição
da obra de intervenção que tem como entorno a página de resultados de
busca do Google; e “non-site” é o logradouro para onde a ação é deslocada,
paradoxalmente o site do projeto onde o público acessa as documentações
e obras artísticas das intervenções.
A partir do conceito de “site-specific”, a e-intervenção mobiliza também
outras categorias específicas que definem particularidades da ação. Para
o projeto ser visualizado no mecanismo de busca, investi nos serviços do
AdWords, que me permite alcançar o perfil do público-alvo no momento em
que estiver “procurando ativamente seus produtos e serviços”, conforme
14
ART
frisa o tutorial do Google. Para isso, articulei palavras-chave específicas do
contexto do consumo (shopping, compra, cartão de crédito, dinheiro, preço
etc.) e datas específicas de caráter afetivo nas quais há um incremento no
e-commerce (Natal, Ano Novo, Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados etc.)
para capturar e desviar esse público específico de consumidores para o
“non-site” onde as obras, disponíveis para exibição gratuita, articulam
ironicamente uma apropriação crítica da linguagem de “gifs animados”,
banners e painéis eletrônicos ou digitais que habitam tanto a vida prática
como o universo imaginário do consumismo contemporâneo em portais e
redes sociais na Internet.
Na rede e-urbana desde 2006 nas datas específicas, a intervenção
ultrapassa 700.000 impressões de seus ads artísticos até o momento desta
publicação. O projeto acumula uma visitação massiva de consumidores
por meio dos mecanismos de busca e, convertendo-a não em vendas, mas
em experiências estéticas, instaura uma pausa reflexiva na voracidade do
sistema capitalista reproduzido na cidade expandida on-line. Reafirmando
meu propósito de demarcar uma tomada de (o)posição poético-política
ao consumismo, através da fruição gratuita e desinteressada de uma forma
estética, “vendogratuitamente.com” reinveste na potencialidade utópica da
web.

Auto-retrato coletivo na cidade expandida, de Nardo Germano


cidade, identidade e tecnologia

A série “Auto-Retrato Coletivo” teve início em 1987, com ensaios


fotográficos compostos por painéis de fotos de documento sem negativo
obtidos em cabine Fotomática, com apropriação dessas imagens ready-
made como autorretratos. Esse aparelho, instalado no espaço público,
deflagrou desdobramentos de caráter social da identidade na minha
abordagem do tema (até então realizada em espaço protegido, na
privacidade de estúdio, com temática intimista focada no indivíduo). Por
via dessa mudança de perspectivas, usos e funções, os ensaios iniciais da
série, “Auto-Objeto” e “Sujeitos”, adotaram uma explícita ênfase social e
inauguraram a discussão temática da identidade coletiva como um projeto
artístico de maior envergadura. Organizada como repositório crítico da
identidade coletiva, a série constituiu-se de autorretratos híbridos entre
o indivíduo e o coletivo, questionando a construção de estereótipos nos
mass-media sob a égide do desvio e do estigma social (GERMANO, 2007).
Em 2001, retomei a série com o objetivo de estabelecer novos
contrapontos identitários, investindo o processo de criação numa abertura
à recepção. A partir da digitalização de “Sujeitos”, colagens compostas de
autorretratos acéfalos, recortes de textos, imagens e manchetes de jornal,
a série então articulou-se em estratégias de participação e interatividade
para promover a inclusão de alteridade, expressões e pontos de vista
dos espectadores na noção de identidade coletiva veiculada nas obras, à
luz dos conceitos de “obra aberta” (ECO,1988) bem como “dialogismo e
polifonia”(BAKHTIN,1970). Enquanto participantes e/ou interatores em
ambiente real e/ou digital, os “espect-autores” (GELLOUZ, 2007) migram
15
ART

suas identidades para o corpus de “Auto-Retrato Coletivo” e renovam,


expandem, problematizam a identidade coletiva, inscrevendo-a numa
dimensão utópica de identidades abertas.
Nesse contexto colaborativo, as obras da série remetem à questão
identidade e espaço, partindo do pressuposto de interrelações entre as
duas modalidades de cidade, num trâmite de mão dupla entre a cidade real
e a cidade digital que se esclarece pelo conceito de cidade expandida. Em
2006, enquanto a obra interativa “ANDROMAQUIA on-line” era inaugurada na
exposição “Cyber-Arte” (intervenção num cyber-café da rua Augusta durante
a Virada Cultural-SP daquele ano), paralelamente a obra “Corpo Coletivo”
– intervenção urbana e performance participativa – era inaugurada em
espaços públicos, percorrendo praças e bairros da cidade de São Paulo. Já
a obra “Doe Seu Rosto” (2001) propõe dupla abertura poética em diferentes
condições espaciais: participação, com identidade compartilhada
presencialmente em espaços públicos, e interação on-line, em telepresença
no ambiente digital, onde ambos os resultados são disponibilizados
conjuntamente, sem distinção de sua origem.
A série “Auto-Retrato Coletivo” trata da identidade coletiva enquanto
memória e compartilhamento de uma história coletiva na perspectiva da
identidade nacional (SMITH in FEATHERSTONE, 1992, p.179), introduzindo
uma discussão política no jogo de estereótipos e estigmas identitários.
Nesse sentido, aproxima-se da noção de “sujeito sociológico” de Mead
e Cooley em que “o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior
que é o ‘eu real‘, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo
com os mundos culturais ‘exteriores‘ e as identidades que esses mundos
oferecem” (HALL, 2006, p.11). No conceito de sujeito sociológico, podemos
encontrar equivalências com noções de espaço: implicações geopolíticas
na constituição das identidades. O núcleo interior do “eu real” constituiria o
espaço habitado primordial, numa “relación con el mundo constitutiva de su
peculiar espacialidad” que Barbero (2008, p.4) associa à denominação “corpo
próprio” de Merleau-Ponty e que podemos associar à primeira noção de
identidade individual. Os mundos culturais exteriores corresponderiam aos
demais espaços – produzido, praticado (cf. Benjamin) e imaginado – que
constituem no conjunto a noção de ambiente com o qual a individualidade
primordial estabelece vínculos.
Enquanto espaço produzido, os meios de comunicação de massa
monopolizam a construção identitária à medida que
en nuestras ciudades, cada día más extensas y desarticuladas [...], la radio, la
televisión y la red informática producen el único tipo de espacio compartido, esto
es capaz de ofrecer formas de contrarrestar el aislamiento de los indivíduos y las
famílias posibilitándoles unos mínimos vínculos socioculturales (BARBERO, 2008,
p.5).

Entretanto, exercendo o papel de aparelho ideológico de informação do


Estado que embute, “através da imprensa, da rádio, da televisão, em todos
os ‘cidadãos’, doses quotidianas de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo,
moralismo” (ALTHUSSER, 1980, p.63), os mass-media geralmente forjam uma
falsa consciência do cidadão sobre si mesmo, que incorpora uma “identidade
16
ART
legitimadora, introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no
intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre os actores sociais”,
conforme analisa Cunha (2007, p.192) a partir da conceituação de Castells.
As noções de espaço (habitado, construído e imaginado) são acionadas
pelas proposições participativas “Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto”, que
ocorrem como intervenção no espaço praticado, do qual se apropriam,
abolindo assim a mediação para encontrar o indivíduo diretamente no
contexto social, praticando o espaço urbano, haja vista que, conforme
Barbero sublinha,
la ciudad se experimenta practicándola mediante los trayectos y los usos que de ella
hacen y trazan sus habitantes, esas ‘motricidades espaciales’ en las se combinan
estilos colectivos y usos individuales, todos ellos atravesados por cambios que
trastornan los modos de pertenencia al território y las formas de vivir la identidad.
(2008,p.6-7)

É possível reconhecer consonâncias entre a noção de espaço praticado


e o “Programa Ambiental” de Hélio Oiticica, que norteia as táticas de ação
em “Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto” enquanto arte participativa e
intervenção urbana, na medida em que a obra se estende para a experiência
cotidiana no espaço público pelo princípio de apropriação do entorno, do
“mundo ambiente” (1986, p.79) como contexto. Nesse sentido, “ao situar as
operações nas ruas, parques, morros, pavilhões de exposições industriais
etc., Oiticica acredita que o público se aproxima sem constrangimentos,
com total disponibilidade, de experiências que na arte são segregadas”, o
que vale dizer que as Manifestações Ambientais instauram condições mais
propícias à criação, pois “não se distinguem aí níveis – de elaboração de
obras, de circulação e de significação social: a ambientação reúne artista,
participantes e ‘mundo’”, sem distinções hierarquizantes, configurando-se
como “lugares de transgressão em que se materializam signos de utopias
(de recriação da arte como vida)” (FAVARETTO, 1992, p.121-129). Nessa
perspectiva utópica, “Corpo Coletivo” se apropria de espaços públicos
não protegidos, como praças públicas, ruas e largos, sobretudo aqueles
cuja história os caracteriza como espaços políticos, a exemplo da Praça
da Sé (palco dos movimentos pelas “Diretas-Já”, anos 80) e do Vale do
Anhangabaú (palanque do movimento pelo Impeachment de Collor, anos
90), dois espaços da cidade de São Paulo que contextualizam politicamente
os cidadãos como sujeitos da história – e em “Auto-Retrato Coletivo” como
sujeitos e autores de sua própria identidade.
Quanto ao espaço imaginado: “Corpo Coletivo” atua na relação fundante
que vincula o cidadão com o Estado Nacional (BARBERO, 2008, p.5-6). Num
país como o Brasil, que elencamos entre os “povos híbridos” (BURKE, 2003,
p.36) no encontro de três raças no período colonial e posterior miscigenação
com o processo de imigração européia pós-abolição da escravatura no
final do século XIX, a diversidade cultural protagoniza as discussões sobre
a identidade brasileira, no nosso imaginário. “Doe Seu Rosto”, propondo
uma identidade metonímica ao solicitar a parte do rosto com a qual o
indivíduo mais se identifica, aciona inicialmente o espaço habitado (do
corpo próprio) e se realiza tanto no espaço praticado da cidade, quanto
no espaço produzido da rede informática: enquanto imaginário coletivo,
17
ART

a diversidade étnica e cultural deflagra-se pelo recorte não indiciário das


identidades pela escolha por retratar (ou não) apenas o olho que denota
uma ascendência japonesa, ou a orelha na qual pende um brinco afro. A
exibição dos autorretratos lado a lado, justapondo os diferentes tons
de pele, tipos de cabelo e traços fisionômicos, revela uma ampla gama
da diversidade brasileira. Em “ANDROMAQUIA on-Line”, a abertura para
o espaço imaginado ampliou o âmbito do nacional para a noção de
identidade latino-americana, como explicitada por uma colombiana, para
quem “quase dizer sou brasileira que seria, como borges falava, ao igual que
ser colombiana, uma questão de fe”. Essa noção reaparece numa transcrição
de versos da canção “Apenas um rapaz latino-americano” do compositor
brasileiro Belchior cuja letra também testemunha a migração do interior
para as grandes capitais.
Nessas três obras, a nossa “narrativa de nação” (HALL, 2006, p.52) aflora
de diversos modos, com resquícios de nosso complexo de povo colonizado,
cicatrizes do subdesenvolvimento, complexo de inferioridade em relação
aos EUA e Europa, em contraponto à apologia da nossa sensualidade, da
mistura de raças, da nossa hospitalidade. E paradoxalmente a situação
inversa: crítica à nossa subserviência, à nossa obscenidade ou à nossa
burrice, em contraponto à apologia da nossa capacidade de superação,
inteligência, alegria e criatividade. Observa-se, nessa polifônica falta de
unanimidade sobre os mais diversos aspectos, que a identidade, a exemplo
da noção de fronteiras, é um componente cada vez mais imaginário do
nacional (BARBERO, 2008, p.6).
Enfim, os objetos criados nas intervenções urbanas participativas de
“Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto” são disponibilizados no site do “Auto-
Retrato Coletivo”, na Internet, tornando-se matéria-prima para as interações
de “ANDROMAQUIA on-line” e da versão on-line de “Doe seu Rosto”. Desse
modo, ancorada no conceito de “Poéticas em coletividade” ou “Poéticas em
coletivo” (GERMANO, 2008), que compreende o caráter polifônico da poiesis
dos espectadores, a série transforma-se num campo de imersão de poéticas
sem hierarquizações, valorações ou discriminações de qualquer ordem –
inclusive de espaço. Instauram-se diálogos entre as contribuições obtidas
tanto no espaço físico quanto nas redes informáticas, reiterando, nas
conexões entre a cidade real e a cidade digital, aquela interdependência
e complementaridade presentes no conceito de cidade expandida, mas à
luz de uma dialética da utopia e da ideologia tal como proposta por Fredric
Jameson, para quem
uma hermenêutica marxista negativa, uma prática marxista da análise
ideológica propriamente dita, deve ser exercida, no trabalho prático de leitura
e interpretação, simultaneamente com uma hermenêutica marxista positiva, ou
uma decifração dos impulsos utópicos desses mesmos textos culturais ainda
ideológicos (1992,p.304,grifo do autor).

Nessa dialética, fundada no entendimento de que a massificação


identitária da cidade real circula na cidade digital e vice-versa, a série
exerce uma crítica negativa ideológica aos estereótipos, simultaneamente
a uma prática afirmativa como decifração de impulsos utópicos, encetada
com a abertura aos espectadores como signos de identidades plurais,
18
ART
viabilizando enfoques dialógicos e polifônicos para subverter, no âmbito da
consciência de classes, os processos identitários hegemônicos em ambas as
modalidades de cidade.

Considerações finais: dialética da cidade expandida


Electric lighting has brought into the cultural complex
of the extensions of man in housing and city,
an organic flexibility unknown to any other age.
McLUHAN

Parafraseando McLuhan para nossa reflexão final, podemos considerar


que as redes informáticas trouxeram à cidade como extensão do homem
uma flexibilidade imaterial e incomensurável que eleva à enésima
potência o seu sentido de cidade expandida. A noção de expansão nesse
contexto assume uma amplitude radial multidirecionada, por conta da
imaterialidade, da virtualidade e do rompimento da noção de tempo e
espaço promovidos pelo meio tecnológico, ucrônico e ubíquo. Na cidade
real, a expansão geográfica efetiva-se horizontalmente; contudo, para
abarcar a cidade digital, composta por redes físicas de transmissão de
dados e redes invisíveis de transmissão via satélite, a cidade expandida
absorve agora não apenas as áreas físicas periféricas e campesinas, mas
também uma cidade invisível, configurada segundo a ordem sócio-política,
econômica e histórica do sistema herdado da cidade real e reconfigurado
na estrutura do pensamento tecnológico.
Considerando que o entendimento embasado num absolutismo da
cidade real ou da cidade digital não é produtivo; a adoção do conceito de
cidade expandida para refletir sobre as interrelações de cidade e tecnologia
aponta para a noção de absorção mútua e recíproca das modalidades de
cidade, o que permite uma observação dialética e não maniqueísta da
questão, significando dizer que essa absorção não é necessariamente
sempre harmoniosa ou pacífica – ou seja, configura-se historicamente uma
hibrid[iz]ação por conta do caráter expansionista enquanto processo de
dominação hegemônica que não pode ser negligenciado por uma crítica
que se deseje imparcial.
Retornando a McLuhan: o autor menciona a obra “The City in History”
de Lewis Munford que conta sobre a cidade de Nova Inglaterra, capaz de
desenvolver o padrão da cidade medieval ideal por sua capacidade de
dispensar as muralhas e misturar campo e cidade, comentando que “when a
technology of a time is powerfully thrusting in one direction, wisdom may well
call for a countervailing thrust” e complementa que “the implosion of electric
energy in our century cannot be met by explosion or expansion, but it can be met
by decentralism and the flexibility of multiple small centers” (1994, p.70) para
concluir, citando a afirmação de Arnold Toynbee: “More often geographical
expansion is a concomitant of real decline and coincides with a ‘time of troubles’
or a universal state – both of them stages of declines and desintegration” (apud
MCLUHAN, 1994, p.71). Preocupação similar concerne à nova abrangência
da cidade expandida no meio digital que permite explorar cumulativamente
19
ART

as características em comum e as especificidades antagônicas de cada uma


das modalidades de cidade, fator que paradoxalmente sinaliza um período
de confronto, instabilidade e crise. Se, de um lado, a cidade digital e seu
potencial utópico podem exercer influências e mudanças que renovem
a cidade real, tanto em sua estrutura quanto em sua ordem econômica e
ideológica, a exemplo de ações artísticas na Internet e movimentos de
contestação política organizados em redes sociais; de outro lado, essa
expansão também representa reinauguração e/ou reforço de instâncias de
poder, controle e opressão da cidade real sobre a cidade digital, numa mera
reprodução do status quo e dos meios de produção já existentes.
Enfim, na medida em que podemos tratar de necessidades sociais
complexas via computador com a mesma segurança arquitetural de nosso
espaço privado nessa interfusão de espaços e funções da aldeia global
(MCLUHAN, 1994), uma dialética da cidade expandida é fundamental para
promover enfoques e filtros mais críticos, de modo que, naquele espírito
da crítica negativa do ideológico simultânea a uma prática afirmativa
de impulsos utópicos, possamos usufruir dos avanços tecnológicos com
a maior consciência possível do fenômeno como transformação, sem
mascarar as problemáticas e as forças retrógradas que afetam nossa relação
com as urbanidades contemporâneas.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (notas para uma


investigação). 3. ed. Lisboa: Presença, 1980.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARNOLD, Alvin L. 2001 AD: Real Property Law and Investment in Retrospect. Prob. & Tr. J.,
Boston, Massachussetts, v.7, 1972.

BAKHTIN, Mikhail. La Poétique de Dostoïevski. Paris: Editions du Seuil, 1970.

BARBERO, Jesús Martin. Entre urbanías y ciudadanias. (texto2) Cartografias culturales de la


sensibilidad y la tecnicidad. Apostila ECA/USP, São Paulo, 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. RS: Unisinos, 2003.

CUNHA, Isabel Ferin. Identidade e Reconhecimento nos Media. MATRIZes: revista do PPG em
Comunicação da ECA/USP, São Paulo, n.1, p.187-208, 2007.

DOMINGUES, Diana. (org.). A Arte no Século XXI: A Humanização das Tecnologias. São Paulo:
Fundação Ed. UNESP, 1997.

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1988.

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.

FEATHERSTONE, Mike. Global culture nationalism, globalization and modernity. London:


Sage, 1992.

GELLOUZ, Mohamed Aziz. Théâtre Citoyen: un modèle d’avenir... 2007. 128p. Programme

20
ART
d’Apprentissage Expérientiel par l’Intervention Communautaire de l’Université de Sherbrooke
(PAEIC), Quebec, Canadá, 2007

GERMANO, Nardo. Auto-Retrato Coletivo: Poéticas de Abertura ao Espectador na [Des]


Construção de uma Identidade Coletiva. 2007. 188p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais)
– Escola de Comunicações e Artes - ECA/USP, São Paulo, 2007.

______. Auto-Retrato Coletivo discute identidade em espaços públicos. Ars: revista do PPG em
artes visuais da ECA/USP, São Paulo, n.11, p.120-121, 2008.

______. [Autor]retrato coletivo on-line na [des]construção de uma identidade coletiva.


In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ARTE E TECNOLOGIA: arte, tecnologia, territórios ou a
metamorfose das identidades, 8., 2009, Brasília. Anais... Brasília: UnB, 2009. p. 313-322.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. R.Janeiro: DP&A, 2006.

JAMESON, Fredric.O Inconsciente Político. São Paulo: Ática,1992.

KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the Expanded Field. October, vol.8, p.30-44, 1979.

LACERDA, Norma; ZANCHETI, Sílvio Mendes; DINIZ, Fernando. Planejamento metropolitano:


uma proposta de conservação urbana e territorial. EURE, Santiago, v.26, n.79, 2000.

McLUHAN, Marshall. Understanding Media: the extensions of man. Cambridge, Massachussets,


London, England: MIT Press edition, 1994.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

RONCAYOLO, Marcel. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1997.

SMITHSON, Robert. The Writings of Robert Smithson. New York: NY University Press, 1979.

VALENTE, Agnus. ÚTERO portanto COSMOS: Hibridações de Meios, Sistemas e Poéticas de um


Sky-Art Interativo. 2008. 237p. Tese (Doutorado Artes Visuais)–ECA/USP, São Paulo, 2008.

______. Parabola-Imago: Transmutações Criativas entre o Verbal e o Visual. 2002. 220p.


Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – ECA/USP, São Paulo, 2002.

______. vendogratuitamente.com. Ars: revista do Programa de Pós-Graduação em artes visuais


da ECA/USP, São Paulo, n.11, p.140-141, 2008.

______. Carta de Intenções - LOGO/JOGO de Agnus Valente: Projeto Criativo e Metalinguagem.


São Paulo, 2006.

WEISSBERG, Jean-Louis. Présences à Distance. Paris: L‘Harmattan, 1999.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

1 aGNuS VaLeNTe: Artista híbrido, Doutor e Mestre em Artes pela ECA/USP, Professor
Assistente Doutor em Artes Visuais no IA/UNESP, um dos líderes do Grupo de Pesquisas
“Poéticas Híbridas”, atuando como pesquisador nos Grupos de Pesquisa “Arte-Mídia e
Videoclip”, “cAt” (IA/UNESP) e “Grupo Poéticas Digitais” (ECA/USP). Contato: agnusvalente@uol.
com.br

2 Nardo Germano: Artista-pesquisador multimídia, doutorando e mestre (2007) em


21
ART

Artes Visuais (ECA/USP), Bacharel em Letras (FFLCH/USP, 2001) e, no âmbito da pesquisa, atua
como membro do “Grupo Poéticas Digitais” (ECA/USP). nardogermano@uol.com.br.

3 Noção de extensão desde a aldeia: “the village, as Munford explains in ‘The City in History’,
had achieved a social and institutional extension of all human faculties” (MCLUHAN,1994,p.93).

22
ART
Objetos Tec­­nopoéticos: uma abordagem da Neuroestética
e da Neuroarte
Alberto Semeler1

Resumo: Os Objetos Tecnopoéticos resultam de uma investigação


artística que busca o cruzamento entre arte, ciência e tecnologia. A “teoria
da imagem retiniana”, influenciada pelo aparato fotográfico, supunha
que ela era o modo de construção da imagem no cérebro. Através dos
conhecimentos científicos contemporâneos sobre o córtex visual, a
Neuroestética desfaz o mito da arte retiniana contraposta à uma arte do
intelecto. A tecnologia deve ser abordada em sua função de acoplamento
e prolongamento humano/máquina e vice-versa. O sentido da visão é
compreendido enquanto produtor de conhecimento e intelecto visual.
Desse modo, a Neuroestética faz a convergência entre tradição e inovação.
Por suas técnicas e experimentos laboratoriais – abordagem da imagem
enquanto origem do indivíduo – a Neuroestética é concebida em seu
aspecto abjeto/repulsivo. Com o uso desses conhecimentos, a Neuroarte
potencializa a experiência e a sensorialidade na arte contemporânea,
explorando os usos dos avanços científicos do funcionamento cortical para
enfatizar a experiência artística.
Palavras-chave: Objetos tecnopoéticos; neuroestética; neuroarte; arte
abjeta.
Abstract: The Technopoetic Objects is a result of artistic research that seeks
the intersection between art, science and technology. The “theory of the retinal
image,” influenced by the photographic apparatus, was assumed that the mode
of construction of the image in the brain. Through the contemporary scientific
knowledge about the visual cortex, the Neuroaesthetics breaks the myth of the
art retinal opposed to an art of the intellect. The technology must be addressed
in its function of coupling and extended human / machine and vice versa. The
meaning of a vision must be understood as a producer of visual knowledge and
visual intellect. Thus, Neuroaesthetics makes the convergence of tradition and
innovation. Because of its technical and laboratory experiments - the approach
of the image as origin of the individual - the Neuroaesthetics is conceived in its
abject aspect / repulsive. Using these knowledges, the Neuroart­­­potentialized
and enhances sensorial experience in contemporary art, enhancing and
exploring the uses of the scientific advances of cortical functioning to
emphasize the artistic experience.
Keywords: Technopoetic objects, neuroaesthetics, neuroart; abject art.

Apesar da tecnologia possuir um status preponderantemente objetivo-


científico, ela também produz efeitos na cultura e no imaginário de
seu tempo. Não foi diferente com a máquina fotográfica que, com seu
funcionamento técnico, inspirou o mito da imagem retiniana. A impressão
da luz no negativo durante o processo de construção da imagem fotográfica
no fundo da câmera obscura fez com que se pensasse que a imagem
cerebral também fosse formada no fundo do olho para, posteriormente,
23
ART

ser transmitida ao cérebro. Ao assumir que o modelo fotográfico é o


mesmo do funcionamento do olho na transmissão da imagem ao cérebro,
o homem moderno e contemporâneo fez do funcionamento técnico do
aparato fotográfico um paradigma para a percepção da imagem. Essa
concepção alimentou o mito de uma “arte retiniana” que se contrapunha à
uma “arte do intelecto”: fruição versus operação mental.
A fotografia vista como protótipo do funcionamento da visão humana
atuou como metáfora para a construção da imagem cerebral e, a partir
desse mal entendido, foram produzidas algumas das grandes revoluções
estéticas no mundo moderno e contemporâneo. A arte liberta-se da
tradição visual e passa cada vez mais a ser pensada desde um paradigma
filosófico-intelectual: a essência da arte é a linguagem. Contudo, o cérebro
visual é mais antigo que o cérebro linguístico; com os recentes avanços da
pesquisa científica sobre o funcionamento do olho e do córtex visual, a
ideia de uma arte retiniana como contraposição à uma arte do intelecto
deixa de fazer sentido e passa a ser compreendida apenas em seu valor
metafórico.
A incongruência dessa concepção não implica necessariamente
em uma negação das investigações estéticas desencadeadas nesse
processo histórico. A meu ver, os resultados desse efeito imaginário
devem ser abordados no que concerne a seus avanços no campo
estético. A compreensão do fracasso do modelo fotográfico enquanto
meio técnico que buscava objetivar a percepção humana serve para
reposicionar algumas questões referentes à visualidade enquanto forma
de conhecimento. Isso decorre do fato de que a tecnologia sempre irá,
de uma forma ou de outra, influenciar no pensamento e nas concepções
estéticas do período histórico onde atua. Também faz-se necessário
enfatizar que o conhecimento científico está sempre em mutação: o que é
verdade hoje, deixa de fazer sentido com o progresso da ciência.
Dito isto, a ideia de que a imagem fotográfica surge como meio
técnico para substituir outras formas de representar o mundo deixa de
fazer sentido. A partir da invenção da interface gráfica, o computador
virtualiza todos os processos técnicos (POPPER, 2007). Com a evolução
das tecnologias contemporâneas de construção e captação de imagem,
pode-se pensar em uma similaridade maior entre o funcionamento dos
dispositivos tecnológicos e o córtex visual: a luz e o movimento são
captados em microchips – CCD2, CMOS3 – e, posteriormente, decodificados
em processadores e convertidos em informação visual.
Nesse sentido, o modelo tecnológico do aparato fotográfico
digital assemelha-se ao processo que ocorre na retina na captação de
comprimentos de onda e detectores de movimento, onde dados oriundos
de nossa experiência são posteriormente convertidos em linha, cor,
forma, textura, profundidade e movimento no córtex visual. O modelo da
imagem informática ou de síntese parece estar mais sincronizados com o
modelo real da percepção.
Não se trata de substituir o modelo analógico pelo digital. É necessário
repensar a fotografia enquanto mecanismo da percepção, já que isso
24
ART
implica no equívoco da imagem/anteparo decalcada no fundo do olho.
É esta concepção estática e indicial do mundo que se esvanece sobre um
uma realidade informacional, pois a imagem no computador reconquista
um status de plasticidade pictórica: ela é literalmente pintada por processos
de pós-produção (MANOVICH, 2002).
Pensar os objetos técnicos pela perspectiva antropomórfica e o humano
pela perspectiva tecnicista implica num equívoco, uma via de mão dupla: a
negação do progresso tecnológico como um modo de existência singular,
bem como o da imposição de uma modelização do humano a partir dos
estágios do progresso tecnológico. Se, ao contrário, pensarmos que o
humano e o tecnológico podem coabitar por acoplagem e prolongamento,
como no caso dos dispositivos tecnológicos gráficos que evoluem a
partir dos experimentos oriundos do universo artístico visual, é possível
desmistificar seus efeitos imaginários e reais no pensamento de nossa
época. O efeito da máquina fotográfica enquanto “indivíduo técnico”
abstrato funcionou por prolongamento, onde o biológico foi submetido ao
artificial, criando a fantasia de que o olho funcionava da mesma maneira, e
propiciando avanços no campo estético. Porém, esses avanços converteram-
se em um equívoco academicista. A arte enquanto produto da linguagem
com uma essência linguística-textual implode: uma arte que é pensada de
antemão, pobre visualmente, e que não raramente deve negar quaisquer
qualidades estéticas passa a fazer parte de um discurso anacrônico.
É necessário que se desfaça a relação de poder onde o homem se
sobrepõe e domina a máquina, mas sim, pensar numa existência no mesmo
nível dela, respeitando-a. Para o filósofo Gilbert Simondon, devemos
pensar numa relação entre homem e máquina que restitua as intenções de
fundo que o progresso técnico tende a esconder – o tecnológico precisa
libertar-se do econômico para alcançar sua verdadeira potência.
Para a “filosofia das máquinas”, a superação do individual é uma
necessidade evolutiva da humanidade. Para Simondon, as técnicas não
modificam a ordem natural, elas não são instrumentos de combate nem
meios de resistência, elas são um prolongamento. Assim, a técnica possui
o germe de uma humanidade nova. O progresso técnico relativiza a
concepção tradicional de uma natureza humana imutável, agindo por
acoplagem e prolongamento. Homem deve funcionar como tradutor
de informações máquina à máquina.  Em nossos dias, essa união já está
realizada, o que falta é rever a qualidade desse regime matrimonial,
sendo no transindividual que essa relação ocorre de forma autêntica. Para
Simondon, o objeto técnico soluciona problemas de coerência interna,
progredindo da abstração à concretização através da tecnicidade. Se, por
um lado, a técnica é um retorno à natureza, por outro, é um prolongamento
da mesma (CHABOT, 2003).
Para Simondon, o vivente se diferencia por possuir uma pluralidade
de sinais de entrada e saída, o vivo digere informação e elabora respostas,
supondo um encadeamento da realidade formal concreta com uma
realidade biológica informacional. Assim, a individuação é uma maneira
de encontrar a vida. A individuação é uma estratégia para resolver um
problema. Homem e máquina compartilham de um problema similar:
25
ART

encontrar através da existência uma solução comum que só é viável


no transindividual onde homem e tecnologia são prolongamentos
um do outro, sem porém abandonar suas singularidades. Baseado na
cibernética, Simondon concebe o processo de individuação enquanto
forma atravessada pela informação, num percurso onde o pré-individual
avança em direção ao individual, evoluindo para o transindividual. O
individual implica num sistema onde há fechamento (individuação) e perda
de informação, e no transindividual há troca de informação com o meio.
O processo artístico funciona como um modo de reflexão e construção
de novas formas de interação entre o homem e os objetos tecnológicos,
construindo novos sistemas ou indivíduos técnicos onde o transindividual
permite a troca de informação. A relação humano/tecnológico torna-se
possível através do que se pode denominar “objeto tecnopoético” que
se instaura a partir de alguns cruzamentos: primeiro, pela característica
modular das linguagens de programação e dos produtos dos novos
meios focados na noção de objeto; segundo, porque reativa o conceito de
experimento e laboratório reivindicado pelas artes de vanguarda que viam
no objeto a marca diferencial entre o atelier e a fábrica. E, finalmente, no
que Simondon teoriza como “modo de existência dos objetos técnicos”,
pensando-os enquanto indivíduos.
Desse modo, o modelo inspirado no dispositivo fotográfico como
cognição do mundo encontra seu fim; a investigação visual ressurge
implodindo com as concepções reducionistas que viam a arte como
produto da linguagem como essencialmente conceitual e textualista
(Foster, 1996).
A pesquisa científica da neurobiologia contemporânea desfaz a
concepção errônea de que a retina receberia a imagem como uma chapa
fotográfica e, posteriormente, transmitiria ao cérebro. Para o neurologista
e neurobiologista inglês Semir Zeki, esse equívoco é decorrente do fato de
que a primeira área do córtex visual a ser mapeada foi a retina cortical, a
qual ele denomina de área V1. Para ele, essa região conhecida inicialmente
por retina cortical era descrita como uma área que receberia uma espécie
de “desenho primário” da imagem oriunda do mundo externo e, portanto,
teria fomentado especulações sobre instâncias de formação da imagem
no fundo do olho e, numa segunda etapa, na retina cortical. Esta hipótese
foi rejeitada pela ciência nos últimos vinte cinco anos. A retina cortical é
denominada por Zeki de área V1, responsável pela divisão dos impulsos
recebidos da retina para outras regiões como a V2, V3, V4 e V5, onde cada
uma é responsável por parte da informação visual. Por exemplo, a região V4
é responsável primeiramente pela cor, a região V5 pelo movimento. A ideia
de que o cérebro possui instâncias especializadas que funcionariam de
forma serial foi abandonada. Atualmente o modelo paralelo é aceito como
padrão de funcionamento cerebral. No paralelismo, apesar de possuírem
especialização, as regiões corticais compartilham funções. Por exemplo,
o processamento da cor oriundo da informação das células receptoras de
comprimento de onda (cones e bastonetes), bem como o da construção
da forma e detecção de movimento (células ganglionares retinianas) e
das células detectoras de níveis de brilho e transmissoras de informações
não-visuais a outros pontos do córtex (células ganglionares fotossensíveis
26
ART
retinais) também funcionam simultaneamente na percepção visual.
Portanto, a construção da imagem no cérebro envolve o córtex visual como
um todo, e por vezes outras áreas como, por exemplo, o córtex pré-motor
(Zeki, 1993).
A Neuroestética de Zemir Zeki surge como um conhecimento
decorrente de investigações científicas da neurobiologia, propondo outra
forma de abordagem da percepção e da experiência visual. Ele é o primeiro
a aplicar as investigações científicas sobre o cérebro na estética. Desse
modo, a Neuroestética surge como uma corrente da estética que investiga
a base biológica da experiência visual. O autor analisa principalmente a
pintura moderna e a arte cinética. Sua análise decorre da similaridade
dos experimentos visuais usados em experiências de laboratório por
neurocientistas devido à simplicidade da cartela de cores e formas
oferecidas pelas obras modernas, bem como pela exploração dos efeitos
perceptivos virtuais da arte cinética, que possibilitam uma análise dessas
obras a partir da Neuroestética (Onians, 2007). Desse modo, são revistas
questões a respeito da construção da imagem, que passa, então, a ser
concebida como operação intelectual complexa do córtex visual.
Para Zeki, as artes visuais são uma extensão das funções do córtex visual,
e assim acabam exteriorizando as suas leis de funcionamento e, por esse
motivo, devem ser investigadas à luz da ciência. Noutro sentido, ao deparar-
se com seus limites, a ciência deve analisar a arte para que compreenda
os mecanismos de funcionamento do cérebro, já que a mesma é uma
exteriorização da maquinaria cerebral.
O artista obtém conhecimento sensório-visual do mundo em sua
observação investigativa e, nesse processo, decifra o funcionamento do
córtex visual. Se as artes visuais são produto do córtex visual, elas são
uma exteriorização do mesmo. Buscando desvendar seus mecanismos de
funcionamento cortical, a Neuroestética muda o estatuto da pesquisa visual.
Ora retoma questões propostas pela tradição, ora refuta-as. Questões como
a ambiguidade visual, prazer visual, participação do espectador são revistas
a partir de uma perspectiva científica. A percepção visual é redescoberta,
porém, não como uma novidade pura propiciada pelos experimentos
laboratoriais de neurociência e da computação visual, mas sim, como um
mecanismo evolutivo “arcaico”, sem ficar estagnada, pois ela segue a sua
jornada evolutiva onde a investigação visual artística ocupa um lugar de
destaque.
No cérebro, a sensação está associada à falta de acabamento e à
ambiguidade nas obras de arte. A Neuroestética desenvolve uma reflexão
sobre os mecanismos cerebrais de gratificação envolvidos no processo
de criação que ocorrem basicamente a partir de uma experiência de
frustração. A “constância cerebral” é caracterizada pela busca cotidiana de
características imutáveis nos objetos e nas experiências para que o cérebro
possa construir um mecanismo mnemônico de reconhecimento. O princípio
da constância cerebral é decorrente da “constância da cor”. A constância
da cor é a propriedade pela qual a reconhecemos num dia de sol, num dia
nublado, ao amanhecer e ao fim do dia. O cérebro desconta as variações
de comprimento de onda, presentes em diferentes tipos de iluminação
27
ART

para manter a memória da cor – a cor é antes de mais nada constância. No


entanto, o princípio da constância não se restringe à percepção concreta
do mundo, atua também em valores subjetivos como o gosto. Assim, as
propriedades dos objetos como a cor, a forma, ficam retidos em nossa
memória através do que Semir Zeki denomina de “conceito sintético
cerebral”. A partir de nossa experiência sensória do mundo, os conceitos
sintéticos cerebrais são acrescidos cotidianamente de novas características
oriundas da percepção. Nessa perspectiva, questões como a representação,
a mimese, o prazer visual são revistas pela neurofisiologia cerebral. Para
a neurobiologia, o prazer estético decorre da repetição da experiência e
não do fato de a mesma ser agradável ou não. Através da fruição estética,
o espectador ativa os mesmos centros de satisfação e recompensa cerebral
usados pelo artista.
Contudo, a idealização decorrente da constância cerebral acaba por
produzir um sentimento de frustração e de inacabado; uma sensação de
incompletude e de morte, um mal-estar profundo que tentamos superar
na arte. Para a neurobiologia, a insatisfação é um mecanismo biológico
evolutivo que faz com que busquemos novas soluções para evolução
da espécie. Desse modo, a criação parte de um sentimento primitivo
de descontentamento e frustração que o artista busca superar na arte. A
criatividade é vista como uma forma do cérebro disfarçar suas deficiências.
A arte tem como função apreender e criar novos conceitos do mundo para
que posteriormente sejam compartilhados com toda espécie. O cérebro
visual decodifica dados e constrói o mundo que percebemos — a imagem é
produto do intelecto visual.
A Neuroestética de Zeki encontra pontos de convergência com a teoria
de Georges Bataille que relaciona o processo de criação a um sentimento
profundo de medo e mal-estar. Para Bataille, para que possamos pensar o mal,
se faz necessário uma divisão inicial: existem dois tipos de mal que se opõem
radicalmente. Um refere-se à atividade humana que busca atingir o bem e
conquistar os desejos esperados com a intenção de evitar “fazer o mal”. O outro
tipo de mal está relacionado à transgressão, como, por exemplo, a ruptura
de tabus: esse tipo de mal pode ser pensado como “agir mal”. O segundo
tipo de mal é inerente ao processo criativo: a arte precisa do mal para evitar
o tédio. Assim, a obra de arte implica em uma angústia profunda causada
pela sensação de que estamos fazendo algo errado, agindo mal. Para Bataille,
o escritor e o artista, em geral, desobedecem certas regras sociais e familiares,
colocando-os numa situação de culpabilidade: a criação, por se opor ao mundo
da produção real do trabalho, coloca o artista numa situação de desobediência,
gerando culpabilidade e infantilização. O processo de criação implica numa
desobediência, num avanço consciente em direção à proibição.
A arte deve nos colocar em contato com a natureza humana em seu
aspecto mais violento, fazer com que tenhamos a sensação de perceber o
pior e nos confrontar com esse mal, fazer com que tenhamos consciência
de que estamos num jogo de horror.
Inspirados em Georges Bataille, alguns autores contemporâneos
desenvolveram teorias da arte inspirados nesse no “princípio maligno”
presente na arte. A crítica de arte Rosalind Krauss, em sua reflexão sobre o
28
ART
informal na arte contemporânea, vê no impulso informe não uma vontade
de representação, mas sim, de alteração e mutilação.
Em sua teoria abjeta da arte, Julia Kristeva fala de um princípio
traumático oriundo de nossa relação com a imagem. A autora atribui uma
função crucial à imagem “arcaica primordial” enquanto evento fundador
tanto do indivíduo, quanto do processo de criação. Assim, a arte abjeta ou
repulsiva é uma tendência que ganhou força nas últimas décadas do século
XX e que continua presente na arte contemporânea. Esse movimento tinha
como ponto de partida retomar a arte enquanto experiência sensorial
e afetiva, buscando trazer à tona as relações primitivas do sujeito com a
imagem.
A análise abjeta do processo criativo afirma que o mesmo origina-se
na paixão e repulsa primordial pela imagem. Sua manifestação estética na
produção artística contemporânea decorre de uma afirmação dos aspectos
estético-sensoriais e representacionais da arte em negação à arte vista
apenas como abstração filosófica.
Para Kristeva, a arte abjeta é uma convocação do degradado como uma
espécie de choro ou apelo em nome de uma humanidade recalcada. Para
muitos, na cultura contemporânea, a verdade reside no traumático e no
tema abjeto, no corpo doente ou mutilado. Assim, o corpo degradado é um
importante testemunho contra o poder. Em decorrência desta separação
inicial, o abjeto torna-se uma potência enquanto motor imaginário de
origem da poética. Portanto, para a autora, a abjeção estaria na base de todo
o processo de criação artística: a repulsa e a náusea são bordas pelas quais
a arte se autoriza a frequentar o espaço inexistente do abjeto, tornando-os
possíveis através de si.
Ao investigarem mapas de ressonância magnética nuclear durante o
processo de troca de olhares entre mães e seus bebês , de experiências
de amor romântico, e de apreciação de obras de arte, a neurobiologia,
a neurologia e a neurofisiologia detectam nestes diferentes contexto a
ativação das mesmas áreas no córtex cerebral.
No caso das trocas de olhares e expressões faciais entre a mãe e a
criança, comportamento este que ocorre mais ou menos até os quatro
meses de idade e caracterizado pela fixação da criança ao olhar e a
face da mãe, faz com que funções inatas do aprendizado visual sejam
ativadas (Stamenov, 2002). Simultaneamente também é a ativada a
área especializada de reconhecimento de expressões faciais e centros
de recompensa (liberadores de neurotransmissores como a ocitocina) e
supressão da região responsável pelo juízo crítico. Esse processo ocorre
através dos “neurônios espelho”, grupo de neurônios, descobertos entre as
décadas 1980 e 1990 pelo neurofisiologista Giacomo Rizzolati, revelando
que o processo de aprendizado ocorre inicialmente através da observação
pura. Esses neurônios, presentes no córtex pré-motor e córtex visual,
mostram como podemos aprender através da imitação mesmo sem
compreendermos o significado da ação e mesmo sem realizarmos nenhum
movimento. Quando observamos alguém realizando uma tarefa qualquer,
ativamos em nós a mesma área do córtex cerebral (ONIANS, 2007).
29
ART

Ao propor o mecanismo de ativação do processo criativo como um


impulso decorrente da insatisfação inerente ao processo bio-evolutivo do
cérebro, a Neuroestética acaba por reforçar algumas questões propostas pela
teoria abjeta. O funcionamento dos mecanismos neurofisiológicos cerebrais,
tais como, a ativação do córtex visual e regiões associadas com os neurônios
espelho, a troca de olhares mãe/bebê estabelecem uma base biológica para
a relação primitiva do sujeito com a imagem, bem como a intangibilidade
e idealização decorrente dos “conceitos sintéticos cerebrais” que reforçam o
inacabado e o informal, relacionando a arte a um mal-estar profundo.
Assim, a Neuroestética possui um aspecto abjeto/repulsivo.
Primeiramente, pelo o foco nas heranças biológicas inatas decorrentes da
evolução da espécie calcadas na origem da relação do sujeito com a imagem
como ato fundador do mesmo; bem como, através do aprendizado com as
experiências cotidianas do cérebro nos “conceitos sintéticos cerebrais” que,
em sua impossibilidade, incompletude e frustração agem como um bio-drive
para a evolução da espécie. E, por último, a forma como é feita a pesquisa
de laboratório na neurobiologia com uso de cobaias, como macacos, ratos
transgênicos, cães, gatos e pacientes com cegueira seletiva (visual blindness).
Portanto, a Neuroarte deve ser abordada pela neurofisiologia cerebral
e caracterizada pela visceralidade da experiência estética — a experiência
sensório visual é antes de mais nada um evento neurofisiologico e bioquímico
que ocorre no cérebro enquanto víscera.
Através do conhecimento propiciado pelos experimentos científicos,
a Neuroarte nega a concepção equivocada de que existiria uma arte
retiniana contraposta à uma arte da ideia ou do intelecto. A Neuroarte
também funciona por retroalimentação. As artes visuais, desde sua
origem, desvendam os mecanismos cerebrais de construção da imagem. A
neurobiologia e a Neuroestética analisam estes mecanismos sob o ponto
de vista da ciência. E, por fim, o computador através dos algoritmos e
interfaces gráficas de visualização usa esses saberes. Assim, a computação
visual inerente aos exames de ressonância nuclear magnética age enquanto
“imagem instrumento” (propriedade de ação em tempo real das imagens à
distância – telepresença), desvendando o funcionamento dos mecanismos
cerebrais do córtex visual. Num processo de retroalimentação, a Neuroarte
apropria-se desse conhecimento científico para produzir objetos artísticos,
potencializando e focando a experiência estética do espectador a partir
desses saberes.
Para concluir, é importante demarcar algumas questões instauradas pela
Neuroarte: ela é anti-conceitual no sentido de que devolve à investigação
visual e à fruição estética um status de conhecimento; é abjeta porque
reconstrói a relação primordial com a imagem, bem como pelos modos de
investigação que utiliza; a tecnologia é vista em seus estágios evolutivos,
abstratos (imagem nas cavernas, perspectiva e câmera obscura) que avança
por progresso e tecnicidade até modos mais concretos (fotografia de
película e cinema, vídeo, fotografia e cinema digitais, vídeo de alta definição,
imagem de síntese e realidade virtual) e assim é abordada por acoplagem e
prolongamento.

30
ART
Referências Bibliográficas

CHABOT, Pascal. La philosophie de Simondon. Paris: Librairie Philosophique, 2003.

FLUSSER, Villém. Memories. In: Ars Eletronica Facing the Future. London: MIT, 1999.

FLUSSER, Villém. On science. In: Signs of life: Bio Art and Beyond. London: MIT, 2007.

MARR, David. Vision: a computacional investigation into human representation and prosessing of
visual information. Massachusets: MIT, 2010.

POPPER, Frank. From Tecnological to Virtual Art. London: The MIT Press, 2007.

POPPER, Frank. Art of the Eelectronic Age. New York: Thames & Hudson, 1997.

POPPER, Frank. Arte, Acción y Participación: el artista y la creatividad hoy. Madri: Akal, 1989.

POPPER, Frank. Origins and Development of kinetic art. New York: New York Graphic Society,
1968.

HENDERSON, Harry. Encyclopedia of Computer Science and Technology: Revised Edition.


New York: Facts on File, 2009.

HOFFMAN, Donald D. Visual intelligence: How we create What we Se. New York: W. W. Norton,
1998.

KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an essay on abjection. New York: Columbia University, 1982.

LECHTE, Jonh. Key Contemporary Comcepts: from abjection to zeno’s paradox. London: SAGE,
2003.

MANOVICH, Lev. The Languague of New Media. London: MIT Press, 2001.

MANOVICH, Lev. Understanding Hybrid Media. In: HERTZ, Betti-Sue. Animated Painting. San
Diego: San Diego Museum of Art, 2007, p. 18-45.

FOSTER, Hal. The Return of Real: the avant–garde at the end of the century. Massachusets: MIT,
1996.

ONIANS, Jonh. Neuroarthistory: from Aristotele and Pliny to Baxandal and Zeki. London: Yale,
2007.

SIMONDON, Gilbert. La Individuación a Luz de Las Nociones de Forma e Información. Buenos


Aires: La Cebra, 2009.

SIMONDON, Gilbert. El modo de Existencia de Los Objetos Técnicos. Buenos Aires: Prometeo,
2008.

SIMONDON, Gilbert . Dos leciones Sobre el Animal y El Hombre. Buenos Aires: La Cebra, 2008.

ULLMAN, Shimon. High-level Vision: Object recognition and visual

ZEKI, Semir. A Vision of the Brain. London: Blackwell, 1993.

ZEKI, Semir. Inner Vision: an exploration of art and the brain. London: Oxford, 1999.

ZEKI, Semir . Splendors and Miseries of the Brain: love, crativity, and the quest of Human
Happiness. London: Blackwell, 2009.

STAMENOV, Maxim I, and Vitorio Gallese. Mirror Neurons and the Evolution of a Brain and
Language. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2002.
31
ART

1 Doutor em Poéticas Visuais pelo PPGAVI-UFRGS. semeler@terra.com.br

2 Charge-Coupled Device

3 Complementary Metal-Oxide Semiconductor

32
ART
Arte, conhecimento e livros virtuais
Ana Beatriz Barroso1

Resumo: O texto aborda a arte como forma de conhecimento e explora a


hipótese de que, como tal, pode fazer do livro um meio de comunicação
extremamente propício à sua elaboração, articulação, transmissão e
compartilhamento. O livro tratado aqui, porém, não é o livro tradicional,
impresso, tampouco o livro eletrônico, mas sim um livro chamado virtual
em função de suas características e peculiaridades. Este livro se escreve
no ciberespaço e nele se dá, se transforma ou se perde, entre as malhas
da ampla rede aberta, repleta de leitores navegantes, já habituados à
linguagem multimídia que nela se faz presente.
Palavras-chave: conhecimento, arte, livro virtual, cibercultura
Abstract: This paper proposes an approach to the art as a form of knowledge
and explores the hypothesis that, in this sense, we can make the book a
medium extremely interesting to its development, articulation, transmission
and sharing. The book we dream about, however, is not the traditional book,
printed, nor the electronic one, closed and finished, but a book called virtual
because of its characteristics and peculiarities. This open book is written in
cyberspace and in this space it is given and can be transformed by sailors
readers already familiar to the multimedia hipertextual language present in the
world wide web.
Keywords: knowledge, art, virtual book, cyberculture

Durante muito tempo se forjou a idéia de que a arte seria uma forma
misteriosa de lidar com a realidade, ora criando ilusões e escapes para as
mazelas do cotidiano, ora representando fragmentos do que seria de fato
o real, em toda sua crueza, beleza e desespero. O artista, dotado de gênio
e sensibilidade fora do comum, seria aquele cujo poder de representar tais
ilusões e fatos ou de retratar o mundo sensível, encantaria, seduziria e até
convenceria as pessoas de que um outro mundo é possível, um mundo
imaginário, embora concreto, uma realidade outra. Um sistema paralelo, à
parte, abriria-se assim às consciências tocadas pelo poder da arte, que lhes
daria em troca o passaporte infalível de acesso a esse universo fabuloso,
extasiante e extraordinário. Durante muito tempo, essa talvez tenha sido
a inquestionável função da arte e do artista: entreter, representar, mostrar,
expressar, fazer sonhar e evadir. Se, por um lado, a indústria cultural
lamentavelmente foi se apropriando cada vez mais dessa função, que ainda
assim se exerce e nos encanta, por outro, novas funções e disfunções foram
aparecendo.
Por um processo lento, paulatino, mas também aparentemente súbito e
radical, foram se formando outros conceitos de arte, talvez, aparentemente
também, mais radicais e temerosos. Nada poderia ser menos encantador
que um urinol apresentado como obra de arte. Assim, o século XX viu
a arte e os artistas inventarem e assumirem novas funções, abraçarem
causas as mais diversas, irem às ruas, às páginas das revistas, dos livros e
33
ART

jornais, libertarem-se do cubo branco, conquistarem espaços múltiplos: a


praia, a web, o morro da Mangueira, desertos e centros urbanos, campos
mediáticos, a caixa preta, o interior dos sistemas, fazendas, salas de cinema,
buracos de metrô, escolas e universidades, numa expansão plural, pluralista
e libertária. Ainda hoje causa espanto que a arte esteja nesses lugares
todos. Mas depois de tudo, afinal, a arte é aquela estranha que estranha os
costumes, questiona a cultura, da qual se origina e a qual se destina, num
paroxismo tenso e fulgurante.
Junto a isso, como uma conquista, talvez a principal, ocupamos a
existência. A arte passa a ser uma postura, um modo de estar no mundo,
um olhar, uma maneira de sentir e respirar. A arte passa a ser relação, a arte
passa a ser relacional, não conta em si, como valor em si, fechado em si, o
artista, gênio para si mesmo, estanque e isolado, não se sustenta. Ainda que
continue a alimentar sua eterna ilusão, não vale. Ou continue valendo, como
sempre, para si, em círculo, a serpente engolindo seu próprio rabo-corpo,
devorando-se sem mais. Sem problema. Hoje há confluência e convivência
entre o círculo e a espiral, mas eu prefiro a espiral. Nela nos identificamos.
Vamos. A arte parece não ter fim. Não morreu, encontrou outras finalidades,
além da representação, além da ilustração de sentimentos e valores.
Sem renegá-las, sem excluir nada disso, a arte se deu como finalidade o
conhecimento, esse ente fugidio, isso que é pura busca e encontro, isso
que escapa e elucida. Eis aí o legado mais precioso que herdamos dos
modernos, nós, pós modernos, que testemunhamos a queda do muro de
Berlim, mas nos mantemos cientes dos múltiplos muros que se erguem e
desgraçam vidas no cotidiano do mundo contemporâneo.
eu quero ficar que se deite aqui e sinta comigo os murmúrios, palavras que
deslizam numa teia, uma estacou agora, e vagarosamente uns fios brilhosos
se torcem à sua volta, meu deus, vão recobri-la, que palavra, que palavra?
CONHECIMENTO, Hillé, ainda posso vê-la, CONHECIMENTO sendo sufocada por
uns fios finos e de matéria densa. pronto. apagou-se. (HILST, 2001, p. 70)

Nesse ponto, não desprezamos a doxa, tampouco as ilusões, ouvimos


a todos, alimentamos opiniões, frívolas, especulativas, caolhas, sinceras,
mas almejamos a episteme. É ela que nos sidera. Por ser assim, embora
não nos creiamos exatamente úteis à humanidade, nada há de inútil em
nossa busca. Que as perguntas se acumulem sem respostas, que a busca
não tenha fim, posto que o mistério da vida, do existir, do ser, do lembrar
e esquecer, do amar, também não tem fim, que nos importa? Na variação
das formas todas que a arte adquire neste momento, universal parece
ser essa busca, esse modo de operar verdades e mentiras, ignorâncias e
saberes, misturando-os em fixações efêmeras, aspirantes à eternidade ou
à própria fugacidade do instante, de todo modo, partilháveis, dignas de
compartilhamento, não pelo valor que carregam em si, mas pela esperança
de ecoar uma busca semelhante, de outro semelhante, e aplacar misérias
e angústias pela simples razão de mostrar ao outro que, oxalá, ele/ela não
está sozinho nessa angústia, nessa miséria, nessas alegrias, nesse mar de
incompreensão e desconhecimento que é a própria condição humana, que
nos iguala a todos, mortais, donos de necessidades e desejos, buracos sujos
e sonhos puros, músicas inaudíveis e lama.
34
ART
Talvez, não sei, é difícil precisar, dizer exatamente quando essa nova
percepção começou, talvez sempre tenha estado presente no fazer artístico.
O passado se nos apresenta como coisa nebulosa. O que pensavam homens
e mulheres ao pintarem as cavernas, os potes de cerâmica, o corpo, as
inscrições mortuárias, os frontais dos templos, os vitrais góticos? Talvez
também eles e elas buscassem o inominável e nessa busca fabricassem
conhecimento, um conhecimento de uma outra ordem, a qual se
caracterizaria por mesclar razão e sensibilidade, emoção e intelecção,
integrando a pessoa ao meio circundante e tornando-a, quiçá, mais íntegra.
Esse conhecimento já seria o que hoje denominamos conhecimento
artístico, distinto de pelo menos outros dois, o científico e o filosófico, aos
quais se chega por outros caminhos e que nos levam a outras paragens
(SUASSUNA, 2005).
Ainda que assim seja, que sempre tenha sido e havido tal tipo de
conhecimento, o fato é que só recentemente isso assim foi sentido.
Datemos o fato. Na primeira metade do século XX, Piet Mondrian levanta a
bandeira de que há uma linguagem propriamente plástica e busca definir,
depurar e praticar essa linguagem. Ele não é o único a fazê-lo, mas fica
como símbolo. Theo Van Doesburg também investe nessa convicção e, por
um outro viés, Kasimir Maliévitch chega ao extremo das possibilidades da
pura linguagem plástica, já liberta das obrigações da representação e do
elo com a realidade figurativa. Silêncio profundo. O que se passa a partir
de então, pelos múltiplos caminhos percorridos pelos mais distintos
artistas, é o que importa e o que vai abrir a perspectiva da arte como forma
de conhecimento. Afirmar que a arte é uma linguagem ou que há uma
linguagem essencialmente plástica e visual traz uma série de implicações,
mas, sobretudo, nos faz ver que, doravante, é possível pensar plástica e
visualmente, pensar como artista, ser e estar artista, ser isso que é sendo
sem saber porque se é mas inventando sentidos para essa falta de sentido
absurda que é a vida.
Ele sabe agora, com a longa experiência de seus oitenta anos, que a vida é
uma coleção de mortos. Os nossos mortos. Os mortos que só nós podemos
ressuscitar nas iluminações de nossa consciência, e que carregamos conosco,
sem que nos pesem, constranjam ou perturbem, até que sobrevenha para eles a
morte definitiva, que é a nossa própria morte. (MONTELLO, 1978, p.477)

Para entender as conseqüências contidas nesse ponto transfigurador é


necessário rememorar algumas noções de linguagem.
De início, a linguagem não é. Não é nada, não é uma coisa, não é uma
substância. A crença de que a linguagem humana fosse uma coisa substancial
não levou os lingüistas muito longe, assim afirma Saussure (2010), para quem a
linguagem é forma. Dizer que ela é forma é dizer que ela é relação. Isto é, nada
na linguagem funciona isoladamente ou tem valor em si. Tudo nela é relacional.
Uma palavra ou partícula lingüística tem seu valor alterado ao se colocar ao
lado de outra e faz com que essa outra igualmente tenha seu valor alterado. O
contexto influi no sentido do texto, tanto quanto esse tem o poder de alterar
aquele. Além dessa constatação de fundamental importância para a boa
compreensão do que seja a linguagem humana, na qual a linguagem da arte se
espelha e da qual ela deriva, há uma outra, dessa vez oriunda da Comunicação.
35
ART

No estudo dos meios de comunicação, eventualmente causa incômodo


o fato de a linguagem não ser considerada um meio de comunicação,
muito embora, claro, ninguém negue que nos comuniquemos por meio
da linguagem. A razão, porém, para isso é simples: a linguagem não está
fora de nós, não foi algo por nós fabricado, inventado, cujo nascimento
se possa precisar e investigar. Pelo contrário, não sabemos ao certo onde
começa a linguagem e onde começamos nós, como seres humanos, como
seres sociais. Não se pode dizer que a linguagem é uma ferramenta ou uma
tecnologia de comunicação, um meio, como o é a escrita, esta sim, primeiro
dos meios de comunicação. A linguagem nos constitui como seres humanos
e nada somos, nem histórica, nem pré-historicamente, sem ela. Tampouco
ela é exclusividade nossa. Sabe-se que quase todas espécies animais são
dotadas de linguagem, o que permite a comunicação entre os indivíduos e
a vida em grupo, mesmo entre as espécies mais solitárias. O que é estranho
no nosso caso é a complexidade que a linguagem adquiriu e o fato de
articularmos uma quantidade infinitamente maior de sons e sentidos que
as outras espécies animais, o que fez com que nós, ainda que mais fracos
e frágeis fisicamente, nos impuséssemos diante de animais muito mais
fortes e conquistássemos com isso inegável expansão e supremacia. Isso é
espantoso. Isso é inexplicável. O fato de falarmos é o grande enigma.
Ensina-nos a Lingüística clássica (SAUSSURE, 2010), que a fala é a
dimensão da linguagem habitada pelo indivíduo, enquanto a língua é a
dimensão social e operacional da linguagem. Em outras palavras, podemos
imaginar o seguinte: a linguagem é um grande sistema articulado de signos,
a língua é o que nos permite operar ou dinamizar esse sistema e a fala é
a maneira como cada um de nós faz suas operações, articula os signos. A
fala é, no fundo, o lugar onde o abstrato se concretiza, onde a pessoa se
apodera do que é cultural e onde as transformações são forjadas, porque à
força de falar, de falarmos, fomos compartilhando nossas compreensões e
incompreensões da realidade e assim fomos, simultaneamente, descobrindo
e inventando as coisas e os nomes das coisas, alterando a face do planeta e
as condições de vida na Terra. Nesse vai-e-vem de nós aos outros, propiciado
pela linguagem – dizia Walter Benjamin (2000) que devíamos dizer NA
linguagem e não PELA linguagem, posto que a linguagem é tudo e tudo é
linguagem –, transformamo-nos e provocamos transformações. Erguemos
mundos e fundos. Conhecemos, desconhecemos, reconhecemos, calamos.
Pensamos, enfim, o que é o pensamento se não linguagem concatenada?
Dizer agora que existe uma linguagem da arte, pictórica, musical,
fotográfica, visual, significa dizer que podemos pensar musicalmente,
fotograficamente, visualmente. “Trata-se aqui de linguagens sem nome,
sem acústica, de linguagens feitas de matéria; é preciso aqui pensar na
comunidade material das coisas na sua comunicação.” (BENJAMIN, 2000,
p.164) Mas o que pensamos nesses meios, cromáticos, sonoros, gestuais,
formais? O que pensamos com ou diante da forma, nisso que é relação?
Pensamos-sentimos, sabemos-não-sabendo. Temos talvez consciência
de sermos algo que já não somos, sentimos o corpo e é o corpo que,
sensibilizado, pensa, lembra, inventa, canta, cala, tudo junto, não
sistematicamente, com dificuldade de dizer o que pensa, em verbalizar, mas
sentindo-se íntegro, único, ímpar naquele instante.
36
ART
Desviemo-nos para o vermelho. Lá dentro, o que é aquilo? Lemos
alhures:
“Desvio para o vermelho (1967-84) [de Cildo Meireles] propõe a
construção de um espaço que, por um lado, aproxima-se do ambiente
doméstico e, por outro, desconecta a obra do espaço real.” (COHEN, 2008, p.
89) Mas nós mesmos, aquém da informação que temos daquilo, pensamos:
o que é isso, o que sinto aqui, quem sou neste aqui, que relação estabeleço
ou posso estabelecer neste espaço, com este espaço, que sentido faz
isso tudo ou que sentido eu posso inventar para isso que é da ordem do
nunca visto e do nunca sentido? A consciência da falta de sentido da vida,
condensada em uma obra de arte, nos força a criar sentidos. Misteriosa,
então, não é exatamente a arte, mas a vida ela mesma. Criar sentidos é
conhecer por meio da invenção que se dá a partir do reconhecimento de
uma ignorância profunda. Conhecer é relacionar, estabelecer conexões e
elos, afetivos e intelectivos, com a esperança de vê-los ecoarem no social.
Conhecer é habitar a linguagem no mesmo instante em que nos sentimos
abandonados por ela. Adentrar o silêncio denso. Ir no íntimo: as vísceras,
o cérebro, o sangue, neurônios, mecanismos fisiológicos são universais na
mesma medida em que são pessoais. O corpo e o saber (instintivo) do corpo
são universais. O corpo, como suporte e meio da arte, é conquistado na
contemporaneidade. “Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o
que se passa de noite, mas um corpo sabe.” (LISPECTOR, 1999, p.18)
Agora, além dessa constatação, cabe apontar para o que dela pode
surgir em conseqüência. Que tenhamos uma, na verdade, várias funções
cerebrais responsáveis pela cognição e que a parte não verbal, não
lingüística, seja uma delas, e que justamente esta seja a responsável pela
percepção da beleza e pelo desenvolvimento cognitivo humano, em busca
do prazer que temos em, novamente, conhecer, que isso seja assim, que
conseqüência isso traz para nós, fazedores de arte? Como nos apropriamos
desse conhecimento oriundo da neuroestética e o usufruímos? Entre as
inúmeras possibilidades de resposta à questão, uma, que se situa ainda na
transição e na confluência da novidade e da tradição, é a que me interessa.
Esta se apóia em uma sugestão de Roland Barthes (2005), que sublinha a
necessidade de estudarmos ainda, e muito, um tipo de signo abundante no
mundo contemporâneo: o signo logoicônico, este que é misto de imagem
e palavra, de verbo e silêncio, e que sensibiliza simultaneamente audição e
visão.
Ora, a experiência comunicacional que temos diariamente navegando
na Internet nos coloca em contato direto com signos daquele tipo,
logoicônicos. Ainda que diversas formas de arte, e não só as visuais, mas as
musicais e coreográficas, nos tragam conhecimento e sejam, elas mesmas,
formas de conhecimento, que independem da verbalização e do apoio
da linguagem verbal, não precisamos abdicar desse apoio, nem deixar de
usá-lo para intensificar os sentidos multidimensionais sintetizados na arte.
Ao contrário, temos muito a ganhar e temos já ganho muito com a junção
complementar dessas distintas formas de conhecer o mundo. Não podemos
nos dar ao luxo de esquecer que a própria linguagem verbal, quando
distanciada de suas funções práticas e corriqueiras, quando estranhada e
37
ART

habitada pelo artista, reveste-se de imagem, metamorfoseia-se em visões,


derrete-se em sons, sensualiza-se, transmuta-se em arte literária, em poesia,
em canção. É errôneo, embora costumeiro, associar a linguagem verbal (oral
ou escrita) à razão e a razão a algo puro, desconectado da sensibilidade, da
imaginação e do corpo, como se o pensamento fosse matéria abstrata.
Uma criança que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de
chorar, não “tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um
estúpido, senão isto, “tenho vontade de lágrimas”. Esta frase, absolutamente
literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer,
refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper as pálpebras
conscientes da amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas!” Aquela criança
pequena definiu bem a sua espiral. (PESSOA, 1986, p. 94)

Cumpre lembrar que, ainda no século XX, se cria um tipo sociológico


até então raro: o artista intelectual. Embora esse tipo já existisse desde a
Renascença, tendo em Leonardo da Vinci seu emblema inaugural na figura
do artista cientista, é no apagar das luzes da modernidade que esse tipo
se expande, populariza-se e se afirma. Nenhum espanto há, hoje, que
músicos, artistas visuais, atores e atrizes, dramaturgos, coreógrafos e
estilistas dêem entrevistas, participem de debates, escrevam e façam da
escrita um meio de reflexão sobre a sociedade, sobre aspectos históricos
de seu estilo, sobre problemas de linguagem, sobre questões técnicas, que
estudem e tratem de tantos assuntos quanto lhes interessem. Os exemplos
são abundantes em qualquer ramo da arte. Cito aqui apenas um, o de Nei
Lopes (2009), sambista e estudioso da cultura africana e de sua contribuição
na formação da sociedade brasileira. Esse maravilhoso artista brinca com o
próprio nome ao dizer-se pesquisador da fundação NEI – Núcleo de Estudos
Independentes. Além de vários livros, didáticos e de ficção, enciclopédias
e dicionários ligados ao assunto, Nei Lopes mantém um blog bastante
instrutivo e descontraído, onde exerce sua alegre militância e deixa
registrado seu pesquisar.
Cito ainda Silvio Zamboni, que em sua atual pesquisa em arte, fotografa
de modo independente, prazeroso e regular cidades tombadas pelo
patrimônio mundial da humanidade, proporcionando-nos conhecimento
de matriz artística ao nos presentear gratuitamente com as imagens que
publica no site que mantém por conta própria. ”Resumidamente podemos
afirmar que o objetivo geral do projeto é o registro, a interpretação artística
e a divulgação do patrimônio artístico arquitetônico pela linguagem
fotográfica.” (ZAMBONI, 2009). Iniciativas como essas mostram que o
pensamento e a escrita de artista já lançam mão, neste momento histórico,
de outros meios, que não só a escrita, para incrementar o que precisa
ser dito, o que, intelectual e esteticamente, pode ser acoplado à arte,
interagindo com seu campo semântico, sem competição ou ofuscamento.
Assim, o livro virtual surge dessa vontade de fusão entre logos (palavra,
inteligência) e ícone (imagem, imaginação), entre linguagens e meios, em
um espaço propício ao exercício hipertextual, interativo e multimídia – a
rede mundial de computadores. Nela, ele surge como ambiência virtual de
estudos, AVE, em alusão à idéia de AVA, ambiente virtual de aprendizagem,
comum no ensino à distância. Entre professores e alunos o que há em
38
ART
comum é o fato de estudarmos e de precisarmos de um lugar para fazê-
lo. O livro é este lugar e neste contexto ele é virtual não só em função da
virtualidade própria do ciberespaço, mas também por ser dado como
potência, texto incompleto, desejoso de vir a ser completado, lido e escrito
por nós, em novelos, na leitura imersiva (SANTAELLA, 2004) do navegante-
viajante.
Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações
aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida,
entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre,
a cada passo, o comentário da inteligência e da imaginação me estorvou a
seqüência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o
que estava escrito não estava em parte alguma. (PESSOA, 1986, p.182)

Desse modo, o livro-lugar-virtual originário de blogs, wordpress, tumblrs


e afins, facilmente manipuláveis, nascem como caderno, lugar de exercício
e anotações, onde autores, já familiarizados com a escrita multimídia e
hipertextual (bem como com uma ferramenta tecnológica que a viabilize),
e leitores, igualmente familiarizados com um tipo de texto, despretensioso
e leve, encontrariam prazer em ler e escrever na rede mundial de
computadores. Publicar um livro, na cibercultura, pode ser simplesmente
transformar um weblog, que tenha características conceituais de livro, em
um website. Distribuí-lo significa dar acesso a ele. Na cibercultura e nas
linguagens que ela engendra em múltiplas línguas, a ave-blog se assemelha
à fala. É nela que a pessoa, ser finito e não interminável, voa e varia, articula
a seu modo os signos, usa a língua para imitar e criar sentidos, areja a
linguagem, se poeta for, arrisca rupturas, se revolucionário se sonha, e gera
conhecimento artístico, se sua busca se confunde com o mistério do existir.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Inéditos, vol.3 – imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BENJAMIN, Walter. Sur le language en général et sur le langage humain. IN Œuvres I. Paris:
Éditions Gallimard, 2000.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

COHEN, Ana Paula. in: Pedrosa, Adriano; MOURA, Rodrigo [orgs.]. Através: Inhotim.
Brumadinho, MG: Instituto Cultural Inhotim, 2008.

HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.

MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LOPES, Nei. Mandingas de mulata velha na cidade nova. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Lisboa: Publicações Europa América, 1986.

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo:
Paulus, 2004.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 26ª edição. São Paulo: Cultrix, 2010.
39
ART

ZAMBONI, Silvio. Patrimônio Mundial da Humanidade. Disponível em: <www.silviozamboni.


com>. Acessado em julho de 2011.

1 Doutora em Comunicação. Professora-pesquisadora do Departamento de Artes Visuais


do Instituto de Artes da Universidade de Brasília; abeatrizb@gmail.com (61) 99623882

40
ART
Percepção em lá menor
Anna Barros1

Resumo: A percepção tem estado presente em minhas pesquisas desde


a época em que minha obra estava centrada em instalações no ambiente
real. Com a passagem para o domínio do virtual, na arte e tecnologia,
esse interesse acirrou-se, pois a vivência do ambiente acarreta diferentes
características perceptivas. Ao entrar no mundo da nanotecnologia e da
nanoarte, o mundo quântico causou, na percepção, um mergulho ainda
mais profundo. A percepção tátil e a háptica, dominantes nas imagens
geradas pelos microscópios eletrônicos, levantam um questionamento, pois
o que as vivencia é a ponta rastreadora do aparelho e não o ser humano. O
que acontece conosco? Essas qualidades perceptivas têm sido consideradas
secundárias. Será? O texto aborda essa questão e traz alguns dos meus
trabalhos em nanoarte como campo investigativo.
Palavras-chave: Nanoarte, sistemas perceptivos, microscópios eletrônicos,
trans-humanidade.
Abstract: Perception has been for years a major point to me, begining with
my real time-space installations. Moving to the virtual in art and technology,
perception got even more important due to the different qualities in the
ambiance. Nanotechnology and nanoart demand from us a deeper dive into
perception in the quantum physics world. The images from the electronic
microscopes are in 3D have a virtual character and what you see on the screen
is their transcoding by a computer program. The domination of seeing was
altered by the entry of these three-dimensional topographic images, closer to
tactile sense. The problem is that what the microscopes perceive is not what
we do. How can we get closer to the microscope perception? The haptic and
tactile perceptions have been considered secondary in the Occidental culture.
Are they? The text goes over this question bringing my art work as the research
field.
Keywords: Nanoart, perceptive systems, electronic microscopy, transhuman.

O processo de criação de uma obra segue determinadas etapas inerentes à


técnica escolhida pelo artista, e que oferecem ativações perceptivas bem diversas,
pela maneira com que o artista deve estabelecer uma profunda relação com cada
material bruto a ser trabalhado, seja ele uma máquina inteligente com a qual possa
dialogar, seja qualquer outro material existente no chamado mundo real.
Em minha pesquisa em nanoarte, dois reinos se aliam: a natureza e a tecnologia.
Minha obra, embora ainda resumida, resulta da união entre amostras de materiais
concretos advindos da natureza - os quais ativam a imaginação e a curiosidade -,
e a tecnologia dos microscópios eletrônicos - ativada para desvendá-los em escala
nanométrica - com registro imagético trazido à luz por programas de computador
visualizados em monitores.
As formas presentes nas imagens oriundas da varredura das amostras
têm qualidade topográfica, e, portanto, tridimensional o que tem sido
considerado como dentro dos domínios da percepção tátil e háptica.
41
ART

É exatamente essa constatação que gostaria de examinar.


Primeiro - por perceber que essa qualidade tátil só pode ser sentida pela
ponta do microscópio, e mesmo assim de maneira diferente da sentida por
um dedo, pois a força entre a ponteira e a amostra é que é rastreada e não
sua estrutura material.
Todo o universo, incluindo a nós mesmos, está inserido na escala nano,
e obedece às suas leis quânticas, as quais, com nossa maior familiaridade,
irão alterar nossas percepções e comportamentos. Inseridas à questão
perceptiva, na cultura atual, nossas sensibilidades estão sendo adaptadas
para desenhar realidades variáveis, pelas quais nós flutuamos livremente:
a real, a virtual, a local, a da telepresença e a do espaço da nanociência, as
quais experimentamos em conjunto, formando uma nova consciência que
habita múltiplos selfs (Roy Ascott, 2009, on line).
Segundo - por julgar que a percepção é sempre fruto de uma integração
sensorial, no que James J.Gibson e o fenomenologista Maurice Merleau-
Ponty estão de acordo: “Os cinco sistemas perceptivos se sobrepõem, eles
não são mutuamente exclusivos”, (Gibson, 1966, p. 4). “Meu corpo, não é
uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema sinérgico, cujas funções
todas são exercidas e conectadas na ação geral de ser no mundo” (Merleau-
Ponty, 1962, p. 234).
A evolução humana levou à formação do cérebro como um órgão de
acesso à consciência e mesmo que sejam os sistemas sensoriais que levem
a informação do mundo até ele, no entanto será possível que a consciência
não seja material.
A percepção presente em uma obra tem sido julgada com características
definidas. Na arte denominada de visual seria aquela que tem por acionador
o sistema visual.
Gostaria de discutir essa noção da atuação de um único sistema
perceptivo em nossos atos, e, para tanto, vou introduzir a noção de sistemas
perceptivos de James Gibson e, na arte, da não-existência de um sentido em
estado puro de W. T. Mitchell e o texto de Ascott sobre a realidade sincrética,
a coerência quântica na construção do mundo e o nanoespaço.

