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Quarta-feira

Quanto importa o que os outros pensam?

Heróis do seu tempo são festejados apenas pelos donos do tempo seguinte

A escolha de personalidades para serem homenageadas por desempenho superior em suas áreas de atuação pode seguir critérios variados, mas
quase todas dão preferência a pessoas mortas, ou seja, aquelas que não têm mais chance de fazer alguma bobagem que possa comprometer a
dignidade de quem cometeu o desatino de considerá-las exemplares e especiais. E, assim, esses heróis do seu tempo serão festejados apenas
pelos donos do tempo seguinte porque foram enterrados por contemporâneos incapazes de reconhecer seus méritos.
A história das artes está repleta de exemplos de verdadeiros gênios que viveram na miséria mais degradante, em conflitos com cônjuges e
familiares que protestavam contra a alegada incapacidade de assumir que os sonhos embalados por esses virtuoses solitários nunca seriam mais
do que delírios de personalidades obcecadas por utopias que não serviram nem ao menos para alimentá-los decentemente. A maioria sadia desses
potenciais injustiçados assimila o desconforto do anonimato injusto e termina se convencendo de que, se ninguém o valoriza, talvez ele esteja
mesmo enganado e não seja tão maravilhoso quanto supôs em algum momento de euforia exagerada.
Outros se ressentem, tornam-se amargos e constituem um clube de pessoas lamuriosas e insuportavelmente chatas. Nessa população,
inconformada com o que considera uma tremenda injustiça, aloja-se um tipo curioso: o que fantasia sua própria morte e imagina quem e o quanto
sofrerá com sua perda nessa irreparável tragédia para a humanidade, que se negou a valorizá-lo quando teve chance e privilégio de fazê-lo e não
foi capaz. Esta fantasia de morte idealizada, que não tem idade mas é uma característica recorrente da juventude imatura, não envolve tendência
ao suicídio. Nada disso, é apenas uma curiosidade meio mórbida de descobrir o quanto lhe querem os que dizem lhe querer muito.
Durante a cerimônia de Tributo a George Clooney, promovida recentemente pela American Films Institute (AFI), o homenageado contou uma
experiência original. Estava em Nova York e, tarde da noite, recebeu uma chamada da esposa de um amigo querido que lhe comunicou que o
marido, então com 90 anos, estava nas últimas e que provavelmente não amanheceria. A chamada envolvia um pedido curioso: o velho amigo
gostaria que George lhe escrevesse o obituário. Entre chocado e comovido, gastou o resto da noite em pesquisas das inúmeras obras que o amigo
produzira ao longo de sua vida profícua e longeva, e compôs o que considerou uma homenagem justa a um grande homem do seu tempo.
Quando terminou, o dia estava amanhecendo, e ele foi para o trabalho com o cuidado de, periodicamente, espiar o celular, na expectativa da notícia
ruim. Naquele dia, naquela semana e naquele mês, nada aconteceu, e agora já se passaram quatro anos. Uns dias mais tarde, encontrou a esposa
e lhe questionou: “Afinal, o que aconteceu? E como ele está?”.
E ela, então, assumiu: “Por favor, George, não fique bravo. Meu marido está cada dia melhor, mas decidiu investigar o que os seus amados
pensavam dele enquanto ele ainda está vivo. E você foi um dos 12 amigos queridos que participaram dessa pesquisa. Ah, e ele ficou muito
contente e está bem orgulhoso com o reconhecimento de vocês!”.

