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Notas sobre a teoria do gênero e a psicanálise

Marcus do Rio Teixeira1

Uma noção imposta

É notória a influência da teoria do gênero nas discussões contemporâneas acerca da


sexualidade. Obra de autores provenientes do meio acadêmico norte-americano, dentre os quais se
destaca Judith Butler, ela é o resultado da junção de certas correntes do feminismo com uma leitura
muito particular de diversos autores, reunidos sob a designação de “french theory” (o que supõe
que a nacionalidade seja um traço comum que possa unir nomes tão díspares quanto Lacan,
Foucault e Derrida). A partir dessa abordagem, os psicanalistas são interpelados a responder às
novas questões referentes ao sexo – ou ao gênero, noção que essa teoria impõe e que delimita de
antemão o campo da discussão.

Se a tentativa de impor uma determinada terminologia é uma pretensão comum no debate


acadêmico, a inovação aqui consiste em desqualificar antecipadamente o adversário teórico,
fazendo recair sobre as contestações à noção de gênero a pecha de “conservadoras”, “patriarcais” ou
“homofóbicas” e assimilando-as à posição de grupos ultrarreligiosos. Essa discussão é acirrada por
conta do papel político desempenhado por essa teoria, como na recente polêmica acerca do seu
ensino nas escolas.

A exclusão do tema das políticas educacionais me parece uma forma de censura, com o
objetivo de abafar a conversa sobre as maneiras diversas em que vivem os gêneros e com o
intuito de estabelecer que, seja qual for o seu sexo, ele corresponde ao que está na Bíblia ou ao
que determina alguma versão da ciência que esteja de acordo com o que está na Bíblia. A
censura ao tema é claramente um ato de medo.2

Qualquer discussão nesse ambiente maniqueísta tem seu resultado previamente definido: dado
que a noção de gênero é apresentada como aquela que permite desvendar a realidade opressora do
sexo, que defende as mulheres, os homossexuais e os transexuais da violência, o questionamento
teórico de tal noção constitui prova suficiente de que o adversário se situa no campo do opressor.

O terreno discursivo no qual se desenvolve a Gender Theory nos impõe seu próprio campo de
visibilidade (ideológica) como se ele não fosse ideológico, como se ele tivesse conseguido
alcançar um universal opondo, de um lado, a concepção naturalista-biológico-anatômica do
sexo, « aprisionadora », « alienante » e, do outro, a construção do gênero de ordem discursivo-
sócio-cultural, que seria « libertadora », « emancipadora », etc.3

1
Psicanalista, membro do Campo Psicanalítico de Salvador. Diretor da editora Ágalma.
2
BUTLER, J. Ensino de gênero nas escolas deveria ser obrigatório. Disponível em:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/41595/judith+butler+ensino+de+genero+nas+escol
as+deveria+ser+obrigatorio.shtml Acesso em 14/9/15.
3
DUBUIS-SANTINI, C. 1984, c’est maintenant. Disponível em: <www.valas.fr> Acesso em: 08
de maio de 2014.
Antes de tudo é preciso deixar claro que o autor deste artigo não aceita os termos dessa
discussão ideológica. Não é possível debater com quem adota como parti pris a concepção da « [...]
psicanálise como um modo de subjetivação abusivo e elitista »4 e considera que o simples fato de
questionar as suas ideias já define aquele que questiona como um defensor do preconceito e da
violência. Porém, enquanto psicanalista, acho importante demarcar os campos teóricos, definindo o
ponto de vista da psicanálise acerca da sexuação – termo que Lacan adotou para se referir ao
processo de definição da identidade sexual dos seres falantes.

É importante demarcar as diferenças teóricas, até porque a psicanálise está implicada desde o
início da discussão da teoria do gênero, uma vez que alguns autores, sobretudo Butler, citam em sua
bibliografia a teoria de Jacques Lacan, tomando-a segundo uma leitura muito peculiar. Isto é
surpreendente, uma vez que a teoria e a clínica psicanalíticas não confirmam as teses centrais dessa
teoria, muito pelo contrário. Apesar disso, alguns psicanalistas parecem crer sinceramente que tal
leitura seria de alguma forma compatível ou até mesmo enriquecedora para a psicanálise, uma vez
que explicitaria uma desvinculação entre a sexualidade e a natureza e, no caso específico da teoria
de Lacan, acrescentaria a dimensão da cultura, em contraponto à estrutura atemporal.

Acerca do primeiro ponto deveria ser desnecessário lembrar que a desvinculação entre o sexual
e a natureza no humano foi postulada inicialmente por Freud no início do século 20. Quanto ao
segundo ponto, permitam-nos dar um crédito de confiança a esse que foi um dos maiores teóricos
da psicanálise, além de um clínico brilhante, e supor que ele não era um ingênuo, que ignorava a
dimensão da cultura, que supunha só existir uma estrutura atemporal e que precisaria que lhe
lembrassem da existência da História. Os analistas simpatizantes da teoria do gênero parecem
desconsiderar que a noção de gênero, tal como concebida por Butler, nega explicitamente pontos
centrais da teoria psicanalítica, dentre estes a própria diferença sexual. Este é um dos pontos que
pretendo abordar neste artigo.

Menino/menina – Identidade de gênero ou identidade sexual

A noção de uma sexualidade compreendida enquanto imposição de « gêneros » pela cultura,


num processo em que a diferença sexual não passa de uma construção ideológica, é difundida hoje
em dia além da universidade, como uma das formas do novo moralismo que habita as redes sociais.
Permitam-me tomar um caso representativo desse entendimento acerca da teoria do gênero como
ponto de partida para a discussão. Obviamente estou ciente de que este caso não constitui uma
explanação das teses da teoria do gênero, porém ele serve como exemplo para discutir a sua difusão
social e a partir daí identificar quais as teses da teoria do gênero ele porventura confirma ou
distorce.

4
BOURCIER, M.-H. Entrevista a Pedro Paulo Gomes Pereira. Revista Cult, São Paulo, Editora
Bregantini, nº 205, setembro 2015. p.11-15. p. 13.
Um vídeo5 que se tornou viral na internet mostra o depoimento de um pai ao lado do seu filho
de quatro anos. Este, tendo comemorado seu aniversário recentemente, havia se dirigido a uma loja
de brinquedos com o pai para efetuar a troca de um presente repetido. Lá, ao escolher o brinquedo
para a troca, preferiu uma boneca de uma princesa da Disney. Foi o suficiente para seu pai filmar
um discurso emocionado no qual declara respeitar a escolha do seu filho, e que desde já irá respeitar
todas as suas escolhas. E conclui : « Escolha sua sexualidade! » (sic). Além de supor que a escolha
de um brinquedo é uma escolha « da sexualidade », ele também supõe que esta última é feita de
maneira consciente, da mesma forma que se escolhe... um brinquedo!

Deixemos de lado o que isso indicaria acerca da fantasia desse pai e por que ele comemora
entusiasticamente o que supõe ser a escolha de uma identidade feminina pelo seu filho. Vejamos
antes o que significa essa noção de « escolha » transposta para o âmbito da sexualidade. Se
compreendemos a sexualidade segundo a teoria psicanalítica, partimos do princípio de que a
escolha da identidade sexual é responsabilidade do sujeito, daí porque não cabe a um psicanalista
condenar, tampouco comemorar esta ou aquela escolha.

