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COLÉ DE MESMO1

Raianne Barbara Martins Soares da Silva2

Salvador é forte em sua cultura, em sua herança, em sua arte, e em seus costumes, de
tal sorte que, pessoas pouco familiarizadas com o português aqui praticado devem sentir,
provavelmente, algum desconforto ao serem interpelados por meio desta pergunta: Colé de
mesmo? O som se propaga completamente desprovido de sentido; é uma articulação sonora à
qual só se pode dar como resposta uma feição interrogativa e um envergonhado pedido de
tradução.

Não é de se estranhar! Afinal, saída da rua, a pergunta é arredia à gramática. Não


permite uma análise semântica; muito menos uma análise sintática. Parece desconhecer as
regras gramaticais dos signos que apresenta em sua formulação. Contudo, para ela, há ao
menos uma resposta possível - e talvez a única correta, a saber - “É nenhuma!”. Tal resposta
confere à pergunta o seu sentido. Mesmo que arredio à gramática, esse estranho arranjo de
pergunta e resposta é usado nas ruas, nas casas, nas escolas e também nas universidades.
Distantes dos textos, o seu sentido povoa os corredores, os bares, os parques, as amizades...

Nas ruas de Salvador o uso e a norma se entrelaçam e se descompassam expondo


assim, as suas contradições. Esse descompasso entre regra e uso é, na verdade, trivial, quase
que natural - tanto quanto a linguagem. Sendo assim, é forçoso aceitar que a linguagem tem,
então, ao menos um aspecto estático – a gramática; e um aspecto dinâmico - o uso.

A gramática é o alicerce do ensino de língua portuguesa dada pelas escolas do Brasil.


Esse conjunto de regras, e exceções à regra, estabelece a norma culta e norma padrão de uso
de nossa linguagem; garante, em certa medida, que o português falado em tantos países,
estados, cidades, seja uma mesma língua, que muitas vezes estranha a si mesma. E assim, uma
desconcertante questão salta aos olhos: como se dão as relações entre regra e uso?

Observemos o ambiente escolar: nas salas se aprende sintaxe, semântica, uso e


reconhecimento das regras gramaticais; professores fustigam a paciência infantil forçando-a a
identificar artigos, variados substantivos, contrações, advérbios. Há um propósito, afinal,

1
​Trabalho desenvolvido para submissão de análise do Prof. Dr. Elmo José dos Santos do curso de ​Língua
Portuguesa, Poder e Diversidade Cultural, ​da turma 07, da Universidade Federal da Bahia.
2
​Discente da Universidade Federal da Bahia.
fazemos uso da mesma língua falada por inúmeros falantes espalhados no globo, e estes usam
as mesmas regras para se comunicar, os mesmo sinais.

Esse parentesco distante, por vezes tão esgaçado dos falantes de língua portuguesa se
reconhece na regra; no uso, a regra é pressuposta, porque desconhecida. Por demais óbvia,
quando garantida no uso, a regra, não está no manual. Mas onde ela está? Ou no gesto, ou na
entonação, ou no contexto... Quem sabe em todos. Fora do espaço formal, a linguagem se
desenrola em sons e gestos e torna-se comum o “colé de mesmo?” e seus semelhantes.

Esse descompasso entre uso e regra pode ser um problema quando fora da sala de aula
existem “probremas”. Se a regra se torna muito distante do uso, aprender ou ensinar a regra
pode se mostrar um grande desafio e o domínio dela um instrumento de poder e segregação.
Pode ser muito difícil para eu entender isso depois de tanto escutar que “é nóis”, que é “pra
nóis”. A depender do contexto de uso o aprendizado da regra padrão pode até assemelhar-se
ao estudo de outra língua, impondo desafios aos falantes que estudam a norma culta ou a
padrão de sua própria língua.

A dificuldade mostra-se assim no acerto entre o ritmo da regra e o ritmo do uso. Para
além da diminuição do espaço entre regra e uso, uma gramática mais dinâmica traz consigo
alguns pequenos desafios, por exemplo, como evitar a completa descaracterização do idioma,
forjando outro conjunto de línguas com regras próprias derivadas das culturas nas quais elas
estão inseridas, uma situação contraria a qual vivemos hoje no ensino de língua portuguesa no
Brasil. Próximo demais da regra, as aulas de língua portuguesa, ignoram todo e qualquer
sotaque. A simples aproximação do uso à regra parece, também, não retirar o problema
seminal de fazer da regra mais importante que o uso. Meio para se aprender a norma padrão e
a norma culta, o uso, continua marginal e indesejado, diminuído e até mesmo descriminado.

Há de se admitir que uma solução para o descompasso entre uso e regra, depende da
devida compreensão do fenômeno da linguagem. Distantes, ainda, deste fim, resta especular
ao menos um princípio que nortearia a compreensão da dimensão do uso e da dimensão da
regra no ensino de língua portuguesa: que o uso e a regra sejam compreendidos como
constitutivos, coexistentes, interdependentes da linguagem e, portanto, uma vez respeitadas as
suas devidas especificidades, que regra e uso se distanciem e se aproximem segundo a
dinâmica da linguagem.

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