Quinta-feira

Por quem choramos

Não há dano social maior, nem mais aviltante, do que o desemprego

Queria muito saber o que pensam esses saqueadores do bem público, que destruíram o país e, com a mesma cara dura, mantêm o discurso oco
na essência e afrontoso no deboche de propor medidas e reformas em prol de uma sociedade mais igualitária e mais justa.
Será que esses predadores que se adonaram do poder têm a exata noção do efeito dessa dilapidação do patrimônio nacional, que produziu a
quebra de milhares de empresas que, no rastro da tragédia, tiveram que demitir porque faliram ou encolheram tanto, que não havia mais trabalho
para todos os seus empregados?
O que é certo é que não há dano social maior, nem mais aviltante, do que o desemprego. Acompanhei o relato de um ex-grande empresário que
teve a sua firma negociando perda de 70% do capital durante meses e, quando os termos da concordata foram definidos, não conseguia voltar para
o trabalho e contabilizar os funcionários que aprendera a querer como membros de uma grande família e que agora estavam empenhados em
receber a esmola do seguro da sobrevivência temporária. Será que, quando deita à noite, essa corja pensa naqueles que vão levantar muito cedo
no dia seguinte para tentar uma improvável vaga de trabalho e, não conseguindo, voltarão para casa no horário de sempre porque ainda não
tiveram coragem de contar para a família que foram descartados?
E, no sono, que imagino agitado, porque, mesmo nos crápulas, a consciência não se deixa amordaçar, será que eles sonham com algum tipo de
castigo e acordam sobressaltados e demoram para separar sonho e realidade e só ficam aliviados quando percebem que, por enquanto, não tem
nenhum despertador japonês tocando a campainha?
E, mais tarde, reunidos no comitê do partido para discutir com seus asseclas as estratégias para a sonhada reeleição, em algum momento, será
que eles sentem a fisgada do remorso, esse desconforto que seca a boca e aumenta a acidez no estômago? Pensei nisso ouvindo o relato
comovido da jovem médica que tentava animar um chefe de família, dizendo-lhe que conseguira agendar o exame das coronárias para o dia
seguinte e,então,ele poderia ir para casa.A confissão que se seguiu devia constar no horário eleitoral gratuito para que os canalhas tivessem uma
amostra do mal que causaram:“O problema,doutora,é que eu tenho 57 anos e muita vergonha de ir pra casa e encarar uma família amorosa que eu
não consigo mais sustentar.Ganhava R$ 4,5 mil e tudo ia bem,e então fui demitido e agora recebo menos de R$ 1,5 mil”.
A doutora se deu conta de que a receita que prescrevera se aproximava desse valor e quis sabe como ele faria pra comprar os remédios, e ele
resumiu: “Lá em casa, estamos decidindo a cada mês o que não vamos pagar: a água ou a luz. Gostei da senhora e não quero que fique chateada
comigo, mas eu não sei se vou conseguir festejar caso o exame de amanhã mostre que o meu caso tem solução!”. Vontade de chorar. Mas, antes,
vamos descarregar nas urnas a nossa revolta, porque é só nas urnas que as repúblicas verdadeiras trocam de poder. De qualquer maneira, eles
saberão por quem choramos.

