Você está na página 1de 13

209:


TEORIA E HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA*

 MATTHEW H. EDNEY**

Resumo: A história da cartografia tem sido dominada por um empirismo que trata a natureza de mapas como algo
auto-evidente e que nega a presença de qualquer teoria. Em contraste a essa perspectiva, esta intervenção defende
o ponto-de-vista segundo o qual teorias encontram-se nas raízes de todo estudo empírico, sejam elas reconhecidas
ou não. O modelo progressivo e linear de desenvolvimento cartográfico, por exemplo, não é uma lei deduzida a partir
de evidência histórica; caso o fosse, seria rapidamente refutado. Em vez disso, ele deriva de nossas crenças
culturais acerca da natureza de mapas, o que é o mesmo que dizer que deriva de nossas teorias não examinadas. Os
historiadores da cartografia precisam ser críticos no tocante aos pressupostos e pré-concepções. Discussões
teóricas na história da cartografia devem ser induzidas não no sentido de debater se devemos usar teoria, mas sim
de refletir sobre a que teorias deveríamos aderir. Simplesmente derrubar teorias é inadequado. Precisamos
estabelecer um debate em que compreensões antigas acerca dos mapas, assim como de sua criação e seu uso,
sejam substituídas por teorias melhores, ou seja, mais consistentes e coerentes.

Todo campo de investigação pesquisa, os estudiosos se identificam com


intelectual atravessa períodos de campos teóricos particulares e debatem de
introspecção e reforma. Cada geração de modo amplamente público por meio de
historiadores rebela-se contra seus artigos e ensaios. Entretanto, em
predecessores ao redefinir a resposta à disciplinas dispersas e mais circunscritas,
mais básica questão: qual é a utilidade da os debates são mais informais e os
história? Em disciplinas amplas com estudiosos mais flexíveis. Esse é, em
muitos periódicos e muitos centros de
ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
210:
grande medida, o caso da história da Ela decorre de alguns mal-entendidos
cartografia. básicos acerca da natureza da teoria, mal-
É excessivamente fácil caracterizar entendidos aos quais se deu permissão
nosso período atual de instrospecção como para que contaminassem nossos debates.
um combate entre antigos Otomanos e Portanto, o que eu gostaria de fazer neste
novos Turcos, entre o velho e o novo, artigo é abordar alguns desses mal
entre tradicionalistas e radicais, entre a entendidos, de forma a permitir que
esquerda e a direita. Todavia, eu me sinto nossas discussões continuem de maneira
feliz em afirmar que os historiadores da mais efetiva.
cartografia são verdadeiramente O primeiro passo é discutir o que
indivíduos e não podem ser categorizados se quer dizer com teoria. Uma teoria é um
tão facilmente. Ed Dahl admite com entendimento de como um sistema,
liberdade, por exemplo, que sua própria interpretado de modo vago, está
pesquisa é à moda antiga, ainda que ele estruturado e funciona. Enquanto tal,
mereça nosso encarecido agradecimento consiste geralmente de um conjunto de
por seus esforços no sentido de fazer do anunciados conectados, os quais definem,
Cartographica o fórum de escolha para juntos, “o processo de explicação”.1
artigos de ponta sobre cartografia e sua Positivistas elevam teorias à condição de
história. Por esse motivo, sou relutante leis universalmente aplicáveis que
em distinguir entre historiadores da possuem poderes de previsão. Filosofias
cartografia tradicionais e novos, e tentarei diferentes do positivismo – ou seja, os
evitar classificações simplórias como essas. diversos ramos de idealismo e realismo –
Então, sobre o que é o debate? Eu não privilegiam teorias desse modo; elas
creio que muitos argumentariam que a permanecem simplesmente enquanto
questão fundamental é a introdução de enunciados traduzidos sobre como
teoria na história da cartografia. Nessa sistemas específicos funcionam.
perspectiva, temos uma polarização entre O propósito de teorias é ajudar a
Novos pesquisadores que usam teoria e explicar fenômenos e orientar pesquisas.
aqueles que não usam. Trata-se de uma Estivesse eu interessado em compilar uma
situação de alternância: ou você faz ou não história de mapas de propriedades em um
faz. Porém, como já ressaltei, a polarização país particular, por exemplo, o primeiro
entre teóricos e ateóricos, ou mesmo estágio da minha análise seria coletar o
antiteóricos, é de uma conveniência falsa. máximo de exemplos que pudesse. A

