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A escrita da história

de um lado a outro do Atlântico


Conselho Editorial Acadêmico

Carlos Margaça Veiga
Universidade de Lisboa – UL

Ricardo Alexandre Ferreira
Universidade Estadual Paulista – UNESP

Teresa Cristina Kirschner
Universidade de Brasília – UnB

Vânia Leite Fróes
Universidade Federal Fluminense – UFF
Maria Eurydice de Barros Ribeiro
Susani Silveira Lemos França
(Organizadoras)

A escrita da história
de um lado a outro do Atlântico
© 2018 Maria Eurydice de Barros Ribeiro  
& Susani Silveira Lemos França 
     
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Ribeiro, Maria Eurydice de Barros.
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico / Maria
Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França
(organizadoras). – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2018.

292 p.
ISBN: 978‐85‐7983‐925‐2

1. Portugal ‐ História. 2. Brasil ‐ História. 3. Historiografia.
I. Título. II. França, Susani Silveira Lemos.
CDD – 946.9

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773
 

Capa e imagem: Gabriela Cristina Carvalho Viotti


Projeto Gráfico: SaHis – Serviços Avançados em História

 
 

E como a Historia é um agro e campo, onde esta semeada


toda a doutrina Divina, Moral, Racional e Instrumental,
quem pastar o seu fruto, convertê-lo-á em forças de
entendimento e memória, para uso de justa e perfeita vida,
com que apraz a Deus e aos homens.

João de Barros. Décadas da Ásia

 
 

 
Sumário

Introdução 11
Maria Eurydice de Barros Ribeiro
Susani Silveira Lemos França

A história: saber e discursos correlatos

História Genealogica da Casa Real Portugueza


desde a sua origem até o presente 21
Manuela Mendonça

As cortes no reino de Portugal:


antecedentes e concretizações 43
Maria Helena da Cruz Coelho

A retórica nos prólogos da escrita científica Ibérica


(século XIII) 61
Dulce O. Amarante dos Santos

Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo Tridentino


(séculos XVI a XVIII) 81
Francisco José Silva Gomes

Medicina da mulher em Portugal:


discursos e profissionais do parto. Rumos da historiografia 93
Maria de Fátima Reis

A Adoração dos Magos no Livro de Horas de Dom Manuel I 105


Cintia Maria Falkenbach Rosa

Operários do evangelho:
construindo a espiritualidade franciscana no Brasil 123
Maria Eurydice de Barros Ribeiro

 
 

Os historiadores: seus feitios e seus limites

O elogio do contraditório.
Reflexões sobre a cronística de Zurara 143
Margarida Garcez Ventura

Investidas moralizantes na história da expansão portuguesa 167


Susani Silveira Lemos França

Narrativas portuguesas sobre a Costa da Guiné:


Séculos XV-XVII 191
José Rivair Macedo

A hagiografia na escrita da História Medieval:


convergência e divergência de dois modelos de discurso 213
Armando Martins

Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia luso-brasileira:


algumas considerações 227
Adriana Zierer

A diplomacia portuguesa quatrocentista:


notas historiográficas 251
Douglas Mota Xavier de Lima

“Das cousas do Brasil”.


As cartas e relações dos jesuítas como género narrativo-
historiográfico 271
João Marinho dos Santos

Sobre os autores 285

 
 

Introdução

C
om a recente pulverização e acirramento das discussões
sobre as identidades de grupos, certas categorias, que
outrora serviram para o reconhecimento dos povos e dos
indivíduos, vêm sendo por vezes esquecidas e tornadas obsoletas em
favor de outras que, nascidas sob o argumento da diversidade, têm,
ao contrário e lamentavelmente, ganhado força de universais. O
presente livro, visando resgatar e mensurar as faces de um processo
de identificação construído ao longo de séculos, envolvendo os dois
lados do Atlântico e os diálogos entre duas sociedades assemelhadas,
traz algumas discussões de pesquisadores experientes sobre as
histórias que delas se quis lembrar na forma escrita. Com foco no que
o mar uniu, mais do que no que separou – para lembrar a feliz síntese
de Fernando Pessoa –,1 os estudos deste livro retomam discussões e
lançam novas a propósito de uma questão que esteve na origem da
formação do grupo de pesquisa “Raízes Medievais do Brasil

1
PESSOA, Fernando. Mensagem. Segunda Parte - Mar Portuguez. In: Arquivo Pessoa. Obra édita.
Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos>. Consultado em: 01 dez. 2017.
 
 
11 
 
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Moderno”: como uma dada formação histórica se alimenta de outra


e ao mesmo tempo se singulariza?
Ao longo de uma década de existência, a comemorar o que
reconhecemos como um legado,2 muitos foram os livros e dossiês de
revistas que resultaram das discussões do grupo em torno dos traços
institucionais e culturais de Portugal do período imediatamente
anterior à expansão; discussões que não perderam de vista as relações
entre o poder monárquico, a sociedade portuguesa e os povos e
instituições dos territórios conquistados, sobretudo do Brasil, mas
avançando muito frequentemente pela África. Geografia e duração
abrangentes têm sido, pois, alguns dos trunfos a garantir a
perenidade do grupo e a plasticidade das pesquisas em torno da
referida interrogação.
Por buscarem confluir mais de uma linha de abordagem, os
trabalhos que vieram a público não se restringem ao campo das
causalidades da expansão, tão bem exploradas por historiadores
como Salvador Dias Arnaut, A. H. de Oliveira Marques, Humberto
Baquero Moreno, Frédéric Mauro, Vitorino Magalhães Godinho,
entre outros. Tampouco se pode dizer que é a ênfase sobre os
aspectos políticos e administrativos da expansão ultramarina ou da
sociedade portuguesa do período – cujos pilares foram lançados por
historiadores como Jorge Borges de Macedo, Charles Boxer ou
Joaquim Veríssimo Serrão, para ficarmos por apenas alguns – que
caracteriza inteiramente as linhas de interesse. Composto por pelo
menos três gerações de historiadores, o grupo vem se conduzindo,
pode-se dizer, por uma premissa da história portuguesa que lhe
permite avançar do político e do econômico para o social e o cultural:
o autoreconhecimento do povo como marítimo, melhor, como afeito
ao mar e atraído por terras não contíguas e povos dessemelhantes.
Uma premissa, contudo, que não deixa enfraquecidos os seus elos

2
Pelos sentimentos que temos ou devamos ter em relação aos produtos do trabalho realizado. Cf.
ANKERSMIT, Frank R. Commemoration and national identity. Memória, identidade e
historiografia. Org. de Estevão de Rezende Martins. Textos de História, 10, p. 15-37, 2002, p. 15.
Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/viewFile/5931/4907>.
Consultado em: 02 dez. 2017.

 
12
 
Introdução

com o ocidente cristão e as suas bases culturais longínquas; ponto


examinado em vários dos estudos.
É nesse terreno de múltiplas ramificações que os
investigadores de reconhecidas instituições de ensino e pesquisa
portuguesas e brasileiras têm procurado transitar, sob a coordenação
de Manuela Mendonça e Maria Eurydice de Barros Ribeiro. No
Brasil, os pesquisadores são provenientes da Universidade de
Brasília (UNB), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP); da Universidade Federal de Goiás
(UFG); da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS); da
Universidade Federal Fluminense (UFF); da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA). Em Portugal, os participantes são provenientes da
Universidade de Lisboa (UL) e da Universidade de Coimbra e são
membros da Academia Portuguesa da História; instituição científica
que é o pilar de sustentação do grupo luso-brasileiro em Portugal.
As raízes que os estudiosos têm buscado trazer à superfície
nas suas abordagens, vale destacar, não são apenas as europeias em
terras americanas e africanas, mas igualmente as três grandes fontes
de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português: a
greco-romana, a judaico-cristã e a árabe. É este vasto patrimônio
comum, difuso e multiforme, algumas vezes não harmonizado, que
tem sido interrogado nas pesquisas realizadas. É este patrimônio que
só alcança inteligibilidade quando lançamos luz sobre alguns pactos
que foram se firmando ao longo do tempo, nem sempre de forma
contínua,3 que vêm nutrindo as investigações e mantendo vivos os
debates.
Mas esta coletânea que ora vem a público, é preciso esclarecer,
embora pretenda ser mais comemorativa de uma década de
existência do grupo do que propriamente uma síntese do que se tem
realizado, deixa entrever um eixo do trabalho conjunto que persiste
a despeito das diferenças: a atenção aos percursos de uma produção
escrita e iconográfica (cronística, cartográfica, epistolar, tratadista e
legislativa) que ajudou a definir valores e práticas de longa duração

3
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 113.

13
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

no reino de Portugal e nos territórios tomados como suas extensões.


Escritos que, para recordar a precisa sinopse de Manuela Mendonça
em um dos prefácios de coletânea anteriormente publicada,
permitem percorrer “os caminhos que, ao longo dos séculos, foram
rasgados por Portugal e Brasil, na certa convicção que as respectivas
Histórias, profundamente ligadas até o século XIX, impõem um
conhecimento mútuo para que, nos mais variados aspectos, possam
ser compreendidas”.4
No plano do que se viu e do que se verá, de histórias que não
se confundem, mas também não se separam, de histórias que a gente
comum dos dois lados do Atlântico ainda hoje ajuda a manter unidas
– nas expressões idiomáticas, no preparo dos alimentos, nas
desilusões políticas semelhantes, nos modos e tons de exprimir-se –,
as abordagens recaem sobre o papel dos escritos e saberes que
atravessaram o mar e de instituições trasladadas que assumiram
novas formas e funções.5 Alguns eixos dessas abordagens permitem,
a propósito, ao mesmo tempo refletir sobre a presente coletânea e
sobre o trabalho de mais uma década do grupo.
Desses saberes e instituições, um destaque merecido é dado
aos cuidados com o corpo, cuja saúde estava imbricada com a saúde
da alma.6 Em mais de um ensaio, os tratados que incidem sobre os
elementos, as qualidades, os humores e as compleições do corpo e
prescrevem práticas a serem evitadas e outras a serem seguidas,
nomeadamente no que se refere à higiene e aos alimentos, são
explorados ao mesmo tempo por suas articulações circunscritas e
pelos diálogos que estabelecem com o pensamento médico anterior.
Em outras palavras, o saber medieval é interrogado tanto por aquilo

4
MENDONÇA, Manuela. Prefácio. In: MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima.
Raízes medievais do Brasil Moderno – Do Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2016, p. 13.
5
GOMES, Francisco José Silva. Cristandade medieval e cristandade colonial: permanências e
rupturas. In: MACEDO, José Rivair (Org.). A Idade Média Portuguesa e o Brasil: reminiscências,
transformação, ressignificações. Porto Alegre: Vidráguas, 2011. p. 169-176.
6
SANTOS, Dulce O. Amarante dos. A medicina monástica em Portugal na Idade Média
(Aproximações). In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes medievais
do Brasil Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil. Lisboa: Academia Portuguesa da
História, 2012. p. 131-156, p. 145.
 
 
14
 
Introdução

que apropria do saber antigo quanto pelo sentido religioso que se


impõe ao que retoma.7 Uma medicina fundada na noção de natureza
como obra de Deus, e por isto mesmo dependente ao fim e ao cabo
de sua vontade, emerge em estudos que, entretanto, não deixam de
denunciar um paulatino movimento de desvio das práticas médicas
dos meios estritamente monásticos e clericais para uma esfera
mundana. Do mesmo modo que os saberes, segundo os estudiosos
do grupo que se dedicaram ao tema, as instituições ou lugares
estruturados para cuidar dos enfermos não se montam sem a
inspiração antiga, mas igualmente não se mantêm sem se adaptar às
necessidades e condições presentes. No Portugal medieval, as
instituições monásticas definiram espaços específicos para cuidar
dos doentes e dos pobres – por vezes associados –, mas começaram
logo a sofrer a concorrência do poder régio, com a construção ou
reforma de hospitais e misericórdias.8
A atenção aos cuidados com o corpo não legou ao abandono
aqueles em prol da alma. Esquadrinhando ora escritos monásticos,9
ora escritos que circularam no âmbito da corte,10 ora escritos sobre o
conhecimento dos animais como fonte de exempla,11 ora escritos
sobre as ações de religiosos em terras estrangeiras,12 diversos dos
estudos realizados esquadrinham os modelos de educação, os
manuais de disciplina clerical e monástica, as diferenças e

7
SANTOS, Dulce O. Amarante dos. A medicina monástica em Portugal na Idade Média
(Aproximações). In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes medievais
do Brasil Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil, p. 155.
8
SANTOS, Dulce O. Amarante dos. Políticas de saúde para o Brasil Colonial e Reino Unido. In:
MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima. Raízes medievais do Brasil Moderno – Do
Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, p. 247.
9
MARTINS, Armando. Saberes e sabedoria: A potencialidade das circunstâncias num manual de
educação do século XII. História Revista, Goiânia, v. 18, n. 1, p. 9-35, jan./jun. 2013, p. 9.
Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>.
Consultado em: 02 dez. 2017.
10
MENDONÇA, Manuela. O espelho de Cristina (séc. XV). História Revista, Goiânia, v. 18, n. 1, p.
53-68, jan./jun. 2013, p. 53-55. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>. Consultado em: 02 dez. 2017.
11
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre saberes e crenças: o mundo animal na Idade Média.
História Revista, v. 18, n. 1, p. 135-150, jan./jun. 2013, p. 141. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>. Consultado em: 02 dez. 2017.
12
SANTOS, João Marinho. A missão jesuíta para o Brasil na estratégia imperial de D. João III.
In: MACEDO, José Rivair (Org.). A Idade Média Portuguesa e o Brasil.
 
15
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

aproximações da educação para homens e mulheres, os meios para


instruir povos a serem cristianizados,13 em suma, os instrumentos
escritos que contribuíram para criar condutas virtuosas e boas
maneiras,14 forjando, assim, ideais éticos que estiveram na base de
um “sistema de valores da sociedade ocidental de que ainda hoje
somos devedores”.15 Estudos, pois, que contemplam a dimensão
mais ampla da educação ou da formação, não restrita à esfera
intelectual e, sim, assumidamente aberta à muito mais difusa esfera
moral.16
É com papel semelhante que entram, no rol dos estudos
enfatizados, os escritos sobre o passado, que não perdem de vista
nem o corpo individual nem o coletivo, nem a alma de cada um nem
a alma no seu sentido cristão essencial. Escritos ou saberes que,
retomando a síntese de Maria Helena da Cruz Coelho, podem ser
chamados “um poder e ao serviço dos poderes”.17 Entre as reflexões,
emergem aquelas sobre a construção da identidade do reino a partir
do legado cronístico;18 outras sobre as crônicas como fonte de
ensinamentos;19 outras ainda sobre essas como articuladoras de

13
SANTOS, João Marinho. A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista. História
(São Paulo), v. 34, n. 1, p. 109-127, jan./jun. 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101907420150001&lng=pt&nrm=iso.
Consultado em: 03 dez. 2017.
14
MACEDO, José Rivair. Escrita e conversão na África central do século XVII: o catecismo Kikongo de
1624. História Revista, v. 18, n. 1, p. 69-90, jan./jun. 2013. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>. Consultado em: 02 dez. 2017.
15
MARTINS, Armando. Saberes e sabedoria: A potencialidade das circunstâncias num manual
de educação do século XII. História Revista, p. 10.
16
MENDONÇA, Manuela. O espelho de Cristina (séc. XV). História Revista, p. 53.
17
COELHO, Maria Helena da Cruz. A escrita no mundo urbano. História (São Paulo), v. 34, n.
1, 2015, p. 16-34. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/his/v34n1/0101-9074-his-34-01-
00016.pdf>. Consultado em: 02 dez. 2017.
18
ZIERER, Adriana. A construçnao da Identidade Portuguesa atrav´s de D. João I. O da Boa
Memória. In: MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima. Raízes medievais do Brasil
Moderno – Do Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, p. 185.
19
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. A seiva do passado no saber histórico português e castelhano
(XIV-XV). História Revista, História Revista, v. 18, n. 1, p. 151-166, jan./jun. 2013. Disponível
em: <https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>. Consultado em: 02
dez. 2017.
 
 
16
 
Introdução

valores remotos com valores presentes.20 São esses alguns dos


campos explorados para mostrar que a história escrita – assim como
o teatro, a poesia e outras formas de saber –21, muito mais do que
espelhar uma sociedade, ajudou a defini-la em várias esferas e
continua a dar vida a experiências que, ainda que passadas, nascem
sob formas renovadas no presente.22 Uma escrita, vale ainda dizer,
que esteve amparada por e em uma das mais significativas
instituições da administração régia, dado ser um espaço por onde
toda a memória administrativa e judicial passava: o arquivo régio.
No que diz respeito mais diretamente às instituições em foco,
são aquelas destinadas ao regimento da Justiça e da Fazenda as que
merecem especial atenção. Por meio de um conjunto documental
diverso – ordenações, forais, cartas e regimentos –, os pesquisadores
têm atentado para os personagens que as regem – reis, juízes,
corregedores, procuradores e outros oficiais –,23 bem como para os
cenários em que são pensadas e efetivadas – a Cúria, a Chancelaria,
as Cortes,24 as cidades, etc. Como ordenadores e legitimadores do
poder temporal, esses personagens e instituições emergem também,
em diversos estudos, como fiscalizadores desse poder. Ao lado dessas
bases e instrumentos do Estado emergente e das extensões que se
estruturam de alguma forma inspiradas na sua estrutura e nas suas
partes, não merecem menos atenção as ordens monásticas e

20
ESTEVES, Julieta Araújo. Fontes de “saber” nas crónicas medievais: Fernão Lopes.
História Revista, História Revista, v. 18, n. 1, p. 167-169, jan./jun. 2013. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/historia/issue/view/1495/showToc>. Consultado em: 02
dez. 2017.
21
FRÓES, Vânia Leite. O Atlântico e o além-mar no discurso poético-dramatúrgico de Gil
Vicente e de Garcia de Resende. In: PINTO, Alexandre. S.; AIRES-BARROS, Luís;
MENDONÇA, Manuela; MATIAS, Nuno Vieira. Brasil e Portugal: unindo as duas margens do
Atlântico. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2013. p. 285-302.
22
SILVA, Manuela. Tendências e agentes espirituais na capela régia de D. Filipa de Lencastre.
In: In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes medievais do Brasil
Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil, p. 71-81
23
VENTURA, Margarida Garcez. A justiça no quotidiano: os corregedores do reino. História
(São Paulo), v.34, n.1, p. 60-74, jan./jun. 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/his/v34n1/0101-9074-his-34-01-00060.pdf>. Consultado em: 02
dez. 2017.
24
MENDONÇA, Manuela. O Regimento da Casa da Suplicação. O primeiro instrumento
regulador da justiça em Portugal. História (São Paulo), v.34, n.1, p. 35-59, jan./jun. 2015.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/his/v34n1/0101-9074-his-34-01-00035.pdf>.
Consultado em: 02 dez. 2017.

17
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

mendicantes, seu papel ordenador e sua missão disciplinadora entre


os dois lados do Atlântico. Em ambos os casos, as ações individuais,
os homens e mulheres cujas ações particulares fizeram a diferença,
alternam com o desempenho de grupos ou de ofícios que foram
decisivos na singularização de um lugar e outro – Portugal e Brasil –
separadamente, e no jogo de espelhos entre os dois espaços.
Alimentando alguns desses ângulos aqui sintetizados, a
presente coletânea toma como eixo reflexivo justamente a escrita da
história, contemplando desde o ofício dos cronistas e historiadores e
o lugar da história no jogo temporal específico em que a prática e os
atores se inserem até as principais escolhas desses que se aplicaram
em escrevê-la ao longo de pelo menos 4 ou 5 séculos. Genealogia
como eixo da organização documental e da memória científica; moral
e exaltação do poder na base da seleção do que se queria lembrar na
forma escrita; fé cristã como fundamento das ações dos protagonistas
das histórias e como medida das descrições legadas; entrecruzamento
de saberes e gêneros na configuração das narrativas sobre o passado;
relações entre a retórica antiga e a arte e a ciência de cuidar da saúde;
memória dos santos entre idolatria e historicidade, entre o particular
e a universalidade cristã; geografia e etnografia nutrindo uma história
escrita que promoveu a interseção entre povos europeus e africanos;
cores e formas no núcleo das memórias iconográficas partilhadas no
mundo reconhecido como luso-brasileiro; são essas, em suma,
algumas das problemáticas que o leitor verá retomadas aqui.
Os capítulos a seguir tratam, portanto, de
autoreconhecimento e de conhecimento do outro em um período de
afirmação do reino de Portugal para além de suas fronteiras. Mas
tratam igualmente de raízes que, replantadas em terras diversas – ora
nutridas por águas copiosas, ora privadas de quaisquer dádivas do
céu –, ganharam ramificações que mereceram ser mapeadas e
remapeadas.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro


Susani Silveira Lemos França

 
18
 
 

A história:
saber e discursos correlatos

 
 

 
 

História Genealogica da Casa Real Portugueza


desde a sua origem até o presente1

Manuela Mendonça

N
a linha do surto erudito seiscentista, onde já há algum
tempo se apresentavam trabalhos de História, surgiu a
Academia Real da História Portuguesa. Se a sua
integração neste movimento foi continuidade, o seu sentido era plena
novidade. O seu projecto assentou na promoção da “História
Eclesiástica do Reino, e depois, tudo o que pertencer a toda a História
dele e suas conquistas”. Aos intelectuais de elite caberia a
concretização deste ideário, cujo método e investigação se foi
aperfeiçoando e ampliando. A prioridade da História Eclesiástica,
enunciada como objectivo primeiro no Decreto de Instituição,
derivaria num programa de acção bem mais vasto, em que a História
Secular ocuparia lugar paritário.

1
Este texto inclui algumas partes já publicadas em Introdução à História Genealógica da Casa Real
Portuguesa, APH, Lisboa 2007, edição facsimil da nova edição revista por M. Lopes de Almeida,
de António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza desde a sua origem
até ao presente, Lisboa Ocidental, Academia Real, 1735.
 
21
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Portanto, se no segundo quartel do século XX o erudito


amante do saber dera já lugar ao historiador disposto a questionar os
limites da história como forma de conhecimento, a verdade é que a
Real Academia consagrara já como objectivo prioritário à escrita que
se propunha a necessidade de, para tal, “ajuntar manuscritos” e
analisá-los com isenção. Assim se abririam novos rumos marcados
por problemáticas de teoria e método, que levariam à noção de
“documento” numa dimensão larga, englobando os testemunhos
escritos e não escritos. António Caetano de Sousa, de quem hoje nos
ocupamos, foi, pois, precursor dessas posteriores teorias, no caminho
que abriu com a sua História Genealógica. Situemo-lo no tempo.
Quando, no ano de 1674, Portugal se debatia com uma crise
política interna, nascia em Lisboa, a 30 de maio, aquele que viria a
ser o autor da História Genealógica da Casa Real Portuguesa. De
facto, quatro meses depois do seu nascimento, D. Afonso VI, desde
1669 exilado em Angra do Heroísmo, regressava ao reino para ser
preso no palácio de Sintra, onde viria a morrer, a 12 de setembro de
1683. Só então D. Pedro, que desempenhava a função de Regente,
foi aclamado como rei, o segundo do nome.
Portugal vivia ainda tempos difíceis, no rescaldo da guerra da
restauração, que enfrentou depois de, a 1 de dezembro de 1640, o 8º
Duque de Bragança ter sido aclamado como D. João IV, na sequência
da revolução que expulsou o jugo espanhol que dominou Portugal
durante 60 anos. Em consequência, abriam-se duas vertentes de luta
– a que se travava com armas, na defesa do território frente a uma
Espanha inconformada, mas também a que passava pelas várias
batalhas diplomáticas, que se impunha ganhar numa Europa em
busca de equilíbrios, para que os respectivos soberanos
reconhecessem a monarquia restaurada.
Tal determinava um jogo de alianças nem sempre facilmente
conseguido. Por ele passariam, por exemplo, as negociações
matrimoniais para os príncipes, que precisavam de se afastar de
Espanha, mas fortalecerem-se com aliados de peso. Mas se a política
externa era importante, não o era menos a pacificação interna, num
reino que, necessariamente, mantinha clivagens sociais. Muitos
nobres encontraram em D. João IV e na sua corte os velhos lugares

 
22
História Genealogica...

perdidos. Mas não tinham tantos outros sedimentado assento ao


serviço de Espanha? O reencontro na nova dinastia não se faria sem
sobressaltos! Não era então mais possível omitir a existência de dois
grupos em oposição. Foi nesta conjuntura política e social que nasceu
António Caetano de Sousa, sendo certo que quando, aos 16 anos,
escolheu a vida religiosa, o reino singrava já o caminho da
estabilidade e talvez da prosperidade.
E será precisamente no reinado do sucessor de D. Pedro II
que se irá desenvolver a principal actividade intelectual de António
Caetano de Sousa. Por que só então teve para isso ambiente? Ou por
que as obrigações religiosas não lho permitiram antes? Poderá
perguntar-se ainda qual era a realidade cultural portuguesa em
tempos do rei Pacífico, ou até na Lisboa de seiscentos?! Será que a
atmosfera política, aqui brevemente relatada, não deixou espaço a
outro tipo de manifestações? Ou, apesar dela, terá o reinado de D.
Pedro criado condições favoráveis, nomeadamente económicas, ao
desenvolvimento das artes e das letras?
Tão pouco tempo decorrido sobre o afastamento do rei
estrangeiro e debatendo-se os novos monarcas com múltiplos
problemas materiais, parece natural que as suas principais
preocupações não passassem pela cultura. Nesta base, foi durante
muito tempo convicção geral que o século XVII português pouco de
inovação terá trazido no campo do desenvolvimento cultural. Tal se
explicaria também pelos 60 anos de dominação espanhola, sendo
certo que em Espanha se situavam os centros privilegiados de difusão
da cultura. Em consequência, Portugal, relegado para uma periferia
silenciosa, mantinha-se afastado de qualquer poder criativo. Não
pensa assim Vitor Serrão, que vê na arte do século XVII –
nomeadamente na sua primeira metade – “[...] uma construção
nacional (o ‘estilo chão’) plenamente assumida na sua diversidade
face aos padrões estrangeiros [...]”, sendo que

aqueles laboriosos pintores iam, assim, emergindo do


esquecimento secular [...] caracterizando fortemente a arte
pictural portuguesa da primeira metade do século XVII, e
definindo, não apenas um ciclo de grande operosidade
disciplinar, mas sobretudo os contornos de uma geração de

23
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

modernidade que a seu modo e no seu devido tempo


histórico soubera digerir as ardências e tensões do novo
naturalismo protobarroco dos centros internacionais.2

E esta visão diferente estende-se a todas as áreas da expressão


artística. E assim continuará, como defende Maria Paula Lourenço
ao afirmar que “[...] o reinado estabilizador de D. Pedro II definirá
as novas entradas que anunciam o brilhante ciclo joanino de
setecentos [...]”.3
Tal como nas artes, também nas letras é possível encontrar,
na época, um movimento crescente em Portugal, sendo certo que o
progressivo afastamento de Espanha levaria os intelectuais
portugueses a diferenciadas fontes de influência, nomeadamente em
França e Inglaterra. Conforme já afirmou o saudoso Prof. Jorge
Borges de Macedo

A Restauração obrigaria Portugal a uma certa europeização.