Sexta-feira

A saudade e a rede social

No final, sobrarão os que, lá no passado, riram e choraram das mesmas coisas

“Com o tempo não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros” (Mario Quintana)
Estávamos acomodados no nosso canto, quando o guardião da saudade foi despertado de um sono de décadas e começaram a pipocar
mensagens de carinho entre pessoas que, tendo estado confortavelmente incomunicáveis, cuidando de filhos, netos e amores permanentes
durante um longo tempo, nunca se deram conta de que tinham represado um estoque do bem querer mais genuíno.
E, então, aconteceu de alguém criar um grupo de WhatsApp, e isso promoveu o milagre de nos sentirmos emocionalmente ressuscitados. Lendo
as dezenas de mensagens carinhosas, e lembrando deles todos e do quanto o convívio remoto tinha sido fraterno e generoso, foi inevitável sentir
no meio do peito aquele leve aperto que define nostalgia e que revela o quanto de afeto foi desperdiçado pela inevitável diversidade de caminhos
traçados pela vida, quando cada um, lá atrás, teve de fazer suas escolhas. E, para ser sincero, não sei de ninguém que, naquele momento crucial,
tenha priorizado se manter perto dos colegas da faculdade, abdicando das melhores oportunidades por estarem demasiado distantes. E se
ninguém pensou nisso há 47 anos, não há por que se recriminar agora nem se sentir menos amoroso por isso, mas esta racionalização não
dissipou a sensação de perda.
É certo que a proximidade e, claro, uma indispensável dose de empatia, manteve coesa uma pequena parcela da turma que tem se encontrado
religiosamente, com uma assiduidade sem equivalência entre as outras turmas da UFRGS. E as reuniões desse time, cronicamente fraterno, têm a
espontaneidade e a doçura de quem não precisa relembrar histórias ameaçadas pelo esquecimento de uma das partes. Tudo flui com a
naturalidade de quem terá de recapitular, no máximo, o acontecido no último semestre.
De qualquer maneira, a criação desse grupo virtual despertou tantos sentimentos, comedidos uns e exagerados outros, que confirmou um
comportamento que se repete nas redes sociais e que estamos recém assimilando, dada a novidade desta forma de aproximação instantânea pelo
mundo virtual.
Depois de um boom inicial, com vários se apresentando numa espécie de prestação de contas para, no mínimo, afirmarem que estavam vivos,
houve, como era de se prever, a contagem dos mortos para estabelecer o tamanho do que alguém, muito bem-humorado, chamou de ATM
celestial, com direito a festejos discretos quando se confirmou que ela ainda é (toc, toc) menor do que a terrena. E cada morte, recém descoberta
ou recapitulada, ficou latejando como se tivesse sido ontem. Essas coisas de quem amou e perdeu.
Claro que com uma turma gigante e um país continental houve alguns ruídos de comunicação, com dificuldade de localização de uns e até notícias
falsas da morte de outros, sem contar o achado de uns tipos considerados anacrônicos, porque (dá pra acreditar?) ainda não têm WhatsApp!
Sempre tive dificuldade de retomar presencialmente relacionamentos interrompidos por 30 ou 40 anos, porque descobri, por experiências sofridas
que, depois de cinco minutos de entusiasmo saudosista, nos sentimos estranhos com resíduos de intimidade insuficientes para uma conversa
fluente e nos flagramos com uma vontade bilateral de sair correndo. É evidente que o biombo virtual nos poupa deste constrangimento, mas
também com ele ocorrem oscilações anímicas, com períodos alternados do melhor humor e essas tristezas que o destino programa sem direito de
seleção. Alguém escreveu que a maioria ainda trabalha, mas a julgar pela quantidade e insistência nas mensagens, foi possível identificar uma
razoável parcela de aposentados.
Quando o ritmo frenético das mensagens começava a reduzir, um novato era resgatado no túnel do tempo e assumia um protagonismo temporário,
não sem antes reclamar de ter sido convocado com atraso. Passados alguns dias, já entramos na fase dos netos, o que assegura um longo tempo
de intercâmbio até que todos tenham a chance de mostrar as fotos sorridentes e as maravilhas da sua prole.
Como experiência emocional, esta forma nova de aconchego de colegas que se quiseram tanto durante a faculdade que o tempo não foi capaz de
borrar-lhes o afeto reprimido foi tão rica, que vários assumiram que essa reaproximação representou o que de melhor lhes aconteceu no ano que
terminou.
Espichando o ouvido, escutei alguns resmungos, previsíveis e inevitáveis, para os quais o WhatsApp oferece um recurso que, quem dera,
dispuséssemos em todos os relacionamentos pela vida afora. Um clique, com as palavras mágicas: sair do grupo.
No final, sobrarão os que, lá no passado, riram e choraram das mesmas coisas. E não importará quantos sejam, por eles já terá valido a pena.

Sábado

O outro lado de tudo

Em todos os romances que escrevi depois de adulta, há sótãos e porões, guardando aquilo que o rio da vida esqueceu