Integração sensorial na arte

Minha experiência artística iniciou-se nos vários anos de participação e ensino


de expressão corporal, dança-improvisação, dentro dos parâmetros de Rudolf
Laban. Dançávamos comumente em grupos, de olhos fechados e me sentia
enxergando o tempo todo. Não havia trombadas uns com os outros, nem com
objetos. Por vezes, de olhos abertos, a comunicação era com a totalidade háptica
de nossos corpos (toque, cheiro e gosto, de acordo com os fenomenologistas e
com as pesquisas recentes de Madalina Diaconu (University of Vienna, Faculty of
Philosophy and Pedagogy, Austria), aos quais acrescento: o sentir a circulação e a
respiração).
Essas constatações levaram-me a buscar uma integração sensorial que
leva à percepção, o que a arte iniciou aos poucos desde o Impressionismo,
42
ART
quando o “olho” descorporificado clássico, que passeava pela ilusão da
superfície pictórica, viu seu império começando a se desmoronar pelo
questionamento de perguntas como: “o que é isso? ” e “ o que significa
isso ?” terem sido substituídas por “onde eu devo ficar”, diante de uma
pintura impressionista, pois ela só se desvendava ao “Olho” com o
deslocamento corporal (Anna Barros, 1996, p.50.)
Quando as instalações em tempo-espaço real surgiram com o
Minimalismo, no chamado cubo branco, até então repositório de pintura
e escultura, toda uma nova vivência sensorial e perceptiva enriqueceu
o espaço da imaginação. A escultura já fazia apelo a uma fusão do
visual e do tátil, mas não era um trabalho “acontecendo” e sim um já
codificado, a memória de um momento que marcara a sensibilidade
do artista. Robert Morris, em The Present Tense of Space, 1978, disseca a
mudança da memória para a experiência, de maneira ímpar, chamando
de “presentificação”, um estado de ser onde a experiência do que está
acontecendo no momento é prioritária para usufruir a obra. (Barros,
idem, p. 46).
Da arte em tempo presente, instalações em técnicas tradicionais,
passou-se à arte com processos em movimento: vídeos, e depois as
qualidades do analógico foram substituídas pelas técnicas digitais. Em
cada um desses momentos a formação da percepção foi se enriquecendo.
Os chamados órgãos perceptivos dilataram suas apreensões e a eles
foram acrescentados outros órgãos protéticos com o computador e
aparelhos tecnológicos. O ser humano tornou-se transhumano.
A nanotecnologia, ao explorar um universo instalado dentro das regras
da física quântica, e em dimensões moleculares e atômicas, demanda
um enriquecimento perceptivo ainda maior, pois as reações que nele
ocorrem não nos são familiares. O que acontece é uma maior importância
da associação homem-máquina, pois o olho dos microscópios eletrônicos
faz-se nosso, sendo um olho sensível à experiência tátil, uma vez que
as imagens que eles nos proporcionam são em 3D, topográficas (esses
microscópios têm uma elevada profundidade de foco), registrando, à sua
maneira, o “terreno” das amostras.
Ao contrário do olho humano que vê o que existe no mundo em que
vivemos, o do microscópio gera uma realidade que ele mesmo vê e torna
visível a nós por programa digital associado e transmitido pelo monitor;
as superfícies resultantes da varredura são registro de sinais transmitidos
por elétrons: “À medida que o feixe de elétrons primários vai varrendo a
amostra seus sinais vão sofrendo modificações de acordo com as variações
da superfície...”... “A versatilidade da microscopia eletrônica de varredura
e da microanálise se encontra na possibilidade de se poder captar e medir
as diversas radiações provenientes das interações elétron-amostra. Estas
interações podem revelar informações da natureza da amostra incluindo
composição, topografia, potencial eletrostático, campo magnético local e
outras propriedades da amostra”. (MEV, acessado em maio 2011, p.27).
Nesse processo de geração de imagens, a questão da presentificação pode
coexistir quando estamos observando o trabalho do microscópio; quando
43
ART

vemos as imagens por ele geradas e já registradas como apresentação


digital, caímos nas mesmas qualificações atribuídas às imagens da arte
digital, originadas pelos programas computacionais.
Em meu trabalho, especificamente, as imagens foram trabalhadas em
animações registradas em vídeo, o que atribui a essas imagens qualidades
já examinadas em outros textos por mim escritos; são eventos em continua
atualização. O fato de apresentarem material científico do reino da nanociência
altera a percepção qualitativa; aí podemos aplicar o que estamos tentando
registrar sobre a percepção nesse domínio. Tem relevância a união imagem/
informação e o conhecimento adquirido sobre a matéria científica. O que vemos
alia a técnica à informação que está sendo divulgada. O sistema perceptivo
humano está integrado ao das máquinas (microscópio e computador), o que
leva a experiência além da conhecida interligação homem/computador. Como
máquinas inteligentes, elas recebem e decodificam informação, neste caso,
advinda de um universo no qual nunca poderemos penetrar, embora nós
mesmos estejamos dentro dele.
As qualidades da matéria, alteradas na escala nano, só podem ser sentidas
em nós e por nós nessa mesma escala. De como virá a ser a percepção dessas
prováveis alterações, ainda não temos conhecimento. Nossos sistemas
perceptivos serão transformados? O mais provável é que as alterações ocorridas
em escala molecular sejam percebidas no todo do ser humano como tal, ou,
por meio de próteses. Com o correr do tempo, é provável que incorporemos
as informações oriundas dessas próteses em transformações moleculares. Com
um feixe de elétrons incorporado a um sistema perceptivo, ou ao conjunto
deles, talvez possamos detectar a superfície da matéria em escala nano. Por
hora, isso só ocorre no microscópio, sem que possamos senti-lo a não ser
visualmente por tradução digital.
É necessário trazer outra abordagem: a de que a experiência com novos
materiais com propriedades e comportamentos alterados pela escala
nanométrica, irão construir a percepção de um mundo novo. Nele, surge a
necessidade de explicações consideradas “mágicas”, pois ainda em busca de
uma narrativa.
Ascott vai em busca de uma nova organização dos sentidos, instaurando
nos sentidos de segunda ordem o sistema tecnoético. A união do digital, do
somático, do farmacêutico e do nano, para atingir estados e psíquicos e uma
compreensão espiritual. Para ele, atualmente, nós vivemos em uma realidade
variável onde o real, o virtual e o espiritual estão fundidos sincreticamente. Isso
detona “uma presença variável. Uma presença física no ecospace, uma presença
aparicional no espaço espiritual, uma telepresença no espaço ciber e uma
presença vibracional no nanoespaço.” A percepção alterada, no que ele chama
de sistema nanoético, que inclui a realidade sincrética onde está arrolada a
coerência quântica como construtora do mundo, deve atingir diferentes graus
da que, em geral usufruímos, e possivelmente chegar à percepção da presença
do vibracional nanométrico. Em um mundo composto por um complexo
de realidades variáveis, “todos estados são transientes e todas as fronteiras
permeáveis”. (Ascott, 2009).
Ascott traz “a teoria quântica de campo como a que define que um
44
ART
organismo vivo está conformado com a compreensão da mecânica quântica
quando afirma que a realidade material forma um todo indivisível que não
tem partes. A visão redutivista do mundo na física clássica tem que dar lugar
à compreensão na mecânica quântica da importância primordial do todo
inseparável e da interconectividade dentro do organismo assim como entre
organismos, e a do organismo e seu ambiente”. (2006, p. 74).
Trago as idéias de Ascott sobre o mundo nano por definirem uma
nova forma de consciência possível, resultante de sua experiência. Julgo
serem importantes porque configuram o estado espiritual, por nós ligado à
experiência do mágico na nanociência.
Seria necessário aprofundar essas idéias, o que infelizmente não é
possível neste texto. Na física quântica, lembremo-nos da importância do
experimentador na experiência .

Sistemas perceptivos

Quero ligar a idéia de interconectividade entre organismo e ambiente aos


últimos escritos de James Gibson, The Senses Considered as Perceptual Systems,
(1966) e The Ecological Approach to Visual Perception, (1979). Julgo que a visão
de Gibson sobre percepção alterou em vários pontos a visão tradicional e tem
vários pontos de concordância com a fenomenologia de Maurice Merleau-
Ponty; pode gerar um diálogo com a de Ascott apresentando duas maneiras de
apreensão da realidade, uma antes, e outra dentro da cultura digital.
Segundo Gibson (1966, p.1), os sentidos não são simplesmente canais de
sensação, mas também captadores de informação, e por isso deveriam ser
chamados de sistemas perceptivos, os quais são responsáveis pela informação;
eles são fontes de conhecimento. Os órgãos, canais de sensação são fontes de
qualidades conscientes. Eles têm uma dupla função – de nos fazer sentir e de
nos fazer perceber.
Gibson livra-se da antiga fórmula de estímulo-resposta para oferecer uma
de informação sobre o ambiente onde se dá a percepção. Ele oferece um novo
sistema de “óptica ecológica, onde não é só a luz que estimula os receptores
mas a informação contida na luz que pode ativar o sistema”. (Gibson, 1979 p. 2).
Essa informação une percebedor ao ambiente.
A percepção seria então a concepção e crença que a natureza produz por
meio dos sentidos.
“Os cinco sistemas perceptivos se sobrepõem, eles não são mutuamente
exclusivos” (Gibson, 1966, p.4).
Mais adiante, ele declara a existência de “quatro sistemas perceptivos que
trabalham em uníssono: o sistema básico de orientação, o sistema háptico, o
sistema gosto-cheiro e, o sistema visual, o qual combina com os outros todos
e se sobrepõe a todos eles ao registrar fatos objetivos... ele registra certas
informações que nenhum outro registra, tais como a cor dos pigmentos das
superfícies” (Gibson, 1966, p.52).
A informação sensorial, quanto ao conjunto de sistemas perceptivos é
redundante, podendo ser considerada como acumulativa.
45
ART

Na cultura e na arte ocidental parece haver um consenso sobre a


classificação dos sentidos em primários e secundários, sendo os primários
– a visão, a audição -, e mesmo pensadores contemporâneos como Diaconu
na estética seguem essa classificação. Para ela, o tato, o cheiro e o gosto
estariam entre os sentidos secundários por não poderem produzir arte,
“porque lidam com estímulos efêmeros e consomem seus objetos” (on line,
acessado em junho de 2011).
Entretanto, ela admite que as artes transitórias como a dança, o teatro e
a música são excepções, às quais nós acrescentamos as animações digitais.
Estas últimas são um evento, um fluir contínuo de tempo e espaço, um
eterno devir.
Na arte, ao procurar apoio para a percepção multisensorial, encontrei
o texto de W.T. Mitchell (2007, p.400) que clama pela não-existência de
um sentido em estado puro assim como a especificidade de uma mídia
em organizá-los; “... não existe uma mídia visual”. Mitchell, nesse texto, faz
uma profunda análise do sentido da visão e de como ele tem sido visto e
interpretado em séculos de cultura. O que importa aqui é a afirmação de
que a própria visão se completa na linguagem descritiva, da qual, temos
consciência na arte, principalmente na pintura. Há também a sempre
presença da sensorialidade tátil. Ele oferece uma tentativa de percepção
da multisensorialidade, mediante certa proporção de atividade de cada
sentido na experiência perceptiva, nas diferentes mídias, e ainda acrescenta
que além das diferentes mídias serem a expressão dos sentidos elas são
“operadores simbólicos e semióticos complexos de funções sígnicas”.
Apresenta a tríade elementar de Peirce - ícone, índice e símbolo, como não
existindo em estado puro. P.400.
O cientista da nano, James Gimzewski, afirma o desaparecimento
das fronteiras entre o real e o virtual na nanotecnologia pelo uso comum
da tecnologia entre as várias formas de conhecimento; ele chama a
atenção sobre a dificuldade de colocar em narrativa as experiências na
nanotecnologia e sobre a necessidade de “tomarmos conhecimento das
metáforas que estão sendo geradas”, (2008, p. 56).
Gimsewski e a artista Victoria Vesna, com trabalho conjunto no SCIArt
Laboratório da UCLA buscam introduzir, ao mesmo tempo, uma formação
mista dos dois campos do conhecimento o que deve gerar uma nova
maneira de pensar e de se perceber o mundo. Os dois partilham, em
alguns momentos, as idéias de Ascott sobre a espiritualidade no universo
multidisciplinar da tecnologia. Na minha maneira de ver, a instalação dos
dois, Blue Morph, já mostrada em uma versão, no Museu de Arte Brasileira,
na exposição: Nano: Poética de um mundo Novo, 2008, com minha curadoria,
é um lídimo exemplo. Ela tem corrido o mundo com várias versões muito
esotéricas.

Obra: Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida pelo Espaço

Esta minha instalação faz parte de um conjunto de obras que tem por
assunto amostras de uma árvore petrificada colhida em Mata, RGS; um Ypê
46
ART
e sua semente. Nesta obra, as amostras são da árvore petrificada, varridas no
microscópio de força atômica, que se tornam atuantes, dentro do universo
poético, em três animações digitais em 3D; elas conservam a percepção tátil
da topografia gerada pelos microscópios. Enfatizando a percepção tátil e
háptica, duas das animações são projetadas sobre um tapete texturizado,
detonadas pela movimentação interativa das pessoas ao rolarem sobre o
tapete, ora uma, ora outra, segundo a área atingida.
Elas guardam a característica de tecitura de animações renderizadas
em wire frame. Outra animação é vista sobre a parede fronteira, anexa ao
tapete, esta renderizada.
Apresento Tecendo o Espaço como uma incursão viva ao campo
de pesquisa deste trabalho; ela pode ser considerada como uma obra
duplamente híbrida, no sentido de ligar o real com o virtual, ao fazer a
reconsubstancialização da imagem nano na sua projeção sobre o corpo
humano. O que quero dizer é que a representação da escala nanométrica na
imagem passa a fazer parte da nossa escala ao ser projetada sobre o corpo,
assim assumindo seu tamanho. Ela visa “vestir”, o que significa ter a mesma
escala do que é vestido. Sendo vestimenta ela passa a ser tátil, háptica,
sendo para o interator visível em partes incompletas, aliás, como toda
percepção o é do todo. Para o fruidor da instalação ela gera um conjunto
interativo e imersivo, alia a visão à performance.
A percepção é multisensorial. Toda a ambience visa um conjunto
perceptivo que transcende a pura experiência física a facilitar uma imersão
no encanto e magia da nanoarte, o de poder experimentar o universo
em uma escala em que é possível construir um novo mundo a partir de
átomos e moléculas. O artista, atualmente, busca dar forma e presença a
um corpo e a um mundo do qual só temos a percepção intuitiva e no qual
somos formados a partir da complexificação da molécula. Nas palavras de
Ascott, (on line, 2009) esse mundo “desenha nosso próprio Dasein, e onde,
nosso sentido de Ser e de Tempo estão mudando... de nossa base no nano
campo podemos construir muitos mundos e desenhar múltiplas realidades.
Nós habitamos um espaço-fase, em um tempo não-linear.” (Ascott, 2009).
O fluir constitutivo e as qualidades imagéticas das animações digitais
são elementos básicos à atualização do sincretismo apregoado por Ascott
gerado pela mídia, que “ transita o espectro do seco e do úmido, do natural
e do artificial, incorporado e distribuído, tangível e efêmero, visível e oculto”.
(Ascott, 2009).

As Imagens das Animações

As imagens na animação introduzem uma paisagem que, embora


desconhecida anteriormente, assemelha-se às topografias geo e às estelares, como
se todo o universo fizesse uma reordenação de formas para se constituir. Embora
na escala nano, ainda não se encontram dentro da escala molecular, aqui varridas
pelo microscópio de força atômica; no de tunelamento, aí sim, poderemos ter
a organização atômica de cada elemento, o que os torna individualizados e
passíveis de uma reorganização. Esse microscópio existe no Brasil no INMETRO,
47
ART

Rio de Janeiro. Meus contatos científicos atuais são com os Laboratórios da Física
USPSP e São Carlos, Nanobiologia da UnB e recentemente com o Centro de
Microscopia Eletrônica, na Física da UFRGS.
A obra procura uma conectividade entre a coerência cultural, a quântica e a
espiritual, que seriam a base de um novo desenho de campo, segundo Ascott
(2009). Nela, a ciência, a arte e a tecnologia juntas, visam gerar novas maneiras de
comportamento e de comunicação.
Essas experiências se dão nesse espaço sincrético incluindo o espaço mítico,
onde o espaço e o tempo estão demarcados e uma repetição contínua desses
elementos acontece pelo looping do vídeo. Seguindo minha dissertação de
mestrado Espaços Rituais do Arquétipo do Feminino na Arte Contemporânea, (ECA-
USP), uma das funções desse arquétipo é o de abrigar, o que, se atualiza aqui
pelo vestir virtual do interator pelas imagens da animação digital constituída por
interpretações da nanociência.
Na instalação, as imagens científicas são tratadas no Blender para conseguir
um objeto em bitmap que possa se constituir no sujeito-ator da animação. O
conteúdo mágico-poético remodela a experiência científica. As imagens são
retrabalhadas com a liberdade estética.

Fim
É sempre difícil analisar intelectualmente uma obra de arte principalmente,
quando ela é de nossa autoria, pois o que predomina no ato criativo é a
imaginação e a intuição, com conotações quase sempre impossíveis de ser
traduzidas verbalmente. Na nanoarte, isso ainda se torna mais difícil pelo caráter
fluido, ambíguo e impreciso do comportamento do átomo e das moléculas, o
que é uma constante na nanociência, e que, quando atualizadas em imagens,
tornam-se conformadas e imutáveis. Quando esse campo de conhecimento
é traduzido por poética em tecnologia digital, tudo se complica por abranger
qualidades e ações próprias de dois pares:o real e o virtual, a ciência e a arte e
as duas com qualificações determinadas e determinantes. Entretanto, o que
torna possível é o uso da mesma linguagem e da nossa consciência multilinear
e de espaços híbridos, onde é possível construir uma realidade sincrética. Ascott
acrescenta em suas considerações a participação mística quando não é mais
possível distinguir-se o objeto de nós mesmos. Antes dele, Carl Jung, na psicologia
profunda, apresentou a alquimia, como um processo importante na individuação,
a qual comumente é vista de maneira semelhante à nanotecnologia pela busca
de transformar os materiais, mas que é de fato uma ligação para a transformação
espírito-matéria. A participação mística para Jung é uma relação profunda entre
o sujeito e a matéria desenvolvendo um caráter numinoso (transcendente), onde
se formam os símbolos.
A magia na nanoarte pode estar incluída nessa participação. Neste texto,
esperamos fazer vislumbrar algo que resulta de nossas elucubrações, sobre Gibson,
Merleau- Ponty e Ascott e porque não Carl Jung, pois, todos eles têm tido uma forte
influência em minha maneira de pensar e de sentir.
Na análise dos textos de Ascott, encontrei um exemplo das mudanças
perceptivas que poderão ocorrer no mundo da tecnologia. Meu trabalho de arte,
contudo, foi criado antes dessa análise, podendo ser um exemplo do que ele
48
ART
apregoa e, não, fruto disso.
Encerro com uma frase de Jung sobre a arte:“ela ocupa-se de processos criativos
que o intelecto pode descrever, mas que só a experiência vivida pode entender”.
(1970, p. 608)

Referências

ASCOTT, Roy. “Ontological Engineering: Connectivity in the Nanofield”. In Engineering


Nature. Art and Consciousness in the Post_Biological Era, edited by Roy Ascot, Intellect: Bristol,
UK, Portland, OR, USA, 2006, pp.69-76.

BARROS, Anna. A Arte da Percepção. Um Namoro entre a Luz e o Espaço. Tese de


Doutoramento, Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo- PUCSP, 1996.

. “A Percepção em Espaços de Arte Híbridos”. In Interlab Labirintos do Pensamento


Contemporâneo. Org. Lucia Leão, Iluminuras: São Paulo, 2002, pp. 129-140.

GIBSON, James J. The Senses Considered as Perceptual System, Cornell University, Boston:
Houghton Mifflin Company, 1966.

. The Ecological Approach to Visual Perception, Cornell Univerity, Boston:


Houghton Mifflin Company, 1979.

GIMZEWSKI, James. A Sídrome do Nanomeme: Indefinição entre Fato e Ficção na Construção


de uma Nova Ciência. In Nano: Poética de um mundo Novo. Arte, Ciência e Tecnologia. Org. Anna
Barros, São Paulo: MAB, FAAP, 2008, p. 53.

JUNG, Carl G. Psychologie et Alchimie, Buchet/Chastel: Paris, 1970.

MITCHELL, W.T. “There is no Visual Media”. In Media Art History, ed. Oliver Grau,Cambridge,
Massachusetts, London, England: The MIT Press, 2007, p. 400.

Textos on line

ASCOTT, Roy. Observation, Participation, Transformation. Reality is constructed/ Meaning is


negotiated. Texto de 2009, colocado no Facebook pelo autor. Acessado em maio de 2011.

DIACONU, Madalina. Reflexions on na Aesthetics of Touch, Smell and Taste, Contemporary


Aesthetics, vol.4 2006 ISSN 1932-8478, http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/
article.php?articleID=385

acessado em junho de 2011.

MEV, http://www.materiais.ufsc.br/lcm/web-MEV/MEV_index.htm. Acessado, maio 2011.



1 Anna Barros – Doutorado e pós-doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo- PUCSP. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – Unesp. Grupo de Pesquisa GIIP. Pesquisa atual: nanoarte. anna barros08@gmail.com

49
ART

Interação, criação e agência


Cleomar Rocha 1

Resumo: O artigo discute o papel do interator - usuário de um sistema


interativo - e sua relação com o ato criativo, a criação e a agência destes
ambientes, a partir da abertura da obra de arte e dos próprios sistemas
computacionais interativos. Conclui que a atividade do interator é de
agência, em sua maior parte, não cabendo identitificá-lo enquanto
cocriador da obra.
Palavras-chave: interator, cocriador, agência, mídias interativas,
interfaces afetivas.
Abstract: This article discusses the role of the interactor – the user of an
interactive system – and his relationship with the creative act, the creation and
agency of this environment. It concludes that the activity of the interactor is the
agency, and no the co-creator of the work.
Keywords: interactor, co-creator, agency, interactive media, affective
interfaces.

A despeito de uma série de falas que apontam o interator como sujeito


co-criador dos trabalhos em arte interativa, face a característica da obra
de ocorrer somente a partir da ação direta do chamado interator, o artigo
problematiza tal concepção, buscando referências na noção de  receptor, na
teoria semiótica e nos conceitos de abertura da obra de arte, em Eco (1976),
e de agência, em Murray (2003). Busca-se compreender a exata atuação
deste agente fruidor que não está mais convocado a contemplação, mas a
os acionamentos para fazer ocorrer a obra, torná-la atualizada nos meios
computacionais.

O interator

A base da interatividade é a agência, o acionamento, a ação executada


pelo usuário, chamado usuário, interator ou interagente. O usuário
dos sistemas computacionais, independentemente da rotulação ou
categorização do sistema interativo - se arte, game, website, etc. - é o
responsável pelo acionamento do sistema, a partir da manipulação de
elementos das interfaces ou mesmo pela inserção de dados, sempre
possibilitado por uma interface do sistema. Acionamentos são também
reconhecidos como dados pelo sistema, que o processa, realizando uma
ação de sistema, que pode retornar para o usuário ou realizar uma ação
interna, como gravar um dado, por exemplo. Sem uma ação inicial do
usuário o sistema não responde com outra ação, não executa qualquer
função, à exceção dos sistemas autogeridos ou daqueles de acionamentos
não humanos. Mesmo quando o usuário não realiza uma ação ciente de
que o fez, o sistema pode ser acionado, como ocorre com a computação
pervasiva.

50
ART
Todo sistema interativo, neste sentido, realiza uma ação a partir de um
dado inicial provocado pelo usuário. O usuário, como o nome já o diz, é o
sujeito que usa o sistema, não aquele que o cria ou o desenvolve, não se
confundindo com o criador ou desenvolvedor deste sistema. 
Isto significa dizer que todo sistema interativo depende de um usuário
que o acione. Os aplicativos computacionais são interativos. Se eu não
acionar as teclas para produzir um texto no Word, ele não executará a tarefa
de gerar os caracteres sequenciados na ordem em que o eu determinei. O
fato de eu ter acionado, contudo, não me faz autor do Word, mas do texto
produzido. O fato de eu, na condição de usuário, ter definido uma ordem de
lexias – unidades mínimas do sintagma -, não me faz autor das lexias, mas
de sua ordenação, do percurso que eu escolhi fazer. Em última instância
estamos defendendo que o interator ou interagente é um usuário, o usuário
de sistemas interativos. 
Avancemos em nosso raciocínio, buscando ampliar um pouco mais
a noção de usuário enquanto agente. Shannon, ao conceber a Teoria da
Informação, estabeleceu como receptor o sujeito que recebe a o código e
o decodifica, alcançando a mensagem original. Neste aspecto o receptor
não sofre a ação comunicacional, mas a exerce, enquanto sujeito da ação
de receber, de ser afetado pela comunicação. Há, necessariamente, o
reconhecimento da ação, que por si é uma ação. Um objeto jamais será um
receptor de informação. A teoria semiótica traz, em Peirce, o fundamento da
terceiridade, que é o interpretante, que reforça a ideia de que o receptor, ou
intérprete nesta concepção teórica, é agente e não paciente de uma ação.
O intérprete gera os interpretantes, mediante a afetação que os signos
causam nele, acionando a semiose. A interpretação é o resultado enquanto
ação que desvela e cria sentidos. Dito de outro modo, é equivocado pensar
que o receptor é um elemento paciente, que não executa ação alguma,
apenas acolhe, indistintamente, signos ou outros elementos que o afetam.
O leitor, como já o disse Ricoeur (1994) cria elementos mentais que dão
vida aos signos. Ele, leitor, os vivifica no ato, ação de ler. Um livro, um texto,
jamais acionará alguma coisa se não for lido. E ler é posicionar-se enquanto
receptor. Neste sentido um texto terá o mesmo efeito que um sistema
interativo sem seu leitor ou usuário: nenhum. E se o fato de ler não torna
o leitor o autor ou co-autor, não haveria motivos de dizer que o usuário
de um sistema interativo se torna autor ou co-autor, apenas por realizar o
que lhe cabe, o acionamento do sistema, por mais complexo que ele seja.
Certamente disciplinas como Análise do Discurso e todas as hermenêuticas
depõem favoravelmente no sentido de que os signos não são completos
em si, mas precisam de interpretantes que o vivifiquem, gerando uma
gama possível de sentidos. Sem um leitor que acione os signos, um texto
será tinta sobre uma superfície. Um trabalho interativo simplesmente não
será, como um texto não lido também não será. 

Aberturas

A alteração percebida dos sistemas sígnicos ditos prontos para os


interativos - como um texto e um hipertexto, por exemplo - está em
51
ART

sua ordenação, linear e não alterável no primeiro caso e multilinear,


intercambiável, no segundo caso. Os sistemas hipertextuais exigem
uma ordenação sintática, visto que ele se apresenta como uma gama
de possibilidades. A ordenação sintática, neste caso, é um nível maior de
abertura do trabalho, visto que caberá ao usuário, além de ler, juntar as
peças. A polifonia do trabalho pode, embora não seja uma consequência
direta, ampliar as possibilidades de sentido ou afetação, uma vez que
poderá ser ordenado de duas ou mais formas. Entretanto, ainda que o
seja, o exercício de ordenação foi comandado e definido pelo autor. Se ele
escolhe dez ou mil lexias para um usuário ordenar, este mesma gama de
possibilidades já foi definida, e mesmo a ação de ordenação, que cabe ao
usuário. Ainda que a ordenação seja de número muito alto, ainda assim foi
esta a proposta do autor, cabendo ao usuário seguir a ordem dada, e não
elaborar novas ordens.
Queremos dizer com isto que o usuário, ao jogar cartas, por exemplo,
seguindo regras do jogo, não passa para a condição de co-autor do baralho
ou do jogo, mas a jogador, por maiores que sejam as possibilidades de
resultados e emoções possibilitadas pelo jogo. O fato de ele embaralhar as
cartas e ter como resultado final uma gama de jogadas, muitas vezes sem
precedentes, não o torna nada além de jogados, aquele que segue regras
para alcançar resultados distintos a cada jogada. E se assim o é, porque
nominar coautor  o usuário de um sistema interativo? Ele igualmente não
está seguindo as regras estabelecidas pelo autor? E se de outro modo fosse,
se de fato sua atividade fosse de co-autor, não caberia a ele, a partir de
então, registrar-se como co-autor do trabalho, figurando ao lado do autor,
inclusive reivindicando sua cota de direito autoral? Ora, não é exatamente
isto que ocorre com os trabalhos em mídias interativas. A fala de abertura
e participação que são tão caras a alguns autores, não são mantidas na
própria abordagem dos trabalhos, muitas vezes descritos antes de qualquer
participação ou interação, negando a própria condição de não ser antes de
uma atuação de usuário. Vários trabalhos em arte interativa, por exemplo,
são descritos e apresentados em sua condição de possibilidades, e não
de execução ou pós-execução, ainda que se diga que os trabalhos não
possuem sua completude antes de um processo interativo que o acione.
As aberturas dos trabalhos repousam, como afirma Eco (1976), em
sua compreensão, interpretação, por serem abertos a elas. Em trabalhos
participativos e interativos, a manipulação e interação podem ampliar
esta condição do usuário, tornando-o responsável também por definir um
percurso específico, nos vários percursos possíveis. Todavia, este será um
percurso.

Criação e cocriação

O ato da criação é definido por fazer surgir algo, seja material ou mental.
Um objeto tem um autor, tanto quanto um conceito ou uma palavra
também o tem. A criação não está restrita a execução de um trabalho,
mas basicamente em sua idealização, antes mesmo de ser executada.
Certamente Duchamp não criou o urinol que denominou de fonte, mas
52
ART
foi seu gesto que fez de um objeto utilitário um ícone da Arte. Assim, a
autoria não está somente contemplada pela construção objetual, mas pelas
articulações de sentido criadas a partir dele.
Criar é mais que fazer existir um objeto. Caminhando, de Lygia Clark,
é um conjunto de instruções e não uma peça. A peça é feita por cada um
que queira experienciar o trabalho da artista. Ainda que alguém execute o
trabalho e o experiencie, ainda assim Caminhando será de autoria de Lygia
Clark, e não de quem executou o trabalho.
Cocriação é a criação conjunta, portanto que resulta no trabalho a
ser apresentado, seja na condição de sintaticamente concluído, seja na
condição de instruído ou dado a manipulação ou interação. O cocriador não
é aquele que executa uma atividade determinada pelo autor, mas sim aquele
que constrói com  o autor as regras de sua execução ou criação. O cocriador
não é o jogador, mas um dos autores do jogo. Dito de outro modo, o uso de
sistemas interativos, por mais complexos que eles sejam, não se equipara
a determinação de regras sobre as quais o sistema opera. Soa forçosa a
aproximação do usuário com o autor do sistema interativo. Ademais, ser
usuário não desqualifica o sujeito que opera o sistema, fazendo-o ativo, do
mesmo modo que ser receptor não desqualifica intelectualmente aquele
que ativa a semiose, que a completa. Pelo contrário, emissor e receptor,
autor e leitor, artista e público são peças-chave para que o processo
comunicacional se complete. Ainda que não se confunda criação, cocriação
e recepção, não há se de observar tais termos de modo preconceituoso ou
como medida de valor. Sem qualquer um destes sujeitos, o trabalho não
acontece, não é, como aponta a fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1999).
Talvez o incômodo com o termo receptor tenha sido construído com a
comunicação de massa (SANTAELLA, 1996), que potencialmente restringe
a ação do receptor, na medida em que sua construção ocorre em meio a
milhares de outros receptores, sendo sua competência hermenêutica
individual não considerada, a não ser que ela se equipare a de outros
milhares, perfazendo um índice majoritário da assistência. Entrementes,
ainda assim, o exercício é realizado. E na cultura digital superamos esta fase,
a da cultura de massa, no que a digressão acerca do receptor pode, e deve,
ser também superada, retomando sua importância original, seu papel de
fundamento da comunicação, no plano individual.

Agência

Janet Murray (2003) denomina agência a ação realizada por usuários


de sistemas interativos. Segundo a autora, o fato de ordenar elementos
pré-determinados segundo regras igualmente determinadas não se
confunde com autoria ou coautoria. Esta atividade de ordenação sintática
ou acionamento de sistemas interativos é uma agência. O usuário agencia
os elementos disponíveis, segundo as regras estabelecidas pelo autor,
executando o que foi por este concebido.
Neste aspecto havemos de compreender o termo interagente como
o sujeito que agencia elementos interativos. O prefixo inter, neste
53
ART

caso, apenas situa o agente em relação aos elementos agenciados, os


interativos, não o caraterizando de outro modo. Ocorre, contudo, que
a ação não é denominada interagência, mas apenas agência, no que
resultaria correto afirmar que o sujeito desta ação seja denominado
agente, e não necessariamente interagente. Questões linguísticas à parte,
os termos interator e interagente têm sido bastante usuais na nominação
do sujeito que aciona os sistemas interativos, estabelecendo uma relação
de sinonímia, embora o segundo termo esteja mais afinado com a ação
executada pelo sujeito.
Importa, em última instância, o reconhecimento de que agenciamos
sentidos, enquanto receptores, em um exercício hermenêutico intenso
e fundamental, mesmo quando nos deparamos com signos ordenados
linearmente. A ação do receptor não é ser afetado, em uma construção
passiva, mas disparar os interpretantes a partir destes estímulos externos,
códigos, signos, ambientes, sistemas interativos, permitindo e organizando
a geração de sentido, em uma elaboração fenomenológica e, portanto,
dialógica, entre o ser e o mundo. Se o sentido não repousa nos signos
nem no sujeito, é na interação destes elementos, tornados um fluxo, que o
exercício hermenêutico, semiótico, se faz ver.

Palavras finais

Vários autores advogam que a nova ordem dada pelos sistemas


interativos recria o papel do receptor, que enquanto responsável pelo
ordenamento dos elementos, em padrões sintáticos definidos, passa a
assumir o papel também de criador. Admitimos que ele seja autor de seu
percurso, como o é em uma leitura, na montagem de um quebra-cabeças,
em uma partida de jogo de baralho, na escritura de um documento em um
editor de texto. Mas certamente esta ação não o torna autor ou coautor do
texto, do quebra-cabeças, do baralho ou do jogo, ou do editor de texto. Ele
é o usuário, elemento sem o qual o sistema, qualquer que ele seja, não é
acionado ou agenciado.
Será preciso despir de uma concepção equivocada de que o receptor
é menos importante que o emissor para compreender que sua ação não
é menos valorosa. Emissor e receptor são elementos fundamentais para
o processo comunicacional, inclusive usando os meios computacionais
interativos, não sendo necessário construir outro deslize conceitual de que
o interator ou interagente passa a ser um coautor ou cocriador, senão de
seu próprio percurso, como ocorre a todo momento.

Referências

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São
Paulo: Perspectiva, 1976.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura.


2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999)

54
ART
MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Trad. de Elissa
Jhoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 1), Trad. Constança Marcondes Cesar. São Paulo:
Papirus, 1994.

ROCHA, Cleomar. Da imanência ao inacabado: estéticas comunicacionais e interatividade


na arte tecnológica. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Comunicação / FACOM.
Salvador: UFBA, 2004.

. Interfaces cognitivas. Exposição instinto computacional. Org. Suzete Venturelli.


Brasília, 2009.

. Metáfora, metonímias e outras velhas figuras de linguagem na poética


tecnológica. Org. Suzete Venturelli. Brasília, 2009.

. Pontes, janelas e peles: contexto e perspectivas taxionômicas das interfaces


computacionais. Relatório de estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUCSP. São Paulo: 2009.

. Interfaces computacionais e experiência sensível. In Anais do 19º Encontro


Nacional da ANPAP – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Cachoeira:
Bahia, 2010.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

1 Pós-doutor em Estudos Culturais (PACC-UFRJ), pós-doutor em Tecnologias


da Inteligência e Design Digital (TIDD-PUC-SP), doutor em Comunicação e Cultura
Contemporâneas (POSCOM-UFBA), mestre em Arte e Tecnologia da Imagem (IdA-UnB).
Docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual.

55
ART

Posthuman Tantra: BioCyberShamanism


Uma Performance Multimídia Cíbrida.
Edgar Franco1

Resumo: Este artigo apresenta o processo criativo das performance


multimídia cíbidra “BiocyberShamanism” da banda Posthuman Tantra,
capitaneada pelo artista multimídia Edgar Franco. Destaco o universo
ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana”, contexto de geração da
performance - inspirado por possibilidades futuras dos avanços da
tecnociência e por uma possível emergência transumana, além de
aspectos tecnognósticos desse futuro hipertecnológico. Finalmente
detalho os aspectos estéticos e desenvolvimentos tecnológicos presentes
na performance que utiliza-se de recursos multimídia tradicionais e
outros contemporâneos, como vídeos, mágica eletrônica e aplicações
computacionais em realidade aumentada (RA).
Palavras-chave: Performance, Arte e tecnologia, Pós-humano, Ficção
Científica, Música Eletrônica.
Abstract: This paper presents the process of creation of the multimedia
performance “BiocyberShamanism” of the band Posthuman Tantra, leaded
by the multimedia artist Edgar Franco. It underlines the fictional transmedia
universe known as Posthuman Dawn that is the background context for
creation of this performance and was inspired by possible future advances of
technoscience, the possible transhuman rise and technognostic aspects of such
hypothetical future. Finally, it also details aesthetic aspects and technological
developments present within that performance, which uses traditional
multimedia resources and other contemporary ones such as videos and the use
of augmented reality (AR). 
Keywords: Performance, Art and Technology, Posthuman, Science Fiction,
Electronic Music.

Posthuman Tantra é um projeto musical transmídia, com músicas


eletrônicas e digitais que sofrem influências de gêneros musicais como o
psicodélico, o sci-fi, o dark, o industrial e o ambient. O projeto foi criado por
Edgar Franco em 2004. No princípio a música do Posthuman Tantra surgiu
para funcionar como trilha sonora do universo ficcional transmidiático da
“Aurora Pós-Humana” – admirável mundo novo baseado na fusão entre
DNA & Silício, com novas criaturas que mixam humano, animal, vegetal e
máquinas. A  música e os conceitos que engendram os aspectos estéticos
e ficcionais do projeto são influenciados pelas idéias de pensadores como
Robert Anton Wilson, Terence MacKenna, Buckminster Fuller, Teilhard
de Chardin, Aldous Huxley, Madame Blavatsky, John C. Lilly, Timothy
Leary, Giordano Bruno, John Dee, Rupert Sheldrake, Ken Wilber, P.K.Dick,
Crowley, Stanislav Grof, Ray Kurzweil, Hans Moravec, Vernon Vinge e
também pelas criações de artistas envolvidos com novas tecnologias e
reflexões sobre o pós-humano: Orlan, H. R. Giger, Mark Pauline, Natasha

56
ART
Vita More, Stelarc, Roy Ascott, Diana Domingues, Eduardo Kac, David
Cronenberg, Enki Bilal. Reflexões tecnognósticas e a busca de aspectos
transcendentes em um contexto hipertecnológico também compõem o
espectro conceitual das músicas e performances da banda, o que envolve
investigações sobre movimentos como The Extropy, Transhumanism &
Immortalism. Edgar Franco - o criador do projeto, é arquiteto pela UnB,
mestre em multimeios pela Unicamp e doutor em artes pela ECA/USP; ele
estuda as perspectivas pós-humanas nas ciberartes - uma pesquisa sobre
artistas controversos como os já citados Kac, Orlan e  Pauline, entre outros.
Franco é também artista multimídia com várias criações que vão de histórias
em quadrinhos, ilustrações para revistas e capas de CDs, poesia visual,
música, chegando a trabalhos de web arte como “NeoMaso Prometeu” -
que recebeu menção honrosa no 13º Videobrasil - Festival Internacional de
Arte Eletrônica. O Posthuman Tantra pretende ser um casamento constante
entre as criações visuais de Edgar Franco, o universo da música eletrônica
e das performances multimídia. Desde sua criação o Posthuman Tantra já
participou de dezenas de compilações em 3 continentes e lançou álbuns
em parceria com a banda francesa MELEK-THA, além do álbum de estréia
“Pissing Nanorobots” (2004) e dos dois álbuns oficiais, “Neocortex-Plug-
in”(2007) e “Transhuman Reconnection Ecstasy (2010), lançados pela
gravadora Suíça Legatus Records, com quem a banda tem um contrato para
o lançamento de mais 2 álbuns.
A banda tem recebido resenhas positivas em importantes veículos da
área de música eletrônica como a revista Judas Kiss da Inglaterra, o site
bielorusso The Machinist (em que “Pissing Nanorobots” recebeu nota 9) e
na revista brasileira Rock Hard Valhalla (a qual incluiu entrevista e resenha
de “Neocortex Plug-in” – também com nota 9). Em 2010 o Posthuman
Tantra lançou por sua gravadora, A Legatus Recs (Suíça) seu segundo full-
lenght “Transhuman Reconnection Ecstasy”, com excelente repercussão na
mídia especializada, também em 2010 a banda iniciou suas performances
multimídia ao vivo, estreando nos palcos em junho durante o Woodgothic
Festival II, em São Thomé das Letras (MG), o festival é considerado um
dos mais importantes da cena gótica brasileira e reuniu também atrações
internacionais. A recepção à apresentação do Posthuman Tantra foi muito
calorosa pelo público presente que destacou o aspecto inusitado do
show multimídia apresentado. Logo depois, ainda em junho, a banda se
apresentou no III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual da UFG,
a apresentação, que lotou o auditório da FAV - Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás, além dos vídeos e efeitos em realidade
aumentada contou com a participação exclusiva da performer Aline Bueno.
Em novembro de 2010 o Posthuman Tantra se apresentou no Museu
Nacional, em Brasília, durante o 9# ART - Encontro Internacional de Arte e
Tecnologia. O público da apresentação foi pequeno, mas seleto, pois incluía
alguns dos mais importantes artistas e pesquisadores da arte tecnologia
no Brasil. A apresentação contou com os integrantes do Grupo de Pesquisa
Criação e Ciberarte da UFG, e foi selecionada pela curadoria da exposição
EmMeio#2 para integrar o evento.
Também em novembro o Posthuman Tantra se apresentou no 16º
57
ART

Goiânia Noise Festival, um dos festivais independentes mais importantes do


país que em 2010 contou com atrações do calibre de John Ulhoa (Pato Fu),
Musica Diablo ( banda de Derrick Green do Sepultura), Otto, Cólera, Krisiun,
The Mummies, Macaco Bong & Gilberto Gil. Além dos habituais vídeos e
efeitos em realidade aumentada coordenados pelos VJs Gabriel Lyra Chaves
e Luciana Hidemi Nomura, a apresentação do Posthuman Tantra contou
com a participação de dois performers convidados, Thaís Oliveira e Flávio
Takeshi, que criaram uma performance exclusiva para o evento.
Em dezembro o Posthuman Tantra se apresentou no evento 10
Dimensões da Arte e Tecnologia na Universidade Federal da Paraíba, em
João Pessoa. Evento acadêmico organizado pelas universidades UFRN,
UFPB e IFRN, com patrocínio da CAPES e MINC - Programa Pró-cultura.
Em janeiro de 2011 o Posthuman Tantra se apresentou pela primeira vez
em Ituiutaba, Minas Gerais, cidade natal de Edgar Franco, a apresentação
aconteceu durante o evento Rock Fest 5 e contou com a participação
especial da performer Julie Zombieraven. Em abril de 2011 o Posthuman
Tantra apresentou-se na Universidade Estadual de Goiás, em Anápolis,
durante o evento 1º Encontro de Quadrinhos da UEG. Em junho, durante
o FAM – Festival Internacional de Arte e Mídia, em Anápolis, o Posthuman
Tantra apresentou a primeira versão da performance BioCyberShamanism,
incluindo um oitavo ato tendo como convidado especial o músico e
performer Eufrásio Prates; em agosto de 2011 acontece a performance
no 10#ART – Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, no Museu da
República, em Brasília, desssa vez com a participação especial da performer
convidada Rosangella Leote. Com essas apresentações o Posthuman
Tantra reafirma a singularidade de sua proposta através de seu trânsito
entre o universo da música independente - se apresentando em festivais
alternativos, e o mundo acadêmico - marcando presença em eventos
organizados por universidades e programas de pós-graduação em arte.

A aurora pós-humana: Universo ficcional transmídia.


A criação de universos ficcionais amplos com possibilidades de geração
de obras em múltiplos formatos audiovisuais ganhou maior visibilidade a
partir do surgimento da franquia “Guerra nas Estrelas” (Star Wars), em fins
da década de 1970 e início da década de 1980. Com o passar do tempo
personagens coadjuvantes da saga de George Lucas ganharam espaço
em outros produtos como histórias em quadrinhos narrando outros
aspectos da saga, desenhos animados, jogos de tabuleiro e computador
que se somaram às tradicionais traquitanas e brinquedos ligados à série,
despertando o interesse dos fãs para os diversos aspectos da história.
O fenômeno midiático perpetrado pelo universo ficcional de “Guerra
nas Estrelas” e o surgimento de narrativas em formatos diversos abarcando
aspectos múltiplos da cosmogonia da saga pode ser caracterizado como
um bom exemplo de narrativa transmídia, outro exemplo notório é a
franquia Matrix (1999). Para o professor do MIT (USA) e estudioso das mídias
Henry Jenkins (2009, p.138):
Uma narrativa transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de
58
ART
mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o
todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor
– a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela
televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games
ou experimentado como atração de um parque de diversões.

A conceituação de Jenkins é abrangente, no entanto o autor está muito


preocupado em tratar o fenômeno das narrativas transmídia como algo
ligado ao mercado e ao consumo de produtos de entretenimento. Sua visão
passa longe das chamadas perspectivas autorais da arte e como outros
investigadores do fenômeno está ligada à ideia de franquia e indústria
cultural mesmo numa perspectiva de convergência midiática. Sobre
produtos transmidiáticos o autor emenda:
Cada acesso à franquia deve ser autônomo para que não seja necessário ver o
filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto
de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por meio de diversas
mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais consumo.
(JENKINS, 2009, p.138).

Mais adiante Jenkins apresenta seu ponto de vista de que estamos “numa
época em que poucos artistas ficam igualmente à vontade em todas as
mídias” (2009, p.139), reafirmando sua crença no caráter compartimentado
da geração de produtos de entretenimento da industrial cultural mesmo
no contexto da chamada cultura da convergência. A questão importante
para mim, enquanto artista interessado em desenvolver poéticas autorais
desconectadas de uma obsessão mercadológica e consumista, é burlar essa
perspectiva compartimentada das narrativas transmidiáticas no contexto
da indústria cultural e tentar produzir trabalhos artísticos que utilizem as
mesmas estratégias transmídia, mas com objetivos poéticos e de auto-
expressão. O universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana” - um
work-in-progress desenvolvido por mim desde o ano 2000, e para o qual já
realizei obras artísticas em múltiplos suportes - é o meu esforço pessoal de
levar as narrativas transmidiáticas para o contexto da arte.
Atualmente minha obra nas múltiplas mídias toma como base um
universo de ficção científica que criei, a “Aurora Pós-humana”. São trabalhos
que trazem em seu teor o chamado “deslocamento conceitual”, definido
pelo escritor norte americano P. K. Dick (apud QUINTANA, 2004), pois
desloco o tempo, a gnose e a tecnologia para um futuro hipotético para,
na verdade, tratar de questões contemporâneas. A “Aurora Pós-humana”
é um universo ficcional futurista criado por mim inspirado por artistas,
cientistas e filósofos que refletem sobre o impacto das novas tecnologias:
bioengenharia, nanotecnologia, robótica, telemática e realidade virtual
sobre a espécie humana. Para sua criação também me inspirei no reflexo
desses questionamentos na cultura pop, com o surgimento de filmes
- eXistenZ, Matrix, 13º Andar, Gattaca, Avatar - e de seitas como as dos
Imortalistas, Prometeístas, Transtopianos e Raelianos. Esses últimos, por
exemplo, crêem na clonagem como possibilidade de acesso à vida eterna,
nos alimentos transgênicos como responsáveis futuros pelo fim da fome
no planeta, e na nanotecnologia e robótica como panacéia que eliminará
59
ART

o trabalho humano, liderados pelo pseudo-guru Raël, um hedonista que


constrói todo seu discurso a partir das previsões mais otimistas da ciência,
baseando seu pensamento em afirmações messiânicas controversas.
Mergulhado no estudo e investigação dessas polêmicas envolvendo
os avanços tecnocientíficos, previsões e vivências, surgiu, ainda no ano de
2000, o germe desse universo poético-ficcional que posteriormente batizei
de “Aurora Pós-humana”. A idéia inicial foi imaginar um futuro, não muito
distante, onde a maioria das proposições da ciência & tecnologia de ponta
fossem uma realidade trivial, e a raça humana já tivesse passado por uma
ruptura brusca de valores, de forma - física - e conteúdo - ideológico/
religioso/social/cultural. Imaginei um futuro em que a transferência
da consciência humana para chips de computador seja algo possível e
cotidiano, onde milhares de pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por
novas interfaces robóticas; imaginei também que neste futuro hipotético a
bioengenharia tenha avançado tanto que permita a hibridização genética
entre humanos e animais, gerando infinitas possibilidades de mixagem
antropomórfica, seres que em suas características físicas remetem-
nos imediatamente às quimeras mitológicas. Finalmente imaginei que
estas duas “espécies” pós-humanas tornaram-se culturas antagônicas e
hegemônicas disputando o poder em cidades estado ao redor do globo
enquanto uma pequena parcela da população, uma casta oprimida e em
vias de extinção, insiste em preservar as características humanas, resistindo
às mudanças.
Dessas três raças que convivem nesse planeta terra futuro, duas são o
que podemos chamar de pós-humanas, sendo elas os “Extropianos” - seres
abiológicos, resultado do upload da consciência para chips de computador
- e os “Tecnogenéticos” - seres híbridos de humano e animal, frutos do
avanço da biotecnologia e nanoengenharia, tanto Extropianos quanto
Tecnogenéticos contam com o auxílio respectivamente de “Golens de
Silício” – robôs com inteligência artificial avançada, alguns deles reivindicam
a igualdade perante as outras raças e “Golens Orgânicos” – robôs biológicos,
serventes dos Tecnogenéticos. A última raça presente nesse contexto é a
dos “Resistentes”, seres humanos no “sentido tradicional”, raça em extinção
correspondendo a menos de 5% da população do planeta.

ByoCyberShamanism: Performance Multimídia


do Posthuman Tantra
As performances ao vivo do Posthuman Tantra são apresentações
multimídia, contam com vídeos, aplicações computacionais e eletrônicas
e ações artísticas exclusivas criadas por Edgar Franco em parceria com os
integrantes do grupo de pesquisa CriaCiber – Criação e Ciberarte. Com
relação aos efeitos computacionais em realidade aumentada (RA), eles
dão um caráter cíbrido às performances pois criam “ambientes cíbridos -
que integram simultaneamente o real e o virtual” (LEÃO, 2004, p. 165),
o Posthuman Tantra foi uma das primeiras bandas do mundo a usar esse
recurso no palco. Nas apresentações da banda, além de VJs e performers
convidados, Franco conta com o auxílio inestimável de sua esposa Rose
Franco que toca teclados e controladores em algumas músicas.
60
ART
Na performance multimídia cíbrida BioCyberShamanism agrega alguns
novos elementos em relação às performances anteriores do Posthuman
Tantra batizadas de CyberPajelança. Nelas o Posthuman Tantra leva para os
palcos o universo ficcional da “Aurora Pós-humana”, somando à ambientação
sonora digital múltiplos recursos audiovisuais com a intenção de simular um
contexto pós-humano em que o performer Edgar Franco e seus convidados
passam por rituais hipertecnológicos de transmutação em criaturas
híbridas. BioCyberShamanism envolve fortes aspectos tecnognósticos e
propõe aproximações entre transcendência e hipertecnologia, ao mesmo
tempo que repudia a assepsia das imagens publicitárias que induzem
ao consumo e à destruição da biosfera perpetrada pelas multinacionais
auxiliadas pelas grandes agências publicitárias globais. O set básico
da performance BioCyberShamanism é composto por 8 atos, os 7 atos
presentes nas performances anteriores chamadas de CyberPajelança, e
um oitavo ato sempre contando com um performer convidado. Os atos
são estruturados sobre as músicas digitais que lhes dão nome e abarcam
seus conceitos principais, a duração da apresentação tem variado de 35 a
45 minutos. A seguir descrevo aspectos estéticos e conceituais de cada ato.
Ato I: The Omega Neocortex – Nessa música, acompanhada de um
vídeo exclusivo, trato do possível surgimento de uma consciência planetária
transcendente, uma hiperconsciência emergente formada a partir da
conexão entre todas as consciências humanas, animais e vegetais, conexão
a ser criada pelos avanços tecnológicos nos campos das redes telemáticas,
nanorobótica e biogenética. Quando essa conexão global se completar
surgirá então essa grande mente ômega, o neocortex ômega da Terra viva,
Gaia. O conceito remete à ideia de Noosfera e Ponto Ômega de Theilhard
de Chardin (1994, p.300). O vídeo investe em imagens simbólicas de base
alquímica que metaforizam a emergência dessa hiperconsciência. Além
disso, acontece uma performance simples em que Edgar Franco, que chega
ao palco de terno e gravata – uniforme global dos líderes de multinacionais
e de seus asseclas promotores de tecnologias ultrapassadas com o único
objetivo de lucrar – vai aos poucos tirando a gravata, depois o paletó do
terno e finalmente a camisa, revelando por baixo dele sua indumentária
característica marcada pela presença dos tons negros – oposição à assepsia
publicitária, e verde – referencia direta à busca de reconexão do homem
com a natureza, assim como de plugues P10 ícones dessa reconexão que
não nega a tecnologia mas sim os aspectos monetaristas que atravancam o
avanço de tecnologias como as energias limpas e renováveis.
Ato II: Little Bob’s New Toy - Sexual initiation with a multifunctional
robot – Essa faixa fala de sexualidades emergentes e polêmicas no contexto
pós-humano, ela traz a história de um mentor que compra para o seu pupilo
um robô multifuncional para realizar sua iniciação sexual. Nesse caso um
ciborgue substitui um humano nesse papel, reconfigurando o prazer e os
desejos do jovem, gerando nele taras tecnofetichistas. Trata da indústria do
entretenimento investindo maciçamente no sexo pós-biológico, na busca
de prazeres instantâneos. O vídeo exclusivo criado para a performance é
baseado em servomecanismos sexuais maquinico-orgânicos e conclui com
a metáfora de sangue cobrindo a tela, representando a violência incontida
do ato. Durante a música, Edgar Franco performatiza com gestos obscenos
61
ART

a penetração em um robô multifuncional, essa é um dos momentos mais


polêmicos da apresentação e que já resultou em pessoas abandonando a
sala de espetáculo. Adiante tratarei detidamente desse assunto.
Ato III: Os Mistérios Insondáveis – O conceito que engendra música e
vídeo é o da dimensão inescrutável do homem e da existência, tudo aquilo
que nós não compreendemos apesar de todos os avanços tecnológicos.
Nesse caso o destaque é dado pelas coincidências, e o performer recita
a letra de forma ritualística, ela diz “Ao mesmo tempo mil borboletas
azuis pousaram sobre a testa de mil garotas virgens nos mais distantes
pontos da Terra e ninguém percebeu. Os mistérios insondáveis das falsas
coincidências.”
Ato IV: Penetrating The Virgin Bioport – Este ato é inspirado pelo filme
eXistenZ, do cineasta canadense David Cronenberg, no filme a bioporta é
um novo orifício hipertecnológico, aberto na base da coluna vertebral no
qual se conecta o console de um jogo de realidade virtual que é vivo, feito
de partes de anfíbios transgênicos e alimentado pelo sangue do corpo do
usuário. A performance enfatiza a erotização desse novo orifício, durante
sua execução uma performer tem uma bioporta aberta em suas costas
com o auxílio de um plugue P10, numa simulação que envolve um vídeo
exclusivo, efeitos de mágica eletrônica e sangue artificial.
Ato V: CyberPajelança – Este ato seria o ápice da performance, trata-se
de uma música que evoca um clima xamãnico, de ritual de incorporação de
totem ou uma pajelança. Nesse caso a faixa propõe conceitualmente um mix
das realidades vegetais - o acesso a níveis transcendentes de consciência
através do uso de tecnologias avançadíssimas ancestrais, os enteógenos,
também chamados plantas de poder, como a Ayahuasca e o Psylocibe
Cubensis – com as realidades virtuais, a criação de cosmogonias e mundos
digitais visando também novas formas de expansão da consciência. Edgar
Franco, com seu alter ego Oidicius, adota a figura de um cyberpajé que une
as realidades vegetais às realidades virtuais na busca da transcendência. O
performer incorpora um totem tecnomístico, pois durante a performance,
na imagem do telão, através do uso de um efeito de realidade aumentada
(RA), em tempo real, surgem serpentes que saem das costas do músico,
tornando-o uma criatura híbrida pós-humana. O Posthuman Tantra é uma
das primeiras bandas do mundo a utilizar efeitos de RA.
Ato VI: Transhuman Werewolf’s Mutation – Esse ato propõe a
reconexão do homem com a natureza através da incorporação de genética
animal no organismo humano. Ao longo do desenvolvimento tecnológico
dos dois últimos séculos o homem foi se afastando de sua percepção de que
é um ente natural, apartando-se da natureza e das criaturas. A performance
propõe a hipertecnologia da manipulação do código genético como um
ouroboros, o processo de reversão pelo qual o homem voltará a reencontrar
sua dimensão natural, pois ao incorporar a genética de um lobo que
ainda vive de forma integrada com a natureza ele voltará a compreender
sua conexão natural e cósmica. Na performance fazemos uso de efeito
computacional de realidade aumentada e face detecting para transformar
- ao vivo - o rosto de Edgar Franco (Oidicius) em uma de suas criaturas pós-
humanas - um lobisomem transgênico - o efeito é visto no telão durante
62
ART
o tempo em que Oidicius canta a faixa “Transhuman Werewolf’s Mutation”.
Ato VII: Tênue Esfera Azul – É o ato final dedicado a uma reflexão sobre
as razões da mortalidade no contexto cósmico e as buscas obsessivas da
hipertecnologia por formas de extensão da vida ou por uma imortalidade
baseada em avanços tecnocientíficos. A performance conta com um vídeo
exclusivo com o qual o performer Edgar Franco interage e também com
efeitos de mágica eletrônica.
Ato VIII: Esse é o ato final que compõe a performance
BioCyberShamanism, trata-se de um ato que envolve sempre convidados
que darão sua interpretação ao universo ficcional da Aurora Pós-humana
e criarão algo especialmente para a apresentação em parceria com o
Posthuman Tantra. A primeira vez que o Ato VIII aconteceu foi em junho de
2011, durante o FAM – Festival Internacional de Arte e Mídia, em Anápolis;
o Posthuman Tantra teve como convidado especial o músico e performer
Eufrasio Prates; Prates utilizou como base para seu ato performático a
música Biotech Antenna do Posthuman Tantra e utilizando softwares
programados por ele desconstruiu a faixa produzindo música em tempo
real através da captação de movimentos do performer Edgar Franco e
do público presente à apresentação, realizando uma ação performática
bioscíbrida. A segunda apresentação do Ato VIII, aconteceu em agosto de
2011 durante a performance do Posthuman tantra no 10#ART – Encontro
Internacional de Arte e Tecnologia, no Museu da República, em Brasília,
desssa vez com a participação especial da performer convidada Rosangella
Leote que criou especialmente para o Ato VIII a performance “A Noiva Pós-
humana” com música do Posthuman Tantra. A ação performática contou
com a participação de Edgar Franco, como seu alter-ego pós-humano
Oidicius, improvisando uma relação dinâmica com a noiva pós-humana.

Referências:

CHARDIN, Teilhard. O Fenômeno Humano, São Paulo: Cultrix, 1994.

FRANCO, Edgar Silveira (Org.). Desenredos: Poéticas Visuais e Processos de Criação. 6. ed.
Goiânia: UFG/FAV; FUNAPE, 2010.

. Processos de Criação Artística: Uma perspectiva transmidiática. In: Edgar Franco.


(Org.). Desenredos: poéticas visuais e processos de criação, Goiânia: UFG/FAV; FUNAPE, 2010, p.
107-130.

FULLER, R. Buckminster. Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra, Via Optima:
Lisboa, 1998.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência, São Paulo: Aleph, 2009.

LEÃO, Lúcia. Cibernarrativas ou a arte de contar histórias no ciberespaço. In Derivas:


cartografias do ciberespaço / Lúcia Leão, organizadora. São Paulo: Annablume; Senac, 2004.

QUINTANA, Haenz Gutiérrez. Os Discursos da Ciência na Ficção, in: Revista On-line Com
Ciência (Tema: Ficção e Ciência, nº 59, outubro), Url: http://www.comciencia.br/reportage.
shtml, 2004.

63
ART

1 Edgar Franco. É artista multimídia, mestre em multimeios pela Unicamp, doutor em artes
pela USP, pós-doutorando em arte e tecnociência pelo LART – Gama/ UnB com bolsa PDJ CNPq
e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade
de Artes Visuais da UFG. oidicius@gmail.com, (62) 3268 3879

64
ART
Registros e ausências: arte contemporânea como desafio
para historiadores da arte
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira1

Resumo: Diferentes propostas artísticas contemporâneas utilizam


parâmetros peculiares para a criação de obras que desafiam os modelos
de institucionalização vigentes. Compreendida como uma das instituições
responsáveis pela circulação de parte do conhecimento sobre a Arte, as
narrativas da História da Arte têm encontrado uma série de dificuldades
metodológicas para enfrentar estratégias da produção artística atual,
destinadas a não mais construir um aparato memorial. Nos últimos 50 anos,
um elenco formidável de obras veio colocar em xeque sistemas de registro
e documentação, modelos de circulação e interação, discursos expositivos
e, em nosso caso, narrativas historiográficas. O próprio sentido da obra
enquanto “fonte” à disposição do escrutínio dos pesquisadores está em
questão diante de uma produção cada vez menos preocupada com sua
própria continuidade memorial. Procuro problematizar a questão de como
historiadores da arte, auxiliados por diferentes instituições de memória
(museus, galerias, mercado editorial, crítica e ensino especializados, entre
outros), inscrevem-se neste desafio.
Palavras-chave: arte contemporânea, memória, historiografia.
Abstract: Different proposals contemporary artistic use parameters to
create unique works that challenge existing models of institutionalization.
Understood as an institution responsible for the circulation of the knowledge
about art, the narratives of art history have found a number of strategies to
address methodological difficulties of artistic production today, for not more an
apparatus built memorial. In the past 50 years, a formidable cast of works has
brought into question of registration and documentation systems, models of
movement and interaction, narrative and discourse, in our case, historiography
narratives. The very meaning of the work as “source” available to the scrutiny
of researchers is in question before producing a less and less concerned with its
own continuity memorial.This paper attempts to discuss the question of how
art historians, aided by different memory institutions (museums, galleries,
publishing, criticism and education specialist, etc.), form part of this challenge.
Keywords: contemporary art, memory, historiography.

É muito conhecido o ato performático realizado pelo artista modernista


Flávio de Carvalho em 1956, denominado Experiência n.º 3. Nele o artista
passeou pelo centro da capital paulista trajando saiote com pregas, blusa
de mangas folgadas, meia arrastão e sandália de couro. Os registros
fotográficos nos apresentam uma “plateia” curiosa com a ousadia do artista
múltiplo. Ousadia superada por outra inquietante provocação: mais de
duas décadas antes, em 1931, Carvalho realizou a Experiência n.º 2 no centro
de São Paulo: de chapéu, andou em sentido contrário ao cortejo de uma
procissão de Corpus Christi. Ação que lhe rendeu agressões da multidão e
uma breve perseguição. Dessa experiência nada temos como registro.
65
ART

Na década seguinte, a obra-projeto 4 dias e 4 noites, de Artur Barrio,


realizada em 1970, no Rio de Janeiro, consistiu numa performance sem
espectadores, na qual o artista percorreu as ruas da cidade de modo
ininterrupto até a exaustão por 4 dias e 4 noites. O corpo no espaço da
cidade, dentro de uma psicogeografia aleatória, foi o elemento essencial
do ato performático. O limite do corpo que transita sem controle. Como no
caso de Experiência n.º 2, nenhuma fotografia ou qualquer imagem do ato.
Nada ficou como registro, além da memória do artista2.
A recente literatura está repleta de exemplos de obras cujos relatos
orais são os únicos elementos instituidores de uma memória sobre e da
obra, tanto no plano internacional, quanto local. A questão do registro de
obras efêmeras tem ocupado, há pelo menos 20 anos no Brasil, o tempo
de diferentes pesquisadores no campo das artes visuais, da comunicação
museal, do patrimônio, apenas para citar as áreas mais preocupadas
com este fenômeno. Os exemplos citados, de fato, possuem qualidades
diferentes quando o assunto é a manutenção memorial da obra. No caso
de Experiência n.º 2, de Flávio de Carvalho, artista pouco preocupado com
as narrativas-de-si e com a problemática do arquivamento, a ausência de
registros estava ligada à carência metodológica e tecnológica dos anos de
1930.
O problema realmente surge quando artistas de diferentes quadrantes
passam ativamente a evitar ou rechaçar o registro, como no caso de Barrio.
Nos últimos 50 anos, um elenco formidável de obras veio colocar em xeque
sistemas de registro e documentação, modelos de circulação e interação,
discursos expositivos e, em nosso caso, narrativas historiográficas. Os
exemplos de Barrio e Carvalho, como de muitos outros artistas antes e
depois deles, colocaram o próprio sentido da obra enquanto “fonte” à
disposição do escrutínio dos pesquisadores em questão. Para compreender
como a dinâmica de obras não registradas, construídas em processos
“imaterais”, exigem novos posicionamentos de historiadores, é preciso tecer
algumas considerações sobre o relacionamento entre a prática da arte e sua
manutenção enquanto narrativa memorial e historiográfica.
A compreensão da obra de arte enquanto elemento material perene deixou
de ser unânime por volta dos anos de 1960. Nessa época, tornou-se evidente
que a conservação de processos artísticos e seus suportes materiais eram
incompatíveis com muitas das poéticas concebidas desde então. Buscava-
se, em certo sentido, desfazer-se de algumas convenções que envolviam
acordos institucionais. No Brasil, os artistas começaram a problematizar a
homogeneidade do suporte, entendido por meio de sua essência material,
no mesmo período. Além de Barrio – e antes dele –, Hélio Oiticia, Lygia Clark,
Antonio Manuel, Nelson Leirner, Paulo Bruscky, Lygia Pape, Luiz Alphonsus,
Letícia Parente, Anna Bella Geiger tornaram-se nomes obrigatórios da
historiografia brasileira. Todavia, o predicado do registro veio como elemento
necessário para a construção narrativa que desse sentido memorial aos
happenings, às performances e às intervenções da época.
Fotografias e depois vídeos, e mesmo películas, além de toda
uma escrita documental foram e continuam a ser importantes peças
de recuperação das obras executadas uma ou mais vezes por seus
66
ART
produtores. Desde os anos de 1990 tomou forma o debate sobre como
alguns destes registros estavam ultrapassando seu estatuto meramente
documental para se tornarem elementos constitutivos do próprio
ato poético da obra. Em muitos casos, tal transformação contraria a
intencionalidade primeira do registro e o julgamento dos próprios
artistas, como é o caso de artistas como Barrio e Marina Abramovic,
que recusam considerar tais documentos como próprios do processo
artístico.
Todavia, o sentido histórico da arte em processo e sua circulação e
reapresentação ao público têm transformado muitos desses registros
em elementos de apreciação estética, até porque gerações posteriores
de artistas vêm utilizando o registro não mais como documento
representacional, mas como componente indissociável da trama poética
e especulativa que compõe as obras, como bem exemplifica a produção
de Anna Bella Geiger e Letícia Parente, já nos anos de 1970. A própria
imagem da arte tornou-se arte, justamente porque tal imagem, dentro
dos circuitos autorizados, comporta-se, em sua estética, de maneira
quase autônoma. A imagem da arte é a arte que vende a si mesma.
Esta é uma afirmação polêmica, que mobiliza diferentes campos de
conhecimento, afinal pergunta-se qual o limite entre o registro de uma
performance e a própria performance enquanto ato finito inscrito num
dado espaço-tempo.
Nesse jogo muitos atores ligados às redes de circulação da arte
dissolveram os limites entre os registros documentais e os registros
poéticos, o que ampliou nossa percepção sobre os impactos da arte e
seus públicos, mas ao mesmo tempo tem nos feito questionar sobre os
modelos de ressignificação que incidem sobre as obras inscritas num
passado recente. Atos provocadores, como encapar o Reichstag na
Alemanha (obra de Christo e Jeanne-Claude, 1971-1985) ou caminhar
ao lado de um marido europeu ” adquirido” graças a um anúncio no
jornal (obra de Tania Ostojic, apresentada na IV Bienal de Cetinje, em
2002), são domesticados, comercializados e recuperados por registros
convencionais: projetos no formato de desenhos, fotografias e imagens
digitais.
Essa utilização do registro fotográfico, fílmico ou videográfico de
processos relacionais, de performances e de intervenções artísticas em
espaços públicos ou institucionais como componentes poéticos mais
recentemente mostra-nos que os artistas passaram a se posicionar
diante do universo imagético. Esse posicionamento busca o domínio de
narrativas antes consideradas exteriores à obra propriamente dita. De
fato, como nos lembra Jacques Rancière 3, os artistas contemporâneos
estão apenas reagindo às apropriações realizadas pela cultura midiática.
Os registros são manipulados como elemento positivado no processo
de recuperação e atualização dos trabalhos “imaterais”. Funcionam
como desdobramentos narrativos sensivelmente atrelados aos atos
fundadores, que passam a depender deles numa complexa dimensão de
virtualidade.
Atualmente, a sensível maioria dos artistas dedicados à experimentação
67
ART

tem no registro um elemento múltiplo crucial para a constituição da base


memorial de suas práticas, antes e depois de um dado ápice poético, seja
ele o momento de realização da performance, seja a reação ilustrada de
um determinado público. A tecnologia tem mesmo eliminado o sentindo
temporal de antes e depois, numa coabitação entre tempos que tornam o
registro um próprio essencial para a circulação de determinado ato criador.
Pouco a pouco a ética de tais procedimentos volta-se para a estética do
arquivamento e reapresentação contínuos.
Paradoxalmente, o arquivamento da experiência da obra “imaterial”,
por meio dos registros, faz surgir a ausência da obra, como objeto, porque
se tornou uma experiência não permanente. Do mesmo modo, o arquivo
apresenta-nos uma escrita sobre a obra (vídeo, fotografia, imagens digitais
etc.). Uma presença traduzida em outra linguagem. Presença mediada, que
exige conhecimento do pesquisador para compreender a extensão e as
propriedades apropriadas pelo registro.
Historiadores da arte voltados para a história do tempo presente, aquela
preocupada com a problemática imbricação entre memória e história, já
se habituaram a identificar os diferentes níveis de registro da arte, daquele
que navega entre o mero discurso documental, por vezes didático, até as
ambições do registro-arte, elaborado numa perspectiva poética. Entretanto,
continuamos diante de um problema diverso ao recuperarmos os exemplos
de Barrio.
Se o debate sobre a competência do registro em oferecer pistas ou
vestígios do que foi a poética da obra, no momento de sua realização, é
demasiadamente polêmico e inconcluso, o debate entre historiadores da
arte de obras “imateriais” que não se apresentam pela forma de registros
imagéticos ainda não tem sido suficientemente enfrentado. Se no caso dos
registros de obras há um potencial para a relação dialógica entre o sujeito-
obra e o sujeito-pesquisador, quando a obra deixa-se verificar apenas
pela memória de artistas e (quando possível) de espectadores, toda uma
dimensão de contínua reinterpretação torna-se refém de outra ordem: a do
relato, oral ou escrito. Deixamos o plano da arte para o plano complexo do
testemunho. Um problema mais amplo que inquieta historiadores há pelo
menos 50 anos.
Historiadores da arte estão pouco familiarizados com aquilo que foi
denominado como a crise de testemunho e que mobilizou pensadores
tão díspares como Hannah Arendt, Andreas Huyssen, Tzvetan Todorov,
Paul Ricouer, Beatriz Sarlo, Joel Candeau, Annette Wieviorka, entre outros.
Essa crise do relato testemunhal encontrou, na impossibilidade de narrar
a experiência traumática por inteiro, seu problema fundador. O tema do
Holocausto foi o divisor de águas dessas questões políticas entre o narrar
e o calar. Questões que despertaram todo um campo incerto no processo
narrativo e mnemônico e seus usos e abusos.
Paul Ricoeur debruçou-se demoradamente sobre a questão de
como o relato memorial está intrinsecamente ligado a uma dimensão
política da narrativa. Ricoeur questiona: “Por que os abusos da memória
são, de saída, abusos do esquecimento?” 4. A resposta reside no fato de
68
ART
que, antes do abuso, há o uso. Da mesma maneira que não é possível
lembrar-se de tudo, não é possível narrar tudo, o que torna cada narrativa
um ato de seleção. “Alcançamos, aqui, a relação estrita entre memória
declarativa, narratividade, testemunho, representação figurada do passado
histórico” 5, pois, em cada ato de seleção, há a presença das estratégias de
esquecimento, uma vez que, para narrar algo de alguma forma, é preciso
não narrar de tantas outras formas. Daí o esquecimento poder ser tanto
ativo – quando acarreta um deficit de memória ideologicamente definido
– quanto passivo – quando a manifestação do esquecimento não delibera
sobre os agentes do narrado. O testemunho é, portanto, uma tradução tão
complexa quanto qualquer outro registro, com o complicador de não nos
oferecer uma dimensão imagética socialmente compartilhada.
Graças à crise do testemunho enquanto elemento matricial para a
engenharia das narrativas historiográficas, o plano memorial passou a ser
um problema para a ética veritativa em que estavam inscritos os processos
metodológicos da História. Em nosso problema particular, passamos a
depender exclusivamente dos testemunhos dos artistas e espectadores
para a reapresentação de uma obra que não mais poderia ser visualizada.
As tensões de sentidos entre artistas, público, crítica e historiadores da arte
perdem um elemento crucial: a obra enquanto instituição reapresentada.
O testemunho, de ordem biográfica, passa a ser, em muitos casos, o único
elemento de reconstituição de uma obra à qual, por vezes, nem o público
teve acesso.
O que temos então como fonte é uma certa tradição da memória
instaurada como soberana. É fato que essa questão da memória subjetiva
tornada memória coletiva pelo testemunho não é um problema para o
artista e, sim, para os sistemas instauradores de legitimidade, como as
narrativas da história da arte. Narrativas presas ao relato testemunhal
carregado do presente que não possui outras fontes ou registros que
permitam submetê-lo a comparações críticas. A obra é aquilo que é
dito dela e nada mais. Para os artistas, evita-se ancorar suas obras a uma
“indústria cultural da memória”, segundo terminologia de Beatriz Sarlo 6. Já
para os historiadores, abre-se um momento problemático, que foge a toda
tradição metodológica que institui a disciplina desde o século XVIII: Como
fazer uma história da arte sem a obra ou seu registro?
Parte considerável da crítica e da história da arte atual ainda está ligada
a conteúdos nocionais próprios às vanguardas históricas, como o gosto
pelo ineditismo, a recusa do passado desqualificado, a posição ambivalente
de uma arte ao mesmo tempo efêmera e substancial (eterna). A maioria
dos historiadores da arte ainda estabelece, entre as obras e seus contextos
constituivos, uma dicotomia hierárquica que enfatiza a abstração da maior
parte das obras e a realidade dos contextos formadores. Nessa dicotomia,
as obras funcionam como documentos que revelam ou refletem um autor,
um lugar, um tempo ou uma cultura histórica coerente e relativamente
unificada, mas o desejo de interpretar as obras desse modo reduz sua
complexidade.
Temos de lembrar que classicamente a história da arte se constituiu por
meio de um sistema a posteriori, no qual o sentido não está ligado apenas à
69
ART

obra em si, mas também à maneira como essa obra se inscreveu no tempo
segundo múltiplos remanejamentos, segundo os processos tipológicos
e os toponímias autorizadas. O sistema a posteriori é entendido, em
primeiro lugar, como um fenômeno que intervém ulteriormente para dar
inteligibilidade ao passado, mas se define também como um suplemento
de sentido que só se desdobra mais tarde, reforçando uma cadeia
teleológica, recusando, por exemplo, obras que possuem uma genealogia
duvidosa. A ausência da obra cria um problema grave para tal sistema, ao
mesmo tempo pode nos servir para repensar nossas práticas metodológicas
diante dos processos que nos oferecem a obra enquanto materialidade ou
desdobramento (registro).
Eis uma questão que coloca o historiador da arte diante de todo um
conjunto de problemas próprios a outros campos da história. Da mesma
forma que artistas contemporâneos estão empenhados há décadas em
dissolver as fronteiras entre a prática artística e o cotidiano ordinário,
desmistificando, por um lado, o sentido idealista atrelado ao fazer arte e,
de outro, ainda mitificando o lugar social do artista. Alguns artistas que se
negam a construir processos memoriais para suas obras estão exigindo que
se dissolvam algumas fronteiras entre historiadores da arte e os demais
campos do conhecimento preocupados com narrativas sobre o passado
(historiadores, antropólogos, cientistas socais, literatos, etc.)
O desafio para nós, narradores de um dado passado, está diante de
uma obra que leva, à radicalidade, sua inspiração “imaterial”. Teremos
que procurar nossas fontes fora de uma inspiração individual tornada
obra. Procurá-las, talvez, no remodelamento, na reapresentação e na
recontextualização da obra pela inspiração individual tornada testemunho,
enfrentando todas as indeterminações que isso acarreta.
Ao contrariar os sistemas narrativos legitimadores, os artistas nos
forçam a repensar a prática de compreender suas obras, expondo quanto
historiadores têm sido cúmplices “a favor de uma idéia do curso da
história da arte e da situação da arte”. Isso porque “ainda estamos presos
a um sentido de arte cada vez menos compreendido, que conseguimos
identificar apenas no quadro de sua história prévia” 7.
As obras não registradas lembram-nos de que a liberdade de
interpretação própria ao universo da arte não significa apenas encadear
variantes mais ou menos complexas escondidas sob um jargão autorizado;
também não é algo que fique apenas no domínio do gosto ou da fantasia
individual, contrariando muitos teóricos relativistas. A liberdade deriva do
fato de que é preciso inventar algo que não existia até então: aquela mesma-
outra obra numa dada época. Construir narrativas possíveis é, sobretudo,
compreender que a obra se liberta através do gesto da interpretação.
Liberta-se de uma identidade na qual a tradição tinha tentado paralisá-la.
Desta forma, essa negociação entre obra e intérprete talvez venha a ser
o grande desafio para a compreensão dos trânsitos culturais por meio de
uma história da arte avessa aos enquadramentos ilusoriamente universais e
autônomos 8. Afinal, para além das possibilidades individuais dos produtores
e intérpretes das obras de arte, há uma rede de instituições que tenta, a
70
ART
seu modo e finalidade, estabelecer sentidos unívocos ou dominantes para
os objetos que acolhem ou interpretam. Os usos que essa rede efetiva
sobre determinadas produções podem, em boa medida, ser percebidos
pelos processos discursivos que os legitimam dentro de instâncias tão
complementares quanto concorrentes como a história da arte, a estética, a
crítica e a pedagogia. O exemplo de 4 dias 4 noites só pode frequentar uma
narrativa histórica graças à legitimidade de seu autor, porque sua própria
existência interpretativa é precária.
É claro que estamos diante de uma minoria de artistas e de atos isolados,
mas que se tornaram desafios prementes à prática historiográfica. Se, para
esta minoria de artistas, não há sentido em produzir uma memória da arte,
como discutir a obra de determinado artista que pode apenas avisar, por
meio de redes sociais, que realizará uma performance pelas ruas de uma
grande cidade, mas que além de não registrá-la se recusa a comentá-la?
Será que essa obra existiu? E, se a obra não existe enquanto discurso, como
produzir uma narrativa histórica? Como instituir uma legibilidade e uma
legitimidade para ela? Sem a obra e sua legitimidade há artistas? Se não há
arte nem artistas, o problema parece resolvido, pois para que serviriam os
historiadores da arte?