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
211:
partir de tal cartobibiliografia, eu poderia membro de uma sociedade moderna e
auferir muitas informações sobre os desenvolvida o que se esperar de um
agrimensores, suas técnicas e seus mapa: o mapa é preciso, é confiável, não
financiadores. Mas essas informações contém erros, mostra a disposição da terra
necessárias não me dizem por que os ou a rede de estradas. A ampla maioria das
levantamentos foram realizados, pessoas – o que é o mesmo que dizer
tampouco por que os mapas foram qualquer um exceto os poucos cujo
construídos àquela época. Como eu trabalho é pensar sobre mapas e fazê-los –
poderia ainda formular tais questões a não não se questiona sobre a origem dos
ser que eu tivesse algum entendimento mapas, e apenas se pergunta sobre o
inicial sobre o porquê da fabricação de tais conteúdo de um mapa quando é
mapas? Assim que nós perguntamos sobre evidentemente diferente de sua própria
um porquê, precisamos nos apoiar em experiência. Pressupõe-se que os mapas
alguma teoria sobre nosso tópico, sejam anunciados de um fato geográfico;
reconheçamos ou não esse tipo de apoio. eles são produzidos por tecnologias
Em contrapartida, são as teorias às quais neutras; eles simplesmente são. Mapas
nos filiamos – nossa compreensão do têm sido intensamente naturalizados no
mundo – que definem as questões que interior de nossa sociedade; eles são
elaboramos. Levar teoria em consideração objetos naturais.2
deve ser, portanto, essencial para todo Não se trata de uma questão de
estudioso, qualquer que seja sua disciplina. ingenuidade. Mapas são usados como
metáforas importantes por acadêmicos em
O mapa naturalizado e a negação da diversas disciplinas, mas sua natureza
teoria ____________________________ permanece não examinada. Um dos meus
exemplos favoritos de como a ideia de
Tradicionalmente, historiadores da mapa é aceita automaticamente é oferecida
cartografia não têm adotado teorias acerca pelos teóricos educacionais e do campo da
da natureza dos mapas. Eles não Psicologia nos Estados Unidos. Diversos
precisaram fazê-lo porque a natureza dos estudiosos já escreveram extensamente
mapas é auto-evidente na sociedade sobre aquilo a que se referem como
moderna. A maioria das pessoas não usa “mapeamento semântico”. A ideia é que
mapas de modo ativo diariamente, ainda crianças aprendem a ler conforme
que, todavia, tenha-se ensinado a cada constroem complexas redes mentais de

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
212:
significado: os mapas semânticos. Apesar uma imagem de mapa, no intuito de
da importância evidente do mapa estabelecer suas próprias conclusões. Em
enquanto uma metáfora para o conceito, sua sofisticada psicoanálise do capitalismo,
essa literatura parece não conter qualquer Deleuze e Guattarri construíram uma
discussão acerca do que seja “mapear”. teoria complexa que depende em partes do
Toda a subdisciplina se escora em uma argumento segundo o qual mapas
assertiva não examinada, e os autores se possuem “múltiplas entradas” e são,
baseiam no entendimento comumente portanto, radicalmente democráticos. Eles
aceito sobre o que são mapas. podem afirmar o caráter não-autoritário
De um modo mais geral, dos mapas porque não se questionam
estudiosos em uma série de disciplinas sobre a maneira como se constroem os
históricas descobriram o mapa e estão mapas. Eles podem sustentar a ideia de
adentrando territórios outrora ocupados que o mapa é “acêntrico”, que é uma “visão
apenas por historiadores da cartografia. a partir de lugar algum”, porque não
Muitos desses estudiosos abordam a reconhecem como os vários autores de um
cartografia já armados com teorias mapa na verdade impõem uma perspectiva
sofisticadas, mas até mesmo eles da qual o leitor não pode escapar.3
encontram-se afetados por seus Eu poderia apontar diversos outros
pressupostos acerca da natureza dos exemplos derivados de outras disciplinas,
mapas. O interesse por mapas existente os quais demonstrariam a que grau os
em meio a especialistas de estudos membros de nossa sociedade
culturais, por exemplo, decorre de uma conceitualizam mapas segundo um
evidente dessemelhança entre o mapa e o conhecimento recebido. Historiadores da
texto escrito. O texto escrito é visto como cartografia têm seguido essa tendência de
altamente autoritário e restritivo: leitores modo semelhante. Definimos e julgamos
não podem se desviar do estritamente mapas com base nas informações que eles
linear arranjo de palavras em uma página guardam. Essa é uma perspectiva
ou da linha argumentativa de um autor. O empiricista. O empiricismo é uma filosofia
mapa, por outro lado, é visto como uma segundo a qual um fato observado pode
forma de representação altamente ser tido como verdadeiro ou falso por
libertadora: os usuários podem escolher meio de referência direta ao próprio
seu próprio ponto de partida e podem mundo e sem referência à verdade ou à
seguir seus próprios caminhos através de falsidade de qualquer enunciado teórico. O