Assim, se hoje em dia reconhecemos como absurda a condenação à homossexualidade feita no


passado por aqueles que supunham (erroneamente) seguir a orientação de Freud, devemos achar
igualmente absurda a afirmação : « A heterossexualidade, portanto, é vista e analisada como uma
imposição cultural com graves consequências políticas para aqueles que não a incorporam”.6

A escolha da identidade sexual é concebida, nesse caso, como um ato de um sujeito, no sentido
em que certos autores, como Foucault, empregam o termo, como uma construção cultural, sem
divisão, portanto de um indivíduo. Para a psicanálise trata-se, ao contrário, do sujeito do
inconsciente, sendo esta escolha análoga àquela que está presente na expressão « escolha da
neurose ». Nesse sentido, ninguém « escolhe » ser homem ou mulher, hetero ou homossexual, mas
se surpreende enquanto tal. Dessa forma, o sexo que o falasser reconhece como sendo o seu não é
fruto de uma escolha consciente, mas algo que ele se dá conta. Essa constatação nunca é tranquila,
independente de corresponder ou não ao seu sexo anatômico. Ela é percebida como algo que, assim
como o seu desejo, lhe é heterônomo, como se exprime Jean-Paul Hiltenbrand.

O termo de heteronomia, que utilizo em minha proposição, significa que a lei que rege o
desejo vem do Outro, e que, em consequência, o sujeito que ao mesmo tempo anima esse desejo
e depende dele, está abolido: ele está subjectum, jogado para baixo, ou seja, inconsciente. O
campo do sexual privilegia essa operação, na medida em que é nesse lugar específico que o
sujeito encontra essa lei do Outro que o expulsa, de algum modo, da operação, como sujeito
consciente. A heteronomia inscreve de saída o encontro sexual em uma dimensão traumática
para o sujeito consciente, para o eu [...]7

5
Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2015/08/25/interna_mundo,495990/vide
o-menino-de-4-anos-pede-boneca-de-presente-e-pai-tem-reacao-inusi.shtml Acesso em 26/8/2015.
6
Texto de apresentação do I Seminário Queer – Cultura e Subversões da Identidade. Disponível
em:
http://www.sescsp.org.br/online/artigo/9269_I+SEMINARIO+QUEER+CULTURA+E+SUBVER
SOES+DA+IDENTIDADE#/tagcloud=lista Acesso em: 16/09/15.
7
HILTENBRAND, J.-P. Heteronomia do desejo. In: CHASSAING, J. L. et al. Desejo de homem.
Desejo de mulher? Porto Alegre: CMC, 2009. p. 61.
Ora, com o termo heteronomia do desejo estamos muito distantes da noção de “construção do
gênero”. Esta última, não importa as ressalvas e volteios teóricos que façam os autores, pressupõe
inevitavelmente uma autonomia do indivíduo. É curioso observar como esse ideal de um indivíduo
autônomo, que escolhe sua identidade sexual à maneira de um consumidor que escolhe uma marca a
ser consumida, é preconizado justamente por aqueles que se posicionam de forma crítica em relação
ao capitalismo, que segundo eles “cria” ou “impõe” as identidades sexuais.

Voltando ao exemplo citado acima, o que nos permitiria concluir que esse pai não distorce,
mas, ao contrário, é coerente com os postulados da teoria do gênero? Primeiramente, ao considerar
a identidade de gênero masculina do seu filho como uma “imposição cultural”, uma extrapolação
abusiva decorrente da constatação do seu sexo anatômico. Em seguida, por acreditar que a sua
atitude mais liberal permitirá a esta criança escolher um gênero contrário à “heteronormatividade”.
Ele crê que sua fala acolhedora e entusiástica ajudará a reforçar a suposta escolha não heterossexual
da criança.

Já existe, inclusive, uma versão “democrática” da educação das crianças, decorrente dessa
noção de “escolha de gênero”: a educação neutra, sem nenhuma atribuição de um gênero, para que a
criança possa escolher ela mesma o gênero da sua preferência. Essa nova pedagogia supõe o
pequeno falasser como um elemento neutro no que diz respeito ao sexo, que em boas mãos
escaparia de ser moldado pela cultura para efetuar ele mesmo sua escolha.

Como esse pensamento faz questão de ignorar o inconsciente, não considera que o sujeito existe
desde antes do seu nascimento, antes mesmo da sua concepção, na fantasia dos seus pais. Assim, a
alienação ao Outro não é uma mera submissão aos costumes da sociedade em que ele vive, mas uma
decorrência da anterioridade da linguagem, do fato de que o sujeito não a inventa, mas já nasce
imerso nela. Essa alienação não deve ser considerada como “má”, como uma sujeição a ser
combatida ou superada politicamente, mas a condição para a sua própria constituição do sujeito,
uma vez que é por ser tomado pelo desejo daqueles que ocupam primordialmente esse lugar Outro
que ele é convocado a advir como sujeito, além da condição de um serzinho que chora, mama e
excreta. O que a clínica nos mostra é que na eventualidade de não ser tomado por nenhum desejo, aí
sim os efeitos sobre o infans serão desastrosos.

Com a teoria do gênero passamos assim do sujeito do inconsciente, efeito da linguagem, cujo
desejo é sempre heterônomo em relação ao seu eu, para o sujeito do discurso que Lacan denomina
Discurso Capitalista, que nega o inconsciente ao se vangloriar da autonomia do seu desejo. Esse
sujeito sem divisão realiza o ideal do discurso da ciência, que não reconhece o impossível. Temos
então uma concepção de um sujeito indiviso, para quem não existe o impossível e tudo o que se
opõe às suas escolhas conscientes, ao seu gozo, é visto como um obstáculo a ser transposto. Para
ele, sua sexualidade não pode ser o pivô de um questionamento acerca do desejo inconsciente, mas
um tema de reivindicação política.

Poder-se-ia objetar que a teoria do gênero não atribui ao seu sujeito uma autonomia de fato, uma
vez que reconhece o poder determinante da linguagem. Porém a própria Butler admite (sem
esclarecer de forma alguma) que sua teoria dá margem a uma leitura que supõe uma escolha de
gênero pelo indivíduo como um ato volitivo:
A minha formulação de que o gênero é performativo se torna a base de vários tipos de
interpretações. A primeira, que nós radicalmente escolhemos os nossos gêneros e a segunda que
nós somos determinados por normas de gênero. Essas respostas divergentes querem dizer que
nem tudo foi articulado e compreendido sobre essas dimensões duplas de qualquer tipo de
performatividade. Pois a língua age sobre nós e continua a agir em nós a cada instante em que
nós agimos. [...] A escolha vem depois do processo de performatividade [...]8

Quanto à determinação da linguagem, esta é entendida por Butler como veículo de transmissão
e imposição de normas sociais às quais os indivíduos são submetidos, cujos exemplos mais
marcantes seriam o nome e o gênero, este último restrito à “heteronormatividade”. Assim, a autora
ressalta o poder da fala, que atribui um nome e um gênero ao neonato antes que este possa escolher,
antes mesmo que ele tenha condição de compreender o que eles significam.