1 Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor Adjunto do Departamento de


Artes Visuais/IdA/UnB e docente consorciado no curso de Museologia na mesma universidade.

2 FREIRE, Cristina. O latente manifesto: arte brasileira nos anos 1970. In: GOLÇALVES, Lisbeth
R. (org.). Arte Brasileira no século XX. São Paulo: ABCA: Imprensa Oficial, 2007, p.237.

3 RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negreo,
2010.

4 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François [et al.].
Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p.455.

5 idem.

6 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de


Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007.

7 BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Tradução de Rodnei
Nascimento. São Paulo: Cosac Naify, 2006,p.135

8 idem, p.24.

71
ART

A experiência estética: consciência, linguagem e narrativa


Fernando Fogliano1

Resumo: A Neuroestética, campo emergente do conhecimento, traz, a


partir dos avanços científicos oriundos das neurociências, contribuições
importantes no entendimento do fenômeno artístico. O objetivo neste
texto é refletir sobre a experiência estética. A experiência consciente, de
difícil definição, é um aspecto chave para o entendimento de aspectos
do papel da Arte como estratégia cognitiva. Nesse contexto, linguagem e
experiência estão profundamente interligados. A questão da experiência
concreta do indivíduo no seu ambiente constitui a base através da qual
compartilha e troca com seus pares, por meio da linguagem, experiências
subjetivas. A atenção é um aspecto da experiência consciente importante
neste contexto e pode ser relacionada ao incremento da sensibilidade do
indivíduo e de seu grupo social para padrões ambientais de regularidade.
Palavras chave: neuroestética, linguagem, experiência consciente,
narrativa
Abstract: Emerging scientific field of investigation, neuroaesthetics based
on advances of neurosciences brings new possibilities to the understanding
of artistic phenomena. The intention here is to reflect about the conscious
experience. Hard to define, this concept may be considered a key aspect to
the Arts’ role as cognitive strategy. In this context, language and experience
are deeply linked. The question of the concrete experience of the individual in
its environment constitutes the base through which it shares and exchanges
with its peers, by means of language, subjective experiences. Attention is
an important aspect of conscious experience and might be related to the
increment of sensibility of the individual, and its social group, for ambient
patterns of regularity.
Keywords: neuroaesthetics, language, conscious experience, narrative

Ainda pode causar surpresa para alguns, colocar lado a lado campos
do conhecimento, ou da atividade humana, distintos ou díspares. Isso
acontece mesmo depois do surgimento de campos multidisciplinares do
conhecimento como as teorias que exploram a Complexidade. Ganhou
importância, por exemplo, a Ecologia e a visão integradora que ela
proporciona. A distinção entre os campos do conhecimento é, na visão
de Wilson (1999), “artefato da erudição”. As ciências naturais fornecem
o suporte epistemológico necessário para que se possa debruçar sobre
questões, das mais variadas naturezas, a respeito do universo que nos
cerca. Uma das consequências desse tipo de abordagem é a necessidade
de que se considere o conhecimento como um corpo único e complexo;
a percepção de que este constitui um organismo fragmentário constituído
por um composto de disciplinas autônomas é ilusória (Fogliano, 2002).
“A confiança na consiliência é o fundamento das ciências naturais. Pelo
menos para o mundo material, o impulso tende esmagadoramente à unidade
conceitual. Fronteiras disciplinares dentro das ciências naturais estão
72
ART
desaparecendo, para ser substituídas por domínios híbridos mutáveis onde
a consiliência está implícita. Esses domínios estendem-se por vários níveis de
complexidade, da física química e química física à genética molecular, ecologia
química e genética ecológica. Nenhuma das novas especialidades é considerada
mais do que um foco de pesquisa. Cada uma é uma indústria de ideias originais
e tecnologia em avanço.” (Wilson, 1999, p.9-10)

A idéia do conhecimento consiliente deveria ir para além das


ciências naturais. Esta perspectiva do conhecimento é uma demanda da
contemporaneidade.
Historicamente, em especial nas últimas décadas, temos visto a ciência
voltar seus instrumentos e métodos de observação para questões que
antes somente poderiam ser tratadas através de silogismos e da observação
qualitativa dos fenômenos. A Tomografia por Emissão de Pósitrons, por
exemplo, abriu enormes possibilidades para os estudos do cérebro. Essa
técnica de imageamento permitiu um novo tipo de acesso observacional
das dinâmicas funcionais do cérebro, proporcionando um acúmulo sem
precedentes de conhecimento sobre o mais complexo órgão do corpo
humano. No final da década de 1990, que ficou conhecida como a década
do cérebro, os neurocientistas sentiram-se aptos a expandir linhas de
investigação como aquelas iniciadas pela escola da Gestalt em 1920, que
posteriormente teve contribuições importantes como as de Rudolf Arheim.
No século XXI as ciências cognitivas continuaram seu caminho evolutivo
dando origem a uma série de linhas de pesquisa e originando novos
campos do conhecimento como a Neuroestética (Onians, 2007, p. 07).
Nesse processo de desenvolvimento, novos achados puseram em
cheque algum conceitos, em muitas áreas do conhecimento, de há muito
estabelecidos. Lakoff e Johnson (1999, p.03) consideram que as conquistas
realizadas pela ciência cognitiva implicam em que mais de dois milênios de
especulação filosófica a priori encontrem seu final. Devido aos avanços da
ciência, a filosofia não pode mais ser a mesma. Para Gibbs (2007, p. 1-13)
a separação que se estabelece na filosofia tradicional entre corpo e mente
impõe sérios limites aos estudos acadêmicos da vida mental. Platão via o
corpo como uma fonte de distração na vida intelectual que necessitava
ser erradicada na prática da filosofia. Essa mesma perspectiva pode ser
encontrada nos escritos cristãos, quando Santo Agostinho, no século V,
referia-se ao corpo como origem do pecado e da fraqueza espiritual.
A separação entre mente e corpo e a organização hierárquica tendo a mente
sobre o corpo assombra a história da filosofia ocidental desde Platão, Aristóteles
e Santo Agostinho até Descartes e Kant. (Gibbs 2007, p. 3)

Para Descartes o fenômeno mental não tem lugar no mundo físico. O


filósofo teve de supor a existência de um tipo de matéria a res cogitans,
indivisível e intangível, para dar suporte à existência da mente, seus
pensamentos, desejos e volições. O dualismo cartesiano estabeleceu uma
tradição filosófica no ocidente que cristalizou o corpo como um objeto
sólido e o self, particularmente a mente, de natureza etérea, infundida
misteriosamente no corpo. Damásio (1996) vai refere-se ao dualismo
cartesiano e à necessidade de superá-lo diante das evidências científicas
73
ART

que demonstraram em que lugar, no cérebro, se realiza o pensamento


emocional e sua importante influência sobre a razão. Nos anos 1950,
avanços na linguística, que dependeram do uso de computadores e de
complexos softwares, permitiram visualizar como processos cognitivos
podem ser gerados de formas complexas usando representações de coisas
externas ao computador. O cérebro pôde ser imaginado em analogia a um
computador e, com o auxílio da matemática, desenvolveu, em conexão
com a inteligência artificial, conceitos que foram levados para a Psicologia
expondo o simplismo da abordagem behaviorista, incapaz de dar conta de
todas as complexidades do comportamento humano (Stapp, 1993, p.21).
Uma observação superficial permite considerar que impactos dos
novos conhecimentos científicos são melhor suportados quando incidem
sobre o próprio campo científico. Contudo quando estão em jogo ciências
e humanidades, as dificuldades parecem avolumar-se. Um exemplo
emblemático dessas dificuldades pode ser encontrado quando se lê o
comentário de Gombrich (2000, p. 17) sobre o artigo de Ramachandran
e Hirstein (1999), “The science of art: A neurological theory of aesthetic
experience”. Em sua considerações o célebre historiador da arte busca
desqualificar a opinião dos cientistas afirmando que:
Para o historiador de arte, é evidente que para os dois autores a “noção de arte”
é de data recente, e não compartilhada por todos. Eles clamam: “o propósito da
arte, certamente, não é meramente descrever ou representar a realidade“ isso
pode ser feito facilmente com uma câmera “mas para realçar, transcender, ou
mesmo para distorcer a realidad” (Ramachandarn and Hirstein, p.16). Eles não
explicam como alguém pôde fotografar Paraíso ou Inferno, a Criação do Mundo,
a Paixão de Cristo, ou as escapadas de deuses ancestrais “ todos assuntos que
podem ser encontrados representados em nossos museus. Também não é
correto generalizar a partir de certas convenções indianas de representar-se o
nu feminino, do mesmo modo como é para a tradição acadêmica de tomar a
Venus de Medici para o mesmo propósito. Mesmo uma rápida visita aos grandes
museus poderia servir para convencer os autores de que poucas exibições
conformam-se às leis que eles postulam. (Gombrich, 2000, p.17)

Massey (2009, p.18) reflete sobre a resistência entre os campos do


conhecimento, que ele sintetiza como um embate entre o “como” e o “por
que”. O autor busca reconhecer a força e as deficiências de cada campo,
reconhecendo como a ciência pode ser mais eficiente no raciocínio analítico,
enquanto as humanidades o são quando se trata de sintetizar conceitos. Para
isso exemplifica o quanto a neurologia é adequada na localização, no cérebro,
dos componentes da experiência estética, mas é deficiente em oferecer uma
melhor compreensão da sobre a produção de “A flauta mágica”, de Mozart. A
neurociência é adequada para conectar certas características dos processos
estéticos com eventos específicos no cérebro. Contudo, artistas e espectadores
estão engajados na integralidade dos processos, estão interessados na
fenomenologia do evento artístico muito mais do que em seus aspectos
científicos (Massey 2009, p.19). Não obstante, os artistas estão hoje utilizando
sensores de padrões da atividade neuronal na busca de estabelecer vínculos
entre as narrativas de suas experiências estéticas com o interator. Este fato nos
obriga a perceber o quanto estão imbricados os campos do conhecimento e
que avanços científico e tecnológicos reverberam por todas as áreas da cultura
74
ART
e do saber. A busca pelo conhecimento, independentemente da abordagem
metodológica, encontra dificuldades inerentes a quaisquer dos métodos
empregados.
Ao reconhecer possibilidades e limitações metodológicas inerentes às
ciências e às humanidades, não se está necessariamente considerando a
possibilidade de reduzi-las a um denominador comum. Ao contrário, esta
diferença entre pontos de vista e métodos deve ser celebrada como um
importante aspecto da diversidade de alternativas na busca pelo conhecimento.
Celebra-se, portanto, sua irredutibilidade (idem, p. 22). É da maior importância,
no entanto, reconhecer a necessidade para o estabelecimento de pontes
conceituais entre os campos. Essa busca não deve ser confundida como mero
exercício epistemológico, mas como um imperioso que emerge das demandas
apresentadas pelas novas tecnologias que nos confrontam, de forma acelerada,
com questões, concretas e conceituais, cada vez mais complexas e multimodais.
O fato de estarmos nos defrontando com essas questões é um importante
sintoma de que mudanças paradigmáticas estão no horizonte dos eventos.
Os avanços científicos, principalmente aqueles oriundos das neurociências,
e agora da neuroestética, estão no centro daquilo que Bryson (2003, p.19)
considera a nova arena do desenvolvimento cultural: “a interface neural”.
As novas perspectivas proporcionadas pelos avanços científicos permitem-
nos considerar os produtos da arte como capazes de acessar diretamente a
atividade interna do cérebro com o potencial de criar novas configurações de
imagem, espaço e tempo, de forjar novos caminhos no nexo mente/mundo. A
experiência da realidade decorre de construtos sociais intersubjetivos e pode
ser considerada a partir do ponto de vista de que ela emerge do acionamento
coletivo de sinapses neuronais, dos sistemas sensoriais e da consciência,
colocando no centro de nossa existência não o significante, mas padrões
neuronais e a ação no meio ambiente.

Experiência estética e linguagem

Kaptelinin e Nardi (2006), na busca por construírem um campo teórico


integrador para os estudos sobre a relação homem-máquina e a questão
da interatividade, discutem a unidade entre a consciência e a atividade.
Esta última constitui o cerne de sua Teoria da Atividade que é definida
como uma “interação intencional do sujeito no mundo, um processo no
qual transformações mútuas entre os pólos ‘sujeito-objeto’ são produzidas”
(idem, p. 31). Apoiados nos conceitos oriundos da escola russa de psicologia,
notadamente nas ideias de Vygostky, os autores vão definir o conceito de
mente humana com sendo:
Intrinsecamente relacionada a todo conceito de interação entre seres humanos
e o mundo, um órgão de tipo especial, emergindo e desenvolvendo-se para
fazer a interação com o mundo bem sucedida. (Kaptelinin e Nardi, 2006, p.37)

A partir dessas considerações pode-se concluir que a consciência


emerge das experiências interativas que levamos a cabo no meio ambiente.
A idéia de que o corpo e a mente são inextricáveis estão não somente no
âmago da filosofia contemporânea, como vimos acima, mas também nas
75
ART

teorias da linguagem. Feldman (2006) ao considerar a base neural para a


linguagem busca na experiência subjetiva a ideia de que a linguagem se
origina na experiência concreta. Para o autor:
O pensamento é estruturado na atividade neural.
Linguagem é inextricável do pensamento e da experiência.(Feldman, 2006, p.3)

No contexto da Teoria Neural da Linguagem esta evolui da concretude


à abstração (Fogliano e Camargo, 2010). A experiência subjetiva é a base
a partir da qual palavras culturais, técnicas, abstratas e conceitos surgem.
Neurônios e corpo são centrais nesse processo: pessoas, como sistemas
neurais, compreendem ideias abstratas porque esses conceitos são
mapeados e ativados em circuitos cerebrais envolvidos na experiência.
A metáfora, portanto, não é apenas um truque linguístico ou figuração
cultural. Ramachandran e Hirstein (1999) também consideram a metáfora
um mecanismo cognitivo fundamental para a produção da linguagem
quando a definem como um “túnel” mental entre dois conceitos ou
perceptos que parecem dissimilares:
Quando Shakespere diz “Julieta é o sol” ele está apelando para o fato de que eles
são ambos mornos e provedores (não o fato de eles moram no nosso sistema
solar). Ramachandran e Hirstein (1999)

Através de imagens realizadas com o uso de Tomografia por Emissão


de Pósitrons, Ramachandran e Hubbard (2003) descrevem os mecanismos
neuronais e as estruturas cerebrais relacionados com a produção da
metáfora. O discurso sobre a metáfora e a cultura deu forma a uma
mudança paradigmática naquilo que concerne ao nosso entendimento
sobre criatividade e aquisição de conhecimento. Desses estudos é possível
considerar que a linguagem e a cultura tem seus mais importantes
mecanismos de desenvolvimento apoiados na maquinaria neuronal.
Experiência, linguagem e consciência emergem da fervilhante atividade
dos neurônios e dão forma à realidade, produzem nossa individualidade, os
grupos sociais e a todas manifestações concretas e conceituais da cultura.
Compreender a natureza da experiência subjetiva, ou qualia, como o
termo foi cunhado no âmbito da filosofia, é uma tarefa muito complexa
e situa-se além dos objetivos desta discussão. Para a reflexão que aqui
se propõe, as idéias de Aleksander (2005) bastarão para que as ideias
em jogo nesta reflexão se acomodem coerentemente. Segundo aquele
autor, engenheiro envolvido na construção de sistemas computacionais
conscientes, a consciência pode ser considerada a partir de cinco axiomas
básicos (Aleksander, 2005, p.35):

• De que somos parte distintas do todo, de que existe


algo “lá fora”. O Self.

• De que a percepção do mundo se mistura com


experiências anteriores. A memória.

• De que a experiência do mundo é seletiva e

76
ART
intencional. Intencionalidade e sensibilidade.

• De que somos capazes de pensar sobre as coisas


antes delas acontecerem, de forma a podermos
tomar decisões. Antecipação.

• De que temos sentimentos. Emoção.


Embora não tenhamos uma definição de consciência, o axiomas acima
permitem-nos conhecer que aspectos ela envolve. Isto serve tanto para o
desenvolvimento de máquinas conscientes quanto para que possamos
aquilatar que aspectos estão presentes nas experiências de que tomamos
parte no mundo, bem como a produção da linguagem ou melhor,
linguagens e suas formas de articulação as narrativas.
É importante expandir o conceito de linguagem para além da linguagem
falada, a qual nos referimos normalmente quando pensamos no assunto.
Para Johnson (2007, p. 210) a cultura ocidental valorizou sobremaneira o
valor da palavra e a arte nunca foi considerada seriamente como um modo
essencial de engajamento com o mundo subjacente. Podemos tomar essa
afirmação e trazer para o campo da linguagem toda forma de engajamento
que fazemos com o ambiente? Se assim for, poderemos considerar a teoria
da linguagem como um campo unificado de estudos das linguagens das
palavras, sons, movimentos e todas as demais formas da expressividade
humana como a fotografia, o cinema, a música, o teatro, o design em todas
suas vertentes. Nas artes visuais, as imagens e seus padrões, qualidades,
cores e ritmos são portadores de significado (Fogliano e Camargo, 2010).
Nessa mesma direção Boyd considera que:
Nossas representações não estão confinadas à linguagem: elas podem envolver
ação e objetos ou imagens e música além de apenas, ou tão bem quanto, a
linguagem. (Boyd, 2009, p. 129)

Linguagem e narrativa “ Arte e experiência”

Boyd (2009) traz interessantes contribuições quando situa a arte no


cenário evolutivo onde também estão em cena as ciências cognitivas.
Para o autor o entendimento evolucionário da natureza humana começou
por reformular várias disciplinas do conhecimento como: psicologia,
antropologia, filosofia, economia, história, estudos políticos, lei e religião.
Nesse rol pode-se incluir a arte e a mente humana.
“Uma abordagem biocultural para a literatura convida ao retorno da riqueza
de textos e a multifacetada natureza humana que eles evocam. Mas também
implica que não podemos simplesmente voltar para os textos literários sem
assimilar o que a ciência descobriu a respeito da natureza humana, mentes e
comportamento ao longo dos últimos cinquenta anos, e considerando que
essas descobertas podem oferecer uma abrangente teoria literária.” ( Boyd, 2009,
p. 4)

A partir dessa perspectiva, a arte pode ser considerada um


77
ART

comportamento, um jogo estratégico projetado para engajar a atenção


humana através de seu apelo à nossa preferência para padrões de
informação inferencialmente ricos (idem, p.85). É importante sublinhar que
atenção é um dos aspectos da consciência e que, neste sentido, podemos
considerar que o jogo a que se refere Boyd é, em última instância, uma
estratégia para provocar experiências conscientes. Esse jogo se dá num
contexto complexo para permitir que mentes socialmente desenvolvidas,
especialmente mentes humanas, possam acessar maiores redes de
módulos de conhecimento abstrato ou concreto (ferramentas). Este acesso
habilita o enfrentamento a novos contextos, a avaliação da informação e a
produção de inferências e cenários para a tomada de decisão. Esse processo
se dá aparatado por sistemas emocionais, conforme descreve Damásio
(1996) em seu livro “O erro de Descartes”. Tais sistemas, como vimos,
constituem a consciência que também possui sua história evolutiva na qual
a emergência da linguagem protagoniza um papel decisivo. Nesse processo
evolutivo o mais complexo não suplanta o mais simples, mas o integra de
novas maneiras criando novos contextos, ou níveis de complexidade, que
propiciam o desenvolvimento de novas funções (idem, p.48). Esta pode
muito bem servir como uma definição para os fenômenos de emergência e
aplica-se da mesma forma à definição de metáfora.
Arte como mecanismo para cooptar a atenção do grupo, oferece um
interessante aspecto no entendimento da Arte e como produtor de coesão
social.
Para explicar a arte precisamos considerar a atenção. A arte morre sem ela,
como as pessoas desde Aristóteles notaram, ambos dentro e fora da explanação
evolutiva. A arte altera nossas mentes por que engaja e reengaja nossa atenção
desde os cantos de ninar até o cantarolar distraído. Contudo, a arte nunca foi
considerada como tendo evoluído para assumir o papel de ser um estimulador
da atenção nas vidas humanas. (Boyd, 2009, p.100).

Ramachandran e Hirstein (1999) ao descreverem a função do exagero na


busca do artista por capturar a essência das coisas e produzir no observador
um estado de espírito, ou emocional, escreveram:
Devem haver neurônios no cérebro que representem a forma sensual,
arredondada do feminino em oposição à forma angular do masculino e o artista
escolheu amplificar a “verdadeira essência” (a rasa) do corpo feminino movendo
bastante a imagem para o lado feminino do espectro feminino/masculino. O
resultado dessas amplificações é um “super estímulo” no domínio das diferenças
macho/fêmea. É interessante, nesse contexto, que as primeiras formas de arte
são frequentemente caricaturas de uma forma ou de outra, por exemplo, arte
rupestre pré-histórica descrevendo animais como bisões e mamutes, ou as
famosas figuras de “fertilidade” de Vênus. (Ramachandran e Hirstein, 1999)

É possível estabelecer um vínculo entre as idéias de Boyd e as de


Ramachandran e Hirstein. Uma das melhores maneiras de cooptar a
atenção do observador é oferecer-lhe um “super estímulo” capaz de
proporcionar-lhe uma rica experiência sensorial. Se assim for, o papel do
artista é inventar recursos linguísticos para construir narrativas capazes de
produzir estímulos sensoriais e chamar a atenção do grupo para aspectos
78
ART
abstratos, ou concretos, presentes nos embates com o meio ambiente. Na
maioria das vezes essa atividade, que faz do artista uma espécie de inventor,
está relacionada às técnicas e às tecnologias. As narrativas produzidas no
campo da Arte, como consequência do que se considerou até aqui, podem
ser vistas como uma estratégia cognitiva na busca por alternativas na
construção da realidade.

Considerações finais

O surgimento da neuroestética como área do conhecimento parece


apontar para o surgimento de novos paradigmas para a reflexão sobre a
produção de conhecimento em vários campos da Cultura. Dentre o campos
considerados, os da Arte e do Design talvez sejam daqueles onde haja um
grande, senão o maior, potencial para frutíferas reflexões. Ao considerar-se
a produção artística sob os novos prismas oferecidos pela neuroestética,
cria-se um novo patamar, de maior complexidade, tanto para a produção
quanto para a reflexão. Talvez o surgimento desse campo conceitual
marque o início do que futuramente poderá ser conhecido como o ponto
de inflexão da cultura humana em direção ao século XXI.

Referências Bibliográficas

ALEKSANDER, Igor. The world in my mind, my mind in the world: key mechanisms of
consciousness in people, animals and machines. Exeter: Imprint Academic, 2005.

ATAPP, Henry P. Mind Matter and Quantum maechanics. New York: Springer verlag Heidelberg,
1993.

BOYD, Brian. On the origino f stories: Evolution, cognition and fiction. Cambridge: The belknap
Press of Havrad University Press, 2009.

DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

FELDMANN, Jerome A. From molecule to metaphor: A neural theory of language. Cambridge:


MIT Press, 2006.

FOGLIANO, Fernando e Camargo, Denise. Linguagem e materialidade na experiência


fotográfica. Texto apresentado no núcleo de fotografia no XXXIII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, Caxias do Sul, RS, 2 a 6 de setembro de 2010.

. Fernando. Imagem e Ciência sob uma Perspectiva da Complexidade. Tese


de doutoramento apresentada no Programa de Comunicação e Semiótica da pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), 2002.

GIBBS, Raymond W. Jr. Embodiment and cognitive science. Cambridge: Cambridge University
Press, 2007.

GOMBRICH, E. H. Concerning ‘The Science of Art: Commentary on Ramachandran and Hirstein


in Journal of Consciousness Studies, vol. 7, no. 8/9, p.17, 2000.

JOHNSON, Mark. The meaning of the body: Aesthetics of human understanding. Chicago: The
University of Chicago Press, 2007.

79
ART

KAPTELININ, Victor e Nardi, Bonnie A. Acting with technology: Activity Theory and Interaction
Design. Cambridge: MIT Press, 2006.

LAKOFF, George e Mark Johnson. Philosophy in the flesh: The embodied mind and its
challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999.

MASSEY, Irving. The neural Imagination: Aethetic and Neuroscientific Approaches to the Arts.
Austin: University of Texas Press, 2009.

NEIDICH, Warren. Blow-Up: photography, cinema and the brain. New York: Distributed Art
Publishers, Inc., 2003.

ONIANS, John. Heuroarthistory: from Aristotle and Plyni to baxandal and Zeki. New haven:
Yale University Press, 2007.

RAMACHANDRAN, V.S. and Hirstein, William. “The Science of Art: A Neurological Theory of
Aesthetic Experience” in Journal of Counsciousness Studies, 6 6-7, pp. 15-51, 1999.

­­­ . V.S. and Hubbard, E.M. The Phenomenology of Synaesthesia in: Journal of
Consciousness Studies 10 (8):49-57, 2003.

1 Doutor em Comunicação e Semiótica de Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo.Professor e pesquisador do Centro Universitário do Senac.E-mail: fernandofogliano@
gmail.com

80
ART
Projetos Catavento e Amoreiras
Gilbertto Prado1 e Grupo Poéticas Digitais2

Resumo: Catavento (2011) é um projeto sobre o diálogo de céus e de


nuvens que se formam em função do local, da intensidade e da direção
dos ventos compondo uma projeção em tempo real. Amoreiras (2010) é
um projeto com arvores que foram plantadas na Avenida Paulista, em São
Paulo que através de “próteses poéticas” tem seu comportamento alterado,
causando movimentos involuntários nas folhas e nos galhos. Ao longo dos
dias, as árvores vibram em diálogo com a variação dos fatores de poluição,
numa dança de árvores, próteses e algoritmos, como um sintoma dos
diversos poluentes e poluidores. Os trabalhos artísticos foram realizados
pelo Grupo poéticas Digitais configurando distintos diálogos com forças da
natureza.
Palavras-chave: instalação interativa, artemídia, meio ambiente,
aprendizado artificial
Abstract: CATAVENTO ( Windmill ), 2011, is a project about the forming skies
and clouds dialogue in function of the location, intensity and direction of
winds. Amoreiras (2010), is an installation about autonomy, artificial learning,
nature and the environment. The main actors are five young mulberry trees
at Paulista Avenue, São Paulo’s cultural and economic hub. Each one of the
trees has an implanted poetical prosthesis, a device with the purpouse of
supplying, correcting, and enhancing a natural but compromised function,
thus guaranteeing the tree’s survival. The aim of this article is to present this two
recent experiments of the Poeticas Digitais Group.
Keywords: interactive installation, art media, environment, artificial learning

Catavento
Catavento é um projeto sobre o diálogo de céus e de nuvens que
se formam em função do local, da intensidade e da direção dos ventos
compondo uma projeção em tempo real. O trabalho considera os eixos
de Brasília (Asa Norte, Asa Sul etc.) como referência para a disposição dos
pontos cardeais sobre o mapa brasileiro, de modo que a obra traga, em
função da direção dos ventos, as nuvens de distintos pontos do Brasil,
configurando um diálogo simbólico de céus locais e imaginários. As nuvens
são formadas por partículas geradas por algoritmos a partir do vento local
que aponta para céus distantes e se compõem numa projeção em tempo
real.
O que opera nos fluxos é a força da própria natureza: a direção dos
ventos de Brasília elegendo o local cujo céu será gerado, no fluxo dos dados,
no fluxo da cidade, dialogando através da cor-céu e movimento-vento.
Os dados são captados por uma estação meteorológica (alinhada
com os eixos de Brasília), mais especificamente da biruta, do vento local,
na sua intensidade e direção. A composição visual do projeto é afetada
diretamente pelos dados recebidos. As “nuvens” são geradas por sistemas

81
ART

de partículas, por um algoritmo, normalmente utilizados para simular


fenômenos naturais como fogo, água, nuvem etc. O algoritmo do trabalho
foi desenvolvido para apresentar visualmente «flocos de nuvens» dentro da
palavra “céu”.
De acordo com a variação do vento (mais ou menos vento), a palavra
“céu” se desvanece com maior ou menor intensidade até desaparecer por
completo e tornar a surgir momentos depois. A direção do vento, por sua
vez, desloca a palavra «céu», mais para a direita ou para a esquerda, para
cima ou para baixo, etc. Ou seja, tem-se, o tempo todo, a composição
simultânea de dois movimentos que operam o trabalho: um movimento
«dentro» da palavra céu propriamente dita, que se avoluma e desaparece,
e o segundo movimento, que é o do vento que empurra para diversas
posições a palavra “céu”, também em função de sua direção e intensidade. A
biruta da estação integra a instalação como objeto visível no próprio local,
ficando assim perceptíveis para o visitante os movimentos e as variações
no instrumento de leitura, bem como a sensação da direção e velocidade
do vento no seu próprio corpo. Essa relação de presença potencializa
a efêmera sincronia com o vento, como se pudéssemos entrar no fluxo e
ajudar no arrastar e no compor do “Céu”. CATAVENTO foi apresentado na
exposição EmMeio#3, no Museu Nacional de Brasília, durante o evento #10.
ART, em agosto de 2011.
O Grupo “Poéticas Digitais” neste trabalho está composto por: Gilbertto
Prado, Silvia Laurentiz, Andrei Thomaz, Claudio Bueno, Daniel Ferreira,
Luciana Ohira, Lucila Meirelles, Mauricio Taveira, Nardo Germano, Sérgio
Bonilha, Tania Fraga, Tatiana Travisani e Val Sampaio.
http://poeticasdigitais.net/projetos/catavento/index.html

FIGURA 1 – Projeto Catavento

82
ART
Amoreiras

Cinco pequenas amoreiras foram plantadas em grandes vasos, na


Avenida Paulista, em São Paulo. A captação da “poluição” é feita através
de um microfone, que mede as variações e discrepâncias de ruídos, como
um sintoma dos diversos poluentes e poluidores. O balançar dos galhos é
provocado por uma “prótese motorizada” (disposta ao redor do tronco de
cada árvore, a prótese vibra, causando movimentos nas folhas e nos galhos).
A observação e o amadurecimento do comportamento das “árvores” são
possibilitados a partir de um algoritmo de aprendizado artificial. Ao longo
dos dias, as árvores vibram em diálogo com a variação dos fatores de
poluição, numa dança de árvores, próteses e algoritmos, tornando aparente
e poético o balançar, às vezes (in)voluntário-maquínico, às vezes conduzido
pelo balanço do próprio vento sobre as folhas.

Conceituação

Aos primeiros sons da manhã, uma “árvore” responde à poluição que


já começa a se depositar em suas folhas, movimentando-se para se livrar
da sujeira. Quanto maior o ruído dos motores, das buzinas dos carros e do
vozerio dos transeuntes na rua, mais a “árvore” balança.
As árvores novas e menores não sabem como lidar com esse ambiente
de barulhos e humores. Elas não sabem como balançar para espantar a
sujeira da cidade - são as “novatas”. Mas elas são capazes de aprender em
resposta ao ambiente e através da sobrevivência.
Amoreiras é um projeto sobre autonomia, aprendizado artificial,
natureza e meio ambiente. Os atores principais são cinco novas árvores na
Avenida Paulista, centro cultural e econômico de São Paulo. Cinco pequenas
amoreiras recém plantadas, que dão frutos vermelhos, drupas compostas
cilíndricas, infrutescências de textura suculenta, de sabor acidulado e
agradável, que amadurecem na primavera. A árvore tem folhas cordiformes,
denteadas, que servem de alimento ao bicho-da-seda; flores em amentilhos
e frutos vermelho-escuros, quase negros, comestíveis ao natural e muito
apreciados em geléias; amora, amoreira-negra, amoreira-preta, mora. São
árvores de plantio proibido nas avenidas das cidades por poluírem suas
ruas, com folhas que caem nos bueiros e frutos que atraem passarinhos e
mancham de maneira indelével as calçadas e as roupas dos passantes.
Cada uma das cinco amoreiras tem uma prótese implantada, um
dispositivo que visa suprir, corrigir ou aumentar uma função natural
comprometida, e, assim, garantir sua sobrevivência. Prótese de metal,
borracha e acrílico, conectadas a pequenos motores e a uma placa arduíno
- tudo isso é instalado no jovem tronco, que vai vibrar em diálogo com a
variação dos fatores de poluição. Cada árvore tem uma prótese similar, que
varia, porém, em função de suas peculiaridades e de sua anatomia.
Ao longo do dia, as “aprendizes”, inicialmente desajeitadas, passam a
reagir cada vez mais autonomamente em relação aos dados recebidos de
poluição, balançando-se quando há muito ruído (o que será uma baliza para
o reconhecimento do nível de poluição) e descansando quando a ameaça é
83
ART

menor. Até o final da tarde, já se nota diferenças em seus comportamentos,


o que demonstra que elas estão aprendendo e talvez também dialogando
entre si, intercambiando dados numa dança de próteses maquínicas,
varetas, borrachas e folhas.
A citação a seguir faz parte de um estudo de Biondi e Reissmann3 a
respeito da relação das árvores com a poluição nas grandes cidades:
Segundo Harris (1992), as folhas, o tronco e os galhos são as principais
partes de uma árvore que podem ajudar o observador a diferenciar uma
árvore saudável de outra que sofreu algum distúrbio. Tronco e galhos
podem apresentar baixo vigor quando apresentam poucas folhas, grande
exudação e furos. A aparência da brotação, ramos ou galhos, no tronco
principal podem indicar uma súbita mudança de condições ambientais,
injúria estrutural, doenças ou podas excessivas e/ou incorretas. Os
problemas com a poluição do ar são observados logo nas folhas, pois são as
partes que mais apresentam os sintomas causados por este fator. Os sintomas
são altamente variáveis, geralmente dependentes da espécie e do estado
de crescimento, do tipo e concentração dos poluentes, da extensão da
exposição da umidade, luz, temperatura, vento e outros fatores Heart
(1980). (Grifo nosso).
Citamos ainda:
Os parâmetros utilizados para a avaliação das árvores urbanas são
ainda bastante subjetivos. Na agricultura e na silvicultura, a avaliação do
desempenho das árvores é determinada pelas suas respectivas produções,
baseadas nos critérios referentes à qualidade e quantidade, de acordo com
seus objetivos. Já na área urbana, os critérios utilizados transcendem esses
valores qualitativos e quantitativos, porque o envolvimento com os valores
estéticos são bem maiores e mais difíceis de quantificar, devido a fatores
sentimentais e psicológicos. Atualmente, o monitoramento das árvores
urbanas vem sendo realizado na observância e mensuração de variáveis
que podem não estar informando o bom desempenho das árvores. Desta
forma, é premente a busca de outros parâmetros práticos e precisos para
facilitar a manutenção da arborização urbana. (Grifos nossos)”.
Dentro deste projeto, um desses parâmetros possíveis para a
manutenção da arborização urbana seria a noção de autonomia, presente
no processo de aprendizagem entre as árvores-ciborgue, de cintas
postiças e motorizadas, com seus “marca-passos poéticos”. Uma proposta
de aprendizagem artificial envolvendo arte, meio ambiente e novas
tecnologias, numa dança de folhas e balanço de troncos, que evidencia de
forma poética o balançar, às vezes (in)voluntário-maquínico, às vezes efeito
do próprio vento.

Descritivo

O Projeto Amoreiras é composto basicamente pelos seguintes


elementos:
- 5 amoreiras;
84
ART
- 3 microfones, que captarão os ruídos (um dos quais é responsável
pela leitura da trepidação do chão, decorrente da passagem do metrô e de
outras interferências) e funcionarão como sensores e coletores dos dados
para as árvores;
- 1 computador, que gerencia os dados das 5 árvores e retransmite as
informações;
- 5 placas arduino bluetooth (uma para cada árvore);
- 5 caixas de acrílico com 3 motores independentes, varetas e mecanismo
de transmissão (uma para cada árvore).
O comportamento de cada árvore é autônomo e se dá em resposta
à intensidade do som ambiente, também sendo influenciado pela
“personalidade” de cada árvore. A captura do som é realizada diretamente
por um patch escrito no Pure Data, que envia as informações para a
aplicação principal, desenvolvida em Java, via OSC. Já a “personalidade” de
cada árvore, é definida por duas variáveis, sorteadas no início de cada dia,
que definem o quanto cada árvore irá buscar imitar as suas companheiras e
o quanto o seu comportamento será perturbado de forma aleatória.
Cada árvore tem um algoritmo que determina como ativar seus
motores (via arduíno) de acordo com a atividade sonora. De uma maneira
geral, quanto maior o ruído, maior a atividade. É importante ressaltar que
há regras adicionais, como, por exemplo, a intensidade e a extensão da
vibração, para que os movimentos sejam suaves, ou o limite de duração de
tempo, período em que se pode balançar as árvores sem que elas sejam
danificadas.
As árvores podem “ver” o comportamento das outras árvores, de
modo que cada uma é influenciada pelo comportamento das vizinhas.
Essa capacidade é utilizada pelo algoritmo do trabalho para avaliar o
“comportamento” de cada árvore. Por “comportamento”, entendemos o
nível de ativação dos motores: quanto mais parecido for o comportamento
de uma árvore com o comportamento das demais, melhor avaliado será seu
comportamento.
Inicialmente, o algoritmo é “não habituado”, o que leva a comportamentos
“sem sentido” (por exemplo, as árvores balançarem mesmo sem que haja
ruído). Um algoritmo de aprendizado monitora o banco de dados e observa
constantemente o comportamento de cada árvore, comparando-o com a
atividade sonora, e tenta adaptar o algoritmo para que este possa agir de
maneira similar. Isto é: o algoritmo de aprendizado tenta fazer com que o
algoritmo de cada árvore chegue ao mesmo nível de ativação que os das
demais em uma dada intensidade sonora.
Existe uma grande variedade de algoritmos de aprendizagem; alguns
tão complexos, que podem ser aplicados até mesmo à simulação de
processos mentais humanos. Para este projeto, basta um algoritmo
simplificado, que atinja um nível de complexidade suficiente para que
o resulta do final seja interessante e emergente. O funcionamento seria
basicamente o seguinte: para as cinco árvores aprendizes, haveria equações
similares que guiariam seus comportamentos, com apenas uma variável
85
ART

adicional para cada uma. O aprendizado seria o processo de modificar o


valor dessa variável, até que as equações se aproximassem em reação à
excessiva poluição. De acordo com o resultado prático dessa abordagem,
os parâmetros poderiam ser regulados, de forma a obter o comportamento
desejado, que é indeterminado a priori para cada uma das distintas árvores,
gerando uma “dança da chuva” espontânea e coletiva.
Para a realização do algoritmo das amoreiras, nos orientamos pelos
princípios do jogo da vida, de John Conway. Isto é: temos um conjunto de
regras simples, que dão origem a um resultado complexo.
Entretanto, devemos observar que o comportamento final não é
especificado pelas regras, apesar de derivar delas4.
O que fazemos é aplicar princípios de vizinhança ao processo de
autoavaliação das amoreiras. Quer dizer: o comportamento de duas (ou de
apenas uma, se a amoreira estiver em uma das extremidades) amoreiras
adjacentes possui um peso maior do que o das amoreiras mais distantes
(o que poderia facilitar a ocorrência de comportamentos com possíveis
combinações de acionamento dos motores).
Todos os algoritmos citados acima são a princípio programados em Java,
rodando no computador5. Por conta das limitações de processamento da
Arduíno e da sua incapacidade de armazenar dados, a placa só será usada
como uma interface entre a aplicação desenvolvida em Java e os motores.
Também estão sendo utilizados o banco de dados MySQL, para registrarmos
o comportamento de cada amoreira ao longo da exposição, e um pequeno
sistema de monitoramento, escrito em PHP, que é acionado pela aplicação
em Java, em caso de erro6. Ao ser acionado, o sistema de monitoramento
envia e-mails aos integrantes do grupo, relatando o erro ocorrido.
Na prática, o resultado esperado é o seguinte:

• As árvores irão balançar isoladamente, de vez em


quando, de acordo com o ruído ambiente, de forma a
se livrar da poluição em suas folhas.

• As árvores irão agir de maneira inicialmente arbitrária


e ao longo do dia passarão também a dialogar entre si,
entrando cada vez mais em uma sintonia emergente.
Algumas observações:

• • As árvores são todas jovens e cada uma delas é


tratada como um indivíduo. Seus motores e caixas-
próteses são similares, mas não idênticas, adaptando-
se de forma adequada a cada uma delas, sem
machucá-las.

• • Ao término de cada dia, as “personalidades” das


árvores são alteradas de maneira randômica, de
forma a reiniciar o processo de aprendizagem. Isso
86
ART
impede que, a partir do primeiro dia, todas as árvores
já estejam “em sintonia fechada” e não mudem
mais de comportamento; ao contrário, permite
que construam ciclos e ritmos emergentes e que
continuem buscando distintas aproximações entre
si, como numa dança de folhas e árvores, com suas
próteses poéticas, que se rebelam contra a fuligem,
em meio a barbárie urbana. Como se as árvores da
cidade se agitassem para denunciar a sujeira do ar7,
lembrando-nos também do perigo em que vivemos
e da situação que ajudamos a gerar.

FIGURA 2: Projeto Amoreiras


O Grupo Poéticas Digitais, neste trabalho, é composto por: Gilbertto
Prado, Agnus Valente, Andrei Thomaz, Claudio Bueno, Daniel Ferreira, Dario
Vargas, Luciana Ohira, Lucila Meirelles, Mauricio Taveira, Nardo Germano,
Sérgio Bonilha, Tania Fraga, Tatiana Travisani e Val Sampaio.
http://poeticasdigitais.net/projetos/amoreiras/index_en.html
87
ART

O projeto foi selecionado para a exposição Emoção Art.ficial 5.0,


Bienal de Arte e Tecnologia do Itaú Cultural, São Paulo, 30 de junho e 5 de
setembro de 2010.

1 Artista multimídia, professor titular do Departamento de Artes Plásticas da ECA - USP,


Pesquisador 1C CNPq. www.gilberttoprado.net

2 O Grupo Poéticas Digitais foi criado em 2002, no Departamento de Artes Plásticas da


ECA- USP, com a intenção de gerar um núcleo multidisciplinar, promovendo o desenvolvimento
de projetos experimentais e a reflexão sobre o impacto das novas tecnologias no campo das
artes. O Grupo Poéticas Digitais tem diferentes composições a cada projeto. Os créditos com os
respectivos participantes estão relacionados ao final de cada projeto.

3 BIONDI, Daniela; REISSMANN, Carlos Bruno. Avaliação do vigor das árvores urbanas
através de parâmetros quantitativos, In: Scientia Florestalis, n. 52, dez. 1997, p.17-28.

4 Em outras palavras, no algoritmo do projeto não há nenhuma especificação de “gliders”


ou “blinkers”. Há apenas as quatro regras básicas de Conway, que trabalham os princípios de
vizinhança. Para informações iniciais sobre o jogo da vida, consultar: <http://en.wikipedia.org/
wiki/Conway’s_Game_of_Life>

5 A parte feita em Java da programação do projeto Amoreiras foi realizada com o uso
do NetBeans e utiliza as seguintes bibliotecas: JavaOSC <http://www.illposed.com/software/
javaosc.html> RXTX <http://rxtx.qbang.org/wiki/index.php/Main_Page> Links úteis: NetBeans
<http://netbeans.org/> JDK <http://java.sun.com/javase/downloads/index.jsp>

6 Sobre a estrutura do banco de dados utilizado pela programação do projeto, algumas


referências adicionais: SQL <http://en.wikipedia.org/wiki/SQL> MySQL <http://dev.mysql.com/
doc/> phpMyAdmin <http://www.phpmyadmin.net/> XAMPP <http://www.apachefriends.
org/en/xampp.html>

7 DIMENSTEIN, Gilberto. Amoreiras Inteligentes, In: Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano,
C2, 30/06/2010.

88
ART
Números
Hugo Rodas1

Resumo: Lembranças e experiências com números, como subsídio para


o esclarecimento de exercícios que levam em consideração movimento,
tempo e intensidade.
Palavras-chave: Matemática, memória, criação.
Abstract: This paper presents memories and experiments using numbers in
order to clarify artistic exercises based on movement, time, and intensity.
Keywords: Mathematics, Memory, Creation.

No começo odiei a matemática. Minha primeira relação com ela foi


absolutamente material - tudo o que significava dinheiro e junto com
isso o sacrifício para consegui-lo a clareza para reparti-lo, enfim. Tudo,
absolutamente tudo o que era justo e certo tinha que ver com matemática.
Lembro-me dos meus pais quando logo do jantar e normalmente
quando eles pensavam que eu dormia, faziam contas e contas:tanto para
Hugo, tanto para a casa, tanto para a comida, tanto para diversão , tanto
para prevenir. Eu via os números voando e cercando a vida do mundo
inteiro, tempo de trabalhar,tempo de estudar,tempo de brincar,tempo de
esperar,tempo X tempo,número X número, ano X ano, a conta certa,o pago
certo,o resultado certo.
Um terço dos meus pesadelos infantis eram relacionados com números
já que desde muito cedo eu não era uma pessoa certa,o numero de
biscoitos que roubava,a quantidade de chocolatinhos que comprava na
mercearia,o tempo que soterrava dos estudos,enfim. Detestava todas
as proibições e atribuía todas elas à idade. Odiava ser menino. Uma das
minhas primeiras contas foi a de calcular quantos anos teria no 2000,
somas e mais somas até chegar aos 60,teria sessenta anos . Não gostava
muito da infância. Achava chata a vida de menino,a dos adultos me fazia
sonhar,imaginar. Vivia pensando em isso e sonhava com o mundo novo que
veria.
Como sou filho único inventava minhas próprias brincadeiras. E uma das
favoritas era a do cego. Contava os passos e os tempos para andar no escuro
ou de olhos fechados: dois para descer da cama ,três passos pela borda da
cama, um para direita e de pronto estava de frente à porta da cozinha, e
assim por diante.
Quando comecei a estudar piano esta brincadeira passou a ter outros
requintes e ficar um pouco mais perto de Deus. O que simplesmente eram
três passos se transformou numa dança de reconhecimento do meu quarto
, ou então em uma frase musical que ocupava a descida da cama - cego,
sempre cego e sem trapaças comigo mesmo, lento, muito lentamente
para não me lastimar,ou quebrar alguma coisa,ou fazer qualquer ruído que
perturbasse a minha concentração ou denunciasse o meu trabalho. Tinha
89
ART

sete ou oito anos. Mais tarde entenderia isso como o encontro do numero
com o divino,o tempo de representá-lo, senti-lo ,ritualizá-lo. Até hoje faço
esse exercício com meus alunos - tempo,numero e o infinito e íntimo do
obscuro, e a liberdade do movimento nessa segurança.
Naquele momento, tudo era embalado pelos musicais da época, os quais
me enlouqueciam - via duas ou três vezes, contava e recontava ,cantava
cada tempo para aprender e repetia no meu quarto as coreografias, tempo
por tempo,passo por passo. Creio que foi meu primeiro contato espiritual e
prazeroso com o numero. Já não me cercavam, nem me torturavam.
Tive outras “experiências” como, por exemplo, contar quando me
punham de castigo.No começo era só a conta por si mesma. Em vez de rezar,
contava. Logo que eu reconheci o tempo que durava, eu comecei a apostar.
Por exemplo: a conta oscilava de 100 a 500 dependendo da gravidade da
falta - o que vinha a dar em uns 200 a 1000 na realidade, porque eu sempre
contei de a dois para dar mais tempo ao numero e trabalhar diferentes
ritmos,quer dizer sempre contei compasses: 2/4: 1-2 - 2-2 - 3-2 – 4-2 .Ou
3/4 :1-2-3 – 2-2-3 – 3-2-3 – 4-2-3. O que resultava em outra brincadeira
preenchendo o meu tempo de espera. Nos anos setenta esta forma de
contar rendeu num exercício coreográfico que trabalho ate hoje,uma frase
numérica do numero um ao nove.
A frase é composta da seguinte maneira:
8 tempos de 1 ,-fortes

4 grupos de tempos 2.-o 1º. forte, o 2º. suave

4 grupos de tempos 3.-o 1º forte, o 2º.e o 3º. suaves

4 grupos de tempos 4,-o 1º e 4º, fortes,o 2º. e 3º. suaves

4 grupos de tempos 5.-o 1º e 4º, fortes, o 2º 3º.e 5º.suaves

4 grupos de tempos 6.-o 1º. e 4º, Fortes, o 2º. 3º. 5º.e 6º. suaves

4 grupos de tempos 7.-o 1º.3º.e 5º fortes, o 2º. 4º. 6º e 7º. suaves

4 grupos de tempos 8.-o 1º.4º.e 7º.fortes, o 2º. 3º. 5º. 6º.e 8º. suaves

4 grupos de tempos 9.-o 1º.3º.5º.e 7º.fortes, o 2º. 4º. 6º. 8º.e 9º. suaves

FRASE ESCRITA EM MAÍUSCULA É O TEMPO FORTE


1) ES-TOU-COME-ÇANDO-A-EN-TEN-DER

2) ES-tou-COME-çando A-en-TEN-der

3) ESTOU-come-çando A-enten-der
90
ART
4) ESTOU-come-çan-DO A-en-ten-DER

5) ESTOU-começando-a- ENTEN-der

6) ESTOU-começando-a En-ten-der

7) ESTOU-come-ÇAN-do A-enten-der

8) ES-tou-come-ÇAN-do-a-ENTEN-der

9) ES-tou-COME-çan-DO-a-En-ten-der

Este exercício completa seu caminho tocando os tempos fortes com


instrumentos de percussão e os suaves com instrumentos de sopro além de
cantado e bailado a um mesmo tempo.
O caminho estava aberto, logo Julio César de Mello e Souza o Malba
Tahan e O homem que calculava, com sua primeira edição em 1939 o ano
em que nasci,realmente revoluciono e amenizo os ensinamentos através
das historias do comerciante Beremiz Samir.

Histórias...

O entendimento matemático aberto para todas as possibilidades rendeu


uma das histórias mais lucrativas da minha infância: aproveitei-me da
disputa que duas das minhas cinco tias mantinham pela minha preferência,
(já contei isso numa peça que se chamava Boleros). Tinha uma delas que era
a minha madrinha, Eustáquia, que sempre me dava dinheiro às escondidas
para comprar guloseimas no cinema . A outra, que curiosamente se
chamava Justa, sacou o suborno, e me perguntava quanto tinha ganhado.
Eu confessava, e como recompensa recebia o dobro. Calculando, se
madrinha me dava 10 , minha outra tia me dava 20, o que dava 30, o súbito
entendimento de prosperidade apareceu: se eu aumentasse o numero da
quantidade da minha madrinha, eu receberia muito mais. Quer dizer, 15 da
madrinha dariam 30 da Justa, o que daria 45 ,ou seja um ganho do 50%.
Creio que por isso algumas frases dele como, “o homem vale pelo que
sabe”,”saber é poder”,serviram para conter aquele monstro incipiente.
Mais tarde o encontro com Pitágoras e seus ensinamentos 500 anos
antes de Cristo a igualdade de condiciones entre homens e mulheres,o
entendimento da comunidade e seus ACÚSMATAS, que quer dizer, ‘coisas
ouvidas’ - chaves,símbolos entendidos apenas pelos próprios membros
que a constituíam, facilitando sua compreensão, desenvolvimento e
criatividade,ensinamentos que regeram todos meus atos ,desde o final dos
anos sessenta.
Quem não conhece expressões minhas como ‘das-lais’ ou
‘safemberguem-nais’, palavras compreendidas por meus alunos e
absolutamente claras em seus significados para eles.

91
ART

Considerações

NÚMEROS, NUMEROLOGIA - foi tão forte o encontro com ela, depois de


descobrir que eu era um 669, a três números da perfeição, que seria o 369, e
a três números da besta, o 666, até chegar num ponto em que não alugava
um apartamento ou não viajava em tal data, ou se tinha um encontro
importante não pegava nenhuma condução que a soma dos números não
desse num número impar. Numerologicamente, o 9 é 0, o que facilita a
conta.Digamos, 669 na soma é três: 9=0 , 6+6=12 , 2+1=3
Números uma paixão certa. Para terminar, umas frases de Pitágoras, que
são um testamento:
“todas as coisas são números”

“aquele que fala semeia,aquele que escuta,recolhe”

“com ordem e com tempo encontrasse o segredo de fazer todo e todo fazer
bem”

“os afetos se somam, subtraísse nunca”

“o ser capaz, mora perto da necessidade”

“o universo é uma harmonia de contrários”

“o homem é a medida de todas as coisas”

“não é livre quem não consegue ter domínio sobre si”

“educai as crianças e não será preciso punir os homens”

1 Ator, bailarino, coreógrafo,músico, dramaturgo. Professor do programa de pós-graduação


em artes da Universidade de Brasília.

92
ART
O universal no imaginário sistêmico das poéticas
cartográficas: aclopamentos e desvios nos processos de
criação transmidiáticos
Lucia Leão1

Resumo: As poéticas cartográficas, compreendidas enquanto processos de


visualização dinâmicos de bancos de dados digitais caracterizam práticas de
produção de sentido e organização esquemática no ciberespaço. Também
denominados mapas da informação, esses projetos, devido sua natureza
multidisciplinar, são discutidos em diferentes campos da ciência como a
carto-semiótica, o info-design e as teorias da informação. O exercício de
estruturação do pensamento em diagramas conceituais, no entanto, é
algo que acompanha os procedimentos cognitivos da humanidade e são
observáveis em diferentes períodos da cultura. Através das interações
com os sistemas de visualização, é possível perceber diferentes níveis de
complexidades, relações inesperadas entre os dados, extrair reflexões
pessoais e desenhar resignificações. Objetiva-se neste artigo analisar a
presença e a busca pelo universal sistêmico no cenário das produções
transmidiáticas.
Palavras-chaves: Processos de Criação nas Mídias; Arte e tecnologia;
Imaginário; Cartografias digitais, visualização de dados, universal.
Abstract: The poetic cartographies, understood as dynamic data visualization
processes, characterize frequent practices of meaning production and
schematic organization into cyberspace. Also called information maps, these
projects, because of its multidisciplinary nature, are discussed in different areas
of research such as semiotics, info-design and information theory. The exercise
of structuring the thought into conceptual diagrams, however, is something that
accompanies the cognitive procedures of humanity and that can be observable
in different periods of culture. Through interactions with visualization systems,
it is possible to see different levels of complexity, unexpected relationships
among the data, extract personal reflections and design meanings. The main
objective of this article is to analyze the presence and the search for the systemic
universal in the context of transmedia productions.
Keywords: Creative Processes in Media; Art and technology; Data visualization;
Imaginary; Digital Cartographies.
Nada é fixo para aquele que alternadamente
pensa e sonha. (Bachelard, 1991:95)

Visualização do conhecimento, mapas dinâmicos de bancos de dados


digitais e design da informação são processos criativos que permeiam o
ciberespaço. As poéticas cartográficas caracterizam práticas de produção
de sentido que buscam organizar dados complexos. Também denominados
visualização de dados (em inglês, “data visualization”), ou visualização
da informação (“information visualization”, abreviado em “infovis”), esses
projetos buscam desenvolver maneiras visuais de representação de
93
ART

um grande número de dados. Devido sua natureza multidisciplinar, são


discutidos em diferentes campos do conhecimento como a comunicação, a
carto-semiótica, as ciências cognitivas, o info-design e as teorias das mídias.
As aplicações desses sistemas de visualização se estendem para
praticamente qualquer campo de pesquisa. Nas Ciências Sociais, por
exemplo, os processos de visualização desempenham papel fundamental
no entendimento de padrões e comportamentos. As redes sociais online,
com suas práticas e milhares de membros, geram e disponibilizam
numerosos dados. São os sistemas de visualização que auxiliam as
pesquisas na organização e compreensão desses dados.
Os bancos de dados são elementos distintivos da linguagem das novas
mídias (Manovich, 2001). Como já discutimos anteriormente, o exercício
de estruturação de dados em mapas, tabelas, gráficos e diagramas, é algo
que acompanha os procedimentos cognitivos da humanidade. Meios que
auxiliam a expansão das capacidades cognitivas, as representações visuais
são encontradas em diferentes períodos da cultura (Leão, 2003).
Consideramos as cartografias informacionais como processos de
criação transmidiáticos à medida que operam nas convergências das
mídias (Jenkins, 2008). Como veremos, as cartografias informacionais são
processos que necessariamente hibridizam linguagens e meios diversos
(textos, imagens, fotografias, diagramas, áudio, vídeos, entre outros).
Nas cartografias de dados, os processos de convergência midiática são
realizados a partir de protocolos das tecnologias digitais, mas não se
restringem a isso. Para compreendermos as dimensões midiáticas que
orbitam nos processos de convergência, é necessário que pensemos cada
mídia envolvida como um sistema cultural. Na definição de Gitelman em
“Always already new” (2008):
I define media as socially realized structures of communication, where structures
include both technological forms and their associated protocols, and where
communication is a cultural practice, a ritualized collocation of different people
on the same mental map, sharing or engaged with popular ontologies of
representation (2008:7).2

Na rica discussão empreendida por Manovich (2010) em seu artigo “o


que é visualização”, os processos de infovis são mapeamentos de dados
discretos que resultam em uma imagem. O que há de especial a respeito
das imagens produzidas através desse processo de mapeamento é que
são meios de descobrir estruturas de grandes volumes de dados. Nesse
sentido, Manovich aponta que os infovis se caracterizam por adotar uma
metodologia de redução de dados e privilegiam variáveis espaciais no
processo de mapeamento:
By employing graphical primitives (or, to use the language of contemporary digital
media, vector graphics), infovis is able to reveal patterns and structures in the data
objects that these primitives represent. However, the price being paid for this power
is extreme schematization… They all use spatial variables (position, size, shape,
and more recently curvature of lines and movement) to represent key differences
in the data and reveal most important patterns and relations. This is the second
(after reduction) core principle of infovis practice as it was practiced for 300 years
94
ART
- from the very first line graphs (1711), bar charts (1786) and pie charts (1801) to
their ubiquity today in all graphing software such as Excel, Numbers, Google Docs,
OpenOffice etc. (Manovich, 2010)3

No desenvolvimento de seu artigo, Manovich descreve um


tipo especial de visualização que opera sem reduzir os dados.
Nessa metodologia, popularizada a partir dos desenvolvimentos
tecnológicos recentes, o rico conjunto de propriedades dos objetos
de dados são preservados à medida que as visualizações são criadas
diretamente. Nesses procedimentos, são visualizadas propriedades
como interatividade, animação e também as conexões entre os
objetos. Manovich denominou esse método de “visualização direta”.
Para a discussão presente, optamos por considerar os processos
de produções em interfaces gráficas interativas que acoplam meios
variados (imagens, textos, diagramas, vídeos, etc.) que, devido
sua natureza de convergência, podem ser situados naquilo que
Jenkins denominou transmidiáticos (2008). Os estudos de casos que
apresentamos no decorrer do artigo foram realizados a partir de uma
visão em rede e em constante transformação, tal como apresenta
Salles (2006).
O objetivo dos processos de visualização de dados é desenvolver
métodos e técnicas de representação visual que aumentem a
comunicação e a compreensão de dados complexos ou volumosos.
Os projetos de visualização de dados são compostos por três etapas:
a coleta de dados, programação de ferramentas para visualização de
dados e programação de aplicações de visualização interativa.
Na pesquisa realizada por Manuel Lima, presente no site Visual
Complexity 4 e também em seu livro (2010), os projetos de visualização
da informação estão organizados nas categorias: assunto, método
de visualização, “trend”, ano e autores. Em “trend”, Lima apresenta
projetos que se utilizam de procedimentos de mash-ups de sistemas
como YouTube, Flickr, Google Maps, etc. Na taxonomia fundada nos
métodos de apresentação estão listados: globo em 3D, diagramas de
arco, árvore, convergência radial, redes radiais segmentadas, entre
outros. Ben Fry, Valdis Krebs, Santiago Ortiz, W. Bradford Paley, Martin
Wattenberg, Stephen G. Eick, Burak Arikan, Chris Harrison, Graham J.
Wills, Jeffrey Heer, Marcos Weskamp, Aaron Siegel, Alex Adai, Boris Muller
são nomes que figuram na lista de autores “tops” de Lima.
Através das interações com os sistemas de visualização, é possível
perceber diferentes níveis de complexidades, relações inesperadas entre
os dados, extrair reflexões pessoais e desenhar resignificações. Objetiva-
se neste artigo analisar a presença e a busca pelo universal sistêmico no
cenário das visualizações. Partimos da constatação de que o universal se
manifesta nos processos cartográficos que buscam organizar uma grande
quantidade de dados em um sistema de visualização. Façamos agora uma
reflexão acerca dos sentidos do universal no imaginário.

95
ART

Imagens do universal: uma busca mitohermenêutica

O universal permeia a cultura contemporânea e emerge como


sonho de totalidade em um cenário povoado pela imensidão de dados
digitais. Assustadora e mutante, a imensidão composta por gigantescas
quantidades de dados se assemelha a um ser vivo, em constante
metamorfose. Nesse sonho, a busca pela compreensão do infinitamente
grande vem acompanhada pelo desejo de atribuir significado. Como nos
fala Bachelard: “O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua
aureola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente
aberta, evasiva” (1990:1). No imaginário sistêmico das redes, o universal
é sempre rizomático e se desvela em múltiplas faces: listas de favoritos,
assinaturas de atualizações, enciclopédias...
Como imagem de totalidade, o universal retoma propostas da gestalt
e do holismo, e nos convida a compreender o “todo”. Fundada no fato de
que o princípio operacional do cérebro tem uma natureza holística, a teoria
da gestalt propõe que o todo tem uma natureza diferente da soma de suas
partes. Como nos fala Arnheim (1980):
No ensaio que deu à teoria da Gestalt seu nome, Christian Von Ehrenfels
demonstrou que se doze observadores escutassem cada um dos doze tons de
uma melodia, a soma de suas experiências não corresponderia à experiência de
alguém que a ouvisse inteira.

Vejamos agora as imagens do universal através de um olhar da


Mitohermenêutica, que, segundo Ferreira Santos, consiste em:
... um trabalho filosófico de interpretação simbólica com cunho antropológico
que visa compreender as obras da cultura a parti dos traços míticos e arquetipais
captados através de arranjos narrativos das suas imagens e símbolos na busca
dinâmica de sentidos para a existência (2004:91).

Uma pesquisa sobre as imagens do universal nos leva ao encontro da


carta de número 21 do Tarô, denominada “O Mundo”. É importante notar
que existem diferentes baralhos de Tarô e que cada um apresenta imagens
próprias. No entanto, os sentidos inscritos em suas imagens são bastante
similares. Para o presente artigo, utilizamos o Baralho de Marselha. Símbolo
das estruturas equilibradoras, a carta do Mundo, segundo a classificação
isotópica das imagens de Gilbert Durand, é uma imagem que se situa
no sistema sintético. Na sistematização das imagens que impregnam
a civilização, Durand apresenta os princípios do regime diurno (razão,
distinção) e princípios do regime noturno (emoção, mistura). Na união
desses dois princípios opostos, o sistema sintético evoca imagens de
cooperação e sinergia (Durand, 2002).
Na carta do Mundo, a imagem de um ser andrógino aparece ao centro
da imagem. Ao redor do corpo, uma guirlanda o circunda. Em cada um dos
cantos da carta, quatro figuras representam imagens como um anjo sobre
uma nuvem, uma águia, um leão e uma vaca (ou um cavalo, em alguns
baralhos). Seguindo uma leitura de perspectiva mitohermenêutica, esses
elementos se referem aos quatro elementos do universo: o anjo sobre
96
ART
uma nuvem, expressa o elemento água; o ar é indicado pela águia; o fogo
vem na forma de um leão; e a terra na imagem do cavalo ou da vaca. Os
quatro elementos simbolizam também as quatro direções da bússola
e conjungados revelam a harmonia cósmica. A idéia de totalidade está
indicada também pela coroa de folhas que enlaça a figura humana.
Observando a imagem humana, podemos refletir sobre os sentidos
da androginia, sobre a integração dos dois sexos em um único ser.
Normalmente vistos apenas como princípios opostos, o andrógino nos
apresenta a união do masculino e feminino. Nessa imagem, as polaridades
se conectam de forma complementar, equilibrada: “é que o andrógino,
microcosmo de um ciclo em que as fases se equilibram sem que nenhuma
seja desvalorizada em relação à outra, é, no fundo, justamente um “símbolo
de união” (Durand, 2002:292).
Além disso, podemos ver que um dos pés da figura está elevado, indicando
movimento. Assim, podemos relacionar esse corpo jovem ao centro com a
idéia de dança, uma dança em movimento perpétuo. Uma busca arqueológica
nos sentidos do movimento perpétuo e da eterna mutação nos insere na
segunda dimensão imaginária do universal. Nesse sentido, o universal se
revela como aquilo que está sempre em movimento, eterno fluir, nunca
inerte. Ao imaginar esse eterno movimento, a figura de um círculo que roda,
que gira, nos remete às antigas reflexões sobre o tempo. Como se sabe, os
babilônicos já usavam o círculo para medir o tempo. Na alquimia, o círculo é
um dos símbolos fundamentais, imagem de unidade. Geometricamente, todos
os pontos são eqüidistantes do centro e isso remete a idéia de reencontrar-
se no ponto central. Não por acaso, o universal também aparece na imagem
do círculo que gira incessantemente e, nessa interpretação, o tempo é algo
infinito, cíclico, uroboros e serpente que se renova. Como aponta Durand: “O
círculo, onde quer que apareça, será sempre símbolo da totalidade temporal
e do recomeço” (Durand, 2002:323). Além disso, podemos associar o círculo
à imagem do “tai-gi-tu dos chineses, no qual os dois princípios, yin e yang, se
engendram reciprocamente” (Durand, 2002:325). E, nesse sentido, são símbolos
que se situam como “estrutura sintética, uma estrutura de harmonização de
contrários” (Durand, 2002:346).
A terceira dimensão dos sentidos do universal que gostaremos de
explorar diz respeito à idéia de iluminação, entendimento. Na carta do
Mundo, essa idéia está expressa na visualização dos quatro elementos
primordiais, que formam a figura de um quadrado, e sua relação com o
elemento circular da guirlanda. Como um mapa de conhecimento, a carta
do Mundo sintetiza e apresenta os movimentos que levam do quadrado
ao círculo. Busca ancestral, também presente na imagem da mandala,
“a quadratura do círculo” evoca um tipo de compreensão elevada, quase
impossível de ser alcançada. Podemos associar esse tipo de entendimento à
idéia de “iluminação pelos sentidos” desenvolvida por Maffesoli em “Elogio
da Razão Sensível”. Para o pensador francês, o sensível é elemento central no
ato de conhecimento e, portanto, é preciso integrar abstração e conceitos à
função cognitiva ligada ao prazer estético:
...o intelectual deve saber encontrar um modus operandi que permita passar do
domínio da abstração ao da imaginação e do sentimento ou, melhora ainda, de
97
ART

aliar o inteligível ao sensível (Maffesoli: 2008:196).

Em síntese, as imagens do universal que irão nos auxiliar nas reflexões


sobre as cartografias do ciberespaço são: totalidade (compreendida como
união de opostos complementares); eterna mutação (compreendida como
processos transformativos dinâmicos e cíclicos); e entendimento (pensado
tanto em termos de insight como de construção de conhecimento).

Estudos de casos

Vejamos agora alguns exemplos de cartografias poéticas que tratam


do universal. O recorte escolhido para análise compreende projetos que
utilizam tecnologias computacionais na criação de representações visuais
com objetivo de amplificar a cognição.
Em essência, essas cartografias poéticas são processos mediados por
sistemas computacionais que transformam grande quantidade de dados
abstratos em uma representação visual, em geral, dinâmica e interativa. As
visualizações, à medida que são meios de comunicação visuais, desvelam
estruturas e padrões, auxiliam reflexões de caráter explicativo e relacional;
estimulam descobertas, e favorecem o discernimento. Como afirmaram
Card, Mackinlay e Shneiderman (1999:6): “O propósito de visualização é o
insight, e não as imagens”5.
“The World by National Geographic” projeto da Stamen Design6, é
um aplicativo para IPad que traz o globo terrestre como interface para
cartografias de diferentes partes da Terra. Desenvolvidos pela equipe da
tradicional revista, os mapas do projeto são extremamente cuidadosos e
precisos. Os mapas e as referências podem ser visualizados em diferentes
estilos e tamanhos. Além disso, imagens em alta resolução (de 600 a 2400
dpi) possibilitam aproximações e visualizações de detalhes. Uma questão
que acompanha o sentido de universal diz respeito às características das
propriedades locais e globais (Petitot, 1985). Em geral, pensadas como
propriedades opostas, a busca pelo universal nas cartografias de dados
permite uma conjunção dos aspectos globais e locais. Nesse projeto
específico, é possível acessar dados do globo terrestre como um todo
quando se aciona a interface central do sistema. Na visualização que
privilegia o olhar macroscópico, temos a possibilidade de compreender as
características globais, mas, no entanto, não temos como acessar detalhes
à medida que uma das características do global é a redução de detalhes
(Leão, 1999). A conjunção das propriedades globais e locais ocorre a partir
do momento em que o interator decide se aprofundar na navegação e clica
em pontos específicos do globo. Com esse tipo de interação, o visitante
acessa as propriedades locais do ponto geográfico escolhido, e, nesse
sentido, o projeto da Stamen Design possibilita que articulações cognitivas
das complexidades dos dois sistemas.
O segundo projeto que iremos discutir também traz a questão do
universal pensada enquanto organização de dados massivos através de
uma representação visual. “Gapminder World: Wealth & Health of Nations”7
98
ART
permite a visualização de dados de todos os países do mundo a partir de uma
interface gráfica. Em um primeiro olhar, o projeto nos lembra os diagramas
bidimensionais compostos por um eixo vertical e outro horizontal que
costumam ser usados para apresentar dados relacionais. O mapeamento
dos dados segue uma lógica fácil de ser detectada e que traduz os países
em esferas coloridas de tamanhos diversos. As cores indicam o continente
no qual o país se situa e os tamanhos apontam para o número populacional.
No eixo horizontal estão alocados os dados referentes aos valores da renda
per capita dos países, enquanto que o eixo vertical refere-se a número de
anos de expectativa de vida. Um menu situado na lateral direita é meio de
acesso aos países através de uma lista ordenada de maneira alfabética. Ao
se selecionar o nome de um país, a esfera correspondente é realçada no
diagrama.
No processo de interação, percebe-se que as relações bidimensionais
entre saúde e riqueza das nações podem se associar a uma terceira
dimensão referente a outros gráficos que são acessados pela linha do
tempo. O projeto também possibilita que se assista a uma animação que
percorre as transformações dos dados em uma narrativa cronológica que
compreende o período de 1800-2009. Uma terceira forma de acessar
visualmente ao banco de dados se relaciona a um tipo de navegação em
profundidade. Nessa investida, o interator clica sobre uma das esferas
coloridas e acessa a dados referentes a um país. Ao clicar nos eixos (vertical
e horizontal) é possível acessar as fontes dos dados. Um menu alocado
na parte inferior possibilita a visualização de trajetórias (trails) de um país
selecionado. E, finalmente, o Gapminder também oferece a opção de se
visualizar os mesmos dados a partir de uma interface do mapa mundi.
Nessa opção, uma imagem transparente do mapa acopla informações de
localização geográfica às anteriores.
O terceiro projeto que escolhemos para análise exemplifica os
acoplamentos e desvios que permeiam a busca pelo universal nas aplicações
de info-design. Metáforas de constelações são as imagens que desvelam
diferentes visualizações de dados em “Universe: Revealing our Modern
Mythology”8 (2007). Concebido por Jonathan Harris9, o projeto utiliza o
banco de dados de notícias mundiais em tempo real da empresa Daylife10.
Baseado na idéia de Zeitgeist – espírito do tempo, “Universo” é um sistema
de visualização de dados que permite a exploração do imaginário coletivo
das redes informacionais. Ao mesmo tempo, possibilita a exploração das
mitologias individuais, à medida que também disponibiliza a visualização
de constelações pessoais, geradas com base nos interesses e curiosidades
do interator. Vejamos como esses dois movimentos se conjugam. Uma
primeira aproximação com o sistema nos leva a uma interface que nos
convida a explorar “o universo de...” A visita inicia com opções de links
organizados nas categorias: pessoas (people), lugares (places), conceitos
(concepts), além de um quadro com escolha livre. O visitante também
recebe sugestões para escolha (Angelina Jolie, New York City, climate
change etc). Ao se clicar em uma das opções, o aplicativo carrega os dados
referentes à escolha feita. Nessa etapa da navegação, vemos uma tela com
imagem em movimento de estrelas com uma estrela maior ao centro e é
possível também escolher um período de dados (ontem, semana passada,
99
ART

mês passado, ano passado). Cada estrela representa um dado - notícia,


citação, imagem. Ao mover o cursor através do “espaço celeste”, aparecem
linhas que indicam as conexões entre os dados, formando constelações.
Quando uma das constelações é selecionada, se movimenta para o centro
da tela e envia as demais para a sua órbita.
Outras nove opções de visualizações dinâmicas são possíveis através dos
“Stages”11: Estrelas, Formas, Segredos, Estórias, Declarações, Instantâneos,
Superstars, Configurações e Tempo. Pensado a partir da escolha do usuário,
o projeto estabelece representações de universos que se relacionam a
temas específicos e cada um dos “palcos” busca dados de uma natureza
e propicia relações específicas. O palco “Estrelas” apresenta um campo de
pontos (estrelas) que se relacionam com o objeto escolhido para busca.
Assim, o projeto também é um tipo de busca de dados que apresenta como
resposta um mapa relacional de temas. O palco “Formas” aciona uma série
de palavras que se formam pela união de pontos e remetem a idéia de
constelação. As palavras geradas se relacionam com ocorrências de notícias
que se vinculam ao tema e surgem de forma dinâmica. O palco “Segredos”
também parte de uma busca referente ao tema e apresenta as mesmas
palavras do palco anterior em uma visualização linear seqüencial que
indica em escala de tamanho as ocorrências. O palco “Estórias” busca dados
de natureza narrativa e os apresenta visualmente. O palco “Declarações”
resgata dados referentes a afirmações ditas. O palco “Instantâneos” busca
especificamente imagens, enquanto que “Superstars” extrai dados a
respeito de pessoas, lugares, empresas, equipes e organizações. O palco
“Tempo” mostra como o “universo escolhido” evoluiu ao longo de horas,
dias, meses e anos. É interessante observar também que o usuário escolhe
os limites do universo a ser gerado ao definir os parâmetros de busca. Nesse
sentido, o universo criado pode ser amplo e geral ou específico, particular
e local.

