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A prática de ensino e a formação do licenciado em história: questões

para uma outra reforma do Ensino Médio


“A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam
como sou – eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que
olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
(Manoel de Barros)

I. O estágio supervisionado

Nos processos de formação universitária de professores, em cursos de licenciatura, o


estágio supervisionado é uma das atividades mais tradicionais de aproximação do aluno
com a realidade profissional. Em termos formais, ele implica, necessariamente, uma
relação entre três sujeitos: o professor em formação (aluno de uma instituição de ensino
superior); o professor universitário (docente da instituição de ensino superior onde o
professor em formação estuda); e o professor da Educação Básica (docente na escola-
campo onde o professor em formação realiza suas atividades de estágio).
Mas, em termos conceituais, seus sentidos variaram ao longo dos tempos. O estágio foi
concebido com uma dimensão preferencialmente profissionalizante, tendo sido,
posteriormente, identificado com questões teóricas próprias da didática do ensino. Nos
anos 1980 e 1990, privilegiou-se o potencial de investigação do estágio supervisionado,
na formação de professores/pesquisadores por meio da pesquisa-ação nas salas de aula.
E, contemporaneamente, a importância e a obrigatoriedade do estágio supervisionado
foram reiteradas pelo Conselho Nacional de Educação, como uma das estratégias de
articulação teoria-prática na formação de docentes da Educação Básica (CARVALHO,
Anna Maria Pessoa de. “A influência das mudanças da legislação na formação dos
professores: as 300 horas de estágio supervisionado”. In: Ciência & Educação, v.7,
n.1, p.113-122, 2001.)
Neste caso, houve uma separação formal entre prática e estágio, sendo a primeira
relacionada ao conteúdo das disciplinas da matriz curricular dos cursos de formação de
professores e a segunda, à análise do ambiente profissional da escola básica, a partir dos
pressupostos teóricos aprendidos na formação universitária. Desde, então, a chamada
“prática de ensino” vem sendo “incorporada” ao Estágio Supervisionado e disciplinas
que gravitam em torno da questão metodológica do ensino de história.
Com sentidos pedagógicos e sociais variados ao longo de seus quarenta anos de
existência formal, o estágio supervisionado mantém-se como uma das atividades mais
destacadas dos cursos de licenciatura, como dimensão fundamental da formação de
professores.
Há que se considerar, entretanto, que muitas vezes é um desafio ensinar e/ou transmitir
a experiência da docência em história na disciplina de estágio e/ou de prática de ensino.
É um desafio diário criar atividades que relacionam a teoria e a prática na formação de
professores, junto com outras atividades desta mesma natureza, especialmente aquelas
identificadas como “prática” nos instrumentos legais. Percebemos, tanto pelos
professores em formação quanto pelos professores das escolas-campo de estágio, que as
atividades de estágio vêm sendo tratadas de forma burocrática, como obrigação legal
que precisa ser cumprida e observada. A experiência a ser vivida, literalmente
experimentada, é colocada de lado em nome do fetiche do papel, da burocracia e da
norma. Uma das formas de se escapar a isso, a nosso ver, é procurar superar o modelo
clássico de “relatórios de estágios”, visto por nós como instrumentos viciados que
levavam, em geral, à burocratização da experiência da formação (Selva). Enfim,
pensamos que para tal é preciso levar em consideração as “finalidades” do ensino de
história.
No que se refere às articulações entre prática, teoria, metodologia e ensino de história é
importante retomar os argumentos de Fernando Seffner (2000). No texto “Teoria,
metodologia e ensino de História” o autor reflete sobre o fato de que, muitas vezes sem
perceber, todo professor baseia a sua prática pedagógica em concepções teórico-
metodológicas sobre história e educação. Aponta, inclusive, em alguns casos, um
descompasso entre as concepções declaradas pelos professores no discurso e aquelas
com as quais eles, efetivamente, operam. (Luiz Carlos Villalta (1992), Laville (1999)).
Por esse motivo, consideramos central na formação do professor de história uma
reflexão sistemática sobre questões próprias da história como disciplina escolar: o que é,
para quê, por que, e como ensinar história?

II. Desafios da prática de ensino e da formação de professor: um olhar subjetivo

Em geral, nossa experiência como orientadores de estágio e de prática de ensino de