Desde que me lembro, e lembro de coisas muito remotas, me despertava curiosidade e fascinação o outro lado das coisas. Por exemplo, o que
havia atrás daquela porta sempre trancada, onde minha mãe guardava coisas tão triviais como vassouras, espanador, panos de limpeza e, eu
acho, um aspirador de pó, só aberta na hora de arrumar a casa? Por que eu não podia abrir, me esconder naquele quase-quartinho minúsculo,
onde aumentava minha curiosidade uma série de degraus de ferro presos na parede de fundo, por onde se subia sabe Deus para onde?
Subia-se para o sótão, diziam, que nós, crianças, chamávamos “sótio”, e que para inveja minha só havia na casa das outras crianças. Lugar de
tesouros, medos, encantamentos, como tudo o que “não era pra criança”. Ali, na nossa, havia um vão assustador entre telhado e teto, me segredou
alguém: lugar de morcegos e gambás, que eventualmente faziam barulho de noite, como de pessoas se arrastando. Eu, sempre medrosa, puxava
os lençóis e cobertas sobre a cabeça – coisa que faço até hoje. Que espantalhos afugento inconscientemente, a esta altura de uma longa vida?
Outro lado de uma porta também me fascinava: portinha muito baixa, meu pai tinha de se curvar um pouco para passar. Levava ao porão e se abria
com uma chave grande, velhíssima, de ferro preto, pendurada na cozinha, muito alto, para que pequenos não pudessem pegar.
Por quê? Isso sempre me atormentou: o proibido e inexplicado. No porão em si, havia velhas coisas com cheiro de velhas coisas, algumas
ferramentas, cadeiras meio desconjuntadas, grandes tachos de cobre com que minha avó preparava geleias indizíveis no fundo do pátio.
E ali estava o mistério maior de todos: outra porta, menor ainda, portinha. Ali só consegui entrar poucas vezes, porque insisti demais e meu pai
perdeu a paciência, ou porque me comportei tanto, que ele teve paciência. Era absolutamente apavorante: um porãozinho dentro do porão, muito
pequeno, talvez adega, palavra que eu desconhecia. Prateleiras com muitas garrafas empoeiradas, vinhos que meu pai apreciava, me disse a mãe,
e eu não podia nem tocar. Mas havia muito mais: um bercinho de madeira com ar de velhice irremediável, caixas de papelão contendo sabe-se lá
que sustos. Restos de duas bonecas feito bebês decapitados, as cabecinhas ao lado. E num canto, meio escondido atrás de uns panos enormes e
puídos, cortinas ou lençóis de um tempo perdido, a coisa mais preciosa: um cavalinho de madeira, cores empalidecidas, faltando uma orelha. Suas
patas ficavam sobre apoios de cadeira de balanço. Que criança teria se embalado ali, aquela que ninguém queria mencionar se eu indagasse, mas
viravam o rosto mudando de assunto?

Em todos os romances que escrevi depois de adulta, há sótãos e porões, guardando aquilo que o rio da vida esqueceu – ele que leva quase tudo, o
ruim e o bom, os amores e as dores, nós, náufragos ou sobreviventes sem muita glória.
Tudo carregado de roldão para um outro lado que intuímos mal, tememos quase sempre, nutrimos como ilusão, ou com este ardente desejo de que
seja eterno, que continue real, vivo, e presente, como foi em vida, do lado de cá.

Domingo

Democracia confusa
Legendas deveriam propor visões, em tese exequíveis, de como uma sociedade deve funcionar
Em dias de convenções, é oportuno falar sobre partidos políticos. Eles são o elo mais fraco de nossa democracia, que, apesar de vários e
graves déficits, vem resistindo bem ao teste de estresse a que foi submetida nos últimos quatro anos.
A ideia central da democracia representativa é equilibrar os desejos do eleitor com as responsabilidades inerentes à governança. Se
coubesse à população definir, sem filtros, todas as políticas públicas por meio de plebiscitos e referendos, chegaríamos facilmente a
situações inadministráveis, como salários mínimos crescendo sempre acima da produtividade e sistemas de seguridade social mais
generosos do que a capacidade do país de pagar por eles.
O problema de fundo são os efeitos da agregação. Nos contextos em que o erro é distribuído aleatoriamente, como encontrar a resposta
certa a uma pergunta factual, as multidões são sábias; mas, quando o erro é sistemático, isto é, baseado em vieses cognitivos, como
ocorre num bom número de decisões políticas e econômicas, seguir as massas só potencializa os equívocos.
Caberia aos partidos fazer a ponte entre as aspirações do povo e os constrangimentos ditados pela realidade. São múltiplas as vias de
atuação. Para início de conversa, legendas deveriam propor visões, em tese exequíveis, de como uma sociedade deve funcionar. Isso
não só permitiria ao eleitor escolher a tribo com a qual se identifica como ainda lhe daria pautas concretas pelas quais pelejar, tanto fora
quanto dentro da sigla, enquadrando os caciques que colocassem seus interesses pessoais acima de tudo.
Partidos também deveriam atuar como porteiros do sistema, selecionando criteriosamente quais candidatos os representarão, e zelar para
que, uma vez eleitos, se mantenham pelo menos moderadamente fiéis à plataforma.
Enquanto não tivermos legendas que cumpram um pouco melhor essas funções, nossa democracia continuará mais confusa que o
necessário.