Considerações finais

Nesse artigo, trouxemos o universal enquanto imagem tríplice de busca


e valoração dos sentidos da totalidade; constante mutação e entendimento.
Os estudos de casos que realizamos vitalizam as nuances do universal.
Conforme sugerimos, o universal se apresenta em projetos cartográficos
do ciberespaço que buscam organizar grandes volumes de dados, ou seja,
os sistemas de visualização dinâmicos. No primeiro caso apresentado,
“The World by National Geographic”, o sentido de busca pelo universal
se manifesta na sua forma mais imediata: uma representação do globo
terrestre. Vimos que nesse projeto as propriedades globais e locais são
visualizadas de forma complementar. Na confluência dessas características,
um tipo de compreensão complexa pode emergir. No segundo caso
discutido, “Gapminder World: Wealth & Health of Nations”, o universal
se desvela em camadas de informações que podem ser visualizadas de
maneiras dinâmicas e complementares, acoplando características como
mutação no tempo e informações de localização geográfica. No terceiro
caso estudado, “Universe: Revealing our Modern Mythology”, observamos
características como a complementaridade das visões local/global e o
100
ART
acoplamento de dimensões mutacionais no tempo e espaço, presentes
os projetos anteriores. Entretanto, ao permitir visualizações a partir
das escolhas do usuário, “Universe” rompe com a idéia de um universal
hegemônico, generalizado e trabalha com a idéia de desvio.
Assim, os aclopamentos e desvios se manifestam nos processos de
criação transmidiáticos que caracterizam as cartografias informacionais.
Nessa leitura por imagens, nosso texto foi em busca de novos entendimentos
do universal e, para isso, contou com o auxílio das metáforas. Como afirmou
Maffesoli: “É possível que a metáfora seja a mais capacitada para perceber o
aspecto matizado de um mundo marginal cujos desdobramentos ainda são
imprevisíveis” (1998:147).
Em resumo, o imaginário sistêmico se manifesta nos projetos de
visualização de dados de três maneiras: como imagem de totalidade
ao integrar características locais e globais; como imagem em constante
transformação ao acoplar as dimensões de tempo e espaço; como imagem
de insight e conhecimento ao possibilitar visualizações individualizadas,
particulares, desviantes, que emergem das escolhas do usuário e desvelam
trajetórias cognitivas em busca de entendimento.

Referências bibliográficas

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão craidora. São Paulo:
Pioneira/EDUSP, 1980.

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1991.

CARD, Stuart, Jock Mackinlay, Ben Shneiderman. Readings in Information Visualization: Using
Vision to Think. São Francisco: Morgan Kaufmann Publ., 1999.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica e educação


em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2004.

GITELMAN, Lisa. Always Already New: Media, History and the Data of Culture. Cambridge: The
MIT Press, 2008.

JENKINS, H. (2008). Cultura da convergência. São Paulo: Aleph.

LEÃO, Lucia. O labirinto da hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 1999.

LEÃO, Lucia. Cartografias em mutação: por uma estética do banco de dados. In: Lucia Leão.
(Org.). Cibercultura 2.0. São Paulo: U.N. Nojosa, 2003.

LIMA, M. Visual Complexity: Mapping Patterns of Information. Nova York: Princeton


Architectural Press, 2011.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: The MIT Press, 2001.

101
ART

MANOVICH, Lev. What is visualization? Disponível em: <http://manovich.net/2010/10/25/


new-article-what-is-visualization/>. Acesso em 01/09/2011.

PETITOT, Jean. Local/global. In Enciclopédia Einaudi, vol 4. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1985, pp.11-71.

SALLES, C. A. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Horizonte, 2006.

1 Lucia Leão é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autora de vários livros, entre eles: O labirinto
da hipermídia e O chip e o caleidoscópio. É Pós Doutora em Artes pela UNICAMP e Doutora em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. lucleao@pucsp.br. lucleao@gmail.com

2 “Eu defino mídia como estruturas de comunicação realizadas socialmente, sendo que
essas estruturas incluem as formas tecnológicas e seus protocolos associados; e a comunicação
é uma prática cultural, uma colocação ritualizada de pessoas diferentes compartilhando um
mesmo mapa mental, ou envolvidos com ontologias populares de representação “.

3 “Com o emprego de primitivas gráficas (ou, para usar a linguagem contemporânea da


mídia digital, gráficos vetoriais), os infovis são capazes de revelar padrões e estruturas nos
objetos de dados que representam essas primitivas. No entanto, o preço a ser pago por esse
processo é a esquematização extrema ... Todos eles usam variáveis espaciais (posição, tamanho,
forma e, mais recentemente curvatura de linhas e movimento) para representar as principais
diferenças nos dados e revelar padrões mais importantes e relações. Este é o segundo princípio
fundamental (após a redução) da prática infovis como é praticada há 300 anos - a partir dos
gráficos de linha (1711), gráficos de barras (1786) e diagramas pizza (1801) - até hoje e sua
onipresença pode ser vista em softwares gráficos tais como Excel, Numbers, Google Docs,
OpenOffice, etc.»

4 http://www.visualcomplexity.com/vc/

5 “The purpose of visualization is insight, not pictures”.

6 http://content.stamen.com/

7 http://www.gapminder.org/

8 “Universo: revelando nossa moderna mitologia”, In: http://universe.daylife.com/

9 http://number27.org/

10 http://www.daylife.com/

11 Escolhemos traduzir o termo em inglês “stage” por palco.

102
ART
A relevância da arte-ciência na contemporaneidade
Lucia Santaella1

Resumo: Quando a produção e a circulação de linguagens se aceleram, as


florestas de signos ficam extremamente densas, gerando florestas de tempo.
Presente, passado e futuro se misturam, cruzam-se em interconexões
ininterruptas, pulverizando as noções do tempo como duração e da história
como progressão linear. A aceleração teve início na revolução industrial com
a invenção da fotografia. Desde então, os meios tecnológicos de produção
e difusão de linguagens não cessam de se multiplicar e se diversificar: a
começar pelo cinema, passando pelo telefone, rádio, TV, vídeo e sons aqui,
ali, por todos os lugares, em todos os momentos, até alcançar as atuais
interfaces computacionais com seus fluxos ininterruptos de linguagem
hipermídia, junto com a realidade virtual, aumentada, mista e a transmídia.
Esta caracteriza-se por textos, imagens e sons que escorregam de uma
mídia a outra, conformando-se às determinações semióticas dos novos
ambientes que os acolhem. Com isso, a roda viva dos signos foi ganhando
um ritmo atordoante, deixando atrás de si cacos de uma imagem de mundo
que se estilhaçou. Esse estilhaçamento tem recebido nomes variados, tais
como pós-modernidade, segunda modernidade, super modernidade,
modernidade líquida, designações que, no universo das artes, repercutiram
sob os títulos de “fim da história da arte” ou até mesmo “fim da arte”. Mas
que fim é esse? Um fim que não é outra coisa senão um novo começo. De
quê? De um fluxo que, cada vez mais, desemboca no múltiplo, no diverso,
no plural. Na densa malha das multiplicidades de que a arte contemporânea
se constitui, escolhi como tema para reflexão um de seus vetores que me
parecem mais fundamentais, a relação entre arte e ciência.
Palavras-chave: arte-ciência, transmídia, mediação tecnológica, ciência-
tecnologia-arte
Abstract: When the production and circulation of languages accelerate, the
forests of signs are extremely dense, creating forests of time. Present, past and
future mixing intersect in uninterrupted interconnections, spraying the notions
of time as duration and history as linear progression.
Keywords: art-science, transmedia, technological mediation, science-
technology-art

A expansão nas fronteiras da arte

A era da reprodutibilidade técnica, proclamada por Walter Benjamin,


produziu o primeiro abalo sísmico responsável pela expansão nas fronteiras
das artes estabelecidas no Renascimento, uma expansão promulgada pela
fotografia que carregou consigo a necessidade de se repensar a própria
noção de arte, aliás, uma reflexão que deve se renovar ao advento de
cada nova mediação tecnológica. A desconstrução contínua e radical das
formas de representação visuais herdadas do passado, levada a cabo pelo
modernismo, de Cézanne a Mondrian e Pollock, fez-se acompanhar pela

103
ART

inserção das novas tecnologias e pela abertura de horizontes insuspeitados


no fazer da arte. Essa inserção e essa abertura tornaram-se, sem dúvida, as
idéias mais persistentes a atravessar o século 20 e chegar até os nossos dias.
Ao submeter, em 1917, como obra de arte um vaso sanitário -- uma
privada branca, sem qualquer outro significado que transcendesse o fato
de ser um dos mais prosaicos objetos de uso cotidiano -- Duchamp estava
assinando uma carta de alforria para a arte. A partir desse gesto-limite, os
artistas se viram liberados para fazer de sua arte um ato de fé nos horizontes
do sem fim. Não por acaso, em 2004, 500 artistas e historiadores da arte
elegeram a “Fonte” como a obra de arte mais influente de todo o século 20.
A carta de alforria incluía para os artistas não apenas a absoluta
liberdade de escolha dos materiais e dos suportes, das técnicas e dos meios,
mas a incorporação e manipulação de todas as tecnologias de linguagem
que as forças produtivas do seu tempo colocam ao seu dispor. Do telefone
ao rádio, do cinema ao vídeo, da holografia à computação, da internet à
realidade virtual, dos aparelhos móveis aos games, são todos dispositivos
tecnológicos que os artistas sabem transmutar e transfigurar para o usufruto
e regeneração da sensibilidade perceptiva e do pensamento sensível do ser
humano, com o fim último de humanizar os sentidos humanos, torná-los
sobejamente humanos.
Na mesma linha de frente da física que, há um século, já havia demolido
os alicerces newtonianos e da matemática questionadora de seus próprios
axiomas, as artes também minaram os dogmas, as doxas e os preceitos
sobre os limites preconcebidos do que cabe à arte ser ou não ser. A partir
do século 19, a tradição das alianças da arte com a ciência, iniciada por Da
Vinci, foi se intensificando graças ao crescente engajamento dos artistas
no mundo da pesquisa científica e tecnológica até converter essas alianças
na chave mestra para a arte do século 21 ao ponto de impossibilitar a
compreensão do futuro das artes quando se ignoram as intrincadas relações
entre arte, ciência e tecnologia.
Entretanto, as florestas do tempo implicam a coexistência e a convivência
incondicionais do presente, passado e prenúncios do futuro nos modos
artísticos de conceber e de formar. Por isso, o intrincado tecido da arte
contemporânea tem soberanamente resistido a quaisquer investidas que
tentam reduzir a potência do seu pluralismo. Nos inumeráveis e distintos
circuitos atuais da arte, há espaço para abrigar cada um de seus variegados
vetores: micro e mega exposições, mini-galerias e mega museus, pequenos
festivais e gigantescas feiras, ateliês caseiros e estúdios sofisticados, galpões
para hackarte e midialabs de ponta. Nesses espaços vicejam desde a pintura
até a neuroarte, da arte feita com pó e brisa a céu aberto à arte que viaja
em naves estelares, da escultura à arte pós-mídia. Enfim, nada pode refrear
a franquia que os artistas vieram conquistando há quase dois séculos,
cabendo agora a cada um encontrar a rota e o nicho que dêem guarida ao
seu desejo.
Na densa malha das multiplicidades de que a arte contemporânea se
constitui, escolhi como tema para a nossa reflexão um de seus vetores que
me parecem mais fundamentais, a relação entre arte e ciência.
104
ART
Aproximações entre arte e ciência

Desde o Renascimento, a arte veio crescentemente se aproximando da


ciência. Com a intensificação do papel que, a partir da Revolução industrial,
a tecnologia passou a desempenhar nas forças produtivas da sociedade,
as relações entre arte e ciência tornaram-se mais estreitas, especialmente
através da mediação das tecnologias. Na contemporaneidade, multiplicam-
se as tendências artísticas ligadas à ciência nas quais tipos variados de
parcerias entre artistas e cientistas são estabelecidos.
A ciência e filosofia modernas nasceram mais ou menos ao mesmo
tempo, a primeira com Galileo (1564-1642), a segunda com Descartes
(1596-1650). Por essa época, o Renascimento italiano já havia fundado
a arte concebida na sua autonomia, isto é, uma arte que passaria a gozar
de uma independência crescente da mitologia e da religião. Leonardo da
Vinci (1452-1519) funciona como o emblema de uma produção científica
e artística em que a separação entre ciência, filosofia e arte não existia,
visto que sua filosofia da arte e sua criação artística se nutriam de suas
pesquisas e conhecimentos científicos e técnicos. Depois disso, a ciência
foi se caracterizando mais propriamente como uma atividade específica,
separada da criação artística. Dentre os três campos, portanto, a ciência foi
aquele que se desenvolveu com bastante autonomia em relação aos outros
dois. A filosofia, pelo menos até Hegel, manteve relações íntimas com a
matemática e a ciência. Com Hegel, houve um divórcio que culminou na
visão negativista da ciência presente na obra de Heidegger e da Escola de
Frankfurt, entre outros. A arte, ao contrário, é o campo que, ao longo dos
séculos e crescentemente, manteve-se muito próxima das descobertas
científicas.
Disso resulta que o modo como os cientistas tratam a arte é muitíssimo
diferente do modo como os artistas sempre trataram e continuam a tratar
a ciência. Desde o Renascimento, enquanto alguns artistas puseram seus
conhecimentos científicos a serviço da criação, outros encontravam na
ciência fontes inestimáveis para as suas obras. Exemplos muito citados
disso, ao longo do tempo, podem ser encontrados, no Renascimento, em
Leon Battista Alberti e Piero de la Francesca, mentores da perspectiva
artificialis, em Daguerre, inventor do daguerreótipo, em Robert Barker que,
em 1794, em Londres, mandou construir o primeiro panorama completo
e obteve uma patente sobre a idéia. Casos de alianças entre artistas e
cientistas também são muitos. Bastante mencionado, por exemplo, é o
fato de que os impressionistas, Monet, Cèzanne, Renoir, Sisley, inspiraram-se
nos trabalhos científicos sobre o funcionamento da visão, do amigo Eugène
Chevreul.
Do século XIX para cá, com o advento de três grandes revoluções
tecnológicas -- a eletromecânica, a eletroeletrônica e a digital --
com as máquinas produtoras de linguagem que essas revoluções
subseqüentemente trouxeram, a fotografia, o telégrafo e o cinema, na
primeira, o rádio e a TV, na segunda, o computador e todos os seus anexos
e extensões, na terceira, as relações entre arte e ciência passaram a ser
mediadas pelos aparatos tecnológicos. Uma vez descobertos pela ciência,
105
ART

esses aparatos passam a ser imediatamente apropriados pelos artistas para


a exploração dos novos potenciais que eles abrem para a criação artística.

Hibridações da ciência-tecnologia-arte

Como já afirmei em outra ocasião (Santaella 2003: 176), os artistas


inquietos e experimentais sempre trabalham com os meios mais avançados
que o seu tempo lhes apresenta. Se, no Renascimento, o meio mais
avançado era a tinta a óleo, neste início do terceiro milênio, os meios do
nosso tempo estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas
hibridizações dos ecossistemas com os tecnossistemas e nas absorções
inextricáveis das pesquisas científicas pelas criações artísticas. Os artistas
que estão trabalhando com esses meios dificilmente poderiam realizar sua
arte sem conhecimentos científicos e técnicos ou, mais ainda, sem a parceria
certeira com cientistas e técnicos. Essa hibridação entre arte, ciência e
tecnologia tornou-se hoje uma realidade inquestionável, especialmente
no mais recente avanço da arte para dentro do território da ciência como
é aquele que se revela na bioarte (ver Santaella 2004: 95-114, ver também
Grau 2003: 285-304).
Há quase 20 anos, Mandelbrojt (1994: 179) já falava sobre a relevância
dessas relações e hibridizações. Os avanços constantes da ciência e
tecnologia, pelo menos desde a segunda metade do século XIX, foi
tornando tão importante situar a arte na sua relação com a ciência quanto
era importante situar a arte com respeito à religião na Idade Média. A
comparação entre ambos pode levar a uma melhor compreensão tanto de
uma quanto de outra.
Renovando as considerações de Mandelbrojt, para Wilson (2001: 147),
os artistas estão verdadeiramente perplexos com o que fazer em resposta à
crescente importância da pesquisa científica e tecnológica na formação da
cultura. Diante disso, uma das perspectivas mais desafiadoras é aquela que
conclama os artistas a entrarem no âmago dos desenvolvimentos como
participantes essenciais, pois é um grave erro, continua o autor, “entender
a pesquisa contemporânea meramente como um empreendimento
técnico; ela tem profundas implicações práticas e filosóficas para a cultura”,
implicações das quais os artistas não podem estar alijados.
Isso significa que o artista não se coloca simplesmente na posição
daquele que faz uso dos resultados de pesquisas realizadas pelos cientistas,
mas participa ele mesmo na atividade da pesquisa. Isso se revela no trabalho
que artistas, nas últimas décadas, vêm realizando com o computador,
fazendo experiências quase ao mesmo tempo em que os pesquisadores
também as realizam. Isso fica igualmente claro nos trabalhos atuais de
artistas lidando com robótica, com realidade virtual, realidade aumentada
e com vida artificial.
As principais alianças que se estabelecem entre arte e ciência
podem tomar variadas formas: a colaboração entre artistas e cientistas,
a apropriação e exploração de procedimentos científicos pelos artistas,
propostas visuais que ecoam problemas científicos ou ainda pesquisa que
106
ART
se baseia em uma hipótese formulada por meio de uma obra de arte.
Dadas essas possíveis variações, é impressionante o recente crescimento
no número de instituições, artistas e teóricos voltados para as relações entre
arte e ciência. Para ilustrar essa afirmação, apresento a seguir uma listagem
não exaustiva dos campos de atuação da arte ciência e de alguns artistas e
cientistas nelas envolvidos.

Campos de atuação da arte-ciência

Um dos grandes especialistas nas aproximações e apropriações da


ciência pela arte é Stephen Wilson, Professor de Conceptual/Information
Arts, no Art Department da San Francisco State University. Seu livro,
Information Arts: Intersections of Art, Science, and Technology, publicado em
2001, apresenta uma impressionante documentação e avaliação crítica
desse universo. O livro versa sobre as diversas áreas científicas com as quais
a arte e tecnologia se interseccionam.

• (a) Biologia (microbiologia, genética, comportamento de plantas e


animais, o corpo, processos cerebrais-corporais, tecnologias imagéticas
do corpo, medicina).

• (b) Ciências físicas (física das partículas, energia atômica, geologia, física,
química, astronomia, ciências espaciais e tecnologia GPS).

• (c) Matemática e algoritmos (fractais, arte genética, vida artificial).

• (d) Cinética (eletrônica conceitual, instalações sonoras e robótica).

• (e) Telecomunicações (telefone, rádio, telepresença, web arte),

• (f ) Sistemas digitais (mídias interativas, RV, realidade aumentada,


sensores alternativos – tato, movimento, olhar, características pessoais,
ativação de objetos, som 3-D, fala, visualização científica, vigilância,
sistemas de informação).
Na área de arte robótica, há um número muito grande de artistas. Um
grupo proeminente, formado em 1992, sob o nome de Amorphic Robot
Works e sediado em Nova York, reúne artistas, engenheiros e técnicos que
trabalham juntos para criar performances robóticas e instalações.
Já existe inclusive uma Associação denominada ArtBots que promove
o The Robot Talent Show, uma exposição internacional de arte robótica
e da arte de se criar robôs. Não poderia haver um indicador mais claro da
miscigenação da arte e ciência do que essa justaposição entre uma arte
robótica e a arte de criação de robôs. Essa associação organizou uma longa
cronologia da arte robótica que já teve início nos anos 1950.
O campo da bioarte e arte genética não está menos avançado do que
o da arte robótica (ver Grau 2003, Santaella 2003). Ele envolve obras que se
107
ART

utilizam tanto de materiais vivos (DNA, microorganismos, células, tecidos)


quanto de mídias tradicionais como a pintura como um modo de se engajar
na problemática da biotecnologia. Trata-se de um campo extremamente
controverso. Pronunciamento crítico sobre as questões envolvidas na bioarte
foi feita por Roger Malina, diretor do Euve, observatório da Nasa, e teórico
das relações entre arte e ciência, durante o Contemporary Art Experts Forum
da Arco-04, Feira de Arte de Madrid. Para Malina, em relação à bioarte,
especialmente quando envolve manipulação de material genético, e ao design
midiático da vida artificial, devemos manter uma atitude crítica para evitar a
cegueira de nossas perspectivas.
Outra área também explorada por alguns artistas é a da nanoarte que
usualmente explora os espaços quase onínicos da nanotecnologia em conexão
com as realidades e aplicações dos fenômenos em nanoescala. A nanoarte
trabalha tanto com as ferramentas e técnicas da nanociência, quanto com
suas metáforas subjacentes naquilo que elas sugerem da compreensão que
podemos ter de nós mesmos e do nosso lugar no mundo.
Uma área, até mesmo surpreendente, em que as relações entre arte e
ciência têm emergido, está voltada para os átomos, fissura e fusão. Enquanto
a química orgânica na sua conexão com sistemas vivos é mais frequentemente
trabalhada pelos artistas, a química inorgânica e os processos nucleares de
fissura e fusão raramente aparecem em contextos culturais e artísticos. No
entanto, a busca de fontes energéticas alternativas tem colocado o átomo em
evidência, chamando a atenção inclusive dos artistas.
Em uma linha similar, existem trabalhos de arte que exploram, ilustram,
completam ou enriquecem um dos mais importantes debates em curso na física
atual sobre a incompatibilidade da física quântica com a teoria da relatividade
geral. Na mesma esteira dos cientistas, os artistas tentam interpretar o
infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Também se preocupam com
as aplicações das mídias locativas, com os campos eletromagnéticos e com as
consequências da curvatura do espaço-tempo. Entretanto, os fundamentos
epistemológicos e os meios visuais de que se apropriam para atingir seus
objetivos são radicalmente distintos daqueles que são utilizados na ciência.
Tendo em vista a ecologia e as questões climáticas que estão hoje no
centro das preocupações internacionais, há artistas que têm se envolvido
com trabalhos que exploram uma noção expandida da ecologia em tempos
de emergência. A expansão no conceito de ecologia vem dos três tipos de
ecologia desenvolvidos na ecosofia de Guattari: o ambiente, as relações sociais
e a subjetividade. A ecosofia de Guattari não envolve as costumeiras divisões
entre natureza e cultura, natureza e homem, espécie humana e espécies não
humanas. Em lugar disso, o autor lida com diversos aspectos do pensamento
e da ação ecológica – o ambiental, o mental, o social, o político.
Por fim, um campo que tem chamado atenção recentemente é o da
neuroestética e neuroarte. Os avanços nas neurociências e neuroimagens
têm atraído os artistas para os variados aspectos que essas ciências revelam
sobre o cérebro. No campo vizinho, existem também trabalhos de artistas
que se interessam pelas relações entre arte e medicina.

108
ART
Artistas pioneiros na arte-ciência

Alguns dos artistas mais conhecidos cujos trabalhos, muitas vezes em


parceria com cientistas, situam-se nos interstícios entre arte e ciência são:
Thomas Ray, biólogo e pioneiro em criações de vida artificial. Ele colaborou
com Kwnobotic Research e com Christa Sommerer e Laurent Mignonneau
(artistas sediados no Centro de Arte e Tecnologia de Tóquio) na criação
do E-Volve, uma das mais comentadas obras digitais de artebio. Joe Davis
vem desenvolvendo trabalhos em arte transgenética no MIT. Ted Krueger
tem fabricado sentidos sintéticos. Esse artista-cientista pratica e analisa
questões sobre gravidade zero, quando o corpo incorpora o ambiente.
Marcos Novak vem trabalhando com arquitetura inteligente. Victoria
Vesna, artista e chefe do departamento de Design e Artes Midiáticas na
Universidade da Califórnia, em parceria com Jim Gimzeski, especialista em
nanotecnologia, criou o Zero@wavefunction: nano dreams, uma obra que foi
exposta em Los Angeles. Marie Hélène Tramus e Michel Bret têm trabalhado
com inteligência artificial, redes neurais e autonomia em sistemas auto-
organizativos e Scott Fischer com Realidade Virtual.
Desde os pioneiros acima elencados, o número de artistas nesse campo
tem crescido, inclusive no Brasil já há alguns artistas que estão produzindo
nos interstícios da arte e ciência. Uma vez que estou trabalhando
no momento no levantamento de obras desses artistas brasileiros, a
apresentação de um mapeamento relativo a eles deverá ficar para uma
outra ocasião.

Assimetrias nas relações entre arte e ciência

Diante da proliferação de trabalhos que revelam a indissociação


contemporânea entre a arte e a ciência, resta perguntar por que, através
dos tempos, a ciência não necessitou da arte e não se aproximou da
arte com a mesma intensidade com que esta buscou aquela. Para
compreendermos as razões dessa assimetria, é preciso refletir um pouco
sobre algumas distinções básicas entre a ciência e a arte, enquanto formas
de conhecimento e representação do mundo.
A ciência tem como tarefa decifrar as leis da natureza, para poder
predizer ocorrências futuras. Seu compromisso com o objeto que propõe
conhecer é incontornável. Por isso mesmo, o esforço da ciência está
voltado para o aprimoramento dos meios de observação acurada, aferição,
experimentação e mesmo simulação do real. Seus protocolos de pesquisa
são controlados e seus procedimentos padronizados. Por isso também,
os discursos da ciência buscam evitar ambigüidades, sentidos suspensos,
resultados inconclusos.
A arte, por seu lado, não assina compromissos diretos com o real. Ela
nasce e se realiza por força dos apelos indomáveis do imaginário e seu
discurso, em quaisquer dos sistemas de signos com que trabalhe – verbal,
visual, sonoro e todas as suas misturas, alimenta-se do impreciso, do incerto,
do indecidível.

109
ART

Embora essas sejam distinções básicas entre a ciência e a arte, o século


XX viu nascer, dentro da própria ciência, teorias que colocaram em cheque
suas tradicionais pretensões de precisão, objetividade, conclusividade,
como, por exemplo, ocorreu com a física quântica, com o princípio da
incerteza de Heisenberg, com o teorema da incompletude de Gödel. Além
disso, o advento do computador tornou possível a visualização de mundos
matemáticos complexos como nas teorias dos fractais, do caos determinista,
enfim, o mundo dos números, das equações, dos algoritmos, quando
transplantado para as telas dos computadores, revela imagens dinâmicas
cuja exuberância estética nos obriga a repensar supostas separações entre
ciência e arte (ver Azeredo Campos, 2003; Santaella, 2010).
Isso, entretanto, não anula a dissimetria no modo como cada uma
se aproxima da outra. Enquanto os artistas buscam crescentemente a
intersecção com a ciência, os cientistas, via de regra, devido às condições
impostas à sua formação, têm uma visão bastante conservadora da arte.
Razões para tal dissimetria não faltam. A começar pelas distinções nas
esferas sócio-culturais e institucionais em que ambas, ciência e arte,
operam. Na expectativa da multiplicação do retorno financeiro que as
descobertas científicas trazem, investimentos vultosos são aplicados pela
indústria e pelo Estado nas pesquisas científicas, em laboratórios e equipes
de pesquisa que gozam de condições de trabalho, muitas vezes invejáveis,
enquanto a arte continua a ser conservadoramente concebida como uma
relíquia do mundo artesanal, como o campo reservado para o tratamento
das questões do sentimento e das emoções.
Com isso não se quer sugerir que a arte não seja também mastigada
nas engrenagens do capital. Índice seguro da absorção da arte pela cultura
oficial e alto comércio encontra-se no enorme investimento financeiro
voltado para a construção de museus impressionantes na dimensão e
luxo que exibem. O que interessa, para o giro do capital relativo à arte,
é hipervalorizar os objetos criados pelos artistas, depois que eles já os
criaram. São poucas as instituições no mundo voltadas para o apoio,
incentivo e suporte financeiro ao processo de produção do artista. E ironia
maior: o valor agregado à obra do artista aumenta depois de sua morte. O
artista vale mais quando morto do que quando vivo.

Paralelismos e afinidades

Apesar das evidentes diferenças não se quer sugerir que não existem
paralelismos, afinidades e similaridades entre a ciência e a arte. Entretanto,
as similaridades não são capazes de anular o argumento que estou aqui
apresentando, a saber, enquanto a arte, no seu processo de produção e nos
seus alvos, está cada vez mais interseccionada com a ciência, a recíproca
não é verdadeira.
O que a ciência tem de mais forte é sua perscrutação das leis
evolucionárias da natureza por meio de protocolos e métodos analíticos
rigorosos e mediações fortemente codificadas. O que a arte tem de mais
desafiador está na criação de mediações sintéticas, qualitativas e sensíveis
com capacidade revelatória de mundos atuais ou possíveis. Fundir essas
110
ART
duas forças é o norte da arte-ciência contemporânea.
Em suma, constatar as distinções entre arte e ciência não pode nos cegar
para a similaridade ou identidade do lado criativo dessas duas atividades
mais nobres de nossa espécie. Arte e ciência diferem nos métodos e nos
envolvimentos pessoais que implicam. Mas o que as unifica é o espírito
inventivo que está no âmago do humano. Uma inventividade que, por ser
portadora de uma finalidade sem fim, a arte está mais apta a levar ao limite.
Por isso mesmo, os artistas são os arautos daquilo que a humanidade tem
de mais admirável: a capacidade de transcender os constrangimentos da
realidade, na luta perene e vital para tornar o humano cada vez mais digno
de si mesmo.

Referências bibliográficas

AZEREDO CAMPOS, Roland (2003). Arteciência. Afluência de signos co-moventes. São Paulo:
Perspectiva.

GRAU, Oliver (2003). Novas imagens da vida. Realidade virtual e arte genética. Em Arte e vida
no século XXI – Ciência, tecnologia e criatividade, Diana Domingues (org.). São Paulo: Unesp.

MANDELBROJT, Jacques (1994). Introduction. Art and science: similarities, differences and
interactions. Leonardo vol. 27, no. 3, The MIT Press, 179-180.

SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à


cibercultura. São Paulo: Paulus.

.(2004). Corpo e comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo: Paulus.

. (2010). A ecologia pluralista da comunicação. Conectividade, mobilidade,


ubiqüidade. São Paulo: Paulus.

WILSON, Stephen (2001). Information arts. Cambridge, Mass.: Mit Press.

1 Professora pesquisadora da PUC-SP.

111
ART

Identidade cultural de grupo no processo de design,


produção e interação na arte de transição, transiarte, uma
ciberarte coletiva na Educação de Jovens e Adultos – EJA
Lúcio Teles1 e Aline Zim2

Resumo: A arte de transição ou transiarte é entendida como aquela que


usa o digital como suporte de criação para o ciberespaço mostrando a
existência de uma transição estética entre a arte presencial dos membros de
um grupo, cujo suporte passa a ser digital em formato vídeo, texto,, imagem
ou som, animações, e outras mais. A transiarte permite a construção de
relações entre as diferentes linguagens artísticas, os sujeitos participantes,
as interfaces digitais no ciberespaço. Trata-se de uma forma de ciberarte
que é desenvolvida no projeto PROEJA-Transiarte, uma pesquisa-ação
da Faculdade de Educação da UnB com estudantes de EJA (Educação de
Jovens e Adultos), na cidade de Ceilândia, Distrito Federal. A especificidade
da transiarte, além de que para se ter acesso é necessário estar conectado
à Internet, está no processo de criação, que é coletivo e se manifesta no
ciberespaço. Este coletivo geralmente está formado a partir da iniciativa
de um professor com uma disciplina especifica do currículo EJA, e se nutre
de experiências, habilidades, e memórias artísticas dos membros do grupo
de participantes. Os pesquisadores/formadores da equipe da pesquisa-
ação, ajudaram com a instalação de vários softwares que foram utilizados,
como o GIMP (desenho gráfico), o Paint, o MovieMaker, facilitando assim
a utilização destas tecnologias. O grupo de estudantes EJA trabalhou
e produz arte coletiva que é postada na net. Esta postagem e interação
online, pode ser na forma de texto, como em poesia, relatos, contos curtos,
e mesmo documentos; de vídeos curtos sobre temas de interesse coletivo,
fotos, e musicas ou formas de expressão de som gravadas. Estas criações são
postadas no portal do projeto www.proejatransiarte.ifg.edu.br A transição
estética de uma forma de arte “tradicional” à arte virtual vivenciada pelos
estudantes EJA é um processo que ocorre durante a criação, o design e a
produção artística facilitando a emergência de uma identidade cultural de
grupo que se expressa através da ciberarte coletiva, a transiarte.
Palavras-chave: transiarte, ciberarte, educação de jovens e adultos, arte
coletiva, inclusão digital, digital art
Abstract: The art of transition – transiart – is seen as one makes uses of digital
support for the creation of works of art for the cyberspace.. This art-form can
facilitate an aesthetic transition between the art that is created with traditional
support such as paints, paper, cameras , to the digitally created works of art.
Transiart also refers to the art-form created by collectives using technologies
such as digital cameras, sound recording and remix, stop motion, videos,
animations, and other techniques. Transiart allows for the development of
relations among various artistica languages, the participantskl-artists, and
the digital interfaces in the cyberspace. The art collective is made up by student
in adult education programs with the objective to complete high school. The
researchers, students and professors from the faculty of education, University
of Brasilia – UnB, supportethe school where the program took place with the
112
ART
installation of various software such as GIMP, MovieMaker, and introduced
them to the use o the technology, emphasizing the aesthetic of creation in
colours, texture, interaction and others. Once they produce a video, or a poem,
a song, a photograph, they can post it online in a you-tub like software that
allows the the continuous interaction with cyber people. The aesthetic transition
from one art form, “traditional”, to the virtual art is experienced by students in
Adult Education who are in the process of completing their high school degree,
and it has been facilitating the emergence of a cultural identify of group, that
expresses itself as a collective cybeart, or “transiarte”, as we named it.
Keywords: cyberart, netart, collective art, adult education and mídia, digital
inclusion, digital art.

PROEJA-transiarte é um projeto de pesquisa com financiamento CAPES,


com fundos orientados para o trabalho da educação profissional de jovens e
adultos (PROEJA) utilizando a arte digital neste processo. Neste sentido busca-se
ligar a produção coletiva da transiarte com os objetivos do PROEJA, tais como
a utilização de novas tecnologias no processo de aprendizagem e de inclusão
social. Além de ser integrada às atividades da escola, a produção coletiva da
transiarte facilita o desenvolvimento de um possível itinerário formativo para
estes indivíduos, como por exemplo, a escolha de uma carreira voltada para o
design de softwares ou mais especificamente de tratamento de som ou foto
digital, criador de animações, design de interfaces e outras mais que estão em
crescente demanda nesta área.
A equipe de pesquisa deste projeto é constituída por professores
universitários, estudantes da graduação e da pós-graduação. A metodologia de
pesquisa utilizada no grupo é a pesquisa- ação existencial proposta por Barbier
(2002). Segundo o autor, a pesquisa-ação se distingue de outros modelos pela
abordagem da realidade, própria da intuição, criatividade e improvisação. No
contexto do PROEJA-transiarte, não é o pesquisador individual mas todos os
participantes do grupo que contribuem com os resultados da pesquisa.
O objetivo do projeto é investigar o processo de introdução de arte
digitalizada na escola, a partir do design e produção de trabalhos artísticos
digitais e compartilhá-los.
As oficinas de trabalho coletivo da transiarte se dão em uma escola de
Educação de Jovens e Adultos (EJA), na cidade de Ceilandia, ao lado de Brasília.
Os participantes são os estudantes de EJA que, junto ao professor, decidem
tomar parte do tempo dedicado às disciplinas (matemática, português, historia,
física etc.) para trabalhar com a transiarte. Uma escola profissional que fica a
800 metros da escola também participa do programa. Lá as atividades são mais
focados no ensino técnico do uso das ferramentas de software para a produção
de textos, fotos, músicas e videoclipes, que serão depois disponibilizados no
ciberespaço, no site do projeto http://www.proejatransiarte.ifg.edu.br.

A transiarte, uma forma de ciberarte coletiva no ciberespaço.

O referencial teórico da transiarte se dá na confluência de conceitos e


113
ART

considerações desenvolvidos por três críticos de arte: Walter Benjamin,


Richard Shusterman e Nicolas Bourriaud. A estes críticos de arte anteriores à
Internet incluímos também o artemidia de Arlingo Machado e Arte e Mídia
de Priscila Arantes. Ambos autores trata da arte em tanto arte digital.
Walter Benjamin, com seu trabalho sobre a reprodutibilidade técnica
da obra de arte, coloca a contemporaneidade de sua teoria em relação à
tecnologia digital que parece magnificar ainda mais a velocidade com
que se dá a reprodutibilidade técnica - agora não somente de tecnologias
analógicas mas também digitalizadas. E isto traria como conseqüência a
perda da aura da obra de arte, enquanto ao mesmo tempo facilitando a
disseminação mais rápida de acesso à arte por um numero crescente de
pessoas, democratizando assim o acesso a outras formas de expressão.
Shusterman mostra que quando pensamos na palavra arte, estamos
quase sempre associando essa noção com belas artes ou arte erudita como
também é conhecida. Pensamos em obras de teatro, plásticas, galerias de
pinturas e assim por diante. A palavra está quase sempre relacionada com
a chamada “arte erudita”. Quando se fala de história da arte o foco se dá
sempre nos grandes gênios da literatura, pintura, escultura que, através dos
séculos, foram criando obras que hoje estão nos museus e galerias publicas
ou privadas. E a “arte popular” recebe assim o status de segunda classe.
Mas segundo Shusterman o que se deve buscar é estabelecer uma ponte
entre a arte erudita e a popular, sendo ambas formas válidas de expressões
artísticas.
O terceiro elemento que facilitou a emergência da transiarte como
forma de expressão artística contemporânea é seu trabalho como coletivo
no processo artístico, durante o qual a geração de temas para o trabalho
coletivo do grupo é escolhido, a escolha da forma de arte, os suportes, assim
como o roteiro são debatidos e executados pelo grupo com sua plateia,
implicando assim numa estética relacional (Bourriaud). A estética relacional
vê a arte como processo de interação social que se dá nas relações humanas
coletivas de arte. Tal como diz Cunha (2007):
A arte relacional não pretende progredir através dos conflitos e dos opostos,
característicos no pensamento moderno, no qual proliferavam ideais de
oposição. A prática artística hoje pretende se desenvolver a partir do progresso
das relações entre unidades diferentes e através da conciliação de ideais opostos
(Cunha, 2007).

No trabalho artístico da transiarte, procura-se desenvolver uma


amplitude de opções para que todos se sintam efetivamente incluídos

A contemporaneidade da reprodutibilidade técnica da arte

Na sociedade contemporânea vivenciamos uma revolução profunda


em nossos costumes, hábitos e na forma como nos expressamos e nos
comunicamos. O período que vivemos é marcado pela utilização da tecnologia
digital e da Internet, assim como os vários softwares e hardwares que foram
criados para o ciberespaço, como as redes sociais e as comunidades virtuais.

114
ART
O impacto das novas tecnologias na arte é descrita por Benjamim
(2005) que estudou o uso de tecnologias na sociedade e sua relação com
a arte de seu tempo. Ele chegou à conclusão de que novas tecnologias
fazem com que a obra de arte seja cada vez mais reprodutível (como por
exemplo na reprodução do som, primeiro no fonógrafo, depois nos discos
de vinyl, até nossos dias com o som digitalizado; ou a fotografia, tanto
digital quanto analógica). Ao ser reprodutível em grande escala a arte
perde sua “aura” ao mesmo tempo em que chega a setores mais amplos
da sociedade, e se democratiza. Benjamin afirma que quando mudam as
épocas históricas e com elas as formas de como a sociedade produz seu
sustento, muda também a percepção dos seres humanos. Esta mudança
sensório-perceptiva leva a uma transformação na forma como nós como
seres humanos percebemos os fenômenos sociais, inclusive a arte.
Uma mudança histórica recente foi a introdução da tecnologia digital
no planeta. Nossas formas de comunicação foram alteradas e também a
maneira de nos expressarmos na nossa comunicação cotidiana. A tecnologia
digital permite que amplos setores da população possam participar em
vários âmbitos antes relegados a poucos. Uma delas é a arte digital que
permite que uma grande parte das pessoas possam ser potencialmente
criativas.

Arte e tecnologia

Frequentemente a arte digital é vista como “somente tecnologia”. Todos já o


fazem o que a torna uma “arte popular”, sendo desqualificada por estes adjetivos. A
conceituação da arte proposta por Shusterman (2005) permite ir além das limitações
impostas pelas noções conflitantes de belas artes e arte popular para se chegar a uma
nova conceituação que inclua no universo estético ambas formas de expressão artística.
A passagem do real físico para o virtual, ou seja, a digitalização de componentes
artísticos produzidos por meio das técnicas das artes “tradicionais” permite capturar
expressões artísticas agindo como uma linguagem norteadora do fazer artístico. Neste
sentido, o fazer artístico pode ser constantemente reinventado ou modificado para ser
parte da arte eletrônica no ciberespaço.
Nesta perspectiva é marcada pela mudança na essência dos elementos da arte, ou
seja, de um estado, de um sentido, de um sentimento que mostra também expressões
de transição da vida do artista. As obras de arte transitam do imaginário daquele que
a criou e a sua percepção do contexto social que a envolve. A arte de transição, assim
como a ciberarte permite infinidades de interação do artista com a sua obra, assim
como exercício do olhar promovido pela mudança tecnológica. Neste projeto, explora-
se a transiarte, uma forma de ciberarte que facilita o desenvolvimento de habilidades
no uso da Internet facilitando a inclusão digital e social por meio das novas técnicas e
formatos artísticos.

Estética relacional

O indivíduo enquanto ser humano está interessado na arte como forma


de expressão artística a partir de seu próprio interesse e gosto. Na discussão
115
ART

do grupo ele vai aprender a negociar esta relação do individuo com o grupo
enquanto experiência estética. Segundo Cunha (2007),
As ações artísticas relacionais são calcadas no desenvolvimento do pensamento
artístico através da criação de interstícios sociais nos quais novas “possibilidades
de vida” são desenvolvidas e se revelam possíveis – é a estética da conciliação.
Desenvolvem suas práticas através da criação de mundos possíveis com os aspectos
mais proximos da realidade humana, são feitas com os vizinhos, com os quais se
acredita ser mais urgente inventar relações.

Aqui buscamos capturar o coletivo da arte através da noção da estética


relacional (Bourriaud, 2009) que mostra a importância do intercâmbio social
no trabalho coletivo de arte. À medida em que a estética relacional se dá no
processo criativo e não somente se revela no produto final, o trabalho coletivo
passa a ter um impacto fundamental na estética relacional. Na transiarte este
processo se dá a partir da priorização do trabalho coletivo em diferentes
aspectos, como a escolha dos temas, das técnicas, do roteiro e produção da arte
digital.

A criação coletiva no Proejatransiarte

A dimensão coletiva do Proeja-transiarte se dá no processo criativo de arte


digital realizada por vários indivíduos que formam um grupo. Os membros do
grupo têm em comum que estão na mesma turma de EJA da Escola de Ceilandia;
frequentam reuniões semanais durante o semestre; estão matriculados nas turmas
dos dez professores que participam do projeto, permitindo que dedique parte do
tempo na sala de aula para o trabalho com a transiarte.
Ao incorporar a arte de cada um àquela do grupo na arte do ciberespaço, o
sujeito coletivo na transiarte cria trabalhos de forma conjunta, sem direitos autorais.
O coletivo também usa na sua produção bastante material da Internet, por sua vez
produzidos por outros indivíduos ou grupos.
No Proejatransiarte o trabalho coletivo se dá a partir das oficinas que são
realizadas a cada quinta feira à noite na escola. O grupo se reúne, geralmente
cinco ou mais estudantes, de idade variando de 18 a 70 anos. A partir daí se inicia
a discussão sobre o projeto, a arte do ciberespaço e como o grupo pode trabalhar
com a ciberarte. Uma escola técnica muito próxima da escola EJA oferece também
cursos de introdução às técnicas da ciberarte permitindo que alguns deles se
aperfeiçoem mais no uso de software apropriado para arte digital.

Vídeo “Tribus”
Um dos trabalhos desenvolvidos pela equipe transiarte aconteceu na semana
cultural da escola do Centro de Ensino Médio 03, que acontece duas vezes por
ano. Cursos de vários tipos são disponíveis: artesanato, dança, música e também a
transiarte. A seguir o processo de gestação, criação, e postagem de um videoclipe
chamado Tribus.
Foi numa sexta-feira, último dia de atividades, que foi apresentado o
videoclipe Tribus (ver clipe no site) no auditório da escola. Os estudantes
116
ART
de EJA (Educação de Jovens e Adultos) conduziram esse espetáculo que
aconteceu em torno do vídeo. Houve um encantamento pela técnica e a
identificação imediata entre ela e espectador.
Tudo começou a partir de discussões em roda entre a equipe da
UnB, professores e estudantes da escola, até definirmos um roteiro das
atividades para a oficina transiarte: 1. Geração de temas, discussão do
problema gerador; 2. Roteiro e planejamento das atividades; 3. Execução
artística e audiovisual (fotografias, filmagens, desenhos, teatro, bonecos,
massinha, gravação de músicas, colagens etc.); 4. Edição digital (captação
de vídeos e músicas da internet, tratamento das imagens e áudio, edição do
material captado segundo o roteiro); 5. Postagem do vídeo no site www.
proejatransiarte.ifg.edu.br para interação com internautas.
No Tribus o calouro jogador de basquete, o reaggeiro, o skatista, a
patricinha, a roqueira, o emo, a nerd e a funkeira foram os personagens
escolhidos pela roda de discussão. Por isso o clipe tem pedaços do rap
da periferia, do funk carioca, o punk rock, o pop americano e o pop rock
brasileiro, o reagge de Bob Marley, música popular brasileira, interpretados
cada um pelo seu personagem.
Os estereótipos mostram a diversidade cultural, as classificações e os
rótulos na escola. Nas conversas de roda cada um se sentia mais próximo
de um ou de outro personagem. Na verdade faltaram personagens para
tantas modas e comportamentos classificáveis. Faltaram também os
personagens múltiplos, híbridos, que representam vários tipos ao mesmo
tempo ou então variações desses tipos. Talvez a roda de conversa poderia
ser um espaço de expressão das identidades dos estudantes e professores
de EJA. Participantes sugeriram imagens da identidade cultural de cada um,
das origens e das identidades múltiplas associadas aos grupos, à escola e à
cidade.
Cidade das feiras, cidade dos repentistas ou cidade-dormitório, a cidade
de Ceilândia é o lugar onde as pessoas são muitas – o maior colégio eleitoral
do Distrito Federal. É um espaço próprio de construção de identidades
múltiplas, de transições. Seus habitantes vêm de todo o país, principalmente
do Nordeste. Mais que espaço de transição, a Ceilândia é bairro, moradia
e encontro. Um encontro de tribos, de guetos, de grupos diferentes e
ao mesmo tempo semelhantes entre si. Naquele momento, na roda de
conversa dentro da escola ceilandense, as identidades emergiram em forma
de personagens caricatos, cada um com seus tipos e comportamentos.
E quais são as modas para esses estudantes de Ceilândia? A roda
mostra que essas são modas muitas vezes globalizadas e globalizantes.
Fazem referência direta ao comportamento de se ouvir determinado tipo
de música e pertencem ao mundo atual, ao presente. Onde? De todos
os lugares e em toda parte, do hip-hop mais pedido nas rádios à música
popular brasileira - que de tão popular atravessou o mundo. As modas, as
origens e os destinos se confundem e se misturam; geram outras coisas.
Culturas híbridas, culturas múltiplas, e culturas novas.
Na tentativa de representar os tipos, surgem os personagens
caracterizados na vestimenta e no comportamento, e essa classificação
117
ART

fica interessante para o roteiro. Para a obra de arte e a expressão artística,


escolhemos a livre iniciativa dos estudantes que, nesse caso, foi a de
classificar os diferentes e identificar os pares.
Ao observarmos a roda de discussão, percebemos que os paradigmas
e as visões de mundo dos estudantes se expressam na fala, na música e
nas imagens escolhidas por eles. Essas não são meras informações sobre
a realidade desse ou daquele indivíduo. São imagens deles, sobre eles e
construídas por eles – as múltiplas identidades, a construção individual e a
construção coletiva.
Quando o tema e os personagens foram escolhidos, o ponto de
partida foi a própria escola. As tribos, os guetos e os grupos representam
geralmente a vontade das gerações mais novas de se diferenciarem, de se
expressarem. Procurou-se um roteiro que todos pudessem participar. Cada
um escreveu as características de um personagem e o ponto comum entre
eles era a figura do calouro que chegando à escola é assediado por vários
estudantes, cada um representando uma tribo, um gueto ou um grupo.
Esses grupos foram definidos pela forma de vestir e pelo tipo de música
preferida. Ed, o calouro, aparece com uma bola de basquete. Surgem
então vários elementos ligados aos personagens e ao cenário, que vão se
movimentando e se modificando ao longo da trajetória de Ed.
O cenário constitui ali o fundo para as fotomontagens. Ele é um muro
feito de cartolina colorida, na frente de um céu que é dia e depois é noite.
As músicas se modificam de acordo com os personagens que encontram a
figura de Ed, o calouro do Tribus, pelo caminho. A idéia do roteiro era a de
que eles – os personagens – assediassem Ed a tomar partido de suas tribos.
Ao final dessa trajetória, Ed compartilharia um momento com todos. Mas no
processo dessa transiarte os detalhes se constituem como parte da história
e modificam o roteiro, que não é nunca definitivo ou final.
Alguns bonecos, desenhos e um cenário foram montados. Buscou-se
nas revistas os pedaços, os fragmentos dos atores. Rostos anônimos que
representam pessoas reais. Anônimos ou populares que não reclamariam
seus direitos autorais estão ali, na mídia impressa, expostos ao recorte.
As imagens foram reconfiguradas em seus fragmentos pelas técnicas da
fotocolagem e da fotomontagem. Cartolina, cola e tesoura deram vida aos
bonecos articulados.
Foram novecentas fotografias que animaram o roteiro, usando da
seqüência para dar ilusão de movimento. O claque da câmera não
conseguiu acompanhar a criatividade que quase flui das mãos que
articulam os movimentos dos bonecos. Enquanto alguns participantes
captam essas imagens, outros buscam na rede as músicas que foram
escolhidas. Concluída essa etapa, vamos à edição usando a técnica de
stopmotion, onde uma grande quantidade de imagens estáticas (fotografias,
montagens ou desenhos escaneados), quando postas em sequência, gera a
ilusão de movimento. Pode-se atribuir aqui a qualidade de animação digital,
pois os desenhos animados originalmente usavam desse artifício, mas nós
preferimos chamá-lo de videoclipe. O vídeo ficou muito conhecido pelo
seu formato de vídeo musical, onde a música e o silêncio são elementos
constituintes das imagens.
118
ART
As fotografias são postas em seqüência em um dos programas
eletrônicos que editam imagens, áudio e vídeo. O programa usado foi o
Windows Movie Maker, disponível no sistema operacional Windows. Além
dessa ferramenta, a equipe também trabalha com software livres como
o Cinelerra e o Gimp. Podemos, com a ajuda desses aplicativos, escolher
o tempo em que cada fotografia permanece, atrasando ou acelerando
a ilusão de movimento ou repetindo-o. São recortes e fragmentos de
imagens e músicas que, ao se juntarem, criam uma narrativa que tem como
ponto de partida o roteiro. Mas o roteiro não é o fim, porque ele pode ser
desconstruído e modificado durante o processo, principalmente na edição.
Pela edição conseguimos expressar nossa habilidade de contar uma
história ou transmitir uma mensagem, porque ali organizamos as idéias
através da imagem, do som e do movimento. Esteticamente, a imagem
em movimento enquadrada e editada se aproxima do nosso pensamento.
Imaginamos cenas esteticamente parecidas com as que vemos nas telas,
mesmo antes da técnica cinematográfica surgir já que as técnicas e as
tecnologias modificam o ser humano ao longo do tempo e espaço, e vice-e-
versa. Priscila Arantes (2008) nos lembra que,
As técnicas, de acordo com Benjamin, desencadeiam percepções e processos
cognitivos que são, muitas vezes, os motores das grandes transformações
estéticas. (...) Contrariamente às técnicas de visualização desenvolvidas na
época do Renascimento, que tinham no olhar do sujeito único e imóvel seu foco
fundamental, as tecnologias informacionais ligam-se muitas vezes a um sujeito
em trânsito, em constante movimento. Nesse contexto, não somente a obra se
movimenta, rompendo com a forma fixa e imutável da estética da forma, mas o
próprio sujeito se desloca, interferindo no comportamento da obra (p. 31).

As novas técnicas artísticas possibilitam ao ser humano experiências


estéticas diferentes. Diana Domingues (2002) aponta a ciberarte como uma
experiência partilhada entre produtor e receptor.
A partilha com os participantes da experiência modifica a relação obra-recepção,
pois não mais se trata de um público em atitudes contemplativas, mas de
sujeitos/atuantes que recebem e transformam o proposto pelo artista, em ações
e decisões que são respondidas por computadores. É o fim do “espectador” em
sua passividade. A passividade é trocada pela possibilidade (p.61).

Da mesma forma que é interativa, a transiarte é uma obra aberta porque


pode ser modificada. Seu valor de origem é praticamente irrelevante.
Quando ela é reproduzida, não importa o meio, não importam as mídias,
o que vale é seu poder de transmissibilidade e acesso. Segundo Walter
Benjamin (1994, p. 168), a esfera da autenticidade, como um todo, escapa
à reprodutibilidade técnica. O autor salienta que a obra de arte poderia ser
colocada em situações inusitadas e até mesmo impossíveis se não fosse
reproduzida. “A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de
um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido
num quarto”, exemplifica. E continua:
Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez
na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte
reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser
119
ART

reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade


de cópias; a questão da autenticidade não tem nenhum sentido (p. 171).

A questão da autoria também é discutida nos grupos transiarte.


Tradicionalmente, ela está ligada a uma concepção mais individual do
sujeito. No movimento moderno do início do século XX, por exemplo,
a arte era vista como a expressão profunda da singularidade desse
indivíduo, ou seja, a noção do talento individual do artista. Ao falar da
morte do sujeito moderno, Stuart Hall (2005) afirma que a noção de
identidade unificada e individual está associada com a modernidade.
No início no século XX, segundo esse autor, emergem dos movimentos
estéticos e intelectuais um quadro perturbado e perturbador do
sujeito e da identidade. Na modernidade tardia, ou pós-modernidade,
o sujeito e identidade únicos estariam abalados por fragmentações e
deslocamentos, onde até mesmo condições de ubiquidade colocariam
em questão a noção da autoria da obra de arte. Alguns autores apontam
a “morte do autor”, enquanto outros mais conservadores defendem
a pureza como condição de sobrevivência da obra de arte. O impuro
seria considerado um desrespeito aos limites, quando estruturas e
identidades são misturadas. Ainda sobre a morte do sujeito, Lucia
Santaella (2004) nos diz que
Não é apenas o pressuposto de que existe um sujeito universal e centrado
que está em questão, mas, sobretudo, como porventura o sujeito poderia
ser situado, corporificado, fragmentado, descentrado, des-construído ou
destruído. Por isso, no lugar dos antigos “sujeito” e “eu”, proliferam novas
imagens de subjetividade. Fala-se de subjetividade distribuída, socialmente
construída, dialógica, descentrada, múltipla, nômade, situada, fala-se de
subjetividade inscrita na superfície do corpo, produzida pela linguagem etc.
Nessa mudança, o psicológico abandona o espaço privado e intransferível
das psiques individuais para alojar-se nas encruzilhadas e nas ruelas que
marcam o estar-no-mundo com outros seres humanos (p. 17).

Segundo Priscila Arantes (2002), muitos dos trabalhos em mídias


digitais
implicam a desmistificação de certos valores convencionais da obra de arte
e do artista. A idéia de que a obra de arte é fruto de um gênio individual
em profunda sintonia com o cosmos cai por terra. Há cada vez menos
pertinência em encarar os produtos ou processos estéticos contemporâneos
como criação individual, como manifestação do estilo de um gênio singular,
em vez de um trabalho em equipe (p. 49).

Os estudantes envolvidos no projeto transiarte são autores,


interatores, público e produção. No ciberespaço eles experimentam
a autoria coletiva, se vêem e se ouvem – sentem. Decidiram, tanto
na elaboração do trabalho, como na forma de disponibilização no
ciberespaço, pela não autoria do trabalho produzido, disponibilizando
os mesmos para serem vistos, copiados e/ou modificados.

120
ART
Conclusões

A criação coletiva é um complexo projeto estético que permite a


negociação entre membros do grupo na geração de um tema para posterior
produção digital e postagem na Web. Neste projeto o coletivo foi o veiculo
para a produção e disponibilização da arte digital no site do projeto. Ali,
as artes digitais permitem maior interatividade, pois as fronteiras entre
obra e público podem ser desconstruídas facilmente. Nessa pesquisa com
a transiarte, por exemplo, é possível alterar e reconfigurar as produções
artísticas, porque as técnicas digitais permitem essas ações. Os estudantes
são incentivados a interagirem no ciberespaço, num trabalho individual,
coletivo, contínuo e inacabado.
Ao aceitarem a roda de discussão como o ponto de partida para a
oficina transiarte, muitos estudantes revelam a falta de contato com as
novas tecnologias, principalmente com o computador. Um dos objetivos
da oficina transiarte foi de promover os primeiros contatos de muitos
estudantes com o computador e a Internet. Para alguns, estaria ali uma das
poucas oportunidades de se aprender informática. A transiarte como arte
de transição mostra para eles a galeria virtual como possibilidade de um
espaço interativo povoado pelas produções artísticas e construído a partir
dessas interações.
O ciberespaço é um espaço reverberante, onde as possibilidades
atravessam até mesmo a condição transitória dessas pessoas na escola EJA.
O vídeo Tribus, por exemplo, ganhou outras telas e outras platéias, dentro e
fora da escola. Ele está nas redes, para quem quiser ver e ouvir, a qualquer
momento e em qualquer lugar, como arquivo postado no “transiartetube”.
Esse espaço virtual é uma imensa galeria onde as pessoas podem
compartilhar todo tipo de arte que puder ser digitalizada. São videoclipes,
animações, imagens, poesias, músicas, textos e fotografias modificadas,
além dos comentários e avatares que povoam esse espaço e torna possível
a interatividade entre os seus usuários.
Mais do que galeria, o site proejatransiarte é um espaço de vivência
coletiva, um ensaio para uma comunidade virtual. Todas as produções
transiarte estão expostas no mundo virtual ao remodelamento e às
redefinições. Isso significa que a autoria é coletiva no que se refere aos
participantes da oficina transiarte, mas não é definitiva. Toda obra de arte
ali pode ser modificada, descontextualizada e redefinida por quem quiser.
A obra de arte perde o seu valor de origem, sua autenticidade, e ganha
as redes, o ciberespaço, onde é reproduzida infinitas vezes, em espaços-
tempos diversos. Dada a especificidade mesma da transiarte de ser uma
forma de arte digital em uma sociedade em rede, é possível que cada vez
mais existam coletivos de todo tipo na Internet que trabalhem de uma
maneira similar na produção coletiva de arte digital, como no Projeto
PROEJATransiarte.

121
ART

Referências

ARANTES, Pricila. @rte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora SENAC São
Paulo, 2005

BARROS, Anna & SANTAELLA, Lucia. Mídias e Artes: os desafios da arte no início do século XXI.
São Paulo: Unimarco Editora, 2002.

BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Trad. Lucie Didio. Brasilia: Liber Livro Editora, 2007.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:


Brasiliense, 1989 (Obras escolhidas vol III).

. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO et al.


Teoria da Cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p.
221-254.

. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas vol
I).

. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995 (Obras escolhidas vol II).

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

. Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World. Nova York: HAS &
Sternberg, 2005.

BRITES, B.; TESSLER, E. O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes
plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002 (Coleção Visualidade; 4).

CUNHA, Ana. <http://www.fav.ufg.br/8art/Nova%20pasta/texto-anadacunha.pdf>

DOMINGUES, Diana. Arte, Ciência e Tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo:
Editora UNESP, 2009.

. Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora
UNESP, 2003.

. Criação e interatividade na ciberarte. São Paulo: Experimento, 2002.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,


2005.

MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. Trad.


Gisela Domschke. São Paulo: Ed. 34, 1998.

SANTAELLA, Lúcia & ARANTES, Priscila. Estéticas Tecnológicas: novos modos de sentir. São
Paulo: Educ, 2008.

SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo:
Paulus, 2004.

. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo:


Paulus, 2003.

. “Ciberarte de A a Z.” In DOMINGUES, Diana. Criação e interatividade na ciberarte.


São Paulo: Experimento, 2002.

122
ART
TELES, Lúcio. Reconfigurações estéticas virtuais na transiarte. in MARTINS, Raimundo.
Visualidade e Educação. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás.

. Transiarte na produção artística do ciberespaço. Brasilia: [s.n.], 2006. <http://


www.fe.unb.br/pos-graduacao/arquivos/transiarte.pdf.>.

VENTURELLI, Suzete e TELES, Lúcio. Introdução à Arte Digital. Publicado no Creative


Commons. www.creativecommons.com.br

VIDEOCLIPE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2010.


Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Videoclipe&oldid=18662140>.
Acesso em: 2 mar. 2010.

1 Professor Adjunto, Faculdade de Educação, Universidade de Brasília.

2 Professora de Arquitetura na Universidade de Brasília.

123
ART

Código e linguagem: articulações e construções do visível


Luisa Paraguai1

Resumo: Este texto procura contextualizar as linguagens de programação


como elementos intrínsecos e norteadores no campo das artes e do
design. Importa refletir sobre as produções artísticas e de designers sob a
ótica das estruturas computacionais, na medida em que ao organizarem
outputs dinâmicos repensam os modos de projetar. O designer-artista
neste contexto coloca-se como um articulador de objetos computacionais,
que modelam a relação humano/máquina e resultam em construções do
sensível. No final, serão apresentados alguns trabalhos que atuam como
agentes da relação entre linguagens computacionais e materialidades.
Palavras-chave: Arte e tecnologia, estética computacional, código,
linguagem, tecnologias de inscrição.
Abstract: The paper is concerned with computational languages as intrinsic
elements and guiding principles in the art and design field. It is important to
think about the artistic and design productions from the perspective of the
computational structure, since through the organization of dynamic outputs
they reconfigure the projecting modes. An artist-designer on that context
can be recognized as an articulator of computational objects that are able
to conform the human/machine relationship and produce constructions of
sensitive. At the end, some projects will be presented as they work as agents of
computational languages and materialities.
Key-words: Art and technology, computational aesthetic, code, language,
inscription technologies.

A cultura do software implica em performances


dinâmicas construídas em tempo real.
(MANOVICH, 2008, p.17)

Neste texto pretende-se explorar as relações entre representação e


modos de produção, articulando modelos de tradução entre linguagens e
visualidades.
O conceito de “metáfora material” proposto por Hayles (2002, p.22) como
processo de tradução entre palavras e artefatos físicos, enfatiza a conexão
entre modos de visualidades e linguagem computacional. Interessa neste
texto focar alguns processos de produção e suas estruturas lógicas, embora
reconhecendo que a atualização dos dados pela negociação – leitura,
intervenção e significação dos mesmos, dependa dos leitores e seus
referenciais.
Para Reas, Mcwilliams e Barendse (2010, p.11) o código tipicamente
congrega três principais propostas “comunicação, explicação ou
ofuscamento”, na medida em que as regras evocam conhecimento prévio e
podem portanto gerar significados.

124
ART
Assim, compreende-se o código computacional como “técnicas
contemporâneas de controle, comunicação, representação, simulação,
análise, tomada de decisão, memória, visão, escrita, e interação”
(Manovich, 2008, p.8). Para McWilliams (2006) o software atua como “uma
contínua conexão entre homem e máquina”, sistematizando métodos e
técnicas de trabalho, práticas e processos de representação e expressão,
enquanto apresentações do sensível.
Assim, como todo processo de produção, podemos afirmar que o
contexto digital conforma uma materialidade, que passa a “funcionar de
forma interpenetrada, mediante dispositivos transdutores e de interfaces
adequadas, possibilitando a transdução para outros meios” (PLAZA e
TAVARES, 1998, p.31). Também para Hayles (2002, p.23-24) o código
computacional é compreendido como uma “tecnologia de inscrição”, que
pode congregar dispositivos distintos e produzir mudanças matéricas
– marcas. Para a autora estas inscrições tecnológicas são capazes de
produzir transformações constantes no contexto e nas circunstâncias –
compreendidos como processos de significação.
Para Manovich (2008, p.13) “os programas computacionais são usados
para criar e acessar objetos e ambientes midiáticos, articulando funções
de autoria e de acesso”. O trabalho denominado moveable type, 2007,
de Ben Rubin e Mark Hansen, apresenta diariamente em 560 pequenos
displays as notícias atualizadas e arquivos do jornal New York Times, bem
como as atividades dos usuários no website - navegar, buscar, comentar;
a proposta dos artistas organiza-se através de métodos estatísticos e
algoritmos computacionais para estabelecer na materialidade do visível o
reconhecimento da cultura da colaboração em ambientes hipermidiáticos
na Web.
Outra questão importante a ponderar é a compreensão desses objetos
computacionais como prática cultural; assim, enfatizam-se os processos de
mediação na elaboração de outras dimensões imateriais como os códigos
de comportamento, ideologias, hábitos, rituais, valores e significados. “A
essência do computador - matemática e fundamentos lógicos, [...] como
máquina - forma de operar da cultura” (MANOVICH, 2008, p.11).
A linguagem computacional codifica a construção e o agenciamento
da visualidade, e torna-se responsável portanto, pela formatação e
expressão das informações. Estes códigos são percebidos como textos
sobrepostos mediando o humano e a máquina, enquanto deixam rastros
e marcas como em um palimpsesto. Também, para Martin Barbero (apud
Santaella, 2007) “hibridizar a densidade simbólica da abstração numérica
com a sensorialidade perceptiva” implica em acessar e modular estes dados
diversos gerando estruturas complexas no campo do visível.

Elementos computacionais e operadores estéticos

A compreensão do código e seus modelos de criação e produção de


formas implica em considerar outras atitudes criativas. O artista-designer,
ao trabalhar com processos de codificação e decodificação, deriva
125
ART

comportamentos de ordem sintática e semântica, quando atualiza as leis


programadas e assume distintas previsibilidades.
Elegemos alguns elementos conceituais intrínsecos da linguagem
computacional para organizar a produção a ser apresentada, como:
repetição, parametrização, transformação, visualização e simulação, que
foram apresentados por Reas, Mcwilliams e Barendse (2010, p.).
A repetição, como iteração2 embedada, articula a regularidade das
sequências para gerar efeitos múltiplos em cascata e explorar padrões.
Considerar a regularidade como elemento não implica em obter efeitos
plásticos de formas similares, mas antes, pensar como procedimento de
manipulação dos dados. O trabalho experimental de Vivian Chiu, mohawk
headdress, 2010, explora estas possibilidades formais – materiais e estéticos,
para tratar os objetos do vestir e as relações culturais.
Em outra dimensão do espaço – as paisagens urbanas, o grupo LUSTlab
apresenta o trabalho urban echo, 2011. Grandes displays, colocados em
áreas públicas, evocam a conexão entre distintos e não contíguos lugares
físicos. Um loop recursivo visual permite que as pessoas, localmente, de
várias cidades, estabeleçam conexões visuais de leitura e de imersão nos
espaços urbanos, conforme as imagens desdobram-se e apresentam-
se rebatidas internamente. Urban echo constrói pelo jogo de espelhos e
webcams espaços temporários de transparência e reflexão, introspecção e
extroversão, durante as transmissões em tempo real.
A parametrização explora a forma pela decomposição em elementos
e suas possíveis variações; isto implica em trabalhar com parâmetros, que
receberão distintos valores, randomicamente ou não. Este movimento
determina a exploração de um campo de possíveis e não mais um objeto
previsível. Este processo realiza mediações entre as intenções do artista-
designer e o sistema computacional, como materializa o trabalho inception
chair, 2011, da designer Vivian Chiu; o exercício da forma estabelece-se
como princípio metalingüístico.
O recente logo do MIT Media lab, no escritório The Green Eyl, pelos
designers E. Roon Kang, Willy Sengewald e Richard The, foi desenvolvido em
um algoritmo gerando 40000 formas, que permitem personalizar cartões
para cada professor, estudante ou funcionário do laboratório.
A transformação das imagens fotográficas, analógicas ou digitais,
enfatiza a potencialidade da escrita informática, manipuladas por processos
de transcodificação, e capaz de gerar diferentes perspectivas de leitura e
representação. O trabalho beekeeper, 2006-2011, de Chandler McWilliams
elabora a decomposição de uma imagem por movimento randômico, no
qual cada pixel transforma-se em partícula e reconstrói dinamicamente os
espaços de apresentação. Este contraponto entre representação estática e
possibilidades de movimento questiona a imagem e seus atributos usuais
de composição visual.
A visualização, por sua vez, revela padrões e estruturas para os
objetos de dados, privilegiando as variáveis espaciais. Para Manovich
(2008), este processo apresenta um mapeamento entre dados discretos
126
ART
e representação visual, que procura “descobrir e revelar a estrutura, não
dada a priori.” O trabalho circulation, 2010, do artista Chandler McWilliams
materializa visualmente as direções de percurso em um museu criando
flechas direcionais luminosas; este trabalho mimetiza a lógica de um
projeto de sinalização no espaço museográfico e passa a indicar o próximo
espaço/ambiente/sala a ser escolhido pelo visitante. Estas flechas apontam
e orientam as pessoas, a partir dos dados topográficos recuperados de seus
percursos no museu. Assim, estas indicações de direção são resultantes
da leitura estatística dos trajetos mais comuns, a partir de cada ponto
localizado, no espaço de exibição.
A simulação envolve processos generativos de formas orgânicas através
do movimento de partículas em um padrão no espaço - random walk. Neste
processo, a colisão de partículas gera uma complexa estrutura ramificada,
que determina a própria forma. Assim, a imagem apresenta-se não mais
como representação direta do objeto, mas determina-se a partir de um
conjunto de parâmetros; estes, como valores possíveis na intersecção com
os modelos matemáticos fazem emergir o objeto criado. O objeto não mais
reproduz um padrão de mímese, mas atualiza um modelo de simulação. O
projeto nervous system, especificamente no trabalho hyphae, propõe redes
rizomáticas, na qual os nós ramificam-se hierarquicamente e combinam-se
para construir uma estrutura densamente interconectada, aerada e forte.
Hyphae é uma coleção de artefatos 3D, inspirados nas estruturas capilares
que circulam fluídos nos organismos e caracterizam esculturas orgânicas.
Outro trabalho deste grupo, nomeado de dendrite, produzido também
com algoritmo generativo, mas diferentemente do anterior é capaz de
recuperar e inserir a ação dos usuários durante o processo projetual. Estes
são convidados a criar, modificar e implementar mudanças na linguagem
de programação.

Considerações finais
O texto procura estabelecer relações entre os fundamentos lógicos
da máquina computacional e as operações visuais como um outro layer
estabelecido no campo da arte e do design. Importa-nos a sistematização
destes processos criativos na medida em que promove a compreensão de
várias ações criativas da sociedade contemporânea, como a visualização
de dados científicos, de imagens de diagnóstico, de sensoriamento. As
imagens resultantes apresentam-se em suas distintas materialidades do real
como imagens cifradas e portanto, polissêmicas em suas manifestações. Os
objetos computacionais vêm, assim, organizando propriedades físicas e os
usos históricos, mas, sobretudo, estruturando nossas interações de maneira
sutil.

Referências Bibliográficas

CACHE, B. Earth Moves: The Furnishing of Territories. Cambridge,


Massachusetts: The MIT Press, 1995, p.97.
HAYLES, N. K. Writing machines. Cambridge, MA; London, UK: The MIT
127
ART

Press, 2002.
MANOVICH, L. Software takes command. Novembro, 2008. Disponível
em <http://lab.softwarestudies.com/2008/11/softbook.html>. Acesso em
janeiro, 2011.
MUNARI, B. Design as art. London, England: Penguin Books. 1971.
PLAZA, J.; TAVARES, M. Processos criativos com os meios eletrônicos:
poéticas digitais. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.
REAS, C.; McWILLIAMS, C.; Barendse, J. Form+Code in Design, Art, and
Architecture. New York, NY: Princeton Architectural Press, 2010.

