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A nacdo na América espanhola: 4 questdo das origens Frangois-Navier Guerra Centre de Recherches en Histoire de l'Amérique Latine et du Monde Ibérique, Universicé de Paris I (Panthéon - Sorbonne) Refletir sobre a nagio na América espanhola é se avencurar num vasto campo de pesquisas, nao s6 pelo ntimero de paises envolvidos — dezenove, contando Porto Rico ~ mas pela complexidade do processo de construgio na- cional em sociedades bem diferentes ¢ heterogéneas. Ja que este texto nao pretende esgotar 0 tema, centraremos nossa reflexo sobre as origens das “na ges” hispano-americanas, Esta escolha no corresponde somente ao lugar pri- vilegiado que as origens ocupam na elaboragio de qualquer imagindrio nacio- nal, mas também a uma das especificidades mais marcantes destes Estados, que éa de terem saido de um tinico conjunto politico, a Monarquia hispanica Reromar a questio das origens é, entretanto, avancar num terreno dificil, pois as interpretagdes e mitos elaborados por quase dois séculos de construgio nacional sio impregnantes. O nascimento das “nacdes” hispano-americanas evoca constantemente para os nfio-especialiscas e, « fortiori, para.a imensa mai- oria da populagio destes paises imagens e termos vagos, como emancipagio nacional, nacionalismo, coldnias, descolonizagio, paises novos. Esses tracos dos grandes debates politicos do passado americano, ftagmentos de constru- goes historiograficas, empréstimos feitos problematica nacional de outros continentes, transformaram-se em lugares-comuns propicios a todo tipo de ambigilidades e a todos os anacronismos. Os mais recentes destes lugares-comuns nfo sio menos duvidosos. Associ- ar, por exemplo, a independéncia da América hispanica a uma descolonizagio € adotar linhas incerprecativas elaboradas em tempos ¢ lugares diversos. Esta concepgio, que se desenvolveu apés a II Guerra Mundial, ligadaa visio tercei- ro-mundista de América Latina, resulta num verdadeiro contra-senso histéri- co, pois a palavra " oldnia”, empregada as vezes pelos procagonistas da inde- pendéncia, revestia-se de um sentido diferente. Nao se pode comparar a descolonizagio contemporinea, na qual os povos subjugados pela Europa se liberam de sua cutela, com uma independéncia realizada por descendentes de europeus. Se € preciso procurar uma comparagio pertinente, ¢ em dirego aos Estados Unidos que se deve voltar, marcando porém as diferengas — nume sas ~ que separam a América bricinica da América espanhola, tanto pelo card ter multiétnico desta, quanto pelo proprio desenrolar do processo de ir depen déncia. Como os Estados Unidos, os Estados hispano-americanos sfio paises novos, no sentido mais forte do termo, na medida que eles no cém outros precedentes histéricos a nao ser o das novas comunidades que a expansio euro- péia criou pouco a pouco no Novo Mundo. Fazer estes Estados, de alguma maneira, herdeiros dos antigos “Estados” indigenas é retomar ingenuamente os temas da retdrica independentista para justificar a separago com a Europa e exaltar sua nova existéncia por uma antiguidade gloriosa. © mesmo se aplica aos termos de "emancipagio nacional” e “nacionalis- mo”, ainda muito utilizados nas histérias nacionais dos paises lacino-america- nos. Gracas a estas expressdes, nds nos achamos em terreno conhecido: o da “questo nacional” da Europa do século XIX. Seguindo um esquema “nacionalistico” da formagio do Estado-nagio, os Estados hispano-americanos so concebidos como expressio de nacionalidades que, pela independéncia, conquistaram existéncia auténoma como nagdes soberanas. Esta versio to evidence e familiar apresenta problemas consideréveis. O primeiro é a auséncia de todo movimento nacionalista antes da independén- cia; curiosas nacionalidades, estas nacionalidades mudas.' O segundo