Você está na página 1de 18
2. A REVOLUGAO FREUDIANA A obra freudiana marcou de forma indelével a evolugio das concepgbes acerca das relagdes entre o psiquico ¢ o somatico. Perce- bemos no proprio percurso de Freud a maneira como suas inquie- tagGes pessoais ¢ os desafios encontrados durante sua formagiio e ao longo de sua pratica clinica foram constituindo um corpo tedrico- el{nico que sistematicamente propde ¢ reformula modelos para a compreensio de tais relagdes. Inicialmente inclinado para Direito, influenciado pela obra de Goethe e Darwin, Freud decidiu voltar-se para a Medicina”. Entre 1876 ¢ 1882 ele trabalha sob a diregdo de E. Briicke iniciando o que poderia vir a constituir-se uma promissora carreira como anatomofi- siologista do sistema nervoso. Freud se esmerava como pesquisador, desenvolvendo sua capacidade de observagio e sua técnica de dis- secagio do sistema nervoso de enguias. Incitado por Briicke, entusiasmado com seu discfpulo, langou-se no trabalho de sistema- tizagiio e de teorizagao de suas observagées, publicando cerca de vinte artigos sobre suas pesquisas. Porém, em 882,)Freud decidiu abandonar a pesquisa em neu- rologia para dedicar-se a clinica das doengas nervosas. Segundo a histdria oficial, tal mudanga deveu-se sobretudo a sua condigao financeira precdria, que ndo encontraria na pesquisa fundamental 77. S. Freud (1925). Um estudo autobiogndfico, E-S.B., XX, p.20. 60 COLEGAO “CLINICA PSICANALITICA” recursos suficientes para concretizar seu projeto de constituir uma familia com Martha Bernays. Porém, como sugiro em outro traba- Tho, poderfamos questionar a fun¢do encobridora dessa versao consi- derando que a atitude de Freud foi também reflexo de sua insatis- fagGo com os modelos e as perspectivas oferecidos pela neurologia de seu tempo para responder As inquietagGes que sempre manifes- tou a respeito da natureza humana’. Em 1882 Freud foi aceito como assistente na clinica do professor H. Nothnagel, em Viena, e, seis meses depois, promovido a médico estagidrio na clinica psiquidtrica de Meynert, expoentes da neuro- logia da época. A exemplo de Briicke, também apreciava as qua- lidades e competéncias de Freud. A precisdo de seus diagnésticos era reconhecida por outros colegas vienenses e mesmo estrangei- ros”. Apesar dos obstdculos politicos e do preconceito, ele consegue por seus méritos atingir todos os graus da hierarquia hospitalar ao seu alcance na época. Gragas a interveng4o de Briicke, Freud foi nomeado em 1885 para o cargo de conferencista (Privat-Dozent) na Universidade de Viena, obtendo também a bolsa de estudos que lhe permitiu empre- ender, naquele mesmo ano, sua viagem de estudos a Paris e Berlim. Com Briicke, Meynert, no Hospital Geral e nos circulos médicos de Viena, Freud passou a ser reconhecido e sobretudo acolhido, encon- trando no apenas vias possiveis de safda para “seu isolamento”, mas também para sua ascens&o na hierarquia médica. A viagem para Paris e a busca de outro modelo em Charcot constitufram para Freud uma tentativa de resposta a sua insatisfagao ao seu encontro 78. RM. Volich (2000). Paixdes de transferéncia. Desenvolvo nesse artigo a hip6tese que, muito antes da formulagao do conceito de transferéncia, asensibilidade de Freud a sua experiéncia transferencial, com relagdo aos seus objetos de estudo e a suas relagGes pessoais ¢ profissionais, constituiu-se como um vetor determinante de seu percurso da neurologia & psicandlise. Essa experiéncia foi um operador fundamental que permitiu a Freud compreender c efctuar as teorizagées ¢ transformagées que instrumentaram sua passagem da pesquisa neurofisiolégica c da clinica médica classica ao desenvolvimento da psicanilise, enquanto método terapéutico e corpo teérico. 79. S. Freud (1925). Op. cit., p. 22. PsiCossoMATICA: DE HiPOCRATES A PSICANALISE com a realidade da clinica das doengas nervosas e com as teoria: que, na época, as sustentavam. Freud buscava em Charcot muito menos os segredos da gléria € do poder que este desfrutava em seu pais do que uma presenga sufi- cientemente forte que permitisse a um jovem médico vienense de 26 nos superar os impasses criados por suas identificagdes com seus mestres vienenses e por suas teorias, principalmente no que dizie Tespeito aos mistérios da histeria. Nesse sentido, Freud deslumbrou-se nao apenas com a mise-en-scéne dos audit6rios e das consultas de Charcot, mas, sobretudo, com suas contribuigdes acerca da histeria ao atribuir-lhe um lugar especial entre as doengas nervosas. Freuc acompanhava pessoalmente suas demonstragdes e experimentagées com as pacientes com a utilizagao da hipnose. Charcot reconheceu “a autenticidade das manifestagGes histéricas e de sua obediéncia a leis”, a existéncia da histeria em homens e a equivaléncia de “parali- Sias e contraturas histéricas produzidas por sugesta0 com as mesmas caracteristicas que os acessos esponténeos, que eram muitas vezes provocados traumaticamente”. Freud aprendeu c itara piisaea.observacdo.camosoberanas com relacao.a qualquer teo “La théorie c’est bon, mais can'empéche pas dexister”, afirmava Charcot, “um mot [palavra] que deixou indelével marca em [seu] espirito”®, Encontrando respaldo para suas intuigdes na autoridade de Charcot, Freud também Permitia-se questionar o mestre. Ressen- tiu-se de sua pouca receptividade ao caso de Anna O., cuja escuta da hist6ria clinica por Breuer tanto o havia entusiasmado*!, Apesar do pouco interesse demonstrado por Charcot por sua hipotese de “que na histeria as paralisias e anestesias das varias partes do cori oO seachanrdeniarcadas de acon locom a id popular d6s'seus limi- cos”, Freud nao abdi: tes e nao em conformid; Atos. oe cava desta. Nao apenas manteve sua teoria, que veio a constituir-se Sees Una 80. ‘eoria €importante, mas no impede que (0 fenémeno) exista,” S. Freud (1925). Op. cit. p.24. : 81. Ibid. p.32.

Você também pode gostar