Para obter alianças contra a Espanha tínhamos de entrar de
novo no complicado xadrez europeu [...] uma parte da
aristocracia portuguesa, entre a qual os Cadavais, aliados
com franceses, aparecerá na crista de uma vaga renovadora.4

E é certo que a corte francesa foi destino privilegiado de


muitos nobres portugueses, que ali beberam informações e modelos
que depois procuraram implementar no reino. Mas também as
restantes monarquias, nomeadamente Holanda e Inglaterra,
serviram de exemplo a muitos desses homens que, a par com a
abertura às letras, preconizaram uma remodelação na economia.
Com D. Pedro II podemos lembrar o 3º. Conde da Ericeira, que
seguia o conselho de Duarte Ribeiro de Macedo na política
económica a implementar em Portugal. Exemplo ainda mais
interessante será talvez o do Padre Raphael Bluteau que, enquanto
trabalhava no aperfeiçoamento da língua portuguesa, não se coibia

2
SERRÃO, Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal (1612-1657). O Triunfo do Naturalismo e
do Tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, 2000, p. 20 e 24.
3
LOURENÇO, Maria Paula Marçal. D. Pedro II. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 280.
4
Estrangeirados. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal: de “Castanhoso” a
“Fez”. Porto: Livraria Figueirinhas; Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1965. v. II, p. 124.
 
24
História Genealogica...

de explicar ao próprio rei a importância da criação do bicho-da-seda


e as vantagens que dessa indústria podiam advir.
Encontramos, pois, homens multifacetados que constituíram
um escol fundamental na corte de D. Pedro II. Mais longe ainda,
eram homens que tanto cultivavam as letras como exercitavam as
armas, se tal fosse necessário. A esse propósito lembremos, por
exemplo, D. Francisco Xavier de Meneses, que deixou os trabalhos
da sua Academia para ir servir o monarca, em 1704, na guerra da
sucessão de Espanha.
E era precisamente nas Academias que os grupos eruditos da
nobreza cortesã e do clero mais culto se reuniam, para debater e
aprofundar as grandes questões da Literatura, da Filosofia e da
História. Tais cenáculos viriam a ter o seu expoente máximo na
Academia Real da História Portugueza, criada por D. João V, a 8 de
dezembro de 1720. E para lhe justificar as raízes, escreveu Joaquim
Veríssimo Serrão:

houve em Lisboa, nos anos que precederam a fundação da


primeira academia régia, um ambiente de interesse cultural
que permite estabelecer linhas de relação histórica. A
instituição joanina não surge, pois, isolada no seu contexto
temporal como realidade que se tivesse erguido ex-nihilo,
antes como forma concreta de um ideal de cultura que
pairava nos ares e que correspondia ao profundo anseio dos
homens de pensamento que sentiam a grandeza protectora
daquele reinado.5

O mais antigo destes nichos de cultura remonta ao tempo


posterior à restauração. Trata-se da Academia dos Generosos, que
teve início em 1647 e reuniu-se, num primeiro período, até 1667,
retomando a actividade em 1685 e 1686. Novamente interrompida,
continuou o seu trabalho em 1693. Esta Academia, que privilegiou a
poesia, destacou-se pela capacidade que teve de reunir a fina flor da
sociedade de corte, no reinado de D. Pedro II, sendo de destacar
nomes como D. Luís da Cunha, seu protector, o marquês de

5
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Historiografia Portuguesa: doutrina e crítica. Lisboa: Editorial
Verbo, 1972(4). v III, p. 62.

25
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Alegrete, Júlio de Melo e Castro, para além do 4º. Conde da Ericeira,


D. Francisco Xavier de Meneses. Este criaria, logo em 1696, a
Academia das Conferências Discretas e Eruditas, para onde se
transferiu grande parte dos membros da anterior. Funcionou até
1717, abrangendo um leque muito variado de interesses, que iam da
Ciência à Filosofia, passando pela Literatura, com particular
destaque para o estudo da Língua Portuguesa. No seu âmbito
desenvolveu o Padre Raphael Bluteau um vasto trabalho, que viria a
ser publicado em dez volumes, sob a designação de Vocabulário
Portuguez. Entretanto, outras Academias foram aparecendo, não só
em Lisboa, mas também na província e no ultramar. Já no século
XVIII, em 1717, o Conde da Ericeira fez surgir a Academia
Portuguesa, sem dúvida a mais importante e prestigiada de quantas
existiam. Nela pontificou grande parte daqueles que viriam a ser
escolhidos como fundadores da Real Academia da História
Portugueza, criada três anos mais tarde.
Serve esta panorâmica para ilustrar a afirmação de que as
crises vividas em tempo de D. Pedro II não inviabilizaram um
ambiente de apetência cultural que, fomentado pelos próprios
cortesãos, era, com certeza, favorecido pelo rei. Retomando agora o
ano de 1674 e tendo presente a conjuntura que traçámos,
afirmaremos que, se é certo que o autor da obra que hoje
apresentamos nasceu num tempo conturbado politicamente, não é
menos verdade que a época em que veio ao mundo fervilhava de
interesses culturais, partilhados pela “elite política e social que
rodeou D. Pedro em cargos cimeiros da governação política” e
“implementou, ainda antes do reinado joanino, a existência de um
círculo cultural de elite que reflectia, sobremaneira, acerca das ideias
predominantes, produzindo-se discursos que legitimavam a sua
própria actuação política e cultural e a dinastia de Bragança”.6
Na igreja paroquial da freguesia de S. Paulo, em Lisboa, foi
baptizado, a 13 de junho de 1674, um menino a quem foi dado o
nome de António de Sousa. Nascera a 30 de maio do mesmo ano, na
referida freguesia. António era filho de Miguel de Sousa Ferreira e de

6
LOURENÇO, Maria Paula Marçal. D. Pedro II, p. 279.
 
26
História Genealogica...

D. Maria Craesbeck, sendo o quinto e último filho do casal. O


benjamim da família, a quem foi dado o nome do avô paterno, seria
destinado à vida religiosa – e não era esse o melhor futuro que se
podia alcançar para filhos segundos, desprovidos de fortuna?
Com o dote que a noiva levou para o casamento, Pedro
Craesbeck, avô materno de António, terá montado uma oficina de
impressão em Lisboa, que teve enorme sucesso. Filipe I fê-lo
cavaleiro fidalgo, em 25 de outubro de 1617, privilégio extensivo aos
seus sucessores que mantivessem a mesma actividade. Foi nomeado
“impressor régio” em 28 de maio de1620. Da sua oficina falam ainda
hoje inúmeras publicações, como, por exemplo, a “Quarta Parte da
Monarchia Lusitana”, editada por “Pedro Craesbeeck, impressor
del Rey”, em 1632. Depois da sua morte, o negócio foi assumido por
seu filho, Lourenço. Mas, ainda em vida, Pedro Craesbeck associara
o filho segundo, Paulo, que trabalhou como administrador. Por isso,
os dois irmãos mantiveram, em conjunto, a oficina de impressão. Se
o irmão herdou os mesmos privilégios de seu pai, Paulo obtê-los-ia
pelo seu esforço: recebeu alvará de escudeiro fidalgo e depois de
cavaleiro e, em 27 de outubro de 1642, foi nomeado “Livreiro das
Três Ordens Militares”. Com os dois irmãos, a “arte” de seu pai foi
continuada, conforme testemunha, por exemplo, a “Ulyssea ou
Lysboa edificada…”, editada por Lourenço Crasbeeck, impressor
del Rey: à custa de Paulo Crasbeeck mercador de livros, em 1636, ou
o tomo I do “Agiologio Lusitano”, e a “Historia Serafica da Ordem
dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal”,
ambos saídos da “officina Craesbeeckiana, em 1652 e 1656,
respectivamente. Crescendo num ambiente ligado à cultura, se
atendermos, pelo menos, à família de sua mãe, é natural que o
espírito de António tenha despertado bem cedo para os valores
intelectuais. E seus pais, certamente mercê da preocupação de lhe
assegurarem um futuro tranquilo, terão pensado que o seu caminho
deveria ser a vida religiosa, tal como o de seus irmãos. Para tanto lhe
instituiriam a pensão anual de 20.000 reis. Assim, aos 16 anos,
entrava no convento.
A Ordem escolhida foi a que vulgarmente se conhece por
Teatinos ou Caetanos, mas cuja designação original é “Clérigos
Regulares”. Sem cuidar agora da respectiva história, importa

27
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

lembrar que a Ordem se estabeleceu em Portugal em meados do


século XVII. E pode perguntar-se: porquê nesta Ordem?
Obviamente que tal dirá respeito às razões íntimas do jovem, que não
podemos adivinhar. No entanto, há um aspecto que não deve ser
ignorado e que é o facto desta Ordem em Portugal ter sido sempre,
conforme já referiu António Camões Gouveia “[...] pautada por
alianças fortes com a aristocracia e com o poder real [...] Seja pelo seu
constante reafirmar dos valores religiosos que os norteavam, seja
pelo elevado nível cultural que procuravam manter entre os clérigos
[...]”.7 Ora é neste segundo aspecto que pensamos dever encontrar o
motivo da escolha de António de Sousa, independentemente do
interesse que para si também tivesse a reforma da igreja, que a
Ordem defendia. Tratava-se, de facto, de uma novidade em Portugal
que trazia, em simultâneo, um desafio renovado como viveiro de
cultura. Basta lembrar que, ao tempo, ali militavam homens como
D. Raphael Bluteau ou D. Manuel Caetano de Sousa, figuras ilustres
do mundo erudito de então. Por outro lado, António também
manteria contacto com outros jovens com idêntico ideal. Para o
provar basta lembrar que, já no Convento, lhe foi dada a “primeira
Tonsura e Ordens Menores” ao mesmo tempo que a Jerónimo
Contador d’Argote, também ele futuro vulto da cultura portuguesa.
A 26 de setembro de 1690, António de Sousa vestiu pela
primeira vez o Hábito de noviço da Ordem Teatina. Poucos meses
volvidos, a 27 de dezembro do mesmo ano, o jovem professava no
convento da Rua dos Caetanos. Como era costume, foi-lhe dado um
nome diferente daquele que até então usava, pois que tal simbolizava
uma mudança total na vida da pessoa. Chamar-se-ia João!
Inconformados com a mudança de nome que lhe foi imposta, os pais
fizeram-no saber aos responsáveis da Ordem, alegando que o nome
correspondia ao santo em cujo dia o jovem fora baptizado (13 de
junho – António) e que era para eles muito importante que o
mantivesse. Certamente nesse gosto pesaria também a continuação
de um nome de família, pois seu avô assim se chamara, como ficou
escrito. De facto, foi aceite o pedido. Mas, para que se cumprisse a

7
Teatinos (Caetanos). In: AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Dicionário de História Religiosa de
Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001. v. P-V, p. 273.
 
28
História Genealogica...

regra, foi determinado que o jovem se assumisse, a partir de então,


como António Caetano. E assim encontramos António Caetano de
Sousa! A esse nome juntaria o título de “Dom” quando, em 1697, foi
ordenado sacerdote. Agora, sim, temos completa a identificação do
nosso autor: D. António Caetano de Sousa que, ao desaparecer do
mundo dos vivos, em 5 de julho de 1759, assegurara já a imortalidade
através da sua Obra! Falemos agora dessa Obra.
Feita a formação intelectual necessária, D. António foi
ordenado padre, como ficou referido, no ano de 1697, com 23 anos,
ou seja, antes da idade autorizada. Decorridos 8 anos, em 17 de
fevereiro de 1705, o capítulo geral da mesma Ordem decidia, na
sequência das cinco votações regulamentares, que o jovem padre
poderia ser confessor de mulheres. Tal situação hoje far-nos-á sorrir,
mas tratava-se de uma alta distinção, só conferida a quem
apresentasse “estofo moral” condigno. Esta mesma autorização
repetiu-se para 1705-7 e 1709-11, pois tal patente só era válida por
dois anos. Portanto, estamos perante uma dimensão
importantíssima do padre que, em 1714, já aparece registado como
Vigário da Ordem, situação que manteve até 1716. E logo no ano
seguinte o encontramos como “Prepósito”, ou seja, responsável
máximo em Portugal. Tal cargo, que tinha a duração de um triénio,
foi exercido até 1718, repetindo-se de 1721 a 1724. Encontramos,
pois, D. António Caetano de Sousa respondendo, dentro da Ordem,
nos cargos de maior responsabilidade e exigência. Entretanto,
conhecemos-lhe duas devoções particulares: a Nossa Senhora e a S.
Caetano de Thiene. Se a este glorificava como santo padroeiro da sua
Ordem, a Nossa Senhora invocava como Imaculada Conceição. E foi
um acérrimo defensor da declaração do respectivo dogma, o que
significa que esse constituiu um dos temas preferidos nas suas
pregações. Já não veria coroado o seu esforço, pois o dogma só foi
proclamado um século depois da sua morte, em 1851, pelo papa Pio
IX. Esta devoção de D. António a Nossa Senhora ficou ainda patente
num gesto seu: terminada a impressão da História Genealógica,
sobrou uma elevada quantia do total que o rei pusera à sua disposição
para as despesas. Feitas as contas, quis o autor devolvê-la ao rei, que
lha ofereceu. Com esse dinheiro mandou fazer uma coroa de ouro,
que entregou à imagem da Imaculada Conceição que estava na capela

29
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

do Convento. A par dos outros trabalhos, D. António Caetano de


Sousa desempenhou também funções oficiais. Sabemos que foi
Qualificador do Santo Ofício, cargo para que foi nomeado a 26 de
maio de 1707. Pelos registos das inquirições feitas às testemunhas no
processo que precedeu esta nomeação, ficamos a saber que tinha sido
aprovado como professor de Filosofia e Teologia, no Convento da
Divina Providência de Lisboa, não tendo, até essa data, ocupado o
cargo por não haver vagas. No mesmo documento regista-se que D.
António era um profundo conhecedor da língua italiana e francesa.
Portanto, com 33 anos, o jovem teatino tinha já completado uma
sólida formação científica, sendo reconhecido como mestre. Em 18
de agosto de 1742 foi nomeado para Deputado do Tribunal da Bula
da Cruzada. Por este cargo obteria de D. José a aposentação, em 5 de
junho de 1755, com a pensão anual de 350.000 reis.
Em fase já avançada da sua vida, D. António pediu e obteve
autorização para não aceitar mais nenhum cargo nem ser obrigado a
assistir aos Capítulos da Ordem. Essa terá sido uma condição
essencial para que pudesse dedicar-se inteiramente à magnífica
biblioteca do convento e à sua actividade intelectual. No entanto,
apesar de toda a azáfama decorrente das actividades apontadas, D.
António Caetano de Sousa favorecera desde cedo o trabalho
intelectual, traduzido em diversa obra escrita. A primeira foi de cariz
eminentemente religioso. Decidiu dar continuidade ao Agiologio
Lusitano dos Santos e Varoens illustres, em virtudes do Reino de
Portugal e suas conquistas, que fora iniciado por Jorge Cardoso. Uma
nota interessante distingue os dois autores. Enquanto Jorge Cardoso
dedicou o seu trabalho “aos gloriosos S. Vicente e Santo António,
insignes patronos desta inclyta cidade de Lisboa e a seu illustre
Cabydo [...]”, D. António Caetano de Sousa consagrou-o “à
Imaculada Conceição da Virgem Maria Senhora Nossa, Padroeira do
Reino”, a testemunhar o seu particular empenho na proclamação do
dogma a que já nos referimos e “[...] esperando alcançar pela
qualidade da offerta, o que não merece pela indignidade da pessoa”.8

8
SOUSA, António Caetano de. Agiologio lusitano dos santos, e varões illustres em virtude do reino
de Portugal, e suas conquistas; consagrado à imaculada Conceição da Virgem Maria Senhora Nossa
Padroeira do Reino [...]. Lisboa: Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1744. t. IV.
 
30
História Genealogica...

Mas outra diferença substancial separa as duas publicações: é que o


padre teatino, para além de introduzir dados históricos que ajudam a
fazer luz sobre as figuras que trata, faz preceder o seu trabalho
daquilo que hoje chamaríamos uma introdução metodológica e que
constituiu total novidade na época. O mesmo fará para a História
Genealógica, na qual, sob a designação de Aparato, escreveu as
primeiras cento e trinta e quatro páginas. Ali se encontram as razões
do trabalho, as motivações do autor, o plano da obra, bem como o
“estado da questão”, traduzindo uma visão crítica, mas construtiva.
Não será, pois, de estranhar que, quando D. Manuel Caetano
de Sousa, o Conde da Ericeira, Francisco Xavier de Menezes e o
Marquês de Alegrete, Fernão Telles da Silva, iniciaram o projecto de
estatutos para a fundação da Academia Real da Historia Portugueza
e depois pensaram os nomes que deveriam integrar inicialmente a
Instituição, logo apontassem o de D. António Caetano de Sousa,
como elemento fundamental, no clima favorável para as letras e as
artes que então se vivia. Com eles estariam, desde a primeira hora,
outros nomes que, nas palavras de Joaquim Veríssimo Serrão,
“tinham atrás de si um rasto de cultura e erudição que justificava a
escolha”,9 como por exemplo, o Conde de Villamayor, Manuel
Telles da Silva, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença,
Francisco Leitão Ferreira, Diogo Barbosa de Machado, Diogo
Corrêa de Sá, entre outros. Portanto, D. António Caetano de Sousa
integrou os primeiros 50 académicos efectivos da Academia Real,
sendo presente na sessão inaugural, ocorrida a 8 de dezembro de
1720.
A Academia Real nascia como fruto dos novos tempos, mas
também na senda de outras particulares que a haviam precedido e a
que já nos referimos. Com efeito, a Academia Real impôs-se como
instituição autónoma, dotada de um corpo de censores, que
funcionaram também como cúpula dirigente. Da ligação com o rei,
diremos que a sua existência constituiu uma clara manifestação do
respectivo poder, patente na presença do monarca em muitas
reuniões e no esplendor do cerimonial envolvente. Esse cerimonial
atingia o seu auge em comemorações especiais, tais como os

9
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Historiografia Portuguesa: doutrina e crítica.

31
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

aniversários régios. Este aspecto que, por motivos óbvios, aqui não
podemos desenvolver, constitui um interessantíssimo tema de
trabalho.
O projecto que deu corpo à Instituição trazia consigo o desejo
objectivo de juntar um grupo de eruditos para escreverem uma
história religiosa de Portugal, que se designaria Lusitania Sacra. A
esta proposta inicial foi posteriormente acrescida a decisão de se
escrever também a história secular do reino, na qual “[...] se
observará quasi o mesmo methodo e nomeará a Academia hum só
historiador, que a escreva em português e depois que a imprimir se
comporá em latim [...]”.10 Nestas circunstâncias, os académicos
deveriam comprometer-se a elaborar em conjunto a história de
Portugal, tanto eclesiástica como secular. Para o conseguir reuniriam
periodicamente, sendo cada um obrigado à apresentação da
investigação efectuada, que seria sujeita a discussão entre todos.
Demonstrando bem a eficácia de objectivos do novo Instituto, foram
distribuídos os “empregos dos Académicos”, que o mesmo é dizer,
foram atribuídas as tarefas científicas que cada um se obrigava a
desempenhar. A D. António Caetano de Sousa foi pedido que
elaborasse, na língua portuguesa, a Historia Ecclesiastica do
Ultramar. Para a História Secular não foi solicitado.
Que o novo académico se dedicou com entusiasmo ao
trabalho que lhe foi distribuído prova a sua intervenção sistemática
na Academia, sendo certo que logo na sessão de 5 de janeiro de 1721
apresentou uma série de perguntas relativas ao tema a desenvolver e
ao método a seguir. E na sessão de 18 de março de 1721, já o Director
da Academia mandava distribuir “[...] hum Catalogo impresso dos
Bispos, e Arcebispos de Goa, ordenado pelo Padre D. Antonio
Caetano de Sousa, Clerigo Regular”. Nesta mesma reunião ficou
marcada a intervenção de D. António Caetano de Sousa para dia 1 de
abril. Assim aconteceu, tendo também sido entregues nesse dia mais
dois catálogos feitos pelo nosso autor – o dos Arcebispos da Bahia e
o dos Bispos de Cabo Verde. D. António deu ainda conta do estado
das suas investigações, permitindo-se fazer algumas sugestões

10
Collecçam dos Documentos, estatutos e Memorias da Academia Real da Historia Portugueza [...].
Lisboa Occidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1721. t. I, p. 53.
 
32
História Genealogica...

metodológicas para serem seguidas também por outros académicos.


E assim prosseguiu o teatino o seu trabalho a bom ritmo até 1723,
dando periodicamente conta da respectiva investigação e
enriquecendo a Academia com novos Catálogos: dos bispos de
Angra, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de Cochim, de Meliapor,
da China, Japão, Macau, Nankim, Malaca, Cranganor e Serra, S.
Tomé e Angola, para além dos Primazes do Oriente e Patriarcas da
Etiópia. Entretanto, nas sessões de trabalho que lhe competiam, ia
dando conta das dificuldades na recolha da informação necessária ao
cabal cumprimento do seu estudo. Por exemplo, na sessão de 12 de
fevereiro de 1722 dizia que, muito contra a sua vontade, a tarefa
avançava lentamente, pedindo a boa colaboração da Academia para
que as informações que solicitava às várias dioceses lhe viessem com
brevidade. Lendo o relato das suas intervenções nota-se,
progressivamente, um certo desânimo. É que uma outra ideia,
porventura mais aliciante, começava a germinar no seu espírito. Dela
brotaria a Historia Genealogica da Casa Real Portugueza.
Como o próprio autor relata no “Aparato” que precede o
primeiro volume desta Obra, em 1723 o Bispo de Sarsina enviou a D.
João V uma Árvore Genealógica da Casa Real Portuguesa, trabalho
que o rei fez remeter à Academia Real para que sobre ele se
pronunciasse. Disso se encarregou D. António e o Padre D. Luiz
Caetano de Lima. Na sequência do respectivo estudo, o nosso autor
construiu nova árvore, “[...] em trinta e sete Taboas, que então
entreguei na Academia, como se vê da conta, que referi na
Conferência de 10 de junho [...]”. Acrescenta depois que, na
sequência desta investigação, lhe nasceu a ideia de que “[...] não seria
inutil socorro às composições dos meus eruditos Collegas terem toda
a Historia Portugueza Genealogica, chronologicamente reduzida a
breves folhas de papel, onde com suave trabalho se visse toda a
posteridade dos nossos Reys, desde o principio da Monarchia até o
presente”.11 Em 25 de janeiro de 1725 apresentou essa proposta ao
colégio dos Académicos, que a aprovou. Entretanto, ia trabalhando

11
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza: desde a sua origem até o
presente, com as Familias illustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança:
justificada com instrumentos, e escritores de inviolavel fé e offerecida a El Rey D. João V. Lisboa: na
Officina de Joseph Antonio da Sylva, impressor da Academia Real, 1735-1749. t. I, p. III-IV.