Um ponto para o qual venho chamando atenção é que designação de gênero é algo que nos
acontece. É uma interpelação a contragosto. E, nesse sentido, a construção social do gênero
sempre começa de modo radicalmente involuntário. Pode-se debater quais aspectos do gênero
são inatos ou adquiridos, mas é mais importante reconhecer o efeito involuntário da designação
de gênero e a resistência profundamente consolidada [de alguns] a tal designação. Essa
resistência pode ser crucial para a sobrevivência e conformar um preceito básico da identidade
de alguém.9

Estas observações parecem ecoar a tese de Lacan acima mencionada, de que o sujeito é alienado
originalmente aos significantes do Outro. Mas devemos ficar atentos para uma diferença teórica
crucial: ao acentuar o caráter determinante da linguagem, Butler considera essa determinação como
a imposição de normas sociais, padrões de conduta, etc. Ora, para Lacan o campo da linguagem diz
respeito ao significante, não podendo ser reduzido à mera função de comunicação. A comunicação,
aliás, será sempre precária, uma vez que a nossa espécie não dispõe de um repertório instintivo de
sinais sonoros associados naturalmente a referentes, sendo a nossa linguagem marcada pela
ambiguidade e pelo mal-entendido.

Já Butler entende a linguagem como fonte de injunções, veículo de transmissão de estereótipos


culturais. Dessa forma, ela toma a alienação primeira aos significantes do Outro como alienação
política. Essa leitura não é sem consequências, sendo a mais importante a negação radical do
conceito lacaniano de Simbólico, identificado por ela às normas sociais.

[...] a distinção entre a lei simbólica e a lei social não pode mais ser mantida, que o próprio
simbólico é a sedimentação de práticas sociais e que as alterações radicais do parentesco
demandam uma reformulação dos pressupostos estruturalistas da psicanálise, já que nos levam a
nos deslocar a um pós-estruturalismo queer da psique.10

8
BUTLER, J. Conferência de abertura do I Seminário Queer – Cultura e Subversões da
Identidade. Disponível em:
http://www.sescsp.org.br/online/artigo/9269_I+SEMINARIO+QUEER+CULTURA+E+SUBVER
SOES+DA+IDENTIDADE#/tagcloud=lista Acesso em: 16/09/15. Transcrição minha para a
tradução disponível no site.
9
BUTLER, J. Sem medo de fazer gênero. Entrevista à Folha de S. Paulo. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/233613-sem-medo-de-fazer-genero.shtml Acesso
em 21 de setembro de 2015.
10
BUTLER, J. apud ARÁN, M.; PEIXOTO JR, C. A. Subversões do desejo: sobre gênero e
subjetividade em Judith Butler. Disponível em: < www.scielo.br >. Acesso em 10 maio 2014.
Trata-se de uma discordância que não é superficial, mas incide no fundamento da teoria da
sexuação. Ao rejeitar o caráter estrutural do Simbólico, tal como Lacan o define, é a própria
dimensão do Outro enquanto tesouro do significante que ela não reconhece, uma vez que reduz a
linguagem a um conjunto de falas. Em termos lacanianos, essa definição do Simbólico seria mais
adequada à dimensão denominada por Lacan como o Imaginário. Toda a radicalidade do
significante, por sua vez, é substituída por uma concepção instrumental da linguagem enquanto
veículo para a transmissão de significados ideológicos. Passamos da primazia do significante à
primazia do significado – a constituição de campos semânticos, noções estabelecidas socialmente
acerca do que significa masculino e feminino, significações às quais o indivíduo (pois não se trata
mais do sujeito) é fixado.

Essa concepção da linguagem enquanto transmissora de normas e constitutiva de papéis a


conduz a buscar uma sustentação científica para suas teses na teoria linguística dos atos de fala de
Austin. “O trabalho de Judith Butler sobre a relação entre linguagem e corpo é uma certa prática da
citação, que reproduz e altera Austin e Derrida.”11 Por “prática da citação” deve-se entender uma
mistura teórica que junta autoras feministas clássicas e contemporâneas com certos autores
franceses, dentre os quais Jacques Lacan. A autora cita fragmentos de teorias de forma
suficientemente ambígua para deixar em aberto o que ela entende que o autor citado afirma e o que
ela própria afirma.
Ora, para Austin os atos de fala se dão entre interlocutores, que são indivíduos que expressam
afetos, intenções, imperativos, etc. Trata-se de uma relação imaginária, de eu a eu, entre pequenos
outros, sem a intermediação de uma instância terceira, de um Outro enquanto lugar da linguagem. A
rigor, não caberia falar aqui de um inconsciente; no máximo, de um “subconsciente” que abrigaria
as imposições subliminares do social transmitidas pela fala. O que se deixa de fora, se desconhece
com tal concepção são as limitações de ordem não ideológica, decorrentes de impossibilidades
introduzidas pela linguagem. “O performativo de Austin parece esquecer que só existem ações
empreendidas e às vezes cumpridas por causa do não cumprimento do ato que seria o bom.”12

A dissociação entre corpo e gênero

Conforme o que foi exposto até aqui, um dos pontos centrais da teoria do gênero consiste na
dissociação entre o gênero e o sexo anatômico. Mais uma vez, este parece, à primeira vista, ser um
ponto comum entre essa teoria e a psicanálise, já que a tese subjacente a tal concepção é a noção do
corpo enquanto determinado pela linguagem, não apenas no sentido descritivo, mas pelo fato de que
a linguagem molda a própria noção que temos do corpo, ela o constitui.

11
PLAZA PINTO, J. O corpo de uma teoria: marcos contemporâneos sobre os atos de fala.
Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em 05 de outubro de 2015.
12
MELMAN, C. Propriétés des femmes. In: Le Discours Psychanalytique, Paris, setembro 1985,
ano 5, nº5.
O corpo não é um dado da natureza, por mais tentados que possamos ser de dar sentido à
palavra natureza. Lacan o formula em O Aturdito : « É um efeito da arte ». Dito de outro modo,
ele se fabrica com o discurso; produz-se o que ele mesmo chama « a raça dos homens », quase
da mesma maneira que se produz o cachorro e o cavalo, que são raças que, ao longo do tempo,
evoluem e se aperfeiçoam.13

Nessa perspectiva, a teoria lacaniana da sexuação elabora uma releitura da forma como Freud
considera a diferença sexual, sobretudo em textos como Algumas consequências psíquicas das
diferenças anatômicas entre os sexos14. A diferença anatômica funcionaria como um dado bruto,
cujo primeiro reconhecimento por si só não seria determinante, mas deflagraria o processo da
sexuação cujo resultado seria a diferença simbólica, que estabelece uma dissimetria no que
concerne ao desejo e ao gozo.