1 Artista, pesquisadora e professora doutora no Mestrado em Design, Universidade


Anhembi Morumbi, email:luisaparaguai@gmail.com.

2 O termo iteração é o processo chamado na programação de repetição de uma ou mais


ações.

128
ART
Dança, metro e música: geração de arquivos sonoros de
textos da tragédia grega
Marcus Mota1 e Cinthia Nepomuceno2

Resumo: Textos das tragédias gregas apresentam informações sobre som


e movimento. Nesta pesquisa em andamento, algumas possibilidades de
interpretação e materialização dos metros e ritmos são discutidas.
Palavras-Chave: Métrica, cognição, percepção rítmica, tragédia grega,
dança
Abstract: Ancient Greek Tragedies present information about how sound and
movement links. In this paper we deal with interpretation and application of
metric data.
Keywords: Meter, cognition, rhythm, perception, greek tragedy, dance

O que se segue é uma discussão de pesquisa em curso sobre


representação e performance de padrões métricos a partir de obras
dramáticas clássicas (Edital MCT/CNPq 02/2009, n.4000937/2009-3).
Os textos restantes das tragédias gregas são documentos rítmicos que,
em sua distribuição de valores temporais e acentos, apresentam-se tanto
como campo de investigação quanto de produção de eventos sonoros
(Mota 2009, Brown & Ograjensk 2010, Georgaki & Velianitis 2008). O
enfrentamento destes textos passa por algumas etapas metodológicas as
quais explicitam a interdisciplinaridade do objeto de estudo.
Porém, o que se observa de fato na recepção bibliográfica da métrica
grega é uma dicotomia entre a descrição dos padrões rítmicos e produção
sonora, entre filologia(texto) e música(som), entre métrica e ritmo (Hasty
1997).
A partir dessa dicotomia, a métrica grega, concebida como exposição
de fatos linguísticos, é atualizada por um conjunto de formas abstraídas de
seus contextos de geração( Dale 1968, West 1982, Martinelli 1997,Steirück
2007)
Tal abordagem contribuiu para a canonização da prática de se pensar
metros apenas como consequência da escansão (contagem) e etiquetagem,
corroborando a ideia que os textos são entidades verbais auto-fechadas e
que geram por si mesmas sua intepretação. Neste caso, temos o predomínio
de uma representação restrita dos metros sobre as implicações de sua
performance.
Por outro lado, a recepção musical dos metros gregos, a partir dos dados
disponibilizados da filologia, viu nessas formas cristalizadas presets para a
composição e classificação de eventos rítmicos, sem, contudo, se interrogar
sobre seus específicos contextos de produção e geração, induzindo a uma
imagem universal e tácita dos metros (Messiaen 1956, Cooper&Meyer 1960,
Houle 1987). Novamente, com o pressuposto de formas mínimas e básicas
129
ART

de agrupamentos rítmicos, o estudo da métrica grega dissocia-se de seus


textos, o que determina uma restrição ao acesso de sua produtividade.
Para superar essa dicotomia, torna-se necessário voltar aos textos,
concebendo-os não mais como formas esvaziadas de som, de expectativas
de sua percepção e performance.

Discussão conceptual e metodológica

À parte detalhes editoriais - alguns impossíveis de serem resolvidos


-, os textos das tragédias encontram-se satisfatoriamente escandidos. Há
discrepâncias quanto a algumas ambiguidades classificatórias: em algumas
situações as formas registradas podem ser lidas de diversas maneiras
(Cole 1988). Em todo caso o que é determinante, desde a Antiguidade
é a atribuição de valores temporais relativos às sílabas (Pearson 1990,
Ophuijsen, 1987, Gentili & Lomiento 2003) . A escolha das palavras na
performance e depois em seu registro escrito se efetiva em função de sua
composição rítmica, ou organização do material verbal em sequências ou
agrupamentos rítmicos inicialmente relacionados a durações.
Um diferencial para a proposta desta pesquisa é integrar escansão,
representação e performance. As descrições dos metros presentes nas
edições críticas dos textos oferecem notações das quantidades das sílabas
dos versos sem o recurso à sua expressão sonora. Os metros identificados
são visualmente expostos em esquemas gráficos. Em decorrência disso,
forma-se uma circularidade: a escansão parece gerar o padrão rítmico a
partir das durações registradas na distribuição das sílabas e estes padrões
ritmos encontrados se completam em sua esquematização.
Tal “ciência métrica” para os olhos descarta atos que problematizariam
os procedimentos e resultados da escansão (Becker, 2004, David 2006) .
Por isso, não nos limitamos à representação visual dos metros decorrente
na identificação dos padrões quantitativos do verso grego. As informações
geradas pela escansão foram submetidas à mediação tecnológica, por meio
de partitura rítmicas gerada em estação de trabalho de áudio digital(DAW).
Ao se usar a DAW para registro e produção sonora dos dados iniciais
da escansão, procurou-se, mais do que simplesmente transferir esquemas
métricos para sua digitalização, consolidar a ampliação de escopo do
estudo dos padrões ritmos dos textos clássicos gregos. Com as ferramentas
da DAW, os arquivos produzidos podem ser manipulados, editados, o que
pode manifestar in loco a flexibilidade dos métricos gregos dentro de um
contexto realizacional, a partir de seu uso concreto. Ainda, tais arquivos
tornam audíveis e perceptíveis determinados processos de composição
rítmica registrados nos textos, seja por meio da atribuição de sonoridades
ao imput binário métrico, seja por meio das representações visuais
decorrentes da visualização dos parâmetros sonoros utilizados no registro,
mixagem e edição dos arquivos.
Na realização deste projeto, um dos obstáculos epistemológicos
enfrentados é o da impossibilidade de reconstrução da performance
original. É proverbial a assunção de que música não registrada é música
130
ART
perdida (Wilson 2005). No caso, a “música perdida da tragédia grega” é
tomada como um fato por não haver uma notação de parâmetros sonoros:
teria restado apenas o libreto, as palavras e não a música, o espetáculo.
Para exemplificar tal obstáculo, notem-se as contradições de uma das
maiores autoridades em música na antiguidade: de acordo com M.L. West,
It is conventional, in writing about ancient Greek music, to voice a lament that ‘the
music itself’ is almost entirely lost. So far as its melodic lines are concerned, this is
true: we have only a few dozen specimens to represent a thousand year’s music , and
of these few dozen, most are tattered fragments with scarcely a line complete, and
nearly all are from compositions of post- Classical date. Of music from before the last
decade of the fifth century BC we have not a single music. On the other hand there
is quite a considerable amount of music from the Archaic and Classical periods of
which we can claim to know the rhythms, with at least a fair approximation to the
truth. There should be litte satisfaction to be had from knowing the ups and donws
of the melodies if we had no idea or the rhythms that gave the shape. For rhythm
is the vital soul of music. The Greeks acknowledged its fundamental role (West
1994:127).

A longa citação atesta tendências hegemônicas no enfretamento dos


documentos musicais do passado, os quais não disponibilizam registro
partitural considerado completo. Na posição de M.L.West, música é sinônimo
de “melodia” e “ritmo” é ao mesmo tempo algo subsidiário e basilar. Tanto que
a musicalidade objetivada nesta pesquisa, a do drama grego, seria inexistente,
pois não há registro melódico dela, pois, segundo West, em não havendo
registro melódico, não há música.
Desde o início, desta pesquisa este obstáculo foi enfrentado na proposição
de outros objetivos que o da reconstrução histórico-filológica da performance
original. Inicialmente, há sim registro de parâmetros sonoros nos textos da
tragédia. A codificação rítmica ali presente, por meio de combinação de
padrões métricos bem caracterizáveis, aponta para o exercício de uma prática
coerente de organização do material sonoro em função de seus efeitos para
uma massiva audiência. E esta codificação rítmica é binária, na alternâncias de
sons marcados como longos e breves, produzindo algoritmos claros que nos
informam sobre finitas instruções sobre execuções de atributos. Uma tragédia
grega pode ser interpretada como um algorítmo complexo, que dentro de
limite temporais precisos, exibe eventos audíveis em sucessão, os quais se
organizam e se relacionam entre si e expõem suas configurações e seus nexos
durante sua realização diante de uma audiência.
É a amplitude da experiência composicional e recepcional da tragédia
grega, registrada em parte em seu complexo algoritmo rítmico, que aponta
para opções de se enfrentar e superar o obstáculo da performance original.
Mas para tanto se representar quanto performar essa complexidade é
preciso correlacionar os valores rítmicos da escansão com as divisões do texto
em função de seus padrões métricos. O texto da tragédia compreende seções
ou partes que organizam durações temporais em diferentes formas. Temos três
básicos tipos: seções com sequências construídas por recorrência de unidades
assemelhadas; seções marcadas por modulações em blocos justapostos
ou modulações no interior desses blocos; seções que combinam por
131
ART

justaposição e/ou contraste sequências recorrentes e modulantes (Hagel


2000,Zaminer 1989). Como se pode observar o complexo algoritimo das
tragédias gregas trabalha com uma prática composicional heterométrica,
o que enfatiza seu vínculo com a audiência por meio do reconhecimento
e apropriação de variadas performances ritmizadas. Ou seja, a detalhada
organização sonora evidencia uma recepção exposta a distinções aurais
específicas. É como uma tragédia exibisse no decorrer de sua apresentação
vários espetáculos. A trama dos acontecimentos narrativos cede lugar à
trama dos eventos aurais.
Essas mesmas seções se especificam em função de sua densidade(
monofônica, bifônica, homofônica coral) e tipicidade (cenas de lamento,
embate, reconhecimento e alusão mítica), pois os registros métricos são
registros de performances: os padrões rítmicos presentes nos textos são
articulados fisicamente pelos corpos dos agentes dramáticos (Lattimore
1969) . O ritmo aqui é algo que se ouve e vê em cena. Em todo caso é o
acabamento sonoro-rítmico das seções que as produz e determina sua
identificação: tanto as falas, diálogos e performances corais e quanto os
tipos de eventos se relacionam com metros e composições métricas.
Diante disso, é necessário projetar uma linha do tempo à qual se
acoplam as diversas seções ou partes, cada uma com seus relógios(Sethares
2007). Como se pode observar, a composição rítmica presente no texto da
tragédia apresenta um ritmo estruturante que se efetiva a partir da tensão
entre a composição temporal-sonora de cada seção e das seções entre
si. Como cada nova sessão ou projeto em uma DAW é viabilizada dentro
de uma linha de tempo, a irreversibilidade dos diversos eventos rítmicos
da tragédia em suas configurações sincrônicas e em sucessão podem
ser visualizados. Logo, o efeito trágico é sustentado pelo exploração da
irreversibilidade temporal: a audiência acompanha um universo sonoro
mutante em seus nexos e transformações enquanto a linha de ação do herói
se completa em ruína. O descompasso entre a riqueza e diversidade rítmica
e a crescente restrição e perda de possibilidades/opções do protagonista
conecta a audiência ao universo sonoro-imaginativo do drama.
Para se construir essa linha do tempo, dois tipos de tablaturas são
produzidas: uma, que apresenta a macro-estrutura do texto analisado,
explicitando suas partes e orientações temporais(Simpson & Ferrario 2006);
outra, que traduz as durações relativas marcadas nas sílabas.
É justamente de posse dessas duas tablaturas que se dá a próxima
fase do projeto: a geração de arquivos. O modelo ideal da representação,
que subsidia discussões estéticas e conceptuais a respeito de ritmos em
contextos performativamente orientados, é o que apresenta três distintos
sistemas para uma linha do tempo dos eventos: o primeiro é um registro
em áudio de interpretação vocal do texto grego. Essa voz-guia enuncia o
texto de acordo com a tablatura das durações previamente elaborada. O
segundo apresenta essa tablatura transcrita em notação musical tradicional
vinculado a arquivo midi, ao qual se atribui sons não melódicos(hand claps).
O terceiro registra apenas a acentuação das palavras, por meio de arquivo
midi vinculado a som também percussivo(Acoustic Bass Drum).

132
ART
Nesse sentido, justifica-se o uso de duas tablaturas: a métrica, na qual
se marcam as durações(e, consequentemente, os acentos) e estrutural,
na qual se registram as seções e suas divisões. No lugar de uma notação
apenas, que procura simular a performance para preencher o pressuposto
vazio representacional da música da tragédia grega, temos a produção de
outros formas de representação a partir mesmo desse não acabamento do
registro. Ou seja, no lugar de preencher o “vazio” ou as lacunas da tradição,
desloca-se o foco para modos complementares de tornar compreensível os
fatos cifrados nos textos.
Como se pode concluir, a passagem das tablaturas para os arquivos
de som e midi acarreta não só uma mudança no perfil realizacional da
pesquisa. De posse das tablaturas, as decisões interpretativas no registro
vocal do texto metrificado acarretam o enfretamento dos limites das
informações dessas tablaturas. Esta situação sincrônica do intérprete
retoma aspectos da diacronia: parcas notações que restaram de parâmetros
musicais dos textos clássicos gregos nos mostram que havia um vínculo
tradição e performance, no sentido de o intérprete não dispor uma obra
mais explícita em seu acabamento antes do ato de sua efetivação. Mesmo
os sinais presentes nos fragmentos de notação melódica são esparsos, não
cobrindo todas as notas a serem vocalizadas, diferentemente da notação
métrica, presente em cada sílaba (Pölmann e West 2001) . De forma que
os textos restantes da tragédia grega manifestam a dialética da abertura
de sua construção: não há a prerrogativa de uma instância prévia aos
atos performativos. Nada substituí a unicidade e irrepetibilidade do
acontecimento sonoro. No lugar de se pensar a inexistência de notações
expandidas, a questão é pensar a razão de se haver privilegiado um registro
das durações em detrimento de outros parâmetros (Hagel 2008). Dessa
maneira, a cantilena da “perda da música grega” não faz sentido continuar
a ser entoada. Na verdade, o que se extrai dessa cantilena é a tentativa
de aplicar uma prática musical a outra. Na prática musical de se compor
obras que integravam música, dança e atuação para uma plateia massiva
em competições dentro festivais anuais, as estratégias compositivas foram
as enfatizar o acontecimento multidimensional por meio de um design
rítmico-sonoro(Pintacuda 1978, Scott 1984). A escritura temporalizada
presente nesses fósseis espetaculares que são os metros da tragédia
grega demonstram essa experiência de se organizar temporalmente
heterogêneos eventos sonoros e audíveis.
Diante disso, o procedimento adotado na segunda fase da pesquisa
foi o de, a partir da discussão e análise dos dados das tablaturas métricas
e de macro-estrutura, trabalhar, em um primeiro momento com as seções
individuais, partindo inicialmente da trilha midi baseada na escansão
métrica. Como cada momento de passagem das tablaturas para a
geração envolve questões específicas de sua realização, a produção de
trilha midi dos metros esbarrou em algumas questões. Inicialmente, a
tablatura apresenta apenas durações relativas binária (um tempo, meio
tempo). Não há uma série de outras elementos ou informações temporais:
pausas, compassos, indicações de andamento. Porém, no reverso dessa
negatividade, há outros dados presentes no texto. Tudo em uma tragédia
é verso. Os versos se organizam em diferentes modos de integração e
133
ART

divisão. Nesse sentido, a análise pode enfocar a composição do verso


isolado, elenca os agrupamentos rítmicos e suas relações entre si. Ou
pode ultrapassar este nível frasal, e observar como versos em conjuntos,
os quais ou pertencem a seções monométricas/ plurimétricas, ou
seguem arranjos estróficos/não estróficos. Como se vê, mudando-se a
unidade de medida altera-se a perspectiva de análise, o que ratifica a
generalizada ritmização marcada no texto.
Partindo do verso em seu isolamento, a frase rítmica registrada
e decomposta na escansão precisa passar recuperar sua orientação
expressiva. O momento de sua atualização pelos arquivos midi gerados
determina a substituição de uma análise atomizante dos metros
para uma que os insira em níveis de identificação e vinculação mais
amplos(Lerdahl & Jackendoff 1996,Temperley 2001) . É a partir desse
redirecionamento que a demanda por novas informações temporais
é aplicada à limitada tablatura e assim os dados ali registrados são
suplementados por atos de sua ressignificação. Disso, alguns fenômenos
já apontados pela filologia podem encontrar agora uma melhor
compreensão, tais como restrições de durações em determinadas
posições de versos, cesuras, tensões entre as partes internas no verso e
possíveis pausas finais e em outras posições do verso. A ultrapassagem
da decomposição em pés métricos para a organização rítmica da frase é
o pressuposto para a tradução midi das tablaturas métricas.
Uma primeira dificuldade para se acessar a frase rítmica a partir das
análises métricas é da contraposição entre as estratégias de escansão e
a pluralidade de formas de organização temporal que os metros exibem.
Incialmente, é preciso deixar claro que não há pés métricos isolados,
mesmo em uma contextura métrica homogênea(quando se ter o mesmo
padrão recorrente).A sucessão do mesmo padrão é uma construção:
mais que a extensão de uma forma base por meio de processos
aditivos(Sachs 1953), temos formas de agrupamento que estabelecem
relações e hierarquias entre os materiais conjugados, que se tornam, por
isso, um grupo perceptivo(Bregman 1990).
Veja-se, como exemplo o caso do anapesto não lírico. Na verdade,
quando de sua ocorrência, principalmente em Ésquilo, ele se apresenta
em sistemas duplos que se integram a outros sistemas (Brown,
1977,Hubard 1991) . No caso, para se marcar como anapesto, os
atos sonoros atualizam simultâneas operações para que a aparente
simplicidade rítmica seja mantida. Baseado em um contraste bem
marcado de durações, o anapesto aparece na tragédia associado a
deslocamentos físicos de grupos corais em suas entradas e saídas de
cena e posicionamento para o canto/dança(Smyth 1896). Na tablatura
rítmica temos a sucessão de unidades isócronas mas que se articulam
de modos diversos. Assim, de uma proporção 2:2, o anapesto, pode
se manifestar como típico ( UU- UU-) ou como dátilo (-UU UU-) como
espondeu (-- --). Ou seja, há a tensão entre durações diferentes. Para
que a continuidade da ambiência anapéstica se manifeste e com isso
a audiência associe o tempo, a sonoridade e o contexto de cena, a
versatilidade das formas simples é realizada.
134
ART
No registro de sua sonoridade e durações por meio de arquivos midi,
os atribuiu-se a etiqueta “palmas” aos valores marcados na tablatura,
atualizando a orientação percussiva do metro, que interpreta a correlação
simétrica arsis/tesis dos sistemas anapésticos ( West 1992:136, Pereira
2001:86-93). Em uma comparação com outros tipos de performances
culturais sonoramente orientadas, temos que os anapestos, chamando a
atenção da audiência para o grupo de coral que ocupa o centro focal da
cena, podem ser associados audiovisualmente às marcações por palmas
ou instrumentos de percussão de timbre agudo presentes na África Negra
(Sandroni 2001:25). Ou seja, em espaços públicos, dentro de um contexto
interativo, a iteratividade dos sistemas anapésticos repetidos em ostinatos
estritos demarca formas de participação nas fronteiras das seções do
espetáculo. Situados antes e entre seções de contracenação falada e
cantada/dançada, os sistemas anapésticos apontam justamente para essas
distinções rítmicas sonoramente perceptíveis e corporalmente efetivadas e
partilhadas. A melodia reduzida desses sistemas, vocalizados em recitativo,
entre canto e fala, coloca em primeiro plano de escuta a batida, o pulso, o
movimento cadenciado, em uma autoapresentação do coro como agente
rítmico e da espetáculo como uma composição temporal. A periodicidade
temporal (ciclos) dos sistemas anapestos não se produz pela expansão
ou atualização de um esquema básico(Patel 2008:150). Antes, em sua
composição interna, em seu agrupamentos, os anapestos sustentam-se na
provisão de uma perceptível seção ou subseção de uma obra.
Em virtude disso, temos o segundo tipo de arquivo, o das pulsações,
associados aos acentos presentes no texto. Na recepção renascentista e
pós-renascentista dos metros gregos, valores rítmicos, que são baseados em
durações, foram traduzidos por valores de tonicidade, que são relacionados
à intensidade. Assim, um anapesto foi lido como uma sucessão de duas
sílabas fracas para uma forte (UU-). No texto grego original há um sistema
de acentuações, que marca as alturas e não a intensidade. São acentos
melódicos e não dinâmicos (Allen 1973, Devine&Stephens 1994, Probert
2006). Ou seja, não há uma estrita identidade entre o plano das durações e
plano das alturas no verso grego. Isso significa que a distribuição e arranjo
dos grupos rítmicos pode ou não coincidir com a distribuição e arranjo dos
valores de frequência. Assim, em uma ambiência anapéstica, para continuar
em nosso exemplo, uma sucessão de frases rítmicas apresenta sílabas com
durações breves e longas as quais o movimento melódico não correlaciona
sempre uma frequência mais alta a uma sílaba mais longa. A assincronia
entre os planos temporal e melódico tanto retoma a construtividade da
composição rítmica, ao problematizar os nexos e vínculos entre as formas,
quanto determina o desdobramento perceptivo da audiência em função de
uma orientação da performance: os acentos melódicos destacam sílabas,
ocasionando um efeito de intensidade não relacionado imediatamente
às durações(David 2006). Assim no texto, os acentos melódicos marcam
sílabas que consequentemente vão adquirir um movimento melódico ao se
acopla uma intensidade(Allen 1968).
Para traduzir esse outro ritmo, temos, seguindo a mesma linha de tempo
geral em cada obra analisada, arquivos midi que traduzem por meio de som

135
ART

percursivo grave (bumbo), os acentos agudos e graves presentes no texto(


Di Giglio 2009). Para o ouvinte torna-se patente a organização em vários
níveis da tragédia grega. Nessa orquestração de procedimentos de diversos
parâmetros psicoacústicos, temos mesmo para um metro aparentemente
tão simples como o anapesto, considerado uma marcha de passo duplo, ou
dois passos consecutivos que realizam um ciclo completo, distinções aurais
e hierarquias de tempo diversificadas(Schomolinski 2004).
Retomando os passos da metodologia, a figura 1 exibe a escansão
métrica, destacando para cada sílaba uma duração. No mesma figura, os
acentos melódicos estão marcados no texto grego.

figura 01

Continuando, a figura 2 exibe dois sistemas: o primeiro temos uma


transcrição em notação rítmica tradicional da escansão métrica; o segundo,
a transcrição dos acentos melódicos que marcam inputs de intensidade.

figura 02

Como se pode notar, a presumida “regularidade” e homogeneidade


temporal dos anapestos é construída a partir de movimentos síncronos e
assíncronos entre as durações e as intensidades. Diante disso, não apenas a
identificação do padrão métrico, mas sua necessária variação e redefinição
é o que o efetiva sua cognição e reconhecimento (Mirka 2009, Malin 2010).
As ocorrências do anapesto têm aproximadamente a mesma duração,
mas não o mesmo ritmo. Este paradoxo se compreende pelo horizonte
compositivo dos ritmos, articulando diversos parâmetros, probabilidades
e expectativas em sua realização e efeitos (Huron 2006, Temperley, 2010).
Segundo Bachelard, só uma pluralidade pode durar ( Bachelard 1994).
Nesse sentido, K. Agawu já havia externado sua insatisfação com a
representação dos ritmos africanos, ao atacar o que ele chama de “enduring
myths”, presentes na estratégias de se descrever a musicalidade de eventos
interatísticos fora de seus contextos de produção (Agawu 2003). Em
136
ART
situações que envolvem eventos multidimensionais, a pluralidade temporal
é uma interpretação da construção de interações rítmicas entre grupos
engajados na partilha de referências e atos (Cook 1998, Leman 2008,
Mota 2005). A organização rítmica dessa obras negocia com e responde a
organização dos eventos interpressoais.
O terceiro arquivo de som a partir das tablaturas é o do texto recitado.
A ênfase aqui é o de disponibilizar mais uma perspectiva para análise da
pluralidade das durações da performance dos metros gregos. Pois, como se
vai observa com nesse estágios, a duração real das sílabas não se confina nos
valores convencionais atribuídos. Esse fato, discutido desde a antiguidade,
apontava para a luta entre descrições hegemônicas entre metricistas e
ritmicistas, ou, respectivamente, entre os que trabalhavam com as durações
atribuídas e as proporções matemáticas das durações(Usher 1985, Mota
2010). De fato, temos sílabas escandidas como “curtas” que possuem
extensões diversas, algumas até maiores que o de uma sílaba “longa,
como se observa na figura 1”. Essa não sincronia acarreta quantizações
não só na plataforma DAW, como também na performance (Gouyon 2005).
Verticalmente, a contrametricidade muitas vezes presente na relação entre
os dois sistemas da figura 2 se contrapõe à horizontal continuidade das
durações efetivas da fala na figura 1(Psaroudakês 2010, Georgaki,A.;Carlé,M.
;Psaroudadês, S. & Tzevelekos 2009).

Pesquisa

Durante o primeiro semestre de 2011 realizamos pesquisas de


movimento a partir dos cinco ritmos da prática Power Wave de Gabrielle
Roth, nas aulas da disciplina Fundamentos da Dança, da grade curricular do
curso de licenciatura em dança do Instituto Federal de Brasília. A principal
indicação de Roth para essa prática é deixar-se levar pela pulsação dos
ritmos musicais, que ela divide em cinco tipos: fluente, staccato, caos, lírico
e quietude.
Com o objetivo de desconstruir os treinamentos prévios dos dançarinos
ingressantes no curso de dança, já que a disciplina é ministrada para
os alunos do primeiro ano, estudamos esses ritmos em busca de uma
movimentação mais espontânea. As práticas corporais às quais muitos
desses alunos estiveram submetidos costumam limitar a criatividade e a
autonomia ao dançar, por causa de suas restrições a modelos coreográficos
repetitivos. Roth nos oferece caminhos para superar a padronização
fragmentária e desconectada de sentidos do ato de dançar.
A segunda indicação para a prática da “onda poderosa” é mover-
se sem esforço. No volume dois do vídeo Dances of Ecstasy (2003) essa
recomendação é associada à ideia de que o dançarino é a própria dança
e que, portanto, não se move - é movido. A dança acontece independente
de seu comando consciente, atravessa o corpo, ou melhor, é o corpo. A
identidade de quem dança deve se perder durante a prática, como ocorre
com os dervixes rodopiantes da Turquia. De fato, imagens dos dervixes,
membros do Sufismo, ilustram a parte do primeiro volume do DVD que
se refere à busca pela unidade a partir do transe que se experimenta ao
137
ART

girar. Mevlana Jalaludin Rumi, poeta e teólogo iraniano, cujo ensinamento


inspirou a fundação da Ordem Sufi Mevlevi dos dervixes, acreditava que o
giro era a expressão do amor divino. Percebendo que tudo gira - a Terra, os
planetas, os tornados, redemoinhos - Rumi acreditou que o sopro de Deus
impulsionou os giros que deram início à criação do universo. Quem assiste
a essa prática de meditação em movimento percebe que o dançarino se
ausenta, se transforma, fazendo com que apenas o giro permaneça.
Por cerca de um mês praticamos as danças guiadas pelos variados ritmos,
tendo apenas a contaminação musical como estímulo para improvisações
livres. Após um contato com o tema de pesquisa do professor Marcus Mota,
começamos a idealizar parcerias entre os alunos da graduação do IFB e
as pesquisas desse professor, responsável pelo LADI-UnB (Laboratório de
Dramaturgia e Imaginação Dramática da Universidade de Brasília). Suas
pesquisas associam a métrica dos textos das Tragédias Gregas a ritmos que
remetem aos passos de dança do coro que as representavam. Seu trabalho
estava numa fase de geração de arquivos sonoros a partir do texto As
Suplicantes, de Ésquilo. Elaboramos, então, uma atividade de extensão sob a
forma de seminário intitulada “Dança, Métrica e Música da Antiguidade”. O
seminário foi realizado nos dias 18 e 20 de maio de 2011, aberto ao público
e contando com a presença dos estudantes da disciplina Fundamentos da
Dança.
Uma semana antes do seminário, o professor nos disponibilizou um
arquivo sonoro composto por ritmos percutidos. Esse arquivo foi utilizado
em duas aulas da turma citada, sem menção aos processos de composição
que originaram os sons. Os alunos não tinham qualquer referência sobre
o trabalho que relacionava o texto grego com a movimentação do coro.
Aquele trecho rítmico enviado por Mota foi utilizado nos mesmos moldes
das práticas dos cinco ritmos de Roth.
Num primeiro momento, os alunos foram solicitados a improvisar a partir
dos estímulos proporcionados pelo ritmo do arquivo sonoro, reproduzido
em caixa de som, com programação para se repetir ininterruptamente.
As sessões tinham duração de 15 a 30 minutos. As improvisações livres
começaram a definir certos padrões de movimento. Os alunos foram
solicitados a memorizar os padrões. Em seguida, deveriam perceber as
qualidades de movimento que constituíam aqueles padrões.
Iniciamos um processo de composição, ainda sem as referências sobre
a origem do ritmo. Nas aulas do semestre havíamos estudado alguns
conceitos da teoria de movimento de Rudolf Laban. Ao estabelecer relações
entre as improvisações livres com base no arquivo de Mota e a prática do
Power Wave, os estudantes perceberam que o estudo da fluência, do peso,
do espaço e do tempo - qualidades de movimento destacadas por Laban
- poderia auxiliá-los no processo de composição. Escolheram trabalhar o
ritmo que Roth denomina staccato porque o identificaram como similar ao
ritmo percutido do arquivo com o qual vinham improvisando livremente. O
staccato tem como principal característica o uso do espaço de forma direta,
o que é destacado em comandos como: “Seja convincente, direto. Crie
fronteiras. Defina-se” (ROTH, 1997, p.101). Os deslocamentos são assertivos,
os movimentos nítidos, angulosos, percussivos e executados com base
138
ART
na expiração; o tempo é súbito. A análise dos movimentos inspirados
pelo arquivo sonoro trouxe a percepção de que as ações apresentavam
qualidade de fluência controlada. De acordo com Laban (1978), a fluência
pode ser livre-desembaraçada ou controlada-embaraçada. Com o impulso
partindo dos pés num controle dos passos que limitava os movimentos, a
estrutura coreográfica foi se aproximando de uma marcha. Esse marchar era
composto por sapateios com a qualidade de esforço firme, definindo assim
a gradação do fator peso.
Após essas primeiras pesquisas, o grupo iniciou discussões sobre
escolhas estéticas e estratégias a adotar. Dividiram-se em dois grupos
que fariam as entradas em cena por diagonais opostas, simulando um
enfrentamento. O grupo que entrava pela diagonal direita ao fundo da cena
iniciava a marcha, que se mantinha estável: todos com o corpo ereto, passos
idênticos, pulso marcado pelos pés, como um grupo militar. Na primeira
pausa da música, os dançarinos paravam no centro do espaço cênico.
Quando a música reiniciava, esse primeiro grupo se mantinha estático
enquanto o outro grupo fazia sua entrada a partir da diagonal esquerda
à frente da cena. Os movimentos do segundo grupo eram angulosos,
a partir dos ossos e explicitando todas as articulações, avançando em
passos marcados pelo ritmo, porém com variações da postura do tronco.
Na segunda pausa da música, paravam em frente ao primeiro grupo. Com
a retomada do ritmo sonoro, os dois grupos se entrecruzavam e quando
passavam pelos integrantes do grupo oposto, assumiam a movimentação
do outro grupo. Ou seja, os que marchavam passaram a realizar caminhadas
com angulações das articulações enquanto os que se moviam a partir do
tronco começavam a marchar com a postura ereta. Após a passagem, se
dirigiam às posições iniciais do grupo oposto.
Continuando a composição, fizeram deslocamentos circulares trotando
e marchando, com variações de movimento, integrando-se e formando um
conjunto. Com alguns deslocamentos, realizaram uma formação em fileiras.
Finalizaram a sequencia nessa formação, executando movimentos com
percussão corporal.
Com o trecho coreográfico ensaiado, os estudantes assistiram ao
seminário do professor Marcus Mota, onde tiveram acesso ao contexto de
criação daquele ritmo. Souberam que se tratava dos ritmos correspondentes
às métricas das primeiras partes do texto As Suplicantes. Também foram
apresentados ao enredo dessa tragédia - o drama vivido por cinquenta
mulheres que se recusam a casar com seus cinquenta primos. No encontro
do dia 18, além dessa contextualização, o grupo apresentou o trecho
coreografado a partir dos sons.
No encontro do dia 20, assistiram aos vídeos do trabalho de A.P. David
que, juntamente com uma coreógrafa, realiza uma pesquisa semelhante à
que nós conduzimos. O produto de seus estudos nos pareceu tão familiar
que alguns dos alunos ficaram surpresos. Estavam presentes as marcações
dos pés, a marcha, as acelerações com movimentação coletiva a partir de
uma formação circular, movimentos angulosos com uso de espaço direto,
peso firme, tempo súbito e fluência controlada. Faltam-nos dados para
inferir se os dois estudos teriam desencadeado processos correspondentes
139
ART

a partir da similaridade dos resultados. Porém, não restam dúvidas de


que os estímulos da métrica forneceram um mote que originou criações
parecidas.
Após o seminário, o grupo teve seis encontros para reelaborar a
composição. Dessa vez, optaram por se basear na história da súplica
contida no texto da tragédia. Dividiram papéis: um pequeno grupo
representava os primos; um rapaz representava Danaos - pai das
suplicantes; um grande grupo representava as suplicantes/Danaides; outro
rapaz representava Pelasgo - o rei de Argos, para o qual se dirigia a súplica;
um terceiro representava Zeus. Com roteiro simples compuseram uma cena
de enfrentamento entre Danaos, com suas filhas, e os primos. A seguir,
recriaram a fuga para Argos e a primeira súplica diante do altar de Zeus.
Finalmente, entra em cena Pelasgo. Então, as Danaides, pedindo proteção
prostram-se aos pés do rei.
Os resultados foram registrados em vídeo. Essa primeira iniciativa no
sentido de recriar coreograficamente movimentos integrados ao texto
grego, sua métrica e a música derivada, auxiliará a idealização e elaboração
de outras composições cênicas.

Referências Bibliográficas

Agawu K. Representing African Music. Routledge, 2003.

Allen, W. Vox Graeca. A Guide to the Pronunciation of Classical Greek. Cambridge University
Press, 1968.

. Accent and Rhythm. Prosodic Features of Latin and Greek: a Study in Theory and
Reconstruction. Cambridge University Press, 1973.

Arnott,P The Lost Dimension of Greek Tragedy Educational Theatre Journal 11,1959,99-102.

Bachelard, G. A dialética da duração. São Paulo: Editora Ática, 1994.

Becker, A. Non Oculis Sed Auribus: The Ancient Schoolroom and Learning to Hear the Latin
Hexameter. The Classical Journal 99.3(2004)313-322.

Bregman, A. Auditory Scene Analysis. The MIT Press, 1990.

Brown, P. & Ograjensk, S.(Eds.) Ancient Drama in Music for the Modern Stage. Oxford
University Press, 2010.

Brown, S.G. A Contextual Analysis of Tragic Meter: The Anapest. In: Arms, J. & Eadie J.(Eds.)
Ancient and Modern: Essays in Honor of G.F.Else. Ann Arbor, 1977,45-77.

Cole, T. Epiploke: Rhythmical Continuity and Poetic Structure in Greek Lyric Verse. Harvard
University Press, 1988.

Cook, N. Analysing Musical Multimedia. Oxford University Press, 1998.

Cooper, G. &Meyer, L. The Rhythmic Structure of Music. The University of Chicago Press, 1960.

Daitz, S. On Reading Homer Aloud: To pause or not to pause”American Journal of Philology

140
ART
112(1991) 149-160.

. The Pronunciation and Reading of Ancient Greek. Jeffrey Norton Publishers,


1984.

Dale, A.M. Collected Papers. Cambridge University Press, 1969.

. The Lyric Metres of Greek Drama. Cambridge University Press, 1968.

David, A.P. The Dance of the Muses: Choral Theory and Ancient Greek Poetics. Oxford
University Press, 2006.

Devine, A.M. & Stephens, L.D. The Prosody of Greek Speech. Oxford University Press,1994.

Di Giglio. Gli Strumenti a percussione nella Grecia antica. Firenze: Le Cáriti, 2009.

Edwards, M. Sound, Sense, and Rhythm. Listening to Greek and Latin Poetry. Princeton
University Press, 2002.

Fusi, D. “An Expert System for the Classical Language: Metrical Analysis Components”.
Disponível em www.fusisoft.it/Doc/ActaVenezia.pdf. s/d.

Gentilli, B. & Lomiento, B. Metrica e Ritmica. Storie delle forme poetiche nella Grecia Antica.
Mondadori, 2003.

Georgaki, A. & Velianitis, P. Aspects of Musical Structure and Functionality of Eletroacustic


Media in the Performance of Ancient Greek Tragedy. Proceedings CIM08 -Conference on
Interdisciplinary Musicology,2008. Disponível http://cim08.web.auth.gr/cim08_papers/
Georgaki-Velianitis/Georgaki-Velianitis.pdf

Georgaki,A.;Carlé,M.;Psaroudadês, S. & Tzevelekos, P. Towards a Prosody Model of Attic Tragic


Poetry: From Logos to Mousiké Proceedings 6.o Sound and Music Computing Conference
2009,303-308. Disponível http://smc2009.smcnetwork.org/programme/pdfs/320.pdf.

Gouyon, F. A Computational Approach to Rhythm Description. Doutorado, Universitat


Pompeu Fabra-Barcelona, 2005.

Guerra, A.G. Manual de Métrica Griega.Ediciones Clássicas, 1997.

Hagel, S. “Ancient Greek Rhythm: The Bellermann Exercises.” Quaderni Urbinati di Cultura
Classica 88(2008):125-138.

. Modulation in altgriechischer Musik: antike Melodien im Licht antiker


Musiktheorie. Peter Lang, 2000.

. Ancient Greek Music. A New Technical History. Cambridge University Press, 2010.

Hagel, S. & Harrauer C. (Eds.) Ancient Greek Music in Performance. Österrichischen Acakemie
der Wissenshaften, 2005.

Hasty, C. Meter as Rhythm. Oxford University Press, 1997.

Houle, G. Meter in Music. 1600-1800. Performance, Perception, and Notation. Indiana


University Press, 1987.

Hubard,T. “Recitative Anapests and the Authenticity of Prometheus Bound”. American


Journal of Philology, 112(1991):439-460.

141
ART

Huron, Sweet Anticipation. Music and the Psychology of Expectation. The MIT Press, 2006.

Kechagias, C. The Ancient Greek Metre. A Coded Type of a Natural Law. Production of Special
and Innovative Sofware. Doutorado, University of Athes, 2003.

Lattimore, R. Story Patterns in Greek Tragedy. The University of Michigan Press,1964.

Lech,M. “Marching Choruses? Choral Performance in Athens.” Greek , Roman , and Byzantine
Studies 49(2009) 343-361.

Leedy, D. “Some Experiments in Singing Ancient Greek Verse and Latin Verse”. In. Music in
Performance and Society. Warlen, Harmonie Prees, 1997.

Leman,M. Embodied Music Cognition and Mediation Technology. The MIT Press, 2008.

Lerdahl, F. & Jackendoff, R. A Generative Theory of Tonal Music. The MIT Press, 1996.

Malin, Y. Songs in Motion: Rhythm and Meter in German Lied. Oxford University Press, 2010.

Martinelli, M.C. Gli Strumenti del poeta. Elementi di Metrica Greca. Cappelli, 1997.

Messiaen, O. The Technique of My Language Musical. Alphonse Leduc, 1956.

Meudic, B. (2002) “Automatic Meter Extraction from MIDI files” Proceedings JIM 2002.
www.recherche.ircam.fr/projects/cuidado/wg/dissemination/submittedpapers/ircam/
icmcmeudic2002.pdf.

Mirka, D. Metric Manipulations In Haydin and Mozart. Oxford University Press, 2009.

Mota, M. A dramaturgia musical de Ésquilo. Editora Universidade de Brasília, 2009.

. “Nos Passos de Homero: Performance como Argumento na Antiguidade” VIS.


Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB. V. 9,n.2,21-58,2010.

. A realização de óperas como campo interartístico. Dramaturgia,Performance


e interpretação de obras audiovisuais. Anais V Congresso Anpom, Rio de Janeiro, 2005,1182-
1187. Link: www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2005/sessao20/marcus_
mota.pdf 009.

Ophuijsen, J.M. Hephaestion On Metre. E.J. Brill, 1987.

Patel, A. Music, Language, and the Brain. Oxford University Press, 2008.

Pearson, L. Aristoxenus. Elementa Rhythmica. Clarendon Press, 1990.

Pereira, A.M.R. A Mousiké: Das origens ao drama de Eurípides. Fundação Calouste Gulbenkian,
2001.

Pintacuda, M. La Musica nella tragédia greca. Cefalù, 1978.

Pöhlmann & West,M.L . Documents of Ancient Greek Music. Clarendon, Oxford University
Press, 2001.

Probert, P. Ancient Greek Accentuation: Synchronic Patters, Frequency Effects, and Prehistory.
Oxford University Press, 2006.

Ruijgh, C. “Les Anapestes de marche dans la versification grecque et la ryhthm du mot grec”.
Mnemosyne 42 (1989) 308-330.

142
ART
Psauroudakês, S. The Enunciation of “Metra” in Ancient Hellenic Tragedy. Case in Point:
Aeschylos’ Agamemnon ll 40-46. VIS. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte-UnB, V.9,
n.2, 2010, 59-68.

Sachs, O. Rhythm and Tempo. A Study in Music History. Nova York, Norton, 1953.

Sandroni, C. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de


Janeiro, Zahar/Editora UFRJ, 2001.

Schomolinski, G. Track and Field. Sport Book Publishers, 2004.

Scott, W.C. Musical Desing in Aeschylan Theater. University Press of New England, 1984.

Setahres, W. Rhythm and Transforms. Springer, 2007.

Simpson,A. & Ferrario, S. “Aeschylean Structure and Text in New Opera: The Oresteia Project
Didaskalia 6, n.3, 2006. Edição online http://www.didaskalia.net/issues/vol6no3/contents.html.

Smyth, H. “Notes on the Anapests of Aischylos” Harvard Studies in Classical Philology


7(1896)139-165.

Steinrück, M. À qui sert la métrique? Editions Jérôme Millon, 2007.

Temperley, D. The Cognition of Basic Musical Structures. The MIT Press, 2001.

. Music and Probability. The MIT Press, 2010.

Usher, S. Dionysius of Halicarnassus. The Critical Essays. Harvard University Press, 1985.

West, M.L. Ancient Greek Music. Clarendon Press, 1992.

. Greek Metre. Clarendon Press, 1998.

Wilson, P. ‘Music’ In: A Companion to Greek Tragedy. Blackwell, 2005,183-194.

Zaminer, F. Rhythmischer Kontrapost bei Aischylos. Über Orchestisch-Musicalische


Sprachkomposition Im Grieshishen Drama. In Das Musikalische Kuntsweer. Festshcrift Carl
Dahlhaus zum 60.gebustag. Laaber-Verlag, 1989, 185-196.

DANCES of Ecstasy. Direção de Paul Elliot. Produção de Ferenc Van Damme. Elwood - Austrália:
Luna Pictures, 2003. 2 DVDs.

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.

ROTH, Gabrielle. Os Ritmos da Alma: o movimento como prática espiritual. São Paulo: Cultrix,
1997.

1 Professor doutor pesquisador do Instituto de Artes, Departamento de Artes Cênicas da


Universidade de Brasília.

2 Pesquisadora do Instituto Federal de Brasília e doutoranda do programa de pós-


graduação em Arte da Universidade de Brasília.

143
ART

Kant e a neuroestética
Miguel Gally1

Resumo: A recolocação de alguns temas e descobertas trazidas pelo recém


criado campo da Neuroestética são tematizadas à luz da história da estética,
mais precisamente, a partir da contribuição de Immanuel Kant (1724-
1804). Privilegiou-se uma abordagem que reflete sobre o lugar da Estética
no projeto filosófico moderno clássico e seu deslocamento operado pela
Neurociência atual, questionando o que de novo e proveitoso é gerado
e proporcionado pela maneira como a Neuroestética investiga o estado
estético.
Palavras-chave: estado estético, neuroestética, Kant
Abstract: The replacement of some concepts and discoveries made by the
recently created field of the Neuroaesthetics are investigated through the light
of the history of aesthetics, to be more precise, from the view of Immanuel Kant
(1724-1804). This approach was focused: a) on the place of aesthetics within
the classic-modern philosophical project and its (dis)placement operated by
this new field of the Neuroscience; b) on an examination of what is positive and
on a critic of what is new through the way the Neuroaesthetics investigates the
aesthetic state.
Keywords: Aesthetic State, Neuroaesthetics, Kant

Algumas pesquisas recentes (Kawabata & Zeki: 2004; Jacobsen &


Schulz et all: 2006; Cinzia & Vittorio: 2009) no domínio das Neurociências
apresentaram grande interesse em descobrir se há e, havendo, qual ou
quais seria(m) o(s) correlato(s) neuronal (is) de uma experiência estética
e/ou de uma experiência estética do belo na arte visual (especialmente
na pintura). Esse campo de investigação, que inclui ainda as Ciências
Cognitivas, a Filosofia da Psicologia e a própria Psicologia, a Filosofia da
Mente e a Metafísica Contemporânea tem sido chamado de Neuroestética.
Para o cientista pesquisador, a descoberta das populações neuronais
e/ou das zonas específicas do cérebro que entram em atividade quando
o cérebro se depara com uma situação estética seria o ponto de partida
para reflexões que normalmente fizeram parte da Estética. Inclui-se nesse
campo novo questões como a da universalidade possível ou provável
de uma experiência particular e íntima ou a da relação entre recepção e
criação, já que essas zonas ativadas ou a maneira de ativação das células
no cérebro poderiam ser as mesmas, semelhantes ou estar associadas as
que são usadas/articuladas para criação artística. Podendo ainda incluir
nesse conjunto, sendo bastante otimista, pistas sobre o que para os
neurocientistas parece ser uma das grandes questões a desvendar, a ponte
entre uma conexão neural química/eletromagnética e seu correlato estado
de consciência, ou seja, a da (não)materialidade da consciência (Chalmers
2006; Damásio 2010).
Para o (cientista) pensador com preocupações especulativas em torno
144
ART
do sentido dessa eventual descoberta, ou investigação, restaria ainda se
debruçar sobre quais seriam as implicações dessas pesquisas para a Estética
e talvez para o domínio das artes, já que a Estética, por um tempo, esteve
ligada diretamente às artes. Gostaríamos também, aqui, de problematizar
algumas dessas implicações para a Estética e para o conhecimento em
geral observando-se suas condições de produção e contato com o mundo,
pois desde que se prestou atenção a uma estetização da vida/existência/
cultura a Estética está dissolvida na vida, na cultura e na existência também
como pensamento.
Caso não haja um correlato neuronal seguro, específico e regular
do estado do belo, como sugerem algumas pesquisa (Cinzia et all: 2009;
Kawabata et all: 2004), seria possível inferir, embora possa não estar
correto, que o belo remete a uma preferência particular, porque sempre
ocorreria de modo contingente no cérebro. Dessa inferência ter-se-ia
algo mais a favor da sentença usual segunda o qual “cada um tem seu
próprio gosto” ou “que a beleza é relativa”, e de que gosto e beleza não são
teorizáveis porque são aquilo que de mais íntimo e irredutível a conceitos
poderia haver. Salvo naquela pesquisa de Jacobsen, que conseguiu
identificar áreas específicas do cérebro que são ativadas, mas apenas para
uma situação estética ligada a formas geométricas simétricas (2006), cabe
lembrar que as situações propostas nessa pesquisa eram vinculadas à arte
visual e não à natureza, um campo tradicionalmente também vinculado
à Estética. Essa abordagem da Neurociência pensa a Estética e o estado
estético por um viés objetivo, tratando esse sentimento (esse estado
cognitivo) enquanto tendo um correspondente identificável no cérebro e
esse estado ou sentimento podendo ou não ser universalizável (caso seja
regular sua manifestação em zonas do cérebro), mas não a experiência
do belo propriamente. Trata-se de um (re)esclarecimento do estético, ou
seja, de um desencantamento da experiência do belo através de uma
naturalização.
Suponhamos, entrando ainda mais no tema por esse viés
desencantado, que temos a certeza de que um estado neuronal realmente
corresponde a um estado cognitivo, o estético, e que sua universalização
objetiva seja também a da experiência do belo e que posso pensar sua
universalidade objetivamente, materialmente. Eliminando a fronteira
entre estado cognitivo (não material) e estado neuronal (material), entre
estado subjetivo e a objetividade material relacionada a esse estado, o que
fizemos, propriamente, com o estado estético? Como deveríamos pensar
esse estado estético considerado agora materialmente? Com certeza,
essa seria uma nova Estética e muito diferente daquela pensada por Kant
quando escreveu a Crítica da Faculdade de Julgar publicando-a em 1790 e
que orienta grosso modo ainda hoje nossa visão do que seja a Estética e
o estado estético e sua crítica no final do século passado e início do XXI
(Cf. Danto, The Abuse of Beauty, 2003; Heidegger, A origem da obra de arte,
1936). E o que seria radicalmente diferente, o que de novo a Neuroestética
traria para a história da Estética?
Kant pensava o ajuizamento estético como parte de um processo de
estados cognitivos que só são possíveis porque o sujeito cognoscente
145
ART

consegue desvincular-se, nesse ajuizamento, de qualquer forma de


interesse que ele possa ter: na existência do objeto para seu prazer
imediato e meramente sensível; no uso e na determinação conceitual desse
objeto; ou mesmo, numa desvinculação frente ao significado que esse
objeto possa ter. Ainda com Kant, o sentimento do belo estaria baseado
não numa relação material com objetos, mas numa relação formal, ou seja,
indireta porque vincularia a intuição do objeto a uma capacidade de não
apreender com um conceito determinado o que esse objeto é ou para que
serve. Mesmo sabendo que ele pode ser muitas coisas e que pode servir
para muitas coisas a partir do momento em que não há mais a experiência
estética, mas que seu acontecimento pode servir, ser ou significar algo (Cf.
Kant, CJ, §§41 e 59, relativos ao interesse empírico pelo belo e o belo como
símbolo do moralmente bom). Em todo caso, Kant esperou alcançar uma
universalização do sentimento do belo independente de época, cultura
ou região, uma espécie de modus operandi universal, apesar de enfatizar
sua subjetividade enquanto um tipo especial de afeto. Basta lembrar
que tal afetividade universal se dá como um sentido comum (sensus
communis) baseado em um modo peculiar em que as mesmas faculdades
utilizadas para conhecer discursivamente (entendimento e imaginação)
se rearticulam, quando provocadas pela forma de alguns objetos. Nesses
casos, tais faculdades não se ocupam mais com a tarefa de conhecer ou
determinar um objeto e sua convivência (jogo das faculdades) fora de
uma relação de conhecimento para com o objeto gera um prazer reflexivo
(desinteressado/livre). Tal estado estético do belo pode ser esperado
de todos porque tal disposição alternativa das faculdades de conhecer
pressupõe essas mesmas faculdades para que a comunicação, por exemplo,
seja possível.
A Neuroestética quer pensar a relação entre esse estado e seu
correspondente neuronal, ou seja, material. Ora, enquanto Kant tentou
desmaterializar o sentimento do belo através de um processo de
subjetivação (desencantando o estético, mas nem tanto, porque embora
universal permaneceria imaterial!), a Neuroestética quer rematerializar
tal sentimento (desencantando completamente o estado estético!). A
materialização do belo ficou por conta dos estetas, filósofos e teóricos
das artes e da natureza que viram em critérios objetivos tais como
proporção, simetria, harmonia, etc. as, em termos modernos, condições de
possibilidade e o fundamento (do sentimento) do belo. Seguindo essa pista,
a pesquisa de Jacobsen (et all: 2006) com experiências estéticas a partir de
formas geométricas e simétricas foi, curiosamente, a que mais avançou
nessa tarefa de rematerialização do estético conseguindo mapear um
conjunto regular embora variado e complexo de zonas do cérebro ativadas
com essas experiências estéticas escolhidas. Ora, se ficou atribuído a Kant a
revolução do gosto por ele ter revertido o ponto de partida para se pensar o
belo colocando o sujeito e o modo como somos afetados por um processo
cognitivo peculiar (o do jogo das faculdades), se isso tornou-se o centro,
será que podemos dizer que a Neurociência opera também uma revolução
na Estética? Sim, mas nessa pergunta esconde-se um detalhe muito
importante: ao rematerializar o sentimento do belo e seu estado estético,
não estaria a Estética se perdendo de alguma maneira? Ao se naturalizar
146
ART
o sentimento não se estaria aí trazendo a Estética para uma condição de
manejo objetivo que perdurou na história da Estética fortemente até
Kant? Não haveria nesse processo um impedimento e uma perda do seu
lugar próprio no campo do saber (conhecimento) em geral e da cultura?
Talvez sim, mas ora, também esse lugar específico de um conhecimento
tem saído de moda com a perda das fronteiras delimitadas nas trans/multi/
pluri/interdisciplinaridades dos conhecimentos e saberes. Enfim, o que,
propriamente, está questão?
Tratar a consciência como cérebro faz parte do projeto cultural
e epistemológico moderno clássico (XVII-XVIII) no sentido de ser
o aprofundamento da sua questão principal: conceituar e teorizar
objetivamente o máximo possível desencantando o mundo ao mesmo
tempo em que ele é desvendado e esclarecido ao se apontar e acreditar
em uma regularidade desse e nesse mundo. No caso da Estética, ela foi um
lugar à parte no miolo desse mesmo projeto na medida em que, apesar
de se conceituar tal sentimento definindo-o, não se poderia, contudo, ter
conceitos determinados ou referências ao que o objeto é ou para que serve
como parte fundamental do “esclarecimento” da experiência estética, que,
ainda segundo Kant, usaria as mesmas faculdades de conhecer, mas fora de
uma relação de conhecimento para com o objeto. O que a Neuroestética
transgride e propõe enquanto, eu vou sugerir, revolução da rematerialização
do sentimento do belo: é recolocar sob bases neuronais tal materialidade
para que tal sentimento possa ser determinado conceitualmente nessas
condições específicas e identificáveis tal como se fosse um objeto. Isso seria
ampliar o alcance do projeto cultural moderno de conhecimento para um
domínio resguardado, por esse mesmo projeto, das suas próprias investidas
para desencantar o mundo como um todo. Mas seria isso, então, o fim da
Estética?
Não, certamente que não, porque tal tratamento material/naturalizante
do estado estético inauguraria uma vertente das investigações estéticas
dentro das ciências, com a tarefa de cada vez que descobrir mais detalhes
desse funcionamento, então mais distante ficará da Estética do gosto,
contudo mais próxima a estados de fantasia e liberdade, mesmo que
aparentemente protegido dos seus encantos, sem saber ao certo quais as
repercussões desse contato inaugural e tão próximo. Não se trata de saber
quem vai ganhar influenciado mais a outra com suas peculiaridades, se uma
desmaterialização da ciência através do estético ou uma rematerialização
do estético pela ciência. Ainda: se um reencantamento do saber/do
conhecimento em geral (aqui, do científico) ou um desencantamento
completo da Estética como ponto final do projeto moderno. Não se trata de
saber quem vai ganhar porque não há disputa. Trata-se sim de reconhecer,
mais uma vez, uma passagem aberta entre dois domínios apartados
estruturalmente, se se pensa somente com Kant, ou seja, da passagem entre
uma visão desencantada da filosofia crítica (científica) e o encantamento
ligado ao estado estético (fantasia e liberdade).
Se a ciência se coloca como revolucionária dentro da história da Estética
porque rematerializa suas condições de possibilidade, abrindo para a
ciência um campo até pouco tempo cego, por outro lado a Estética (e isso
147
ART

serve também para arte computacional) entra dentro do mundo da ciência


não apenas enquanto presença reforçada da liberdade criativa (o que a
ciência também dispõe porque cria), mas decisivamente como crítica da
ciência, sendo uma brecha do encanto impulsionando novas descobertas. A
presença da liberdade estética ou da liberdade da atividade criadora artística
dentro do mundo da ciência já se mostra visível, mas pouco sabemos
(embora muito se especule!) da repercussão das eventuais descobertas
dos correspondentes neuronais da experiência estética/ do belo para a
atividade criadora nas artes e nas ciências também. Aqui, evidentemente,
precisa-se fazer um ajuste nessas pesquisas da Neuroestética, que é a de
ampliar do belo para a experiência de arte em geral o foco da investigação
desses correspondentes neuronais. E a de ter a certeza que podemos ter
alguma experiência estética ou artística dentro de um Scanner, uma
questão de método completamente desencantada que me faz lembrar de
um projeto de Yure Firmeza e sua “experiência de gavetão”... especulações
à parte, até aonde pude perceber em algumas pesquisas atuais, parece
mesmo é que o cérebro anda a desafiar encantando os cientistas quando
não se deixa mapear materialmente de maneira integral nesse estado
estético/ou de beleza... esses estados seriam como aquelas sereias que
seduziam e cantavam para Ulisses amarrado no mastro do navio em seu
retorno para casa, parecem colocar em questão um retorno seguro para a
casa da ciência!

Referências bibliográficas
Chalmers, David J. (1996) The Conscious Mind: In Search of a
Fundamental Theory. Oxford: OUPress, 1996.
Cinzia, DD & Vittorio, G. (2009) “Neuroaesthetics: a review”. In Curr. Opin.
Neurobiol. Dec; 19(6): 682-7, 2009.
Damasio, Antonio (2010). Self comes to Mind: Constructing the Conscious
Brain. New York: Pantheon Books.
Danto, Arthur C. (2003) The Abuse of Beauty, Chicago: Open Court.
Heidegger, Martin. (1936) Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da
obra de arte]. Stuttgart: Reclam, 2003.
Jacobsen, T., Schulbotz, RI. et all. (2006) “Brain Correlates of Aesthetic
Judgment of Beauty”. Neuroimage Jan 1:29(1): 276-285 [Errata Aug 1; 32(1)
486-7, 2006], 2006.
Kawabata, H. & Zeki, Semir. (2004) “Neural Correlates of Beauty”. In J. of
Neurophysiol. 91: 1699-1705, 2004.
Kant, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar (1790). Rio de Janeiro:
Forense, 1994.

1 Professor pesquisador do Instituto de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília.

148
ART
O ato criador (segundo especialistas da indefinição)
Nelson Maravalhas Junior1

Resumo: O texto pondera sobre o que seria o ato criador da poética,


entendida como uma possível essência da obra de arte. Sendo fenômeno
de difícil precisão, lança-se mão de algumas enunciações bastante vagas de
autores diversos que discorrem, de maneiras mais ou menos diretas, sobre
como seria o processo e o clima que envolvem o ato primordial da criação
artística.
Palavras-chave: Ato criador, intuições, arte marginal e loucura, formas-
constantes.
Abstract: The text endeavors to explain what would be the poetic creative
act, understood as the very essence of the work of art. Considering that it is
no easy task defining what this phenomenon is, appropriations are made
of somewhat vague discourses from various authors who, in more or less
direct ways ,brood over how would be the process and the atmosphere
which envelop the primordial act of artistic creation.
Key-words: Creative act, intuitions, outsider art and madness, form-
constants.
D’immenses cercles se traçaient dans l’infini, comme les orbes que forme l’eau
troublée par la chute d’un corps; chaque région, peuplée de figures radieuses,
se colorait, se movait et se fondait tour à tour, et une divinité, toujours la même,
rejetait en souriant les masques furtifs de ses diverses incarnations, et se
réfugiait enfin, insaisissable, dans les mystiques splendeurs du ciel d’Asie.

Gérard de Nerval, Aurélia: La revê de la vie2


Neste texto, vou discorrer sobre o ato criador, aquele momento decisivo
em que a criação poética irrompe e um objeto (material ou imaterial), dela
advindo, tem a capacidade de tornar-se uma obra de arte. Sei que esse
fenômeno é de difícil precisão, por isso, para auxiliar na tarefa de definir o
que para muitos é um dos conceitos mais inapreensíveis da arte, lançarei
mão aqui de emissários de mensagens que, em certa medida, discorrem
sobre o processo em si ou aludem a um clima em que o processo pode
aparecer.
Os três primeiros emissários usam a palavra escrita como portadora de
sugestões algo vagas sobre o fenômeno; entretanto, fecharei o texto com
uma pintura que, apesar de ser uma imagem, de ser uma “poesia muda”,
é capaz também de enunciar uma ideia, de ser propositiva. Tal assunto é
coerente com o tema Texto & Imagem, da mesa de Poéticas Atuais.
O primeiro, Jayme Rojas de Aragón y Ovalle (1892 ou 1895 - 1955),
o São Sujo, como se autodenominava, foi músico de talento. Compositor
de exatas 33 músicas (segundo ele, o número perfeito, por ser a idade de
Cristo), entre elas O Azulão, em parceria com Manuel Bandeira e gravada por
nomes como Victoria de Los Angeles, Kathleen Battle, Angela Gheorghiu,
Alaíde Costa e Nara Leão. Querido e adorado por vários intelectuais e
artistas como Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade,
Fernando Sabino, José Lins do Rego e Mário de Andrade, além de seu
149
ART

parceiro da famosa canção, Jayme Ovalle foi um nome estelar na boemia


carioca dos anos 1940 e 1950, por seus rompantes de poesia inesperados
e intuições agudas saídas como que do nada. Profeta, místico e fervoroso
católico, parecia deter na ponta da língua os mais fundos segredos da alma
humana, ele foi entrevistado em maio de 1953 por Vinícius de Moraes (em
parceria com Otto Lara Resende) para o tabloide semanal em cores Flan,
publicado sob o título “Retrato de Jayme Ovalle”, da qual transcrevo uma
parte3, por me parecer conter justamente a enunciação mesma do segredo
da criação em arte. O poetinha Vinícius pergunta:
- Agora me diga uma coisa importantíssima, Ovalle. Que é o ato criador?

Meio surpreso e pego de surpresa, Ovalle responde:


- Puxa, isso é muito importante! Deixe ver... O ato criador é qualquer coisa
assim como um desastre. Tem o imprevisto de um choque. E é qualquer coisa
extremamente ligada ao pecado. Pode acontecer de maneiras muito diferentes.
Há vezes em que nós participamos dele, outras não...

O poetinha parece não entender a belíssima resposta e, não satisfeito,


insiste:
- Não, Ovalle. Eu quero é a coisa em si, o nó do assunto. O que é o ato criador?

- Espere aí... O ato criador... no fundo, é a revelação das coisas que não
aconteceram, as que nós deixamos de viver por falta de oportunidade e
sobretudo por covardia. É um ato absolutamente livre e espontâneo. Olhe aqui,
é qualquer coisa assim como Adão ainda com a sua costela, na grande noite
fechada que era seu corpo. Já estava previsto que a costela deveria ser tirada por
Deus para iluminar seu corpo, que antes era uma noite profunda e integral. É ao
mesmo tempo o só e o coletivo. Pode-se mesmo dizer que, nesse sentido, o ato
de criação é o mais puro socialismo.

- A Poesia, Ovalle, que é a poesia?

- É a coisa mais importante do mundo. Todo mundo nasce com ela, porque ela
é a própria vida. Todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser
poeta porque perde a inocência. Quanto mais um homem cresce carregando
consigo sua inocência, maior poeta ele é. No fundo, esse pessoal que se torna
banqueiro, ou Senador, ou Presidente da República, só faz isso porque deixou de
ser poeta, ou porque é poeta frustrado.

- Onde vive a Música?

- Fora de nós. Nós somos os instrumentos. Quanto melhor o instrumento melhor


a música. Se formos um Stradivarius, a música toca em nós que é uma beleza!
Mas tem muito instrumento ordinário por aí.

Vinícius segue perguntando acerca de temas tão díspares como a


loucura, o suicídio, a noite, o ato sexual, Freud e a Psicanálise, Karl Marx, o
câncer, etc. A este amplo espectro, intuições inusitadas eram produzidas

150
ART
sem sombra de esforço ou artificialidade. Podemos ver, em algumas das
respostas de Ovalle, premonições da teoria artística, por exemplo, a de um
Josef Beuys (“todos podem ser artistas”). Por outro lado, é de notar a relação
estabelecida – por um cristão devoto, deve-se frisar – entre o ato criador e
o pecado. Leitor, talvez, de um só livro, a Bíblia, sua esposa Virginia Peckam
o definiu: “estamos falando de um homem que nunca foi à escola, e que por
pouco não era analfabeto (...) não era um intelectual. Era um simples, quase
a ponto de ser defeituoso, uma santa criança”4. Residiria aí, em sua pureza e
em sua ausência de erudição, justamente o frescor de suas intuições? Ovalle
tentou ser poeta – de forma mais incisiva curiosamente em língua inglesa,
que não dominava absolutamente – e, para isso solicitou ajuda primeiro de
uma empregada inglesa e depois de sua esposa americana! Estaria aí já o
germe da dissolução da autoria individual e da ideia do coletivo em arte
atual?
Entretanto, mais que um teórico intuitivo da gênese do ato criador,
Ovalle era um poeta do instante, um poeta do dia a dia, como eu chamo “um
poeta para o vento”, que, envolto em uma atmosfera constante de poesia,
enunciava pérolas para quem pudesse agarrá-las no ar. Foi, decididamente,
um performer do tipo contemporâneo5 da fala magistral e da criação pura,
que se fazia entremear no cotidiano banal que sempre nos cerca.
Infelizmente, tentou ser poeta da forma consagrada, da poesia em forma
de poemas com ritmo, rima e música, e nisso fracassou (ele mesmo - quem
diria? - um poeta frustrado, como os banqueiros, senadores e presidentes
por ele citado). Faltou-lhe, suponho, a premonição de que a seu ato criador
pudesse residir tão somente naquelas suas “falas para o vento”, de que esta
forma nova seria tão válida como obra de arte quanto a consagrada poesia
impressa.
Outro universo de intuições vem de uma filósofa amadora de Brasília e,
também ela, artista das tiradas enigmáticas, Helena Vieira Coelho Pereira.
Em um pequeno texto, não sem uma grande dose de risco e conjectura
intitulado “O Futuro da Filosofia”, remetido a mim por e-mail e por mim
aqui apropriado e transcrito, cria também algumas observações preciosas
e pedras filosóficas.
Helena inicia seu texto com uma citação do filósofo alemão Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814): “A filosofia que se escolhe depende do homem
que se é”6. Continua a filósofa amadora, com suas próprias palavras:
A frase faz pensar que há relação entre filosofia e o modo de viver. Então não
é algo assim tão abstrato, questões como, por exemplo: se existo? Também
poderia dizer que não é assim tão sem sentido buscar expressar racionalmente
o que se é, ou pensa, ou observa. Minha imaginação, por doença ou outra
causa, submeteu-me a fenômenos curiosos. Onde a razão aparecia, sim, vez
por outra, como uma pausa, como que para um descanso, minha mente e meu
corpo, a maior parte do tempo, era interação descontrolada. Porque a frase
lógica que minha mente gerava, que deveria dar ao corpo a sensação de
chão, era demasiadamente longa, me fazendo perder o ponto de partida e,
consequentemente, eu temia não encontrar o ponto final. Mas em um momento
em que os pensamentos, observações e sensações pareciam que se encaixavam,

151
ART

já a razão vinha me dar um descanso e um fôlego. Aí mergulhava novamente no


caos incompreensível, porém fascinante. Esta sedução era o indicativo de coesão.
Em outras palavras, um lugar de minha mente, onde não moram as palavras, onde
razão e afeto se confundem (intuição?) permanecia a certeza, a sensação de
unidade. Os episódios de loucura pareciam conectados entre si, numa cadeia
evolutiva de uma busca por um chão que resistisse a todo abalo.

Amoral porque não reconhecia autoridade, boa, porque é da minha índole,


minha mente guarda um caos privado onde sofrimento, sexo, sensualidade,
religião, fé, crime, todos os pecados e todas as caridades são amigos e focam o
mesmo objetivo: a vontade de Deus de pôr ordem na casa, uma tarefa infinita,
eterna e paradoxalmente terminada.

Perfeitamente.

É louco este pensamento? Melhor do que os outros que estudei; digo, para mim.
Não por estar correto, como saber? Mas por que plantou em mim a semente da
paz. Agora é só brincar.

Então aposto que este é o futuro da filosofia: cada macaco no seu galho, todos
sorridentes. [todos os grifos são meus]

Os grifos que operei acima parecem apontar todos para um estado


liminar, um entre-estado, uma indefinição espacial, porém carregada de
uma riqueza potencial. Veremos mais abaixo a relação que poderá ser
estabelecida.
Como lidar com um texto dessa natureza? Aparentando tratar de filosofia,
o texto tem a forma de um poema em prosa, o conteúdo de um ensaio em
poéticas contemporâneas, e se parece com um objeto imaginário tal como
uma faca só lâmina7: por onde quer que o seguremos, ele nos cortará as
papilas tácteis das mãos, é quase inapreensível. No entanto, não guardará,
em termos estruturais, em termos de atmosfera geral, semelhança com os
mistérios enigmáticos tão caros a um simbolista, como por exemplo, um
Paul Valéry? Vejo em seu texto analogias outras, desta vez com um romântico
também francês, Gérard de Nerval, (1808-1855), como veremos agora.
O escritor francês, cujo nome real era Labrunie, escreveu – quando
paciente em um hospital psiquiátrico8 - o conto Aurélia: La revê de la
vie (cujo excerto serve de epígrafe a este artigo) a parte final do qual foi
encontrado em seu corpo quando de sua morte. Nerval, além de escritor,
era também desenhista e, conta-se, teria pintado as paredes do hospital
onde foi internado. O protagonista narrador de Aurélia conta que pintou
afrescos em um hospital com a imagem de sua amada com o suco de ervas
e flores e com carvão e pedaços de tijolo, quando de sua doença mental
9
. São frequentes as indicações por alguns escritores (Maxime Du Camp,
Théophile Gautier e John MacGregor, por exemplo) de que as descrições
de sonhos (rêves) tão recorrentes em Aurélia são alucinações de natureza
psicótica. A epígrafe, excerto selecionado para este ensaio, aponta para
outra direção, assim como o parágrafo inicial deste seu conto, que aqui
traduzo livremente:
152
ART
O Sonho é uma segunda vida. Eu não posso descobrir sem tremer estas portas
de marfim ou de chifre que nos separam do mundo invisível. Os primeiros
instantes do sono são a imagem da morte. Um entorpecimento nebuloso agarra
nosso pensamento, e nós não podemos determinar o instante preciso onde
o eu, sob uma outra forma, continua a obra da existência. É um subterrâneo
vago que se ilumina pouco a pouco, e onde se livram da sombra e da noite as
pálidas figuras gravemente imóveis que habitam a câmara do limbo. Quanto
mais o quadro se forma, uma claridade nova ilumina e faz jogar estas aparições
bizarras; o mundo dos Espíritos se abre para nós10 [todos os grifos são meus, à
exceção do negrito].

O que se pode observar pelos grifos indicados nestas linhas de abertura,


tanto do conto, quanto do próprio universo ao qual o autor quer nos levar
(furando as portas de marfim ou de chifre), é que o autor experiencia estados
intermediários entre a vigília e o sono; mais propriamente falando, parece-
me que Nerval caía repetidamente em estados liminares denominados
de Hipnagógicos (em direção ao sono), comumente confundido com os
sonhos devido à indefinição típica deste estado (não é sono nem é vigília e
são os dois ao mesmo tempo!). Tal estado geralmente é acompanhado por
imagens mentais visuais ou auditivas espontâneas de grande vivacidade
(algumas pessoas me relatam terem tido “sonhos coloridos”, ou seja,
experienciaram imagens hipnagógicas). Conforme assinalei acima, a
epígrafe deste artigo aponta para uma das formas constantes (os círculos
concêntricos das ondas na água quando se joga uma pedra), presentes
tipicamente nas imagens visuais bidimensionais nascidas espontaneamente
neste estado liminar. Estas imagens são projeções subjetivas que se veem
como que pelo “olho da mente”. Exemplo claro de uma destas imagens e
de sua forma constante está na ilustração 01, de Fernando Diniz11. Já as
alucinações psicóticas contêm outra característica, a de ser superposta
ao espaço real (e ser com ele confundidas) como um objeto ou um ser
tridimensional, tendo, às vezes, o poder de fala, sendo assim mais teatral.
Outro exemplo de formas constantes em trabalhos de pessoas não
classificadas como “normais”, pode ser encontrado no conto The Secret
Agent, de Joseph Conrad, de 1907. Neste conto, o agente secreto Mr Verloc,
vê seu enteado Stevie (uma espécie de artista outsider) “sentado quieto
e bonzinho a um balcão, desenhando círculos e círculos; inumeráveis
círculos, concêntricos, excêntricos; redemoinhos coruscantes de círculos
que, por sua miríade de emaranhadas curvas repetidas, uniformidade de
forma e confusão de linhas e intersecções, sugeriam a representação de
um caos cósmico, o simbolismo de uma arte louca tentando apreender
o inconcebível” 12. Nesta passagem, ao criar o que seria a manifestação
gráfica da mente de um personagem mentalmente perturbado, a intuição
do escritor encontrou as mesmas formas constantes que se encontram
repetidas vezes nos trabalhos dos pacientes psicóticos, exemplificadas
na ilustração 01. Haveria, então, um método na loucura? Método esse
responsável pela repetida incidência de formas?
Os redemoinhos caóticos, o desastre, a costela arrancada de Adão, o
pecado, a culpa e a tragédia daí advindas não são todas expiações e catarses
necessárias propiciadas pela obra de arte? E a nossa não participação, em
153
ART

outras palavras, a espontaneidade ou a não voluntariedade, que o místico


Ovalle apontou como características do ato criador, por um lado; e a falta de
chão, o caos, os hiatos e as pausas da razão, a interação descontrolada que
Helena aponta em seu pequeno ensaio, me parecem convergentes com o
imaginário mental típico do universo de Nerval. O que é a loucura senão
um desastre, um pecado, uma pausa da razão? E o ato criador, não será um
hiato, uma costela arrancada que ilumina a noite de um corpo em seu quase
sono, como soe acontecer com as imagens mentais do tipo visual?
Assim, proponho, todo ato criador é uma espécie de visão.
Podemos ver, na ilustração 02, a projeção de uma visão ao fundo do
espaço perspectivo. A personagem, cujo rosto provém da história da arte,
parece indicar que o movimento circular que produz esta visão nasce de
dois mananciais: o dicionário (fonte de palavras) e a lata de tinta (fonte de
imagens), ambos (texto & imagem) sob seus pés, ao seu dispor. As duas
fontes são manipuladas no peito, manualmente por meio da manivela. Em
um encontro de Arte e Tecnologia, não poderíamos deixar de notar o fio e a
tomada elétrica conectada à cadeira onde senta a personagem e a projeção
que mais parece vir de um data show.
Temos aí algumas indicações do ato criador, nada em definitivo, como
não pode ser mesmo quando se fala em criação e em arte. Sugestões de
personalidades peculiares, cada uma com sua cor particular, especialistas
da não exatidão, da proposta vaga, da liminaridade entre um estado e
outro, não sendo nem um nem outro, e sendo os dois ao mesmo tempo.
Enfim, não há uma palavra no thesaurus das línguas que defina a criação;
se houvesse, após enunciá-la, todos nós calaríamos.