33
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

e dando notícia dos progressos da tarefa que lhe fora distribuída –


Memórias das Igrejas de todas as Conquistas, que a Coroa de Portugal
tem na África, Ásia e América e Ilhas Adjacentes do mar Oceano – mas
na conferência de 4 de maio disse ter parado esse trabalho para poder
avançar na nova proposta, o mesmo acontecendo a 4 de abril de 1726.
Explicava então que, apesar de estar doente, não parara a construção
da História Genealógica. Entretanto, no “Aparato”, o autor conta
que, de início, pretendeu apenas completar, com informação
relevante, as tábuas antes elaboradas. Mas os dados recolhidos
cresceram de tal maneira que se viu obrigado a desistir do plano
naquele formato para pensar um outro com diferente metodologia.
Isso mesmo comunicou à Academia, na sessão de dia 22 de setembro
de 1728. Anunciava para breve o I tomo, que efectivamente entregou
ao Secretário da Academia, em 7 de julho de 1730.
A obra deveria então ser sujeita aos “censores”, que se
pronunciariam e, em reunião de Académicos, poderiam ser sugeridas
alterações que eram debatidas com o autor. Chegada a uma versão
final, a obra era publicada, sem necessidade de quaisquer outras
licenças. Era este um dos principais privilégios da Real Academia,
cujos livros se apresentavam

[...] ao leitor sem qualquer tipo de aprovação censória


exterior à própria Academia. Numa época em que, há muito,
a censura era instância de legitimação obrigatória de
qualquer obra cultural, os livros da Academia apresentam-
se como uma «fenda» num campo cultural legitimado pela
censura [...] melhor dizendo, a Academia autolegitimava-se
perante o público.12

Nesta conformidade, o primeiro Tomo da História


Genealógica foi submetido à apreciação de Martinho de Mendonça
de Pina e de Proença, “moço fidalgo de Sua Magestade, e Academico
da Academia Real [...]”, de quem recebeu o maior elogio, assinado
em Benespera, a 20 de dezembro de 1730. O outro censor foi o Conde

12
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o
poder monárquico no século XVIII. Lisboa: Minerva Coimbra, 2003, p. 48-49.
 
34
História Genealogica...

da Ericeira, “Sargento mor de Batalha e Academico da Academia


Real [...]”, que deu igualmente parecer favorável. Mas, no seu texto,
fez questão de justificar o muito tempo que teve o trabalho em seu
poder, explicando que o quis conferir detalhadamente e que os
“levissimos reparos” que tinha a fazer foram aceites pelo autor, pelo
que a obra se apresentava agora “[...] sem a mais leve imperfeição
[...]”.13 O seu parecer está datado de Lisboa Ocidental, a 15 de julho
de 1732. Em consequência, o Director da Academia e restantes
Censores assinaram a autorização de impressão a 10 de outubro de
1732.
Na sequência começou a preparar-se a edição, de que o autor
falou na sessão de Academia de 5 de março de 1733. Informou então
que uma “junta particular de censores académicos” tinha resolvido
que a obra fosse publicada “com todo o aparato e luxo” e nela fossem
incluídos os retratos dos Reis e Príncipes “extrahidos das sepulturas
em que jazem, dos sellos reaes que se usarão e de outros semelhantes
monumentos”. Nomeado o Marquês de Abrantes para dirigir os
trabalhos, o Tomo I da Historia Genealogica da Casa Real
Portugueza estava pronto no ano de 1735, ainda que nele não
constassem os retratos anunciados. Foi apresentado a 25 de outubro
do mesmo ano, conforme relata a Gazeta de Lisboa, na sua edição de
3 de novembro de 1735.14 Sem se queixar dos atrasos dos “censores”,
o autor explica no “aparato” que a demora na publicação foi
motivada por uma outra tarefa com que, entretanto, decidiu
completar a obra, “[...] conseguir os Sellos Reais, que he uma
collecção admiravel, de que deduzi uma Real serie dos nossos Reys
até o presente, em que os curiosos verão as differenças das Armas,
provadas com o testemunho dos Sellos, de que os Reys usarão. Nisto
tive hum grande trabalho [...]”.15
D. António Caetano de Sousa publicou ainda as Memorias
Historicas e Genealogicas dos Grandes de Portugal, em 1739,
deixando também muitos outros manuscritos. Mas a sua obra
monumental é aquela que apresentamos neste Colóquio. Ao

13
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, Licenças, [s/p].
14
Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Historiografia Portuguesa, p. 84.
15
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, p. VIII.

35
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

primeiro tomo seguiram-se os restantes doze, num ritmo “quase


pendular”, entre 1735 e 1748. Entretanto, o autor preparara também
um conjunto documental, recolhido nos mais diversos Arquivos,
oficiais e particulares, para servir de prova às afirmações feitas na
“História”. Precisamente com a designação de Provas da Historia
Genealogica da Casa real Portugueza, tiradas dos Instrumentos dos
Archivos da Torre do Tombo, da Serenissima Casa de Bragança, de
diversas Cathedraes, Mosteiros, e outros particulares deste Reyno,
foram publicados 6 volumes, o primeiro dos quais em 1739. Os
restantes saíram em 1742, 1744, 1745, 1746 e 1748. No ano seguinte,
em 1749, o autor publicou ainda um Indice Geral de toda a Obra.
A História Genealógica da Casa Real Portugueza ultrapassa
largamente a simples informação genealógica. Ela convida o leitor a
movimentar-se no tempo, acompanhando pessoas e lugares, numa
multifacetada aliança entre a política e a sociedade de que os
portugueses foram agentes. Rasgadas as fronteiras lusas, leva-nos ao
contacto com os diferentes reinos europeus ou terras de além-mar,
onde Portugal teve presença, onde contraiu alianças, onde “as
gentes” se ligaram por laços de sangue. De algum modo, é a gesta dos
homens e mulheres portugueses que António Caetano de Sousa
recupera, ao longo do tempo e com base nos troncos sociais que
considera determinantes. Muitas críticas se lhe poderão assacar,
como já fez João Pedro Ribeiro. Mas é com o olhar do historiador que
se devem entender os seus escritos – esse olhar que impõe a
compreensão do homem e do seu agir no espaço e no tempo em que
viveu. E António Caetano de Sousa, como já escrevemos, viveu no
último quartel do século XVII e primeira metade do século XVIII,
sendo certo que “[...] ainda não totalmente liberto das correntes
mentais do século XVII, tem já uma vaga consciência racionalista
para explicar os sucessos do passado”.16 E esses sucessos são os da
Casa Real e da sua mais próxima clientela que, respeitando a
objectividade e a isenção próprias dos membros da Real Academia,
o autor trabalhou e fixou. E fê-lo com uma metodologia bem

16
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Historiografia Portuguesa, p. 82.
 
36
História Genealogica...

diferente das genealogias conhecidas. Nas suas próprias palavras, a


sua obra

[...] he bem diferente, porque comprehende a serie de tantos


Reys, os seus casamentos, os dos Infantes, e Infantas,
Testamentos, Doações, Bulas e outros Documentos, que se
involvem em differentes tempos, pela politica e
dependencias de huma tão grande Monarchia [...] Tudo
trato com uma indifferente neutalidade, para o fim do
exame, que fiz com ânimo sincero, e somente com o desejo
da verdade[...].17

Reconhecida a Dinastia de Bragança, tanto em termos


políticos como diplomáticos, impunha-se a sua legitimação
documental. É nesse sentido que Jorge Borges de Macedo afirma que
esta obra

[...] constitui uma resposta adequada para valorizar a


sensibilidade política de Portugal na dinastia de Bragança
[...] por ela se estabelece uma «continuidade genealógica» que
vai desde o conde D. Henrique até ao rei D. João V, ideia
corrente que veio a manifestar-se ainda na ligação desse
mesmo conde à dinastia dos Capetos, assegurando, desse
modo, uma sequência política que continua a ser um motivo
de orgulho da Casa Real Portuguesa. Em grande medida, D.
António Caetano de Sousa desenvolve a linha das sequências
dinásticas, como aquilo a que podemos chamar o “suporte
institucional da continuidade”.18

Cumprindo a divisa escolhida para a Academia Real,


Restituet omnia, D. António Caetano de Sousa construiu a sua obra,
na qual, depois de longas consultas, como ele próprio afirma, seguiu

[...] o que entendo ser mais certo, apartando-me dos


Authores, que escreveram o contrário, sem os aggravar, nem
lhes fazer cargo dos seus erros, seguindo aquelle que a meu

17
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, p. XVI-XVII.
18
MACEDO, Jorge Borges de. Introdução ao Guia da Exposição. In: Da história ao documento:
do documento à história. Lisboa: Divisão de Publicações, 1995, p. xx.

37
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

parecer se accomodou mais à verdade, quando o não


authorizo com escritura, ou outra prova legal [...] porque
então não posso de nenhuma sorte, por maior que seja a
antiguidade de hum Author, acostarme a outra opinião,
porque seria ir contra a verdade da História, e escurecer um
original [...]. Escrevi [...] sem mais atenção nem respeito do
que pertender chegar, por entre o escuro, do antigo à
verdade, livrando-me de fabulosas origens [...].19

E nessa base, que podemos dizer “racional”, o autor rejeitou


o mítico e o lendário, para se apoiar em verdades objectivas. Assim
compôs uma História que, nas suas próprias palavras, dividiu em
três tomos: 1) os Reis Antigos, ou seja, anteriores ao domínio
filipino; 2) a Dinastia de Bragança; 3) todas as casas que descendem,
por varonia, dos reis de Portugal. A tudo juntaria um quarto tomo,
constituído pelas Provas. Contudo, porque teve que seguir as regras
da Academia Real na impressão dos livros, houve necessidade de
dividir os conteúdos por um maior número de volumes, “[...] o que
nada altera nem confunde em cousa alguma a ordem que lhe dey no
princípio na divisão dos livros, pois por elles se allega, e não pelos
tomos”.20 Portanto, cada tomo contém menos livros do que aqueles
que inicialmente haviam sido previstos, estabelecendo-se assim a sua
correspondência:

LIVROS TÍTULO PUBLICAÇÃO TOMO


ACTUAL
I e II “Desde o Conde D. Do Conde D. Henrique a D. I
Henrique até ElRey D. Fernando
Henrique”
III Idem D. João I e D. Duarte II
IV Idem D. Afonso V a D. Henrique III
V “Série de todos os Reys, “Série de todos os Reys, IV
deduzida pelos seus deduzida pelos seus Reaes
Reaes Sellos” Sellos”

19
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, p. CCXXVI-
CCXXVII.
20
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, p. VI.
 
38
História Genealogica...

LIVROS TÍTULO PUBLICAÇÃO TOMO


ACTUAL
VI “Sereníssima Casa de D. Afonso a D. Jaime V
Bragança, desde o Senhor
D. Affonso até ao Senhor
D. Theodosio II D. Teodósio I a D. Teodósio VI
II
VII “Real Casa reynante” D. João IV a D. Pedro II VII

D. João V VIII
VIII “os que descendem desta Condes de: Oropesa, Lemos, IX
serenissima casa por Faro, Odemira e Vimieiro
baronia”
IX e X Idem Marqueses de Ferreira, X
Duques de Cadaval;
Marqueses de Vilhescas;
Condes de Gelves e Duques
de Veragua
XI “os que tratão das Casas Duques de Aveiro; XI
que descendem e tiverão Marqueses de Porto Seguro;
principio nos Reys Duques de Abrantes;
antigos” Comendadores mores de
Avis; Condes de Villa-Nova;
Comendadores de Coruche
XII Idem Condes da Atalaya; XI
Comedadores da Arrifana;
Comendadores da Idanha
XIII (1ª. e Idem O Infante D. João; D. XI
2ª. Parte) Fernando, Senhor de
Eça;Alcaides-mores de Vila
Viçosa; Alcaides-mores de
Muja; D. Afonso, Senhor de
Cascais; Condes de
Monsanto.
3ª. Parte Idem Condes de Miranda; XI
do lv.13 e Marqueses de Arronches;
1ª. E 2ª. Comendador de Alcáçova de
Parte do Santarém; Condes de XII – parte
Lv.XIV Arenales; Marqueses de I
Guadalcaçar; Senhores de
Mortágua
3ª. parte Idem XII – parte
do livro II
XIV
Tabela 1 – Elaborada pela autora.

39
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Folheando cada um dos tomos impressos, nota-se o cuidado


que o autor foi pondo na sua obra, que não deu como terminada ao
entregá-la para publicação. Ao contrário, preocupou-se em que, à
medida que iam aparecendo os volumes, pudessem ser supridas as
falhas detectadas nos anteriores ou esclarecidas algumas dúvidas. Do
mesmo modo, vai manifestando os seus sentimentos, dando mais
vida a cada novo volume. Por exemplo, insere correspondência
recebida, como é o caso do tomo III, que se inicia com uma carta do
Secretário de Estado do Papa Clemente II, na qual agradece os dois
primeiros volumes que lhe tinham sido enviados. No oitavo tomo, o
autor inclui uma carta que recebeu do Duque de Sotto Mayor,
“Grande de Hespanha”, na qual elogia largamente a obra já
publicada. No final deste mesmo volume incluiu um anexo
designado “Advertencias e addicçoens”. Começando por dizer que
quer poupar trabalho a quantos vierem a detectar imperfeições,
esclarece depois uma série de pontos que considera “algumas
equivocações, que nesta Obra se podem justamente notar [...]”.21
Acrescenta ainda uma longa indicação bibliográfica, que não figurou
no “Aparato” inicial. Terminando com correcções pontuais aos
volumes já editados, incluindo o oitavo, indica-as com referência ao
número da página, em cada tomo. Na segunda parte do tomo XII, o
autor introduz o título “A Quem Ler”, no qual começa por se
queixar do “terrivel insulto de hum estupor, que nos acometeu no dia
29 de maio de 1747 [...]”, que afinal foi um problema de saúde. Não
quis D. António que tal o impedisse de concluir a edição da obra e,
por isso, “[...] damos o último fim desta Historia [...]”. Segue a
referência a uma crítica recebida dos Padres de Trevoux que “nos
honrarão com os extractos [...]”, e à qual o autor responde, ponto por
ponto, nas páginas seguintes. 22
Com esta metodologia, D. António Caetano de Sousa tornou
a sua obra palpitante de vida, permitindo ao leitor acompanhar o seu
esforço ao longo de todo o processo, sendo certo que uma leitura
especializada dos seus “desabafos” permitirá traçar um completo

21
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, t. VIII,
Advertencias e addicçoens, p. I.
22
SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, t. XII, p. I.
 
40
História Genealogica...

retrato psicológico deste Clérigo Regular. Afirmaremos, finalmente,


que a História Genealógica da Casa Real Portugueza, que se constrói
com pessoas, recebe, ainda pela mão do seu autor, um definitivo
toque de humanidade!
E a grande verdade é que, quase três séculos passados, podem
corrigir-se nomes, efemérides e interpretações, mas esses livros
continuam a ser de consulta indispensável para os estudiosos.
Uma última palavra para referir que a Academia Portuguesa
da História reeditou recentemente esta Obra, em catorze volumes.
Todavia, decorridos mais de dois séculos sobre a sua primeira edição,
consideramos que era tempo de a completar. Por isso, mesmo
sabendo não ser possível igualar o trabalho de António Caetano de
Sousa, elaborámos, com a colaboração de um grupo de distintos
Académicos, um último volume – o XV – que completa a Dinastia
de Bragança, isto é, apresenta, em traços gerais, os reinados desde D.
José até D. Manuel II.

41
 

 
 

As cortes no reino de Portugal:


antecedentes e concretizações

Maria Helena da Cruz Coelho

A
s Cortes apesentam-se como uma instituição que, como
tantas mais, têm origem noutras que as antecederam, sendo
por isso difícil atribuir uma data para a sua génese. Acresce
que entre os historiadores não há um pleno consenso sobre a sua
caracterização, formulando uns uma definição ampla e outros uma
mais estrita.
Parece inegável que se pode afirmar que existem Cortes
quando nesta assembleia política estão representados os corpos sociais
do reino – nobreza, clero e concelhos – que colaboram com o monarca
garantindo-lhe os meios para a sua acção governativa, do mesmo modo
que apresentam agravos e reivindicações para pedir respeito pelos
privilégios e manutenção dos direitos fundamentais próprios ou da
terra.
Mas tendo tais assembleias nascido por dentro do feudalismo,
ou melhor, por dentro dos diversos regimes feudais que existiram nos

 
43
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

reinos ou senhorios da Cristandade, é inegável que as antecederam


uma outra instituição que era a Cúria, portanto a assembleia dos
vassalos e súbditos privilegiados do rei e de senhores, os nobres e o
clero, que tinham por dever o auxilium e consilium ao seu suserano.Nos
finais do século XII estamos a assistir, em diversos reinos, a associações
de privilegiados e cidadãos que reivindicam os seus direitos e marcam
presença nas assembleias reunidas pelos reis e senhores, nas quais
manifestam os seus interesses.1
Na Península Ibérica tem-se destacado a influência de certas
assembleias políticas, como os Concílios Gerais,2 a Cúria Régia3 ou as
Assembleias de Paz e Trégua (land peace) na Catalunha4 no caminho
evolutivo para as Cortes.5 E, se bem que nem todos os autores sejam
concordantes, referem-se como as primeiras Cortes peninsulares, a
assembleia reunida por Afonso IX em Leão no ano de 1188.6

1
Veja-se a síntese que apresenta José Luis Martín para Inglaterra, destacando a revolta de Londres
de 1191, na ausência de Ricardo I, e o papel da Magna Carta e ulterior evolução do Conselho
Comum; para a França, assinalando as assembleias condais ou ducais, as provinciais e as de
Estado; e para a Alemanha, referindo as assembleias que os príncipes se obrigaram a ter em conta
desde o século XIII. MARTÍN, José Luis. Las Cortes Medievales. Madrid: Historia 16, 1989, p.
16-19. Também Jean Dunbain aborda no seu estudo as similitudes e diferenças entre as cortes
portuguesas e as dos reinos peninsulares e o Parlamento inglês. DUNBABIN, Jean. The origins
of the English Parliament. In: As cortes e o Parlamento em Portugal. 750 anos das Cortes de Leiria
de 1254. 26 a 28 set. 2004. Lisboa. Actas do congresso internacional. Lisboa: Assembleia da
República, 2006, p. 73-83.
2
MARTÍN, José Luis. Las Cortes Medievales, p. 21-25.
3
MARTÍN, José Luis. Las Cortes Medievales, p. 25-27.
4
MARTÍN, José Luis. Las Cortes Medievales, p. 27-29.
5
A bibliografia sobre as Cortes nos reinos peninsulares é abundantíssima, remetendo-se para as
obras clássica de PEREZ-PRENDES, J. M. Cortes de Castilla. Barcelona: Ariel, 1974;
PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-1295. Cambridge-
New York: Cambridge University Press, 1980; e para uma síntese no estudo de QUESADA,
Miguel Angel Ladero. Las Cortes Medievales en Castilla y León. In: As cortes e o Parlamento em
Portugal. 750 anos das Cortes de Leiria de 1254. 26 a 28 set. 2004, p. 85-105.
6
Alguns estudiosos defendem que já teria havido representantes dos concelhos nas assembleias de
San Esteban de Gormaz em 1187 e Carrión em 1188. Sobre estas reuniões, seus antecedentes e
assembleias posteriores até 1252, Joseph F. O’Callaghan aponta como as primeiras Cortes em
Castela as de 1214, em Aragão e Catalunha as de Lérida de 1214, em Navarra as de 1231.
O’CALLAGHAN, Joseph F. Las Cortes de Castilla y Leon. 1188-1350. Valladolid: Ambito,1989,
p. 21-31; PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-1295, p. 105-
151. Quanto à discussão dos historiadores sobre as mesmas consulte-se: MARTÍN, José Luis. Las
Cortes Medievales, p. 29-31.
 
 
44
As cortes no reino de Portugal

Portugal – a Cúria e a evolução dos órgãos do governo

Em Portugal, ainda antes de existir um reino, já o conde D.


Henrique da Borgonha, bem como sua mulher D. Teresa, filha do
imperador da Hispânia Afonso VI, governavam o condado
portucalense ouvindo a Cúria.7 E logo depois o seu filho, o rei D.
Afonso Henriques, e seus sucessores governaram o reino com o apoio
desse órgão.8
Na Cúria encontramos membros da família real, altos
dignitários nobres e eclesiásticos, no geral desempenhando os cargos
superiores da administração central e territorial, e vassalos do rei. A
Cúria aconselhava e assessorava o monarca em todas as matérias
governativas.
Mas se, inicialmente, na Cúria estavam os estratos
privilegiados e essa tinha um carácter de assembleia feudal, em que
os vassalos aconselhavam o seu rei e senhor, com a evolução da
burocracia administrativa, para além destes privilegiados, passaram
a conhecer uma dimensão crescente os sapientes, aqueles que
detinham conhecimentos de diversa natureza, fosse o domínio do
latim, da escrita, ou do saber jurídico, competências que eram cada
vez mais necessárias na governação do reino. Eram estes vários
corpos de “técnicos” que podiam responder e pôr em prática a
suprema competência real da justiça, da fiscalidade e da
administração central do reino. Por isso na cúria se começa a
distinguir entre membros “existentes” e “presentes”.9 Os primeiros,

7
Sobre a génese, constituição e funções da cúria portuguesa, que se desenvolve à semelhança da
cúria do reino de Leão e Castela, veja-se MENDUÑA, Claudio Sanchez Albornoz. La curia regia
portuguesa siglos XII y XIII. Madrid: Centro de Estudos Históricos, 1920.
8
Leiam-se as sínteses sobre este órgão: CAETANO, Marcello. História do Direito Português
[1140-1495]. 2ª ed. Lisboa; São Paulo:Verbo, 1985, p. 122-124 e 212-213; HOMEM, Armando
Luís de Carvalho. A corte e o governo central. In: SERRÃO, Joel; OLIVEIRA MARQUES, A.
H. (dir). Nova História de Portugal. Portugal em definição de fronteiras. Do condado portucalense
à crise do século XIV. Coord. de Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho
Homem. Lisboa: Editorial Presença, 1996. v. III, p. 532-533. Também alude ao tema Leontina
Ventura: VENTURA, Leontina. A nobreza de corte de Afonso III. Tese (Doutorado). Faculdade
de Letras. Coimbra, 1992. v. I, p. 66, 68-69.
9
VENTURA, Leontina. A nobreza de corte de Afonso III. v. I, p. 72-73.
 
45
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

com uma legitimidade anterior à do rei e dele independente, eram


constituídos pelos altos dignitários laicos e eclesiásticos, que
detinham os principais ofícios públicos, e, portanto, eram membros
permanentes da Cúria. Os segundos eram privados e fiéis vassalos
do monarca, que estavam presentes na Cúria por expressa vontade
do monarca, e que colocavam ao seu serviço as suas competências. E
assim, com a complexidade governativa, de um corpo
indiscriminado de vassalos da Cúria, vai progredir-se, desde meados
do século XIII, sobretudo nos reinados de D. Afonso III e D. Dinis,
para uma especialização de serviços e de servidores da justiça e do
fisco e mesmo para a constituição de um conselho régio.10
O consilio do rei, composto por consiliarii e privati, torna-se
um órgão supremo de governo, que reúne um grupo de homens
capazes de assistir o monarca nas mais altas funções régias da justiça,
da guerra ou paz, da utilidade pública e da legislação.11 A composição
deste órgão era fluída, dele fazendo parte os três grandes oficias
palatinos12 (mairdomus, com atribuições administrativas e
financeiras; signifer, com funções militares, e cancelarius, com
responsabilidade pela escrita dos actos da governação), ricos-
homens, outros oficiais menores e ainda clérigos e juristas. Acentua-
se muito neste corpo de conselheiros a ligação pessoal de vassalidade,
fidelidade e serviço ao rei.
Em simultâneo, quando surgiam grandes problemas
políticos, os monarcas convocavam uma reunião mais alargada, uma

10
Leia-se HOMEM, Armando Luís de Carvalho. A corte e o governo central. In: SERRÃO, Joel;
OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir). Nova História de Portugal. Portugal em definição de
fronteiras, p. 538-539; VENTURA, Leontina. A nobreza de corte de Afonso III. v. I, p. 62, 65-70,
116-118; CAETANO, Marcello. As cortes de Leiria de 1254. Lisboa: Academia Portuguesa da
História, 1954, p.17-21.
11
Ao estudar as origens do Conselho Real, David Torres Sanz defende que, enquanto a cúria foi um
órgão político-social e representativo da comunidade social, o conselho foi um órgão de administração
e governo integrado por verdadeiros oficiais régios, dotados de competência técnica, que
secundariamente podiam representar ou ser expressão de forças sociais. SANZ, David Torres. La
administracion central castellana en la Baja Eda Media. Valladolid: Secretariado de Publicaciones.
Departamento de Historia del Derecho. Universidad de Valladolid, 1982, p. 181-186.
12
Cf. HOMEM, Armando Luís de Carvalho. A corte e o governo central. In: SERRÃO, Joel;
OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir). Nova História de Portugal. Portugal em definição de
fronteiras, p. 533-536.
 
 
46
As cortes no reino de Portugal

Cúria extraordinária,13 com os tradicionais vassalos da nobreza e


clero, que sempre o aconselhavam, mas que também
“representavam” a comunidade social do reino, o que abriu espaço à
presença dos representantes dos concelhos, portanto do “Terceiro
Estado”, para que toda a sociedade fosse consultada. Na realidade só
estes últimos actuavam verdadeiramente em representação dos
municípios a que pertenciam,14 e com a sua presença nessa reunião
temos não já apenas uma Cúria mas umas Cortes. Outro importante
passo nesta progressão foi a possibilidade de se admitir a
apresentação, por parte das diversas forças sociais presentes, de
reclamações contra os abusos da actuação dos oficiais régios ou dos
privilegiados.15
E assim, com o decorrer do tempo, se evoluirá da Cúria
extraordinária para as Cortes,16 o que, como já dissemos, não é fácil
de averiguar, porque o processo é lento e susceptível de ser avaliado
segundo diversas variantes.