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
213:
empiricismo é reticente porque requer que imperialista como a Suiça ou a Polônia.5
seus adeptos neguem que estão imbuídos Do mesmo modo, Andrews rejeita a
de qualquer teoria. Com efeito, a teoria é “teoria” de Harley.
vista com suspeita porque é vista como O alvo de Harley é sem dúvida
potencialmente corruptora da qualidade tentador. Embora ele tenha baseado suas
prístina dos dados. Nas palavras de um generalizações em suas teorias sobre como
programa de televisão da década de 1960 os mapas funcionaram no contexto de
sobre detetives policiais em Los Angeles, Estados modernos e do imperialismo
o empiricismo pode ser caracterizado moderno, ele cometeu o erro básico de
como “apenas os fatos, senhora”.4 expressar seus argumentos de um modo
É relativamente fácil para um polêmico e, assim, terminou por
empiricista criticar qualquer enunciado apresentá-los como universais no alcance.
baseado em teoria. Isso ocorre porque, Um ponto ao qual me aterei novamente é
desde o século XVIII, o empiricismo tem que as generalizações decorrentes de
caminhado de mãos dadas com o processo teoria não deveriam ser expressas em
analítico da dedução. A ideia de dedução é termos universais.
que se pode estabelecer generalizações a Harley utilizou a mesma forma de
partir de um número suficiente de argumento em suas primeiras digressões
exemplos observados de um fenômeno. E teóricas quando, junto a Michael
se apenas um fato for contrário à Blakemore, buscou demonstrar as
generalização, então a generalização será deficiências da crença segundo a qual a
falsa. A crítica recente de John Andres às cartografia teria progressivamente
ideias de Brian Harley, portanto, aprimorado desde o Renascimento.
repetidamente identifica exemplos que Blakemore e Harley reagiram a
contradizem as generalizações de Harley. formulações como a de Gerald Crone –
Por exemplo, pode-se ler em Harley a para quem a história da cartografia é a
associação de todos os mapas mundi do história da crescente precisão e
Iluminismo como “o destino manifesto da abrangência do conteúdo do mapa –, ao
colonização e conquista ultramarina tratá-las como deduções decorrentes de
Europeias”, mas tal suposto vínculo observações da qualidade de vários mapas
relevaria simultaneamente uma fraqueza em épocas variadas. Ele então afirmou que
caso o mapa fosse identificado enquanto a sequência pode ser logicamente refutada
pertencente a alguma nação não pela identificação de muitos mapas que