Bibliografia

CONRAD, Joseph, The Secret Agent – a simple tale, Penguim Books,


1994.
MacGREGOR, John, The Discovery of the art of the insane, Princeton
University Press, 1989.
MARAVALHAS Jr., Nelson, Heliogábalus, in Poiésis, n. 14, vol. 1, PPGCA/
PROPP/UFF, 2009.
NERVAL Gérard de, Aurélia, suivi de Pandora, Librio nº 23, 2003.
NETO, João Cabral de Melo Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias
fixas [1956], in Serial e Antes (Poesia completa, vol. 1) Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
WERNECK, Humberto, O Santo Sujo: a vida de Jayme Ovalle, São
Paulo: Cosac Naify, 2008.

154
ART

Ilustração 01 – sem título, Fernando Diniz, 1979, 50 x 40 cm, guache


sobre papel. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.

155
ART

Ilustração 02 – Bases Antropológicas para o Imaginarium I – A manivela, a reflexão. Nelson


Maravalhas Jr., 2004, 87 x 64 cm, óleo sobre tela.

1 Professor pesquisador doutor do Departamento de Artes Visuais, Instituto de Artes da


Universidade de Brasília.

2 Imensos círculos se traçam no infinito, como as ondas que se formam na água agitada pela queda de
um corpo; cada região, povoada de figuras radiosas, se colorem, se movem e se fundam a cada vez, e uma
divindade, sempre a mesma, rejeita sorrindo as máscaras furtivas em suas diversas encarnações, e se refugiam

156
ART
enfim, inapreensíveis, nos místicos esplendores do céu da Ásia. (Trad. Livre do Autor)

3 Todas as informações aqui contidas, inclusive as perguntas e respostas da entrevista,


retiradas de WERNECK, Humberto, O Santo Sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac
Naify, 2008.

4 Idem, p. 310.

5 Semelhante correlação foi feita por mim acerca de um artista marginal psicótico de
Brasília, no artigo Heliogábalus, In: Poiésis, n. 14, vol. 1, PPGCA/PROPP/UFF, 2009.

6 Provavelmente do seu sistema Wissenschaftslehre, Teoria da Ciência ou Ciência do


Conhecimento.

7 Como no poema de João Cabral de Melo Neto Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias
fixas (dedicado para Vinícius de Moraes), 1956, In: Serial e Antes, Poesia completa, vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

8 Hospital dirigido pelo Dr. Emile Blanche, em Passy, que demostrou extraordinário
interesse pelo paciente/escritor. Dr. Blanche tratou também do irmão de Van Gogh, Theo,
que foi hospitalizado ao fim da vida. A vida de Nerval tem um curioso paralelo com o seu
contemporâneo artista e gravador Charles Meryon, também ele hospitalizado por problemas
mentais (Cf. MacGREGOR, 1989).

9 Gérard de Nerval, Aurélia suivi de Pandora, Librio nº 23, 2003, p. 31.

10 Le Rêve est une seconde vie. Je n’ai pu percer sans frémir ces portes d’ivoire ou de corne qui
nous séparent du monde invisible. Les premiers instants du sommeil sont l’image de la mort; un
engourdissement nébuleux saisit notre pensée, et nous ne pouvons déterminer l’instant précis où le
moi, sous une autre forme, continue l’œuvre de l’existence. C’est un souterrain vague qui s’éclaire
peu à peu, et où se dégagent de l’ombre et de la nuit les pâles figures gravement immobiles qui
habitent le séjour des limbes. Puis le tableau se forme, une clarté nouvelle illumine et fait jouer ces
apparitions bizarres; le monde dês Esprits s’ouvre pour nous. Cf. Nerval, Idem, p. 11.

11 Paciente/artista do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, que produziu em


suas obras grande variedade de formas-constantes e de propriedades visuais típicas daquele
estado liminar.

12 “...seated very good and quiet at a deal table, drawing circles, circles; innumerable circles,
concentric, eccentric; a coruscating whirl of circles that by their tangled multitude of repeated
curves, uniformity of form, and confusion of intersecting lines suggested a rendering of cosmic
chaos, the symbolism of a mad art attempting the inconceivable”. Cf Conrad, pp. 47 e 48.

157
ART

Media Art needs Histories and Archives: New Perspectives


for the (Digital) Humanities
Oliver Grau1

Abstract: Over the last thirty years Media Art has evolved into a vivid
contemporary factor, Digital Art became “the art of our time” but has still
not “arrived” in the core cultural institutions of our societies. Although there
are well attended festivals worldwide, well funded collaborative projects,
numerous artist written articles, discussion forums and emerging database
documentation projects, media art is still rarely collected by museums,
not included or supported within the mainframe of art history and nearly
inaccessible for the non north-western public and their scholars. Thus, we
witness the erasure of a significant portion of the cultural memory of our
recent history. It is no exaggeration to say we face a total loss of digital
contemporary art, and works originating approximately 10 years ago can
most likely not be shown anymore. The primary question is: what can
we learn from other fields to develop a strategy to solve the problems of
Media Art and its research, to answer the challenges Image Science is
facing today in the framework of the Digital Humanities? This question
opens up a perspective to overcome the typical placement of Media Arts
in an academic ghetto. The development of the field is supported in an
increasingly enduring manner by new scientific instruments like online
image and text archives, which attempt to document collectively the art
and theory production of the last decades. By discussing examples from a
variety of projects from the natural sciences and the humanities, this article
tries to demonstrate the strategic importance of these collective projects,
especially in their growing importance for the Humanities.
Keywords: Media Art, Media Art Education, Media Art Research

Media art’s revolution?

Media art is the art form using the technologies that change our
societies fundamentally. Globalization, information society, social networks,
Web 2.0 - the list could be far longer – are enabled by digital technologies.
Although not all Media Art comments on the social, cultural and political
conditions, it is nevertheless the art form with the most comprehensive
potential for cultural necessity. We know that media artists today are
shaping highly disparate areas, like time-based installation art, telepresence
art, genetic and bio art, robotics, Net Art, and space art; experimenting with
nanotechnology, artificial or A-life art; creating virtual agents and avatars,
mixed realities, and database-supported art. These artworks both represent
and reflect the revolutionary development that the image has undergone
over the past years (Fig.1).2
Currently, we are witnessing the transformation of the image into a
computer-generated, virtual, and spatial entity that is seemingly capable
of changing “autonomously” and representing a life-like, visual-sensory
sphere. Interactive media are changing our perception and concept of
158
ART
the image in the direction of a space for multi-sensory experience with a
temporal dimension open to evolutionary change and gaming. Images
appear, whose condition is defined by the functions of display and interface,
images serve as projection surface for interlaced information, images enable
to move us telematically in immersive scenarios, and reversely images allow
us have an affect into the distance.
Contemporary media art installations include: Digital stills and video,
3-D objects and animation, digital texts and music, sound-objects, noises
and textures, whereas different meanings may be inscribed and combined
with each other. Meaning develops by chance, experiment and well directed
strategy. The active spirit, the combining user, becomes the new source of
art and meaning if you leave enough degrees of freedom to him to develop
to the actual artist. Dynamic he is involved to navigation, interpretation,
transfer, contextualisation or production of image and sound which may
come into being by his participation. Memory, thoughts and experiments
with accident may respond to a fertile connection. Increasingly the art system
transforms to an organism with slices which organize themselves while the
user has a chance to experience and produce combinative meaning.
Media Art makes use of the latest image techniques and strategies
for aesthetic and reflective means: With Johanna and Florian Dombois’
Fidelio, 21st Century, named after Beethoven’s “Fidelio,” for the first time a
classical opera was directed as an interactive virtual 3D experience. The
protagonists embody music, follow the dramaturgic direction and react
to the interventions of the visitors (Fig. 2).3 Artist-scientists, such as Christa
Sommerer and Berndt Lintermann, have begun to simulate processes of
life: evolution, breeding, and natural selection have become methods for
creating artworks.4
Eduardo Kac’s installation Genesis raises open-ended questions about
the complicated ethical issues involved in the manipulation of DNA.5
In Murmuring Fields, Monika Fleischmann and Wolfgang Strauss create
a virtual space of philosophical thought, where statements by Flusser,
Virilio, Minsky, and Weizenbaum are stored. The work creates a new type
of a “Denkraum” (Thinking-Space) — a sphere of thought.6 Constructed
on a database, the interactive installation Ultima Ratio7 by Daniela Plewe
offers a first glimpse of a future system for interactive theatre. Intellectually
challenging, her concept allows the spectator to solve an open conflict at
a high level of abstraction and combination of different dramatic motifs.
Daniela Plewe’s goal is to generate a visual language for argument and
debate.
Diana Domingues, one of the most known artists in the Americas,
created with TRANS E: My Body, My Blood for more than a decade poetical,
transitoric and immersive experiences for body and senses: Again and again
her artistic will “Kunstwollen” pushed the transposition of the technological
border by developing innovative image procedures. With this, she questions
the growing aesthetics of medical and scientific image worlds, using them
in her work strategically.

159
ART

Media Art and the Humanities

Typical for media revolutions is, they are again and again platonistic
or even apocalyptic commentaries. Their positions often exhibit an anti-
technology thrust and have developed partly from Critical Theory and
Post-Structuralism. At the other end of the spectrum are utopian-futurist
prophesies. Variations on ideas like: “now we will be able to touch with our
bodies into the far distance,” and “now the illusion will become total” on the
side of the utopians have collided with fears like “our perception will suffer,”
or “our culture will be destroyed,” and even “we will loose our bodies.” This
discourse mechanism, provoked by media revolutions, comes again and
again. Let’s remember the discussion the discussion around VR in the 1990s,
the cinema debate in the early 20th century, the Panorama in the 18th
century, and so forth. Both poles are either positive or negative teleological
models, which follow largely the pattern of discourse surrounding
earlier media revolutions. But analogies or fundamental innovations in
contemporary phenomena can only be discerned through historical
comparison.
Seen in this light we cannot consider the protagonists of this latest media
revolution debate with their projections and dark fantasies as contributors
to a serious discussion anymore, but rather as meaningful sources of the
thinking from their time. In addition, it must to be assumed that not only
analogies but also fundamental innovations of current phenomena become
clearly recognizable only through historical comparison. “Depth of field”
analyses of images can play an important role in facilitating our political and
aesthetic analysis of the present. Only if we are aware of our media history
with its myths and utopias, its interests and power games, we will be able to
make decisions that go beyond the heritage of ancient believers in images.
Beyond that, by focusing on recent art against the backdrop of historic
developments, it is possible to better analyze what is really new in media art
and to better understand our present and our goals in a period where the
pace appears to get faster and faster — that is the epistemological thesis. It
is necessary to take stock soberly in the realm of art and media history.
It is essential to create an understanding that the present image
revolution, which indeed uses new technologies and has also developed a
large number of so far unknown visual expressions, cannot be conceived of
without our image history. Art History and Media Studies help understand
the function of today´s image worlds in their importance for building
and forming societies. With the history of illusion and immersion, the
history of artificial life or the tradition of telepresence, Art History offers
sub-histories of the present image revolutions. Art History might be
considered as a reservoir in which contemporary processes are embedded,
like an anthropologic narration on the one hand, but as well the political
battleground where the clash of images is analyzed on the other hand.
Furthermore, its methods may strengthen our political-aesthetic analysis
of the present through image analyses. Not left to last, the development
and significance of new media should be illuminated since the first utopian
expressions of a new media often take place in artworks.

160
ART
The evolution of media art has a long history and now a new
technological variety has appeared. However, this art cannot be fully
understood without its history. So the Database for Virtual Art, Banff
New Media Institute, and Leonardo produced the first international
MediaArtHistory conference. Held at The Banff Centre, Refresh! represented
and addressed the wide array of 19 disciplines involved in the emerging
field of Media Art8 Through the success of Replace (2007) at Berlin’s House of
World Cultures, (the Department for Image Science hosted the brainstorm
conference in Göttweig 2006), Re:live was planned for Melbourne 2009, and
an established conference series was founded with Re:2011 is on the way.9
Re:fresh! was not planned to create a new canon, but to create a space for
the many-voiced chorus of the involved approaches. The subtitle HistorIES
opened up the thinking space to include approaches from other disciplines
beside ‘art history’. Re:fresh, Re:place and Re:live were organized via the
MediaArtHistory.org platform, which is now developing into a scholarly
archive for this multi-faceted field, ranging from art history, to media, film,
cultural studies, computer science, psychology etc. Meanwhile almost 1000
peer-reviewed applications have been coordinated on MediaArtHistory.
org.10 With the 19 disciplines represented at Re:fresh! serving as its base,
MAH.org is evolving with future conferences under the guidance of an
advisory board, among them: Sean Cubitt, Paul Thomas, Douglas Kahn,
Martin Kemp, Timothy Lenoir or Machiko Kusahara.

Image science: from the image atlas to the virtual museum

The integration and comparison of a “new” image form within image


history is not a new method, there were different historic forerunners:
Inspired by Darwin´s work “The Expression of the Emotions” Aby Warburg
began a project of an art-historical psychology of human expression.
His famous Mnemosyne image atlas from 1929 tracks image citations
of individual poses and forms across media – and most significantly,
independent from the level of art niveau or genre. He redefined art
history as medial bridge building – for example including many forms of
images. Warburg argued that art history could fulfill its responsibility only
by including most forms of images. The atlas, which has survived only as
“photographed clusters”, is fundamentally an attempt to combine the
philosophical with the image-historical approach and Warburg arranged his
visual material by thematic areas.
Let’s remember that it was art historians dealing with artifacts in a
non-hierarchical manner who founded the first arts and crafts museums
for the artifacts that were not counted as art. Art historians also founded
the first photographic collections at the end of the 19th century containing
besides art photography, also images of everyday life. Alois Riegl examined
the popular culture of late Roman art industries and Walter Benjamin
was drawn to Aby Warburg’s cultural studies library, whose ground floor
was completely dedicated to the phenomena of the image. Warburg,
who considered himself an image scientist, reflected upon the image
propaganda of World War I through examination of the image wars during
the reformation. Warburg intended to develop art history into a “laboratory
161
ART

of the cultural studies of image history”, that would widen its field to “images
(…) in the broadest sense”. (“Bilder…im weitesten Sinn”).11
Let us remember too, that Film Studies was started by art historians: An
initiative by Alfred Barr and Erwin Panofsky founded the enormous Film
Library at the New York MOMA, called by its contemporaries the “Vatican
of Film”. This way film research already in the 1930s possessed a dominant
image science approach and cultivated it further. This initiative allowed the
large scale comparison of film for the first time. The same spirit concerned
with new investments for infrastructures to provide for and analyze the
Media Art of our time is needed in the Digital Humanities.

Art history – visual studies – image science

We know that for years academic discussions and battles have been
raging around the fields of images and the visual and perception of them.
Specific to segments of the English Language Humanities there continues
to be a not very fruitful and ultimately simple polarization between Art
History, which partly is considered conservative, formalistic, aesthetic,
sometimes even elitist and male-dominant and the Visual Cultural Studies12,
which emerged to a large extend from Literature Studies. Drawing upon a
multi-cultural and post-colonial13 etiquette, Visual Cultural Studies attempts
to research the visual within approaches of societal and identity politics.14
Within the traditionally strong German Language Humanities we perceive
a two folded development: Art History departments increasingly rename
themselves as Institutes for Art and Image History, allowing Art History
as the oldest scholarly endeavor dealing with images to avoid tendencies
of separation; and at the same time to renew the interdisciplinarity that
bloomed in German Art and Image History before National Socialism with
representatives like Warburg, Panofsky, Kris or Benjamin.
Image Science does not imply that the experimental, reflective, and
utopian spaces provided by art are to be abandoned. On the contrary,
within these expanded frontiers the underlying and fundamental
inspiration that art has provided for technology and media is revealed with
even greater clarity. With strong representation of art history15, the project
of Image Science expands towards an interdisciplinary development that
connects neuroscience16, psychology17, philosophy18, communication
studies19, emotions research20, and other scientific disciplines.21 Recently,
interdisciplinary scientific clusters have been built around the subject of
the image that lie increasingly perpendicular to the human, natural and
technical sciences, which have succeeded in profiting from the paradigm
“Image” as well as from an increased disposition towards interdisciplinarity.
More and more, tendencies appear that require a farewell or at least a
new evaluation of the relation Word / Image in favor of the latter. Already
in 1993 Martin Jay triggered with his work “Downcast Eyes” 22 a criticism of
the “sight-hostility” of language-fixated French Philosophy. Contemporarily
this critique unfolds in terms like “Image Immersion” (Oliver Grau, 1998 and
2001)23; “Power of the Iconic” (Gottfried Boehm 2004)24; “Picture Act” (Horst

162
ART
Bredekamp 2005).25 The central thesis is that in every image cognition, the
eyes cannot be separated as the sole perception organs, more so it is that
the entire body perceives.26

Preconditions

In contrast to other disciplines concerned with images, ones that not


infrequently try to explain images as isolated phenomena springing from
themselves, the primary strength of art history is its critical potential to
define images in their historical dimension. Exactly because art history
emphasizes a rigorous historicization and the practice of a critical power
of reflection can it produce its most natural possible contributions to the
discussion around images. Scientific work with images is based on three
pre-conditions: 1. definition of the object, 2. building of an image archive
and 3. familiarity with a large quantity of images. This enables and defines
the understanding that images follow a diachronic logic; without this
historic base, image science remains superfluous and cannot realize its
full potential. If those pre-conditions are fulfilled, image science may be
practiced within any field - medicine, natural science, history of collections,
design or art technique. If these requirements are not fulfilled, we see merely
a form of aesthetics. All of those approaches of comparison are based on the
insight that images act diachronic, within a historical evolution and never
function simply as an act and without reference. This diachronic dynamic
of image generations is increasingly interwoven with understanding the
images alongside those of their time, the synchronic approach.
Image Science, or Bildwissenschaft, now allows us to write the history
of the evolution of the visual media, from peep-show to panorama,
anamorphosis, stereoscope, magic lantern, phantasmagoria, films
with odors and colors, cinéorama, IMAX and the virtual image spaces
of computers: The medium of the phantasmagoria for example is part
of the history of immersion, a recently recognized phenomenon that
can be traced through almost the entire history of art in the West, as I
have documented in a previous book27: History has shown that there is
permanent cross-fertilization between large-scale spaces of illusion that
fully integrate the human body (360°frescoes, the panorama, Stereopticon,
Cinéorama, IMAX cinemas, or the CAVEs (Fig. 4) and small-scale images
positioned immediately in front of the eyes (peepshows of the 17th century,
stereoscopes, stereoscopic television, Sensorama, or HMDs). Evidently
among the latest examples of this development are computer games like
Grand Theft Auto, which mix the emotional involvement of the story with
immersive graphics. It is, let me underscore, an evolution with breaks and
detours; however, all its stages are distinguished by a relationship between
art, science and technology. Image science is an open field that engages
equally with what lies between the images.
André Malreaux, the adventurer and former French minister of culture,
described after the war the field opened up by photographic reproductions
as museé imaginare, because it goes beyond the museum and can contain

163
ART

works of art that are bound to architecture, like frescoes. The famous
picture at the introduction of the book shows Malreaux in an archival grid
compiling, side-by-side, the most diverse objects from various epochs and
cultures. Being recontextualized like this, a crucifix becomes a sculpture and
a sacred effigy for example a statue.28 We may say, the museé imaginare is
both product and symptom of globalization. And now as a key project for
the Digital Humanities we are witnessing the birth of the Virtual Museum.

The virtual museum

The Virtual Museum represents an extension of traditional museum forms.


It is a museum “without walls,” a space of living, distributed information,
database driven and network oriented. It is a space where artists and
scholars can intervene and foremost it is museum where documentation
and preservation of media art is supported and international networks can
develop. Art and the connected information are presented on new forms of
displays, via new interfaces within the traditional museum cube, but also
via networks beyond the walls to a larger public. The Virtual Museum offers
a multimedia data flow in real time that continuously reconfigures over
time, and on the other hand it preserves the physical elements media art
installations contain.

Collective strategies and new tools for the humanities

In the first generation of Digital Humanities29, data was everything.


Massive amounts of data were archived, searched and combined with other
databases in the nineties for interoperable searches yielding a complexity
and realization at a previously inconceivable rate. Yet the amount of material
to be digitized is so vast that, in real terms, we are only at the tip of the
data iceberg. In non-textual fields, such as visual arts, music, performance,
media studies, we are “at the tip of the tip”. Now remember that digital art
has still not “arrived” in our societies; no matter how well-attended digital
art festivals are or how many scientific articles the artists have published.
Due to the fact that this art depends entirely on digital storage methods,
which are in a constant state of change and development, it is severely at
risk. Many art works that are not even ten years old can no longer be shown
and it is no exaggeration to say that 30 years of art threatens to be lost for
the next generations.
During the last decades the natural sciences started to address new
research goals through large collective projects, in Astronomy for example
the Virtual Observatory compiles centuries worth of celestial observations30;
global warming is better understood with projects like the Millennium
Ecosystem Assignment, at a detail never before calculable, evaluating 24
separate life systems and the global change they are part of.31 The rapid
expansion of computational power has effected biology, and the Human
Genome Project became already legend.32 So far, unknown collective
structures give answers to complex problems. For the field of Media Art
research and the Digital Humanities in general an appropriate approach is
164
ART
needed to achieve equivalent goals.
Comparable with natural sciences, digital media and new opportunities
of networked research catapult the cultural sciences within reach of new
and essential research, like appropriate documentation and preservation
of media art, or even better, an entire history of visual media and their
human cognition by means of thousands of sources. These themes express
in regard to image revolution current key questions. In order to push
humanities and cultural sciences in their development, it is necessary to use
the new technologies globally. Timelines and new methods of visualization
belong to the history of invention of visual techniques, image content and
especially their reception in the form of Oral History in popular and high
culture, in the western as well as in non-western cultures. So we live in an
exciting time for Image Science and the Humanities! The credo is: not to
give up the established individual research, but to complete it in a new way
through collective, net-based working methods which allow us to deal with
explosive questions in the field of humanities and cultural sciences.

a. The database of virtual art

Begun as a counterpart to the systematic analysis of the triad of


artist, art work and beholder in digital art under the title Virtual Art,
we originated the first documentation project, the (Fig. 5) Database
of Virtual Art, which celebrated it’s tenth anniversary last year.33 As
a pioneer, supported by the German Research Foundation, it has been
documenting in cooperation with renowned media artists, researchers
and institutions the last decades of digital installation art as a collective
project. We know that today’s digital artworks are processual, ephemeral,
interactive, multimedial, and fundamentally context dependent. Because of
their completely different structure and nature they require a modified, we
called it some years ago, an “expanded concept of documentation”.34
As probably the most complex resource available online: hundreds of
leading artists are represented with several thousand documents and
their technical data, more than 2000 listed articles and a survey of 750
institutions of media art, the database became a platform for information
and communication. The Database runs completely on open-source
technology and since the artists are members it avoids copyright problems.
Beside this group there are theorists and Media Art historians totaling at
this point an additional more than 300 contributors - therefore we say the
Database of Virtual Art is a/the collective project.
The system allows artists and specialists to upload their information and
the DVA relies on its advisory board. Beside that, the policy, whether an artist
is qualified to become a member is the number of exhibitions, publications,
awards and public presentations; high importance is ascribed also to artistic
inventions like innovative interfaces, displays or software. Over the last 10
years about 5000 artists were evaluated from which 500 fulfilled the criteria
to become member of the DVA.

b. “Bridging the gap:” new developments in thesaurus research


165
ART

And now together with probably one of the most important unknown
art collections, the Göttweig print collection, representing 30 thousand
prints emphasizing Renaissance and Baroque works35 and a library of
150.000 volumes going back to the 9th century like the Sankt Gallen Codex,
the Database of Virtual Art strives to achieve the goal of a deeper Media Art
historical cross examination. Just as the Media Art History conference series
aims to bridge a gap, the combination of the two and other databases hopes
to enable further historic references and impulses, in the manner, Siegfried
Zielinski calls “The Deep Time of Media”.36 The Göttweig collection also
contains proofs of the history of optical image media (Fig. 6), intercultural
concepts, caricatures, illustrations of landscapes in panoramic illustrations.
For the future this will provide resources for a broader analysis of media art.
Keywording is bridge building! The hierarchical Thesaurus of the DVA
constitutes a new approach to systemize the field of Digital Art. It was built
on art historical thesauri from institutions like Getty, Warburg Institute or
festival categorizations and discussions with artists, so that it supports
historical comparisons. Out of the Getty Arts & Architecture Thesaurus from
the subject catalogue of the Warburg Library in London, keywords were
selected which also have relevance in media art. On the other side, out of
the most common used terms from media festivals like Ars Electronica,
DEAF, Transmediale new keywords were selected. Important innovations
such as “interface” or “genetic art” have been considered as well as keywords
that play a role in traditional arts such as “body” or “landscape” and thus
have a bridge-building function. It was important to limit the number to
350 words so that members of the database can assign use and keywords
their works without long studies of the index.
The categories led to natural overlapping, so that the hybrid quality
of the artworks can be captured through clustering. Important was the
thematic usability for the humanities – it was necessary to avoid developing
something only new, separated from our cultural history. It was important
to compile a thesaurus that connects cultural history with media art and
does not isolate them from another. As expected, the material has produced
a multitude of fractures and discontinuities, which we make visible in the
terminology of the database.
One of the goals for the future is to document the works within a
context of complex information and, at the same time, to allow users to find
individual details quickly. In addition to statistically quantifiable analyses
and technical documentation, Databases should also present personal
connections and affiliations and funding information, with the idea to
reveal interests and dependence. The term “database” may be misleading:
like Warburg´s image atlas which supports key icons that define the extent
of problems and enables possibilities for comparison, databases should
possess an experimental character in order to find thematical clusters within
media art. And yet, the tools only hold the data - the quality of the analysis
continues to rely on thoughtful developments in the Digital Humanities.
In addition to searches of themes, Media Art documentation should also
admit questions of gender, track the movement of technical staff from lab
to lab, technical inventions pertaining to art, the destinations of public and
166
ART
private funds allocated to research, and, through the thematic index, show
reminiscences of virtual/immersive art in the forms of its predecessors, for
example, the panorama. In this way, documentation changes from a one-
way archiving of key data to a proactive process of knowledge transfer.

c. Media art education

Bridging the gap for Media Art means also the use of new telematic
forms of education, which enlarge the audience now being able to
intervene interactively from other continents, as we practice with the
archived Danube Telelectures.37 The future of Media Art within the Digital
Humanities requires the further establishment of new curricula, as we
developed with the first international Master of Arts in MediaArtHistories,
with faculty members like Erkki Huhtamo, Lev Manovich, Christiane Paul,
Gerfried Stocker and Sean Cubitt, which deals also with the practice and
expertise in Curation, Collecting, Preserving and Archiving of Media Arts.
The necessity for an international program capable of accommodating
future scholars coming from diverse backgrounds and all continents was
answered by a low-residency model allowing professionals to participate
in the advanced program of study parallel to ongoing employment and
activities.
It was necessary for the needs of the field to create a course specific to
MediaArtHistories with experts that normal universities could not gather
all in one institution in order to pave the way towards development of
innovative future educational strategies in the field. Giving an overview of
the relevant approaches and on the other hand a specialization via project
and masters theses, the Masters of Arts provides an initiation for fresh
students and depth for seasoned students into this emergent field.

The problem of media art documentation today – future needs

Since the foundation of the Database of Virtual Art a number of online


archives for digitization and documentation arose: Langlois Foundation in
Montreal, Netzspannung at the Frauenhofer Institut or MedienKunstNetz
at ZKM – all these projects were terminated, their funding expired, or they
lost key researchers like V2 in Rotterdam.38 Even the Boltzmann Institut for
Media Art Research in Linz, faced its close-down after evaluation. In this way
the originated scientific archives which more and more often represent
the only remaining image source of the works, do not only lose step by
step their significance for research and preservation but in the meantime
partly disappear from the web. Not only the media art itself, but also its
documentation fads that future generations will not be able to get an idea
of the past and our time. To put it another way, till now no sustainable
strategy exits. What we need is a concentrated and compact expansion of
ability. There is/was increasing collaboration with these projects in a variety
of areas and in changing coalitions. But let me add some remarks: In the
field of documentation projects - real preservation projects do not exist
yet39 - the focus is still directed too much towards particularisation, instead

167
ART

of concentrating forces, what is an essential strategy in most other fields.

A new structure for Media Art research

Especially the university based research projects and partly also the
ones which are linked to museums have developed expertise that needs
to be included in cultural circulation, not only in order to pass it on to
future generations of scientists and archivists but also to give it a chance
to flow into future university education in the fields of art, engineering,
and media history. Clearly, the goal must be to develop a policy and
strategy for collecting the art of our latest history under the umbrella of a
strong, let’s say “Library of Congress like” institution. Ultimately, however,
this can only be organized by a network of artists, computer and science
centers, galleries, technology producers and museums. Those projects
which collected culturally important documents in the past and which
often expired, were not further supported or even lost their base must be
supported and reanimated. They should be organized like a corona around
an institution which receives the duty of documentation and may be even
the collection of contemporary media art, such an institution could be in
the USA, the Library of Congress; in Europe, besides the new European
digital libraries database Europeana, it could be the Bibliotheque National,
the British Library, the V&A or in Germany beside the ZKM for example the
Deutsche Bibliothek. Interestingly the libraries show increasingly interest to
archive multimedia works and their documentation; however, the usually
complex cultural and technical know how is lacking in order to preserve
principal works of the most important media art genres of the last decades.
A structure which updates, extends and contextualizes research – whether
in historical or contemporary contexts is required. The funding and support
infrastructures which have been built in the end of the last century are not
suitable for scientific and cultural tasks in the Humanities of the 21st Century.
One key issue for the digital humanities would be to identify all
the existing databases, also those smaller ones in countries where you
do not search first. In astronomy the funding agencies developed and
modernized their systems towards sustainability, which is needed as well
in the humanities: The virtual observatory infrastructure is funded on an
ongoing basis and there is international coordination between a dozen or
so countries that produce astronomical data. What we need and we could
archive in the near future is an electronic “Enclyclopedia of Visual Media”
(EVM) created from a network of databases and the thousands of existing
websites. Based on scholarly criteria of every known image medium in
history described and on the basis of original sources, it should precisely
capture how our forerunners experienced them. The EVM could allow
scholars from all over the world to research their image media and discover
further unknown treasures of human image making.
We know that a central problem of current cultural policy stems from
serious lack of knowledge about the origins of the audiovisual media
and this stands in complete contradistinction to current demands for
more media and image competence. Considering the current upheavals
and innovations in the media sector, where the societal impact and
168
ART
consequences cannot yet be predicted, the problem is acute. Social media
competence, which goes beyond mere technical skills, is difficult to acquire
if the area of historic media experience is excluded.
What is urgently needed is the establishment of an appropriate structure
to preserve at least the usual 1 – 6% of present media art production,
the best works. This important step is still missing for media art from the
first two generations. The faster this essential modification to our cultural
heritage record will be carried out, the smaller the gap in the cultural
memory; shedding light on the dark years, which started about 1960 and
lasts till now.40 The hybrid character of media art requires a shift of the
paradigm towards an orientation of process and context recording, which
includes more and more the capture of the audience experience.41
Our hope for the future is that we can bring together the expertise of
the most important institutions in order to form an up to date overview of
the whole field, to provide the necessary information for new preservation
programs within the museum field, new university teaching programs for
a better training of the next generation of historians, curators, restorers,
engineers and others involved in the preservation and new form of open
access to media art. Just as research in the natural sciences has long
recognized team efforts, a similar emphasis on collaborative research
should make it’s way into the thinking of the humanities.

1 Professor doctor, chair Professor for Image Science, Department for Image Science,
Danube University, Austria

2 For an overview: www.virtualart.at. Recently: Edward Shanken: Art and Electronic Media
(London: Phaidon, 2009); Christa Sommerer and Laurent Mignonneau (Eds.): Interface Cultures:
Artistic Aspects of Interaction (Bielefeld: Transcript 2008); Victoria Vesna: Database Aesthetics:
Art in the Age of Information Overflow (Minneapolis: University of Minnesota Press 2007);
Steve Dixon: Digital Performance: A History of New Media in Theater, Dance, Performance Art,
and Installation Cambridge (Mass.: MIT Press 2007). Already a classic: Christiane Paul: Digital Art
(London: Thames & Hudson 2003).

3 Johanna Dombois, Florian Dombois, op.72., II 1-5, 3D. Beethoven’s «Fidelio» in a Virtual
Environment. In: Proceedings of The 5th World Multi-Conference on Systematics, Cybernetics
and Informatics. Vol. X, Orlando (Florida), July 22-25, 2001, p. 370-373.

4 Christa Sommerer and Laurent Mignonneau, “Modeling Complexity for Interactive


Art Works on the Internet,” in Art and Complexity: At the Interface, edited by J. Casti and A.
Karlqvist, (Amsterdam: Elsevier, 2003), pp. 85-107.

5 At the center of the installation is the so called “artists gene”, which Kac created by
translating a sentence from Genesis in the Bible into Morse code and the converting of the
Morse code into DNA base pairs open for manipulation by the visitors.

6 Fleischmann, Monika; Strauss, Wolfgang; Novak, Jasminko: Murmuring Fields Rehearsals


– building up the Mixed Reality Stage. In: Proceedings of KES (International Conference on
169
ART

Knowledge Engineering Systems). (Brighton, 2000).

7 Bernhard Dotzler: Hamlet\Maschine, in: Trajekte: Newsletter des Zentrums für


Literaturforschung Berlin, no. 3, vol. 2, 2001: 13-16; Daniela Alina Plewe: Ultima Ratio. Software
und Interaktive Installation, in: Ars Electronica 98: Infowar: Information, Macht, Krieg, ed.
Gerfried Stocker and Christine Schöpf (Vienna/New York: Springer Verlag 1998); Yukiko Shikata:
Art-criticism-curating ­as connective process, in: Information Design Series: Information Space
and Changing Expression, vol. 6, ed. Kyoto University of Art and Design, p. 145.

8 Some of the conference results can be found in the anthology MediaArtHistories by


Oliver Grau (Ed.), (Cambridge Mass.. MIT-Press 2007); recently: Andreas Broeckmann and
Gunalan Nadarajan (Eds.): Place Studies in Art, Media, Science and Technology: Historical
Investigations on the Sites and the Migration of Knowledge (Weimar: Verlag und Datenbank
für Geisteswissenschaften, 2009).

9 See: www.mediaarthistory.org

10 The content development of Re:fresh! was a highly collective process. It involved three
producing partners, a large advisory board, 2 chairs for each session, call and review for papers,
a planning meeting in 2004, keynotes, poster session and the development of application
content over the time of two and a half years. Before Banff could host the conference, this was
organised by the team of the Database for Virtual (DVA).

The international planning meeting at Vigoni/Italy in 2004 (hosted by the Database of


Virtual Art) agreed that it is of importance to bring media art history closer to the mainstream
of art history cultivating a proximity to film- cultural and media studies, computer science,
but also philosophy and other sciences. After nomination and acceptance of the chairs,
coordinated call for papers, review by the program committee and selection of speakers by
the chairs organized and funded by the Database of Virtual Art - the conference brought
together colleagues from the following fields: invited speakers (based on self description from
bios) HISTORIES: Art History = 20; Media Science = 17; History of Science = 7, History of Ideas
= 1; History of Technology = 1; ARTISTS/CURATORS: Artists/Research = 25; Curators = 10;
SOCIAL SCIENCES: Communication/Semiotics = 6; Aesthetics/Philosophy = 5, Social History =
2; Political Science = 2; Woman Studies = 2, Theological Studies = 1; OTHER CULTURAL STUDIES:
Film Studies = 3; Literature Studies = 3; Sound Studies = 3, Theatre Studies = 2; Performance
Studies = 1; Architecture Studies = 1, Computer Science = 2; Astronomy 1

11 A. Warburg, Heidnisch-antike Weissagung in Wort und Bild zu Luthers Zeiten,“ in:


Zeitschrift für Kirchengeschichte, 40 (1922), pp. 261-262. We know that National Socialism put
a sudden end to this work and although its emigrants could create important impulses in the
US and England, the image science approach did not return until the 70ies with the Hamburg
School. See also: Michael Diers: “Warburg and the Warburgian Tradition of Cultural History,”
New German Critique 22, no. 2, 1995: pp. 59-73 and Claudia Wedepohl: Ideengeographie:
ein Versuch zu Aby Warburgs ‚Wanderstrassen der Kultur‘, in: Ent-grenzte Räume: Kulturelle
Transfers um 1900 und in der Gegenwart, eds Helga Mitterbauer and Katharina Scherke,
Vienna, 2005.

12 Margret Dikovitskaya: Visual Culture: The study of the Visual after the Cultural Turn,
(Cambridge 2005); W.J.T. Mitchell: Interdisciplinarity and Visual Culture, in: Art Bulletin 77, 1995,

170
ART
540-544.

13 Simon Faulkner and Anandi Ramamurthy (Eds.): Visual Culture and Decolonisation in
Britain (Aldershot (Ashgate) 2006).

14 Mike Bal: Visual Essentialism and the Object of Visual Culture, in: Journal of the Visual
Culture 1-2, 2003, 5-32. Although she has for decades used a semiotic approach.

15 Hans Belting (Ed.): Bildfragen: Die Bildwissenschaften im Aufbruch (Munich: Fink


2007); Horst Bredekamp, Mattias Bruhn und Gabriele Werner: Bildwelten des Wissens.
Kunsthistorisches Jahrbuch für Bildkritik. Berlin 2003ff.

16 Leidloff, G. and W. Singer: Neuroscience and Contemporary Art: An Interview, in:


Science Images and Popular Images of the Sciences (Eds. B. Hüppauf and P. Weingart) (London:
Routledge, 2008), pp. 227-238.

17 See the publications and research projects of Helmut Leder.

18 Klaus Sachs-Hombach (Ed.): Bildwissenschaft (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005).

19 Marion G. Müller: Grundlagen der visuellen Kommunikation (Konstanz: UVK 2003).

20 Oliver Grau und Andreas Keil (Ed.): Mediale Emotionen: Zur Lenkung von Gefühlen
durch Bild und Sound (Frankfurt: Fischer 2005); Anne Hamker: Emotion und ästhetische
Erfahrung (Münster: Waxmann 2003).

21 Albeit concentrated on the gravitational field of art history, the courses in Image
Science at the Danube University in Göttweig are interdisciplinary aligned. www.donau-uni.
ac.at/dis.

22 Martin Jay: Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French


Thought (Berkeley 1993).

23 Oliver Grau: Into the Belly of the Image, in: Leonardo, Journal of the international
Society fort he Arts, Sciences and Technology, Vol. 32, No. 5, p. 365-371 and: Oliver Grau:
Virtuelle Kunst in Geschichte und Gegenwart: Visuelle Strategien (Berlin: Reimer 2001).

24 Gottfried Boehm: Jenseits der Sprache? Anmerkungen zur Logik der Bilder, in: Christa
Maar/Hubert Burda (Ed.): Iconic Turn, Köln 2004, pp. 28-43, here: p. 30.

25 A first glimpse of his theory of “picture act” Horst Bredekamp presented during his
Gadamer-Lecture series at the University of Heidelberg in 2005. A research project “Picture
Act Research: History, Technique and Theory of the Picture Act” was approved by the German
Research Foundation in 2008 and supported with 2.3 Mio Euro.

26 Hans Belting emphasised in 2001 that we, as living media, are the “Location of the
Images“ and not the apparatuses, see: Hans Belting: Bild-Anthropologie. Entwürfe für eine
Bildwissenschaft (Munich: Fink 2001).

27 Oliver Grau: Virtual Art: From Illusion to Immersion (Cambridge/Mass., MIT-Press 2003).

171
ART

28 André Malraux : Psychologie de l’Art : Le Musée imaginaire - La Création artistique - La


Monnaie de l’absolu, 1947.

29 For the discussion and development of the field see the Journal Digital Humanities
Quaterly.

30 The International Virtual Observatory Alliance (IVOA) was formed in June 2002 with
a mission to “facilitate the international coordination and collaboration necessary for the
development and deployment of the tools, systems and organizational structures necessary
to enable the international utilization of astronomical archives as an integrated and
interoperating virtual observatory.” The IVOA now comprises 17 international VO projects.

31 The Millennium Ecosystem Assessment assessed the consequences of ecosystem


change for human well-being. From 2001 to 2005, the MA involved the work of more than
1,360 experts worldwide. Their findings provide a state-of-the-art scientific appraisal of the
condition and trends in the world’s ecosystems and the services they provide, as well as the
scientific basis for action to conserve and use them sustainly.

32 The Human Genome Project was an international scientific research project with a
primary goal to determine the sequence of chemical base pairs which make up DNA and to
identify and map the approximately 20,000-25,000 genes of the human genome from both
a physical and functional standpoint. The mega project started 1990 with the collective work
of more than 1000 researchers in 40 countries, the plan was to acchive the goal in 2010. A
working draft of the genome was released in 2000 and a complete one in 2003. See: IHGSC
(2004). “Finishing the euchromatic sequence of the human genome”, in: Nature 431: 931–945.
doi:10.1038/nature03001

33 www.virtualart.at, Oliver Grau: The Database of Virtual Art, in: Leonardo, Vol. 33, No. 4,
2000, p. 320.

34 Oliver Grau: For an Expanded Concept of Documentation: The Database of Virtual Art,
ICHIM, École du Louvre, Paris 2003, Proceedings, pp. 2-15. It was a long development since the
classic text by Suzanne Briet: What is Documentation? (Lanham: Scarecrow Press 2006).

35 www.gssg.at. The digitization of the collection is a project developed by the


Department of Image Science at Danube University and conducted in cooperation with the
Göttweig Monastery. The collection of prints at Göttweig Monastery, which itself was founded
in 1083, is based on acquisitions made by various monks since the 15th century. The first
report of graphic art kept in the monastery dates back to 1621, with an archive record that
mentions a number of “tablets of copper engraving” (“Täfelein von Kupferstich”). The actual act
of founding the collection is attributed to Abbot Gottfried Bessel whose systematic purchases
in Austria and from abroad added remarkably a total of 20,000 pieces to the collection in a very
short span of time! Reaching to the present day, the print collection at Göttweig Monastery
has grown to be the largest private collection of historical graphic art in Austria with more
than 30,000 prints. The Department of Image Science’s digitization center at the Göttweig
Monastery uses technology to scan paintings and prints from the collection (up to 72 million
pixels).

36 Siegfried Zielinski: Deep Time of the Media: Toward an Archaeology of Hearing and

172
ART
Seeing by Technical Means (Cambridge Mass.: MIT Press 2006):

37 The Danube Telelectures from the MUMOK in Vienna contained debates between Sarat
Maharaj and Machiko Kusahara: Does the West still exist?; Gunalan Nadarajan and Jens Hauser:
Pygmalion Tendencies: Bioart and its Precursors; Christiane Paul and Paul Sermon: Myths
of Immateriality: Curating and Archiving Media Art as like Lev Manovich and Sean Cubitt:
Remixing Cinema: Future and Past of Moving Images. See: www.donau-uni.ac.at/telelectures

38 Also compare the OASIS (Open Archiving System with Internet Sharing (2004-2007) or
the GAMA project (2008-2009), a gateway, a metadatabase, which is not connected with the
Europeana. „The issue of generally accepted machine-readable descriptive languages in these
semantic and metadata approaches and the long-term interoperability of databases have lead
to an emphasis on questions concerning the openness of the sources and the source codes.“
Rolf Wolfensberger. On the Couch – Capturing Audience Experience, Master Thesis, Danube
University 2009.

39 Although there are a number of promising case studies like: Caitlin Jones: Seeing
Double: Emulation in Theory and Practice, The Erl King Case Study; http://206.180.235.133/sg/
emg/library/pdf/jones/Jones-EMG2004.pdf

40 The loss might be even more radical and total than that of the Panorama, the mass
media of the 19th century. Almost 20 Panoramas survived which is much more than 3% of
the ever existing 360° image worlds – we should be glad if at all 3% of the most important
exhibited media art works.

41 See Grau 2003, recently: Lizzie Muller: Towards an Oral History of New Media Art
(Montreal 2008).

173
ART

Narratividade e artes visuais em Brasília


Pedro de Andrade Alvim1

Resumo: Abordamos o tema das formas de narratividade implicadas


nas artes visuais, considerando Brasília como “solo narrativo” na produção
de alguns artistas, a partir do fim da década de oitenta (José Guilherme
Brenner, Andréa Sá, Azul, Rubens Mano). Tal produção responde à
necessidade de se apropriar da complexidade do real através da
representação e simultaneamente estabelece um espaço de fabulação no
campo visual. Ali, entram em conexão referências da história da arte, da
literatura, da indústria cultural e mesmo da cultura popular, podendo-se
extrair delas uma forma permanente de reconsideração da realidade. Esse
tipo particular de produção inclui também um componente de indagação
sobre os próprios processos de representação, que retoma elementos da
chamada “arte metafísica” do início do século XX.
Palavras chave: narratividade, artes visuais, Brasília, arte metafísica.
Abstract: We aim to approach the subject of the forms of narrativity
implied in visual arts, taking Brasilia as “narrative ground” in the production of
some artist, from the eighties until more recent times (José Guilherme Brenner,
Andréa Sá, Azul, Rubens Mano). These works responds to a need to appropriate
the complexity of reality through representation and simultaneously to
establish a space of fabulation in the visual field. In this space references in
art history, literature, cultural industry and popular culture can be connected,
and brought to a permanent form to reconsider reality. This particular type of
production includes also a questioning about the processes of representation
per se, which takes back elements of the so-called “metaphysical art” of the
beginning of 20th century.
Keywords: narrativity, visual arts, Brasilia, metaphysical art.

O presente texto foi redigido para servir de base a uma mesa temática
do 10° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, intitulada “História
da Arte: um olhar sobre a produção recente”. Por casualidade, acabou
aproximando-se também de um dos temas propostos para a inscrição de
trabalhos: “História: ficção ou realidade”.
As artes visuais e o discurso narrativo estabeleceram uma antiga
associação, muitas vezes questionada. Sem se aprofundar no terreno
das definições teóricas, pode-se constatar a existência de uma linhagem
dita “literária” de artistas, que inaugura e explora diferentes formas de
narratividade visual. Verifica-se, com isso, a ocorrência, nas artes visuais,
da produção de um tipo especial de representação: obras cuja qualidade
especial de presença, se funda menos na busca de semelhança com os
objetos físicos que servem de modelo à figuração, do que numa relação
mais distanciada com uma experiência complexa. Os artistas que melhor
representam a “família literária” podem ser considerados colecionadores
e propagadores de narrativas, “contaminados” por seus modelos e
influenciados por eles na definição de uma posição diante do real.
174
ART
Ao propormos Brasília como “solo narrativo” para as artes visuais,
pensamos num determinado tipo de experiência histórica. Como defini-
lo? Entre os horizontes reais e imaginários da Brasília utópica e distópica,
o espaço da cidade se abre para novas miradas sobre o campo social e
individual, cultural e artístico, enquanto o projeto moderno vai sendo
lentamente engolido pela economia da era pós-industrial, e permanecem
as dificuldades de se constituir localmente, enquanto sujeito histórico,
dentro de uma “contemporaneidade” global.
Consideramos a história a partir de uma mirada poética, cujo caráter
mais abrangente e metafísico _ o que apontava Aristóteles em sua
comparação entre história e poesia_ diz respeito à absorção dos contextos
reais dentro de possibilidades “ficcionais”. História em que as expectativas
do presente se fundiriam à matéria do passado em dispositivos de narração.
O conceito de narratividade que nos interessa abarca tanto as artes
visuais quanto a literatura, teatro ou cinema. Trata-se menos de dar forma
concreta a uma representação interna da experiência do que de extrair até
o fim as conseqüências de uma tomada de partido pessoal, representada
numa narração por assim dizer “coreográfica” da realização de uma
trajetória no tempo. Não apenas contar uma história, mas acompanhar por
determinado tempo a evolução de um ou mais pontos de vista, como se
vê em determinadas obras “obsessivas” que parecem retomar sempre o
mesmo ponto de partida. Poderíamos citar como exemplo, na literatura,
os monólogos obsessivos de Louis-Ferdinand Celine ou Thomas Bernardt.
No cinema, a narração dilatada de Antonioni ou Gus Van Sant. São obras
em que a narrativa tende menos a resultar numa história, do que a uma
deriva, mas uma deriva que ocorre dentro de determinada moldura. Nelas,
enquanto o “conteúdo” da experiência biográfica parece ir progressivamente
se esvaziando (reflexo dos tempos), é o próprio médium narrativo enquanto
suporte estrutural que é reforçado. Há uma ênfase em limites estruturais
como o formato, as divisões internas, os procedimentos que se repetem, em
paralelo à dilatação de aspectos “anódinos”, “insignificantes”, que levam a
representação à beira da abstração.
A “família artística brasiliense” apóia-se conscientemente numa
certa ilusão de estabilidade, enquanto bóia na superfície do abismo em
movimento, e a “qualidade” específica da vida local se reflete de maneira
significativa nas obras.
Os artistas aqui estabelecidos são solicitados por três tipos de apelo, em
certa medida contraditórios:
- a educação estética modernista, jogo formal que busca seu próprio ponto
de equilíbrio clássico, plano e silencioso, e atinge seus momentos extáticos,
sublimes.

- A ânsia pelo anedotário “fervilhante” da cultura de massa, que recicla


infinitamente temas e imagens herdados da tradição, como válvula de escape
para a monotonia da planificação moderna.

- A tentativa de responder aos paradoxos da contemporaneidade.

175
ART

A passagem do tempo encontra uma representação quase visível na


imobilidade “dramática” da cidade. Imobilidade também característica da
chamada “arte metafísica”, que respondia ao culto futurista da velocidade,
buscando apontar a imobilidade e a estranheza no centro de uma realidade
incerta, os misteriosos ingredientes visuais que apontam o deslocamento
dos paradigmas. Em nossa “Brasília metafísica”, toma corpo a planificação
que orquestra espaços e tempos distintos, diferentes extratos da realidade
(o passado histórico, a vida social, os elementos de ordem climática, física,
biológica...). E ainda: o deserto contraposto às zonas concentradas de
aglomeração; o isolamento e nitidez dos Blocos (as fatias de céu entre
eles)... O silêncio ampliando o zumbido constante do trânsito e o barulho
longínquo das construções. A distância sempre igual entre o tráfego que
flui e a paisagem imóvel, o panorama imutável visto das janelas...
A primeira obra que iremos mencionar é de um “estrangeiro”: trata-
se de uma vídeo-instalação do paulista Rubens Mano, intitulada “Futuro
do Pretérito”, com imagens gravadas em Brasília e cidades satélites, que
foi exposta entre janeiro e março de 2011 no Museu da República. São
longuíssimos planos de “cantos” neutros da cidade, praticamente desérticos,
cujo estatismo fotográfico é de vez em quando rompido pela passagem de
uma pessoa, veículo, animal ou mesmo o movimento do vento. A parte
sonora desses vídeos é tão importante quanto a visual: os ruídos passeiam
por eles como personagens dramáticos, e os motivos urbanos são por assim
dizer “fatiados” em diferentes camadas sonoras.
Não nos interessa tanto a crítica tão repetida, à “cidade-cemitério”. O
que há de mais sugestivo na obra de Rubens Mano é a especificidade dos
lugares escolhidos, sua maneira de tornarem-se geradores de ocorrências
mínimas e significativas. Esses registros audiovisuais revelam-se dotados
de um princípio de narratividade interno, surgido do próprio espaço
de Brasília, dos sistemas urbanos, em princípio funcionais, mas que se
recobrem aleatoriamente ou que se redefinem à distância, a partir dos
terrenos baldios ou dos limites exteriores da cidade.
Com a série de gravuras de José Guilherme Brenner tem lugar uma
representação imaginativa de Brasília que lança mão de elementos
narrativos, envolvendo níveis de realidade muito mais profundos e
interessantes do que se fosse lidar apenas com o registro direto. Nela, cria-se
um espaço de especulação visual onde se joga com possíveis relações entre
a realidade física da cidade e referências da arte, da história, da cultura.

Figura 1- José Guilherme Brenner- Gravura, 1991

As possibilidades narrativas desse trabalho se tornam ao mesmo tempo


muito abertas e concentradas – nele, o distanciamento anda junto do lirismo
– desde que se aceite seu convívio discreto com os signos do passado: Adão
176
ART
e Eva, mitologia clássica e hagiografia cristã, paisagens flamengas, ficção
científica do século XVIII. O mais surpreendente é perceber como tudo isso
pode se ligar a Brasília, por elos que seriam em alguma medida originários.
A série de gravuras era antecedida por pinturas que se relatavam à
cidade por uma arquitetura de piscinas vazias, cores escuras irreais e
expressividade rude, estabelecendo de forma precedente um nexo forte
entre Brasília e a história da arte moderna, através do encontro entre a
visão da melancólica degradação do espaço arquitetônico modernista e a
atmosfera misteriosa da pintura de De Chirico. Encontro que se produzia
surdamente, mas com um paradoxal poder de reverberação.
Tal metafísica visual se converte em fabulação, incorpora momentos
de distração e digressão, reabrindo passagens entre áreas que se haviam
tornado estanques e isoladas. O que não faz é repetir ou citar diretamente
outras obras: a produção visual do passado dissolve-se em representação
inédita. Uma parcela significativa da produção contemporânea que não se
vincula ao mainstream do experimentalismo estético ou conceitual tenderia
a recair no pastiche, em que os modelos históricos referidos na arte são
automaticamente convertidos em “gênero”. Não é este o caso das gravuras
em questão, que, como já dissemos, também não pertencem ao domínio
da paródia, mas envolvem uma apropriação de elementos de repertórios
iconográficos tradicionais para fins próprios, ligados à produção de uma
deriva narrativa, de um desvio histórico marginal.
Os trabalhos de Brenner eram claramente motivados pelo objetivo
de retomada do ofício do gravador e pela busca de aperfeiçoamento
técnico, sem que se considere a técnica em separado da definição de uma
proposição artística. Ao mesmo tempo em que também foi erodida, a
partir do modernismo, até o ponto de desaparecer em toda uma vertente
importante da produção, a dimensão técnica e material nunca deixou de
constituir também uma fonte possível de revelação e de renovação da
própria arte. A consternação diante do abandono das práticas tradicionais
de atelier, apesar de seu travo passadista, aponta o efeito da ameaça de
extinção dessa dimensão histórica sobre componentes do significado
mesmo da arte. A sensação, a que se referia Lévi-Strauss numa entrevista,
de que a pintura moderna deixou desaparecer, ou até destruir, as bases
mesmas da pintura, isto é: uma atividade culta, difícil, que se aprendia
durante anos e anos de trabalho no ateliê. Sem essa atividade não há
pintura de verdade.2
Tal dimensão concreta da arte também era evocada com veemência
num texto escrito por Alfred Kubin que aborda o trabalho do desenhista
em ligação com um conhecimento sensível, que se define a partir de uma
prática retomada ao longo de toda uma vida:
Uma sensibilidade particular para seu material, totalmente distinta
daquela do pintor, o anima. Ele entende tudo sobre o papel e é
excepcionalmente sensível à atração que pode exercer sobre ele o material,
constantemente à espreita de suportes nobres. Seu traço seria seriamente
contrariado e seria impossível dar o melhor de si mesmo sobre papel de
impressão branco-calcário, enquanto o grão irregular, o tom acinzentado
177
ART

ou amarelado de um velho papel lhe provoca calor nas mãos.3


Na produção de Andréa Sá, narrativas deslocadas de seu contexto
original adquirem sentido especial, seja por contato ou contraste com
o cenário de Brasília. Numa xilogravura da artista, impressões do cerrado
e da arquitetura modernista parecem fundir-se ao simbolismo hierático
de paisagens de Caspar Friedrich e elementos da Ilha dos Mortos de
Böcklin. Num trabalho mais recente, que tomou parte numa instalação
realizada em conjunto com Walter Menon, a artista realizou autorretratos
fotográficos, vestida com o hábito religioso e encenando momentos de
êxtase místico numa paisagem pastoral. O aspecto luminoso e desértico da
paisagem adquire por associação alguma coisa do espaço da capital, cuja
exterioridade feroz se abre ao riso dos místicos e dos drogados.
As pinturas de “Azul” não parecem ter sido produzidas por um único
indivíduo, dando mais a impressão de resultarem de um “coletivo” de
artistas, trabalhando a partir de dispositivos pré-fixados, lançando mão de
recursos da linguagem popular, entre a pintura de reclame e a fotografia
de lambe-lambe. O anonimato das imagens conjuga fragmentos de coisas
e elementos inteiros. Surpreendemo-nos ao conseguirmos ler até o fim as
palavras e os sinais das placas – vai-se letra por letra. Mesmo com a forte
demarcação de formas e cores, o sentido espacial está sempre a um passo
de soçobrar. O significado dessas pinturas se define por fora do que seus
elementos representam isoladamente – no conjunto aberto, em analogia
com o modo de ocupação do comércio e do negócio na cidade.
Há uma aparente indigência e falta de gosto nas escolhas dos motivos
e na inconsistência dos ritmos visuais, mas o manejo estético vigora, na
gratuidade afirmativa dos ângulos e na economia irônica do fazer. “Azul”
estabelece, na pintura, uma correspondência com o trabalho de Nicolas
Behr, nas letras locais.
Onde se encontram a metafísica, a narrativa, nessas pinturas? Talvez no
olhar que vagueia soberano, sem ligar para o que vê _ nele não há economia
_ que faz pensar num olhar infantil, ou na possível presença de seres como
os deuses marítimos que se deixam ficar calmamente na proximidade das
velhas ruas das cidades pintadas por Alberto Savínio.
No caminho que leva das obras de R. Mano às de “Azul”, há dois
momentos que não podem ser descartados. Em primeiro lugar, a comoção
provocada pelo encontro com a estranheza da realidade. Em segundo
lugar, a transformação de um estado de irresolução irônica em atividade
fabril, que resulta num objeto, seja pintura, gravura ou filme. O enigma se
transforma assim em bricolagem, e a lida construtiva_ em que talvez certo
número de artistas encontre saúde _ continua a vigorar, conformada às
áleas do pós-moderno.
Gostamos de assistir filmes, ler e ouvir histórias que ativam nossa
imaginação antes de dormir, talvez elas estimulem a produção de imagens
nos sonhos, e certamente alguma coisa do encadeamento narrativo, com
seus ritmos e sobressaltos hipnóticos, acaba se transferindo para o campo
da representação visual. O artista testa suas visões e lança seus dados,
fascinado pelo constante recobrimento entre subjetividade e objetividade,
178
ART
pelas passagens entre interior e exterior _ de que os cenários da cidade
oferecem possibilidades renovadas _ pelo encontro da experiência
biográfica individual e da sucessão das gerações. Alguma coisa do
sentimento que moveu uma geração se mantém no que irá mover outra.
Brasília, lugar onde o tempo não passa, o que traz por momentos a
sensação nítida e palpável da finitude das coisas. Na pintura e nas artes
gráficas, a passagem do tempo pode ser medida como duração da luz
nos elementos da composição _ o deslizamento da sombra pela arena, a
melancolia patética da despedida numa tarde de outono: Kitsch sentimental
a ser apropriado e reconvertido.
Qual o sentido em retomar a bandeira de uma arte “metafísica”? Talvez
o de explorar o mistério transcendental, inesgotável, da representação, que
opera constituindo objetos próprios sempre renovados. Representação
que ocupa lugar inegociável nas artes visuais, configurando narrativas
que podem ser também “puramente visuais”, ao mesmo tempo em que
dizem respeito a uma crença na experiência narrada – a uma suspension of
desbelief. A composição das obras de arte não se esgota no arranjo formal,
mas há uma solubilidade da narrativa no campo visual. O sentido que a
representação é dessa forma passível de adquirir não pode ser substituído
por sentido de nenhum outro tipo, e corresponde ao exercício de uma
função vital.

1 Doutor em História da Arte pela Universidade de Paris I, professor adjunto do


Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Email: pedrand71@hotmail.com

2 Entrevista concedida à revista Veja, edição de 24 de setembro de 2003

3 KUBIN, Alfred, Le travail du dessinateur, Paris: Allia, 2001 (trecho traduzido pelo autor).

179
ART

Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias?


Priscila Arantes1

Resumo: Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico, a cultura


contemporânea tem se caracterizado por dinâmicas sócio-comunicacionais
em rede, fruto muitas vezes de influências que colocam sinergias em
contacto, incentivando a troca e a apropriação criativa da informação. Na
perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com visões
estanques de categorizações e de fronteiras definidas no campo das artes.
Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos para além dos
tradicionais propondo um esgarçamento das fronteiras entre arte e vida
com ênfase em práticas colaborativas e coletivas, especialmente aquelas
engajadas no diálogo com contextos sociais. Neste sentido o presente
artigo Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias? tem como proposta
investigar, tomando como ponto de partida a idéia da rede, como a idéia
do relacional, daquilo que se dá em rede, tem se manifestado no sistema
da arte contemporânea.
Palavras chaves: arte contemporânea, rede, trabalhos colaborativos
Abstract: Much more than just a technological phenomenon
contemporary culture has been characterized by socio-communication
network, the result of influences that put in contact synergies, encouraging
the exchange of information and creative appropriation. In the view of the
network, the idea of connection has been expanded breaking visions of
fixed categorization and boundaries in arts. On the other hand, art begins
to operate in different circuits proposing a fraying of boundaries between
art and life with an emphasis on collaborative and collective practices,
especially those engaged in dialogue with social contexts. In this sense,
this article Network, art and society: utopia or dystopia? aim to investigate,
how the idea of ​​relational, has been manifested itself in the system of
contemporary art.
Keywords: contemporary art, network, colaborative practice

O mundo em rede

Rede, malha, conexão, são algumas das metáforas utilizadas para


designar as dinâmicas da cultura contemporânea. Caracterizada por
operações de articulação e combinação, de edição e de montagem e longe
de procurar exprimir a essência imutável das coisas, a atualidade tem
apontado para a idéia de colagem indicando padrões de rede que suas
articulações tecem em constante movimento.
Para René Berger (Domingues 2003) a certeza em categorias precisas
e estanques se enfraqueceu, justamente pela percepção de que tudo é
de certa forma transversal, conectado e em rede. “Nenhum ser por mais
simples ou complexo que seja, subsiste ou pode subsistir isoladamente. Os
laços são a condição mesma de sua existência, de toda a existência. Laços
endógenos que ligam os componentes de um organismo, laços exógenos
180
ART
que ligam os seres entre si e com seu ambiente.
Com efeito, a rede não é uma idéia apenas do nosso século. Já na Grécia
antiga Galeno (131-200 d.c), proeminente filósofo e médico, associava a
idéia de rede ao corpo humano, vínculo este que atravessou toda a história
de representações da rede, “designando ora o corpo em sua totalidade como
agenciamento do fluxo ou do tecido ora uma parte deste, principalmente o
cérebro” (Musso In Moraes 2006 : 198) . No campo das artes, a idéia da rede
também não é recente. Basta lembrarmos do pensamento romântico no
século passado ao designar a inspiração do artista gênio em função de sua
íntima comunhão com o Cosmos.
Apesar da idéia de rede não ser somente um conceito atrelado ao
nosso século, as formações em rede se tornaram mais visíveis na atualidade
graças aos meios técnicos que, ao operarem eles próprios por conexões e
interconexões, nos permitiram fazer articulações de toda ordem, tornando-
as perceptíveis.
As redes informáticas e as redes virtuais de comunicação constituem
talvez a faceta mais visível do sistema de redes, pois dão a ver as estruturas
de interconexão entre seus elementos em interação. Com o ciberespaço
triunfa a idéia de uma rede universal que conecta todos os indivíduos
em escala planetária. A própria sociedade seria de hoje em diante uma
“sociedade de rede” no dizer de Manuel Castells.
Rede de computadores, rede de conceitos, rede orgânica; sociedade em
rede. A idéia de multiplicidade, convergência e interconexão, extrapola os
meios da comunicação contaminando outras áreas e fazendo-nos perceber
que a trama social é constituída de interstícios de complexas redes
institucionais, culturais, afetivas, midiáticas e artísticas. A idéia da rede é,
a um só tempo, uma espécie de paradigma e de personagem principal das
mudanças da nossa época.

Utopias e distopias tecnológicas

De fato a cultura contemporânea potencializa a idéia do


compartilhamento, distribuição e cooperação sendo fruto de uma
crescente troca social sob formatos diversos - de fóruns e chats a weblogs,
de fotoblogs a trocas de mensagem SMS, do Orkut aos sistemas mais gerais.
Ligar ao outro, ou re-ligar parece ser o mote da cultura contemporânea
criando novas formas de sociabilidade que têm nas tecnologias digitais
um vetor de agregação social. A própria web é dentro desta perspectiva
uma tecnologia social cuja maioria dos protocolos e linguagens permitem
participações de grupos e indivíduos os mais diversos.
Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico a cultura
contemporânea caracteriza-se por dinâmicas sócio-comunicacionais
em muitos aspectos inovadora, fruto de influências mútuas de trabalho
cooperativo que coloca sinergias em contacto, incentivando a troca e a
apropriação criativa da informação.
Para alguns a ‘hiper rede’ internet seria a concretização, no plano
181
ART

tecnológico, da utopia social dos ideais modernos: “A rede por essência


anti-hierárquica se torna sinônimo de auto-organização e de igualdade
(...). O internauta deveria travar um combate pela liberdade contra todos
os órgãos de regulação, contra os operadores dominantes (Microsoft ou
o FBI, por exemplo) pela igualdade contra todas as hierarquias, a começar
pelas dos Estados e pela fraternidade mundial das “comunidades virtuais”.
Liberdade, igualdade e fraternidade: a utopia social se realizaria finalmente,
graças à utopia técnica reticular”. (Musso in Moraes 2006: 206)
Nesse contexto as redes digitais fixas e móveis apresentariam
alternativas cada vez mais sólidas de organização política e construção de
cenários coletivos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que sinalizariam
possibilidades de democratização da cultura embutidas em práticas de
compartilhamento e na cultura de softwares de código aberto, as redes
colocariam em cena um mundo cada vez mais ”controlado” em que práticas
de vigilância e quebra de privacidade estão cada vez mais presentes no dia
a dia.
De modo diverso ao dos apologetas da cibercultura que vêem a
informatização da sociedade e o desenvolvimento das redes telemáticas
como um fenômeno que abre possibilidades para a instauração progressiva
de uma espécie de tecnodemocracia, Alex Galloway (2004) coloca em xeque
a crença de que não haveria nenhuma forma de controle na sociedade
informática, sinalizando para uma vertente mais distópica da cultura
contemporânea.
Partindo de pressupostos já delineados por Deleuze e Foucault,
Galloway argumenta que as novas formas de poder se debruçariam nas
regras, ou mais precisamente, nos protocolos, que governam as trocas de
informações entre os computadores conectados em rede. Para Galloway, a
rede, e os seus processos descentralizados de transmissão de informação, o
computador digital e os protocolos - os princípios que regem e controlam os
fluxos de informações de forma descentralizada em um sistema distribuído
e em rede - são as bases por onde se sustentam o novo império de poder da
sociedade capitalista contemporânea.
Utopia ou distopia o fato é de que um dos aspectos mais potentes da
cultura das redes é a forma como a tecnologia amplia e modifica as relações
sociais, isto é, como as tecnologias em rede, sejam elas fixas ou móveis
proporcionam desdobramentos sociais interessantes.

O paradigma da rede na produção artística

Na perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com


visões estanques de categorizações e de fronteiras definidas no campo das
artes. A partir dos anos 1970, a experiência da arte migra de um campo de
proposições artísticas específicas para uma prática desdobrada, ampliada,
que opera na convergência de linguagens e em diálogo com outras esferas
do conhecimento. Ao mesmo tempo em que teóricos como Rosalind Krauss,
Raymond Bellour e Gene Youngblood sinalizam a expansão dos campos de
ação artística a partir da intersecção das linguagens, a historiadora de arte
182
ART
Anne Cauquelin aponta para a confluência de papéis entre os diferentes
agentes do sistema da arte contemporânea, típica dos tempos fluidos que
caracterizam nossa época.
Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos para além
dos tradicionais propondo um esgarçamento das fronteiras entre arte e
vida com ênfase em práticas colaborativas e coletivas, especialmente para
aquelas engajadas no diálogo com contextos sociais.
Pensadores como Nicolas Bourriaud (2009) sinalizam que uma das
grandes características da arte atual seria o fato dela se desenvolver em
função de noções conviviais e relacionais. Para ele a comunicação hoje,
encerraria os contatos humanos dentro de espaços de controle que
decompõe, ao invés de afirmar, o vínculo social. Em uma sociedade em que
as pessoas não se comunicam e onde o vínculo social tornar-se produto
padronizado, a atividade da arte, contrariamente, efetuaria ligações,
conexões, abrindo as passagens obstruídas de níveis de realidade.
A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como
horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social
mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado)
atestaria, de acordo com Bourriaud, uma inversão radical dos objetivos
estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna; uma forma de
arte que é dada pela intersubjetividade tendo como tema central o estar
junto; em rede.
Dentro desta mesma perspectiva Claire Bishop no seu livro Participation
(2006) destaca a dimensão social das artes participativas, não no sentido
da atuação do indivíduo nas artes interativas mas da ativação de um corpo
social possível através de práticas colaborativas.
No campo das artes esta proposta afetiva corresponde à ruptura de uma
visão da arte como ilusão para uma proposta mais vivencial e de produção
de intersubjetividades. Percebe-se, neste sentido, práticas que no intuito
de trazer a arte para a vida, se deslocam do espaço protegido e confinado
do museu, para o espaço da realidade mesma, seja através de intervenções
urbanas, performances e happenings ou, mais recentemente, através
de investigações artísticas no âmbito da rede internet e muitas vezes em
espaços em trânsito, on o off line.
Dentro desta perspectiva vale lembrar de O Branco invade a cidade
(1973), do artista argelino Fred Forest. A ação consistiu em sair pelo centro
de São Paulo - do Largo do Arouche até a Praça da Sé - simulando uma
passeata com umas 10 pessoas carregando cartazes em branco. Centenas
de curiosos aderiram “à passeata” bloqueando o trânsito por várias horas.
Quando Fred Forest desenvolve esta ação ele cria simultaneamente
uma microunidade; a dos integrantes da passeata unidos por uma ação
performática que subverteu a condição do silêncio imposta na época da
ditadura militar no Brasil.
Caso exemplar de projetos neste sentido são aqueles desenvolvidos por
Maurício Dias e Walter Riedweg. Muitos dos protagonistas de seus trabalhos
são grupos sociais que se situam à margem do universo supostamente
183
ART

garantido pelo capitalismo mundial. Os projetos de Maurício Dias e Walter


Riedweg produzem, muitas vezes, uma falha, um corte, uma interrupção
na ordem dos sentidos e do curso “natural” das coisas. Provocam uma
iluminação profana como diria Benjamin, ao colocar em evidência o
esgarçamento e as tensões que compõem o cenário social. Entre os
trabalhos da dupla pode-se destacar Dentro e fora do tubo (1988). Realizado
a partir de depoimentos gravados com refugiados vindos de terras em
conflito e vivendo na Suíça à espera de legalização de seu asilo político, a
idéia do projeto foi a de gravar depoimentos orais da memória do trajeto
que o imigrante realizou quando da saída de sua cidade natal até chegar à
Suíça. Estas lembranças, vozes, memórias dos refugiados foram colocados
em walk-talks e espalhados, dentro de tubos, no espaço urbano, disponíveis
para a escuta da população. Trata-se, neste caso, de colocar em evidência,
em público, estados afetivos e experiências sensóreas decorrentes de
situações específicas dos processos de marginalização.
Um processo como esse nos remete às experiências desenvolvidas pelo
artista polonês Kristof Vodisko, conhecido, desde os anos 80, por trabalhar
com projeções de vídeo em grande escala no espaço público. Em Tijuana
Project (2001), desenvolvido no Centro Cultural de Tijuana, no México, o
artista se utiliza de dispositivos midiáticos para dar voz a mulheres operárias
da cidade de Tijuana. Neste trabalho o artista desenvolveu um capacete
integrado a uma câmera e a um microfone que permitia gravar e transmitir
em tempo real a imagem e a voz da depoente na fachada do Centro Cultural
de Tijuana. Os testemunhos das mulheres, ouvidos pelo público em praça
pública, discorriam sobre abuso sexual, alcoolismo e violência doméstica.
Criavam uma zona de comunicação, em rede, sobre afetos íntimos vividos
por situações de fragilidade social.
Em todos estes projetos percebe-se, de certa forma, aquilo que Deleuze
e Guattari diziam quando definiam a obra de arte como um bloco de afetos
e perceptos: o fato da arte manter ou criar momentos de subjetividade
ligados a experiências singulares. Mais do que apenas criar situações em
rede, são projetos que proporcionam desdobramentos sociais interessantes,
promovendo vínculos diversos daqueles promovidos pela sociedade de
controle.
Dentro de outra perspectiva, já no âmbito da rede internet, podemos
citar The File Room, de Antonio Muntadas, um dos primeiros projetos
artísticos desenvolvidos para a internet. O projeto, que discutia o tema da
censura cultural, consistia de uma instalação e um banco de dados, onde os
usuários poderiam depositar os seus projetos censurados. Além de colocar
em cena a idéia de compartilhamento da informação dentro da perspectiva
de um wok in progress colaborativo, o projeto atuava na contramão da
censura, abrindo na rede um espaço expositivo para os projetos censurados.
Já Suspensión Amodal do artista catalão Rafael Lozano Hemmer é uma
instalação em grande escala desenhada para a inauguração do centro
de arte YCAM no Japão que permitia ao participante enviar mensagens
via telefone celular e Internet ao espaço da cidade. As mensagens se
codificavam em seqüências de luz e eram disparadas por canhões,
permanecendo no céu até que a mensagem fosse lida pelo destinatário.
184
ART
Ao serem lidas, as mensagens se retiravam do céu e eram projetadas
na fachada do edifício do YCAM. Neste trabalho fica evidente a idéia da
cidade como dispositivo de comunicação e como dispositivo para trocas
de afeto dentro da perspectiva já desenhada pelos situacionistas. Mas não
somente. O trabalho coloca também em debate a questão da mobilidade e
das conexões em rede, um dos temas mais caros da atualidade. Para além
de assinalar as contaminações entre o espaço físico e o da comunicação,
o projeto aponta para a idéia da rapidez dos “relacionamentos virtuais”.
As conexões via Internet, email, SMS, telefone celular, exigem rapidez e
é extremamente fácil sair destas conexões; basta deixar de responder
um email ou apertar a tecla apagar. São relacionamentos que acendem e
apagam, ‘como’ a velocidade da luz.
Mais radical é o trabalho do grupo Loca que “conseguiu mapear e se
comunicar com moradores da cidade de San José, sem o conhecimento dos
moradores ou permissão. Através da utilização de seus telefones celulares
(desde que o dispositivo Bluetooth estivesse aberto para localização)
mais de 2500 pessoas foram detectadas por mais de 500 mil vezes pela
rede Loca - construída em agosto de 2006 com clusters formados por nós
interconectados, auto-suficientes e equipados com Bluetooth, no centro da
cidade californiana. A malha resultante permitiu descrever em detalhes o
movimento das pessoas” (Catálogo Arte.Mov)
Muitos destes trabalhos não perseguem mais a meta de formar
realidades imaginárias ou utópicas contrárias às vigentes, mas procuram
constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade
existente. O que estes projetos compartilham é o mais importante, a saber,
o fato de operar num mesmo horizonte prático e teórico: a esfera das
relações humanas. Suas obras lidam com os modos de intercâmbio social
e pensam os processos de comunicação enquanto instrumentos concretos
para interligar pessoas e grupos criando sociabilidades alternativas e
chamando atenção para as questões que permeiam a nossa cultura.

Referências Bibliográficas

Bishop, Claire (og).Participation.MIT Press, 2006.

Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.Catálogo do 2


Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Telemig Celular Arte.Mov, 2007

Domingues, Diana. Arte e Vida no Século XXI. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

Galloway, Alex. Protocol. How Control Exists After Decentralization. MIT Press, 2004.