13
Tema abordado por MENDUÑA, Claudio Sánchez Albornoz. La curia regia portuguesa siglos
XII y XIII, p. 49-56.
14
Ao tratar das Cortes, José Mattoso defende justamente que os representantes dos concelhos eram
os únicos que representavam alguma coisa, os seus municípios. MATTOSO, José. Identificação
de um país: ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. v.
II, p. 115-118.
15
António Hespanha, ao tratar das cúrias extraordinárias, defende que a distinção entre a Cúria e as
Cortes assenta no facto de que a Cúria tem um papel passivo, apenas discutindo os assuntos que lhe
são propostos pelo rei, enquanto as Cortes podem tomar a iniciativa de propor outros. Algumas
páginas depois, ao estudar as Cortes na época medieval, refere a historiografia desta problemática e,
quanto à génese das Cortes, acentua a entrada dos representantes dos concelhos e a capacidade de
nestas reuniões se apresentarem agravos e pedidos. HESPANHA, António. História das Instituições.
Épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 148-149, 367-382.
16
Sobre a evolução da Cúria para as Cortes e sobre as características das Cortes portuguesas e seu
confronto com o parlamento inglês, leia-se: MERÊA, Manuel Paulo. O poder real e as cortes.
Coimbra: Coimbra Editora, 1923, p. 26-50. Uma síntese sobre a origem das Cortes se encontra
em CARVALHO, Alberto Martins. Cortes. Origens. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de
História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1971. v. IV, p. 711-715. E sobre as Cortes,
ainda que analisadas essencialmente para tempos posteriores, veja-se: BARROS, Henrique da
Gama. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. Dir. Torquato de
Sousa Soares. 2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1946, t. III, p. 125-195; SOUSA,
Armindo de. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: Instituto Nacional de
Investigação Científica. Centro de História da Universidade do Porto, 1990. v. I e II.
 
47
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Portugal – reuniões de Cúrias

Para alguns historiadores a primeira Cúria extraordinária


portuguesa teria sido a de 1211, reunida por D. Afonso II, quando
ascendeu ao trono.17 Após as questões entre o rei seu pai, D. Sancho I,
nos anos finais do seu governo, com a nobreza18 e sobretudo com o
clero, muito em particular com o bispo de Coimbra e do Porto,19 que
ameaçaram mesmo a sucessão do trono,20 o herdeiro quis afirmar-se,
na abertura do seu reinado, em todo o seu poder.
A Cúria de 1211 reúne-se em Coimbra, provavelmente entre
abril e junho de 1211,21 tendo nela estado presentes D. Pedro,
arcebispo eleito de Braga e todos os bispos do reino, alguns priores e
abades dos mais importantes mosteiros e os nobres de maior
importância, como se enuncia no prólogo das leis que dela saem,22 e a
estes se juntariam, por certo, membros da família real, os altos oficiais
da administração central e alguns oficiais menores.23 Ao reunir esta

17
Assim o afirma SOARES, Torquato de Sousa. Antecedentes das cortes reunidas em Guimarães
em 1250. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 20, p. 141-154. 1983, p. 146-147; SOARES,
Torquato de Sousa. As primeiras Cortes Gerais da Monarquia Portuguesa, realizadas em
Guimarães em 1250. Revista Guimarães, Guimarães, v. 93, p. 345-349. 1984, p. 4. O mesmo
defende José Mattoso ao afirmar que esta é a primeira notícia de uma reunião extraordinária e
deliberativa da Cúria régia. MATTOSO, José. Identificação de um país, v. II, p. 114.
18
BRANCO, Maria João Violante. D. Sancho I. O filho do rei Fundador. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2006, p. 232-238.
19
ANTUNES, José; OLIVEIRA, António Resende de; MONTEIRO, João Gouveia. Conflitos
políticos no reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão. Estado da questão. Revista de
História das Ideias, Coimbra, v. 6, p. 29-47, 1984; BRANCO, Maria João Violante. D. Sancho I,
p. 238- 249.
20
Esta problemática da sucessão é abordada por BRANCO, Maria João Violante. D. Sancho I, p.
252-266 e VILAR, Hermínia Vasconcelos. D. Afonso II. Um rei sem tempo. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2005, p. 45-56.
21
Assim afirma Damião Peres, lembrando que D. Sancho I falecera em Coimbra, a 26 de março
de 1211, e na corte estavam, portanto, todos estes altos dignitários. Depois de julho D. Afonso II
já andava por terras da Beira. PERES, Damião. As cortes de 1211. Separata da Revista Portuguesa
de História, Coimbra, t. IV. 1949, p. 3.
22
“dom Pedro eleyto de Braga e de todos os bispos do rreyno e dos homens de rreligiom e dos ricos
homens e dos seus vasallos”. Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines.
Olisipone: Typis Academicis,1856. v. I, p. 163-179. (doravante designadas Leges).
23
Nuno José Pizarro Pinto Dias e Hermínia Vasconcellos Vilar identificam concretamente os que
estiveram presentes nesta cúria. Cf: DIAS, Nuno José Pizarro Pinto. Cortes Portuguesas (1211 a
 
 
48
As cortes no reino de Portugal

Cúria, D. Afonso II pretenderia demonstrar que queria governar com


o apoio da nobreza e do clero, mas defendendo um programa político
de afirmação do poder real. Uma actuação que nos remete para a de
seu primo Afonso IX alguns anos antes, quando, ao herdar o reino após
a morte de seu pai Fernando II, reuniu, em abril de 1188, na cidade de
Leão, uma Cúria ou já Cortes, com a presença do arcebispo de
Compostela, os bispos, nobres e representantes das cidades.
D. Afonso II afirma nesta Cúria a autoridade do rei e a
dignidade do reino.24 O rei detém a suprema jurisdição e o pleno poder
político, o que se traduz nas primeiras leis gerais que saem da
reunião.25 Nelas se defendiam os direitos e rendimentos da coroa, a
igualdade dos homens em reclamar justiça, a isenção na sua aplicação
e o respeito pelas normas jurídicas.26 A imagem do rei é a de legislador,
responsável pelo cumprimento da justiça, protector dos fracos, mas
também defensor dos privilégios da nobreza e do clero, ainda que sem
abdicar dos direitos do reino, pretendendo conciliar a afirmação do
poder real com os direitos dos súbditos, bem como procurando

1383). Braga: Universidade do Minho-Unidade de Ciências Sociais, 1987 (policopiada), p. 41-44;


VILAR, Hermínia Vasconcelos. D. Afonso II, p. 69. 78.
24
Leia-se sobre esta assembleia: PERES, Damião. As cortes de 1211. Separata da Revista
Portuguesa de História, p. 1-8. AZEVEDO, Maria Antonieta Soares de. Coimbra, Cortes de
(1211). In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas,
1971. v. I, p. 608-609.
25
Não se conhecem as actas desta reunião, mas apenas as leis gerais que aí se promulgaram,
colhidas de diversas compilações legislativas que a elas aludem e que são já dos séculos XIV e XV,
como o Livro de Leis e Posturas, as Ordenações del-rei D. Duarte e os Foros de Santarém. Por falta
dos originais discutem os historiadores se todas as leis adviriam da cúria de 1211 ou seriam
acrescentadas, remetendo-se, para um ponto da situação desta problemática e as mais recentes
posições sobre ela para Hermínia Vasconcelos Vilar e Maria João Violante Branco, que apenas
aceita algumas leis (da décima à vigésima sétima) como saídas da cúria de 1211. VILAR, Hermínia
Vasconcelos. D. Afonso II, p. 78-79; BRANCO, Maria João Violante. The general laws os Afonso
II and his policy of “centralisation”: a reassessement. In: GOSMAN, M.; VANDERJAGT, A.,
VEENSTRA, J. (ed.). The propagation of power in the Medieval West. Groningen: Egbert Forsten,
1997, p. 79-95.
26
Uma análise desta leis, além do confronto com as decisões da reunião de Afonso IX em 1188,
publicadas por Julio Gonzalez, se colhe em Hermínia Vasconcelos Vilar. GONZALEZ, Julio.
Alfonso IX. Madrid: Instituto Jeronimo Zurita, 1944. v. I, p. 23-26, VILAR, Hermínia
Vasconcelos. D. Afonso II, p. 80-85. Já anteriormente Damião Peres, aceitando todas as 27 leis
como saídas da cúria de 1211, as estudara quanto ao seu conteúdo, ver: PERES, Damião. As cortes
de 1211. Separata da Revista Portuguesa de História, p. 5-8.
 
49
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

pacificar e harmonizar os interesses dos corpos sociais do reino no


início do seu governo.
Teria ainda havido posteriormente três reuniões de Cúrias no
reinado de D. Sancho II, todas em Coimbra, respectivamente em
1223, 1228/1229 e 1235/1236. A primeira visaria o juramento do rei,
que ascendera ao trono a 25 de março de 1223, e, para além de muitos
ricos-homens, nela tomaram assento D. Pedro, abade de Alcobaça, D.
Amberto, abade de S. João de Tarouca, D. Pedro, Mestre do
Templários, D. Rodrigo Gil, prior do Hospital, e D. Soeiro, prior dos
Dominicanos. Dois importantes documentos de composição
acabariam por resultar dela – um celebrado entre o rei e o arcebispo de
Braga e outro entre o rei e as infantas suas tias, filhas de D. Sancho I.27
A segunda assembleia, reunida entre 1228-1229, contou com a
presença do legado da Santa Sé, João de Abbeville, e de “episcoporum
et procerum et aliorum nobilium multitudine affluenti”.28 O móbil da
assembleia teria sido justamente a vinda desse legado, por ordem do
papa Gregório IX, que devia pôr termo às contendas entre o monarca
e o clero e a nobreza,29 bem como acabar com os conflitos no interior
do corpo eclesiástico, que prejudicavam o cumprimento dos seus
deveres.30
A última Cúria de D. Sancho II, reunida entre fins de 1235 e
princípios de 1236, visaria a programação das acções militares que
estavam a decorrer e a discussão sobre o plano de organização do
território conquistado e do seu repovoamento.31

27
DIAS, Nuno José Pizarro Pinto. Cortes Portuguesas (1211 a 1383), p. 45.
28
Leges, p. 182; SOUSA COSTA, A. D. de. Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda
entre D. Afonso II e suas irmãs. Braga: Editorial Franciscana, 1963, p. 166-167, nota 289.
29
Sobre estes conflitos iniciais do governo de D. Sancho II, leia-se ANTUNES, José; OLIVEIRA,
António Resende de; MONTEIRO, João Gouveia. Conflitos políticos no reino de Portugal entre
a Reconquista e a Expansão. Estado da questão. Revista de História das Ideias, p. 78-82.
30
Embora Maria Teresa Campos Rodrigues intitule o seu artigo como Cortes, defende que esta
reunião não é de Cortes, mas antes uma Cúria plena. RODRIGUES, Maria Teresa Campos.
Coimbra, Cortes de (1229). In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, v. IV, p.
399. Assim a considera também Nuno José Pizarro Pinto Dias. Cf. DIAS, Nuno José Pizarro
Pinto. Cortes Portuguesas (1211 a 1383), p. 45. Na carta régia, datado de janeiro de 1229, em que
se encarregava o chanceler Mestre Vicente, recentemente eleito bispo da Guarda, do
repovoamento de Idanha- a-Velha, antiga sede do bispado egitaniense de que o da Guarda era
herdeira, para além de ricos-homens e bispos encontram-se D. Pedro, abade de Alcobaça e Mestre
João, prior de Santa Cruz de Coimbra, que poderiam ter estado presentes na Cúria.
31
DIAS, Nuno José Pizarro Pinto. Cortes Portuguesas (1211 a 1383), p. 45-46.
 
50
As cortes no reino de Portugal

Portugal – Cúrias e Cortes

Em 1250 tem lugar em Guimarães uma outra destas reuniões,


que, para alguns historiadores, é já uma assembleia de Cortes.
Governava agora D. Afonso III, que ascendeu ao poder depois da
deposição do seu irmão D. Sancho II. O reinado de D. Sancho II foi
agitado por violências e conflitos sociais. Havia rivalidades e guerras
privadas entre os nobres. Os cavaleiros de uma nobreza de segunda
categoria roubavam igrejas, mosteiros e lavradores. O rei não
conseguia impor a ordem e assegurar a justiça e a paz interna. Para
além disso, D. Sancho II teve graves contendas com o bispo de Lisboa,
com o arcebispo de Braga, com o bispo do Porto e com o bispo da
Guarda.32 Os prelados queixaram-se ao papa e D. Sancho II veio a ser
deposto por Inocêncio IV em 1245, passando a ser governador e
curador do reino o seu irmão D. Afonso, conde de Boulogne. Em Paris,
no mês de setembro desse ano, D. Afonso III, perante o arcebispo de
Braga, um representante do bispo de Coimbra e outros altos
dignitários eclesiásticos e alguns nobres, jurava respeitar e defender os
direitos da Igreja, cumprir os bons costumes e foros do reino e abolir
os maus usos. Jurava, pois, assegurar a justiça e a paz, sendo estes os
princípios da autoridade régia.
Chegado a Portugal nos últimos dias de 1245, houve guerra
civil entre os partidários de D. Sancho II e os de D. Afonso, que só
ascendeu ao trono, depois do exílio e morte do irmão, em 1248.33 Estes
tempos de discordia, que deixaram o reino debilitado social e
economicamente, facilitaram o advento de um tempo de concordia,
liderado por um poder forte. D. Afonso III vai procurar assegurar a
paz social no reino e prosseguir com a política de afirmação da

32
No que respeita aos conflitos do governo de D. Sancho II desde 1233 até à sua deposição, veja-
se: ANTUNES, José; OLIVEIRA, António Resende de; MONTEIRO, João Gouveia. Conflitos
políticos no reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão. Estado da questão. Revista de
História das Ideias, p. 83-105.
33
Esta temática foi estudada por MATTOSO, José. A crise de 1245. Revista de História das Ideias,
Coimbra, n. 6, p. 29-47. 1984 e BRANCO, Maria João Violante. D. Sancho I, p. 7-28.
 
51
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

autoridade régia já iniciada por seu pai, D. Afonso II, e para a qual
muito podia concorrer a experiência que colhera em França.34
Logo no ano a seguir à sua subida ao trono, em 1249, decide-se
pela guerra no Algarve, onde havia ainda terras a conquistar aos
muçulmanos. Era uma forma de mobilizar os nobres e os clérigos
guerreiros para um inimigo externo, evitando as querelas internas, e
também de obter terras e rendas que servissem para compensar fiéis e
vassalos. Para si mesmo, em caso de vitória, colheria o prestígio de ver
concluída a guerra de reconquista e de conseguir acrescentar o
território do reino e o seu poder sobre ele.
E de facto, completada com êxito a reconquista, o monarca
concentrou-se na consolidação e acréscimo da autoridade e do poder
do rei, que garantia a justiça e a paz, e se assumia como protector dos
membros da sociedade contra possíveis abusos. Com o apoio de
letrados e legistas, defensores do Direito Romano, queria que o poder
real se impusesse a todos os súbditos, laicos ou eclesiásticos, e que as
instituições judiciais do reino e a legislação régia alcançassem todos os
espaços e poderes. Pretendia estabelecer uma organização social de
novas relações, que valorizassem o saber e a técnica e o protagonismo
dos centros concelhios, sobretudo os de maior peso mercantil.
É nesta sequência que reúne, em maio-junho de 1250, em
Guimarães, uma Cúria, “congregata ad plurima negocia regni
expedienda”.35 Nela estariam, segundo alguns estudiosos, para além de
membros da nobreza e do clero, elementos do povo, e a reunião teria
sido convocada para Guimarães por ser este um centro comercial de
relevo e por estar próximo de Braga, a metrópole eclesiástica do reino,
e também da diocese portuense, em que se debatiam com a realeza

34
Sobre este monarca leia-se a síntese: VENTURA, Leontina. Afonso II e o desenvolvimento da
autoridade régia. In: SERRÃO, Joel; OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir). Nova História de
Portugal. Portugal em definição de fronteiras, p. 123 e 144 e VENTURA, Leontina. D. Afonso III.
Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
35
Leges, p 184-189 (citação na página 185). Quanto à ambiência político-social do reinado de D.
Afonso III, em que várias Cortes foram reunidas, leia-se a síntese: VENTURA, Leontina. A
política governativa de Afonso III. In: As Cortes e o Parlamento em Portugal. 750 anos das Cortes
de Leiria de 1254. 26 a 28 set. 2004. Lisboa. Actas do Congresso Internacional, p. 41-57.
 
 
52
As cortes no reino de Portugal

questões do foro eclesiástico.36 Expressamente na fonte refere-se que a


assembleia teve lugar “in presencia multorum episcoporum, procerum et
militum et aliorum”.37 Claramente nela estiveram os tradicionais
privilegiados e certamente já uma nobreza média ou pequena, mas a
referência a aliorum é muito pouco específica para nos remeter, com
segurança, para os homens-bons das cidades ou vilas do reino.38
Nesta assembleia foram apresentados agravos gerais do clero
pelo arcebispo de Braga e ainda agravos especiais do bispo do Porto,
Julião (15), do bispo de Coimbra, Egas (9) e do bispo da Guarda,
Rodrigo (7), que foram respondidos por Mestre Pedro Julião (Mestre
Pedro Hispano, futuro para João XXI), deão de Lisboa e arcediago de
Braga.39 Mas antes o rei terá ouvido o conselho de alguns peritos
eclesiásticos, como Fernando Anes Portocarreiro, deão de Braga,
mestre Pedro Hispano, deão de Lisboa e arcediago de Braga, Mestre
Vicente, deão do Porto, D. Ricardo Guilherme, chantre de Lisboa, D.
João Soares, arcediago de Calahorra e Mestre Tomé, tesoureiro de
Braga. Nos agravos expressavam-se queixas contra o rei e seus oficiais,
que não respeitavam os privilégios eclesiásticos, bem como contra os
ricos-homens, que cometiam os mais variados malefícios nos bens e
direitos da Igreja.
O monarca, nas suas respostas, declarava que iria procurar a
verdade, por meio de inquirições, e só a verdade apoiaria a suprema
autoridade do rei e do reino, que, na sua prática, devia ter em vista a
utilidade de todo o reino e o cumprimento da justiça. Prontificava-se a
corrigir os abusos da nobreza e dos oficiais régios, mas declarava que
seria ouvindo o conselho de peritos leigos e eclesiásticos e recorrendo à

36
Torquato de Sousa Soares admite mesmo que os agravos de Coimbra e Montemor-o-Velho, que
não se encontram datados, fossem apresentados nesta assembleia, o que outros defendem, como
veremos, ter apenas acontecido nas Cortes de Leiria de 1254. SOARES, Torquato de Sousa. As
primeiras Cortes Gerais da Monarquia Portuguesa, realizados em Guimarães em 1250. Revista
Guimarães, p. 5.
37
Leges, p. 185.
38
Mas é também com base na palavra “aliorum” que A. H. de Oliveira Marques admite a
possibilidade destas Cortes (assim as designa) terem registado a presença de procuradores do braço
popular. OLIVEIRA MARQUES, A. H. Cortes de (1250). In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário
de História de Portugal, p. 401- 402.
39
Leges, p. 184-190.
 
53
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

justiça que ponderaria as situações apresentadas como irregulares.40


Talvez também ouvisse queixas dos fidalgos, a ajuizar pelo decreto de
24 de janeiro de 1251,41 no qual o rei decretava penas contra os que
invadiam as casas dos fidalgos, lhes estragavam as vinhas, roubavam
gados e causavam outros danos.
D. Afonso III definiu claramente o seu programa político de
defender os súbditos, mas sempre acautelando os direitos do rei e do
reino, pondo-os em prática e fazendo-os cumprir. Retenhamos que
nesta assembleia terão estado membros da alta e média ou baixa
nobreza, portanto abrindo-se a mais vastos corpos sociais, ainda que
se desconheça o sentido exacto de militum e de aliorum também aí
presentes. Mas o primeiro termo poderia corresponder já a alguns
cavaleiros-vilãos, cuja importância fora aumentando com a guerra face
aos muçulmanos, e o segundo aos mercadores dos concelhos, que se
dedicavam ao comércio interno e externo, em crescendo nos centros
urbanos. Para além disso, nela se expuseram agravos, ainda pelo
tradicional braço do clero e certamente também o da nobreza, não se
limitando a ser uma assembleia consultiva sobre as propostas régias.
Caminhava-se já para um sentido mais alargado da Cúria em que os
seus membros, mais do que apenas discutirem as questões propostas
pelo monarca, apresentavam as suas próprias reivindicações.
Os subsequentes desenvolvimentos políticos, sociais e
económicos impulsionaram a transformação mais completa desta
instituição. Desde logo o monarca precisava de dinheiro para pôr em
prática o seu programa político. E como a questão da “quebra” ou
“compra” da moeda42 se discutira já em 1247 ou 1248,43 aproximava-
se o tempo, após sete anos, em que de novo pairava no ar essa ameaça.

40
Sobre estes agravos e respostas do rei, leia-se VENTURA, Leontina. D. Afonso III, p. 96-101.
41
Leges, p. 190-191.
42
O rei tinha o direito de cunhar moeda e de fixar o seu valor. Assim, como meio de aumentar os
seus rendimentos, o rei podia desvalorizar a moeda, de uma de duas maneiras - acrescentar o valor
nominal das moedas, mantendo o mesmo metal precioso, ou manter o valor nominal das moedas,
mas diminuindo-lhe o quantitativo de metal precioso.
43
CAETANO, Marcello. As cortes de Leiria de 1254, p. 12-13. Nesta ocasião os corpos sociais do
reino teriam proposto ao rei a “compra” da moeda (“emere monetam”), portanto o pagamento de
um tributo equivalente ao que o rei pensava ganhar com a sua desvalorização, ficando o valor da
moeda inalterado, o que não se repercutia nos preços.
 
 
54
As cortes no reino de Portugal

Logo os preços começaram a subir quando o prazo se aproximava, o


que obrigou D. Afonso III à promulgação, em 26 de dezembro de
1253,44 de um tabelamento dos preços do gado, das matérias-primas e
dos produtos manufacturados. Para a elaboração de tal lei o monarca
ouviu o conselho de ricos-homens, prelados, mercadores,45 homens
bons e cidadãos do conselho do reino, tendo alguns historiadores
admitido que tivesse havido uma reunião de Cortes em Lisboa, com a
presença dos homens dos concelhos, antes da que se lhe iria seguir em
Leiria.46 Todavia a fórmula expressa no tabelamento – habui consilium
– parece remeter-nos para a reunião do conselho régio, onde estavam
os sapientes e os directamente implicados nos assuntos a resolver,
portanto, neste caso, também os mercadores e os homens bons dos
concelhos mercantis.47
Mas, indo mais além, entre meados de fevereiro e finais de
março, terá, com este mesmo pretexto monetário, reunido, nas casas
do rei junto à igreja de S. Pedro em Leiria, uma assembleia. Leiria, a
vila que o apoiara na guerra contra seu irmão, foi pois recompensada
com esta reunião alargada, que será já sem dúvida de Cortes.48 Um
registo anotado no livro primeiro da Chancelaria de D. Afonso III diz-
nos “Era Mª CCª LXª IIª Domnus Alfonsus Rex Portugalie et Comes
Bolonie celebravit suam curiam apud Leirenam mense Marcii cum
episcopis et cum proceribus et cum prelatis e cum ordinibus et cum bonis
hominibus de conciliis de suo regno super statu regni e super rebus

44
Leges, p. 192. Aliás nessa lei afirmava-se que os preços tinham encarecido “quod timebant quod
ego frangerem monetam et quia dicebant quod tempus britandi monetam apropinquabat”.
45
Assim refere a lei: “Et ego super hoc habui consilium com riquis hominibus sapientibus de curia mea
et consilio meo et cum prelatiis et militibus et mercatoribus e cum ciuibus et bonis hominibus de consilliis
regni mei...”. Leges, p. 192.
46
Assim afirma Marcelo Caetano e também Evelyn Stefanos Procter. CAETANO, Marcello.
Subsídios para a história das Cortes Medievais portuguesas. Bracara Augusta, Braga, v. XIV-XV,
p. 5-26. 1963, p. 6-7; PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-
1295, p. 255.
47
CAETANO, Marcello. As cortes de Leiria de 1254, p. 14-17; VENTURA, Leontina. D. Afonso
III, p. 102-103.
48
CAETANO, Marcello. As cortes de Leiria de 1254, p. 23-25. Já Alexandre Herculano defendia
que estas haviam sido as primeiras Cortes em que os procuradores dos concelhos intervieram.
HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarquia até o fim do
reinado de Afonso III. Dir. José Mattoso e Ayala Monteiro. Lisboa: Bertrand, 1980. t. III, p. 51.
 