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
214:
foram imprecisos para suas próprias teorizados para serem imagens realistas;
datas.6 Ainda assim, mapas errôneos que espera-se que os criadores de mapas façam
não se encaixam na sequencia progressiva os melhores mapas possíveis (ou seja, os
têm pouco efeito para dissipar o sentido mais realista possíveis); informações
geral do progresso cartográfico. Karol geográficas só podem ser aperfeiçoadas
Buczek formulou uma sequência por meio de mensurações repetidas ao
normativa da cobertura de mapas para longo do tempo. Mas, ao mesmo tempo, as
qualquer país Europeu – indo de mapas circunstâncias particulares da confecção
gerais de escala pequena no século XVI a de mapas estão repletas de entraves
mapas topográficos de ampla escala após potenciais, como burocratas mesquinhos,
1800 – com o intuito explícito de falências e rixas políticas. Cada exercício
demonstrar em que medida a situação individual na confecção de mapas é
polonesa era anormal. 7 A análise de potencialmente incorreto, mas um número
Buczek – e a crítica de Harley e suficiente de exercícios de mapeamento
Blakemore – não detratam de forma foram exitosos, de modo que, de forma
alguma o pressuposto geral defendido por geral, a história da cartografia é vista
historiadores da cartografia, segundo o como progressiva.
qual mapas seguiram uma progressão
geral ao longo do tempo. Des-naturalizando o mapa___________
Por que insistimos na ideia de
progresso? A resposta é bastante simples. Fracasso
Empiricistas podem refutar a existência de
quadros teóricos, mas seus estudos ainda O objetivo das novas abordagens
são estruturados e guiados por teorias. A para a história da cartografia é o de des-
sequência progressiva da história da naturalizar o mapa. A intenção é romper a
cartografia não é uma generalização concha da objetividade com a qual nossa
deduzida a partir de fatos, mas é, pelo cultura envolveu o mapa, no intuito de
contrário, derivada de teorias sobre como expor e em seguida estudar o mapa
os mapas funcionam e como são feitos. E – enquanto o que é: uma prática humana. As
completando o percurso circular – essas novas abordagens buscam amalgamar a
teorias são totalmente incorporadas em história da cartografia com diversas outras
nossa cultura; elas são produtos da disciplinas históricas: os vínculos com a
naturalização dos mapas. Mapas são história da ciência são bem estabelecidos;

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
215:
agora buscam-se conexões com a história Reconhecidamente, uma estrutura
social e cultural e também com a história gramatical como essa é um dispositivo
econômica e intelecutal. A nova história taquigráfico útil, e combina bem com o
da cartografia é, consequentemente, uma jargão dos estudos culturais. Essa mesma
história crítica da humanidade, abordada estrutura gramatical possui, no entanto,
por meio de fenômenos particulares de alguns efeitos perversos. Ela preserva a
representação espacial. imagem popular do mapa enquanto um
Entretanto, afastar-se das documento natural e autoevidente, na
perspectivas estabelecidas tem se medida em que obscurece o modo pelo
mostrado um difícil desafio. Comentadores qual os atributos e as características de um
já ressaltaram que Harley não pôde mapa são definidos pela cultura no interior
desvencilhar-se por completo da história da qual o mapa é criado ou usado. Os
da cartografia que ele próprio criticou. 8 mapas modernos não „se oferecem‟ como
Um remanescente particular de nosso ferramentas funcionais e miméticas; é
passado empiricista continua a confundir nossa cultura que os apresenta enquanto
escritores que estão tentando adentrar tal. Representar o mapa enquanto um
novos territórios intelectuais. Uma vez agente obscurece o fato de que os
que a estrutura do mundo é supostamente verdadeiros agentes na criação de mapas
replicada na estrutura da imagem do somos nós, os humanos. Além disso, usar
mapa, e uma vez que se pressupõe que o referências como „o mapa‟ ou „mapas‟
mapa seja perfeitamente natural, os mapas pressupõe a existência de apenas um tipo
são privilegiados enquanto agentes, em de mapa, o qual pressupõe-se que se refira
função de seus próprios atributos. O mapa à superfície da Terra. Este raciocínio, por
por si próprio é tido como a fonte para sua vez, permite a construção de tais
diversos atributos. Simon Ryan escreveu generalizações universalistas, as quais
recentemente, por exemplo, que “mapas Andrews e outros estão corretos em
oferecem a si próprios como ferramentas censurar. Talvez seja mais correto
funcionais e acima de tudo miméticas”.9 reconhecer que generalizações podem ser
Sucessivamente, Harley e outros usam “o feitas, mas devem ser classificadas e
mapa” enquanto o agente da sentença, julgadas de acordo com as teorias que
sugerindo, portanto, que o mapa age, que ajudaram a desenvolvê-las.
o mapa é culturalmente eficaz.