Segunda-feira

Não siga seu coração


Prefira abrir sua cabeça para as possibilidades que existem

É o mantra do momento: “siga seu coração”. O coração é sábio. O coração sabe o que você é, o que você deseja, o que você merece. Se
o coração não reage, não palpita, não canta e não dança, mude de vida, de país, de cidade, de amante, de gênero.
Ou, então, de trabalho. Antigamente, nossos antepassados desejavam apenas sobreviver: o trabalho, tantas vezes desumano, era um
simples instrumento para garantir o sustento da família. A ideia, insana, de que o trabalho nos “completa”, nos “realiza”, nos “apaixona”,
seria incompreensível para eles.
Mas não é incompreensível para nós. Se não sentimos um amor eterno por cada rotina do escritório, isso é uma derrota existencial.
Repito: “siga seu coração” é o mantra do momento. Mas, pergunto, será um mantra saudável?
Três psicólogos têm dúvidas —e há um estudo a respeito na próxima edição da “Psychological Science” que a revista The Atlantic já
divulgou.
Sim, os pesquisadores entendem a raiz democrática do mantra: se, em matéria de trabalho, tudo que interessa é cumprir nossa paixão,
isso significa que todos temos uma paixão escondida para cumprir. Noções arcaicas de esforço, mérito ou talento deixam de fazer sentido.
Tudo que interessa é experimentar e descobrir o tesouro da nossa vocação.
Infelizmente, o raciocínio não sobrevive a uma análise cuidada. Segundo os autores —Paul O’Keefe, Carol Dweck, Greg Walton
— existem duas teorias em confronto em matéria vocacional.
A primeira, intitulada “fixed theory of interests” (qualquer coisa como “teoria fixa dos interesses”), determina que aquilo que nos apaixona
já está inscrito no nosso DNA existencial. É a teoria dos românticos que vão pulando de trabalho em trabalho em busca da epifania. Se
não encontram essa epifania, a frustração aumenta.
A segunda teoria, intitulada “growth theory” (“teoria do crescimento”), é ligeiramente mais sutil. Aquilo que nos apaixona não é algo que se
encontra imediatamente; é algo que se desenvolve ao longo do tempo.
Para os autores, pessoas que se refugiam na primeira teoria dificilmente encontram a paixão que procuram. O mundo não é o reflexo
perfeito dos nossos desejos; é ligeiramente mais caótico, imprevisível e diverso do que nossas fantasias mentais.
Quando nos agarramos a uma ideia fixa de realização pessoal, duas coisas acontecem.
Em primeiro lugar, somos cegos para caminhos alternativos —e para oportunidades alternativas. Não nos deixamos surpreender porque o
mundo só existe para confirmar o que já sabemos. Pior ainda: encaramos cada surpresa como um desvio intolerável.
Em segundo lugar, não é apenas a cegueira que nos limita; é a intolerância para a dificuldade. Quem acredita na vocação “natural” não
concebe a existência de obstáculos “inaturais”. Se as coisas não são tão simples como imaginamos isso só pode significar que estamos
no caminho errado.
Moral da história?
Não siga seu coração. Prefira abrir sua cabeça para as possibilidades que existem —e que sua cabeça nem sequer imaginava que
existissem. Quem sabe?
Talvez um dia seja possível concluir que, em matéria de coração, é ele que segue a nós, e não ao contrário.