55
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

corrigendis et emendandis de suo regno”,49 seguindo-se vários diplomas


saídos dessa assembleia.50
Esta reunião, em que se decidiu a compra da moeda, exigiu já a
convocação das três Ordens do reino, portanto de toda a comunidade
social.51 E o montante dessa compra da moeda, pago por uma quantia
superior à habitual, veio até a gerar conflitos, por parte de prelados,
Mestres das Ordens Militares e talvez também da fidalguia, o que
obrigou o monarca, no ano seguinte, a jurar perante o arcebispo de
Évora, D. Martinho, que, no futuro, só venderia a moeda pelos valores
acostumados.52
Mas, para além desta questão geral, foram também
apresentados determinados assuntos particulares. O concelho de
Santarém levou agravos contra a actuação dos oficiais do rei, os
concelhos de Lisboa e Guimarães pediram que o rei condenasse os
abusos dos magistrados desses mesmos concelhos, e a Guarda
requereu ao monarca a confirmação do seu foral. Beja obteve uma carta
de foral e houve ainda deliberações sobre as contendas entre o rei e o
bispo do Porto por causa dos direitos de navegação no Douro. Por sua
vez, ao mosteiro de Alcobaça, foram entregues certos montantes em
numerário que lhe devia o erário régio, algumas igrejas viram
confirmados os seus bens e direitos, uns quantos cidadãos receberam
bens que lhes tinham sido usurpados e certos fidalgos foram
recompensados com doações pelos seus serviços militares.
Muito ponderados têm ainda sido os agravamentos
apresentados pelos concelhos de Coimbra e Montemor-o-Velho, que
não possuem data, discutindo-se se a sua apresentação ocorreu na
Cúria (ou Cortes) de 1250 ou nestas Cortes de 1254. Tais queixas

49
AN/TT. Chancelaria de D. Afonso III, f. 6v; Chancelaria de D. Afonso III. Ed. de Leontina
Ventura e António Resende. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006. Livro I – v.
I, doc. 33, p. 44.
50
A publicação destes documentos encontra-se na obra de Marcello Caetano. Por eles se tem
procurado reconstituir aqueles que pelas três Ordens estiveram presentes nas Cortes.
CAETANO, Marcello. As cortes de Leiria de 1254, p. 57-81 e 27-40.
51
Claudio Sanchez Albornoz Menduña, ao estudar a evolução da Cúria para as Cortes, afirma que
“a entrada dos procuradores das cidades nas Cúrias coincidiu com a discussão nelas das questões
da moeda e dos tributos”. MENDUÑA, Claudio Sánchez Albornoz. La curia regia portuguesa
siglos XII y XIII, p. 154.
52
Chancelaria de D. Afonso III. Livro I-v. 2, de Santarém, 19 de março de 1255.
 
56
As cortes no reino de Portugal

incidem essencialmente sobre as competências dos oficiais do rei


presentes nesses concelhos, sobre a autoridade dos seus oficiais
próprios, sobre a posse de certos bens e direitos por parte do rei ou dos
concelhos e ainda sobre a confirmação de antigos privilégios desses
concelhos.
Nas Cortes de Leiria de 1254 houve, portanto, resoluções sobre
problemas levados ao monarca e nela tiveram assento as três ordens do
reino, o que não mais deixou de acontecer neste reinado e nos
subsequentes. As outras duas Cortes que tiveram lugar neste reinado,
as de Coimbra de 1261 para discutir de novo a compra da moeda53 e as
de Santarém de 1273, convocadas para serem corrigidos certos agravos
que a igreja dizia terem sido cometidos pelo rei e seus oficiais contra
pessoas e instituições eclesiásticas, fidalgos e concelhos,54 não
prescindiram da presença dos membros de toda a comunidade social.55
O rei seu filho D. Dinis, reuniu Cortes em 1282 (Évora), em 1285
(Lisboa), em 1288 (Guimarães), em 1289 (Lisboa) e em 1323 (Lisboa).
O povo, através dos representantes dos concelhos, ganhara o direito de
ser ouvido e de aconselhar o monarca como os tradicionais estratos do
clero e da nobreza que sempre tiveram esse privilégio.
Os reis medievais, nos séculos XIV e XV, continuarão a reunir
as Cortes, que vão crescendo nas suas funções, na força da

53
Os prelados, barões, religiosos e povo do reino pediram ao rei para reunir uma cúria a fim de
discutirem a questão da moeda e o rei “ad eorum instanciam feci archiepiscopum et omnes episcopus
baronis religiosos et communi totis regni mei apud Colimbriam conuenire”. Leges, p. 210-213. Teriam
sido convocadas entre fins de março e princípios de abril de 1261. RODRIGUES, Maria Teresa
Campos. Coimbra, Cortes de (1229). In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal,
v. IV, p. 339-340.
54
Leges, p. 229-231; “sobresto mandey chamar meus ricos homees e as ordiis e os concelhos do meu
reyno e figi mha corte cum eles en Sanctarem”. Estas Cortes teriam sido convocadas entre dezembro
de 1273 e janeiro de 1274, na sequência da bula enviada por Gregório X, em 28 de maio de 1273,
exigindo ao rei que reparasse os danos causados à Igreja. Cf. ANTUNES, José; OLIVEIRA,
António Resende de; MONTEIRO, João Gouveia. Conflitos políticos no reino de Portugal entre
a Reconquista e a Expansão. Estado da questão. Revista de História das Ideias, p. 109-110;
RODRIGUES, Maria Teresa Campos. Santarém, Cortes de (1273). In: SERRÃO, Joel (dir.).
Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1971. v. III, p. 764.
55
Marcello Caetano chama porém a atenção para os progressos da participação popular desde a
sua consulta na lei de 1253, passando pela presença de procuradores dos concelhos nas Cortes de
Leiria de 1254 e depois pela capacidade reivindicativa desses procuradores nas Cortes de Coimbra
de 1261. CAETANO, Marcello. Subsídios para a história das Cortes Medievais portuguesas.
Bracara Augusta, p. 6-8.
 
57
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

representatividade dos procuradores dos concelhos e no alcance


político das suas deliberações.

Em síntese

Se na Península Ibérica as Cortes começam a surgir em finais


do século XII e na primeira metade do seguinte, o certo é que, como já
foi notado,56 estas assembleias só adquirem uma regularidade na
segunda metade do século XIII. Portanto é já neste período de
consolidação que se situam as primeiras Cortes portuguesas, sejam
elas as de 1250, 1253 e inequivocamente as de 1254, passando desde
então a ser convocadas assiduamente.
Mas não menos será de evidenciar que se, nos reinos
peninsulares, as Cortes se reúnem com as funções de prestar
homenagem e juramento de fidelidade ao rei, de dar conselho ao rei em
assuntos políticos, de conceder taxas extraordinárias aos reis e de
promulgar leis,57 foram esses mesmos temas que exigiram que os
monarcas portugueses convocassem Cúrias extraordinárias. As de
1211 para promulgar leis, as de 1228/1229, 1235 e 1250 para resolver
assuntos políticos do reino, as de 1223 para prestar juramento ao rei e
as de 1253 (Cúria ou conselho) para decidir sobre preços. Estes
grandes temas começaram a exigir a presença, para além dos altos
prelados e da grande nobreza, de vassalos, aliorum nobilium, militum et
aliorum, mercatoribus, civibus, bonis hominibus, portanto uma nobreza
média ou baixa de serviço ao rei e uma aristocracia popular, até se
chegar, em 1254, aos bonis hominibus de conciliis, que representariam já
os seus municípios.
Os monarcas, sensibilizados pelos letrados e sapientes do seu
conselho, e pelas doutrinas do direito romano que sustentavam a sua
ideologia política, perceberam que, para concretizar a afirmação e
consolidação do poder real, deviam ouvir e atender a todos os súbditos
do reino.
Com o desenvolvimento urbano e a projecção dos mercadores
em certas cidades e vilas, mas também com a emergência de uma

56
PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-1295, p. 256-257.
57
PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-1295, p. 258-259.
 
58
As cortes no reino de Portugal

aristocracia militar vilã noutros centros concelhios, que muito fora


privilegiada pela sua função na guerra contra os muçulmanos, os reis
tinham de ter em conta o seu parecer nas decisões políticas e de escutar
os seus pedidos e agravos. Esta auscultação era imperiosa quando as
grandes questões económicas e fiscais sobre preços e moeda se
discutiam. Aliás, na Península Ibérica, como na Europa Ocidental,
foram as necessidades financeiras dos reinos, ao longo do século XIII,
que levaram ao desenvolvimento destas assembleias representativas.58
E não chegava à realeza ouvir individualmente alguns quantos
homens bons das cidades e vilas dos reinos. Era necessário que eles
fossem representantes de toda a comunidade dos concelhos a que
pertenciam, os quais obtinham assim o direito de, colectivamente,
pelos seus procuradores, dar o seu parecer ao assunto proposto pelo rei,
para além de poderem pedir para si privilégios ou justiça face a
opressões e abusos. Direito adquirido por concessão régia e não por
reivindicação ou pedido das cidades e vilas, embora o desenvolvimento
económico e social dos concelhos se tivesse imposto a ponto de o seu
parecer não poder ser ignorado.
Convergiram, portanto, dois factores na génese e evolução das
Cortes. Por um lado, a realeza, para a execução do seu programa
político e financeiro, teve necessidade de auscultar a opinião de todos
os seus súbditos e chamar às reuniões, mercadores e homens bons das
comunidades do reino. Por outro lado, as cidades e vilas foram-se
constituindo em concelhos, com um forte poder, legitimado
juridicamente por cartas de forais, e desejavam fazer-se ouvir nas mais
importantes decisões económicas e financeiras da política régia, que
recaíam sobretudo sobre eles, e queriam mesmo expor os seus
específicos problemas. Assim se abriu caminho para a
institucionalização da representatividade em Cortes e desde os tempos
medievais se rasgaram os horizontes da sua transformação futura em
assembleia deliberativa pela votação da maioria.

58
PROCTER, Evelyn Stefanos. Curia and Cortes in Léon and Castilla, 1072-1295, p. 260.

59
 

 
 

A retórica nos prólogos da escrita científica Ibérica


(século XIII)1

Dulce O. Amarante dos Santos

Unde et artis reTPorice doctrinam


quam exponendum pro facultate sumimus,
Dupliciter tradendum esse volumus,
intrinsecus scilicet et extrinsecus.
Magister Alanus (de Lille?). De ars praedicatoria (séc. XII)

A
arte da retórica, uma das três disciplinas do trivium junto
com a Gramática e a Dialética, constituiu-se em diretriz
primeira dos autores de textos na Idade Média,
independentemente de qualquer gênero de pertencimento.
A arte do discurso relacionava-se com o percurso de sobrevivência
das obras da Antiguidade greco-romana. A principal dentre elas é a
Retórica de Aristóteles,2 obra da maturidade, escrita em Atenas, que
de alguma forma traduz igualmente os modelos dos retóricos
anteriores e de seus contemporâneos no IV século a. C. Contudo, da
primeira parte da obra voltada para o público externo sobreviveram

1
Esse texto integra a pesquisa, O percurso intelectual de Pedro Hispano: as relações entre a medicina
universitária europeia e a sociedade no século XIII, que conta com apoio do CNPq.
2
RA= ARISTOTELE. Retorica. Ed. bilíngue. Introd. de Franco Montanari. Milano:
Mondadori, 2010. (Série Oscar classici greci et latine).
 
 
61
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

apenas fragmentos esparsos. Da segunda - redigida em forma de


apontamentos, lições voltadas para o público escolar mais específico
- chegou até nós o texto completo.3 Mas a retórica aristotélica foi
divulgada no medievo por meio da obra juvenil de Marco Tulio
Cícero (106-43 a.C.), De inventione (91-88 a. C.)4, e de outra,
RHetorica ad Herennium,5 cuja autoria lhe foi atribuída desde o IV
século, mas depois remetida ao tribuno da plebe e cônsul na Roma
republicana, Cornificio (I séc. a. C.). A primeira concentra-se
sobretudo na parte inicial dentre as cinco da Retórica,6 a inventio, que
tem seu foco nas partes do discurso. Os dois escritos foram
intensamente estudados e objeto de comentários escolásticos
medievais e dos primeiros escritores renascentistas, deixando-se de
lado outros textos da retórica clássica.7 O poder de influência desses
textos relacionou-se com a flexibilidade da escolástica e o
compromisso com os escritos das auctoritates antigas. De alguma
maneira eles articularam os manuais antigos com as necessidades de
sua época. O inventário dos manuscritos da biblioteca do mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra registra a presença e cópias de Duo libri
de Retorica scilicet Tulii, que revela seu uso na ars praedicatoria, ou
seja, na escrita das homilias.
No século XIII, recorte temporal de nossa investigação,
conhecimento não se constituía de forma segmentada como na
contemporaneidade, pois o saber científico integrava-se ao conjunto
articulado e relacional da cultura da Europa ocidental. Ademais, não

3
O tratado aristotélico é composto por três livros. O primeiro e o segundo tratam da persuasão no
discurso público por meio dos argumentos (as provas): deliberativos, epidíticos e judiciais. Aborda
também o receptor da mensagem com suas paixões e as provas morais, subjetivas e lógicas mais
pertinentes para a argumentação; o terceiro livro expõe o estilo e a disposição das partes do
discurso. Ver: MALEVAL, Maria do Amparo T. Fernão Lopes e a retórica medieval. Niterói, RJ:
Ed. da Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 73.
4
DI= CÍCERO, M. T. De Inventione. De la invención de la retórica. Ed. bilíngue, introd., trad. e
notas por Bulmaro Reyes Coria. Mexico: Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1997.
5
RH= Retórica a Herenio. Trad. e intr. de Ana Paula C. Faria e Adriana Seabra. São Paulo: Hedra, 2005.
6
As partes da Retórica são cinco: Inventio ou invenção é a descoberta de coisas verdadeiras ou
verossímeis; Dispositio ou disposição é a ordenação e distribuição dessas coisas; Elocutio ou
elocução é a acomodação das palavras e sentenças adequadas à invenção; Memoria é a simples
apreensão, no ânimo, das coisas, das palavras e da disposição; Pronuntiatio ou pronunciação é a
moderação com encanto, da voz, semblante e gesto. RH, p. 55.
7
COX, Virginia; WARD, John O. (Eds). The Rhetoric of Cicero in its Medieval and Early
Renaissance Commentary Tradition. Leiden/Boston: Brill, 2011, p. 03.

62
A retórica nos prólogos...

se deve esquecer o papel desempenhado pelos scriptoria dos


mosteiros beneditinos e dos crúzios na criação de bibliotecas e na
conservação, compilação, cópia, tradução e salvaguarda de parte do
patrimônio da cultura médica antiga e medieval. Mais tarde os
Studia e os scriptoria das cortes régias e pontifícias foram os loci que
permitiram a reconstrução desses saberes e sua difusão, além da
formação de profissionais, tanto de docentes quanto de físicos,
astrólogos, matemáticos, e assim por diante. Por exemplo,
encontram-se físicos como Pedro Hispano (1220?-1277) que
atuaram também como teólogos, filósofos naturais e astrólogos,
produzindo obras em várias áreas do conhecimento. Alguns
escreveram até livros de caráter mais hermético, como os alquímicos
(Arnaldo de Vilanova no reino de Aragão). Para o curso de Medicina
era obrigatório passar primeiro na Faculdade de Artes para adquirir
formação nas artes do trivium e quadrivium. Embora houvesse uma
hierarquia estabelecida entre esses saberes com a Teologia, na
primazia, e em segundo lugar, com o Direito Canônico e o Direito
Civil, e por último, a Medicina, os físicos se beneficiaram do debate
sobre o estatuto científico de sua área de conhecimento em
detrimento do estatuto anterior de arte mecânica. Em suma, os
escritores de textos científicos, literários e religiosos tinham acesso à
arte da Retórica na Faculdade de Artes.
Os textos medievais ibéricos, em sua composição, podem ser
classificados em diversos gêneros a partir de dados de afinidades
gerais ou por heterogeneidade complexa: poesia e prosa literária,
histórica, religiosa, filosófica e científica, havendo muitas vezes
interrelação entre os subtipos. No esmiuçar dessa tipologia há uma
multiplicidade de subgêneros com seus cânones, e essa classificação
não consegue abarcar os diferentes discursos narrativos; além do
mais, nem sempre é possível ter acesso à conjuntura extraliterária da
produção dos textos.
Nesse emaranhado é possível localizar um gênero de texto que
antecede a maior parte da prosa, o prólogo, que desempenha, entre
outros, o papel de norteador da leitura do texto que virá a seguir.
Esses breves textos estão presentes em narrativas de todos os gêneros
em língua latina ou vernácula, por toda a Idade Média, e constituem
fontes diretas para a visão medieval do autor, da própria obra e do

63
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

público-alvo. Esse gênero literário medieval, herança da


Antiguidade clássica, foi objeto de estudos interdisciplinares mais
sistemáticos,8 apresentados num colóquio internacional organizado
pela Academia Bélgica, École Française de Rome e a F.I.D.E.M
(Fédération Internationale des Instituts d´Études Médiévales), em
Roma, 1998.9 Na leitura das Actas, encontramos estudos centrados
nos prólogos de textos literários, religiosos, filosóficos e históricos,
não constando referências sobre esse gênero em textos científicos
medievais.
Por escritos científicos, no século XIII, compreendem-se
aqueles que buscam o conhecimento sobre o mundo da natureza
como criação divina. Foram escritos em latim, a língua unificadora
da escolástica, produzidos nos espaços culturais do período - tais
como, o ambiente urbano dos Studia Generale de Paris, de
Montpellier, de Bologna, de Siena - como também nas cúrias
cardinalícias e papal de Viterbo e na corte imperial de Frederico II10
(1212-1250). No interior desse conjunto maior encontram-se os
textos médicos, preocupados com a saúde, a dietética e a terapêutica
dos males e aflições humanos. Na prosa científica médica atribuída
ao físico português Pedro Hispano (1220?-1277), selecionamos para
análise os prólogos de três obras médicas em latim: Líber de
conservanda sanitatis, Thesaurus pauperum e De Oculo.11 Qualquer
tentativa de biografia de um homem de saber medieval caracteriza-
se mais por conjecturas do que por certezas plenas.

8
VANDERPUTTEN, Bernard. From Sermon to Science: Monastic Prologues from the Southern
Low Countries as Witnesses of Historical Consciousness (10th-15th Centuries). In: VERBEKE,
Werner et al. (eds.). Medieval narrative sources: gateway into the medieval mind. Leuven: Leuven
University Press, 2005. p. 37-54.
9
HAMESSE, Jacqueline (Org.). Les prologues médiévaux. Actes du Colloque international
organisé par l´Academia Bélgica et l´École française de Rome avec le concours de la F.I.D.E.M
(Rome, 26- 28 mars 1998). Turnhout: Brepols, 2000.
10
PARAVICINI BAGLIANI, A. Medicina e scienze della natura alla corte dei papi nel duecento.
Spoleto: Centro Italiano di Studi sulló Alto Medioevo, 1991; PARAVICINI BAGLIANI, A. La
cour des papes. Paris: Hachette, 1995.
11
LCS = Líber de conservanda sanitate de Petri Hispani. Ed. Trilingue organizada por Ugo
Carcassi. Roma: Carlo Delfino; Rotary, 1997; TP= Thesaurus pauperum de Pedro Hispano Ed.
crítica por Maria Helena da Rocha Pereira. In: Obras médicas de Pedro Hispano. Coimbra: Por
ordem da Universidade, 1973; LO= De Oculo des Petrus Hispanus. In: BERGER, A. M. Die
OphThalmologie (liber de oculo) des Petrus Hispanus. München:J. F Lehmann, 1899.
 
64
A retórica nos prólogos...

Independentemente das controvérsias em torno da atribuição de um


vasto conjunto de obras filosóficas, didáticas e médicas a um mesmo
autor,12 há certo consenso na atribuição dos citados textos médicos
ao papa João XXI (1276-1277).13 Há indícios de sua presença na cúria
pontifícia desde a época de Urbano IV (1261-1264), depois em
Gregório X (Tedaldo Visconti, 1º/09/1271 a 10/01/1276), em
Inocêncio V (Pierre de Tarentaise, 21/01 a 22/06/1276) e em
Adriano V (Ottobono Fieschi 11/07 a 18/08/1276), seu antecessor.
Em 1273, foi nomeado cardeal de Túsculo (Itália). Aliás, Paravicini
Bagliani14 destacou a cúria de Viterbo como um dos grandes centros
culturais voltados para o estudo das ciências da natureza, sendo que
40% dos familiares do papa tinham o título de magister. Um dos
prováveis fatores que o conduziram à cátedra pontifícia foi sua
formação acadêmica no Studium Generale de Paris, que era levada em
consideração na eleição dos papas no decorrer do século XIII. A
brevidade do pontificado de Pedro Hispano deveu-se à sua morte,
provocada pelo desabamento do teto de uma das alas em construção
do palácio pontifício de Viterbo.15
Outro autor e incentivador da tradução de obras científicas
árabes foi o rei de Leão, Castela e Galiza, Alfonso X (1252-1284), o
sábio, que em suas cortes criou um scriptorium16 ou oficina com
colaboradores eruditos judeus e mouros. Lá foi produzida a tradução
de textos árabes para a língua vernácula, o castelhano, do Lapidario

12
MEIRINHOS, J. F. Petrus Hispanus Portugalensis? Elementos para uma diferenciação de
autores. Revista Española de Filosofia Medieval, 3, p. 51-76, 1996; D`ORS, Angel O.P. Petrus
Hispanus Auctor Summularum. Vivarium, Leiden, XXXV, 1, p. 21-71, 1997; TUGWELL,
Simon 0. P. Petrus Hispanus: comments on some proposed identifications. Vivarium, XXXVII,
2, p.103-113, 1999.
13
MEIRINHOS, J. F. O papa João XXI e a ciência do seu tempo. In: MATOS, M. C. (ed.). A
Apologia do latim. Lisboa: Távola Redonda, 2005. p. 129-170.
14
PARAVICINI BAGLIANI, A. La cour des papes au XIIIe siècle.
15
LE POGAM, Y. De la Cite de Dieu au ‘Palais du Papa’. Rome: École Française de Rome,
1994, p. 77-94.
16
LA= Lapidario. Ed. crítica por Sagrario Rodriguez M. Montalvo. Madrid: Gredos, 1981.
MONTOYA MARTINEZ, J.; DOMINGUEZ RODRIGUEZ, A. (Coords.) El
scriptorium alfonsí: de los Libros de Astrología a las Cantigas de Santa Maria. Madrid: Ed.
Complutense, 1999.
 
65
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ou Libro de las piedras,17 em parte atribuído ao sábio muçulmano


Abolays. Trata-se de obra que conjuga astrologia/astronomia18 e
mineralogia e medicina, cuja tradução foi feita pelo judeu Yhuda
Mosca, o menor, que além de astrônomo era físico de Alfonso X.
Colaborou também nessa tradução o clérigo Garci Perez, também
“sabidor de astronomia”. Foi realizada igualmente a tradução para o
latim. Descrevem-se as pedras, os lugares onde se encontram e suas
virtudes originárias dos astros celestes. Dos 11 tratados originais
restam apenas quatro, o primeiro dos quais arrola 360 pedras
agrupadas em 12 capítulos correspondentes aos signos do zodíaco,
que se iniciam com o signo de Áries e encerram com o de Peixes. O
segundo tratado apresenta também o zodíaco como base de sua
estrutura, porém busca mapear a influência do sol e dos astros sobre
as virtudes ocultas de 36 pedras a partir das três fases do signo (cada
uma compreende 10 graus do zodíaco). O terceiro está organizado a
partir dos planetas e constelações de Saturno, Marte, Sol, Vênus,
Mercúrio e Lua. No último lapidário as pedras aparecem catalogadas
em ordem alfabética.19
O primeiro breve prólogo analisado pertence à obra petrínica
de medicina preventiva, Liber de conservanda sanitate (Livro da
conservação da saúde), em alguns manuscritos dedicados ao
imperador Frederico II (1212-1250), rei da Sicília, imperador do
Sacro Império Romano-Germânico e rei de Jerusalém.20 Constitui-
se em um regimento de saúde, manual precursor da moderna
medicina preventiva, voltado geralmente para os homens de nível
social elevado e para os leigos. Esse gênero de texto médico remonta
à medicina greco-romana, cuja tradição se manteve entre os textos
árabes, e a partir do século XIII conheceu um florescimento que
continuou até o século XV. Esta obra divide-se em três opúsculos

17
Os ditos dos físicos, cuja matéria está toda nesta obra, receba-os como se visse os originais. Pois
coligindo fielmente de todos os que pude encontrar, nos livros dos antigos físicos e mestres e modernos
experimentadores [...]. TP, p. 78.
18
FRIAÇA, A. a unidade do saber nos céus da astronomia medieval. In: MONGELLI, L. M.
(Coord.) Trivium & quadrivium. Cotia, SP: Ibis, 1999. p. 289- 329.
19
GARCIA AVILEZ, A. Alfonso X y la tradición de la magia astral. In: MONTOYA
MARTINEZ, Jesus; DOMINGUEZ RODRIGUEZ, Ana (Coords.). El scriptorium alfonsí: de los
Libros de Astrología a las Cantigas de Santa Maria. Madrid: Ed. Complutense, 1999. p. 83-103.
20
Temos sete manuscritos datados dos séculos XIII, XIV e XV, com edição crítica bilíngüe de
Maria Helena da Rocha Pereira, que afirmou serem poucas as variações entre os textos.