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
216:
Indivíduos e Sociedade______________ oficiais de alta patente não apreciaram os
mapas nem seu valor.
Então, como a história da Então, por que os levantamentos
cartografia deveria ser escrita? O ponto se desenvolveram? Um caminho razoável
fundamental é que cada estudo deveria ser de abordagem poderia ser o de considerar
conduzido em um espírito interdisciplinar. os desenvolvimentos na natureza do
Não devemos pressupor que nosso público Estado no mesmo período. Ao fazê-lo,
é composto somente por historiadores da percebemos que o início do século XIX foi
cartografia. Precisamos escrever para um um período de importância crucial na
público mais amplo; precisamos situar formação do Estado industrial moderno.11
nossos estudos nos contextos de outras Isso sugeriria que poderíamos conectar os
disciplinas históricas. Ao fazer cada estudo levantamentos de terreno a outras
relevante para outro ramo da história, atividades de coleta de dados que as
necessariamente se reflete sobre mapas e nações começaram a empreender nessa
sua criação de maneira crítica, e se adota época: censos, levantamentos etnográficos
ou se desenvolve uma posição teórica. e lingüísticos, levantamentos comerciais e
Mas qual teoria deveria ser industriais, levantamentos geológicos.12
adotada? A seleção em meio a teorias se Claramente devem existir algumas
faz pela aferição de quantos fatos, no relações entre estes levantamentos, mas
nosso caso, da cartografia são explicados quais? Que teoria pode explicar suas
de modo consistente e coerente por cada conexões? Bem, na história social, há
teoria. A teoria que mais explica é a Foucault e suas ideias acerca do poder,
melhor. Considere, por exemplo, o conhecimento e do Estado.13 Das ideias de
desenvolvimento inicial dos grandes Foucault seguimos para o estilo de
levantamentos topográficos nacionais ao argumentação de Harley, segundo a qual
longo do início do século XIX. A teoria os mapas topográficos são instrumentos
tradicional é a de que tais mapas eram de vigilância estatal e controle sobre seus
necessários para o serviço militar em cada territórios.14 A abordagem de Harley
país e foram também parte da crescente parece explicar de modo consistente as
infraestrutura industrial de cada país.10 motivações originais por trás dos
Entretanto, muitos desses levantamentos levantamentos do Estado.
foram iniciados consideravelmente antes Neste ponto nos damos conta que a
da industrialização efetiva, e muitos construção de saber-poder feita por

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
217:
Foucault tem sido fortemente criticada representação é construída de acordo com
por ser excessivamente absolutista. Um códigos semióticos definidos
problema particular é que pessoas sob culturalmente; o conhecimento é
vigilância resistem de diversas maneiras. construído usando várias tecnologias
O Estado não é um monólito maciço que intelectuais e instrumentais; o
esmaga qualquer dissidente; o poder é, na conhecimento e suas representações são,
verdade, negociado entre as classes de ambos, construídos por indivíduos que
uma sociedade, assim como no interior trabalham para e no interior de várias
destas. Qual é a relevância desta posição instituições.15
teórica mais flexível para a compreensão Explicar os mapas topográficos do
dos levantamentos nacionais? Que início do século XIX exige uma estrutura
resistência aos levantamentos ocorreu, e teórica que contemple todos esses pontos,
qual foi o efeito da resistência aos o que é uma tarefa gigantesca. Projetos
levantamentos? Nós olhamos menos ambiciosos podem contemplar
cuidadosamente o registro de apenas um único ponto, tal qual como os
determinados levantamentos, e mapas são usados para criar uma imagem
percebemos, com certeza, que a resistência de uma região,16 ou como códigos
aos levantamentos esteve em todo lugar, semióticos funcionam.17 Todavia,
indo da hostilidade ativa contra a pessoa considerações acerca de um único ponto
do agrimensor ou seus instrumentos, à necessariamente trazem à tona as relações
recusa em responder questões, dar que um mapa guarda com outras formas
respostas incorretas ou enganosas. de representação, tais como paisagem18,
Também percebemos que muitos Estados fotografia19 e literatura20. Ao fazê-lo,
não conseguiram escalar homens e integramos a confecção de mapas de modo
material suficientes para realizar mais completo à história geral da
levantamentos apropriados sem humanidade em todos os seus aspectos.
comprometer seu rigor matemático e Para concluir, eu gostaria de fazer
integridade geométrica. algumas observações. Primeiramente,
Uma abordagem teórica para uma qualquer estudo deve ser baseado em
tão complexa situação deve, segundo os sólida evidência empírica – ou seja,
mesmos parâmetros, incorporar toda uma empírica, não empiricista – porque
série de fatores. Um mapa é uma qualquer outro procedimento seria
representação de conhecimento; a intelectualmente desonesto. A teoria dá