O traço anatômico, nós o sabemos por toda a nossa experiência subjetiva e pela clínica,
nunca bastou para fazer um homem ou uma mulher. Se Freud pôde dizer “a anatomia é o
destino”, é à medida que o sexo da criança vai gerar um reconhecimento onde imaginário e
simbólico vão se revelar necessários, indispensáveis para que essa identificação seja adquirida.15

Se, para a psicanálise, o reconhecimento do sexo anatômico pelo entorno da criança não é por si
só determinante para a definição da identidade sexual, se a diferença anatômica precisa ser inscrita
no campo do Simbólico como diferença de posições de gozo e no Imaginário enquanto conjunto dos
traços que a cultura atribui a tais posições, isso não significa dizer que a diferença anatômica deva
ser considerada como sem importância, mas que a alteridade dos sexos depende essencialmente das
posições de gozo dos seres sexuados e não dos seus corpos. Porém, o real do corpo com o qual o
falasser vem ao mundo sem que ele tenha escolhido não é algo irrelevante ou neutro.

[...] não se pode dizer que o corpo real, enquanto organismo, seja sem importância. Ele não
deixa de opor alguma resistência a essas identificações imaginárias ou simbólicas e às
manipulações diversas que elas podem induzir. Do mesmo modo, não é jamais sem prejuízo que
um sujeito rejeita essa ou aquela característica singular do seu corpo real.16

Já Butler e outros autores por ela citados entendem que o corpo não poderia sequer ser pensado
fora das convenções culturais da sociedade em que o indivíduo vive. Para eles, sendo o sexo uma
construção da linguagem, não haveria qualquer sentido em falar de sexo fora do gênero (cultural,
linguageiro).

Mostrou-se também que as estratégias de exclusão e hierarquia persistem na formulação da


distinção sexo/gênero e em seu recurso ao ‘sexo’ como pré-discursivo, bem como na prioridade
da sexualidade sobre a cultura e, em particular, na construção cultural da sexualidade como pré-
discursiva.17

13
SOLER, C. L’en-corps du sujet. Cours 2001-2002. Paris: Fondation Clinique du Champ
Lacanien, 2003. p. 18. Tradução para uso interno: Graça Pamplona.
14
FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1925] In:
______. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. v.16, p. 283-299.
15
MELMAN, C. Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC, 2009. p.
138-139.
16
DE NEUTER, P. Corpo. In: CHEMAMA, R.; VANDERMERSCH, B. Dicionário de
Psicanálise. São Leopoldo: Unisinos, 2007. p. 70-72. p. 72.
17
BUTLER, J. Problemas de gênero..., op. cit. p. 255.
Esse raciocínio, na forma como Butler o expressa, opera por uma série de sucessivas hipérboles
de teses facilmente reconhecíveis para os leitores de Lacan, mas que na verdade distorcem tais
teses, resultando numa espécie de reductio ad absurdum involuntária. Assim, para Butler, se a
linguagem determina a nossa relação com o corpo e o sexo, logo a anatomia não tem nenhuma
importância e o sexo deve ser totalmente dissociado do corpo. “O fato de o corpo ser marcado pelo
performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua
realidade.”18

O sexo é tomado como um “dado imediato”, um “dado sensível” ou “características físicas”


pertencentes à ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma percepção física e direta é só uma
construção mítica e sofisticada, uma “formação imaginária” que reinterpreta as características
físicas (em si mesmas tão neutras como outras, mas marcadas por um sistema social) por meio
da rede de relações em que são percebidas.19

Ao contrário do que uma certa vulgarização do seu ensino difunde, Lacan não produziu uma
teoria linguística, que pretende explicar tudo o que concerne ao sujeito como determinado pela
linguagem. Sua teoria da sexuação, que atravessa todo o seu ensino desde a releitura do complexo
de castração freudiano nos anos 50 até as chamadas fórmulas da sexuação nos anos 70, compreende
a constituição das identidades sexuais a partir das três dimensões: o Simbólico, ou seja, as leis da
linguagem que estabelecem lugares distintos aos sujeitos segundo o posicionamento face ao
significante; o Imaginário, responsável pela atribuição de sentido a tais lugares; o Real enquanto
real do corpo, como um dado não negociável com o qual o sujeito tem que lidar, que não é fruto da
linguagem nem das convenções sociais. Cada um desses registros mantém a sua especificidade, ao
mesmo tempo enodando-se aos outros dois para constituir a identidade sexual.

No que diz respeito ao Simbólico, a diferença sexual implica na instauração da alteridade no


casal, independente da anatomia dos parceiros.

[...] essa dimensão da alteridade é, portanto, a condição do desejo, do endereçamento desse


desejo e de seu exercício. Poderíamos nesse aspecto ressaltar que mesmo no interior desses
casais que buscam realizar a homogeneidade – casais homossexuais – essa dimensão da
alteridade, entretanto, não deixa de se revelar em ação entre eles, ou seja, malgrado essa
aspiração à semelhança, à similitude, haverá entre eles uma repartição, e que fará com que um
ou uma se encontre, em relação ao outro, sustentando essa posição. 20

Para Lacan, a diferença simbólica se distingue radicalmente das condutas que a cultura define
como masculinas ou femininas, as quais concernem, sobretudo, ao Imaginário. Ela diz respeito ao
posicionamento face ao que ele denomina função fálica, repartindo os falasseres conforme sua
posição de gozo. Porém, isto não é suficiente para garantir uma identidade sexual, uma vez que tais
posições de gozo “não decorrem do juízo de atribuição”21, ou seja, elas instauram uma diferença
mas não determinam nenhum traço, nenhuma conduta que possa ser descrita como “masculina” ou
“feminina”.

18
Id., ibid. p. 235.
19
WITTIG, M. apud BUTLER, J. Problemas de gênero..., op. cit. p. 198.
20
MELMAN, C. Aimons-nous encore des femmes? Data da conferência : 22/3/2007. Disponível
em: <www.freud-lacan.com> Acesso em 15 nov. 2013. Tradução minha para o trecho citado.
21
SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 225.
Assim, não há nenhuma contradição em que homens por anatomia e por escolha de gozo
tanto sejam heterossexuais quanto homossexuais ou místicos em sua escolha de objeto; em que
mulheres histéricas, totalmente ocupadas com o objeto do outro masculino, alinhem-se do lado
do homem no todo fálico; e em que, do mesmo modo, do lado da mulher situem-se mulheres
heterossexuais ou homossexuais, bem como outros místicos, homens ou mulheres, como santa
Teresa, Hadewidjch de Antuérpia ou são João da Cruz, e ainda sujeitos psicóticos dos dois
sexos.22

O componente imaginário da sexuação - Os transexuais e a recusa do sexo anatômico

Se as posições de gozo teorizadas por Lacan não decorrem de nenhum juízo de atribuição, se
elas não dizem respeito exclusivamente ao casal heterossexual, como entendem erroneamente
alguns, é somente a partir do que ele chama de semblant que os seres da fala podem vir a se situar
no jogo sexual. Lacan empregou este conceito no seu Seminário 18, De um discurso que não fosse
semblante aproximando-o da noção de gênero: “O importante é isto: a identidade de gênero não é
outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, ‘homem’ e ‘mulher’” 23. Da forma
como Lacan o emprega nesse seminário, o semblant se apresenta como uma série de condutas,
posturas, gestos, um parecer, uma maneira de se apresentar ao parceiro através de um conjunto de
sinais que ele compara aos rituais de acasalamento dos animais, e que se divide em parade (desfile
ou parada) nos homens e mascarada nas mulheres.