Musso, Pierre. Ciberespaço, figura reticular da utopia tecnológica. In Dênis de Moraes


(org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

1 Pesquisadora, crítica de arte e curadora. É formada em filosofia pela Universidade de


São Paulo (1989), possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
185
ART

Universidade Católica de São Paulo (1997-2003) e pós-doutorado, com projeto na área de


estética e arte em meios tecnológicos pela Unicamp (2008). É professora de teoria, estética,
curadoria e história da arte de cursos de graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Desde 2007 é diretora técnica e curadora do Paço das Artes/MIS sendo
responsável pela programação geral da instituição. Entre seus livros destacam-se: Arte @ Mídia:
perspectivas da Estética Digital, Conexões Tecnológicas, Estéticas tecnológicas: novas formas
de sentir e Experiências/Campos/Intersecções/Articulações.

186
ART
Sinapsis bioelectrónica de creación
Raúl Niño Bernal1

Resumen: Estética y Biología de lo Posible2, desde una relación teórica


y conceptual establece puntos de convergencia e interrelación entre
los enlaces sinápticos de las redes neuronales nerviosas como puntos
de conexión para la creación, y los enlaces electrónicos de las redes
computacionales en los procesos de creación. Desde esta perspectiva se
conceptualiza la emergencia estética y la condición de la vida artificial con
sinapsis entre los biochips computacionales como los posibilitadores de
las interfaces entre biología y tecnología para hacer tangibles los actos de
creación en la virtualidad y los medios visuales en la expansión de la ciencia
de los procesos.
Palabras Claves: Sinapsis, Bioelectrónica, Ciencia de los procesos,
emergencia estética.
Abstract: Aesthetics and Biology of possible, from a theoretical and
conceptual relation, it establishes points of convergence and interrelationship
between the synaptics links of the nervous neuron networks. They work as
points of relation for creation, and by the other hand there are electronic links
of computational networks happening in the processes of creation. From this
perspective the aesthetic emergency is conceptualized as well as the condition
of the artificial life is related with the synapsis between the computational
biochips, becoming the way to achieve interfaces between biology and
technology. That is to make creation acts tangible in the virtuality and the
visual media in the expansion of the science of processes.
Keywords: Sinaptic, Bioelectronic, Science of processes, aesthetic
emergency

Biología de los procesos sinápticos

Esta relación teórica de los procesos sinápticos, es también denominada


bioelectrónica y tiene una doble condición metodológica respecto a los
actos o procesos de creación; por una parte la condición biológica de los
enlaces neuronales por campos eléctricos entre las células desde un origen
químico y, por otra la condición artificial de las sinapsis entre el cerebro
humano los biochips computacionales como los posibilitadores para hacer
tangibles (simulaciones, modelaciones, representaciones) en los actos de
creación, entendidos estos como la ciencia de los procesos (Prigogine), que
virtualmente configuran una estética cognitiva de los sentidos; es decir, que
el mundo computacional extrapola los actos de creación de la mente.
Esta dimensión heurística en la que se explora y comprende la
complejidad de la ciencia de los procesos, no se halla en estados naturales
de pensamiento solamente, sino en dimensiones computables3, que
procesan datos y sensibilidades en diferentes lenguajes electrónicos,
programas y software, haciendo posible que los creadores realicen
los diseños y simulaciones y a la vez sean transferencias de creatividad
187
ART

compartidas para los tiempos cualitativamente diversos del mundo en el


que la información es también una interfaz de sentidos y conocimientos
complejos.
Las sinapsis, proveniente del gr. σύναψις, que significa «enlace», es la
unión intercelular especializada entre neuronas para establecer impulsos
nerviosos. Y la relación bioelectrónica es una búsqueda de procesos
relacionales en inteligencia y emoción para detectar los campos de
creación en la dimensión de un nuevo logos. Este logos, constituye el
punto de indagación estética sobre cómo el sistema nervioso es ampliado
desde una condición postsináptica externa, constituida por los dispositivos
electrónicos y computacionales que acompañan los procesos creativos
virtuales en las artes como interfaces de los sentidos. Asimismo, el conjunto
de procedimientos vinculantes con aplicaciones a muchos otros campos
computacionales gracias a los enlaces intercelulares de las personas y los
dispositivos electrónicos, relaciones sinápticas internas y externas mediante
entradas sensoriales denominadas emociones. Las emociones son Patrones
de Acción Fijos (PAF) como las define R. Llinás4, las cuales han evolucionado
significativamente a emociones globales sensoriales.
La pregunta central es ¿cómo se producen estos enlaces bioelectrónicos,
o cual es la esencia excitadora para que una emoción de pensamiento
creativo pueda traducirse como interfaz en otro lenguaje matemático
(binario) a través de ayudas computacionales?
Esta pregunta es a la vez una hipótesis plausible que explica a través
de argumentos estéticos en el campo de las heurísticas computacionales
el proceso con el que se establecen las emociones y se desprenden
por señales nerviosas a través de los microtúbulos; entonces la acción
sináptica obedece a cambios continuos internos y externos por acción
de las emociones y sensaciones y las conexiones en las actividades que
desempeñan estos microtúbulos, es decir, las funciones diversas dentro
de las células que transportan moléculas como los neurotransmisores
químicos a través de los cuales se propagan las señales sinápticas.
El momento en el cual ocurre la creatividad se da en el lapso del enlace
cerebral y computacional. Esta consideración si bien es biológica también,
al ser traducido por sistemas perceptuales involucra las dimensiones
externas o posinápticas que corresponden a las ampliaciones externas de
un poder creativo circulante por distintos medios, canales y soportes que si
bien están en el mundo físico y en el marco de las leyes físicas que lo rigen,
también se advierte el cambio a un mundo de información matemática (no
platónica) de algoritmos y sistemas infinitesimales o con leyes intemporales
de las cuales emergen nuevos campos relacionales o dimensiones creativas.

Computación bioelectrónica

Los campos de creación o ciencia de los procesos expandidos por este


fenómeno bioelectrónico son relaciones cerebrales y de otra naturaleza, es
decir, con la simbiosis de la vida artificial y la emergencia en el desarrollo de
biomoléculas, que no solamente se conocen por la descarga química de
188
ART
las membranas celulares, sino por la condición artificial bioelectrónica de
procesos de almacenamiento y procesamiento de información a través del
espaciotiempo mediante causación formativa5 (Sheldrake 1998) en campos
inherentes a la memoria.
Esta causación formativa biológica se produce en los campos mórficos
de información (Sheldrake 1998) en el aprendizaje humano y el de todas
las especies vivas en el espaciotiempo de la vida biológica. Por los cambios
cualitativos de ahora, tanto la causación formativa como los campos
mórficos incorporan la interfase entre tecnología y biología como se
evidencia en la vida artificial en procesos y estructuras que se disipan y son
objeto de estudio a través de las ciencias de la bioinformación, creándose
una interfase cerebro-mente y máquinas. Así pues, la evolución de las
culturas contemporáneas en los procesos postsinápticos se traduce en la
capacidad de nuestra especie de inventar nuevos modos de pensar.
Los nuevos modos de pensar con las interfaces tecnológicas en la
vida artificial, es la respuesta a los tiempos de la vida y a la diversificación
de lo cualitativamente nuevo (Prigogine 1997); por tanto, para el futuro
de la humanidad y de las especies vivas del planeta, la ciencia de los
procesos responde a estos campos mórficos de información y a las diversas
sensaciones emocionales, de innumerables individuos que transfieren
información genética a través del espaciotiempo, posiblemente más
ampliada por el mundo computacional6; sin embargo, esta noción de
espaciotiempo para la ciencia de los procesos ya no depende de las
condiciones innatas naturales solamente de la memoria y las capacidades
anteriores o del lenguaje, sino de los campos de resonancia mórfica de
síntesis matemáticas y de la capacidad de almacenar, procesar y transferir
información.
Esta es la simbiosis que emerge con las sensibilidades artificiales en la
dirección de la vida como invención por las estructuras de autoorganización
en computadores y dispositivos de circuitos eléctricos7 que simulan la
membrana de las neuronas y amplían la cognición humana.

Ciencia de los procesos

Tal como lo ha expuesto Ilya Prigogine, la creatividad contemporánea


se sitúa en la ciencia de los procesos. La pregunta sobre la creación
y su emergencia estética, se plantea en la posibilidad bioelectrónica
del autoensamblaje de estructuras organizadas, así como ocurre
biológicamente con los virus, el caso es semejante por evolución molecular
en la información en estructuras de biochips que también ofrecen un paso
al futuro con la electrónica molecular en lo infinitamente pequeño.
Es posible una sinapsis bioelectrónica simbiótica entre humanos y
maquinas inteligentes producto de la evolución cultural actual y lo que
resultaría aún más conmovedor es que las sinapsis artificiales de las
máquinas inteligentes puedan desprenderse de cualquier explicación sobre
modelos existentes y logren la autonomía de la innovación constante a
través de los intercambios, principal cualidad del mundo de hoy.
189
ART

La cuestión simbiótica respecto a la creación permite investigar si es


computable esta transformación de la sensibilidad, la conciencia y la misma
creación en la ciencia de los procesos respecto a los avances teóricos y a las
innovaciones.
Se plantea entonces la pregunta sobre cómo se percibe y define
la emergencia de la creación y de la vida artificial respecto a cambios
interdependientes entre la vida orgánica o biológica y desde su condición
epistémica respecto a las implicaciones tecnológicas y los cambios en las
escalas de creación y evolución del conocimiento que se replica o si se
quiere materializa en lenguajes artísticos y en soportes computacionales.
En la aproximación de este nuevo logos que parte de la sinapsis
bioelectrónica, se plantean nuevos retos para una estética de lo posible, es
decir, la incursión sobre lo novedoso del conocimiento en los campos de
la creación y su incidencia en la innovación que parte de la emoción como
motor de activación de acciones irracionales, entendidas estas como ciencia
de los procesos (creaciones), y en su mejor denominación de carácter
cognitivo.
En síntesis, esta ponencia explora como las raíces del conocimiento ha
evolucionado de la condición biológica y sus causaciones formativas a la de
la creación y nuevos campos de información que se encuentran en una clara
relación con lo viviente, a través de conexiones y redes con extensiones a
nuevos materiales biomoleculares, los cuales son objeto de estudio a nivel
de la ciencia de los procesos y los campos de desarrollo en redes neuronales
artificiales, autómatas celulares, sistemas expertos, robótica entre otros.
Las relaciones entre emoción e irracionalidad, contemplan una
perspectiva simbiótica con los episodios de la macrovida para imaginar
como la ciencia de los procesos está avanzando en los procesos de los
tiempos y en la diversidad de lo cualitativamente nuevo de la creación y
ofrece alternativas de distinta índole para las creaciones en estructuras
disipativas relacionadas con lenguajes, simulaciones, modelaciones.
La ciencia de los procesos deberá ocuparse desde un nuevo logos
por entender la complejidad de la vida, de la cual la biología todavía
tiene campos de investigación insospechados por revelar, debido a la
magnificencia que encierra la incertidumbre de la vida. No se trata de
condenar esta condición de la biología en pos de la vida artificial, por el
contrario, se trata de ampliar la comprensión de simbiosis que se produce
entre los campos de inteligencia biológica (cognición) y que convergen en
la relación cultural mente-maquina como bioinformática, o lo que intento
llamar en esta ponencia como sinapsis bioelectrónica, para situar una
dimensión cognitiva en la cual nos podemos ocupar de manera compleja
en los actos creativos.
En esta simbiosis cultural de intercambios, los campos de causación
formativa y la resonancia de los campos mórficos intensificados por
códigos y patrones computacionales, además de contribuir en los ciclos
de actividades normales como hablar, caminar, nadar, masticar, montar
bicicleta, son ahora digitales para una civilización basada en la información
electrónica y telemática que deberá seguir creando mundos artificiales
190
ART
como las maneras de explicar científicamente un momento de sociedad del
conocimiento.
A través de la ciencia de los procesos la innovación y la creatividad
de simulaciones, de mundos posibles, de vida de síntesis, las sinapsis
bioelectrónicas, están permitiendo comprender una naturaleza virtual de
nuevas leyes y reglas a través de las cuales se gobierna la vida artificial y de
la cual en los actos creativos que se expanden y disipan en estructuras con
otras lógicas y desde las cuales por interacción o percepción como sucede
en el arte electrónico y computacional, la vida pasa a las relaciones de
sistemas abiertos y en esta comprensión que es el mundo de la complejidad
emergen los mundos de las interfaces sinápticas, de limites no localizables
y con la posibilidad de preguntarnos e imaginarnos escalas de vida en otros
universos.
Pensar la vida en escalas de otros universos es una tarea de la inteligencia
para el futuro de la mente humana, la cual no depende de la capacidad
biológica solamente, sino de la interacción con interfaces electrónicas y
computacionales en las cuales sea posible imaginar lo que podría cambiar
en la relación mente-máquina para transformar las condiciones de lo
viviente.

Conclusiones

La sinapsis bioelectrónica de la creación por cuenta de los sistemas


informacionales y computacionales es la novedad de la inteligencia
artificial y es el de un nuevo logos computable o lo que puede explicarse
desde la heurística como una emergencia estética de nuestra inteligencia
disipada en estructuras complejas en el contexto mismo de la ciencia de
los procesos, marcada principalmente por la velocidad de los sistemas
electrónicos y también vinculada a la inteligencia colectiva de redes con las
capacidades alcanzadas hasta ahora por los computadores actuales en los
sistemas abiertos de información.
Estas cualidades son posibles gracias al desarrollo de los computadores
con capacidad de procesamiento de “1 Petabyte = 1024 Gygabytes y el
almacenamiento de 1027 Xeraflops”8, cada vez más superables y sustituibles
en relación con las capacidades de los cerebros humanos para procesar
y guardar información, lo cual es determinante para la vida artificial y la
inteligencia del futuro.
La evolución de las interfases tecnológicas como procesos computables
de la creación colectiva o lo que podríamos llamar simbiosis cultural con
las redes electrónicas, pone en consideración la capacidad computacional
como una reacción aprendida (Minsky) que será constitutiva de nuevos
campos mórficos de información genéticamente transmitidos para el
aprendizaje futuro. Estas serán las bases de la causación formativa para las
futuras generaciones humanas para que la inteligencia que se reclama hoy
en la sociedad del conocimiento sea parte de los modelos incompletos de
la naturaleza virtual que aún sigue los procesos de la indeterminación, o lo
que sería igual a permitir que la ciencia de los procesos navegue y entrelace
191
ART

tantos procesos creativos como inteligencias emerjan producto de las


ampliaciones sinápticas
El espaciotiempo de las redes electrónicas y la inteligencia artificial es la
dimensión en la cual es posible enfrentar los problemas de la vida cotidiana
actualmente, y en la que se pueda aprovechar el nivel deliberativo (Minsky)
de las acciones o de las creaciones en el plano epistemológico del logos
electrónico en el cual confluye la vida artificial.
En las redes electrónicas están incorporadas las reglas de interconexión
concernientes a como se activan las sinapsis. Es así, que el esquema
análogo que aún la supedita a interactividades de vínculos informativos y
como lo plantea R. Llinás: ¿memoria colectiva?, la cuestión estaría superada
toda vez que las neuronas son células y como tal las células son estructuras
muy elaboradas, que no dudo en su capacidad evolutiva de hacer simbiosis
con dispositivos electrónicos incorporados en nuestros organismos
biológicos.
Por ahora los dispositivos electrónicos conocidos como redes neuronales
artificiales, los percibimos y sentimos como lejanos o separados, pero en la
condición bioelectrónica tal y como avanza con las nanoinfobiotecnologías
es posible que tengamos en los próximos años sistemas más unificados,
gracias a que la inteligencia comporta condiciones exponenciales de
creatividad, adaptación e innovación.
Los actuales problemas y los problemas del futuro o sea los del siglo XXII,
requieren de nuevas sinapsis bioelectrónicas cuya energía sea comparable
a la relatividad cuántica del sistema solar. No se trata de hacer copias
replicables de la realidad observables o que las simulaciones se repitan con
base en los patrones existentes. La transformación sináptica de modelos
es a partir de cambios radicales para imaginar nuevas condiciones, formas,
procesos, novedades creativas en el mundo simulado.
La emergencia estética de la creación es también la de las naturalezas
virtuales y de las expansiones cognitivas a través de la computación. Los
sentidos están enlazados al sistema abierto de los satélites9 y a la proliferación
de redes electrónicas y sistemas de información son exponenciales, lo cual
indica que las relaciones de conocimiento es bioelectrónico y las redes
neuronales no solo son de orden biológico, sino que son computacionales,
la capacidad de almacenamiento y procesamiento indicadas anteriormente
muestran una condición fiable de la información que se procesa.
La sinapsis bioelectrónica de la creación es por tanto el acto creativo
que identifica el proceso de innovación de la vida artificial con los avances
computacionales, pero abre nuevas preguntas sobre la confiabilidad, la
incertidumbre y la indeterminación cuando se trabaja paralelamente en
sistemas abiertos conformados por partes no fiables individualmente, pero
variadas.

192
ART
Bibliografía

De ROSNAY, Joël. (1995) El hombre simbiótico. Miradas sobre el tercer milenio. Madrid:
Cátedra.

EMMECHE, Claus. (1998) Vida simulada en el ordenador. La nueva ciencia de la inteligencia


artificial. España: Gedisa Editorial

HEINKE, Dietmar, MAVRITSAKI, Eirini. (2009). Computational modeling in behavioural


neuroscience. Closing de gap betwen neurophysiology an behaviour. New York: Psicology Press.

GOULD, Sthepen. (2004) La estructura de la teoría de la evolución. Barcelona: Metatemas.

HAWKING, S. Y otros. (2003). El futuro del espaciotiempo. Barcelona: Crítica.

HAMEROFF, Stuart. (Y otros Eds.). (1999). Toward a Science of consciousness III. The third
Tucson Discussions and Debates. London, England: The MIT press Cambridge.

HERNANDÉZ, I. Niño, R. (2010). Estética, vida artificial y Biopolítica. Expansiones en la


evolución cultural y biológica a través de la tecnología. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad
Javeriana.

KHALFA, Jean. (ed.) (1995) ¿Qué es la inteligencia? Madrid: Alianza.

KURZWEIL, Ray. (1999). La era de las máquinas espirituales. Barcelona: Planeta.

LAHOZ-BELTRÁ, R. (2004). Bioinformática, vida artificial e inteligencia artificial. Madrid:


Díaz de Santos.

LIPZCOMBE, Trevor. Y otros (2001). Einstein 1905: un año milagroso. Barcelona: Crítica.

LLINÁZ, Rodolfo. (2003). El cerebro y el mito del yo. El papel de las neuronas en el
pensamiento y el comportamiento humanos. Colombia: Grupo Editorial Norma.

MALDONADO, C. E. (2001). La heurística de la vida artificial. Revista Colombiana De


Filosofía De La Ciencia. 2 (4/5), 35-43.

MATURANA Humberto, VARELA Francisco. (1994) De máquinas y seres vivos. Autopoiesis:


la organización de lo vivo. Argentina: Editorial Lumen.

MINSKY, Marvin (2010). La máquina de las emociones. Sentido común, inteligencia


artificial y el futuro de la mente humana. Colombia: Debate

MORRIS, Richard. (1999). Artificial worlds. Computers, Complexity, and the Riddle of Life.
Unites States: Basic Books.

MUNSTER, Anna. (2006). Materializing new media. Embodiment in information aesthetics.


London: Publised by University Press of New England Hanover and London.

PENROSE, Roger. (2000). Por qué se necesita una nueva física para comprender la mente.
P.p, 168-179. En: Murphy y Lucke (comp). La biología del futuro. ¿Qué es la vida? Cincuenta años
después. España: Metatemas.

PENROSE, Roger. (2006).  El camino a la realidad. Una guía completa a las leyes del universo.
Barcelona: Debate.

PENROSE, Roger. (2006). Lo grande, lo pequeño y la mente humana. España: Ediciones


Akal.

193
ART

SHELDRAKE, Rupert. (1990). La presencia del pasado. Resonancia Mórfica y hábitos de la


naturaleza. Barcelona: Kairós.
WEIBEL, Peter. (2001). El mundo como interfáz. Elementos: ciencia y cultura, diciembre-
febrero, año/vol.7, número 040. Benemérita Universidad de Puebla. Puebla México pp. 23-33


1 Profesor de la Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá, Facultad de Arquitectura y
Diseño. Departamento de Estética. Coinvestigador del grupo de investigación Estética y
Nuevas Tecnologías, Candidato a Doctor en Political Science por la Atlantic International
University de E.U, Magister en Estudios Políticos por la Pontificia Universidad Javeriana,
titulado como Restaurador de Bienes Muebles por la Universidad Externado de Colombia,
con Diploma en Gerencia y Gestión Cultural por la Universidad del Rosario de Bogotá. Autor
de las siguientes publicaciones: Ciberbiología y procesos tecnológicos de la cultura. (2010)
En: Estética Vida Artificial y Biopolítica. (2010) (coeditor). Bogotá, Pontificia Universidad
javeriana. Repolitizar la biodiversidad (2009). En: Poéticas y criticas del Devenir. Bogotá,
Editorial Pontificia Universidad Javeriana. Cognición y Subjetividades Políticas: Perspectivas
estéticas para las ciudadanías globales (2008), Indicadores Estéticos de Cultura Urbana
(2006). Ensayo: Giro Cultural de la Estética Contemporánea (2003), en libro colectivo, coautor
de “Nuestros Museos de Bogotá”, publicación universal en

2 Resultado Proyecto de Investigación, Departamento de Estética Pontificia Universidad


Javeriana 2010.

3 La posición de Roger Penrose, es de alguna manera sustentar que la emoción y otras


condiciones de la mente no son computables. Sin embargo existen autores que desde otra
perspectiva demuestran que las emociones y sensaciones son también de las máquinas.

4 Llinás Rodolfo. (2003). El cerebro y el mito del yo. El papel de las neuronas en el
pensamiento y el comportamiento humanos. Colombia: Grupo Editorial Norma.

5 “La hipótesis de causación formativa, parte de la suposición de que los campos


morfogenéticos son físicamente reales, en el mismo sentido de que los campos gravitatorios,
electromagnéticos y de materia cuántica son físicamente reales. Todo tipo de célula, tejido,
órgano y organismo tienen su propia clase de campo. Estos campos confieren forma y
organización a los microorganismos, plantas y animales en proceso de desarrollo, y estabilizan
la forma de los organismos adultos. Esto lo llevan a cabo basándose en su propia organización
espaciotemporal.” Sheldrake, 1998: p.p. 172-173.

6 “Mientras que el cerebro humano tiene capacidad de procesamiento -es decir,


percepción y recordación- de ±7 objetos y biológicamente se desarrolló para trabajar con
un mundo de solo tres dimensiones (3D), el desarrollo cultural ha sido tan magnífico que el
cerebro se enfrenta en el mundo contemporáneo con bastante más que ±7 objetos, y con
muchas más relaciones que las que permite la geometría euclidiana. La mejor ilustración es la
capacidad de procesamiento y la velocidad alcanzada por los computadores, actualmente.” P.
72 Maldonado (2010). Construyendo la Evolución. En: Hernández, I. Niño, R (eds). Estética, Vida
Artificial y Biopolítica. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad javeriana.

7 Avances en este campo es “la fórmula principal del modelo Hodgkin-Huxley, y con la
que sus autores obtuvieron el premio nobel, fue obtenida aplicando las leyes de Kirchoff al
circuito eléctrico que representa a la membrana de la neurona. […] El sentido de transmisión
entre neuronas es el resultado de su peculiar forma y organización, es decir de su polarización
194
ART
topográfica. Este principio fue postulado por el genial investigador español, y premio Nobel
Santiago Ramón y Cajal y al que las redes neuronales artificiales y por tanto la inteligencia
artificial deben casi un siglo después de Cajal parte de su éxito, es el relativo al modo en el
que las neuronas se relacionan entre sí. El método de tinción empleado por Cajal fue el que le
permitió dilucidar al microscopio que el sistema nervioso no era una masa continua de células
cerebrales, más bien al contrario, una red de neuronas en la que cada neurona conservaba su
individualidad. Cada neurona de acuerdo con Caja, es una célula individual que se relaciona
y por tanto se conecta con otras neuronas, a través de una conexión muy particular llamada
sinapsis.” (Lahoz, p. 392-393).

8 Maldonado, C. (2010) p. 73

9 La NASA, reporta que para el año 2002 cuando aparece la abolición de la ley de
monopolio audiovisual hay 23.133 satélites en el espacio. En: La Ferla, J. (2009). Cine (y) digital.
Aproximaciones a posibles convergencias entre el cinematógrafo y la computadora. Buenos Aires:
Manantial. P. 223.

195
ART

Operando por cruzamentos – processos híbridos na


arte atual
Sandra Rey1

Resumo: O artigo aborda os processos híbridos que caracterizam


a produção artística atual, notadamente os processos que envolvem
ciências e tecnologia. Está estruturado em duas partes, a primeira trata os
cruzamentos como modus operandi que regula os processos atribuindo
um caráter inespecífico no que diz respeito à técnicas e mídias, nas
produções contemporâneas. A segunda parte levanta aspectos do
projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem” que supõe transversalidades e
entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas que o englobam.
Palavras-chave : processos híbridos, cruzamentos, desdobramentos da
paisagem.
Abstract: The article covers the hybrids process that characterizes the
current artistic productions, especially the practices that involve science
and technology. It is structured in two parts, the first deal the crossings as
“modus operandi” that regulate artistic procedures, assigning a nonspecific
nature regarding to techniques and media, at current art productions. The
second part raises aspects of the project “Unfolding of the Landscapes” that
implies intersections and crossings among the different art practices that
include.
Keywords: hybrid processes, crossings, “Unfolding of the Landscapes”.

Processos hídridos na arte atual


O tema da mesa modus operandi oferece a oportunidade para pensar
e debater os cruzamentos entre idéias, conceitos, ações, procedimentos e
dados da cultura, com base na tecnologia e nas ciências presentes na arte
atual.
A hibridação é uma característica da arte de nosso tempo e se inscreve na
natureza dos processos que envolvem os meios tecnológicos. Os processos
híbridos com base nas tecnologias atuais permitem, não somente constituir
e instaurar a imagem, mas também alterar seus elementos cruzando-os com
sons, textos, movimentos, circuitos eletrônicos, algoritmos e dispositivos
que lhe atribuem interatividade. A principal característica da arte produzida
através de cruzamentos com a tecnologia digital é operar redefinições nas
relações entre a obra, o autor e o espectador e a capacidade de penetrar,
contaminar e operar transversalidades entre as categorias já constituídas,
dissolvendo as especificidades.
Identificamos processos híbridos como modus operandi em
obras instauradas através de cruzamentos conceituais e operatórios
entre as diferentes áreas das artes e das ciências e em invenções de
procedimentos que propõem desvios, passagens, deslocamentos,
migrações e resignificações passíveis de despertar, no receptor, percepções
intersensoriais.
196
ART
O modus operandi implícito na instauração dos processos artísticos com
base na tecnologia, portanto, não é uma técnica já estabelecida embora o
rigor técnico seja um de seus pressupostos, nem uma mídia específica, muito
menos um estilo individual que possa ser identificado através de alguma
linguagem específica. Se pode afirmar que o modus operandi universal que
prevalece nas manifestações contemporâneas e, notadamente as que são
provenientes da tecnologia, é designado por uma palavra que fornece o
estatuto de inespecificidade que regulam os procedimentos artísticos,
hoje: o cruzamento.
Operar por cruzamentos implica proceder de maneira aberta. A
atuação nas artes visuais, hoje, não exige tanto do artista o domínio de
saberes específicos da área e destrezas em técnicas que se encerram em
gêneros e categorias mas, em contrapartida, exige habilidades para lidar
com os dados que a cultura contemporânea dispõe, demanda capacidade
de conceituação e a concepção de uma ideia própria da arte, exige a
compreensão do conhecimento científico e tecnológico do nosso tempo e
habilidades para conduzir projetos interdisciplinares.
Operar por cruzamentos implica conceber táticas para lidar com
certos dados provenientes do conhecimento e tirar partido da potência
da tecnologia para desenvolver estratégias visando operar desvios nos
desígnios da cultura, da política e das ciências, sem aplicação prática outra,
que a de reposicionar os conceitos, idéias e concepções de mundo, já
estabelecidas.
Diante dos inúmeros campos abertos e de incontáveis alternativas e
maneiras de fazer, cabe ao artista instaurar seu próprio conceito e modo
de fazer arte e disso resultam as infinitas possibilidades de hibridação
presentes na arte atual que operam transversalidades entre tecnologias
avançados e técnicas tradicionais ou remotas, entre a arte, as ciências, e
elementos da cultura.
Nos processos híbridos que começam a prevalecer progressivamente
desde a alta modernidade, o artista aspira produzir não um objeto (embora
a produção de objetos não esteja completamente descartada), mas
instaurar uma estratégia de produção recorrendo a fusões e simbioses
novas e inesperadas que não segrega gêneros mas, ao contrário, abrangem
e cruzam dados do visual, com outros dados provenientes do musical,
do literário e do performático ou, da biologia, da genética, da robótica.
Identificamos, portanto, nos processos criativos da arte atual um campo
aberto à investigações com base em cruzamentos singulares que envolvem
questões conceituais, invenções de procedimentos operatórios diversos,
concepções de modos de apresentação, de exposição, e estratégias de
circulação, que são gestados no âmbito de cada projeto artístico particular.
Para Jameson, a arte atualmente é gerada por uma ideia brilhante que
combina forma e conteúdo, e pode ser repetida infinitamente até que o
nome do artista assuma uma espécie de conteúdo próprio; a ideia é uma
espécie de descoberta técnica ou invenção. Nesse ponto, a arte atual,
envolvendo tecnologias ou não, se inscreve numa linha contínua com a
tradição modernista.
197
ART

Efetivamente, em retrospectiva, constatamos que a arte do século


XX se fixou em romper com os critérios, bases teóricas e com as técnicas
tradicionais que sustentaram o fazer artístico no campo das artes visuais
durante mais de quatro séculos. A arte atual dá continuidade à insurgência
contra todo tipo de especificidade exclusiva e a se abrir a todas as técnicas
e cruzamentos possíveis a fim de promover experiências estéticas.
Essa desespecificação das práticas artísticas se inscreve plenamente
numa continuidade histórica, não é uma especificidade do digital. Ela
subentende uma parte preponderante da estética que identificamos desde
a metade do século XX e encontra, sim, no digital, os meios para acontecer
plenamente. Porém a lógica própria à desespecificação já está bem
presente nos movimentos do Cubismo, em Dada e no Surrealismo através
de procedimentos tais como a colagem, a fotomontagem e das junções
de objetos heteróclitos presentes ready-mades. Entretanto a lógica da
desespecificação presente na arte desde inícios do século XX encontra um
grande impulso com a evolução tecnológica e o advento do computador,
provocando um deslocamento dos centros de interesse e reforçando a
tendência em explodir com os critérios clássicos da arte1.
Os processos digitais estão sujeitos a variações infinitas, suas
possibilidades são ilimitadas não somente para modificar como para
regenerar a imagem fazendo-a explodir em mutações surpreendentes.
Imensa, também, a capacidade de difusão da arte digital em múltiplos
suportes “on e off line”. Porém, apesar de não introduzir uma ruptura
estraçalhadora na continuidade da arte, apenas lhe fornecer os meios
tecnológicos que lhe convém, seu reconhecimento, condicionado à
aceitação no sistema através de museus, galerias e instituições culturais,
ainda hoje encontra resistências devido às dificuldades do sistema em
adaptar seus critérios às exigências e problemas inerentes à arte digital, tais
como conservação, registro, modos de exposição e valor de mercadoria,
rápida obsolescência das mídias e suportes.
Isso posto para estabelecermos um debate sobre os modus operandi
que regulam os processos atribuindo um caráter inespecífico às produções
contemporâneas, no que diz respeito à técnicas e mídias, passemos
à segunda parte de nossa proposta que levanta aspectos supondo
transversalidades e entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas
que englobam o projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem”.

DesDOBRAmentos da Paisagem: transversalidades e entrecruzamentos


Minha forma de fazer arte inicia com o ato mais primário da condição
humana sobre o planeta – o ato de caminhar. Se constitui através de
uma coleção de imagens dos territórios atravessados, armazenadas em
arquivos digitais, e se desenvolve com investigações, em laboratório, sobre
possibilidades de rupturas, nos dados visuais das imagens captadas, que
não envolvem mudanças de conteúdo, mas abrangem deslocamentos,
passagens, desvios e ressignificações, a partir da reestruturação dos
elementos visuais, já dados. Dessa forma, as reestruturações que opero
nas imagens dos dados visuais captados da paisagem, durante os
deslocamentos, levam a que certos elementos subordinados podem tornar-
198
ART
se dominantes ou, de modo inverso, elementos dominantes podem tornar-
se secundários ou subordinados. A idéia de operar esses cruzamentos
provém do sentimento e reforçam a sensação que o Real que nos envolve,
ou que estamos inseridos, é sempre maior, e escapa ao que podemos
perceber através dos sentidos.
O projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem” configura-se através
de três processos em estreita articulação, supondo transversalidades e
entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas que o englobam:
a) deslocamentos na paisagem: que se constitui através do ato de caminhar, de
atravessar determinados territórios e da experiência estética que daí decorre; 

b) arquivos de deslocamentos: uma coleção de documentos visuais, de registros


fotográficos de fragmentos de paisagens, captadas nos territórios atravessados;

c) desDOBRAmentos da paisagem: a instauração de um campo experimental,


em laboratório, propondo reestruturações de elementos visuais captados na
paisagem, e investigações sobre modos de materialização, de apresentação e
exposição das imagens.

Deslocamentos na paisagem
A ação de atravessar o espaço nasce da necessidade natural de se deslocar
para encontrar alimentos e informações indispensáveis à sobrevivência.
Entretanto, apesar da necessidade de satisfação de exigências primárias
o ato de se deslocar se converteu na ação simbólica de habitar o mundo.
Na arte, o ato de caminhar foi exaustivamente experimentado desde as
primeiras décadas do século XX, lhe sendo atribuído diferentes estatutos:
num primeiro momento como forma de anti-arte, depois enquanto ato
primário de transformação simbólica do território, até chegar a uma forma
de arte autônoma.
O que denomino no projeto de deslocamentos na paisagem envolve a
experiência de desterritorialização através de viagens, caminhadas, de
trajetos e derivas. Nos deslocamentos na paisagem, portanto, a mobilidade
é assumida, levando em conta a experiência de destituir-se das referencias
que balizam o dia-a-dia.
A pergunta que se coloca no âmbito desse processo é, — de que
maneira o deslocamento se torna uma experiência perceptiva e pode
adquirir conotações estéticas ?
199
ART

As ações empreendidas consistem em percorrer determinadas extensões


em sítios naturais ou contextos urbanos. Essas experiências definem-se pelo
lado avesso das ações que pautam o dia-a-dia: não estabelecer nenhum destino
ou trajeto pré-determinado, não andar atrás disso, ou daquilo. Simplesmente,
deixar-se levar pelo andar, encadeando um passo no outro, às cegas quanto
ao rumo a tomar, porém de olhos bem abertos ao entorno que se desvela. O
espaço percorrido torna-se percurso, no atravessamento de uma extensão.
Constitui-se como experiência de evasão dos hábitos e responsabilidades do
cotidiano e de abertura ao que possa advir.
Não se trata, portanto, de um andar qualquer, mas de fazer do andar uma
experiência perceptiva inteiramente centrada no deslocamento. Encontramos
no budismo a palavra apranihita2, que significa ausência de desejo ou de meta.
A ideia é essa: simplesmente andar com a atenção inteiramente voltada ao
desenrolar de cada passo e ao que podemos perceber no campo visual da
paisagem que se desvenda aos nossos olhos. Um caminhar que envolve uma
dimensão processual enquanto um fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que
engloba a produção de uma arte cujo produto pode se esgotar simplesmente
na experiência.
Sobre a experiência do “lugar” Didi-Huberman observa, em Genie du non-
lieu3, que “o lugar se instaura obrigatoriamente numa retirada […] é preciso
o deslocamento do pé – é preciso que o caminhante se afaste – para que sua
pegada nos seja visível. É o passo que comanda as grandes distâncias, o passo
que conduz o artista a trabalhar o lugar, a se interessar pelas derivas e pelas
passagens. O passo retém o artista e, ao mesmo tempo, o convida a exercer um
‘tocar’ o espaço na escala do território”.
A experiência do “lugar” é o que se constitui como atitude estética na
caminhada. Quando fotografo na paisagem, minha percepção alimenta meu
modelo mental e esse modelo se ajusta para acomodar minha percepção, e
assim por diante, levando-me a mudar certas decisões na tomada fotográfica.
Percebo que essas pequenas acomodações deslocam meus pontos de vista,
minha percepção do real, desacomodando meus modelos mentais, sensoriais e
perceptivos. Isso altera certos ajustes de minhas percepções. Estabelece-se um
processo dinâmico de inteiração da observação do entorno, de entendimento
de imaginação e de intenção e é nisso que consiste, até o presente, o que
denomino como experiência estética na paisagem.

Arquivos de deslocamentos
Num primeiro momentos os arquivos de deslocamentos constituem-se a
partir com as imagens-documento obtidas durante a caminhada. Em seguida,
envolvem processos de ordenação e catalogação das imagens captadas. Os
arquivos de deslocamentos, portanto, permitem lidar com as representações
resultantes das ações de deslocamento na paisagem, através de processos de
classificações e arquivamento das imagens em ambiente digital.
Esses documentos visuais retém fragmentos de memória e, de certa
maneira, “descrevem” as passagens realizadas, os territórios atravessados.
Constituem-se, dessa maneira, como pequenas narrativas visuais de lugares,
passagens e territórios percorridos.
200
ART
Cada fotografia tomada, implica no registro de paisagens por recortes, visto
que o dispositivo fotográfico trabalha por subtração. Assim, cada foto recorta e
isola uma porção da extensão, as imagens extraídas do mundo são fragmentos
descontínuos, já que o enquadramento é um ato que fragmenta o visível e
revela sempre alguma coisa de parcial que implica num resíduo que Dubois
chama de ‘fora de campo’ ou espaço off, igualmente importante quanto o que
se enquadra na foto: “O que a fotografia não mostra é tão importante quanto o
que ela revela”4.
Se a fotografia sempre opera idas e vindas entre o presente da foto e o que
ficou longe do referente e do momento vivido, não podemos esquecer que a
imagem fotográfica não é um espelho transparente do mundo. Ela não restitui
o real, mas codifica as aparências através de uma convenção.
Anne Cauquelin5 situa a invenção da perspectiva no centro das questões
que envolvem a paisagem e aquilo que manifesta à sua maneira: a natureza. Ela
observa que essa fusão entre paisagem e natureza faz com que esqueçamos
que o quê nomeamos paisagem se instaura em torno de um ponto crucial na
constituição da aparelhagem simbólica do Ocidente, a perspectiva. A paisagem
surge como noção e se instala definitivamente na cultura ocidental com a
longa elaboração das leis da perspectiva que estão na base da instauração da
imagem fotográfica.
Os arquivos de deslocamentos constituem um work in progress de fragmentos
de paisagens, e formam um banco de imagens constantemente alimentado a
cada caminhada. Os agenciamentos dos arquivos por trajetos, data, lugares e
temas atribuem sentidos a essa coleção de dados icônicos do mundo, uma vez
que formam uma espécie de diário de bordo dos deslocamentos na paisagem, e
já supõem alguma ordenação simbólica do real.

desDOBRAmentos da paisagem: ressemantizações do referente


Trata-se, nesse processo, da instauração de um campo experimental, em
laboratório, investigando possibilidades de recombinações, reestruturações,
ressemantizações e de rupturas de certos elementos visuais captados na
paisagem. Trata-se, numa mesma seqüência de fotografias, de tomar cada foto
como um plano de imagem, e de prospectar como uma pode unir-se à outra,
como pode uma contrair-se à outra, como pode uma incrustar-se ou justapor-
se à outra.
Partindo da coleção de dados icônicos do mundo presentes nos
arquivos de deslocamentos, em laboratório, busco investigar possibilidades
de agenciamento através da edição de certas imagens, seja reconstruindo
a vista da paisagem através de diversos fragmentos recortados pelos
enquadramentos, seja desidentificando o referente da fotografia a partir de
procedimentos provenientes da pintura, tais como justaposição e sobreposição
de planos.
As operações levam em conta as informações visuais inscritas nas
imagens, sem modificá-las. Nessa etapa, colocamos em jogo os conceitos
de montagem e de fotomontagem. A fotomontagem é um gênero de
expressão visual baseado na justaposição e na fusão semântica de imagens
fotográficas sobre um mesmo plano ou suporte. Torna possível ressignificar
201
ART

as informações visuais do referente fotográfico e expandir o processo da


imagem através das dobras originadas pelas operações de justaposição e
sobreposição. Esse modo operatório que multiplica os dados extraídos do
real numa série de combinações possíveis e que não cessa de fazer dobrar
a imagem sobre si mesma acaba por provocar mutações na percepção dos
fragmentos de paisagens, transformando-os em um espaço sem topos, não
localizável, porém, aberto a acontecimentos: “A dobra que vai em direção ao
infinito”, segundo Deleuze6.
O processo de instauração de novas imagens a partir das fotografias
tomadas do real, durante as caminhadas, é pautado por experimentações
de protocolos que vou criando e adaptando, a partir de procedimentos
provenientes do conceito de montagem e de princípios da fotomontagem,
que possibilitam uma criação livre, sem entraves, independente das formas
naturais.
Nessa etapa do projeto, a fotomontagem é um sistema semiótico
que permite a criação de uma imagem a partir de diversos métodos e
fundamentos epistemológicos. O agenciamento de fragmentos virtuais
dos dados visuais captados na paisagem, associados uns aos outros no
interior de um mesmo espaço visual, permitem integrar pequenos extratos
dos deslocamentos e do entorno percorridos, para formar uma unidade
nova de forma e de conteúdo. Do ponto de vista conceitual os princípios
de fotomontagem respondem produtivamente a uma atitude diferente
de tratar tanto a fotografia como a realidade, ampliados pelos processos
digitais. Possibilita expor e tratar a experiência a partir de fragmentos visuais
independentes para construir uma imagem e ampliar a margem semântica
dessa experiência.

Referências Bibliográficas

CARERI. Walkscapes, walking as an aesthetic practice. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 2005.
CAPISTRÁN, Jacob. Fotomontage. Madrid: Ed. Cátedra, 2008.

Cauquelin, Anne. L’invention du paysage. Paris : ÜF, 2004, p.101.

COUCHOT, Edmond. L’art numérique: dissolution ou hybridation?, Revue Recherches en


Esthétique, C.E.R.E.A.P. nº 6, octobre, 2000, p. 25-32.

. A Tecnologia na arte, da fotografia a realidade virtual. Tradução Sandra Rey. Ed.


UFRGS, 2003.

DANTO, Arthur. Após o fim da arte: A arte Contemporânea e os limites da história. São Paulo.
Odysseus Editora. 2006.

DEBORD, Gui. Théorie de la dérive, 1958. in http://www.agbsaopaulo.org.br/node/109,

Didi-Huberman, Georges. Genie du non-lieu: air, poussière, empreinte, hantise. Paris:


Lês éditions du minuit, 2001.

DELEUZE. A dobra, Leibiniz e o Barroco, trad. Luis Orlandi, São Paulo, Papirus, 1991.

Différence et Répétition. Paris, Puf, 1993.

202
ART
DUBOIS, Phillipe. L’acte photographiqu eet autres essays. Paris: Nathan, 1990.

FOUCAULT, Michel. «Sobre Byzantios» em Esthética: Literatura, Pintura, Música e Cinema.


Manoel de Barros da Motta dir., trad. Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro, Forence Universitaria,
2006.

HANH, Tich Nhat. Meditação andando. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

ROUILLÉ, André. La photographie. Paris, Gallimard, 2005.

SOULAGES, François. Esthétique de la Photographie. Paris, Nathan, 2001.

1 Professora Doutora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do


CNPq.

2 COUCHOT, Edmond. A Tecnologia na arte, da fotografia a realidade virtual. Tradução


Sandra Rey. Ed. UFRGS, 2003, p. 265-269.

3 Tich Nhat HANH. Meditação andando. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

4 Georges Didi-Huberman. Genie du non-lieu: air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Les
Editions du Minuit, 2001, p. 36.

5 P. DUBOIS. L’acte photographique et autres essays. Paris, Nathan, 1990. O ato fotográfico e
outros ensaios. Trad. Marina Appelzeller, São Paulo, Ed. Papirus, 2000, p. 179.

6 Invenção da Paisagem,

203
ART

Neuroestética/bioestética no contexto
da arte computacional
Suzete Venturelli1

Resumo: Partindo do pressuposto que o prazer que sentimos está


relacionado com a aquisição de conhecimento, a partir da nova ciência do
cérebro, neurobiologia, surgiu um grande número de estudos interessados
na produção e a fruição das artes, como fenômeno biológico. Um dos
teóricos, o inglês Semir Zeki denominou de neuroestética, o mais recente
campo da ciência interessado em entender melhor a relação entre o
cérebro e as artes. Para ele muito se tem escrito sobre arte, mas nunca
sobre o cérebro visual, através do qual toda a arte é expressa, na concepção
ou na execução ou na apreciação. Ou seja, não relacionaram ainda as
funções da arte com as funções cerebrais. A razão desta omissão reside na
concepção da visão e do processo visual que foi em grande parte ditado
por fatos simples, mas poderosos, derivados da anatomia e da patologia. A
pergunta que neurologistas, criticos e historiadores da arte poderiam fazer
é: porque é que esta capacidade cognitiva se desenvolveu nos humanos? A
conclusão que se chega é que a função da arte é uma extensão da função
do cérebro. A partir desta definição encontramos o germe da teoria da arte
que contem sólida fundamentação biológica que une os pontos de vista de
neurobiólogos e de artistas.
Palavras-chave: Neuroestética, arte computacional, bioestética
Abstract: This paper presents the main ideas about the pleasure we feel
is related to the acquisition of knowledge from the new brain science,
neurobiology, which emerged a large number of studies interested in the
production and enjoyment of the arts, as a biological phenomenon. One of
the theorists, the English Semir Zeki, called the neuroesthetics, the most recent
field of science interested in understanding the relationship between the brain
and the arts. For him, much has been written about art, but never about the
visual brain, through which all art is expressed in the planning or execution or
appreciation. The conclusion reached is that the function of art is an extension
of brain function. Based on this definition we find the seed of art theory that
contains solid biological foundation that unites the views of artists and
neurobiologists.
Keywords: neuroesthetics, computer art, bioesthetics
Hoje a noção de arte para as ciências humanas é vista como uma
categoria especial de atividade humana. Por exemplo, Wartenberg (2006)
discute perspectivas diferentes sobre o que faz com que um objeto seja
ou não arte. Ele baseia-se em pontos de vista filosóficos que descrevem a
arte como “imitação” (Platão), “Redenção” (Nietzsche), ou “comunicação de
sentimento” (Tolstoi), há mais visões recentes de arte como “fetiche” (Adrian
Piper), “virtual” (Douglas Davis) ou computacional, no nosso caso. A arte
também é definida do ponto de vista dos espectadores, ou seja a arte é
aquilo que é categorizado pelos espectadores como tal (Bourdieu & Darbel,
1997; Dewey, 1989).
204
ART
A natureza da arte tem sido um tema de interesse filosófico, desde os
dias da Grécia antiga. Mas a experiência da arte e, conseqüentemente, a
percepção e avaliação da arte, parece particularmente interessante no
contexto tecnocientífico atual. Para uma compreensão psicológica da
percepção da arte e apreciação estética, algumas questões emergem e
muitas são respondias.
A base dos conceitos que se originam na pergunta: qual é o sistema do
cérebro para sentir a beleza? foram inicialmente respondidas entre 1860
e 1970, a partir da demonstração que a retina não é difusamente ligada a
todo o cérebro, ou mesmo à metade do cérebro, mas apenas a uma bem-
definida circunscrita parte do cortex cérebral, denominado de cortex visual
primário.
O cientista Semir Zeki afirma que a arte é um subproduto da principal
função evolutiva do cérebro, que é a aquisição de conhecimento, pois
o cérebro humano com seus 100 bilhões de células nervosas e mais de
cinqüenta substâncias neurotransmissoras, cujo potencial de conexões
entre os neurônios chega a 500 trilhões, proporciona comportamento
complexo a partir de diversos grupos de células ligados por circuitos. O
cientista diz que a metáfora mais freqüente para se entender o processo
cerebral de transmissão e conexões citado nos novos livros de neurologia
é a das cascatas neurais – grandes seqüências de ativação de áreas do
cérebro, às vezes bastante afastadas entre si. Especialização e coordenação
– essa última em níveis às vezes insuspeitados – são dois princípios que
governam o cérebro.
Enquanto ajudam a compor uma nova “teoria geral do cérebro”,
cientistas interessados em arte fazem achados num terreno anteriormente
percorrido apenas por filósofos e críticos culturais. Quando participei
na Universidade Sorbonne, em Paris, no início dos anos 1980, do curso
ministrado por François Molnar, que fez parte do grupo Groupe de
Recherche d’Art Visuel, trabalhando mais especificamente com sua esposa
Vera Molnar, como especialista em psicofisiologia da visão, ele pediu ao
nosso grupo de estudantes que respondem a questão O que é a beleza?
A partir da apreciação que levavam a escolha e classificação como belas,
feias ou neutras de pinturas do artista Mondrian. O resultado mostrou
que as que possuíam mais branco como predominante na cor agradavam
mais. Mas porque o branco agradou mais ao grupo de estudantes de arte
da Sorbonne? Não obtivemos resposta que pudesse naquele momento
esclarecer o resultado.
Vera e François Molnar receberam formação clássica na Escola de Belas
Artes de Budapeste, entre 1942 e 1947. Em 1946, ela passa a trabalhar com
formas não-figurativas, ou seja, abstração chega gradualmente por motivos
naturais. No ano seguinte, mudou-se para Paris. Eles logo desenvolveram
uma arte geométrica abstrata e se recusam a realizar composição. O
trabalho é baseado na utilização de sistemas: conjuntos, permutações e
rotações de linhas e formas geométricas simples, ocupando o espaço de
forma racional e controlável.
Eles participam da criação, em 1960, do Centre de Recherche d`Art
205
ART

Visuel - C.R.A.V. que surgiu do GRAV, com Horacio Garcia, Julio Le Parc,
François Morellet, Francisco Sobrino, Joël Stein, Jean-Pirre Yvaral. François
Molnar, logo depois deixou o C.R.A.V. e passou a se dedicar à pesquisa
teórica sobre a psicofisiologia da percepção visual. A partir de 1968, ela
usa computadores e executa obras cujos componentes plásticos e sua
distribuição são determinados pelos programas em que o acaso pode
intervir. Ela desenvolveu o programa “Molnart” em 1976, nesse ano foi
organizada sua primeira exposição individual (London Polytechnic of
Central), retirando-se voluntariamente do mundo da arte. Nos anos 1980,
eles se tornaram membros fundadores do Centre de recherche expérimentale
et informatique des arts visuels da Universidade de Paris-I, onde também
trabalharam como professores.
François Molnar e Robert Frances inauguraram o Laboratoire de
psicofisiologie, que se transformou no Centro de pesquisa de imagens,
cultura e cognição (Cricc), cuja história remontas aos anos 60, quando foi
inaugurado o Instituto de Estética e ciências da arte, por Étienne Souriau.
Em 2006, quando ocorreu a sua integração no Laboratoire d’Esthétique
Théorique et Appliquée (Leta) criado por Marc Jimenez, o Cricc integrou
também o campo teórico de estudos culturais. O componente cultural
permitiu integrar as pesquisas desenvolvidas por Bernard Darras.
Outras experiências são realizadas em vários laboratórios, que visam
entender por que a arte e a estéticas são tão importantes e essenciais. A
experiência realizada no University College de Londres, por Semir Zeki e
sua equipe envolveu um grupo de pessoas de qualquer profissão que
classificaram 300 pinturas como belas, feias ou neutras, numa escala de 1
a 10.
O interessante é que depois, as mesmas pinturas lhes foram
reapresentadas, enquanto seus cérebros eram monitorados numa máquina
de ressonância magnética. Uma gama diversa de estruturas cerebrais
reagiu durante a experiência. Concluiu-se, segundo o cientista, que o córtex
orbito-frontal medial e o córtex motor eram as áreas de fato ligadas ao
julgamento do belo.
O córtex orbito-frontal medial, relacionado ao prazer e às recompensas,
apresentou atividade mais intensa diante de quadros belos. A atividade era
maior para um quadro que recebera nota 9 do que para um quadro nota 7.
O oposto aconteceu com o córtex motor: maior atividade diante da feiúra.
Uma região na parte frontal do cérebro “acende” quando desfrutamos a
uma obra de arte ou de uma música agradável. Os cientistas afirmam que
a única característica comum a todas as obras de arte, qualquer que seja sua
natureza, é que todas levam a uma atividade numa mesma região do cérebro.
A beleza para o cientista é um aumento de fluxo sanguíneo na base do lobo
frontal. Além disso, diz que os artistas são neurobiologistas intuitivos, que
exploram e desvendam regras da percepção. Zekir gosta de citar uma frase de
Picasso: “Seria muito interessante preservar fotograficamente as metamorfoses
de uma pintura. Talvez assim se pudesse descobrir o caminho percorrido pelo
cérebro para materializar um sonho”. É isso que a neurociência faz ao desvendar
o que um cérebro calcula e o que cria.
206
ART
Motivações, emoções em harmonia com a razão

Na busca de conhecimento, verifica-se a forte relação entre a arte


e a ciência. Enquanto a ciência busca a verdade universal, arte procura
a comunicação intersubjetiva num constante exercício de equilíbrio
entre a emoção e a razão. A hipótese que se apresenta, em particular na
neuroestética, é que as funções cognitivas; consciência e atividade artística
estão associadas com o maior desenvolvimento da organização cerebral,
que durante a nossa evolução, se manifestou principalmente com a
expansão do córtex cerebral, em estreita relação com o sistema límbico que
é a unidade responsável pelas emoções.
Platão distinguia a idéia de uma coisa, quando inteligível, do modelo
da coisa que o artesão tinha no pensamento, da coisa executada, por
exemplo, por um marceneiro e dela pintada numa parede. As equivalências
na neuroestética destas distinções são: o conceito – primeira imagem, o
conceito – objeto fabricado e finalmente a pintura na parede ou numa tela,
como representação do conceito. Encontramos aqui a definição de arte
como mimese traduzida como representação/imitação.
A definição de arte em geral como imitação da natureza foi legitimada
nos século 16 e 17, tendo Aristóteles como autoridade no assunto. Ainda
hoje, muitos intérpretes vêem isso como a marca mais evidente da influência
de Aristóteles sobre a constituição da teoria da arte. Para Aristóteles, de
um modo geral, a arte (tekhnê) ou bem executa aquilo que a natureza é
impotente em realizar ou a imita. As coisas artificiais são produzidas para
qualquer finalidade, assim como as coisas da natureza, pois nas coisas
artificiais e naturais as conseqüências e os antecedentes possuem entre elas
a mesma relação.
A mimesis poética a que se refere Aristóteles, não diz respeito a natureza
mas sim à história; ela é uma imitação das ações humanas (mimesis praxeos
[μίμηὓιὖ πρᾶξεωὖ]). Ao atribuirmos a Aristóteles a idéia de que a arte, o
sentido artístico, é uma imitação da natureza, implica que estamos fazendo
uma transferência de significado dos termos do plano da física para o plano
da poética, da arte no sentido de tekhnê para a arte no sentido de poiesis
(CARTERON, 1973).
A tradução da tekhnê por ars, e depois por “arte”, ocorreu em função da
língua grega não possuir uma palavra para o que chamamos de arte, no
sentido de belas artes, ou seja, confunde no mesmo termo dois significados
que nas línguas européias, desde o Renascimento, têm procurado
distinguir, a saber: a arte do artista, o pintor ou escultor, e a arte do artesão,
que é o trabalhador que incorpora a distinção estabelecida a partir da
Idade Média entre as artes liberais e ofícios. Seu pensamento mostra que
a atividade artística é uma tendência natural fonte de prazer e instrumento
de conhecimento, posto que é mimese. A mimese não nos deixa enganar.
Fazemos a diferença do que é real e sua imagem. A arte não é só agradável,
mas é útil para o indivíduo. A arte não é somente representação, ela se
integra na natureza...
Hegel dizia que a arte não é somente uma imitação da natureza, pois ela
207
ART

realiza um acordo entre o sensível e o inteligível. O belo é a manifestação


sensível da idéia, do espírito (cérebro?).
Na neurobiologia, segundo Jean-Pierre Changeux (2010), a mimese
aporta questões relacionadas à fisiologia, ou seja, à percepção, à psicologia
e à sociedade. Por exemplo, a percepção de relações na imagem pode ser
comparada àquelas dos ritmos endógenos e harmonizados sobre o modelo
da música? Ou ainda, mais especificamente como o inteligível interage com
o sensível no mundo interior do artista no espaço estético consciente? Se o
enfoque são os códigos, discutindo a idéia de que o artista se expressa pela
arte, seu cérebro, neste caso, é o reflexo da sociedade, como sugere Max, ou
a sociedade reflete o cérebro do ser humano?
Considerando as pesquisas e trabalhos realizados nos últimos 30 anos,
que a obra de arte tem traços em comum com o “modelo científico”: ela é ao
mesmo tempo serendipite, ocorre por acidente, reducionista e reveladora.
O conhecimento é um prazer para o artista, mas também o é para outras
pessoas.
Paradoxalmente, diz Changeaux, para mostrar a verdade muitas vezes foi
necessário enganar. Por exemplo, a ilusão do cavalo a galope com as quatro
patas no ar pintado por Derby d`Épsom de Géricault ou ainda a posição
impossível do homem que anda do escultor Rodin, levou-o a escrever que é
o artista que diz a verdade e que é a fotografia que mente, pois na realidade
o tempo não pode ser parado.

Mimese, imitação/representação x simulação

Recorrendo a processamentos digitais, a arte computacional, retoma os


debates sobre a arte como mimese, pois muitos artistas se interessam por
aspectos estéticos envolvendo a natureza artificial, assim como a vida num
contexto mais amplo. Por exemplo, na exposição Humano_pós_humano,
de 2005, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, a obra
Contato, simulava partículas de água que se movimentavam em função
da participação do interagente, quando dançava diante da instalação, que
continha uma câmera, para captura do movimento. A simulação contida
na imagem projetada provoca o surgimento de formas abstratas, não
representativas de objetos reais, mas que modificam o olhar nos ensinando
a ver coisas da natureza impossíveis de serem representadas com as técnicas
tradicionais, envolvendo principalmente parâmetros que se modificam em
tempo real.
O termo simulação tem uma relação histórica, tanto com a ciência
quanto com as artes. Na ciência, o termo se aproxima do sentido de
simulação de fenômenos, em oposição à experimentação, e na arte, falamos
de simulação em oposição ao simulacro/imitação.
A simulação tecnológica é criada com o computador e aproxima os
campos da tecnologia e da arte, pois permitiu o surgimento de um novo
gênero de simulação.
Da ciência à arte, de que natureza ela é composta? Na ciência, a
208
ART
simulação é um método usado para estudar teoricamente a atividade
ou ação de um fenômeno real, ou melhor, os resultados de uma ação em
um elemento real. A simulação substitui a experiência na realidade, mas
mantém o mesmo quadro, para depois observar os resultados. Na arte
a simulação é imitar, pois adota-se atitudes e comportamentos de uma
pessoa ou coisa. Ele simula, especialmente na arte do teatro. É uma forma
de mimetismo, a imitação, sem necessariamente com intenção de causar a
ilusão.
As tecnologias digitais permitem reconstituir completamente um
fenômeno, e reproduzir, para reviver o mesmo em seus princípios naturais.
Vida artificial, tecnologias de inteligência artificial, algoritmos genéticos,
redes neurais, biotecnologia e outros. Tecnologias que têm uma base
em sistemas vivos recriam artificialmente, a natureza, e a complexidade
de alguns sistemas através de programas de computador. Ou seja,
comportamentos modelados, que podem ser organismos complexos, e sua
interface oferecem uma nova natureza.
Este paradoxo perceptual marca a interferência gerada pela simulação
numérica: natureza, artifício, original, duplo, reprodução, imitação,
simulação e ilusão se juntam e se misturam.
O que podemos vislumbrar em todo caso, é que a relação entre natureza
e artifício abrange implicações conceituais na ciência, arte, estética....

Explorando e desvendando regras da percepção

O filósofo David Hume, argumentava que a beleza está em quem vê,


e não no objeto. Para Deleuze, a filosofia de Hume é uma crítica aguda
também da representação. Segundo o autor: “Hume não faz uma crítica
das relações, mas uma crítica das representações, justamente porque estas
não podem apresentar as relações. Fazendo da representação um critério,
colocando a idéia na razão, o racionalismo colocou na idéia aquilo que não
se deixa constituir no primeiro sentido da experiência, aquilo que não se
deixa dar sem contradição numa idéia, a generalidade da própria idéia e a
existência do objeto, o conteúdo das palavras [...]. Nesse sentido, a razão
será chamada instinto, hábito, natureza” (DELEUZE: 2001, p. 22).
Hume compara a imaginação a uma coleção de percepções e faz ver
que ela opera mediante princípios de associação, onde o espírito é antes
um acontecer a partir das percepções, se originando na relação com as
mesmas, e não pode ser compreendido como algo que torna possíveis as
percepções. O filósofo pensa o espírito como um feixe de percepções e não
mais como a condição para as mesmas, por isso o destaque de Deleuze em
mostrar que o espírito (cérebro?) é idêntico à idéia de algo.
Partindo do pressuposto que a beleza está em quem vê e não no objeto,
relataremos algumas experiências que visam demonstrar o interesse,
sobretudo em estética e suas relações com a psicobiologia, ou seja, com os
aspectos orgânicos, biológicos, da experiência do belo.
Daniel Berlyne (1970), professor de psicologia da universidade de Toronto,
209
ART

além de ter interesse em entender os fatores que levam certos indivíduos a


se motivarem para produzir arte, passou a se interessar por questões sobre
os estímulos visuais. Estudando as respostas fisiológicas, como o aumento
da freqüência cardíaca, de hormônios percebidos por meio de estímulos
visuais, verificou que o novo, o complexo e a ambigüidade provocavam um
estado de alerta que influenciava diretamente nas respostas emitidas, bem
como no prazer que os estímulos insinuavam. Para tanto, mostrou figuras
com diferentes graus de complexidade, variando o tempo e a repetição de
exposição das mesmas. Elas eram classificadas como muito agradáveis até
muito desagradáveis, em diferentes momentos da experiência.
As experiências mostram que figuras simples e estímulos monótonos
praticamente não interessavam e eram menos prazerosos a cada
apresentação. Já os estímulos novos e os complexos estimulavam, e se tal
estímulo fosse moderado as figuras eram consideradas agradáveis, mas se
fosse muito intenso, ocorria o desprazer. No entanto, com a apresentação
repetida das figuras complexas, a novidade reduzia-se lentamente, não
a ponto de tornar a experiência tediosa, mas suficiente para reduzir a
intensidade do alerta gerado, tornando a experiência agradável. A sensação
de compreender melhor a figura a cada nova apresentação levava à redução
do alerta, produzindo prazer semelhante à resolução de um enigma.
Sensações virtuais provocadas pela obra Som Interativo Digital, a seguir
apresentada.

Figura 1-Som Interativo Digital (SOM-ID), 2011. Projeto MídiaLab: Kiko Barretto, Claudia Loch,
Victor Valentim, Suzete Venturelli, Roni Ribeiro, com a colaboração de Camille Venturelli Pic.

210
ART
O artista Maurits Cornelis Escher aparentemente sabia disso. Suas
gravuras e desenhos levam a uma sensação de estranhamento inicial que
a cada nova exposição diminui um pouco. No entanto, como possuem algo
de impossível, paradoxo, provoca tensão suficiente para estimular o alerta,
dando à experiência estética um sabor constante de novidade. Ao falar sobre
suas criações Escher mostrou que, mesmo não sendo psicólogo, conhecia
perfeitamente esse processo, pois sabia que havia certo enigma nelas, mas
que não era captado imediatamente pelo olhar. Enigma provocado pelo
mundo do paradoxo que ilustra a construção do impossível.

Considerações finais

Ellen Dissanayake (1992) debate no seu Homo Aestheticus sobre a


emoção estética. Para ela, a criação e a contemplação estética constituem
primeiramente uma relação empática, termo criado por Theodore Lipps em
1897, na Alemanha, que significa a capacidade de se identificar ao outro, de
sentir o que ele sente. A empatia, diz a autora, intervém na arte num diálogo
intersubjetivo entre as figuras, no caso da pintura, empatia do espectador
com as figuras e entre o artista e o espectador. A empatia toma por base
a “imitação interior”, pois o espectador projeta sua personalidade sobre o
objeto contemplado. Para a neuroestética, as bases neurais da empatia e
mesmo da simpatia são abundantes. Sabe-se que os neurônios do córtex
temporal respondem às emoções, as intencionalidades de ações. Por
outro lado, ela defende o que chama de “espécies-centrismo” em estética,
preferindo ver a arte contra um brackdrop de quatro milhões de anos de
evolução humana. Em um sentido modificado, ela pretende construir uma
espécie de sociobiologia da resposta humana estética, começando com
as implicações do fato bruto de que a arte faz as pessoas se sintam bem.
Arte persiste em todas as sociedades humanas, e deve fazê-lo por algumas
razões. Entre elas está o prazer que dá, e nada tão fortemente agradável e
convincente como as artes, provavelmente, de alguma forma contribui para
a sobrevivência biológica.

Referências Bibliográficas

CARTERON, H. Aristote Physique (I-VIII). Paris: les belles lettres, 1973.

BERLYNE, D. Novelty, complexity, and hedonic value Perception & Psychophysics, 8 (5), 279-
286 DOI: 10.3758/BF03212593, 1970.

CHANGEUX, Jean-Pierre. Sobre lo verdadero, lo bello y el bien. Un nuevo enfoque neuronal.


Buenos Aires: Katz Editores, 2010.

. Raison et Plaïsir. Paris: Odile Jacob, 2002.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciência humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2006.

DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume.
Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2001.

DISSANAYAKE, E. Art as a human behavior: toward an ethological view of art. Journal of

211
ART

Aesthetics and Art Criticism 38(4): 397-406, 1980. Disponível em: http://ellendissanayake.com/
publications/pdf/EllenDissanayake_5618127.pdf. Acessado em 12/05/2011.

. Homo Aestheticus: Where Art Comes From and Why. New York: Free Press. 1992.

ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Editado por Michael Schroter. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowski. São Paulo:
Editora da UNESP, 2002.

1 Artista pesquisadora da Universidade de Brasília e bolsista do CNPq.

212
ART
Caracolomobile: um simbiote interativo
Tania Fraga1

Resumo: Este ensaio tece sinteticamente reflexões sobre a hibridização


no campo da artecomputacional em sua relação com a distribuição
pervasiva de microchips, atuadores e sensores por objetos e pelo espaço
físico. Pergunto-me se é possível integrar arte, arquitetura e design para o
desenvolvimento de regimes produtivos. Especulo sobre modos potenciais
a serem explorados por artistas, designers e arquitetos para amplificar
possibilidades latentes nos modos de produção, armazenamento,
recepção, difusão e transmissão dos produtos computacionais. Esse campo
de investigação forma um vasto arsenal que permite focar e expressar
agenciamentos relacionados com os aspectos sensíveis, sensoriais,
poéticos e estéticos que acontecem quando a arte e as tecnociências se
hibridizam. Essas reflexões emergem da prática artística e se entretecem
com fatos relacionados com o conceber e produzir a obra interativa
Caracolomobile.

Palavras-chave: arte computacional robótica, realidade virtual,


organismos artificiais

Este ensaio pauta-se sobre algumas perguntas que tenho presente


ao conceber e produzir obras artísticas interativas decorrentes da
hibridização das artes com as tecnociências. Inquiro, sem xenofobia, se é
possível manter a mente aberta para novas investigações tecnológicas
sem, servilmente, repetir os modelos importados que nos conservam
num provincianismo cultural em que predominam os modelos europeus e
americanos. Pergunto-me se é possível integrar arte, arquitetura e design
para o desenvolvimento de regimes produtivos de meta-objetos1 criados
com o auxílio de computação física (O´SULLIVAN & IGOE, 2004: p. XIX).
Indago o que é necessário desenvolver para implementar possibilidades
que estão latentes nos modos de produção, armazenamento, recepção,
difusão e transmissão dos produtos computacionais. Modos de produção
que acredito estarem em gestação. Modos de produção que demandam
ainda muita investigação tanto para o desenvolvimento de ferramentas
como de dispositivos que possibilitarão seu pleno desabrochar. Como essas
considerações permeiam o desenvolvimento de meu trabalho, vou focar
essas discussões enquanto elaboro situações que emergiram no processo
de construção do organismo artificial Caracolomobile.

213
ART

Figura 01: Caracolomobile – instalação na exposição Emoção Art.ficial 5.0, realizada de 01


de julho a 05 de setembro de 2010

A obra e o processo:

Caracolomobile2 foi selecionado pelo Instituto Itaú Cultural para ser


exposto em uma instalação interativa realizada para a bienal de arte e
tecnologia Emoção Art.ficial 5.0. O organismo é composto por sistemas
integrados de atuadores e válvulas pneumáticas articulados através de
sensores, microchips, programas computacionais (softwares) e sistemas de
controles. Apropria-se de alguns procedimentos robóticos e de automação
industrial e foi construído para atuar em simbiose com o interator. Para
isso, foi desenvolvida uma interface visual usando um capacete neural
(neural headset da Emotiv3) que capta através de 16 sensores biométricos
neurais as flutuações da mente daquele que se coloca em simbiose com o
organismo.
Este pode reagir, reconhecer e expressar características comportamentais
que estou denominando, por analogia com os organismos vivos, como
afetivas. Falar de afetividade e emoções em relação a tais organismos
requer destacar que esses comportamentos são abordados aqui sob uma
perspectiva muito rudimentar, pois esse tipo de pesquisa é ainda muito
incipiente e depende da integração de áreas de conhecimentos bastante
diversificadas. É, no entanto, através dessa integração que artistas, designers
e arquitetos vão defrontar-se com a possibilidade de conceberem produtos
complexos e que requerem equipes transdisciplinares para sua realização.
As investigações que propiciam projetar e construir organismos artificiais
estimuláveis e afetivos precisam acompanhar os desenvolvimentos das
tecnologias de materiais e das tecnologias computacionais e robóticas
que possibilitam agenciar o conjunto complexo de fatores envolvidos
na produção de um organismo similar. Através do agenciamento desses
fatores, artistas, designers e arquitetos podem desenvolver produtos
muito diferentes e interessantes. A tarefa é bastante complexa, embora
atualmente existam modos de facilitar essa abordagem.
É preciso, no entanto, estar muito atento, pois as aparentes ‘facilidades’
e a complexidade dos problemas podem, também, provocar uma
214
ART
explosão exponencial da mediocridade. Caso os processos não sejam bem
compreendidos e os procedimentos de uso de ‘templates4’, ou gabaritos
pré-formatados de soluções, sejam usados sem crítica, poderemos ve-
los tornarem-se em modos dominantes de facilitação da produção. Uma
pesquisa no Google com a palavra ‘templates4’ trouxe aproximadamente
117.000.000 resultados. Em sua maioria esses resultados se referem a
algum tipo de facilidade para a personalização de diferentes aspectos do
design. Não tenho nada contra o uso de ‘templates’. Apenas considero que
as novas tecnologias de materiais e as tecnologias numéricas aplicadas ao
projeto e produção de obras de arte, de arquitetura e de design de objetos
possibilitam extenso uso de novas morfologias geométricas e topológicas
cujo desenvolvimento abre um amplo campo de investigações (FRAGA &
LOURO: 2008, p 1-7). Caracolomobile resulta de investigações desse tipo;
investigações sobre tipos de estruturas configuradoras de formas que sejam
capazes de produzir um máximo de movimentos com a aplicação de forças
mínimas (FRAGA & LOURO: Op cit). Elabora possibilidades morfológicas
para essas formas, estudando suas leis de crescimento e desenvolvimento,
analisando a distribuição dos esforços que atuam sobre elas, articulando
maneiras de mover suas partes, e desenvolvendo a modularidade dos seus
elementos componentes.

Figura 02: Nanoshelters, arquiteturas visionárias metamorfoseáveis

215
ART

Figuras 03 e 04: Caracolomobile – simulação do projeto da instalação

Os primeiros estudos visando à contrução de obras desse tipo partiram


de geometrias simples, como o cubo-octaedro. Algumas organizações
fractais foram também estudadas mas, nas escalas macro utilizadas,
apresentaram problemas por desestruturarem as formas. Nesse percurso,
voltei-me para as espirais que são formas recorrentes no meu repertório
formal. Embora na natureza as conchas não sejam articuladas, percebi que
posso triangular espirais em conjuntos articulados de modo similar ao que
fazem as plantas quando crescem. Estruturas treliçadas desse tipo possuem
um grande potencial para crescerem e moverem-se. Elas me propiciaram
vislumbrar a ponta de um iceberg e antever os problemas que se iniciavam.

Figura 05: Estudo de estrutura móvel através de pneumática , utilizando a geometria do


cubo-octaedro

216
ART
Assim, dei início à construção de protótipos para testar a hipótese
formulada e desenvolver maneiras de dar movimentos a essas estruturas.
Iniciei usando tubos de PVC revestindo-os com borracha da Amazônia e
posteriormente sisal. Inicialmente para mover o protótipo usei câmara de
ar de pneus de bicicleta. Elas eram baratas e me mostraram a viabilidade
do projeto mas não eram adequadas para as restrições poéticas, funcionais
e estéticas que o balizavam. Para que não houvesse flexão nos tubos
maiores eles precisavam ser grossos e espessos. Canos de PVC precisam
ser revestidos. Todas essas restrições iam contra a proposta poética e
estética que embasam meu trabalho e que têm na leveza, flexibilidade e
na simplicidade seu principal fundamento. Ao construir o Caracolomobile
eu queria construir um robô diferente da imagem geralmente associada
aos robôs. Queria um robô que fosse muito leve visualmente, bonito, que
pudesse ser visto de todos seus lados e muito flexível. Esse é o motivo pelo
qual o chamo de organismo artificial e não de robô.

Figura 06: Protótipo do Caracolomobile realizado com canos de PVC e cordas de sisal azul

Quando, em março de 2010, recebi o prêmio do Instituto Itaú Cultural


que me permitiria construir o organismo, finalizei o projeto executivo e
desenvolvi seus inúmeros detalhes. Concebí então um sistema de tubos
infláveis que trabalhavam como uma traqueia. Na primeira montagem,
essa solução não se mostrou forte o suficiente e optei por integrá-la com
atuadores pneumáticos. Foi preciso desenvolver os conectores pois os
encontrados no mercado são direcionados para indústria e não para
produtos artísticos e ficavam muito distante dos objetivos buscados.
Portanto, para construir o organismo que havia concebido, foi preciso
217
ART

estudar muitos materiais, como por exemplo o titânio, o PU (resina de


poliuretano) e o silicone. Para obter uma estrutura resistente, leve e que
pudesse ficar sem revestimento, escolhi o titânio anodizado5 na cor azul
violeta. Conectores pneumáticos de engaste rápido e a modulação dos
atuadores facilitam a montagem, desmontagem, transporte e manutenção
do organismo. Os nós vermelhos que pontuam e delimitam a espiral dando
molejo à forma foram realizados com silicone flexível de alta resistência.
Intento realizar novamente, no futuro, esses detalhes utilizando impressoras
3D conectadas diretamente do computador de modo que cada nó possa
incorporar as variações decorrentes de sua posição na estrutura.
Para obter o tipo de simbiose visceral entre humanos e máquinas que
buscava, usei um capacete neural da Emotiv. Esse dispositivo possui 16
sensores capazes de captar muitas expressões faciais, os estados afetivos e
uma série de palavras pensadas pelo usuário. Como teria apenas 3 meses
para desenvolver todo o trabalho, optei por não usar nele a suíte cognitiva.
Face à complexidade que traria para a logística da exposição, optei também
por ter interatores treinados para usar o capacete, não o disponibilizando
para o público em geral. O objetivo inicial era ter o organismo se
expressando em resposta aos estados emocionais e expressivos desse
interator, no enteanto emergiu por parte desses usuários uma busca de
controlar o organismo. Esse fato não foi planejado mas abre perspectivas
para investigações futuras.