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
218:
suporte a avaliação da evidência, mas a NOTAS ________________________________

evidência deve sempre corrigir a teoria.


* Theory and the History of Cartography, publicado
Em segundo lugar, as teorias que
originalmente em Imago Mundi, vol.48, 1996.
depreendemos são válidas apenas dentro Traduzido por Daniel Dutra Coelho Braga
do âmbito da evidência sobre a qual se (PPGHIS/UFRJ). Revisado por M.Lamego
baseiam. Generalizações universais devem (UERJ). Os editores agradecem à Ed Dahl pela

ser evitadas na maior parte das vezes. Em autorização concedida para tradução e publicação
deste artigo.
terceiro lugar, nossas discussões de teoria
** Geography professor at University of Southern
não deveriam ser sobre em que medida Maine located in Portland, Maine
devemos usar teoria. Todos nós 1 JOHNSTON, R. J.; GREGORY, Derek; SMITH,
empreendemos nossas pesquisas de acordo David M. (Eds.) The Dictionary of Human

com algum entendimento, ou seja, alguma Geography. 3rd ed. Oxford: Blackwell, 1994, pp.
622-23.
teoria, sobre como e por que mapas são
2 WOOD, Denis. The Power of Maps. New York:
feitos e usados. O que deveríamos estar
Guilford Press, 1992; WOOD, Denis. The fine line
discutindo é que teorias deveriam ser between mapping and mapmaking, Cartographica
usadas. Em quarto lugar, no debate sobre 30:4 (1993): pp. 50-60; WOOD, Denis. 'What
os méritos relativos de diferentes teorias, makes a map a map?' Cartographica 30:2-3 (1993):
pp. 81-86.
não é suficiente enumerar evidências
3 DELEUZE; GUATTARI, F. A Thousand
apenas com o propósito de refutar uma
Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis:
teoria. A competição entre teorias só pode University of Minnesota Press, 1987, p. 12. Eu sou
ser vencida ao se apresentar porque uma grato a Jonathen Perry, do Departamento de
teoria pode explicar os dados disponíveis Geografia da Universidade de Wisconsin, por esta

de uma maneira mais coerente, mais leitura.


4 EDNEY, Matthew H. Cartography without
consistente e mais rigorosa do que outra.
"progress": reinterpreting the nature and
Lamentavelmente, ainda temos ainda que historical develop- ment of mapmaking',
alcançar um nível tão elevado e sofisticado Cartographica 30:2-3 (1993): pp. 54-68.
de debate teórico em nossa disciplina. Eu 5 ANDREWS, J. H. Meaning, knowledge and

gostaria de sugerir, portanto, que quando power in the map philosophy of J. B. Harley,
Trinity Papers in Geography 6. Dublin, Department
essa discussão for continuada em Lisboa,
of Geography, Trinity College Dublin, 1994, p.7.
que nos direcionemos a um tema 6 BLACKMORE, Michael J.; HARLEY, J. B.
específico, com o objetivo de concentrar e Concepts in the History of Cartography: A Review
avançar nossas discussões sobre teoria, and Perspective, Monograph 26, Cartographica

explicação e mapas. 17:4 (1980): 17-23, 60-68; CRONE, Gerald R.