O falasser vai buscar na cultura os traços com os quais irá preencher imaginariamente os
lugares estabelecidos pela diferença simbólica. De onde vocês pensam que os “trans” retiram os
elementos para compor a sua identidade sexual, senão da cultura? Assim, o transexual entrevistado
por Lacan, ao ser perguntado sobre o que significava “ser mulher”, respondeu: “As mulheres são
meigas e delicadas”. Resposta que, segundo Catherine Millot24, divertiu Lacan imensamente.

Tais condutas são contingentes e mutáveis: evidentemente, não são as mesmas no Japão e no
Brasil, tampouco são as mesmas no Brasil do início do século 20 e do século 21. Mas se, por um
lado, Lacan aproxima o semblant da noção de identidade de gênero, reduzir a sexuação a essa
noção é um caminho teórico oposto àquele que ele postula. Além disso, ele jamais considerou o
semblant como uma imposição a ser combatida, um tema de luta política, até porque é a partir dele
que o falasser se faz reconhecer como ser sexuado pelo(a) parceiro(a). Assim como ninguém se
expressa por intermédio de um idioleto, mas utiliza os elementos da língua para proferir a sua fala,
o ser sexuado recolhe da cultura da qual faz parte os elementos imaginários para compor a sua
identidade sexual.

Butler parece deter-se nesse aspecto do semblant, que Lacan destaca quando insiste no aspecto
da mascarada, do parecer, em textos como A significação do falo25, citado por essa autora. Ela
parece entender a teoria de Lacan sobre a sexuação exposta nesse artigo como um fundamento

22
Id., ibid., p. 140.
23
LACAN , J. O Seminário, Livro 18, de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009. p. 30.
24
MILLOT, C. Transexualismo, Transcrição, vol. 1, Salvador, Clínica Freudiana, 1985. p. 7.
25
LACAN, J. A significação do falo. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.
692-703.
teórico para a constituição da sua noção de gênero enquanto distinta de uma identidade sexuada,
como uma pura construção sem outra consistência senão a permanência ao longo do tempo. Mais
uma vez Butler executa uma hipérbole da teoria lacaniana: se a forma como os falasseres se
apresentam aos seus parceiros enquanto seres sexuados é feita com o recurso imaginário de um
parecer, logo tudo o que diz respeito ao sexo se resume a um jogo de máscaras e as identidades
sexuais se dissolvem nesse jogo.

Isso explica a sua exaltação do travestismo, a qual não é casual, mas uma decorrência lógica da
sua concepção das identidades sexuais como um puro jogo de aparências. Segundo essa lógica, o
travesti, que executa uma mascarada da mulher, deve ser considerado uma mulher, tanto quanto um
indivíduo com uma anatomia feminina. Na verdade, ele deve ser considerado mais legitimamente
uma mulher, uma vez que nele a feminilidade seria vivenciada sem o “álibi” da anatomia, em sua
essência de pura aparência, como uma paródia. “Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a
estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência.”26 Esse pensamento fez
escola.

Os gêneros foram desvencilhados do sexo dito biológico; sua proliferação se torna visível e
gozante; a drag queen foi elevada ao topo para que se fizesse compreender que a feminilidade é
uma performance, uma imitação sem original. Em linhas gerais, entre uma mulher e uma drag
queen, a diferença é o comprimento do salto.27

Marcel Czermak, porém, chama a atenção para o fato de que o travesti, longe de reivindicar ser
reconhecido como uma mulher ou de preconizar uma dissolução da diferença sexual, joga com a
ambiguidade da sua identidade sexual.

Quanto ao travesti [...] ele vai vestir seu sintoma com outros ornamentos. Embora se
pudesse crer que ele é aquele que mais se aproxima, por sua conduta, do transexual,
constatamos que não é nada disso. Sua visada não é absolutamente a de se reivindicar como
pertencendo ao outro sexo, ou ainda de fazê-lo reconhecer, mas é, antes, numa montagem muito
próxima daquela do exibicionista, a de chegar ao gozo pelo viés da angústia provocada no
falasser pela revelação do falo – aqui representado pelo órgão em sua realidade eventualmente
erigida, até então mascarado pela vestimenta feminina ou pelo sobretudo – no instante em que o
véu se esgarça.28

Ao contrário do que supõe Butler, o travesti não é um militante do gênero, que expõe a natureza
de mascarada da identidade feminina. Ele necessita, para que a sua montagem funcione, que exista
uma divisão dos seres sexuados entre homens e mulheres para que possa perturbar o outro
apresentando-se como aquele que transgride essa divisão – para ele, o mais interessante, o que o faz
gozar, não é ser uma mulher, mas ser uma mulher com um pênis. Esse dispositivo só pode fazer
efeito em uma sociedade onde a divisão dos sexos seja a regra da qual ele se apresenta como a
exceção. Uma sociedade regida pelos princípios do gênero preconizados por Butler seria intolerável
para o travesti, já que nela ninguém se chocaria com sua montagem.

26
BUTLER, J. Problemas de gênero..., op. cit. p. 237.
27
BOURCIER, M.-H. Entrevista..., op. cit. p. 12.
28
CZERMAK, M. Patronimias: Questões da clínica lacaniana das psicoses. Rio de Janeiro:
Tempo Freudiano, 2012. p. 47.
É curioso observar que ela própria relata na sua conferência29 uma situação análoga a essa, onde
ela se coloca em uma posição de deixar o outro angustiado por não conseguir atribuir-lhe um
gênero. Trata-se de um garçom que se embaraça por não conseguir definir um tratamento de gênero
para ela, não saber se deve chamá-la de “senhor” ou “senhora”. Segundo ela própria relata, ela
deixa que a situação perdure e só a interrompe quando percebe que há um constrangimento
associado à diferença de classe. Por trás da sua preocupação política fica explícito no seu relato que
a situação não a incomodou de modo algum, pelo contrário, mas incomodou muito o outro.

Quanto aos transexuais, frequentemente mencionados pelos autores da teoria do gênero e cuja
posição no que concerne à identidade sexual M. Czermak distingue do travesti, estes constituem na
verdade uma contradição a essa teoria. A respeito desse tema, é significativo que Butler se
surpreenda ao ver que alguns transexuais mostram um grande apego à identidade sexual por eles
reivindicada, recusando a noção de um gênero fluido e errático.

Ativistas intersexuais têm visões variadas, e alguns estão furiosos com uma versão da teoria
queer que questiona o binarismo homem-mulher. Acham importante ter uma designação clara
de gênero, especialmente para crianças intersexuais que querem poder se identificar e serem
reconhecidas entre seus pares. Da mesma forma, algumas pessoas transexuais argumentam que
a teoria queer faz do gênero algo volitivo, e ao menos alguns dizem que seu sentimento de
gênero pode ser tão profundamente consolidado a ponto de merecer ser chamado "inato".