66
A retórica nos prólogos...

oriundos de tradições diversas. O primeiro, De divisione anni (As


divisões do ano), da tradição toledana, utiliza o conceito galênico de
compleição como elemento guia da higiene, ao conjugar dietas para
as quatro estações do ano; o segundo, De his conferunt et nocent
(Coisas que fazem bem e mal), texto da tradição árabe, apresenta um
rol de coisas que fazem mal ou bem às diversas partes do corpo
humano, como cérebro, olhos, ouvidos, dentes, pulmões, coração,
estômago, fígado, baço e mãos; e, por último, Qui vult custodire
sanitatem (Preservação da saúde), da tradição salernitana, que a partir
das seis coisas não naturais galênicas aconselha uma dieta alimentar
associada, entre outras coisas, a exercícios, banhos e sono. Foi
redigido antes de 1250, provavelmente no período em que o autor
atuou como mestre Na Faculdade de Medicina de Siena (Itália),
entre 1245 e 1250, porque esse gênero de texto foi muitas vezes
utilizado na escolástica médica.21
O segundo prólogo pertence ao Thesaurus pauperum,
dedicado ao papa Gregório X (1271-1276), e se trata de uma obra de
prática médica. O autor realizou uma compilação de receitas
compostas por elementos dos mundos animal, vegetal e mineral e
experimentadas por vários físicos, mestres e práticos, desde a
Antiguidade até o século XIII. Trata-se de um manual para
estudantes de medicina pobres e talvez outros práticos, boticários,
cirurgiões-barbeiros, sangradores, com ampla difusão manuscrita e
impressa até a Idade Moderna.22 O resultado é um gênero híbrido
que, ao mesmo tempo, apresenta características de uma summa
(enciclopédia), uma marca das obras do século XIII, assim como
aquelas de um texto de prática médica. Esse esforço de
sistematização tanto das doenças quanto das receitas evidencia o
papel da ciência universitária. A autenticidade do prólogo é
inquestionável, por figurar o mesmo texto em todos os manuscritos
completos remanescentes.

21
SOTRES, P. G. Les regimes de santé. In: GRMEK, M.; FANTINI, B. (eds.). Histoire de la
pensée médicale en Occident. Paris: Seuil.1995, p. 265.
22
Existem por volta de 80 edições impressas em diversas bibliotecas europeias, além das traduções
para as línguas vernáculas arcaicas - 9 para o português, 24 para o espanhol, 17 para o francês, 5
para o inglês e 13 para o italiano.

67
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

O terceiro prólogo em exame está na obra De Oculo, dividida


em 93 capítulos. Associa teoria e prática médica porque contém
informações sobre a anatomia dos olhos, a teoria sobre fisiologia da
visão vigente na época e a lista das doenças dos olhos, com as
respectivas receitas. Por dois séculos foi obra de referência em
oftalmologia, citada por médicos posteriores, tais como o cirurgião
Guy de Chauliac (1300-1367) e o mestre e homem de saber
valenciano Arnaldo de Vilanova (1225-1311).
Os prólogos dos quatro tratados do Lapidario mais os breves
prólogos no início de cada signo do Zodíaco do primeiro tratado são
encadeados entre si. O primeiro, mais extenso, aponta para o
conjunto da obra, e os outros sempre remetem ao anterior dando
sequência ao texto. Trata-se de textos em prosa literária que revelam
a intenção de Alfonso X em ensinar e transmitir os saberes
científicos, por isso a escolha da língua vernácula, e não o latim, a
língua científica. Sua concepção de ciência é de algo igualmente útil
e maravilhoso a que Deus lhe permitiu o acesso, por isso quer
transmiti-la à posteridade. Outra interpretação do conjunto de sua
obra cultural, em que se insere a produção científica, seria a
transmissão do saber como uma responsabilidade moral da realeza
castelhana do século XIII. Ser rei sábio era uma manifestação do
poder político. Nesta época, as universidades ajudaram a valorizar os
diferentes saberes, os mestres e doutores (intelectuais) e a cultura
livresca. O saber conferia poder a quem o detinha.

Prólogos de Pedro Hispano e Alfonso X, o sábio

Ambos os autores ibéricos receberam formação da retórica - o


primeiro, na Faculdade de Artes de Paris, o segundo, no scriptorium
por ele fundado. Todos os prólogos analisados carregam a marca

68
A retórica nos prólogos...

ciceroniana, que estabelece as características do exórdio (ou proêmio,


prólogo), uma das seis partes do discurso:23

O exórdio deve apresentar muito de moralidades e


gravidade, e conter tudo que for concernente à dignidade,
pra recomendar o orador ao ouvinte; e conter o mínimo de
brilho e de festividade e de ornamento, porque destes podem
nascer suspeitas de planeamento e de artificiosa diligencia,
que retira totalmente confiança ao discurso e autoridade ao
orador.24

Já Aristóteles afirma que os exórdios desempenham o mesmo


papel que os prólogos das peças teatrais e os preâmbulos dos poemas
épicos, pois apresentam a finalidade principal do assunto tratado.25
Em 1270, o mestre parisiense dominicano Romanus de
Roma, contemporâneo de Pedro Hispano e Alfonso X, definiu o
prólogo da maneira seguinte, em acordo com os preceitos
aristotélicos pela via ciceroniana, ao reafirmar as características do
exórdio:

É dever do mestre encabeçar um proêmio com tripla


finalidade: primeiro, atrair a benevolência dos ouvintes
(captatio benevolentiae), em seguida preparar sua
credulidade (credulitas), sua adesão e enfim atiçar sua
atenção.26

23
As outras partes são a narração, exposição dos fatos acontecidos ou por acontecer; a divisão, o
anúncio do que será falado e explicitação do que está de acordo e-ou das controvérsias; a
confirmação, apresentação firme dos argumentos, e refutação, destruição dos argumentos
contrários; a conclusão, término do discurso (RH, p. 55).
24
Exordium setentiarum et gravitatais plurimum debet habere et omnino omnia, quae pertinent ad
dignitatem, in se continere, propterea quod id optime faciendum est, quod oratorem auditori máxime
commendat; splendoris et festivitatis et concinnitudinis minimum, propterea quod ex his suspicio
quaedam apparationis atque artificiosae diligentiae nascitur, quae máxime orationi fidem, oratori
adimit auctoritatem.
25
RA, p.249.
26
GRABMANN, M. Romanus de Roma O. P. (f 1273) und der Prolog seines Sentenzen kommentars.
Ein Beitrag zur Geschichte der scholastischen prologi und principia. Munchen: 1956, p. 285.
 
69
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Com certeza, sua intenção era definir a forma ideal do texto


religioso da homilia, mas essa retórica interessava à escrita de
quaisquer outros prólogos. De uma maneira ou de outra, os autores
procuravam construir seus discursos de forma mais simples ou
erudita, ao mesmo tempo seguindo e inovando esse cânone. Assim,
o preâmbulo de dois textos médicos utiliza igualmente a estratégia
retórica antiga, acima citada, da captatio benevolentiae do leitor, por
meio da identificação do autor, de sua arte e da utilidade da obra,
como no De oculo e Líber de conservanda sanitate: “Eu, mestre Pedro
Hispano, professor das artes da medicina”.27

Considerando eu, Pedro Hispano, que os diversos


padecimentos mórbidos se originam no corpo humano por
negligência, encontrei e provei com razão verdadeira
algumas observações úteis e experimentadas para conservar
a saúde da vida humana [...].28

Nesse prólogo primeiro o autor se identifica como magister e


em seguida explica o gênero e a finalidade do texto, ou seja,
contribuir com observações para a conservação da saúde humana e a
prevenção dos males que afligem o corpo.
Uma das características da escrita medieval é a técnica da
compilatio, a seleção e a reunião de textos de autores diversos numa
obra (colligere), que significa uma prova da erudição do autor,29 além
do domínio do gênero de texto médico apropriado. Nas duas obras
em que exercita esse método, De oculo e Thesaurus pauperum, os
prólogos explicitam-no afirmando a fidelidade aos textos originais,
em que se prepara, portanto, a credulitas do leitor: “na busca da

27
LO, p. 2.
28
LCS, p. 3. Ego magister p. Yspanus artis medicine (LO, p. 1); Ego Petrus Yspanus, considerans
diuersas egritudinum passionis per negligentiam in corporibus homini generari, quedam utilia et
experta ad salutem humane uite sanitatis conseruandam inueni [...] (LCS, p. 2).
29
GUENÉE, B. Histoire et culture historique dans l´Occident médiéval. Paris: Aubier Montaigne,
1980, p. 211-213.
 
70
A retórica nos prólogos...

verdade, investiguei em muitos livros e reuni (collegi) razão (ratione)


e experiência (experientia) a pedido dos meus discípulos”.30
Ao descrever sua técnica da compilatio reafirma o método da
escolástica médica, que consistia na leitura e investigação em autores
antigos, filósofos e médicos - Aristóteles, Hipócrates, Galeno,
Dioscórides, - e medievais - Avicena, Rhazis e experimentadores,
para compor as duas coleções de receitas antigas e contemporâneas.
A primeira, para a cura dos males dos olhos, e a segunda, para todas
as doenças e situações de cuidado, unindo-se assim a teoria e a prática
médica.
No caso do prólogo mais longo e erudito do Thesaurus,
procura-se introduzir a obra ao cercar todas as informações
necessárias para seu uso adequado, além das sofisticadas estratégias
retóricas para seduzir o leitor. Desta vez, utiliza para captar a
benevolência do leitor a não identificação, como nos outros citados,
preferindo-se que o autor seja anônimo, aquele que se apresenta com
toda a modéstia perante a Santíssima Trindade, a verdadeira criadora
da natureza e da medicina:

Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade, que tudo


criou e cada coisa dotou de virtudes próprias, pela qual toda
a sabedoria foi dada aos sábios e a ciência aos cientistas,
empreendo uma obra superior às minhas forças, confiando
no auxílio da mesma, que através de nós executa todas as
nossas ações, como através de um instrumento.31

No excerto acima, Pedro Hispano separa os níveis de


conhecimento. A sabedoria dos sábios seria a dos textos das
autoridades (auctoritates) greco-romanas antigas e dos árabes, e a

30
LO, p. 2. “[...] Os ditos dos físicos, cuja matéria está toda nesta obra, receba-os como se visse os
originais. Pois coligindo fielmente de todos os que pude encontrar, nos livros dos antigos físicos e
mestres e modernos experimentadores [...]” (TP, p. 78); […] Dicta autem physicorum, quorum in
hoc opera material tota est ita accipiat ac si originalia uideret. Fideliter enim congregans in omnibus
que inueniri a me potuerunt, in libris antiquorum physicorum et magistrorum et modernorum
experimentatorum […] (TP, p. 79).
31
TP, p. 78. [...] Igitur Ihesu Christi summi médici gratia, qui sanat prout uult omnes infirmitates
nostras, quia ipse est caput fidelium, ab infirmitatibus capitis incipiamus, descendendo usque ad pedes,
et primo de infirmitatibus capilorum, qui aliquando auferuntur, aliquando corroduntur, aliquando in
colore alternantur” (TP, p. 81).

71
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ciência dos cientistas seria os saberes produzidos, em sua época, na


ambiência universitária, ou seja, nas faculdades de artes, direito
(canônico e civil), teologia e medicina. Todavia, ambos os saberes são
oriundos de Deus, o que reforça a concepção cristã da origem divina,
tanto da natureza quanto de todo conhecimento sobre a natureza, e
dessa forma evidencia sua formação clerical. A seguir, explica o título
da obra, as motivações edificantes, a natureza de receituário para
quase todas as enfermidades, cuja utilidade depende da ajuda de
Deus - o criador da própria medicina, articulando-se dessa maneira
razão e fé de modo a atrair a credulidade do leitor:

E quero que esta obra se chame Tesouro dos pobres,


consignando-a Àquele que se chama Pai dos pobres. Se se ler
com atenção, encontrar-se-ão nela remédios fáceis e eficazes
para todas as enfermidades, se o médico tiver por cooperador
Aquele que criou da terra a medicina.32

O próximo passo no prólogo consiste em aconselhar o leitor


para o uso adequado e racional dos remédios indicados, para o que
considera inicialmente o tipo de doença e a condição do paciente, a
sua compleição, para não correr o risco de levá-lo à morte. Quando
fala em natureza do doente refere-se aos quatro temperamentos da
teoria humoral hipocrática-galênica da Antiguidade: sanguíneo,
fleumático, colérico e melancólico, baseada no predomínio dos
quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bílis negra. Estes se
originam respectivamente no coração, cérebro, fígado e baço. Outra
noção central consiste na compleição (complexio) galênica, que
engloba a constituição física, o estado determinante da saúde e da
doença, que seria uma mistura das quatro qualidades primárias das
coisas: quente, fria, seca e úmida.
A seguir, outro ponto a ressaltar é sua preocupação com ética
médica, “nem seduzido pelo dinheiro ou pela fatuidade do amor”,33
para o uso adequado dos medicamentos voltado à cura, e não para
provocar a morte ou o aborto. Evidencia, dessa maneira, o papel

32
[...] Quod opus uolo Thesaurus Pauperum nominari, illi hoc opus assignans, qui Pater Pauperum
nominatur [...] (TP, p. 79).
33
ne seductus pretio aut amore fátuo (TP, p. 79).

72
A retórica nos prólogos...

social do médico universitário e a valorização cristã da vida. Apesar


desse alerta inicial, no decorrer da obra o físico/homem de saber
compila, com objetividade científica, todas as receitas contraceptivas
baseadas em ervas, animais e rituais devocionais mágicos, na parte
XLIV intitulada De impedimento conceptus (Impedimento da
concepção).34 A seguir, o contrário, ou seja, remédios para facilitar a
concepção no XLV- Ut mulier concipiat (Para a mulher conceber),35
pois a procriação era o principal papel social das mulheres.
Neste caso, Pedro Hispano, um magister universitário mais
preocupado com a teoria médica, ou seja, com a busca do
conhecimento da natureza do corpo humano e com a sistematização
do conhecimento acumulado, decidiu compor o Tesaurus, voltado
para a prática médica, o tratamento das enfermidades e aflições
humanas. A presença de elementos mágicos em algumas receitas não
implica sua crença, mas a tentativa de reunir todas as práticas de cura
disponíveis desde a Antiguidade até o século XIII.
Por último, a influência salernitana no hesaurus é sua
estruturação a partir de um esquema classificatório de todas as
doenças e situações de cuidado e as respectivas receitas conforme o
esquema do alto para o baixo corporal, da cabeça aos pés (ab capite
ad calcem), e entra direto nos problemas dos cabelos. Retoma
também a ideia de ele ser apenas o instrumento de Cristo, o grande
médico, o verdadeiro agente da cura, e acrescenta o princípio cristão
da hierarquia com a imagem de Cristo como a cabeça da Igreja, isto
é, da sociedade cristã:

Portanto, com a graça de Jesus Cristo, Supremo Médico, que


cura conforme lhe apraz todas as nossas enfermidades,
porque Ele mesmo é a cabeça dos fiéis, comecemos pelas
enfermidades da cabeça, descendo até os pés e
primeiramente pelas enfermidades dos cabelos, que algumas
vezes caem, outras vezes se corroem, outras mudam de cor.36

34
TP, p. 258-261.
35
TP, p. 262-270.
36
TP, p. 80. [...] Igitur Ihesu Christi summi médici gratia, qui sanat prout uult omnes infirmitates
nostras, quia ipse est caput fidelium, ab infirmitatibus capitis incipiamus, descendendo usque ad pedes,
et primo de infirmitatibus capilorum, qui aliquando auferuntur, aliquando corroduntur, aliquando in
colore alternantur (TP, p. 81).

73
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

No caso do prólogo do Líber de conservanda sanitate, cujo


trabalho de compilação não é de receitas, mas sim de tradições
diversas de formatos de regimentos de saúde, o autor enuncia sua
valorização da medicina preventiva ao afirmar: “Uma vez que é
melhor preservar a saúde do que lutar com a doença, deve tratar se
da dita saúde”.37 Mais adiante, busca justificar o papel social dos
físicos como guias na elaboração das propostas para a preservação e
manutenção da saúde. O corpo estava sempre vitimado por
processos de transformação interna. Esse continuum entre saúde e
doença impõe um cuidado com a prevenção e uma terapêutica
apoiada na dietética, compreendida como a gestão racional e
cotidiana do corpo. Isso aconteceria a partir da consideração das seis
coisas não naturais do galenismo: ar/ meio ambiente; exercício/
repouso; alimentação/bebidas; sono/despertar; inanição/saciedade;
emoções ou paixões, para a manutenção do corpo são, ou seja, o corpo
em equilíbrio e harmonia.
Em suma, a análise da escrita dos prólogos médicos atribuídos
ao físico Pedro Hispano revelou o uso das mesmas estratégias
retóricas de outros gêneros da prosa narrativa: captatio benevolentiae,
credulitas para atrair a atenção do leitor. Além disso, evidencia que a
técnica da compilatio e o recurso às autoridades antigas e medievais
eram igualmente adotados em outros tipos de textos. Outra
consideração refere-se ao prólogo como momento privilegiado da
propriedade literária do texto.
Caracterizadas as obras científicas, voltemos à ambiência
intelectual da época. A própria designação de físico para os médicos
medievais colocava-os como os especialistas da natureza e remetia ao
controle das interações entre os homens e o meio natural.
Pretendiam, entre outras metas, elaborar sistemas classificatórios em
que se relacionavam as categorias do alimento, do remédio e do
simbólico.38

37
LCS, p. 3.
38
POUCHELLE, Marie-Christine. Medicina. In: SCHMITT, Jean-Claude; LE GOFF,
Jacques. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru; São Paulo: Edusc; Imprensa Oficial do
Estado, 2002, p. 151-165.

74
A retórica nos prólogos...

Enquanto o prólogo do texto médico inicia-se com a


invocação da Santíssima Trindade, o prólogo do primeiro tratado do
Lapidario, o mais extenso dos quatro, remete primeiramente a
Aristóteles, considerando-o o filósofo mais completo na
interpretação da natureza, e só depois se refere a Deus, como a
primeira virtude da qual todas as outras se originam. Busca também
dessa forma conciliar o saber sobre a natureza produzido pelos
homens e o poder divino da criação do mundo.
É provável que a estrutura desse prólogo, mais extensa que a
do anterior, tenha recebido influência das tradições intelectuais
judaicas e orientais.39 De qualquer maneira, o projeto da obra e de
seus tradutores fica bem explícito. Apresenta o conjunto de tratados
do Lapidario, enfocando a filosofia natural aristotélica para explicar
a rede de relações nos reinos da natureza. Ao mesmo tempo justifica
a composição da obra ao inseri-la no conjunto de livros dos sábios
que desvendam o mundo da natureza: os corpos celestes
(astronomia/ astrologia), os animais (bestiários), as plantas
(herbários) e pedras e metais (lapidários). Invoca a Deus como
criador da natureza:

Aristóteles, que fue más cumplido que los otros filósofos [...]
mostro que todas las cosas del mundo están como trabadas y
reciben virtud unas de otras, las más viles de las más nobles,
y que esta virtud aparece em unas más manifiesta, asi como
em los animales y em las plantas, y en otras más escondida,
así como en las piedras y em los metales.40

Trata-se de uma cosmovisão que aproxima entre si coisas


diferentes por perceber pontos estruturais comuns entre elas e,
assim, possibilidades de interrelações conjunturais.41 Sob esse

39
SCHAFFER, Martha E. Los códices de las “Cantigas de Santa Maria: su problemática.
In: MONTOYA MARTINEZ, J.; DOMINGUEZ RODRIGUEZ, A. (Coords.) El
scriptorium alfonsí: de los Libros de Astrología a las Cantigas de Santa Maria. Madrid: Ed.
Complutense, 1999.
40
LA.
41
FRANCO Jr., Hilário. Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval. In: LEÃO,
Ângela Vaz; BITTENCOURT, Vanda O. (Orgs.) Anais do IV Encontro Internacional de Estudos
Medievais. 04 a 07/07/ 2001. Belo Horizonte: PUC/ Minas, 2003. p. 39-58.

75
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

pensamento analógico relacionavam-se as partes (animais, plantas,


pedras, metais) com o todo (o universo), no caso específico dessa
obra, as pedras com os astros celestes. Já no pensamento lógico
promove-se o encadeamento linear de causa e efeito. No Lapidario,
há uma busca de compreensão da natureza por intermédio de
relações comparativas e simultâneas entre o movimento dos corpos
celestes e as virtudes ocultas das pedras e metais. A seguir, inicia-se
uma narrativa histórica do gênero literário-científico lapidário e o
percurso imaginário do livro como um objeto precioso (relíquia) até
chegar às mãos de Alfonso X, no século XIII.
A matriz desse texto científico remonta a Aristóteles, na
realidade ao pseudo-Aristóteles, com a obra denominada Secretus
secretorum (VII ou VIII séc.), cujas 700 pedras são identificadas e
analisadas a partir de cor, tamanho, local e virtude própria. Depois
afirma que no Oriente esse tipo de saber sobre as pedras não era
suficiente, e passou-se a buscar o conhecimento das relações entre as
pedras e os movimentos dos corpos celestes, dos quais elas recebiam
suas virtudes ou poderes para o bem ou para o mal.
Quem primeiro entrou em contato com o livro foi um desses
sábios do mundo árabe, versado em astronomia, Abolays, de família
da Caldéia, que na Antiguidade era célebre pelos conhecimentos de
astrologia. Ao estudar os livros antigos descobriu um que descrevia
360 pedras segundo os graus dos signos no oitavo céu (o Zodíaco),
além da cor, do nome, da virtude e do local em que se encontrava; e
aí aponta a estrela e a figura (constelação) que está no grau daquele
signo, de onde ela recebe força e virtude. Traduziu, então, esse texto
do caldeu para o árabe e tornou-se um sábio da arte da astronomia e
da maneira de conhecer as pedras. Após sua morte, o livro se perdeu
por muito tempo em razão do desconhecimento da matéria por
aqueles que o detinham. Até que chegou às mãos do rei dom Alfonso
(citado com todos os seus títulos), quando ainda era infante em
Toledo, por intermédio de um judeu, que o escondia para que
ninguém dele tirasse proveito.
Aí aparece o infante, futuro rei sábio, encomendando a
tradução da obra do árabe para a língua vernácula castelhana, “para
que los hombres lo entendiesen mejor y se supi supiesen de el más

76
A retórica nos prólogos...

aprouechar” (p. 19).42 A intenção era aproximar a ciência árabe ou


latina de seus contemporâneos e facilitar o aproveitamento
intelectual de quantos a lessem. Assim, quando em toda a Europa a
língua da composição de textos científicos era o latim, como no caso
das obras médicas de Pedro Hispano, Alfonso inovou ao
encomendar traduções do árabe para o vernáculo castelhano. O
prólogo individualiza o nome do principal tradutor: o judeu físico e
astrônomo Yhuda Mosca, o menor, com a ajuda do clérigo Garci
Perez, também astrônomo. Data o término da obra no segundo ano
em que o rei D. Fernando conquistou Sevilha dos árabes, portanto,
em 1250.
Por último, o prólogo do primeiro tratado do Lapidario elogia
o livro: “es mui noble et mui preciado”43 e indica os três saberes
interrelacionados que podem se beneficiar com este Libro de las
piedras: a astronomia, a mineralogia e a medicina (física):

La primera, que sea sabidor de astronomia, por que sepa


connoscer las estrellas, em qual estado estan, et em qual
sazon uiene mayor vertut alas piedras dellas, segund la
uertud que reciben de Dios.44

Nesse trecho, além de reforçar a relação entre a posição dos


astros celestes e sua influência nas virtudes/poderes das pedras,
recorda o papel de Deus na criação da natureza, em reforço à postura
cristã ibérica do scriptorium afonsino.45
Quanto à mineralogia, enfatiza a investigação dos elementos
principais das pedras: cor, aparência, peso, consistência e local onde
se encontram. Nos vários tratados do Lapidario há descrições

42
CÁRDENAS, A. J. Alphonso´s scriptorium and chancery: role of the prologue in bonding the
Translation Studii to Translation potestatis. In: BURNS, Robert I (ed.). Emperor of culture:
Alfonso X of Castile, the learned and his thirteenth-century renaissance. Philadelphia: Univesity
of Pennsylvania Press, 1990. (Middle Ages Series). p. 90-108.
43
LA, p. 19.
44
LA, p. 19.
45
GARCIA AVILEZ, A. Alfonso X y la tradición de la magia astral. In: MONTOYA
MARTINEZ, J.; DOMINGUEZ RODRIGUEZ, A. (Coords.) El scriptorium alfonsí: de los
Libros de Astrología a las Cantigas de Santa Maria. p. 83-103.
 
77
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

detalhadas de todos esses elementos. Quanto à medicina, saber


muito valorizado na cultura árabe-muçulmana, o prólogo informa:

La tercera cosa es que sea sabidor da arte de física, que iaze


mucho del la encerrada em la uertud delas piedras, segund
em este libro se muestra. Et que sea de bom seso por que se
sepa ayudar delas cosaas que fazen pro, et se gua[r]de delas
que tienen danno.46

Amasuno47 cotejou o texto do Lapidario com a obra Matéria


Médica, de Dioscórides (médico militar), escrita originalmente em
grego no final do I século na parte oriental do Império Romano. Foi
muito copiada no Império bizantino, inclusive houve uma versão em
siríaco, depois traduzida pelos árabes. Concluiu que essa obra foi
uma das fontes do Lapidario no que se refere aos poderes das pedras,
tanto para a cura quanto para o dano.
O próximo texto introdutório do segundo tratado anônimo, o
Libro de las piedras segun las fazes de los signos, retoma a matéria
tratada no primeiro para apresentar de forma pormenorizada a
influência da passagem do sol pelas três fases dos 12 signos na virtude
das pedras. Estas recebem poderes dos raios que descem das figuras
das estrelas que mudam conforme as fases. Assim há três pedras,
uma para cada fase do signo, totalizando 36. Como é costumeiro, faz-
se referência ao poder divino de criação das estrelas, por meio de uma
citação bíblica do rei Davi, e ao astrônomo Ptolomeu. O breve
prólogo do terceiro tratado igualmente anônimo, Libro de las piedras
segun la conjuncion de las planetas, enuncia a ordem de exposição das
pedras a partir de Saturno e chega até a Lua, sem citações às
autoridades. O último breve prólogo do quarto tratado, Libro de las
piedras ordenadas por el ABC, é atribuído a Mahomar Aben Quich;
compõe-se a partir de livros dos sábios, e a ordenação das pedras, em
ordem alfabética árabe, foi depois traduzida para a latina.