Maps and Their Makers: An Introduction to the
ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
219:
History of Cartography. 5th ed. London: Daniels (Cambridge, Cambridge University Press,
Hutchinson, 1978, p. xi. 1988), 277-312; J. B. Harley, 'Decon- structing the
7 BUCZEK, Karol. The History of Polish map', Cartographica 26:2 (1989): 1-20 (reprinted in
Cartography from the 15th to the 18th Century. Writing Worlds: Discourse, Text, and Metaphor
Varsóvia: Polish Academy of Sciences, 1964; in the Representation of Landscape, ed. Trevor J.
reimpressão Amsterdam: Meridian, 1982), p.7. Barnes and James S. Duncan [London, Routledge,
8 BELYEA, Barbara. 'Images of power: Derrida, 1992], 231-47); J. B. Harley, 'Cartography, ethics,
Foucault, Harley', Cartographica 29:2 (1992): 1-9; and social theory', Cartographica 27:2 (1990): 1-23.
WOOD, 'The fine line between mapping and 15 EDNEY, 'Cartography without "progress"' (ver
mapmaking' (ver nota 2). nota 4); EDNEY, Matthew H. Mapping an Empire:
9 RYAN, Simon. Inscribing the emptiness: The Geographi- cal Construction of British India,
cartography, exploration and the construction of 1765-1843. Chicago: University of Chicago Press,
Australia. In: TIFFIN, Chris; LAWSON, Alan no prelo.
(Eds.). De-Scribing Empire: Post-Colonialism and 16 WOLFF, Larry Wolff. Inventing Eastern Europe:
Textuality. London: Routledge, 1994, pp. 115- 30, The Map of Civilization on the Mind of the
citação 115 (grifo nosso). Enlightenment. Stanford: Stanford University
10 BROWN, Lloyd A. The Story of Maps. New Press, 1994.
York: Bonanza Books, 1949; reimpressão New 17 WOOD, Denis; FELS, John. 'Designs on signs:
York: Dover, 1979. myth and meaning in maps', Cartographica 23:3
11 TILLY, Charles. Coercion, Capital, and European (1986): 54-103.
States, AD 990-1992. (rev. ed., Studies in Social 18 COSGROVE, Denis. The Palladian Landscape:
Discontinuity) Oxford: Blackwell, 1992. Geographical Change and Its Cultural
12 NADAL, Francesc; URTEAGA, Luis. Representations in Sixteenth-Century Italy.
Cartography and state: national topographic maps University Park: Pennsylvania State Univ. Press,
and territorial statistics in the nineteenth century. 1993.
Geo Critica: Cuadernos Criticos de Geografia Humana 19 BLEACH, Gordon. Visions of Access: Colonial
88; English Parallel Series 2. Barcelona: Catedra de Hieroglyphs and Sublime Views: Designs on Africa,
Geografia Humana, Facultad de Geografia e 1880-1940. Ph.D. dissertation, Binghamton
Historia, Universitat de Barcelona, 1990, pp.7-67. University, New York, no prelo.
13 FOUCAULT, Michel Foucault Discipline and 20 HELGERSON, Richard. Forms of Nationhood:
Punish: The Birth of the Prison. New York: Random The Elizabethan Writing of England. Chicago:
House, 1977. University of Chicago Press, 1992.
14 J. B. Harley, 'Maps, knowledge, and power', in
The Iconography of Landscape: Essays on the
Symbolic Representation, Design, and Use of Past
Environments, ed. Denis Cosgrove and Stephen