Para aqueles que argumentam nesse sentido, a teoria queer é orientada demais para uma
escolha livre e uma construção social. Essas visões são importantes. Claro que há pessoas trans
que contestam o binarismo homem-mulher. E existem intersexuais que pedem um terceiro
gênero ou uma maneira de marcar seu status intersticial. Então não há visões únicas em
nenhuma das comunidades.30

É justamente pela falta da noção de estrutura clínica que ela não pode compreender por que
esses transexuais se apegam de forma acirrada à sua identidade sexual imaginária e recusam a ideia
de um gênero efêmero e mutável. Ora, se o corpo não passa de uma construção cultural, sem
nenhuma importância para o gênero, o qual é uma categoria volátil, não restrita a uma única
identidade, os transexuais não deveriam se fixar a um gênero, muito menos reivindicar uma cirurgia
de mudança de sexo! Algo, portanto, não funciona na teoria de Butler. Porém, ela não pode
entender o quê, já que a sua teoria pressupõe um universal, uma posição subjetiva idêntica para
todos face ao gênero, enquanto sujeitos que fazem uma escolha consciente ante opções.

Essa perspectiva teórica só pode considerar os transexuais no sentido meramente descritivo:


sujeitos que afirmam pertencer a um gênero diferente do seu sexo anatômico. Porém, essa visão
dilui as diferenças, denominando como transgênero ou “trans” tanto aqueles que têm a convicção
de que o seu sexo anatômico não corresponde à sua identidade, sendo uma fonte de mal-estar e
sofrimento, quanto os que jogam com a identidade imaginária, numa posição semelhante à do
travesti, sem que sua anatomia seja algo insuportável. Foi baseado no estudo de caso dos primeiros

29
BUTLER, J. Conferência de abertura do I Seminário Queer - Cultura e Subversões da
Identidade. Disponível em:
http://www.sescsp.org.br/online/artigo/9269_I+SEMINARIO+QUEER+CULTURA+E+SUBVER
SOES+DA+IDENTIDADE#/tagcloud=lista Acesso em: 16/09/15.
30
BUTLER, J. Sem medo de fazer gênero, op. cit.
que Robert Stoller escreveu o seu livro pioneiro Sex and Gender, lançando a noção tão cara a
Butler. São estes sujeitos que a psicanálise reconhece como transexuais.

Os transexuais, que pretendem possuir uma alma feminina prisioneira de um corpo de


homem para o qual pedem correção, são talvez os únicos a se vangloriarem de uma identidade
sexual monolítica, isenta de dúvidas e de questionamentos.31

Surpresa! Aqueles que seriam o melhor exemplo da fluidez do gênero são na realidade os que
mais se apegam à sua identidade sexual. Na verdade, poderíamos dizer que são aqueles que não têm
dúvidas acerca dessa identidade.

Esses transexuais poderiam parecer, certamente, eu diria, entrar então num campo
perfeitamente convencional, se eles não se caracterizassem pelo seguinte, e eu diria que para
mim é o único traço que eu vou ressaltar como constituindo a marca da mutação que eles
exigiram: é não apenas que a afirmação de sua identidade se faz com uma certeza inabalável –
ao passo que um homem, uma mulher, eu diria “comuns”, podem sempre oscilar em seus
comportamentos, em seus reflexos, em suas condutas, nas diversas ocasiões às quais são
expostos, podem sempre, eu diria, ter condutas às vezes ambíguas, ambivalentes, ter, para uma
mulher, traços masculinos e, para um homem, traços femininos, etc...

No caso dessas pessoas, trata-se, ao contrário, de uma noção suficientemente excepcional


para ser assinalada, que é aquela da certeza, portanto, e não há possibilidade para um transexual,
eu diria, de jogar com o que seria a esse respeito algum, alguma ambivalência, e também a
certeza de ser, na categoria escolhida, o mais ilustre ou o melhor representante.32

Jean-Jacques Tyszler33 comenta que nos últimos anos, a legislação europeia situou o tema da
identidade sexual no âmbito dos direitos individuais, de maneira que os psicanalistas foram levados
a abandonar os estudos sobre o transexualismo para não serem acusados de patologizar a questão.

O direito europeu lembra até às nações que elas devem levar em consideração a
modificação do sexo aparente correlativamente à questão do estado civil. Aqui mesmo, há
alguns anos, falávamos dos fenômenos do transexualismo. De certo ponto de vista, não temos
mais o direito de falar disso da mesma maneira. O direito não autoriza mais a fazer querela.

A demanda do transexual de ser reconhecido como pertencente a outro sexo que não o da sua
anatomia, para a psicanálise, não pode ser resumida simplesmente a uma oposição entre
patologização versus politização. Trata-se antes de distinguir qual a posição a partir da qual esse
sujeito articula a sua demanda. Isso permitiria escutar melhor tal demanda, de modo que a sua
vivência com o sexo no qual se reconhece lhe cause menos sofrimento. Pretender transformá-lo em
um militante do gênero, ao contrário, não resulta em nenhum ganho, nem teórico, para os estudiosos
da sexualidade, nem pessoal, para o transexual, haja vista a reação que surpreende Butler.

Da negação do sexo à negação do eu

31
MILLOT, C. Extrasexo: Ensaio sobre o transexualismo. São Paulo: Escuta, 1992. p. 16.
32
MELMAN, C. Uma calça para dois: o ideal da paridade no mundo industrial. Tradutor Sérgio
Rezende. 14/5/2008. Disponível em: <www.tempofreudiano.com.br>. Acesso em 12/5/2013.

33
TYSZLER, J.-J. O fantasma na clínica psicanalítica. Recife: Ed. do tradutor, 2014. p. 153.
A negação de qualquer importância do corpo fora das representações culturais supõe o gênero
como uma categoria flutuante, inteiramente desvinculada de qualquer realidade anatômica.

O gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um locus de ação do qual
decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuamente constituída no
tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do
gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a
forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem
a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero. Esta formulação tira a concepção do
gênero do solo de um modelo substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer
concebê-lo como uma temporalidade social constituída.34

Finalmente, sendo o gênero desvinculado do sexo e a identidade sexual um jogo de máscaras


sem nenhuma estabilidade a não ser a da sua precária permanência temporal, os gêneros, no plural,
se multiplicam e se modificam ao ponto de se dissolverem. Eles não se limitariam mais à dualidade
masculino/feminino, tampouco se restringiriam a um número, seja cinco ou sete, como pensaram
alguns autores, mas seriam em número potencialmente infinito, pois dependeriam da criatividade de
cada indivíduo. Resta o gênero, no singular, entendido como uma mascarada proteiforme, pura
potencialidade de encarnação de múltiplos gêneros.

Nesse ponto, Butler produz a sua hipérbole máxima, ao partir da ideia da constituição do eu
enquanto montagem imaginária para questionar a estabilidade desse próprio eu que acreditamos
sustentar a nossa identidade, questionando a própria possibilidade de construir uma narrativa na
primeira pessoa. Esse é o tema do seu mais recente livro, onde ela fala inclusive da narrativa na
psicanálise.