46
LA, p. 19.
47
AMASUNO, Marcelino V. La materia médica de Dioscórides en el Lapidario de Alfonso
X. Literatura y ciência en la Castilla del sigolo XIII. Madrid: C.S.I.C., Centro de Estudios
Históricos, 1987.

78
A retórica nos prólogos...

Em suma, a investigação dos prólogos de dois textos


científicos do século XIII mostrou a concepção cristã da origem
divina da natureza e do cientista ou homem de saber como
instrumento que recebe de Deus a capacidade do conhecimento
sobre a natureza. Aristóteles, além da retórica, foi a chave das
autoridades antigas nesse desvendamento dos mistérios dos reinos
da natureza - as plantas, os minerais, os animais e o cosmos - em sua
obra de filosofia natural. Todavia, tudo leva em consideração o papel
de Deus na criação do mundo. Verifica-se assim a interrelação entre
religião cristã e investigação científica em todos os espaços de
produção desses textos científicos, seja os Studia Generalia de Paris e
Siena e cúria papal, no caso de Pedro Hispano, e o scriptorium de
Alfonso X, no caso do Lapidario.
Além disso, observa-se o imbricamento entre os saberes
científicos na composição dessas obras. No Thesaurus pauperum, de
Pedro Hispano, conjugam-se a medicina e a farmácia, e no Lapidario
de Alfonso X, a mineralogia, a astrologia e a medicina. Mais uma vez,
os intelectuais do século XIII tinham uma formação menos
especializada que nos tempos atuais.
Esses textos que antecedem a prosa literária inauguram uma
prosa científica que apresenta uma narrativa poética, sobretudo com
a utilização de metáforas quando, por exemplo, compara a aparência
das pedras com fenômenos da natureza. A narrativa torna-se
histórica quando busca retraçar a trajetória do livro, enquanto objeto
precioso, desde a Antiguidade até o século XIII. Ademais, os
prólogos configuram-se como propostas pedagógicas para a
utilização da obra científica, quando são escritos em língua
vernácula, tal como o Lapidario ibérico. Ou ainda, a produção
científica comandada pelo rei sábio pode ser mais um ponto na
consolidação de sua imagem régia. No caso do Thesaurus pauperum,
pode ter sido mais um ponto em direção à cátedra pontifícia.
Então, o que diferencia a escrita desses prólogos examinados
dos outros proêmios do século XIII? Em primeiro lugar, essa
diferença consiste na voz de um mestre universitário que apurou seus
métodos de estudo e de ensino na busca da articulação entre a teoria
e a prática médica (ratione e experientiae) e que recriou uma chave de
interpretação do mundo e da natureza. Segundo, em uma voz que

79
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

redefiniu os papéis sociais dos físicos na preservação e manutenção


da saúde, sobretudo no meio urbano, com a demanda da feitura de
regimentos de saúde. Por último, na voz de um escritor erudito com
formação no Studium Generale de Paris com pleno domínio do latim
e das técnicas de escrita de sua época e que encontrou na cúria
pontifícia espaço cultural propício para a composição das obras
médicas. A vasta difusão posterior desses textos com traduções em
línguas vernáculas aponta para o fato de que muitas vezes eles
adquirem vida própria, independente da atribuição, e que em virtude
do impacto se tornaram autoridades nos séculos posteriores. Foram
úteis no exercício da medicina, ou seja, nas práticas médicas, e na
busca contínua pelo alívio das aflições humanas nos séculos
seguintes.
À guisa de conclusão, os renascentistas se autoproclamaram
os articuladores do retorno da Antiguidade nos diversos campos do
conhecimento, contudo foram os escritores de textos no período
medieval que nunca deixaram de ler Aristóteles e sua Retórica,
mesmo que fosse pela via ciceroniana do livro De Inventio ou da
Retorica ad Herennium, que por séculos lhe foi atribuída. A prosa
científica petrínica e alfonsina, por intermédio dos prólogos,
constitui um exemplo significativo da permanência dos estudos
retóricos nos loci de produção do conhecimento.

80
 

Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo


Tridentino
(séculos XVI a XVIII)

Francisco José Silva Gomes

O
s Manuais de Confissão elaborados durante os Séculos
Tridentinos manifestam uma certa uniformidade que
reflete o projeto unanimista da Igreja e do Estado na
reestruturação da Cristandade nos séculos XVI a XVIII. O projeto
tentava impor ao cristão um modelo de cristianismo considerado
como o único autêntico, desqualificando parcialmente o modelo
herdado da Idade Média.1 Os Manuais permitem compreender uma
das dimensões deste projeto, a saber: a confissão auricular.
A Igreja, como instituição, só se torna relevante se se leva em
conta a sua articulação com as outras instituições da totalidade social.
Estamos nos referindo ao sistema de Cristandade. A Cristandade
“constantiniana”, herdada do século IV, era um sistema de poder e

1
GOMES, Francisco José Silva. Cristandade, Reforma tridentina e teologia moral, artigo inédito, p. 1.
 
81
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

legitimação constituído pelas relações da Igreja e do poder político


numa determinada sociedade.
A Cristandade Medieval foi uma Cristandade sacral. Num
sistema de unanimidade e de conformismo, todas as instituições
apresentavam um caráter sacral e oficialmente cristão. Os
fundamentos da ordem natural e social encontravam a sua
justificação na ordem divina, no sagrado. A religião sacralizava o
poder, as autoridades, a ordem vigente. A ideologia tinha então um
caráter eminentemente religioso.2
Na Cristandade Medieval desenvolveu-se um ideal
permanente de reforma. A reforma manifestava-se em duas
dimensões: A reforma na Igreja, que predominou durante o primeiro
milênio do cristianismo, lutava contra os pecados e as misérias dos
homens numa permanente conversão (conversatio) cristoforme; e a
reforma da Igreja, que buscava mudanças, sempre necessárias, nas
instituições eclesiais e eclesiásticas.
A partir dos séculos XI e XII, com a Reforma Gregoriana, a
dimensão da reforma da Igreja passou a predominar sobre a
dimensão da reforma na Igreja, tão-somente como condição prévia
para se chegar a esta. Esta configuração tornou-se paradigmática do
ideal de reforma na Igreja católica. Na reforma da Igreja realizou-se
o reforço do já tradicional monopólio clerical sobre o poder religioso
e sobre as instituições eclesiásticas num processo de clericalização; e
também o reforço do monopólio jurisdicional da Igreja Romana e do
Papado sobre as Igrejas locais num processo de romanização.3
A ruptura da Cristandade Medieval, com a reforma
protestante no século XVI, levou a Igreja a proceder à reestruturação
da identidade católica pela contraposição com as identidades da
Reforma. Quanto maior a confrontação – Contra-Reforma – mais a
identidade católica se firmou e ganhou clareza de contornos nítidos.
A reconstrução dessa identidade católica se realizou por via de uma
reforma na e da Igreja no âmbito do Concílio de Trento (1545-
1563).

2
GOMES, Francisco José Silva. A Igreja e o Poder: representações e discursos. In: RIBEIRO,
Maria Eurydice de Barros (org.). A vida na Idade Média. Brasília: Ed. UnB, 1997, p. 33-47.
3
GOMES, Francisco José Silva. A Igreja e o Poder: representações e discursos. In: RIBEIRO,
Maria Eurydice de Barros (org.). A vida na Idade Média, p. 48-51.

82
Os Manuais de Confissão...

Com a Reforma tridentina, a Igreja acentuou dois vetores de


sua ação pastoral: a criação de um novo imaginário social e o
enquadramento do clero e dos fiéis nesse novo imaginário. Nesta
tarefa, a Igreja dispôs de quatro forças principais: a do seu poder
institucional; a da exemplaridade dos santos tridentinos; o princípio
moderno da eficácia; e a pedagogia do medo e da culpabilização para
a qual os Manuais de Confissão foram um dos instrumentos.4
Consumada a ruptura da Cristandade e consolidada a
situação de “guerra fria” pelos tratados de Westfália (1648), as
Igrejas cristãs tentaram implantar seus projetos de reforma e de
“cristianização” das populações do Ocidente. Do lado das Igrejas da
Reforma, a convicção de haverem sido reformadas “segundo a
palavra de Deus” as dispensou de se criticarem a si mesmas. Do lado
da Igreja católica, o desejo de reforma se embotou na época pós-
tridentina (nos séculos XVII e XVIII). E a Igreja se enrijeceu na sua
atitude de Contra-Reforma, de apologética. A obra de Trento passou
a ser valorizada em sua positividade como um paradigma. A
hierarquia passou a olhar a Reforma tridentina como um modelo
atemporal de reforma, encarando a identidade católica tridentina
numa atitude fundamentalista.5
Assim sendo, as reformas intraeclesiais, que se iam fazendo
necessárias eram marginalizadas e se expressavam subterraneamente
em movimentos como o misticismo, o jansenismo, o episcopalismo,
a Aufklärung católica. No século XVIII, muitos desses movimentos
se converteram em movimentos laicistas e anticlericais em franca
crítica às instituições da Igreja. E a Reforma tridentina perdia muito
da sua irradiação com o avanço do processo de secularização. Com
efeito, os Estados Modernos foram se secularizando e levaram a
Cristandade tridentina a uma crise irreversível com a Ilustração, o
capitalismo, as revoluções liberais e burguesas.6
Nos séculos tridentinos, o ideal de uma Cristandade
“constantiniana” foi preservado pela Igreja católica e pelos Estados

4
DELUMEAU, Jean. Naissance et affirmation de la Réforme. Paris: PUF, 1975, p. 225-278.
5
CONZEMIUS, Viktor. Movimentos de Reforma Eclesiástica. In: Enciclopédia Teológica.
Barcelona: Herder, 1985. t. V, p. 818-831.
6
GOMES, Francisco José Silva. Le projet de Néo-chrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro de
1869 à 1915. Tolouse: Université de Tolouse-le-Mirail, 1991. t. II, p. 430-432.

83
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ditos “católicos”. Mas tiveram que o redefinir não mais à escala de


uma Cristandade única e una, mas à escala de cada Estado. Surgiu
assim o Estado confessional respaldado no novo princípio do direito
internacional: cuius regio illius est religio. A teoria medieval dos dois
poderes não colocava mais em relação dois poderes universais, mas a
Igreja e vários Estados Modernos.
Os Estados confessionais e absolutistas asseguravam à Igreja
o seu monopólio como aparelho de hegemonia. Assim sendo, a Igreja
continuava a assegurar aos Estados a sacralização do sistema. Já os
Estados desejavam transformar a Igreja em seus países em aparelho
de Estado.7 Daí surgiram conflitos. Mas estes tomaram uma nova
configuração na Cristandade tridentina. As disputas ocorriam não
em torno do aparelho religioso, que continuava a ser exclusividade
da Igreja, mas em torno do aparelho eclesiástico. Os Estados
adotaram políticas de instrumentalização do aparelho eclesiástico
como aparelho de Estado. Giacomo Martina chamou tais políticas de
jurisdição confessional do Estado.
Para harmonizar, contudo, esses interesses antagônicos, a
Igreja Romana teve de encontrar compromissos com os Estados
confessionais e absolutistas para conseguir equilibrar, no interior de
cada Estado “católico”, os interesses deste com os seus interesses de
Sé Apostólica e de Estado soberano na Itália. Esses compromissos
foram realizados por via concordatária ou por outras vias, como no
caso dos Padroados ibéricos.8
As soluções para esses conflitos também se respaldaram em
novidades formuladas no campo conceitual. Do lado do Estado, pela
acentuação da teoria da soberania e pela jurisdição confessional. Do
lado da Igreja, pela acentuação na Eclesiologia da concepção
societária de Igreja. A partir do século XIV, a emancipação do Estado
e a laicização criaram as condições de possibilidade para que a Igreja
se auto-compreendesse como uma societas genere et iure perfecta, isto
é, como um domínio à parte, na sua ordem independente.

7
VALIN, Pierre. Histoire politique des chrétiens. Paris: Nouvelle Cité, 1988, p. 81-91
8
MARTINA, Giacomo. La Chiesa nell’età dell’assolutismo, del liberalismo, del totalitarismo: a
Lutero ai nostri giorni. Lezioni. Brescia: Morcelliana, 1980. t. II, p. 7-14; 29-42.

84
Os Manuais de Confissão...

No século XVI, este modelo de Igreja como societas ganhou


terreno frente ao modelo de Igreja como potestas, sem contudo o
suprimir totalmente. Foi esta noção de societas que possibilitou à
Igreja enfrentar os Estados soberanos e a sua jurisdição confessional.
A Igreja se considerava uma societas perfecta, porque era completa
como instituição e porque não estava, nem poderia estar,
subordinada a nenhuma outra instituição. Esta concepção societária
da Igreja possibilitou a aceitação do Estado confessional e uma
distinção clara entre o aparelho religioso e o aparelho eclesiástico. A
Cristandade tridentina só pôde manter a sua unidade ideal e utópica
porque aceitou a dualidade entre Igreja e Estado, tidos como duas
“sociedades perfeitas”, como duas ordens distintas: a sobrenatural e
a natural.9
Na Cristandade tridentina difundiu-se largamente um
regime penitencial surgido na Idade Média. Ao longo de sua história,
a Igreja conheceu três regimes penitenciais. Nos seis primeiros
séculos, predominou a penitência pública ou canônica – por meio da
qual as comunidades cristãs reconciliavam uma única vez os seus
penitentes de pecados graves.
Nos séculos V e VI, um novo tipo de penitência começou a ser
praticado nos mosteiros celtas e anglo saxônicos das Ilhas Britânicas,
difundindo-se progressivamente no continente a partir do século
VII. Esta penitência, chamada privada ou “tarifada”, colocou em
evidência a figura do diretor espiritual que devia interrogar
privadamente o penitente, avaliar seus pecados confrontando-os
com os pecados elencados nos Penitenciais – verdadeiras listas de
pecados acompanhados das respectivas sanções ou “tarifas”. E, por
fim, ele devia impor ao penitente a penitência adequada.
No século XII, teólogos como Santo Anselmo, Abelardo ou
Hugo de São Victor começaram a chamar a atenção para os aspectos
subjetivos da Penitência, acentuando a questão da intenção e do
arrependimento, ressaltando assim a importância da confissão
auricular. Com a difusão desta última, reforçada pela
obrigatoriedade da confissão anual para todos os fiéis de ambos os

9
DULLES, A. A Igreja e seus modelos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 33-47; CONGAR, Yves.
L’Église de Saint Augustin à l’époque moderne. Paris: Cerf, 1970, p. 369-412.

85
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

sexos determinada pelo IV Concílio de Latrão (1215), firmou-se um


terceiro regime penitencial na Igreja ocidental. Nele, ocorreu a
progressiva substituição dos Penitenciais pelas Sumas de
Confessores e, posteriormente, pelos Manuais de Confissão a partir
dos séculos XIV e XV.10
Este novo regime penitencial correspondeu a uma virada na
Espiritualidade Medieval. Deu-se então o desenvolvimento de uma
espiritualidade intimista e pessoal, da mística, como a Devotio
Moderna, facilitada pela difusão da confissão auricular e por um
discurso escatológico interiorizante e individualizante que resultou
da ruptura entre a escatologia individual e a escatologia coletiva,
criando-se assim as condições de possibilidade para a elaboração do
tratado dos Novíssimos da época tridentina. A escatologia que
perpassava este tratado estava voltada para as relações do homem
com o Além. As questões relevantes eram formuladas a partir da
consciência da fraqueza do homem alimentada pelo medo e a
culpabilização; revelavam a preocupação com o destino eterno da
alma, com a salvação; configuravam a tentativa de assegurar, já aqui
na terra, com obras meritórias, a vida futura. Foram também estas as
questões que estiveram na base de todo o esforço de “cristianização”
da pastoral tridentina.11
A pastoral tridentina reforçou também o processo de
clericalização na Igreja, tornando os sacerdotes verdadeiros
mediadores entre Deus e os homens, já que só eles podiam conceder
a absolvição, fonte direta da graça divina, da salvação; bem simbólico
cada vez mais procurado. A vinculação da absolvição à confissão
prévia dos pecados foi um excelente instrumento pastoral de controle
clerical sobre a vida dos fiéis e uma forma de evangelização na
Cristandade, tornando-se assim um “método singularmente eficaz

10
DELUMEAU, Jean. Le péché et la peur. Paris: Fayard, 1983, p. 30; 218-220. RAMOS-
REGIDOR, José. Teologia do sacramento da penitência. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 161-221;
LE GOFF, Jacques. Pecado. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1987. V. 12, p. 266-286.
11
LIBÂNIO, João; BINGEMER, Maria. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 22-31; 57-64.
 
86
Os Manuais de Confissão...

de aculturação religiosa” nos Tempos Modernos no âmbito da


Reforma Tridentina.12
Trento valorizou sobremaneira os sacramentos como canais
indispensáveis para a transmissão da graça divina. Neste contexto, a
Penitência assumiu papel relevante, constituindo, depois do
batismo, a segunda tábua de salvação oferecida ao homem pecador.13
A ênfase no valor da Penitência a tornou um veículo privilegiado
para a mudança interior do homem e dos costumes. Na pastoral do
sacramento, insistiu-se muito mais na contrição do que no ato de
“fazer penitência” (satisfação), como era o caso na Idade Média.
Trento definiu claramente quatro momentos no sacramento da
Penitência: a contrição, a confissão, a absolvição, a satisfação,
realçando, contudo, a contrição, tornando-a inclusive condição para
a absolvição.14
A difusão tridentina da confissão auricular enfatizou a
contrição e o exame de consciência como prévios à confissão. Foi
neste contexto que os Manuais de Confissão se difundiram e
multiplicaram, tornando-se instrumentos primordiais para orientar
confessores e penitentes na prática do sacramento. Esta ênfase na
confissão representou um dos caminhos privilegiados pela Reforma
católica para superar o que julgava ser uma cristianização um tanto
superficial herdada da Idade Média.
Os Manuais tridentinos, dos séculos XVI a XVIII, ao
condenar certas práticas e ao valorizar outras, propiciavam a
homogeneização das práticas sociais. E ao enfatizar os aspectos
subjetivos do exame de consciência e da contrição, contribuíram para
a emergência da subjetividade e do individualismo, características
dos Tempos Modernos.
Guias práticos, muito mais do que textos teóricos, os Manuais
de Confissão tinham como objetivo precípuo orientar não só o
diálogo entre confessor e penitente, mas também o exame de
consciência do penitente, preparando-o para uma confissão
completa e verdadeira. Completa, porque nenhum pecado deveria

12
DELUMEAU, Jean. Le péché et la peur, p. 218-221.
13
DELUMEAU, Jean. Le catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1971, p. 48-51.
14
BOSSY, John. The Counter-Reformation and the people of Catholic Europe. Past & Present,
Oxford, n. 47, p. 51-70, maio 1970, p. 63-64.

87
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ser calado; verdadeira, porque a alma deveria estar sinceramente


arrependida. Ao confessor cabia completar o relato espontâneo dos
pecados com um interrogatório que permitisse a imposição
subsequente da penitência adequada.
Um sistema de classificação dos pecados em dois eixos foi-se
fixando paulatinamente: o dos Dez Mandamentos (Decálogo),
completado com os Mandamentos da Igreja, e o dos Sete Pecados
Capitais. Este sistema foi sendo elaborado com determinadas
orientações extraídas dos tratados de Teologia Moral, ramo da
teologia que se autonomizava na época no âmbito da Escolástica
tridentina ou Barroca, Escolástica redefinida no século XVI, também
chamada de Segunda Escolástica.15 Os Manuais, inspirados nestas
orientações, reuniam uma série de preceitos que deveriam orientar o
quotidiano dos fiéis de modo a promover um novo modelo de vida
cristão.
A Confissão, como elemento fundamental da Reforma
tridentina, pode ser compulsada em alguns corpos documentais, a
saber: listas de desobriga e relatórios de missionários nos informam
sobre o nível de aceitação e difusão do sacramento; a legislação
eclesiástica, como, por exemplo, as Constituições sinodais, apresenta
uma regulamentação para a sua administração; textos teológicos e
catequéticos realçam a sua importância litúrgica e doutrinária;
sermões, pastorais, monitórios, editais procuram difundir a sua
prática e os cuidados que devem cercá-la; a documentação da
Inquisição ressalta os crimes de solicitação e sigilismo; e, finalmente,
os Manuais de Confissão permitem estudar o discurso disciplinador
veiculado no confessionário e, através dele, as práticas sociais que se
pretendiam difundir ou coibir no processo de construção de um novo
padrão de catolicismo e de reestruturação da Cristandade.16
Guias práticos, roteiros da alma, os Manuais de Confissão,
além dos atos e das intenções dos penitentes, preocupavam-se
igualmente com situações variadas, isto é, com as circunstâncias que
interferiam, atenuando ou agravando, nas faltas e nas penitências

15
GOMES, Francisco José Silva. Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo tridentino
(séculos XVI-XVIII). Mimeo, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, nov. 1997, p. 3-4.
16
GOMES, Francisco José Silva. Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo tridentino
(séculos XVI-XVIII). Mimeo, p. 4-10.

88
Os Manuais de Confissão...

prescritas. “Atos, intenções e circunstâncias. Do cruzamento destes


três elementos nascerá uma casuística exaustiva, verdadeiro discurso
obsessivo que tem a pretensão de abranger tudo e todos. Discurso de
exclusão que nomeia a virtude e o vício [...] sem deixar espaço para o
diferente”.17
Na Casuística dos Manuais de Confissão manifestaram-se as
controvérsias com relação aos diferentes modos como o homem
podia formar a consciência reta na hora de tomar uma decisão moral.
Para resolver os casos da consciência com soluções opostas, foram
formulados diversos sistemas morais. O dominicano salmanticense,
Bartolomeu de Medina, formulou no século XVI o princípio do
probabilismo, a saber: É lícito seguir uma opinião provável, mesmo
quando a opinião contrária seja igualmente provável ou até mais
provável. O princípio foi-se ampliando cada vez mais, degenerando,
por vezes, no que se chamou laxismo. Este considerava que se podia
seguir uma opinião mesmo que com um mínimo de probabilidade.
A reação não demorou a aparecer com o tuciorismo. Para este, havia
sempre a obrigação de seguir a opinião mais segura e/ou favorável à
lei. Daí o surgimento de uma moral rigorista como a dos jansenistas.
Estes se opunham aos jesuítas probabilistas, apodados por eles de
laxistas.
Como as controvérsias entre laxistas e tucioristas persistiram,
os dominicanos passaram a propor o princípio do probabiliorismo: em
caso de dúvida, só se pode adotar a opinião que exime do
cumprimento da lei quando este for mais provável do que a opinião
que afirma a obrigação de cumprir a lei. No século XVIII, às
polêmicas entre jesuítas e jansenistas, temos que acrescentar as
disputas entre dominicanos (probabilioristas) e jesuítas
(probabilistas). O começo de um apaziguamento entre esses quatro
sistemas morais em conflito deu-se com a obra do redentorista
Afonso Maria de Ligório (1696-1787) e seu eqüiprobabilismo: “Uma
lei só pode ser considerada verdadeiramente duvidosa quando as

17
LIMA, Lana Lage da Gama. Aprisionando o desejo: confissão e sexualidade. In: VAINFAS,
Ronaldo. História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 79.
 
89
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

opiniões a favor e contra ela contam com um grau de probabilidade


sensivelmente igual”.18
A moral manualística cria uma tradição à qual podemos
chamar de moral do catolicismo tridentino. Os seus conteúdos eram
ensinados nos seminários, nos catecismos, nos púlpitos, na prática
dos sacramentos, nos exames de consciência, nos retiros espirituais,
nas missões paroquiais, nas missões de evangelização.19
Entre os séculos XIV e XVIII, operou-se um divórcio entre a
fé e a moral no discurso teológico. Deu-se, outrossim, uma virada na
reflexão cristã sobre a ética. Até então, a ética era entendida como
resposta à questão da felicidade. Todas as escolas admitiam tomar a
felicidade como fim da ética (eudemonismo). A partir do século XIV,
a questão da felicidade foi menos considerada e a ética passou a se
concentrar cada vez mais nas obrigações impostas pela lei em nome
da vontade divina. O campo da ética ficou mais restrito às normas,
aos imperativos. Nasciam assim os sistemas éticos da Modernidade:
as éticas do dever que, até o século XVIII, eram sancionadas pela
religião cristã. A secularização gerou também, a partir de então, as
éticas laicistas e burguesas como a ética de Kant (1724-1804).20
Os Manuais de Confissão centraram-se na casuística. Esta
não é só um movimento de cima para baixo com a lei se
multiplicando em regras que procuram dar conta de todos os casos,
mas é também um movimento de baixo para cima, em que as regras
respondem a questões pontuais colocadas pelos próprios penitentes.
Ao contrário dos textos dogmáticos e canônicos, os Manuais de
Confissão eram guias práticos, fruto da experiência pessoal de
confessores envolvidos com casos reais, vividos por seus penitentes.
Estes não eram somente passivos diante de uma linguagem de
submissão; colocavam também questões, abrindo brechas para
novas regras. Para dar conta da trama social, os Manuais
introduziram a variável “circunstâncias”. Assim sendo, por debaixo
da linguagem formalista da casuística dos Manuais, deparamo-nos

18
RICÓN ORDUÑA, R; MORA BARTRES, G.; LÓPEZ AZPITARTE, E. Práxis Cristã:
Moral Fundamental. São Paulo: Paulinas, 1983. t. I, p. 83-84.
19
VIDAL, Marciano. Moral de atitudes 1: Moral Fundamental. Aparecida: Ed. Santuário, 1986,
t. I, p. 111-114.
20
PINCKAERS, Servais-Théodore. La morale catholique. Paris: Cerf, 1991, p. 71-72.