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
220:
THEORY AND HISTORY OF CARTOGRAPHY
ABSTRACT: CARTOGRAPHIC HISTORY HAS BEEN DOMINATED BY AN EMPIRICISM THAT TREATS THE NATURE OF MAPS AS
SELFEVIDENT AND WHICH DENIES THE PRESENCE OF ANY THEORY. IN CONTRAST, THIS PAPER ARGUES THAT THEORIES
LIE AT THE ROOT OF ALL EMPIRICAL STUDY WHETHER OR NOT THEY ARE ACKNOWLEDGED. THE LINEAR, PROGRESSIVE
MODEL OF CARTOGRAPHIC DEVELOPMENT, FOR EXAMPLE, IS NOT A LAW DEDUCED FROM HISTORICAL EVIDENCE; IF IT
WERE IT WOULD BE EASILY AND QUICKLY DISMISSED. IT DERIVES INSTEAD FROM OUR CULTURAL BELIEFS CONCERNING
THE NATURE OF MAPS, WHICH IS TO SAY FROM OUR UNEXAMINED THEORIES. HISTORIANS OF CARTOGRAPHY NEED TO
BE CRITICAL OF THEIR ASSUMPTIONS AND PRECONCEPTIONS. THEORETICAL DISCUSSIONS IN THE HISTORY OF
CARTOGRAPHY MUST ADDRESS NOT WHETHER WE SHOULD USE THEORY AT ALL BUT TO WHICH THEORIES WE SHOULD
ADHERE. IT IS INADEQUATE SIMPLY TO KNOCK THEORIES DOWN. WE MUST ESTABLISH A DEBATE IN WHICH OLD
UNDERSTANDINGS OF MAPS, OF THEIR CREATION, AND OF THEIR USE ARE REPLACED BY BETTER (THAT IS, MORE
CONSISTENT AND COHERENT) THEORIES.

THÉORIE ET HISTORIQUE DE LA CARTOGRAPHIE


RESUME: L'HISTOIRE DE LA CARTOGRAPHIC A ÉTÉ DOMINÉE PAR UN EMPIRISME QUI A CONSIDÉRÉ LA NATURE DES
CARTES COMME UN EN-SOI ET A REFUSÉ L'EXISTENCE DE TOUTE 'THÉORIE'. AU CONTRAIRE, DANS CET ARTICLE, ON
PRÉTEND QUE LES THÉORIES SE TROUVENT À LA RACINE DE TOUTE ÉTUDE EMPIRIQUE, QU'ELLES SOIENT OU NON
RECONNUES. LE MODÈLE DU DÈVELOPPEMENT LINÈAIRE ET PROGRESSIF DE LA CARTOGRAPHIE, PAR EXEMPLE, N'EST
PAS UNE LOI DÉDUITE DU TÉMOIGNAGE DE L'HISTOIRE; S'IL EN ÉTAIT AINSI, ON POURRAIT L’ÉVACUER FACILEMENT ET
RAPIDEMENT. I1 PROVIENT PLUTÔT DE NOS CONVICTIONS CULTURELLES VIS-A-VIS DE LA NATURE DES CARTES, C'EST-A-
DIRE DE THEORIES A PRIORI DE NOTRE PART. ON DOIT EXIGER DES HISTORIENS DE LA CARTOGRAPHIE QU'ILS
PORTENT UN OEIL CRITIQUE SUR LEURS AFFIRMATIONS ET LEURS CONCEPTIONS TOUTES FAITES. AU COURS DES
DISCUSSIONS EN HISTOIRE DE LA CARTOGRAPHIE, ON DOIT S'INTERROGER NON PAS SI L'ON DOIT UTILISER OU NON
DES THEORIES, MAIS À QUELLES THÉORIES ON DOIT SOUSCRIRE. I1EST TOUT SIMPLEMENT ABERRANT D'ABATTRE DES
THÉORIES. I1FAUT ORGANISER UNE DISCUSSION DANS LAQUELLE LES ANCIENNES COMPRÉHENSIONS DES CARTES, DE
LEUR CRÉATION ET DE LEUR EMPLOI SOIENT REMPLACÉES PAR DES THÉORIES MEILLEURES (C'EST-À-DIRE PLUS
LOGIQUES ET PLUS COHÉRENTES).

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.209-220,JAN./JUN. DE 2016


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
Copyright of Espaço e Cultura is the property of Espaco e Cultura and its content may not be
copied or emailed to multiple sites or posted to a listserv without the copyright holder's
express written permission. However, users may print, download, or email articles for
individual use.

Você também pode gostar