Mas e se a reconstrução narrativa de uma vida não puder ser o objetivo da psicanálise, e a
razão disso tiver a ver com a própria formação do sujeito? Se o outro está presente desde o
início no lugar onde estará o eu, então a vida se constitui por meio de uma interrupção
fundamental e inclusive se interrompe antes da possibilidade de qualquer continuidade.
Consequentemente, se a reconstrução narrativa há de se aproximar da vida que pretende
transmitir, deverá também estar sujeita à interrupção.35

Mas não nos desesperemos. Ela reconhece que construir uma narrativa coerente pode até ser
algo positivo para o falasser.

É claro, aprender a construir uma narrativa é prática crucial, principalmente quando pedaços
descontinuados da experiência permanecem dissociados entre si em virtude de condições traumáticas.
Minha intenção não é subestimar a importância do trabalho narrativo na reconstrução de uma vida que, de
modo geral, sofre de fragmentação e descontinuidade. Não se deve subestimar o sofrimento que pertence
às condições de dissociação. As condições de hipercontrole, no entanto, não são mais salutares do que as
condições de fragmentação radical.36

Assim, a autora parte de uma noção de gênero suficientemente ambígua para pressupor uma
autonomia do sujeito, digo, do indivíduo, capaz de construir a sua identidade de gênero. Em

34
BUTLER, J. Problemas de gênero..., op. cit. p. 242.
35
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015. p. 72.
36
Id., ibid.
seguida, “desconstrói” sua própria noção de gênero, diluindo-a num jogo de identidades transitórias
sem outra estabilidade senão a sua tênue permanência ao longo do tempo. Para finalmente
questionar o próprio eu que supostamente sustentaria um gênero, reduzindo-o a uma identidade tão
volátil e efêmera quanto o próprio gênero. Ao desconsiderar a distinção entre o eu e o sujeito do
inconsciente, atribuindo ao primeiro características do segundo, ela acaba por supor um eu
consciente, porém constituído à maneira do sujeito, pontual e evanescente, a tal ponto que até
mesmo a possibilidade de emprego do pronome “eu” em uma narrativa torna-se objeto de
questionamento.

A contradição com a qual ela se defronta é considerar esse eu sem consistência como capaz de
escolhas éticas. Para tentar solucioná-la ela percorre os textos da tradição filosófica, algo que deve
ser objeto do gozo intelectual dos acadêmicos, mas que é problemático quando se trata de uma
teoria que pretende esclarecer a sexualidade, o que implica necessariamente um mínimo de conexão
com a realidade da vida dos indivíduos. Talvez por isso o emprego reiterado do termo corpo,
sobretudo em suas últimas conferências, como forma de evitar falar de sujeito ou indivíduo, já que
ela esvaziou tais conceitos. “Afinal, ainda que tenhamos que lutar por liberdades individuais, temos
que pensar o lugar de corpos atuantes e de corpos movendo-se livremente dentro de uma
democracia.”37

Não deixa de ser irônico chegarmos ao ponto em que podemos nos perguntar se trocamos os
direitos humanos pelos “direitos dos corpos”.

O real, o impossível e a realidade

Se a teoria do gênero, pretendendo inspirar-se, ainda que parcialmente, na teoria de Lacan, nega
o Simbólico e restringe o papel da linguagem à troca de mensagens entre interlocutores – algo que,
segundo a terminologia de Lacan, seria definido como o Imaginário –, onde ficaria o Real? Esse
registro é totalmente excluído: primeiro, enquanto real do corpo, uma vez que, como vimos, o sexo
anatômico é considerado irrelevante, numa leitura simplista do caráter determinante da linguagem.
Em seguida, é excluído enquanto impossível, uma vez que não há mais o impossível da relação
[rapport] sexual.
Com essa expressão Lacan faz referência à insatisfação do casal, indicando que essa insatisfação
não é contingente, não se deve a causas individuais (defeitos pessoais dos parceiros) ou sociais
(dificuldades provenientes de uma dada situação histórica), mas é efeito da desnaturação que a
linguagem produz nos seres falantes, eliminando o que seria um objeto sexual natural, instintivo,
que garantiria um gozo pleno. Não há um rapport – palavra que Lacan emprega e que significa
tanto relação quanto proporção e razão, no sentido lógico-matemático – pois não há na linguagem
um significante que garanta um laço entre os sexos. Isso não significa que não possa haver o

37
BUTLER, J. Entrevista: A performatividade de gênero e do político. In: Revista Cult,op. cit.,
p.20-26. p. 24.
encontro sexual, obviamente. A linguagem estabelece as condições em que se dão o desejo e o
gozo, mas não inscreve uma relação.

Esse impossível que a psicanálise reconhece é também aquele com que o sujeito esbarra como
uma violência primordial, de que fala Jean-Pierre Lebrun:

[...] É uma violência, por exemplo, não poder escolher seus pais, o que leva com frequência
a injustiças flagrantes. É uma violência que a anatomia se imponha a cada um de nós, e faça
com que nasçamos homens ou mulheres. As primeiras palavras da mãe a respeito de seu filho
podem ser consideradas como uma violência, quando ela supõe um saber a seu filho, o qual fica
limitado a isso que ela percebe, uma espécie de acossamento. Porém é melhor ter as palavras
limitadas de uma mãe do que não ter nenhuma palavra. Outra violência, a introdução do pai, que
se interpõe entre a mãe e a criança para produzir a alteridade, é frequentemente vivida como
uma invasão. A posição dos pais, tanto da mãe quanto do pai, quando recusam à criança a
persistência de sua onipotência infantil, implica uma violência. [...] o sentido dessa violência
consiste em reconhecer que os lugares diferentes existem, que não podemos ocupá-los todos ao
mesmo tempo, que não podemos ser todas as gerações, nem todos os sexos, que, portanto,
somos limitados, que não é possível tudo.38

É essa violência primordial que Butler entende literalmente como violência política. Que esses
limites, que dizem respeito à própria condição do filhote da espécie humana diante do mundo ao
qual ele chega, ao seu desamparo primordial (Hilflosigkeit) como se referiu Freud, possam ser
entendidos como imposições ideológicas, é algo surpreendente. Mas é dessa forma que essa autora
entende, daí sua rejeição do conceito de Simbólico, que ela toma de forma persecutória, como
imposição de normas culturais.

A afirmação do Simbólico como inteligibilidade cultural em sua forma presente e


hegemônica consolida efetivamente o poder dessas fantasias, bem como dos vários dramas dos
fracassos da identificação. A alternativa não é sugerir que a identificação deva tornar-se uma
realização viável. Mas o que parece realmente acontecer é uma romantização ou mesmo uma
idealização religiosa do “fracasso”, uma humildade e limitação diante da Lei, o que torna a
narrativa de Lacan ideologicamente suspeita.39

Butler toma como impotência aquilo que se coloca para o sujeito como impossibilidade. Nesse
sentido, a psicanálise, que afirma que somos todos submetidos às leis da linguagem, só pode ser
vista como conservadora. “A teoria lacaniana deve ser compreendida como uma ‘moral do
escravo’.” 40 Segundo esse raciocínio, as leis da linguagem são reduzidas a um conjunto de falas
que transmitem normas culturais, o Simbólico constituindo a soma de tais normas.