concerne a0 contetido mesmo desta nacionalidade, que em geral remete a uma comuni- dade dotada de uma especificidade lingitistica e cultural, religiosa e étnica. A América espanhola é um verdadeiro mosaico de grupos deste tipo, mas ne- nhuma “nagio” hispano-americana jamais pretendeu se idencificar com qual- quer um deles. Acé porque, depois de erés séculos de vida em comum, todos estes grupos se encontravam entrelacados, profundamente miscigenados e partilhavam em grau bem elevado a mesma religido ¢ a mesma lealdade politica. Os fundadores dos novos Estados, os construtores das novas nagées sio todos de origem européia e tém em comum tudo que, além disso, consticui a nacionalidade: a mesma origem ibérica, a mesma lingua, a mesma religio, a mesma cultura, as mesmas tradigées politicas e administrativas. S60 lugar de nascimento eas identidades culturais em formacio os diferenciam dos euro- peus que estavam do outro lado do Atlintico. Mesmo se estes tiltimos ele- mentos serviram de fundamento 4 edificacdo de novas nagdes, parece excessivo 10 atribuir-lhes o valor de uma nacionalidad O problema da América Latina no é o das nacionalidades diferentes se consticuindo em Estados, mas sobre- tudo o problema de construir, a partic de uma mesma “nacionalidade” hispa- nica, nagées separadas ¢ diferentes. Conseqiiéncia légica dessa extraordindria homogeneidade culcural da Mo- narquia hispanica: as “nagdes" que nés conhecemos hoje raramente correspon- dem as que nasceram na época da independéncia. Estas tiveram existéncia efémera e, por sua vez, se fragmentaram, arrastadas por um movimento cen- trifugo que colocou em perigo a existéncia de nagdes, como a Argentina ou o México, que nos parecem agora os mais estabelecidos. Se uma certa nacionali- dade estava na base da nacio, como explicar a friabilidade dos novos Estados? O cardter teleoldgico desta interpretacio € evidente; ele repousa sobre uma confusio semfntica entre um dos sentidos politicos do termo “nagiio” — ser um Estado soberano — e de um dos seus sentidos culturais — ser uma comunidade humana dotada de uma identidade singular. S6 a necessidade imperiosa de con- solidar paises instaveis e de conforma-los ao modelo de Estado-nacio que triun- fava encio na Europa explica que os autores da bistéria pétria (a historia de cada uma das “nagdes” latino-americanas) cenham se esforgado a fazer da indepen- dén © coroamento, por assim dizer, natural ¢ inelutavel da preexisténcia da nagio, Tudo mostra, a0 contrério, que esta nao € um ponto de chegada, mas um ponto de parcida. A independéncia precede tanto a nacio como o nacionalismo. Isto quer dizer que os novos Estados no se apdiam sobre qualquer identi- dade coletiva prévia? Seria absurdo pretender tal coisa. Todo 0 problema é de saber quais eram, entre as mtiltiplas identidades grupais existentes nesta mo- narquia de antigo regime, as que serviram de fundamento a constituigao dos novos Estados, se elas bastavam para explicar a independéncia. O desmorona- mento do Império russo-soviético, ao qual nds assistimos, mostra bem que a desintegragio de um conjunto politico multicomunitério pode nao ter ori- gem nas reivindicagées destas comunidades — de existéncia aliés constance- mente incerta — mas numa crise que afeta primeiro 0 centro do império, poe em causa sua estrutura politica global e acaba por provocar numa tiltima fase sua implosio. E nesta ética — a ruptura de um conjunto politico multicomunitério, da qual o século XX nos oferece outros exemplos?— que convém analisar a inde- pendéncia da América espanhola. £ preciso, em conseqiiéncia, examinar pri- meiro a estrutura politica da Monarquia hispanica e os diferentes tipos de identidade coletiva que existiam no seu interior, para estudar, em seguida, ra

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