história tem levado a algumas constatações que vale a pena ressaltar.
A primeira é a construção de uma efetiva e justa articulação entre teoria/prática, tanto
por parte dos alunos como dos professores. Percebemos que, mesmo ao final do curso
de graduação, uma parte substantiva dos alunos tem uma tendência à separação entre a
reflexão teórica e a descrição das observações nas escolas-campo; a predominância de
análise do livro didático como texto isolado do “mundo do leitor”, em detrimento da
análise de seus usos e apropriações pelos diversos leitores; e, por fim, há uma enorme
dificuldade de articular os saberes pedagógicos, didáticos e históricos para a construção
de materiais didáticos e para a montagem de planos de aula. Via de regra, alunos e
professores desvalorizam o ofício docente em detrimento das atividades de pesquisa.
A segunda observação, por outro lado, soa contraditória com relação à anterior: a
maioria dos alunos aponta, nas observações da escolas-campo, práticas pedagógicas não
comprometidas com uma aprendizagem significativa de conceitos e procedimentos
próprios da história; identifica nos usos do livro didático a ligação direta do ensino com
a mera memorização; mostra, nos impressos didáticos, atividades que reproduziam
tradições e narrativas históricas puramente factuais.
Entretanto, e aí a observação se torna consoante à primeira, ao elaborar seus materiais
didáticos, a grande maioria deles apresenta uma primeira versão de atividades que
incorriam nestes mesmos equívocos por eles apontados. Como fazer um documento
iconográfico ser algo além de ilustração da narrativa escrita em um conjunto de
atividades didáticas? Como dar tratamento adequado a um documento escrito,
construindo estratégias didáticas que permitam aos alunos da Educação Básica conhecer
suas dimensões de documento histórico? Como construir uma narrativa histórica que,
além de fatos e sujeitos, apresente interpretações históricas legítimas, comprometidas
com uma verdade histórica, mas que não representam “a verdade” histórica? Esses
desafios parecem imensos
Uma terceira constatação deve ainda ser destacada: relatos de ex-alunos, colhidos em
pesquisas com egressos, mostram que uma das lacunas de formação se refere às
“capacidades afetivas” e à dificuldade da partilha da experiência. A partir do início de
sua prática docente efetiva, eles acusam, no curso de licenciatura, a ausência de
informações sobre o dia-a-dia da sala de aula, os afetos e desafetos circulantes no meio
escolar, a lida com o ser humano como trabalho do professor – a cultura escolar, enfim
–, para além dos conteúdos formais. Ressentem-se, também, de formas de partilha da
experiência por meio da narrativa oral, que vão além das reflexões teóricas e do
academicismo. A lacuna de reflexão sobre a docência como experiência humana, e não
apenas profissional, é talvez uma das grandes dificuldades na formação do professor de
história que irá trabalhar na Educação Básica.

III. Outras possibilidades?

Temos refletido sobre os limites e as possibilidades de nossa experiência como


formadores de professores e vimos pensando que algumas estratégias – não
necessariamente novas, mas que avançam com relação ao relatório descritivo formal
sobre a observação nas escolas-campo – podem ser construídas. Algumas delas, que
experimentamos, ainda que pontualmente: solicitar a elaboração de artigos sobre a
experiência de estagiários e sobre questões próprias da história como disciplina; propor
a construção de textos com caráter de memorial, que ponham a experiência de estágio
em perspectiva com a trajetória do professor em formação; orientar e avaliar aulas
simuladas nos tempos da disciplina de estágio, experimento que mostrou bons
resultados, porque as aulas podem ser avaliadas pelos colegas e professores, em
discussões presenciais; a construção e a apresentação oral de atividades didáticas,
relacionando-as aos textos de referência sobre o assunto e às observações feitas na
escola-campo; a reconstrução dessas atividades, a partir das críticas apresentadas e das
vivências na escola-campo. Especialmente, tendemos a crer que é muito importante
partilhar as observações realizadas: além de escrever sobre a experiência na escola-
campo, em relatórios, memoriais ou artigos, os professores em formação devem narrá-la
oralmente, discutindo com seus colegas as diferenças e as semelhanças do que é vivido
por cada um deles.
Gostaríamos, ainda, de ressaltar que todo curso universitário, toda formação inicial, por
melhor que seja, deve ser (e só pode sê-lo) incompleta, lacunar e inacabada. Ela tem
uma historicidade, assim como as experiências que relatamos e que serviram de base
para essas breves reflexões. Mas o que torna a formação-experiência digna de ser
lembrada como positiva, inclusive por seus limites, é a capacidade de transmitir e criar
experiências profundas e substanciais para aquele ser humano que um dia irá ensinar o
que se passou para outras gerações: “a educação é o ponto em que decidimos se
amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal
gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e
dos jovens” (ARENDT, 1984, p. 247).
Ensinar a amar o mundo e a assumir a responsabilidade pelo futuro do homem, no
entanto, sabendo que “ao otimismo inclemente opõe-se o ceticismo misericordioso.
(...).” (JONAS, 2007, p. 346). Mesmo diante das dificuldades de vivência e transmissão
da experiência, bem como das agruras da própria realidade escolar (em especial dos
baixos salários), é ainda preciso acreditar, ceticamente, na riqueza da experiência e de
sua partilha.
Nos processos de formação de professores, esperamos, sobretudo, construir um ensino
de história comprometido, por exemplo, em viver e construir as experiências da
igualdade e da diferença em suas radicialidades – a fim, inclusive, de impedir a
repetição de qualquer forma de arbítrio e de injustiça, a começar pela sala de aula.
Nesse sentido, endossamos a avaliação de que um dos compromissos sociais da história
e do ensino de história hoje é tornar nossas expectativas mais determinadas e a
experiência mais indeterminada (KOSELLECK, 1990 e HARTOG, 2003). Cremos que
o ensino poderia contribuir para (re)estabelecer outras formas de relação entre presente,
passado e futuro, construindo pontes entre expectativas e horizontes. Desse modo, é
preciso levar em conta também certa dimensão da existencial da relação entre os
homens e o tempo (RICOEUR, 2007). E reinventá-la, quiçá por meio de borboletas.

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