Daí porque tudo o que concerne à sexualidade passa a ser tomado não no âmbito do desejo, mas
da demanda social, da reivindicação política. “A grande filosofia moral dos dias de hoje é que cada
ser humano deve encontrar em seu meio com o que se satisfazer, plenamente. Se não for assim, é

38
LEBRUN, J.P. apud DURA TEA, C. Amour, sexe et violence. Disponível em : www.freud-
lacan.com Acesso em 12/5/2014.
39
BUTLER, J. Problemas de gênero..., op. cit. p. 105.
40
Id., p. 106.
um escândalo, um déficit, um dolo, um dano.” 41 Passamos do campo da fantasia ao campo do
direito, conforme ressalta Jean-Jacques Tyszler, para quem “[...] os direitos modernos do corpo
substituem a clássica tensão entre o desejo sexual e a lei. A lei, não no sentido da lei civil, a lei no
sentido da lei da linguagem, lei da palavra.” 42

Conclusão

Não creiam, porém, que essa teoria seja uma unanimidade entre as autoras que se identificam
com o feminismo. Como se expressa a psicanalista Joan Copjec:

A teoria do gênero realizou uma façanha maior: ela subtraiu o sexo ao sexo; enquanto os
teóricos do gênero continuam a falar das práticas sexuais, eles cessaram de questionar o que o
sexo ou a sexualidade significam; em resumo, o sexo não é mais o tema de uma busca
ontológica, mas retorna a isso que sempre foi na linguagem comum: uma vaga espécie de
diferenciação, mas fundamentalmente uma característica secundária (uma vez aplicada ao
sujeito), um qualificador que se acrescenta a outros, ou (uma vez aplicado a um ato) algo meio
feio, meio vergonhoso.43

Outra grande autora feminista, Camille Paglia, chega a dizer, com seu estilo irreverente, que
existem “pessoas com ideias estúpidas”, influenciadas por Foucault, que afirmam que o gênero é
algo imposto pela sociedade, que não há base biológica para a ideia de gênero. “Essas pessoas estão
malucas? Elas não sabem que toda e qualquer pessoa que está na face da Terra nasceu do corpo
feminino?” 44

O que se ganha teoricamente com a teoria do gênero? A demonstração de que o sexo, para os
seres da fala, é dissociado da natureza? Essa constatação, que provoca o deleite dos acadêmicos, foi
feita por Freud no início do século 20. Que as formas de sexualidade não heterossexual não são
“anormalidades”, mas formas da diversidade sexual humana? Outra constatação antiga desse
mesmo autor, que nas suas Conferências Introdutórias à Psicanálise45 refere-se à
homossexualidade como uma ramificação (Abzweigung) da sexualidade. Que o corpo é constituído
pela linguagem? O corpo pulsional é o quê mesmo?

Não, a novidade da teoria do gênero consiste em dissociar inteiramente o gênero do sexo,


negando a este qualquer importância e atribuindo ao primeiro um caráter efêmero e mutável. O
gênero deixa de ser entendido como o componente psicossocial do sexo, como dizem os psicólogos,
ou imaginário, nos termos de Lacan, para converter-se em uma construção puramente performativa,
uma máscara que pode ser trocada indefinidamente. Ao mesmo tempo, Butler atribui à linguagem o

41
MELMAN, C. O homem sem gravidade - Gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 2003, p. 31.
42
TYSZLER, J.-J. O fantasma..., op. cit., p. 37.
43
COPJEC., J. apud DUBUIS-SANTINI, C. 1984 c’est maintenant. Op. cit.
44
PAGLIA, C. Mulher deve ser maternal e parar de culpar o homem, diz Camille Paglia.
Entrevista. In: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada
45
FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanálise: Conferência 20 – A vida sexual humana
[1917]. In: _____. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. vol. 13, p. 401-424.
p. 408.
poder de determinar o gênero, porém reduzindo-a ao jogo das falas, ao diálogo entre interlocutores,
negando qualquer existência de um campo da linguagem que funcione como uma instância terceira
entre os interlocutores. Finalmente, faz parte da sua originalidade articular a sua teoria à luta
política do movimento feminista, ao mesmo tempo questionando a própria estabilidade do termo
“mulher” e com isso implodindo teoricamente o próprio feminismo.

Finalmente, já que a dimensão política é indissociável de tal teoria, qual seria o ganho político
favorecido por ela às mulheres engajadas na luta por seus direitos civis, direitos que ainda estão
distantes da realidade em muitos países, sobretudo da Ásia e do continente africano? Em que as
mulheres seriam favorecidas por uma tese que questiona o próprio termo “mulher” e a noção de
uma identidade feminina? Quando Lacan afirmou que “A Mulher não existe” foi alvo de toda
espécie de críticas. Mas ele destacava o “A” maiúsculo, frisando que as mulheres existem uma a
uma. Ora, Butler nega a existência a cada uma das mulheres ao afirmar que a sua feminilidade não
passa de uma construção do mesmo teor que a do travesti, e ao dizer isso é aplaudida.

Quanto à violência sexual e o preconceito dirigidos às mulheres e todos aqueles que fazem uma
escolha de objeto homossexual ou cuja identidade sexual não corresponde ao seu sexo anatômico,
essa violência e esse preconceito seriam melhor combatidos difundindo o ensino de uma teoria que
afirma que a anatomia não possui absolutamente nenhuma importância para a constituição da
identidade sexual? Que esta, por sua vez, é socialmente determinada, e não é mais do que uma
máscara? Em que os adolescentes, que experimentam uma dificuldade específica relacionada à sua
identidade, seriam favorecidos com o ensino de que o seu próprio eu deve ser considerado como
fluido e inconsistente?

Quanto aos psicanalistas que consideram que essas teses contribuem para o esclarecimento de
como se constrói a identidade sexual, eles poderiam dizer em que a redução dessa construção à
hipótese de que ela é “culturalmente determinada”, hipótese tão vaga e imprecisa que a própria
autora afirma que seus seguidores não a compreenderam, contribui para a teoria e a clínica
psicanalíticas. Para aqueles que tomam como referência o ensino de Lacan, estes poderiam
esclarecer como uma teoria que considera o Simbólico uma instância religiosa, que exclui o Outro
enquanto instância terceira – uma vez que reduz a linguagem ao diálogo entre interlocutores,
semelhantes, pequenos outros –, que exclui o Outro enquanto alteridade do sexo, uma vez que
considera que os parceiros se situam em posições idênticas enquanto encenadores de gêneros
performáticos, poderia ajudar a compreender melhor a sexuação.

[...] penso que temos que trabalhar questões debatidas sob o ângulo do sex and gender,
sobretudo sob o termo ideologia. Não quero dizer que toda ideologia é idiota, mas temos que
entender como uma ideologia, que é hostil a certo número de reais que a psicanálise conduz -
que é o campo das pulsões, a questão do fantasma [fantasia] no sentido freudiano, até mesmo a
questão do traço de identificação, o que chamamos em psicanálise um traço, que não é a questão
do reconhecimento –, como cada um de nós nos reconhecemos a partir de traços
identificatórios.46

46
TYSZLER, J.-J. O fantasma na clínica psicanalítica, op. cit., p.180.

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