Terça-feira

Assassinos culturais
Para a nova geração, experiência cultural vale mais do que a posse de objetos
Sou um assassino cultural. Não faça essa cara. Você também é. Eu sei que é romântico chorar quando uma livraria fecha as portas. Não
sou alheio a essas lágrimas.
Mas convém não abusar do romantismo —e da hipocrisia. Fomos nós que matamos aquela livraria e o crime não nos pesa muito na
consciência.
Falo por mim. Os livros físicos que entram lá em casa são cada vez mais ofertas —de amigos ou editoras.
De vez em quando, mais por razões estéticas que intelectuais, ainda cedo ao vício, sobretudo na ficção. Mas é um vício caro, cansativo,
redundante. Já não tenho 20 anos.
Aos 20, quando viajava por territórios estranhos, entrava nas livrarias locais como um faminto na capoeira. Comprava tanto e carregava
tanto que desconfio que o meu problema de ciática é, na sua essência, um problema livresco. Hoje?
Gosto da flânerie. Mas depois, em gesto que horroriza qualquer erudito, fotografo capas com o meu celular antes de regressar para o
divã. É no conforto doméstico que expresso os meus desejos ao psicanalista —o famoso dr. Kindle—, esperando uma cura imediata. Que
sempre vem.
Culpado? Um pouco. E em minha defesa só posso afirmar que pago pelos meus vícios. Não sou como alguns leitores que, em sessões
de autógrafos, já me apresentaram fotocópias dos meus livros para eu assinar.
Entenda: não é o abuso e o roubo que me perturbam. É a inteligência deles. Se são meus leitores e procedem dessa forma, o que é que
isso diz sobre mim como autor?
E quem fala em livrarias, fala em todo o resto. Eu não matei apenas a Borders, por exemplo. Eu ajudei a matar a Tower Records e
a VirginMegastore. Havia lá dentro uma bizarria chamada CD —você se lembra?
Hoje, com o Spotify, tenho uma espécie de discoteca de Alexandria onde escuto os meus clássicos e descubro novos clássicos —todos os
dias, a todas as horas.
Se juntarmos ao pacote os filmes do iTunes e as séries da Netflix, você percebe por que motivo eu também tenho o sangue dos cinemas
e dos blocksbusters nas mãos.
Eis a realidade: vivemos a desmaterialização da cultura como nossos antepassados viveram a revolução da impressão com Gutenberg.
Mas não é apenas a cultura que se desmaterializa, deixando mais vazias as nossas salas e estantes. É a nossa relação com ela. Não
somos mais proprietários de "coisas"; somos apenas consumidores e, palavra importante, assinantes.
Um livro recente, que obviamente comprei via Kindle, analisa o fenômeno sem abusar do jargão técnico: "Subscribed", de Tien Tzuo. É
uma reflexão sobre a "economia de assinaturas" que conquista a economia global.
Conta o autor que mais de metade das empresas que apareciam na famosa lista das 500 da Fortune já não existiam em 2017. O que
tinham em comum?
O objetivo meritório de vender "coisas" —muitas coisas, para muita gente, como sempre aconteceu desde os primórdios do capitalismo.
Pelo contrário: as empresas que sobreviveram e as novas que entraram na lista souberam se adaptar à economia digital, vendendo
serviços (ou, de forma mais precisa, acessos).
A Netflix, que até 2007 vendia DVDs, optou sensatamente pelo streaming e conseguiu 120 milhões de assinantes em 11 anos. Ao mesmo
tempo, revitalizou a indústria, manteve os profissionais em atividade —e ofereceu-nos "House of Cards", "Peaky Blinders" ou "Alias
Grace".
O Spotify, que surgiu quando a indústria discográfica afundava sem hipótese de salvação, representa agora mais de 20% das receitas.
Claro que na mudança algo se perde —e eu, de temperamento conservador, sei disso. O desaparecimento das livrarias, que não acredito
que seja total no futuro (e ainda bem), diminui as hipóteses de acasos felizes. Tive vários —e se hoje leio autores como Agnes Repplier,
Renata Adler ou Ivan Illich (não, não é esse em que você está pensando) é também porque os descobri.
Além disso, ler no papel não é o mesmo que ler no écran, razão pela qual não tenciono me desfazer já da biblioteca.
Mas o interesse do livro de Tien Tzuo não está apenas nos números; está no retrato de uma nova geração para quem a experiência
cultural é mais importante do que a mera posse de objetos.
Há quem veja aqui um retrocesso. Mas também é possível ver um avanço —ou, para sermos bem filosóficos, o triunfo do espírito sobre a
matéria.
E não será essa, no fim das contas, a vocação mais autêntica da cultura?

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