Figura 07: Caracolomobile – detalhe de um nó estrutural

218
ART
Figuras 08 e 09: Caracolomobile - aberto

Figura 010: Caracolomobile - fechado

219
ART

Reverberações:

A maneira como uma tecnologia é usada depende das escolhas de


quem dela se apropria. Acredito que, em parte, a ‘fetichização’ de modelos
e ‘templates’ decorre do modo como algumas empresas utilizam-se de
marketing para divulgar produtos incipientes e pouco consistentes. Em
minha opinião, cabe aos artistas, arquitetos e designers conceber produtos
que utilizem plenamente o potencial imanente a tais tecnologias e não
aceitá-las de modo acrítico. Por outro lado, cabe aos teóricos e críticos
assinalar as falácias do sistema apontando-nos direções possíveis.
A relação dos artistas, designers e arquitetos com os processos criativos,
produtivos, receptivos e de difusão/transmissão desses produtos é recente
e está mudando dramaticamente nesta última década. Para a realização
de tais obras é preciso compreender o conjunto complexo de fatores
que as fundamenta. É preciso, também, estabelecer as conexões entre
elas e os processos que estão redefinindo o modo de produção industrial
contemporâneo (FRAGA: 2008, p 305-312). Assim, agrupar e interconectar
criadores e empresas interessadas no desenvolvimento de projetos focados
em idéias inovadoras possibilitaria, a médio prazo, a emergência de novos
modos de agenciar os fatores complexos intercorrentes ao novo modo
de produção que se implanta na sociedade contemporânea. Outro foco
interessante de desenvolvimento refere-se às aplicações interativas e aos
conjuntos de artefatos, de dispositivos, de ferramentas e instrumentos
de programação open-source seguindo paradigmas de programação6
que possibilitem integrar a diversidade com as funcionalidades e
características específicas da área de arte, arquitetura e design. É preciso
desenvolver metodologias para projetar produtos usando tecnologia
numérica e estabelecer diretrizes para modulação, compatibilidade e
interoperabilidade das ferramentas existentes. É importante, também,
traçar metas para o estabelecimento de padrões de qualidade dos produtos
e processos envolvidos. É relevante não esquecer a importância do debate
entre investigadores, artistas, arquitetos, designers, cientistas, teóricos e
programadores quanto aos assuntos relacionados ao desenvolvimento do
potencial poético, estético, funcional e comercial de produtos decorrentes
da aplicação das novas tecnologias numéricas de concepção e de produção.
Finalizar um projeto como o do Caracolomobile foi uma experiência
muito estimulante, revigorante e mostrou-me que o panorama delineado
acima não é ficção de minha fértil imaginação mas se embasa nas profundas
mudanças em processo na nossa sociedade. A partir de agora, posso dar
continuidade a outros Caracolomobiles, com outros problemas a resolver,
e outros protótipos a produzir. Considero que esses problemas e processos,
embora nascidos no campo tão desvalorizado das artes, trazem sementes
de um futuro que gostaria de ver emergir. Venho desenvolvendo o conceito
de meta-objeto para caracterizar famílias topológicas de objetos virtuais
criados e disponibilizados com o auxílio de aparatos computacionais.
Esses meta-objetos podem ser personalizados para atender aos desejos
e necessidades dos usuários finais. Eles podem ser manipulados para a
criação de produtos personalizados. Por exemplo, podemos imaginar a
compra online de uma roupa cuja escolha será totalmente personalizada
220
ART
e sua manufatura produzida através de processos computacionais
automatizados; ou de um carro, como já acontece com algumas marcas;
ou ainda podemos conceber um edifício que possibilita ao indivíduo que
o experimenta interagir com seus elementos estimuláveis. Personalizações
de produtos desses tipos serão resultado de um amálgama de processos
utilizando métodos de produção serial e computacional. Arquiteturas,
objetos artísticos ou de consumo, assim concebidos, podem existir em
simbiose com aqueles que os experimentam, habitam, vivam, ou neles
transitam.

Referências bibliográficas:

ADDINGTON, M. & SCHOEDEK, D.. Smart Materials and Technologies. Oxford: Elsevier, 2005.

ARANTES, P.. Arte e Mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Senac, 2005.

COUCHOT, E.. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2003.

. A segunda interatividade: em direção a novas práticas artísticas, in Domingues,


Diana (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: UNESP,
2003.

FLUSSER, Villem. Writtings. USA: Minnesota, 2002.

. A filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002a.

FRAGA, Tania & LOURO, Donizetti. Thinking responsive growing morphologies for computer art
and architecture. In Emerging forms of computer art: making the digital sense. Computer Art
Congress 2008, CAC.2, Vol 1, 1-7, Paris: Europia, 2008.

FRAGA, Tania. Simulações Estereoscópicas Interativas. In Laboratório Virtual de Pesquisa em


Arte. www.unb.br/vis/lvpa/tese.html. Brasília: LVPA-IdA/UnB, 1995.

. Pensando Pensamentos Líquidos. In MACIEL, Kátia (org). Redes

sensoriais. Rio de Janeiro: Contra-capa, p 301-308, 2003.

. Percursos Poéticos: vislumbrando possibilidades para a arte, arquitetura e


design. In VENTURELLI, Suzete (ed). Arte e tecnologia: intersecções entre arte e pesquisas
tecnológicas. Vol. 1, 305-312. Brasília: UnB, 2008.

GRAU, Oliver. Virtual Art. Cambridge: MIT, 2003.

HOLLAND, J.. Emergence: from chaos to order. New York: Addison-Wesley, 1997.

IGOE, T. & O´SULLIVAN, D.. Physical computing. Boston: Thomson, 2004.

LANGTON, C. G.. Artificial Life. New York: Addison_Wesley, p 201—220, 1989.

MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

. Arlindo. Máquinas e imaginário: O desafio das poéticas

tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 1993.

. O Quarto iconoclasmo. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2001.

221
ART

MINSKY, Marvin. The society of mind. New York: Touchstone, 1986.

PEAT, David & BRIGGS, John. Seven life lessons of chaos. New York: HaperPerennial, 2000.

PICARD, Rosalind. Affective computing. Cambridge: MIT, 2000.

PICARD, Rosalind & Healey, Jennifer. Affective wearables. In Personal technologies. Vol. 1:
231-240. Cambridge: MIT, 1997. At http: //affect.media.mit.edu/publications.php. Last access:
09/10/2009, 16h00.

SANTAELLA, Lúcia. Por uma epistemologia das imagens tecnológicas. In ARAUJO, D. (org).

Imagen (Ir)realidade. Porto Alegre: Sulina, p 173-201, 2006.

TOMAS, David. Beyond the image machine. London: Continuum, 2004.

WALDROP, M. M.. Complexity: The emerging science at the edge of chaos. New York: Simon
and Schuster, 1992.

WEIBEL, Peter. The World as Interface: toward the construction of context-controlled event-
worlds, in DRUCKREY, Timothy (org). Electronic Culture: technology and visual representation.
New York: Aperture, 1996.

WIENER, Norbert. Deus, Golem & Cia. São Paulo: Cultrix, 1971.

ZIELINSKY, S.. A arqueologia das mídias, in Leão, Lúcia (org). In O chip e o caleidoscópio. São
Paulo: SENAC, p 51-71, 2005.


1 Tania Fraga é artista e arquiteta, doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP, foi
professora do Instituto de Artes da UnB.

http://www.lsi.usp.br/~tania/

http://www.unb.br/vis/lvpa/

http://taniafraga.art.br/blog/

email: tania.fraga@gmail.com

2 Venho desenvolvendo o conceito de meta-objeto para caracterizar famílias topológicas


de objetos virtuais criados e disponibilizados com o auxílio de aparatos computacionais. Esses
meta-objetos podem ser personalizados para atender aos desejos e necessidades dos usuários
finais. Eles podem ser manipulados para a criação de produtos personalizados. Por exemplo,
podemos imaginar a compra online de uma roupa cuja escolha será totalmente personalizada e
sua manufatura produzida através de processos computacionais automatizados; ou de um carro,
como já acontece com algumas marcas; ou ainda podemos conceber um edifício com elementos
estimuláveis capazes de reconhecer, reagir e responder aos indivíduos que o experimentam.
Personalizações de produtos desses tipos serão resultado de um amálgama de processos utilizando
tanto métodos de produção seriais como computacionais. Arquiteturas, objetos artísticos ou
de consumo, assim concebidos, podem existir em simbiose com aqueles que os experimentam,
habitam, vivam, ou neles transitam.

Texto baseado nas palestras “Envisioning possibities for computer art, architecture and
design” apresentadas em Adelaide e Sydney, Austrália, em março de 2007 (FRAGA: 2008, p 305-
312).

222
ART
3 A obra Caracolomobile recebeu prêmio do Instituto Itaú Cultural para ser construída
para a bienal de arte e tecnologia, Emoção Art.ficial 5.0, tendo ficado exposta de 01 de julho a
05 de setembro de 2010, naquele Instituto.

4 Http://www.emotiv.com

5 Templates são conjuntos de modelos de procedimentos simplificados, pré-


programados, que aumentam a produtividade e facilitam trabalhar com softwares diversos.
Podem também se caracterizar como restritivos se não possuírem flexibilidade que possibilite
sua adequação a objetivos diversos.

6 A anodização foi realizada no Laboratório de Física da Universidade Católica de São


Paulo, PUC-SP. A coloração do titânio por anodização baseia-se em eletrólise usando voltagem
para controlar a espessura da camada dielétrica oxidada a qual por sua vez é um isolante
elétrico. A anodização não resulta de pigmentação mas sim de padrões de interferências
luminosas produzidas pela camada de óxido resultante da anodização. A camada oxidada
além da coloração protege o titânio tornando-o ainda mais resistente ao desgaste temporal e
à corrosão galvânica, deixando a superfície mais dura sem alterar as propriedades mecânicas
do metal. A coloração, portanto, depende da voltagem aplicada no metal. Maiores voltagens
produzem camadas de óxido de titânio mais espessas com maior poder refrator. A anodização
do titânio melhora também ainda mais a sua biocompatibilidade. Quando o filme de óxido,
obtido com certas faixas de voltagens, contém anatase (TiO2) ele atua como material
antibactericida. O titânio é em geral colorido para facilitar a identificação/codificação de peças.
É muito usado em implantes médicos e dentistas devido à biocompatibilidade e na indústria
aeroespacial por sua leveza, dureza e resistência galvânica. http://www.valhallaarms.com/
wyvern/titanium/- consultado em 12 de maio de 2010, às 16h16

7 “O conceito do Software Público Brasileiro - SPB é utilizado como um dos


alicerces para definir a política de uso e desenvolvimento de software pelo setor público no
Brasil. Tal política compreende a relação entre os entes públicos, em todas as unidades da
federação e demais esferas de poder, e destes com as empresas e a sociedade.“ http://www.
softwarepublico.gov.br/O_que_e_o_SPB - consultado em 22/09/2009 às 08h57.

223
ART

A contribuição da disciplina materiais em artes: pesquisa e


aplicação
Thérèse Hofmann Gatti1 e Daniela de Oliveira2

Resumo: O objetivo deste artigo é compartilhar o resultado das


pesquisas realizadas pelos alunos da disciplina Materiais e Artes I que
integra o currículo dos cursos de licenciatura em Artes Plásticas, Artes
Cênicas, Música e Desenho Industrial do Instituto de Artes da Universidade
de Brasília. No âmbito da atividade Seminário de Pesquisa - atividade de
conclusão da disciplina nos semestres 1º/2010, 2º/2010 e 1º/2011 – os
alunos foram incentivados a identificar as possibilidades de aproximar
a manufatura dos materiais artísticos da sua própria realidade cultural.
A prática do Seminário de Pesquisa envolveu 150 alunos, resultando
em processos de investigação individuais e em grupo, dos quais 36 são
apresentados, de forma resumida, neste artigo.
Palavras-Chaves: materiais em arte, manufatura artesanal, ensino e
pesquisa

A disciplina

A disciplina Materiais em Artes I é oferecida pelo Departamento de Artes


Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília e integra o currículo
dos cursos de licenciatura em Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e
Desenho Industrial desde a década de 1980. Em 1991 a disciplina passa a
ser ministrada pela professora Thérèse Hofmann Gatti, que também assume
a coordenação do Laboratório de Materiais Expressivos (LEME). Com uma
ementa que prioriza o estudo das técnicas tradicionais, a iniciação da
produção e a análise dos materiais que possibilitam o desenvolvimento
da capacidade de expressão e suas aplicabilidades na arte, a disciplina,
em 2007, teve seu conteúdo compilado e sistematizado, resultando no
livro Materiais em Artes: Manufatura Artesanal (HOFMANN-GATTI et al,
2007). A partir do 1º semestre de 2010, o programa da disciplina passa a
incorporar a prática do “Seminário de Pesquisa” - atividade que estimula
o aluno a pesquisar sobre componentes ou processos alternativos para
manufatura artesanal dos materiais em artes abordados na disciplina.
Tal atividade chama atenção para a necessidade de estimular os alunos e
futuros professores para busca de materiais próximos à realidade cultural
e regional das unidades de ensino, no processo de manufatura e utilização
dos materiais em artes: papel, bastões, tintas e pincéis.
A justificativa para o processo de investigação pauta-se na necessidade
de facilitar o acesso dos alunos e professores da rede pública de ensino
aos materiais de arte: seja pelo baixo custo, pela facilidade de manufatura,
pela disponibilidade da matéria-prima, ou ainda pela oportunidade de
integrar conteúdos de outras áreas do conhecimento, com destaque para
a área de ciências naturais. Neste contexto o processo de investigação dos

224
ART
três últimos semestres priorizou a busca de matérias-primas alternativas
para manufatura de suportes (papel), pigmentos, corantes naturais e
componentes aglutinantes das tintas e bastões.
Com duas turmas ofertadas a cada semestre, a prática do Seminário de
Pesquisa envolveu 150 alunos, resultando em processos de investigação
individuais e em grupo sob a orientação das professoras Thérèse Hofmann
e Daniela de Oliveira.
Este artigo apresenta de forma resumida 36 trabalhos que se destacaram
pela inovação, facilidade de manufatura, possibilidade de replicabilidade
e instrumento de aprendizagem das etapas e processos da manufatura
artesanal de materiais em artes.

Pesquisa e aplicação
Os trabalhos aqui apresentados priorizaram a investigação de matérias–
primas alternativas para manufatura de SUPORTES (papel), PIGMENTOS,
CORANTES NATURAIS e COMPONENTES AGLUTINANTES das tintas e
bastões.

Suportes

O tema suportes é o conteúdo introdutório da disciplina e destaca os


diferentes tipos de suportes utilizados pela humanidade ao longo dos
tempos. Dentre eles, o papel e sua manufatura artesanal - seja por meio do
reaproveitamento de fibras celulósicas secundárias (aparas pós-consumo),
seja pela utilização de fibras vegetais - encontra no LEME suporte técnico
e infra-estrutura adequados para sua prática e experimentação em função
do histórico de pesquisas e projetos desenvolvidos na área de reciclagem
de papel incluindo as patentes PI nº 9605508-1: Reciclagem de Papel-
Moeda com utilização de anti-resistência a úmido e PI nº 0305004-1:
Reaproveitamento das Fibras de Acetato de Celulose - Bitucas de Cigarro
(HOFMANN-GATTI, 2007) e as atividades de extensão, com destaque para
implantação de núcleos de produção artesanal de papel em Tremembé
(SP), Tabatinga (DF) e Brazlândia (DF).
Os trabalhos envolvendo o tema SUPORTE abordaram: (i) a utilização
de materiais alternativos, (ii) diferenciação e/ou inovação no processo de
manufatura – do ponto de vista técnico e/ou pedagógico, e (iii) inovação
no processo de aplicação. Dez trabalhos merecem destaque: quatro
investigaram fibras alternativas para manufatura artesanal de papel, outros
quatro investigaram, respectivamente: processos de impermeabilização
e de suportes para fins artísticos (dois trabalhos); utilização de fibras
celulósicas (vegetais e aparas pós-consumo) em conjunto com argila para
modelagem ou suporte; e manufatura artesanal de papel sob o aspecto
pegagógico-ambiental, buscando identificar a disponibilidade de resíduos
celulósicos na região da comunidade escolar e adequando o processo a
disponibilidade de infra-estrutura local.
Somam-se a estes mais dois trabalhos que ainda investigaram
espessantes alternativos para técnica de marmorização.
225
ART

Quadro1. Lista de trabalhos com a temática Suporte


Aluno Semestre Tema da pesquisa

Utilização de cola branca, gelatina, água


Ana Paula Vasconcellos
1º/2011 de trigo e gel de cabelo como espessante
Moreira
para marmorização

Ciro Naum Rockert dos Utilização da Babosa para manufatura


1º/2011
Santos artesanal de papel

Aplicação dos matérias em artes no


ambiente escolar: papel artesanal
Fellipe Souza 1º/2011 (aparas pós-consumo, fibras, tingimento
e branqueamento), giz de cera e tempera
ovo

Utilização de polvilho como espessante


Iara Lagos Unganelli 2º/2010
para marmorização

Manufatura de papel a partir da raiz e da


João Tadeu Maia Junior 1º/2011
palha do milho

Rafhael de Arruda Sessa 1º/2010 Preparação do suporte para aquarelas

Utilização das folhas e caules da


Sandra Lucia Rodrigues
1º/2011 mamona para fabricação artesanal de
da Rocha
papel
Comparação da utilização de aparas de
papel pós-consumo e fibras de bananeira
Talitha Monfort pires 1º/2011
na manufatura de argila de papel
(paperclay)

Aplicação do papel artesanal de


Valdinei Bezerra 1º/2010 bananeira, casca de eucalipto e sisal para
gravura
Impermeabilização do suportes para
Vinicius Peruza 1º/2011
tinta óleo

Um dos trabalhos da disciplina resultou no projeto de pesquisa que


investigou a aplicabilidade de três tipos de papéis manufaturados a partir
da fibra de BANANEIRA (Musa sp) para gravura. As amostras de papel
de bananeira pura, bananeira branqueada e bananeira com adição de
carboximetilcelulose (CMC) foram submetidas a dois métodos de impressão
com matriz de xilogravura de umburana (Amburana cearensis): impressão
mecânica com prensa de rosca vertical e impressão manual com colher
(BEZERRA et al, 2011).

226
ART
Pigmentos e Corantes

Os trabalhos que envolveram os temas PIGMENTOS ou CORANTES


abordaram a utilização de pigmentos naturais (minerais, vegetais e animais)
e o re-aproveitamento de pigmentos na manufatura artesanal de tintas.
Seis trabalhos investigaram a utilização de componentes vegetais para
extração de pigmentos e corantes (beterraba, jenipapo, sementes de goiaba,
sementes de laranja, café, urucum e açafrão), dois o reaproveitamento de
materiais: sobras de maquiagem e cargas de canetas hidrográficas; e um a
utilização da casca do ovo (natural, pré-torrada e torrada) como pigmento.
Dois trabalhos investigaram a utilização de resíduos para manufatura de
carvão: (i) resíduos de poda de espécies arbóreas do campus Universtário
Darcy Ribeiro (PAU FERRO – Caesalpinea ferrea, JAQUEIRA - Artocarpus
heterophyllus, PAJEU – Triplaris brasiliana, PATA DE VACA - Bauhinia variegata
e o ABACATEIRO – Persea americana) e,
(ii) o reaproveitamento de cabos de vassoura para fabricação de carvão.
Destacamos também o trabalho sobre o reaproveitamento da carga de
canetas hidrográficas.
Quadro2. Lista de trabalhos com a temática Pigmentos e Corantes
Aluno Semestre Tema da pesquisa
Utilização de sementes de goiaba para
Carolina Elizabeth Sayuri
1º/2011 produção de pigmento utilizado na
da Rocha Maia
manufatura de nanquim

Danielle Monteiro Correa Reaproveitamento de canetas


1º/2011
Amorim hidrográficas
Evaldo Werbete Lima e
1º/2010 Pigmentos naturais para aquarela
Aline Arruda
Utilização do pó de serragem e lascas
Ingrid Orlandi Meira 2º/2010 do falso Pau Brasil como pigmento
para aquarela

Espécies arbóreas Pau Ferro, Jaqueira,


Lana Rodrigues Aguiar 1º/2011 Pajeú, Pata de Vaca e Abacateiro para
fabricação de lápis carvão

Utilização do “Crocin” presente na


Leonor M Câmara 1º/2011 cúrcuma e açafrão na manufatura de
tintas

Utilização de temperos e sobras de


Mariana Brites 1º/2011 maquiagem na manufatura de giz de
cera

227
ART

Utilização de temperos de cozinha


Naira Johansson Carneiro como pigmento substituto do pó
1º/2011
Larrea xadrez para a realização de giz pastel
e têmpera ovo

Utilização de sementes de laranja


Túlio César dos Santos
1º/2011 como pigmento para manufatura de
Mendes
nanquim

Utilização da casca de ovo (natural,


Luisa Malheiros 1º/2011
pré-torrada e torrada) como pigmentos

Reaproveitamento de cabos de
Marina Suassuna 1º/2011
vassoura na fabricação de carvão

A reflexão a cerca da utilização de pigmentos naturais no âmbito da


disciplina Materiais em Artes resultou no projeto de pesquisa PIBIC/CNPq/
UnB – Pigmentos Naturais: Durabilidade e permanência no contexto
regional, desenvolvido em dois trabalhos pelas alunas Kenya Cristina
Ricarte e Fernanda Gois, sob a orientação da professora Thérèse Hofmann.
A abordagem da aluna Kenya Ricarte investigou a utilização de solos do
cerrado (região da APA da Cafuringa) para manufatura artesanal de tintas.
O trabalho apresentado pela aluna Kenya Cristina Ricarte no 16º Congresso
de Iniciação Científica da UnB recebeu o prêmio de melhor pôster da sessão
(RICARTE et all, 2010).

Componentes aglutinantes

Os trabalhos que envolveram o tema AGLUTINANTE identificaram


aglutinantes alternativos para manufatura de bastões (em especial o pastel)
e tintas. O processo de investigação teve como motivação a facilidade de
acesso, o contexto regional ou econômico e a similaridade de características
das substâncias aglutinantes com os componentes investigados.
O conteúdo da disciplina Materiais em Artes I compartilha o processo
de manufatura das tintas e bastões com aglutinantes de uso comum dos
antigos artistas, aglutinantes alternativos, como o CMC, a gelatina, o gumex,
a cerveja choca e a água de aveia, como destacam, GARCIA(1999), MAYER
(2002), HOFMANN-GATTI et al (2007), KRUG (2008), SMITH (2008), SIDAWAY
(2008), MICHEL (2009) e GOUTTRY (2010).
Considerando que os aglutinantes de tintas e bastões podem estar mais
próximos do que imaginamos, seis trabalhos investigaram aglutinantes
alternativos para manufatura artesanal de giz pastel. Podemos dividir tais
aglutinantes em mucilagem alimentícias (Chá de canela – Cinnamomum sp ,
babosa – Aloe vera , gelatina, água de trigo, soja fermentada - NATTÔ e baba
de quiabo) e em exsudados vegetais de espécies arbóreas (Flamboyant).
Três trabalhos investigaram aglutinantes alternativos para manufatura
artesanal de tinta guache e aquarela, com destaque para os exsudados
vegetais das espécies arbóreas Barbatimão (Stryphnodebdron adstringens),
228
ART
AROEIRA SALSA (Schinus molle), Flamboyant (Delonix regia) e CAJU DO
CERRADO (Anacardium sp), sendo que um aluno investigou a utilização
da resina do Jatobá (Hymenaea courbaril) em diluição em com acetona
(CH3(CO)CH3) como verniz.
Cinco trabalhos investigaram a viabilidade da utilização de óleos
alternativos ao óleo de linhaça na manufatura artesanal de tinta óleo: os
óleos de mamona, carnaúba, palma, azeite, girassol, castanha-do-pará
e pequi, mesmo sendo esses classificados como óleos semi-secativos e
não-secativos, devido a baixa predominância de ácidos graxos do tipo
linolênico. Desta forma as investigações realizadas consideram a aplicação
pedagógica dos diferentes tipos de óleos: facilidade de homogenização da
solução aglutinante e pigmento, aplicabilidade e tempo de secagem.
Os trabalhos de conclusão da disciplina foram determinantes na
continuidade da pesquisa realizada pelas alunas Pamella Otanásio e Eva
Botar (1/2010) no âmbito do LEME. A primeira analisou a consistência
(maciez), resistência, uniformidade do traço e fixação de bastões
manufaturados com chá de CANELA, BABOSA e CERVEJA choca,
confeccionando cerca de 65 pastéis, 15 para cada tipo de aglutinante,
sendo o aglutinante carboximetilcelulose (CMC) utilizado como amostra
controle, em razão deste material ser usualmente indicado para substituir o
aglutinante original da técnica – a goma adragante (OTANÁSIO et al, 2010).
A continuidade da pesquisa realizada pela aluna Eva Botar resultou nas
análises de aplicação, aderência, cobertura e durabilidade de tinta guache
manufaturada com os componentes aglutinantes: BARBATIMÃO, AROEIRA
SALSA, GOMA ARÁBICA e DEXTRINA INDUSTRIAL (BOTAR et al, 2011).
De forma complementar aos trabalhos dos alunos, os professores da
disciplina Materiais em Artes em parceria com o professor Lacê Breyer,
do Departamento de Botânica, investigam as propriedades aglutinantes
de 5 espécies arbóreas do cerrado: GOMEIRA (Vochysia thyrsoidea), CAJA-
MANGA (Spondias dulcis), PAU FORMIGA (Triplaris americana) e ANGICO
(Anadenathera falcata) e TAMBORIL (Enterolobium contortisiliquum)
(HOFMANN_GATTI, 2011).
Quadro3. Lista de trabalhos com a temática Aglutinantes
Aluno Semestre Tema da pesquisa
Utilização do óleo de girassol na
Ana Flávia do Valle Silvestre 1º/2011
manufaturada da tinta óleo
Utilização do óleo de castanha-do-
Barbara de Souza Araujo 1º/2011
pará na manufatura da tinta óleo
Utilização do Palmiste (óleo de
Camila Lopes Marques 1º/2011 palma) e azeite na manufatura de
tinta óleo
Utilização de água de trigo e soja
Camila Sugai Mortoza
1º/2011 fermentada (nattô) na manufatura
Macedo
do giz pastel

229
ART

Utilização do exsudado de
Daniela Mariano da Silva
1º/2011 flamboyant na manufatura de giz
Tonaco
pastel

Utilização do exsudado do Cajueiro


Érica Barros Cavalcante 1º/2011
na manufatura de tinta aquarela
Utilização do exsudado do
Eva Botar 1º/2010 Barbatimão e Aroeira Salsa na
manufatura de tinta guache

Utilização do óleo de carnaúba e


Ivan Henrique Souza e
1º/2010 mamona na manufaturada da tinta
Marisa Mendonça
óleo

Utilização de gelatina comestível na


Juliana Lovato 1º/2011
manufatura do giz pastel

Utilização do óleo de Pequi na


Maisa Rabelo Vieira 2º/2010
manufatura da tinta óleo

Utilização do exsudado de
Niele Fernades Pires 1º/2011 flamboyant na manufatura de
aquarela

Utilização do Chá de canela como


Pamela Nunes Otanásio 1º/2010 aglutinante na manufatura do giz
pastel

Utilização da resina de jatobá como


Pedro Faria Lopes 1º/2011
verniz e fixador

Utilização da baba do quiabo na


Rafael Benjamin da silva 1º/2011
manufatura do giz pastel

Utilização da babosa como


Ricardo Maruo de Matos
2º/2010 aglutinante na manufatura do giz
Ribeiro
pastel

Considerações finais
Os resultados do processo de investigação para elaboração e apresentação do
trabalho final de conclusão da disciplina Materiais em Artes I apontam benefícios
pedagógicos e técnicos- científicos.
Do ponto de vista pedagógico o seminário de pesquisa contribui para reforçar
os conceitos e as funções dos diferentes materiais utilizados na produção artesanal,
além de fixar as etapas do processo de manufatura das técnicas. Temos como
exemplo a diferenciação conceitual e prática entre pigmentos e corantes, gomas
e resinas, aglutinantes. A busca por pigmentos e aglutinantes alternativos, aliada a
execução prática de uma tinta ou bastão tem se mostrado uma ferramenta auxiliar
no entendimento de conceitos e processos.
230
ART
Sob o olhar técnico-científico a atividade de pesquisa introduz os alunos
da disciplina ao universo da investigação científica, incentivando a busca por
respostas por meio da experimentação prática. Vale ressaltar que a grande
maioria dos alunos matriculados na disciplina ainda ainda estão no 2º semestre
da grade curricular do curso de licenciatura em artes plásticas.
Embora alguns trabalhos não apresentem inovações do ponto de vista
da matéria-prima a ser utilizada ou do processo de manufatura, a experiência
em realizar mesmo processos já comumente conhecidos tem pelo menos
duas finalidades: resgatar o conhecimento e história da produção artesanal
dos materiais e propor adaptações que as tornem factíveis e aplicáveis no
ambiente de sala de aula – considerando, sempre, as limitações de cada ciclo a
ser trabalhado.

Referências Bibliográficas

BEZERRA, Valdinei, HOFMANN-GATTI, Thérèse e OLIVEIRA, Daniela de. Utilização da fibra de


bananeira para manufatura artesanal de papel para xilogravura. Painel submetido ao XXI
CONFAEB, 2011.

BOTAR, Eva, HOFMANN-GATTI, Thérèse e OLIVEIRA, Daniela de. Aglutinantes Naturais para
Tinta Guache. Painel submetido ao XXI CONFAEB, 2011.

GARCIA, Pierre. Le métier du peintre. Dessain et Tolra, France, 1999.

GOUTRY, Bruno. Peintures et enduits bio: conseils, recettes de fabrication et mise em


oeuvre. Terra Vivante, France, 2010.

HOFMANN-GATTI, Thérèse, CASTRO, Rosana e OLIVEIRA, Daniela de. Materiais Em Arte:


Manual de Manufatura e Prática. Brasília, 2007.

HOFMANN-GATTI, Thérèse. A História do Papel Artesanal no Brasil. ABTCP, São Paulo, 2007.

HOFMANN-GATTI, Thérèse, OLIVEIRA, Daniela de, e BREYER, Lacê. Utilização de exsudados


vegetais do bioma cerrado como componentes aglutinantes para tintas e bastões.
Comunicação de Pesquisa submetida ao XXI CONFAEB, 2011.

KRUG, Margaret. Manual para el Artista: médios y técnicas. Art Blume, Barcelona, 2008.

MAYER, Ralph. Manual do Artista: de técnicas e materiais. Martins Fontes, São Paulo, 2002.

MICHEL, Karen. Green Guide For Artists: nontoxic recipes, green art ideas e resources for
the eco-conscious artist. Ed. Quarry Books, USA, 2009.

OTANÁSIO, Pamella Nunes, HOFMANN -GATTI, Thérèse e OLIVEIRA, Daniela de. Utilização de
materiais alternativos como componentes aglutinantes para confecção de giz pastel.
Painel submetido ao XXI CONFAEB, 2011.

RICARTE, Kenya Cristina T, HOFMANN -GATTI, Thérèse e GOIS, Fernanda Monteiro. Pigmentos
Naturais: Durabilidade e permanência no contexto regional. Relatório Projeto de Pesquisa
PIBIC/CNPq/UnB. Brasília, 2010.

SIDAWAY, Ian. Enciclopedia de Materiales y Técnicas de Arte. Ed. ACANTO, Barcelona, 2002.

SMITH, Ray. Manual Prático do Artista: Equipamento, materiais, procedimentos e técnicas.


Ambientes & Costumes, São Paulo, 2008.
231
ART


1 Doutora em Desenvolvimento Sustentável, Mestre em Arte e Tecnologia e Profª
Adjunta do Departamento de Artes Visuais - Universidade de Brasília - therese@unb.br – (61)
9976 7709

2 Mestranda em Desenvolvimento sustentável – Professora da SEDF cedida -


Universidade de Brasília – daniela@unb.br – (61) 9970 5914

232
ART
Design, arte e tecnologia: princípios e as novas mídias
Virgínia Tiradentes Souto1 e Rogério Camara2

Resumo: A cada dia as pessoas interagem com novos objetos e mídias


digitais. O toque na tela do celular, jogos eletrônicos, ou mesmo novas
formas de visualização e interação da informação através da web, podem
trazer uma nova dimensão de espaço e de percepção dos objetos e do
meio. O artigo tem como objetivo discutir as implicações das novas mídias
no campo da arte e do design. É mencionado alguns desafios dos artistas
e designers no desenvolvimento de projetos das novas mídias. Além disso,
é mostrado alguns modelos e princípios relacionados às mídias digitais e
suas aplicações em projetos de mídias digitais. Também é discutido como
os aparelhos móveis touchscreen potencializaram a possibilidade de acessar
informações em qualquer instância.
Palavras-chaves: novas mídias, mídias digitais, arte, design, princípios
Abstract: Everyday people interact with new objects and digital media.
Touching the screen of a mobile device, online games and new forms of
visualization and web interaction can create new space dimensions and also
new ways of perceiving the objects and its surroundings. The article aims
to discuss the implications of the new media in the fields of art and design. It
mentions the artists and designers challenges in designing new media projects.
It also shows some models and principles related to digital media projects and
their applications. Furthermore, it also discusses how touch screen mobile
devices made it easier to access information everywhere.
keywords: new media, digital media, art, design, principles
A cada dia as pessoas interagem com novas mídias. O toque na tela do
celular, a interação e a possibilidade de criação de interfaces nas instalações
em museus, jogos eletrônicos, ou mesmo novas formas de visualização e
interação da informação através da web, podem trazer uma nova dimensão
de espaço e de percepção dos objetos e do meio.
Manovich, em seu livro: “The language of new media” (2002), define
as novas mídias como sendo a tradução de todas as mídias existentes
em dados numéricos acessíveis por computadores. De acordo com ele, a
lógica cultural tradicional pode ser significativamente influenciada pela
lógica do computador uma vez que “as novas mídias são criadas nos
computadores, distribuídas via computadores, armazenadas e arquivadas
nos computadores”.
O termo novas mídias aqui se refere as mídias digitais. Mídias digitais são
numéricas, usam códigos binários. As novas mídias assim se contrapõem
com as “velhas” mídias, as mídias analógicas. As mídias analógicas tendem
a ser fixas, existem como objetos físicos, e perdem a qualidade quando
são copiadas; por outro lado as digitais tendem a ser dinâmicas, são
armazenadas na memória do computador, e podem ser replicadas sem
perda de qualidade (Austin & Doust, 2007; Lister et al., 2009).
As diferenças entre essas mídias tem grande implicação em várias
233
ART

áreas de conhecimento, e na vida das pessoas. A mudança do analógico


para o digital ocorreu em todo o processo de produção e uso da mídia,
por exemplo no acesso a mídia, no seu armazenamento, na sua forma e na
sua manipulação. As novas mídias foram “desmaterializadas” e isso trouxe
como consequências, uma manipulação mais fácil, um acesso muito veloz
e de forma não linear, e a compactação em pequenos lugares, entre outras
(Lister et al., 2009).
O objetivo desse artigo é discutir as implicações das novas mídias no
campo da arte e do design. Primeiro, é conceituado as novas mídias nos
campos da arte e do design e brevemente é discutido os desafios dos artistas
e designers. Depois, é mostrado alguns modelos e princípios relacionados
às mídias digitais e suas aplicações em projetos de mídias digitais. Também
é discutido como os aparelhos móveis touchscreen potencializaram a
possibilidade de acessar informações em qualquer instância e articulá-las
em contextos específicos e, mesmo, permitiram repensar a forma como
usamos computadores. Por fim, são feitas algumas reflexões sobre as
implicações das novas mídias no campo da arte e do design.

Arte e design nas novas mídias

Os mundos do design, filme, musica, teatro, arte, fotografia, e


arquitetura 
eram considerados como distintas e separadas formas de
comunicação ou mídia 
até que o computador permitiu vendê-las como
uma. (AUSTIN & DOUST, 2007, p. 14)
Essa frase, de Austin & Doust, no livro “New media Design” (2007)
sintetiza a idéia da transformação causada pelas novas mídias. As novas
mídias permitem muito mais do que o encontro das várias áreas num
único meio, elas permitem uma grande integração e sobreposição de
conhecimentos criando novas formas de interação entre os usuários e os
objetos.
Sob o ponto de vista da arte, os projetos de arte em novas mídias
são projetos que fazem uso dessas mídias e são interessados nas suas
possibilidades culturais, políticas e estéticas (Tribe & Jana, 2006). De acordo
com Tribe & Jana (2006) a arte em novas mídias está entre o campo da
“arte e tecnologia” e a “arte mídia”. A primeira envolve tecnologias que
não são necessariamente relacionadas com mídias (ex. arte eletrônica e
arte robótica) e a segunda envolve formas de arte em mídias que não são
consideradas novas (ex. vídeo arte e filme experimental).
Sob o ponto de vista do design, os projetos em novas mídias requerem
que os designers tenham entendimento da audiência, da tecnologia, e
saibam comunicar de forma “cativante”. Eles também devem considerar,
entre outros fatores, que as pessoas podem ficar ansiosas ao navegar em
networks desconhecidos (Austin & Doust, 2007).
A influência das novas mídias na arte e/ou no design tem sido objeto de
reflexão por muitos estudiosos (ex. Plaza e Tavares, 1998; Giannetti, 2002;
Edmonds et al., 2006; e Rush, 2006). Plaza e Tavares (1998) afirmam que os
novos meios tecnológicos provocam “uma influência de difícil avaliação
234
ART
sobre as formas culturais tradicionais”. De acordo com eles, as novas mídias
“renovam a criação audiovisual, reformulam a nossa visão de mundo, criam
novas formas de imaginários e discursos icônicos, ao mesmo tempo que
recodificam as imagens dos períodos anteriores.”
Rush (2006), afirma tecnologia digital torna a imagem “infinitamente
maleável”. Ele afirma que ainda precisa ser desenvolvida uma linguagem
estética e crítica para a nova realidade digital. Sobre novos paradigmas em
mídias digitais, Giannetti (2002) argumenta que na arte digital as teorias
devem refletir o processo, o sistema e o contexto contrapondo a teoria
estética centrada no objeto de arte. Ela também menciona a interconexão
das disciplinas e a necessidade de redefinir os papéis do autor e do
observador.
Pesquisadores também tem escrito sobre as características da nova
mídia. Lister et. al. (2009) e Lugmayr (2010) descrevem as características
das novas mídias de uma forma similar. Lister et. Al. (2009) aponta cinco
características principais: digital, interativa (i.e. possibilidade de manipular
e intervir na mídia), hipertextual (i.e. unidade de material que carrega um
número de caminhos para outras unidades), dispersiva (i.e. produto que
muda o relacionamento do autor e do consumidor) e virtual. Já Lugmayr
(2010) fala em seis características das novas mídias: digital, interativa,
hipertextual, virtual, networked, e simulada. Lugmayr (2010) argumenta
que cada mídia consiste de três componentes principais: tecnologia
(i.e. ferramentas métodos, e técnicas que são necessárias para criar a
mídia), forma (i.e. aparência e estética dos componentes) e conteúdo (i.e.
informação ou mensagem expressa).
Uma das mais importantes características das novas mídias é o fato
de poderem ser hipertextuais (Austin & Doust 2007; Lister et. al. 2009).
Os hipertextos ou hiperlinks permitem uma acesso não linear a obra. O
usuário pode acessar o produto de vários modos. Dessa forma, os artistas
e designers perdem o controle de como o usuário irá acessar o produto.
Apesar do autor do produto não ter total controle da ordem que o usuário
irá utilizar o mesmo, eles podem controlar as possibilidades de navegação
na interface, como por exemplo, podem colocar links somente onde for
desejado. Desta forma, os autores controlam e manipulam a navegação do
usuário.
Outra característica importante é a “dinâmica” dos projetos de mídias
digitais. Essa característica diz respeito ao fato que de os projetos de novas
mídias não são nunca concluídos, eles podem ser atualizados, expandidos,
modificados (Austin & Doust, 2007). Essa característica traz para ambos
os artistas e designers um novo desafio. Eles podem perder o controle do
resultado final. Isso faz com que os artistas e os designers tenham uma
nova relação com o produto, desde a concepção até a criação do mesmo.
Os usuários também podem interferir na obra, participando e modificando
a finalização da mesma. Eles também tem uma nova relação estabelecida
com o produto uma fez que eles podem ser, de certa forma, co-autores do
mesmo.
As novas mídias digitais tem características próprias, como por exemplo,
235
ART

o hipertexto citado acima. Essa e outras características, tem uma implicação


direta no design de novas mídias. Pelas especificidades, vantagens e
limitações da novas mídias, modelos e princípios são necessários para
auxiliar os artistas e designers na criação dessas mídias.

Modelos e princípios das novas mídias

Modelos e princípios das novas mídias vem sendo propostos por


estudiosos na área (Manovich, 2002; Edmonds et al., 2006; Martinec e
Leeuwen, 2009). Alguns tem um caráter mais genérico, outros são aplicados
a mídias específicas (ex. websites). Esses modelos e princípios vem auxiliar
os artistas e designers no desenvolvimento de projetos de novas mídias. O
uso de tais modelos e princípios podem ajudar os autores a desenvolver
projetos mais adequados as características das mídias e também auxiliar
os autores a tirar maior proveito das possibilidades das tecnologias de
tais mídias, fazendo melhor uso de suas vantagens e considerando suas
limitações. Os princípios descritos por Manovich (2002), e os modelos
criados por Edmonds et al. (2006) são sumarizados abaixo para ilustrar
a relevância de tais modelos e princípios. Além disso, a possibilidade de
aplicação desses modelos e princípios em projetos de mídias digitais é
discutida.
Lev Manovich, no seu livro The Language of New Media (2002), descreve
cinco princípios da nova mídia:

• representação númerica (todos os objetos da nova mídias são


compostos por código digital);

• modularidade (estrutura fractal da nova mídia, um objeto da nova


mídia tem a mesma estrutura modular no todo);

• automação (na criação, manipulação e acesso – “o homem pode, pelo


menos em parte, ser retirado do processo de criação”);

• variabilidade (variável, mutável, líquido – um produto da nova mídia


pode ter muitas versões diferentes);

• transcodificação (traduzir algo para outro formato - categorias


e conceitos culturais são substituídos por outros derivados pelo
computador).
O conhecimento desses princípios descritos por Manovich (2002) pode
auxiliar o artista e o designer na concepção de um objeto de mídias digital.
Por exemplo, o princípio da variabilidade é um princípio chave tanto para
artistas quanto para os designers. A possibilidade de se criar infinitas
versões de um mesmo objeto permite que o autor crie uma gama de
opções de representação do produto final.
Outro princípio fundamental a ser considerado em projetos de mídias
digitais é o da automação. A possibilidade de que o processo de possa ser
236
ART
automatizado tem implicações na autoria do produto. O computador passa
a ser também o autor do produto não só pelo seu uso como ferramenta
de produção, mas também pelo fato de que ele pode ser utilizado para
fazer parte da concepção/criação do produto. Esse princípio também tem
uma forte implicação na estética do produto: uma estética feita através do
computador e pelo computador.
Como descrito, esses princípios descritos por Manovich (2002) referem-
se a linguagem das novas mídias em geral. Já Edmonds et al. (2006) criaram
um modelo com o foco no design de sistemas de arte interativos para locais
públicos, denominado “engajamento criativo”. Eles afirmam que hoje uma
das principais características da arte é a interação entre os sistemas de arte
e as pessoas.
De acordo com Edmonds et al. (2006), as questões de engajamento
dos usuários ainda não é bem entendida pelos designers desses sistemas.
O modelo proposto é dividido em três atributos: attractors, sustainers
e relaters. Attractors são coisas que tem como objetivo fazer o público
perceber o sistema; sustainers refere a atributos que mantém o público
engajado no primeiro encontro; e relaters refere-se a aspectos que fazem
com que audiência retorne para ver o trabalho em ocasiões futuras.
Edmonds et al. argumentam que os attractors são importantes para chamar
a atenção do público, uma vez que em lugares públicos cheios, como um
bar ou um museu, existem muitas distrações e pontos de interesse. Depois
que os attractors ganharam a atenção é importante que os sustainers façam
com que o público permaneça por um tempo interessado no trabalho,
e finalmente os relaters tem a função de manter o usuário interessado
(“quente”) nas visitas repetidas da exibição.
Apesar desse modelo ter sido concebido para utilização em projetos
de mídias digitais em museus, ele tem um escopo mais amplo e pode
facilmente ser aplicado em outros projetos. Todos três atributos são muito
relevantes de serem considerados em um website, por exemplo. Numa
situação do usuário estar num portal com muitos links, os attractors servirão
para que o usuário preste atenção no link do produto, depois é importante
que hajam atributos, os sustainers, que façam com que o usuário mantenha
atenção naquele produto; e por fim é desejável que o usuário volte ao site
em questão e portanto os relaters são importantes para que isso aconteça.
Dessa forma percebe-se uma relação entre diferentes projetos de novas
mídias uma vez que as características e princípios das novas mídias são
similares. Os modelos tem normalmente um caráter mais específico sendo
criado com um foco em questão. Entretanto, eles podem ser aplicados a
outras interfaces desde que avaliadas as possibilidades e limitações da
interface.

Os tablets: uma análise

Conhecemos a popularização das telas touch através dos aparelhos móveis


que tomaram o mercado empurrados pelos lançamentos do Iphone e, à seguir,
do Ipad. Os smartphones já vinham integrando cada vez mais o cotidiano das
237
ART

pessoas na medida em que permitem o acesso de todo tipo de informação


compartilhada, mas com caráter de portabilidade e de objetos pessoais. Os
aparelhos móveis touchscreen, no entanto, definem novos procedimentos e
dinâmicas de interação, formas de produção e construção de interfaces. Eles
permitem uma experiência intuitiva e otimizada das ações com respostas
rápidas. A relação que estabelecemos com o aparelho é muito mais orgânica,
executamos tarefas complexas com gestos e toques rápidos graças ao
multitouch.
O touchscreen muda a lógica com que lidamos com os computadores.
Elimina o mouse e o teclado físicos, altera o sistema de arquivamento por pastas
e tendem adotar o sistema de nuvens, transformando-se num dispositivo
em rede do qual podemos acessar toda natureza de informação de qualquer
lugar. Quando o Ipad foi lançado falava-se na criação de um novo paradigma
de computação que colocaria fim a um modelo de interface, pré-internet, que
tem origem nos anos 70 e popularizada com os computadores pessoais a partir
dos anos 80. Segundo estas analises este modelo de interface estaria atrelado à
máquinas muito mais lentas e desconectadas.
Os tablets ganharam dimensão suficiente para potencializar uma
experiência muito mais íntima, envolvente e rápida caracterizando-se
fortemente com um dispositivo pessoal e lúdico, enquanto os computadores
laptop não seriam tão próximos e teriam um caráter de dispositivo de trabalho.
Steven Johnson, em artigo para a revista Wired (2010), considera os tablets
como um ponto final e não um começo de uma nova era. Para ele os tablets
comparecem como o estágio final de uma era de inovação textual depois de
30 anos de computação e conectividade. Até os anos setenta muitos pregavam
como perspectiva de futuro o domínio da linguagem visual tendo o texto
como elemento periférico. Os anseios por uma sintaxe visual se configuram em
fins do século XIX desembocando em propostas como isotipo, semantografia
e domínios de mídias como a televisiva. No entanto, segundo Johnson, o
computador veio a se apresentar como um dispositivo para se fazer coisas com
palavras. A conectividade favoreceria uma série de inovações textuais. Este
período para Johnson chega ao seu limiar com os tablets que colocam o texto
em causa, com a diminuição paulatina das formas de interagir com o texto.
Este tipo de tecnologia abriria espaço para outros tipos de dados como vídeos,
evocação de espaços virtuais, dados georeferenciados, e outros incrementos.
Os tablets têm favorecido a criação de diversos aplicativos com padrões
estéticos rígidos que permitem integrar toda a navegação. Anuncia-se a
tendência de absorvermos grande parte desta informação digital via aplicativos
e não mais via web. Estas publicações têm se caracterizado por um design
envolvente com apresentação todo tipo de conteúdo — livros, revistas, vídeos
e jogos.

Conclusões

As novas mídias tem mudado como os usuários interagem e percebem


os produtos. Os usuários tem poder sobre a interface de muitos produtos
digitais, podendo criar interfaces únicas e que fogem do controle do
238
ART
autor da mesma. Além disso, os produtos digitais são em grande número
um produto criado em grupo por diferentes áreas do conhecimento.
Dessa forma, um produto digital é em muitos casos um produto feito por
vários autores, sendo que autoria final fica por conta do usuário que pode
personalizar a interface.
Nesse contexto, novos modelos de criação de desenvolvimento de
projetos de mídias digitais são desenvolvidos. Reas, McWilliams and Lust
(2010) afirmam que o significado e o conteúdo dos produtos digitais são
construídos através do software. Daí a importância do conhecimento de
software por artistas e designers que usam as mídias digitais para realizar
seus projetos.
Como falado no tópico dois, as novas mídias permitem um encontro de
várias áreas num único meio. Além disso, permitem uma grande integração
e sobreposição de conhecimentos, criando assim novas formas de interação
entre os usuários e os objetos.
A revolução dos tablets, discutida acima, nos leva a pensar em
interfaces cada vez mais integradas e interligadas com mapas mentais mais
complexos. Nessa perspectiva, é relevante a criação de modelos e princípios
que auxiliem o artista, o designer, e outras áreas de conhecimento, a
desenvolver tais mídias. Muito ainda a ser pesquisado e descoberto na área
de mídias digitais, área em constante crescimento e que amplia cada vez
mais as possibilidades de interação entre os usuários e os objetos.

Referências bibliográficas

AUSTIN, Tricia e DOUST, Richard. New Media Design. Londres: Laurence King Publishers, 2007.

EDMONDS, Ernest, MULLER, Lizzi and CONNELL, Matthew. On Creative Engagement. Em Visual
Communication, 2006 (5): 307.

GIANNETTI, Cláudia. Estética Digital: sintopía del arte, la ciencia y la tecnologia. Barcelona:
Associació de Cultura Contemporània L’Angelot, 2002.

JOHNSON, Steve, The end of an era. Wired Magazine: Abril 2010. Disponível em: http://www.
wired.com/magazine/2010/ 03/ff_tablet_essays/, acessado em 5 de julho de 2010.

LISTER, Martin, DOVEY, Jon, at all. New Media: a Critical Introduction. Routledge, 2009.

LUGMAYR, Artur, Connecting the real world with the digital overlay with smart ambient
media—applyin Peirce’s categories in the context of ambient media. IN: Multimed Tools
Application, Publicado online 4 de dezembro de 2010. Disponível em: http://www.springerlink.
com/content/m67415u07r252p44/ , acessado em 5 de julho de 2010

MANOVICH, Lev. The Language of New Media. MIT Press, 2002.

MARTINEC, Radan e LEEUMEN, Theo van. The Language of New Media Design:

Theory and Practice. London: Routledge. 2009.

PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: poéticas

digitais. São Paulo: Hucitec, 1998.

239
ART

REAS, C., McWilliams, C., LUST. Form + Code in design, art, and architecture. New York:

Princeton Architectural Press, 2010.

RUSH, M. Novas Mídias na Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

TRIBE, Mark; JANA, Reena. New Media Art. Londres: Taschen, 2006.

1 Doutora Virgínia Tiradentes Souto é professora do Departamento de Desenho


Industrial da Universidade de Brasília. Doutora em Typography and Graphic Communication
pela Universidade de Reading, Reino Unido. v.tiradentes@gmail.com, 61 33072890.

2 Doutor Rogério Camara é professor do Departamento de Desenho Industrial da


Universidade de Brasília. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
UFRJ. rogeriocamara@unb.br, 61 33072890.

240
ART
Arte, ecologia e redes.
Considerações a cerca de Fritz Müller
Yara Guasque

Resumo: Arte, ecologia e redes pressupõe uma pesquisa interdisciplinar


relacionada às questões do meio ambiente e à teia de colaborações,
como é o caso de Mar Memorial Dinâmico - sistema embarcado de
sensoriamento. Tratei destas redes, que Bruno Latour chamou de redes de
transformação, mais detalhadamente no artigo a ser apresentado no ISEA
2011 “Colonização e redes de ciência entre as periferias e o centro: o caso
do naturalista Fritz Müller”. Estas redes de colaboração legitimam a coleta
e a experimentação que se dá longe dos centros— na periferia com seus
ecossistemas — como investigação artística, ou conhecimento científico,
a exemplo da correspondência e a troca de espécimes, entre Fritz Müller
(1822-1897) e Charles Darwin (1809-1882).
Palavras-chave: arte; ecologia; redes; interdisciplinar; Mar Memorial
Dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento; Fritz Müller.
Abstract: Art, ecology and networks implies to an interdisciplinary research
that is related to the environment and to the web of collaborations, as is the
case of Dynamic Memorial Sea – embedded system. I focused these networks,
which Bruno Latour called transformation networks, with more details in
the article to be presented at ISEA2011 “Colonization and science networks
between peripheries and the center: the case of the naturalist Fritz Müller”.
These net of collaboration legitimize the collection and the experimentation
which occurs far away from the centers — within the periphery with its
ecosystems — as artistic investigation, scientific knowledge, as the example
of the correspondence and the exchange of specimens between Fritz Müller
(1822-1897) and Charles Darwin (1809-1882).
Keywords: Art; ecology; networks; interdisciplinary; Dynamic Memorial
Sea – embedded system; Fritz Müller.
A trajetória da produção científica de Fritz Müller, um estrangeiro entre
nós, que tem recebido destaque desde as comemorações do centenário
de nascimento de Charles Darwin em 2009, expõe muitos aspectos que
encontraremos em uma produção de arte, ciência e tecnologia. Em 2010
foi aberto o edital REFLORA para catalogação e repatriamento das espécies
nativas brasileiras dos séculos XVIII, XIX e XX depositadas em dois herbários
internacionais. Esta iniciativa fortaleceu e incentivou a criação de redes
de pesquisadores trabalhando com o inventário dos espécimes da flora
de Santa Catarina. Minha intenção era pensar a relação entre a colônia
do Dr. Blumenau e o círculo de cientistas na Alemanha, mapeando a rede
de colaboradores na qual Fritz Müller se inseriu e levantar os espécimes
do jardim de sua casa, considerando seu jardim, o inventário vivo, fruto
de sua correspondência, como proposição artística. Outras instituições
catarinenses como o Inventário Florístico Florestal de Remanescentes
Florestais do Estado de Santa Catarina, IFFSC, pretendem mapear as
espécies depositadas no herbário de Kew na Inglaterra e também atualizar
241
ART

a lista das espécies ameaçadas de extinção. É sabido que dentre as espécies


catalogadas de Kew algumas foram coletadas por Fritz Müller no século XIX.
Das espécies plantadas no jardim de Fritz Müller, fruto de sua investigação e
correspondência com outros cientistas estrangeiros, nada se sabe.
As considerações que formulamos em “Parâmetros para o entendimento
das mídias emergentes e a formação de um público especializado no Brasil”
(Guasque, Guadagnini e Fachinello, 2007) apontavam para as condições
materiais de produção das novas mídias e para o aparelhamento das
instituições que geram conhecimento, responsáveis pelos banco de dados
e divulgação. Estas coincidem com as da produção científica no pais.
Mesmo se hoje temos maior agilidade de comunicação do que na época
de Fritz Müller, quando a media usada era a carta, que era enviada de
barco da colônia `a Europa, podemos ainda destacar da trajetória de Fritz
Müller certos fatores que também incidem na produção de arte, ciência
e tecnologia: a efetividade das redes de colaboração entre a periferia
e o centro, que podemos relacioná-las com as redes de transformação
que possibilitam ao centro a representação dos fenômenos fora de seu
alcance; a institucionalização das redes de ciência no Brasil; a formação
científica que instrumenta conceitualmente o observador; a adaptação
e reformulação do currículo da educação formal para disseminar este
instrumental; as metodologias da produção de conhecimento científico;
a observação do fenômeno in loco; a documentação e a publicação; as
formas de comunicação e interlocução; o domínio da língua estrangeira;
a colaboração e o consenso sobre as questões de autoria. Outros detalhes
são no legado de Fritz Müller mais especificamente relacionados `a vida da
colônia: como a questão na colônia da oposição entre mata e roça.

Rede de colaboradores entre a periferia e o centro de cálculo

O fato de estarmos conectados pelo telégrafo ao continente europeu,


somente a partir de 1874, não impediu que Fritz Müller se correspondesse
com seus colegas internacionais e estabelecesse com eles uma rede de
colaboração. A correspondência por cartas e a troca de espécimes, entre
Fritz Müller e Charles Darwin, caracteriza o que Bruno Latour chamou
de redes de transformação. Fritz Müller pertenceu ao primeiro grupo
de assentamento da colônia do Dr. Blumenau no vale do Itajaí — Alto
do Itajahy. Em suas peregrinações solitárias no litoral e, no planalto,
acompanhado do engenheiro de estradas Dr. Oderbrecht, a serviço do Dr.
Blumenau, encontrou (1852) a natureza quase intocada.

Formação científica e o currículo da educação formal

Como professor do Liceu Provincial de Santa Catarina, em Desterro, de


matemática (1857-1864), entre outras disciplinas que propôs lecionar como
química e física, e alemão, esteve “em contacto ininterrupto com todos os
ramos das ciências naturais e da literatura, e este contacto foi muito mais
estreito que o que poderia manter nos anos posteriores de sua vida” (Ernst
Haeckel, 1980). Paralelamente à docência pesquisou em seu tempo livre na
242
ART
orla de Desterro, atual Florianópolis, as medusas, os briozoários, os pólipos,
e os crustáceos que resultou em seu único livro, Für Darwin.

Institucionalização das redes de ciência no Brasil

Entre 1807 e 1815, na passagem do Brasil colônia ao Brasil imperial, foram


instituídos por D. João VI o Museu Nacional, o Jardim Botânico, a Biblioteca
Nacional, a Academia de Belas Artes, a Imprensa Régia, o Banco do Brasil.
O herbário do Museu Nacional foi fundado em 1831 pelo botânico Ludwig
Riedel, que integrou a expedição científica de von Langsdorff de 1825 a
1829. Entretanto o do Jardim Botânico do Rio de Janeiro só foi formado em
1890 com a doação da coleção de plantas desidratadas que pertencia a D.
Pedro II. O cargo de Naturalista Viajante desempenhado por Fritz Müller no
Museu Nacional do Rio de Janeiro, entre os anos de 1876 a 1891, coincide
com os avanços das instituições criadas no Império em consolidação e a
passagem para uma nova administração do Brasil, já republicano.

Metodologias da produção do conhecimento científico

O que determinou que sua observação se transformasse em


investigação científica? Fritz Müller, o cientista consolidado, tinha “a floresta
como livro predileto” dentre os volumes de sua reduzidíssima biblioteca.
A prática experimental da observação na floresta, dos fenômenos em
sua complexidade, diferia da realizada nos laboratórios das academias. O
jardim, o inventário vivo de sua correspondência com cientistas europeus,
possibilitava o acompanhamento, em diferentes horários e estações do
ano, do giro das hastes das trepadeiras ou do movimento das folhas sob a
chuva, e a transposição mais confortável e ágil destes dados para sua mesa
de trabalho — onde os registrava com índices e formatos mais confiáveis à
ciência.

Formas de interlocução e comunicação

Suas anotações sobreviveram ao ambiente acanhado da então


Desterro e Blumenau, e também se lançaram para além da rede nacional
de pesquisadores que se formava em torno do Museu Nacional, do Rio
de Janeiro, ou do Museu Paulista. A amizade que cultivou com cientistas
europeus, Ernst Krause, Charles Darwin e Ernst Haeckel entre outros,
permitiu-lhe publicar artigos curtos na Kosmos, nas Notícias Entomológicas,
e em outros periódicos zoológicos, como por exemplo na Relações da
Sociedade Botânica Alemã.
Durante seu exílio no Brasil produziu 237 dos 248 artigos que escreveu
em toda sua vida, sendo que muitos — extraídos dos manuscritos
contextualizados com ilustrações detalhadas que compartilhara com seus
correspondentes europeus — foram publicados no exterior como sendo de
autoria dos destinatários de suas cartas. A legitimação e o cunho científico
de seu trabalho dependiam da rede internacional de colaboração, mas,
243
ART

também, da aculturação e formação das instituições brasileiras de pesquisa,


responsáveis pelos círculos científicos que se criavam em seu entorno.

A questão na colônia da oposição entre roça e mata

Entre a floresta, a roça e o jardim há diferentes graus de dominação


da natureza, que diminuem a complexidade das relações e que mostram
o avanço da colonização. O campo, com a derrubada da mata e a clareira
aberta na floresta, servia às necessidades crescentes de segurança e de
comunicação dos habitantes da colônia que se transformava em cidade.
Hoenhe queria homenagear Fritz Müller de maneira singular, atribuindo seu
nome a uma das picadas do Instituto de Botânica, ao invés de lhe dedicar
o nome de uma rua, ou praça urbana, “em que a natureza completamente
banida não mais consegue estabelecer a relação entre o homenageado e
o motivo da homenagem” (Frederico Carlos Hoenhe Apud Fontes; Lopes,
2008).
Fritz Müller viveu entre a então Desterro e a colônia do Dr. Blumenau
no Alto do Itajahy, onde trabalhou a terra como outros colonos de facão.
O abatimento psíquico seja pelo clima ou por falta de estímulo intelectual,
e as precárias condições de anotação de suas observações são expressas
nestas linhas por Fritz Müller: “
Living a full quarter-century in the land of the sloth, one gradually
assumes something of the qualities of that creature, whether as a result of
example or climate, or perhaps chiefly of a lack of intellectual stimulation.
Add to this that I can get access only to the scantiest fragments of the
literature and am therefore falling far behind the rapid onrush of science
and may scarcely dare say anything. In addition, I will hardly be able to
make any progress in a larger coherent project; I shall probably seldom be
at home for any length of time, but will be occupied instead in expeditions
around our province. Detailed investigations are out of the question on such
trips into the country, because one often has to give up table and chair, bed
and house, for weeks at a time, and one’s scientific apparatus consists only a
magnifying glass, a pocket knife and a pencil”. F M para Ernst Krause, 1877.
In West, 2003, p. 196.

Ciberestuário manguezais

Ciberestuário Manguezais, uma plataforma multiusuário que promove


a participação aberta, é a continuidade do projeto de pesquisa Visualização
do manguezal para a Plataforma Multiusuário Estação Carijós. Coordenado
por Yara Guasque (2007/2010) o projeto foi pensado para ser realizado
em partes, e teve como desdobramentos: a plataforma multiusuário
Ciberestuário Manguezais (2010, http://ciberestuariomanguezais.ning.
com), a Web art (de 2008, http:// WWW.tecnologiadormente.com/carijos,
exposto no FILE de 2009) e as instalações Mar Memorial Dinâmico —
apresentada na exposição da Galeria da Universidade Federal de Santa
Maria, UFSM, Rio Grande do Sul (2009, http://tecnofagiagptaipi.blogspot.

244
ART
com/2009/11/arquivos-da-instalacao-mar-memorial.html) e na Galeria
Municipal de Arte Victor Kursansew, de Joinville — e Mar Memorial Dinâmico
- Surroundings apresentada na exposição Pneumatóforos na Fundação
BADESC, Florianópolis, Santa Catarina (2010, http://tecnofagiagptaipi.
blogspot.com/2011/02/mar-memorial-dinamico-surrounding.html), e
agora Mar Memorial Dinâmico – sistema de sensoriamento.
Por contar em 2010 com a estrutura da plataforma multiusuário,
Ciberestuário Manguezais permitiu a participação mais dinâmica da
comunidade com a chamada para a coleta multimídia no Manguezal
Itacorubi. As instalações Mar Memorial Dinâmico e Mar Memorial Dinâmico
– Surroundings propiciaram a interação do público e uma nova forma de
visualização do manguezal. A chamada aberta a participação com incursões
no espaço físico do manguezal e o convite a ocupação da plataforma
multiusuário se deu pelo enfoque da ação como um jogo pervasivo, por
este gênero permitir diferentes níveis de participação e pelo apelo às ações
off-line como estratégias lúdicas interessantes de engajamento e crítica.
A importância da participação da comunidade não é uma retórica de
publicidade vazia. Como sabemos Fritz Müller e Henry Walter Bates foram
pioneiros quanto a investigação da mimese entre as borboletas palatáveis
e não palatáveis. Mas apenas Fritz Müller continuou a viver entre os
fenômenos que ele observou. Neste sentido pode ter uma reflexão mais
precisa da razão das borboletas se auto imitar. Considerações relevantes são
descritas por vezes nos relatos da comunidade, por esta poder acompanhar
um fenômeno, num tempo alargado, e observar os vários desdobramentos
e implicações que ultrapassam a agenda e o escrutínio dos pesquisadores.
Entretanto é difícil garimpar quais informações são pertinentes. A criação
da plataforma multiusuário buscava ser um repositório de diferentes níveis
de narrativas e observações, e facilitar o acesso às informações que nem
sempre se dá de forma confortável.
Na chamada de 28 de abril de 2010 e as de julho e agosto do mesmo ano
de Ciberestuário Manguezais o manguezal focado foi o do Itacorubi, que se
situa no bairro onde a Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC,
foi construída. Foram antes necessários quase três meses de espera para
que o órgão ambiental responsável por aquele manguezal, a Floran, desse
a permissão para coletarmos apenas dados multimídia. Já em 2008 para a
elaboração da Web art — quando da construção do mapa do Manguezal
Ratones, que foi o primeiro a ser percorrido, mesmo antes do projeto abrir a
chamada à participação, (HTTP://www.tecnologiadormente.com/carijos) —
tínhamos sentido o embate com os órgãos municipais, estaduais, e federais,
nas várias consultas aos órgãos competentes, Ibama e Ipuf, para verificar
a possibilidade de permissão de adentrarmos o manguezal Ratones, e
pesquisar a existência de mapas antigos e atuais da região.
A significação das informações sobre o sítio físico postadas numa
mesma plataforma poderia ser coletiva. A diversidade, e complexidade
dos dados coletados da região, dependeria desse agenciamento coletivo
que improvisaria a capacidade de interpretação. Mesmo que a discussão
tenha sido suscitada e a atenção tenha sido criada, não foi o que aconteceu.
Tivemos poucos participantes realmente ativos e dispostos a construir
245
ART

um debate na plataforma. Nem mesmo a exposição Pneumatóforos, de


novembro de 2010 na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis, que teve
ótima visitação de estudantes da rede pública e privada, e que abriu ainda
mais a participação, conquistou novos membros adeptos a compartilhar
seus arquivos.

Mar Memorial dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento

Independente da inexistência na época do sistema embarcado e do


chamariz da procura dos módulos-letra, a plataforma multiusuário e a
chamada aberta a participação, as instalações e exposições levantaram
alguns pontos importantes: a acessibilidade dos dados levantados pela
comunidade científica; a importância da participação ativa, e ao longo dos
anos, da população civil; o alcance questionável dos projetos artísticos para
fazer mudanças concretas.
Como obra artística o sistema embarcado de Mar Memorial dinâmico
- sistema embarcado de sensoriamento que agora toma impulso,
dá continuidade às realizações das instalações interativas. O sistema
embarcado, previsto desde o início do projeto, consistia nas letras da
frase Mar Mermorial Dinâmico modeladas em material ecologicamente
aprovado, que encapsulam micro controladores. Dezenove unidades de
módulos-letra compõem a frase Mar Memorial Dinâmico (M-A-R- M-E-M-
O-R-I-A-L-D-I-N-Â-M-I-C-O ). Dentre estas seis possuem célula solar, para
garantir a auto-suficiência do abastecimento de energia, e encapsulam
micro controladores associados a sensores e a dispositivos de comunicação
por rádio. Os restantes não possuem micro controladores e apenas
coletarão as bactérias. Estes módulos-letra serão dispersos no mar para
coletar dados do meio ambiente.
Desde o início do projeto admitíamos que o sistema embarcado fosse
hospedado em outra região que não a do manguezal, e realizado em
outro país. Seguindo o exemplo da rede de colaboração que permitiu ao
naturalista viajante Fritz Müller, em Santa Catarina no século XIX, atualizar
sua pesquisa graças a sua interlocução com cientistas internacionais, hoje
é imprescindível a cooperação das redes de colaboração na realização de
trabalhos em arte, ciência e tecnologia.
Mar Memorial dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento
participou no mês de junho de 2011 do programa de Residência Artística em
Arte, Ciência e Tecnologia, M.A.R.I.N. – Media Art Research Interdisciplinary
Network, http://marin.cc/residency/cfp/, coordenado por Tapio Mäkelä,
que aconteceu no arquipélago finlandês do mar báltico. O programa
oportunizou o melhor entendimento de projetos similares e impulsionou
parcialmente o delineamento da comunicação do sistema embarcado,
entre os módulos-letra e os sensores de detecção de dados do meio
ambiente. A pesquisa focou neste momento a comunicação entre os micro
controlodadores, a escolha dos sensores e o material de encapsulamento,
para que este além de não agridir o meio-ambiente, e não ser nocivo aos
animais, impermeabilize os componentes eletrônicos sem interferir na
comunicação de dados via rádio freqüência.
246
ART
Com o sistema embarcado o projeto alcançará a autonomia pretendida
das coletas, recuperando algumas premissas do projeto original, como
a aproximação com a poesia e a literatura, que estavam nos primeiros
insights do projeto, destacando novamente os fenômenos da natureza
como co-autores e obtendo como resultado Escrituras bacterianas da
água. A base poética e conceitual de Visualização do manguezal para a
Plataforma Multiusuário Estação Carijós provinha das experimentações
com o mar como um suporte dinâmico de escrita, capaz de embaralhar
objetos díspares, que resultou na performance Mar como Morte de
1998. Na performance as letras esculpidas em material flutuante foram
espalhadas na Lagoa da Conceição. As letras formavam a frase Mar como
Morte e eram embaralhadas pela correnteza e pelo vento. Semanas depois
estas foram fotografadas e capturadas por moradores da região. Revendo
a performance digitalizada em vídeo me dei conta, na época, de que um
sistema de monitoramento dos ventos e das correntes da água teria
enriquecido muito o projeto.
A performance foi melhor elaborada conceitualmente no projeto Mar
como sistema de escrita dinâmica, de 2005, que enfatizava os sistemas não-
lineares como suporte da escrita e a ação dos fenômenos naturais como
processo de co-autoria.
Dentre as perguntas que Tapio Mäkelä se coloca destacamos algumas:
como as práticas e dados levantados por artistas diferem tecnologicamente,
conceitualmente e cientificamente dos levantados pela comunidade
científica? Podem estes dados ser considerados indexicais, já que apontam
para fatores importantes, apesar de não serem relevados como base e
material de pesquisa científica? Consideraríamos estes projetos dentro do
guarda-chuva da Arte e Ciência ou da Arte Revestida de Ciência?
Respondendo se os parâmetros físicos e químicos, que queremos
levantar com o sistema embarcado, auxiliarão de fato as pesquisas
ambientais, me deparo para o enorme movimento que o projeto causou
em mim. Todo o conhecimento adquirido em relação aos manguezais e
mares modificou como me situo hoje no ambiente que vivo. Acredito que
esta transformação ocorreu também para os demais participantes.

Achar soluções ou criar estratégias?

A residência nos arquipélagos filandeses do mar báltico seria


para desenvolver Mar Memorial Dinâmico – sistema embarcado de
sensoriamento agora com os participantes: Ina Oestroem, Oriel Frigo, Igor
Rocha e eu, Yara Guasque. O esquema de comunicação entre os módulos-
letra, desenvolvido por Oriel, era apenas um começo para pensarmos os
equipamentos e suas lógicas. Partimos de carro no domingo, 19 de junho
de 2011, com Tapio Mäkelä e o também artista, Tuomo Tammenpää, outro
moderador da residência, rumo a ilha onde o programa aconteceria.
Num país que mistura apropriações pré-industriais combinadas às
pós industriais a residência acabou por trazer à tona a questão não só da
preservação dos biomas em sua complexidade, mas também a possibilidade
247
ART

de propiciar a variedade e a multiplicidade de invenções de resistências, e


de auto invenções e subjetividades no contexto da economia global.
Lazzaratto em As revoluções do capitalismo se detém no conceito
de mônadas de Leibniz. Sob o viés da interpretação de Gabriel Tarde,
Lazzaratto descreve as mônadas como invenções de mundos. Este
conceito nos auxiliou a entendermos melhor a importância da deriva e
da autonomia dos módulos-letra de Mar Memorial Dinâmico, sistema
embarcado de sensoriamento. Não procurávamos situações nas quais os
módulos-letra navegariam com estabilidade, nem a segurança de não os
ver perdidos num mar memorial de informação, pois não queríamos como
resultado uma comunicação informacional codificada. Nem almejávamos
obter parâmetros legitimizadores de um discurso científico. Também não
os víamos como um enxame de vespas sendo comandadas a distância.
Gostaríamos de evitar um sistema embarcado onde alguns módulos-letra
agissem como server e outros apenas como slaves. O que estava em questão
não era a eficiência da comunicação entre os módulos-letra com GSM/GPRS
e os outros com Xbee e sensores, mas a capacidade destes módulos-letra
em conversação de criar uma linguagem, mesmo que caótica.

Referências:

ARAUJO, Yara Rondon Guasque. “Ciberestuario Manguezais: articulações extra mangue.


Achar soluções ou criar estratégias de eventos ‘acontecimentos’?” Texto aguardando
publicação no V Colóquio de Poéticas do Urbano. ANTONACCI, Célia Maria Ramos (Org.).

GUASQUE, Yara; GUADAGNINI, Silvia Regina; FACHINELLO, Sandra Albuquerque Reis.


“Parâmetros para o entendimento das mídias emergentes e a formação de um público
especializado no Brasil,” in VENTURELLI, Suzete. (Org.). #6. ART. Arte e tecnologia. Interseções
entre arte e pesquisas tecno-científicas, Brasília: Instituto das Artes da Universidade de Brasília,
2007.

HAECKEL, Ernst. “Fritz Müller – Desterro”, trad. Richard Paul Neto, Blumenau em Cadernos, no.
1. Janeiro 1980, pp. 02-07.

LATOUR, Bruno. “Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções”. In:
Parente, André (Org.). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004, pp- 39-63.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,


2006.

FONTES, Luiz Roberto Fontes; LOPES, Elisabete Aparecida. “Homenagens do botânico


Frederico Carlos Hoehne ao naturalista Fritz Müller”. In Blumenau em Cadernos, no. 1.
Janeiro/Fevereiro 2008, pp. 101-117.

MONTOLA, Markus; STENROS, Jaakko; WAERN, Annika. Theory and Design. Pervasive Games.
Experiences on the Boundary Between Life and Play. Oxford: Elsevier, 2009.

WEST, David A. Fritz Müller a Naturalist in Brazil. Blacksburg, Virginia: Pocahontas Press, Inc.,
2003.

248

Você também pode gostar