90
Os Manuais de Confissão...

com dramas pessoais. Mediante o discurso da ordem, podemos


captar nele o mundo que a linguagem formal classifica como
desordem, ou seja, o mundo do desejo.
Anotações dos próprios autores da manualística indicam
como a experiência dos confessores influiu na redação dos Manuais
que procuravam fazer a ponte entre os conflitos vividos e os conflitos
normatizados pelos canonistas. A função do pároco ajudou à
personalização dos conflitos. Por isso, a Igreja tridentina
recomendava insistentemente que o pároco residisse na paróquia
própria, convivendo com seus paroquianos para os conhecer e ouvir
melhor.21
A fala canônica chegava aos fiéis através dos confessores, nem
sempre os seus melhores intérpretes; muitos deles tinham,
efetivamente, um nível cultural baixo. Levavam, por vezes, uma vida
escandalosa, imiscuídos na vida secular, mal se distinguindo de
alguns de seus paroquianos. As denúncias sobre o crime de
solicitação, feitas ao Tribunal da Inquisição demonstram que o
diálogo entre confessores e penitentes não se resumia ao texto
canônico, mas a confissão era usada para a eventual sujeição do
penitente aos caprichos de um confessor.
Os Manuais de Confissão eram textos de mediação entre a
doutrina e a prática da confissão. As questões suscitadas pelas
vivências pessoais dos fiéis, levadas aos teólogos e aos canonistas,
eram incorporadas mediante as técnicas da casuística. O quotidiano
punha à prova o texto canônico com novos problemas que ele, com
sua obsessão de onipotência, tenta sempre padronizar. Trata-se de
um movimento de submissão e resistência. Embora os Manuais
variem quanto ao grau de sistematização das questões colocadas ao
penitente, é possível aglutinar essas questões, marcadas às vezes por
uma extrema atomização analítica, em grandes temas em torno dos
quais se dá a desmultiplicação do fenômeno discursivo.22
Para encerrar, gostaria de citar um projeto de pesquisa que
venho desenvolvendo há mais de uma década. Já compulsei Manuais

21
GOMES, Francisco José Silva. O Manual de Confissão na Colônia. IX Encontro de história
medieval, n. 9, 2014, Franca. Anais do IX Encontro de História Medieval. Franca, 2014, p. 6-7.
22
GOMES, Francisco José Silva. O Manual de Confissão na Colônia. IX Encontro de história
medieval, n. 9, 2014, Franca. Anais do IX Encontro de História Medieval, p. 7-8.

91
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

de Confissão na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na de Lisboa


e na Bibliothèque Nationale de Paris. Os Manuais compulsados
cobrem os séculos tridentinos (os séculos XVI a XVIII). Não
manifestam rupturas significativas entre si, isto é, não foi possível
verificar grandes mudanças no seu conteúdo, e até na sua forma.
Como, na época, havia constantes controvérsias doutrinárias, certas
variações se devem à maior afinidade de um autor com determinada
corrente cristã de pensamento; e outras variações se devem aos
objetivos mais imediatos do Manual em questão ou aos diferentes
graus de erudição doutrinária do seu autor.23

23
GOMES, Francisco José Silva. Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo tridentino
(séculos XVI-XVIII). Mimeo, p. 13.

92
 

Medicina da mulher em Portugal:


discursos e profissionais do parto. Rumos da
historiografia

Maria de Fátima Reis

C
ruzando diversas especialidades da História, o tema em
foco situa-se numa problemática cuja observação tem
merecido mais o olhar do clínico e do enfermeiro com
interesse histórico, do que do historiador. Assim acontece em
Portugal, seja no despontar da investigação no século XX,
designadamente com Augusto da Silva Carvalho,1 seja na retomada

1
Augusto da Silva Carvalho (1861-1957) foi médico, professor, administrador hospitalar e cultor
da história. Licenciado em Medicina pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, produziu muitos
estudos na área da Epidemiologia, da Saúde Pública e da História da Medicina. Foi presidente da
Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa e professor de História da Medicina na Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa. Em 2 de junho de 1921 foi admitido como Académico na
Academia das Ciências de Lisboa, passando a membro efectivo em 1928. Foi vasta a sua
colaboração em periódicos, como A Medicina Contemporânea e o Diário de Lisboa, designadamente
o publicado em 1933.
 
 
93
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

e expansão da pesquisa por outros médicos, mesmo que em histórias


gerais da medicina, 2 onde desponta uma das melhores e mais
recentes expressões em Marinha Carneiro, com formação na área
da enfermagem e das ciências da educação.3 Trabalhos que fornecem
perspectivas diacrónicas muito úteis, se bem que valha a pena
perceber o alcance de alguns desses entendimentos com estudos de
caso e compreender os seus ecos no Brasil colonial.
Num tempo em que a difusão do saber é célere e em que se
multiplicam as análises na área da História da Assistência,
revestindo estas diversas linhas de concretização, pode-se afirmar
que já se conta com alguns balanços historiográficos de vulto em
relação a muitas dessas vertentes. Embora seja de reconhecer que há
muito trabalho a fazer para uma visão integrada dos estudos
desenvolvidos sobre a realidade do reino e a do Brasil colonial. Tal é
o caso da matéria que trouxe para debate, em que as novas
abordagens da História da Assistência e da História da Medicina têm
mostrado quer a recorrência de certas temáticas em interpretações e
revelação de fontes, quer a emergência de assuntos menos
considerados pela historiografia.
Tendências que, tendo em vista os estudos centrados nos
recursos assistenciais – os quais passam por uma atenção mais
direccionada para as estruturas formais do que para os mecanismos
informais – e os trabalhos de história do género, permitem dizer que

2
Recordo Maximiano de Lemos (1860-1923) que foi médico, docente da cadeira de História da
Medicina da Universidade do Porto e redactor dos Arquivos de História da Medicina Portuguesa,
da Gazeta dos Hospitais do Porto e da Gazeta Médica do Porto. Foi membro da Sociedade de
Medicina Cirúrgica do Porto, a que presidiu, e da Academia das Ciências de Lisboa. Por iniciativa
de Luís de Pina, que lhe sucedeu na cátedra de História da Medicina, o Museu de História da
Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, fundado em 1933, tem o seu
nome. Vide uma nota biográfica em: Museu de História da Medicina. Maximiano Lemos. Porto:
Faculdade de Medicina – Universidade do Porto. Disponível:
<http://museumaximianolemos.med.up.pt/index.php?src=page13.html>. Consultado em: 20
jul. 2016. E refiro-me ainda a: FERREIRA DE MIRA, M. História da Medicina Portuguesa.
Lisboa: Edição da Empresa Nacional de Publicidade, 1947.
3
CARNEIRO, Marinha. Ajudar a Nascer. Parteiras, Saberes Obstétricos e Modelos de Formação
(Século XV-1974). Porto: Editora da Universidade do Porto, 2008.
 
94
Medicina da mulher em Portugal

se está perante uma escrita consolidada nesse território da História.4


Isto sem olvidar as atenções concedidas aos discursos teóricos,5 ao
ensino da prática médica,6 à legislação central e regulamentar dos
estabelecimentos e às biografias de agentes da medicina. Insisto,
pois, que bem menos revelado será o assunto relativo à História da
Medicina da Mulher.
Tema que perpassa, como disse, diversas especialidades da
História – da medicina à mulher, à economia, à demografia, ao
quotidiano, à vida privada. Os testemunhos deixam entrever, no
campo da medicina da mulher, uma prática essencialmente
confinada ao sexo feminino até ao que se tem entendido como a
entrada do médico na assistência ao parto, ou seja, já no século
XVIII. Quer isto também dizer que até então, por um lado, o ensino
médico dirigido ao sexo masculino abrangia, geralmente, reduzida
matéria relativa às doenças femininas e, por outro lado, que era às
mulheres que, pelo recato exigido, competia, por entreajuda,
acompanhar as vicissitudes de transformação e males do seu corpo.
O que se percebe, porquanto as mulheres tiveram preferência
assistencial por parte de instituições de caridade. Basta lembrar as
Misericórdias e os Recolhimentos e a acção desenvolvida a pobres,
viúvas, entrevadas, órfãs, donzelas, dotadas, que tem ocupado
recentemente o trabalho historiográfico em Portugal e no Brasil.
Menos se conhece, sem dúvida, a assistência de cuidados médicos na
área da maternidade e da medicina da mulher.7 Ao poder que é

4
Vale, por todos, o balanço e elenco bibliográfico de Maria Antónia Lopes: LOPES, Maria
Antónia. Protecção Social em Portugal na Idade Moderna. Guia de Estudo e Investigação.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.
5
Exemplifico este caminho com uma obra que responde bem ao sentido transatlântico de discussão
e já de referência: ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo. O saber médico luso-
brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011.
6
Útil a visão de conjunto fornecida por: MARTINS E SILVA, J. Anotações sobre a história do
ensino da Medicina em Lisboa, desde a criação da Universidade Portuguesa até 1911. Revista da
Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, s. III, 7, 5, p. 237-249 / 7, 6, p. 305-314, 2002.
7
Registem-se alguns trajectos analíticos para Portugal, para a época moderna, como o de BRAGA,
Isabel M. R. Mendes Drumond. Nascer nos Cárceres do Santo Ofício. In: Assistência, Saúde
Pública e Prática Médica em Portugal. Séculos XV-XIX. Lisboa: Universitária Editora, 2001, p.
61-74 e BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond.Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício.
Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015. E para o Brasil, para um tempo mais tardio, tem-se uma linha
profícua no estudo de MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do Feminino: a medicina da mulher
 
95
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

reconhecido à mulher na reprodução, concretamente no que respeita


à sucessão dinástica, não há o correlato entendimento histórico do
estado da gravidez e do parto, que tem sido considerado como
dizendo respeito estritamente à mulher. Isto no campo da actuação
prática, pois, no campo teórico, os discursos constroem-se no
masculino e destinam-se, antes de mais, a cirurgiões.8
De facto, a assistência do médico ao parto e o
desenvolvimento científico e instrumental verificado nos séculos
XVIII e XIX projectam a tocologia e até o próprio papel da parteira,
até então demasiado confinada a uma sabedoria empírico-popular;
transição que tem ocupado mais recentemente a minha observação.9

nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004; e uma perspectiva analítica de longa
duração em BRENES, Anayansi Correa. Bruxas, Comadres ou Parteiras. A Obscura História das
Mulheres e a Ciência. Belo Horizonte: Coopmed-Pelicano Edições, 2005; BRENES, Anayansi
Correa. Parteiras. Escola de Mulheres. Belo Horizonte: Coopmed Editora, 2009; BRENES,
Anayansi Correa. História da Parturição no Brasil, Século XIX. Cadernos de Saúde Pública, Rio
de Janeiro, 7, 2, p. 135-149, abril-junho de 1991. Ter ainda em conta BARRETO, Maria Renilda
Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde –Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 901-925, out.-dez. 2008; e mais recentemente, BASTOS, Cristiana;
BARRETO, Renilda (orgs.). A Circulação do Conhecimento: Medicina, Redes e Impérios. Lisboa:
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2011.
8
Tal é o percurso nacional que vai de Amato Lusitano, a Rodrigo de Castro e aos autores e
tradutores setecentistas de manuais de obstetrícia, destinados à ilustração de cirurgiões e de
parteiras, como Domingos de Lima e Melo, que traduziu do francês, em 1725, Luz das comadres
ou parteiras: breve tratado de como se deve acudir aos partos perigosos e Manuel José Afonso e José
Francisco de Melo, dois irmãos cirurgiões que publicaram em 1772, Novo método de partejar,
recopilado dos mais famigerados e sábios autores, recopilação de diversas obras que circulavam no
tempo, umas francesas, outras espanholas, até às renovações discursivas oitocentistas, como a de
Jacinto da Costa, que publicou em 1810, Compêndio da arte de partos para uso dos praticantes de
cirurgia, e parteiras e em 1815, Tratado completo da cirurgia obstetrícia, ou ciência da arte de partos
e o de Joaquim da Rocha Mazarém que escreveu o Anuário Clínico da Arte Obstétrica (1825-26) e
a Compilação de doutrinas obstétricas (1833). Uma passagem pela obra de Luís Miguel Bernardo é
expressiva da realidade evidenciada sobre o reduzido número de mulheres que se dedicavam à
ciência em Portugal, até ao século XIX, fundamentando o autor o seu entendimento no adágio
popular: “Mula que faz him/E mulher que falla latim/Raramente há bom fim”. BERNARDO,
Luís Miguel. Cultura Científica em Portugal. Uma Perspectiva Histórica. Porto: U. Porto
editorial, 2013, p. 322, nota.
9
Registo aqui últimas vias, como: REIS, Maria de Fátima. Alfredo da Costa: o Homem e a
Instituição na História da Assistência à Maternidade. In: III Curso de Verão. Quadros da História
de Lisboa. A Freguesia das Avenidas Novas. Lisboa: Academia Portuguesa da História; Centro
de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Grupo de Investigação
Historiografia e Cultura Política, 30 Jun.- 1, 3 e 4 de jul. de 2014; REIS, Maria de Fátima. Rodrigo
de Castro: razão e experiência no «médico perfeito». In: Seminário Os Judeus e a Medicina: tempo
e memória. Organização: Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” e Ordem dos
 
96
Medicina da mulher em Portugal

Mas, é precisamente no tempo que antecede as inovações


setecentistas e oitocentistas, com a entrada dos médicos-parteiros
nesta prática e a formação feminina na arte obstétrica, que me vou
deter neste estudo. Ainda que, como reconhecia Maximiano de
Lemos, em 1899, se no século XVIII a obstetrícia “se achava já
constituída definitivamente como sciencia […], entre nós era
relegada para as matronas ignorantes, e nenhuns documentos nos
restam da instrucção que recebiam”.10 Até porque os próprios
autores da tratadística da primeira metade de Setecentos, como
Francisco da Fonseca Henriques,11 e mesmo posteriores à reforma da
Universidade de Coimbra, em 1772, até à criação da Real Escola de
Cirurgia de Lisboa e da Régia Escola de Cirurgia do Porto, em 1825,
à excepção de José António do Couto, que estudou obstetrícia em
Copenhaga e Edimburgo, os nossos cirurgiões não seriam muito
versados na prática da arte dos partos,12 a que estava adstrito o saber
sobre o corpo feminino.
Incluídas, é certo, entre os profissionais que “intervinham no
tratamento dos doentes”, a par de “cirurgiões mata-sanos ou
inchacorvos, barbeiros sangradores, curandeiros idiotas, algebristas,
boticários, dentistas”, nas palavras de Ribeiro Sanches,13 as parteiras
distinguiam-se das “curiosas”, mulheres experientes que
acompanhavam familiares e vizinhas nos partos. Tal distinção

Médicos. Coord. Científica de Maria de Fátima Reis em colaboração com a Dr.ª Maria do Sameiro
Barroso. Lisboa: Ordem dos Médicos e Faculdade de Letras de Lisboa, 9 out. 2014 / 13 nov. de
2014; REIS, Maria de Fátima. Tradição e Inovação na prática de partejar: história das
maternidades de Lisboa. In: I Seminário “Políticas Sociais em perspectiva: novas questões, métodos
inovadores, resultados emergentes”. Évora: Universidade de Évora, 10 jul. 2015.
10
Vide LEMOS, Maximiano de. Historia da Medicina em Portugal. Doutrinas e Instituições.
Lisboa: Manoel Gomes, Editor, 1899. v. II, p. 147.
11
De origem judaica e com articulação ao norte da Europa, mais conhecido por Mirandela, por
ter nascido nessa terra de Trás-os-Montes, publicou Medicina lusitana: socorro delphico aos
clamores da natureza humana para total profligação de seus males, Amsterdam, Miguel Diaz,
1710. Vide a nota biográfica de Diogo Barbosa Machadoe Inocêncio Francisco da Silva.
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Coimbra: Atlântida Editora, 1966. t. II,
p. 148. SILVA, Inocêncio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Na
Imprensa Nacional, 1859. t. II, pp. 377-378.
12
Vide LEMOS, Maximiano de. Historia da Medicina em Portugal, p. 319-324.
13
Apud VASCONCELOS, José Manuel. Antecedentes da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A
caminho da fusão da Medicina com a Cirurgia. Etapas da afirmação institucional de uma profissão.
História. Revista da FLUP. História, Porto, s. IV, v. 4, 2014, p. 241-269, em especial, p. 249.
 
97
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

advém da própria regulamentação da época. Com efeito, as parteiras


tinham que ser examinadas perante o cirurgião-mor para poder
exercer o seu ofício, conforme alvará de 3 de março de 1565,
passando ainda a ser sujeitas à aprovação da “sua vida e costumes”
pela câmara local, por determinação legislativa de 6 de outubro desse
ano.14 Se o requisito do conhecimento expressa subordinação, mas
que, por não indicar as qualidades exigidas, faz supor a
fundamentação do saber nas capacidades práticas já manifestadas, a
conduta requerida sugere modelos de comportamento
disciplinadores emergentes do Concílio de Trento,15 no que respeita
à moral no quadro familiar.16
É no Regimento das Parteiras, inserido no Livro dos
Regimentos dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa, de 1572, que
se localizam as exigências e funções da parteira que não “poderá usar
do offiçio sem ser examinada pelo fisico da cidade, o qual achando
que he para poder usar do dito offiçio lhe daraa huã certidão, per elle
assinada, para em camara ser confirmada, e lhe darem juramento
para fazer verdade; do qual exame e certidão pagaraa ao dito fisico
çincoenta rs”.17 Estabelecida estava a penalidade para a que usasse “o
dito offiçio sem a dita examinação e juramento, do tronco pagaraa
mil rs, a metade para as obras da cidade, e a outra para quem a
acusar.18 Da sua responsabilidade faziam parte averiguações tanto da
esfera religiosa, como médica. Em relação aos princípios doutrinais,
as preocupações dirigiam-se para a matéria confessional, em plena
repercussão das directivas tridentinas, ordenando-se que “tanto que
chegar a molher que estiuer para parir, saberaa della se estaa
confessada, e não o estando a amoestara que o faça; e a parteira que

14
Vide FERREIRA DE MIRA, M. História da Medicina Portuguesa, p. 88.
15
Para uma leitura renovada do catolicismo moderno em Portugal, vide PALOMO, Federico. A
Contra-Reforma em Portugal. 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
16
Acompanhe-se esta problemática em: ENES, Maria Fernanda. Reforma Tridentina e Religião
Vivida (Os Açores na Época Moderna). Ponta Delgada: Signo, 1991 e TRINDADE, Ana Cristina
Machado. A Moral e o Pecado Público no Arquipélago da Madeira, na segunda metade do século
XVIII. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade da Madeira. Funchal: 1998, exemplar
policopiado.
17
Vide OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa:
Typographia Universal, 1885. t. II, p. 78, nota.
18
Vide OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa, p. 78.
 
98
Medicina da mulher em Portugal

esteuer cõ molher que não for confessada, pagaraa a sobre dita


pena”.19 No que respeita aos assuntos clínicos, “a parteira seraa
obrigada a tomar meudamente cõta do tempo que a molher estaa
prenhe, par ver se he tempo de poder parir; e antes do tempo a não
faraa parir pelo perigo que a molher corre em a fazer parir mais cedo.
E fazendo o contro pagaraa dous mil rs, a metade para a cidade e a
outra para quem a acusar”.20 Além desta verificação prévia, os
cuidados iam também para limitar o ofício da parteira à sua
sabedoria, advertindo-se que nenhuma “parteira se entremetteraa
em caso em que tiuer duuida, mas diraa ao prinçipal da casa que
mande chamar hum medico ou cirurgião para conselho, e fazendo o
contro do tronco pagaraa dous mil rs pela sobre dita maneira”.21
Admitindo-se assim a necessária complementaridade do
ofício da parteira por outros profissionais hierarquicamente mais
habilitados para enfrentar casos difíceis, a dependência do exercício
de diversos praticantes da arte de curar, em que se situam as
parteiras, de licença passada pelo cirurgião-mor, prossegue
regulamentada no Regimento deste profissional de saúde, de 1631, a
par de cirurgiões, sangradores, dentistas e algebristas, nestes termos:

A pena dos que se acharem usando de qualquer ofício de


cirurgia, sem licença, ou carta, serão dez mil réis somente,
como está determinado no regimento do físico-mor, e pela
terceira vez serão condenados em um ano de degredo fora da
Vila e Termo. E a pena dos que sangrarem, sem serem
examinados, e aprovados, serão dez cruzados somente. A
pena das parteiras, e pessoas que concertão braços e pernas,
e dão suadouros, e que tiram dentes, e curam doudos, sem
licença, serão dois mil réis. O dito Cirurgião-Mor, com dois
cirurgiões, quaes lhes parecer, havendo-os de S.M., os
escolherá, e com eles examinará todos os que houverem de
usar o oficio de cirurgia, e não os admitirá ao exame se não
souberem latim, e terem praticado no Hospital da terra
donde viverem; e não o havendo nela, provarem por

19
Vide OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa, p. 78.
20
Vide OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa, p. 78-
79, nota.
21
Vide OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa, p. 78.

99
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

instrumento, como praticaram quatro anos com o cirurgião,


com quem aprenderam; e as cartas que passar aos que forem
examinados, declararão os nomes dos cirurgiões, com quem
os houver examinado; com declaração que nenhum dos
cirurgiões, com quem o examinado houver aprendido, será
adjunto do exame, e levará o cirurgião-mor dois cruzados, e
cada um dos adjuntos um cruzado; e esta propina se lhes
pagará assim dos aprovados, como dos reprovados. E os
cirurgiões aprovados pagarão das suas cartas da chancelaria
um marco de prata. O dito cirurgião-mor examinará os
sangradores, depois de serem ensinados por seus mestres, e
provarem que depois disso sangraram, e fizeram os mais
oficias diante de seus mestres, ou em algum lugar, ou
Hospital, por tempo de dois anos. Assim examinará as
parteiras, sendo presentes duas, quais lhe parecer; e da
mesma maneira as pessoas que concertam braços, e que
tiram dentes, e os mais que pertencem ao seu ofício; e do tal
examinado ou seja aprovado, ou não, levará seiscentos reis, e
cada um dos adjuntos trezentos reis. E aos tais examinandos
passará o cirurgião-mor suas cartas, sem irem à chancelaria;
levará pelas tais licenças, três cruzados.22

Tem-se então estabelecida a formalização da obtenção de


licença para o exercício de parteira, que impunha prova perante o
cirurgião-mor e duas outras praticantes, não havendo necessidade
das respectivas cartas passarem pela chancelaria régia. De que se
inferem alguns entendimentos: antes de mais, a existência de
vigilância, provavelmente pública, se se tiver em conta o anterior
apelo à denúncia, consignado no regimento de 1572; a
hierarquização dos agentes de saúde através das penalidades
definidas para os que exercitassem de ofício sem licença, em que a
proporcionalidade do valor aponta para uma correlata simetria nos
possíveis danos físicos daí resultantes e do próprio estatuto social do
cargo; outro dado, este com implicação para a escrita da história, tem

22
Regimento do antigo Cirurgião-mor do reino. In: Gazeta Médica do Porto, Porto, n. 244, 1850, p. 409.
 
100
Medicina da mulher em Portugal

a ver com a faculdade concedida ao cirurgião-mor de atribuição das


cartas de exame sem validação pelos serviços de chancelaria régia.23
Quero assim dizer que, ficando esses documentos em posse
das proprietárias do ofício, só se tem conhecimento de muitas destas
profissionais mediante os livros de registo dos municípios e, creio,
quando os cirurgiões assim entendiam fazer o respectivo assento.24 O
que pode supor uma prática de menor valia, se bem que se esteja
perante uma valorização do ofício, cuja exigência de certificação,
marcadamente expressiva do espaço urbano, levará com o tempo a
desejar expandir ao mundo rural. Isto, no contexto das medidas de
fomento económico que localizam o problema nacional na elevada
mortalidade, designadamente materna e neonatal, tanto
denunciando a ausência de parteiras habilitadas, como culpando as
que exercem sem o devido saber e a obrigatória atestação.25 Embora,
neste domínio, se deva reforçar que a habilitação da parteira passava
por uma verificação da sua competência prática, adquirida numa
aprendizagem com outras profissionais mais velhas que
testemunhavam a capacidade das candidatas, e seguramente
permeável a estratégias de conivências e subornos. Assim pode
transparecer do que estava determinado no Regimento dos

23
O que dificulta um conhecimento sólido das praticantes em exercício, como se pode ter, por
exemplo, para os boticários. Vide BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. A Saúde Pública e
os seus Agentes em Portugal: o Caso dos Boticários (1521-1557). In: Assistência, Saúde Pública e
Prática Médica em Portugal. Séculos XV-XIX. Lisboa: Universitária Editora, 2001, p. 41-59.
24
Num estudo que fiz para Santarém para uma análise de vinte anos, apenas localizei dois registos
de “cartas de examinação” do século XVII, nos livros de registo da câmara, para, diz-se, usar do
“officio de comadre a que comummente chamão parteira”. Vide REIS, Maria de Fátima. Os
Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710). Prefácio de Joaquim
Veríssimo Serrão. Lisboa: Edições Cosmos, 2001, p. 41.
25
Esta realidade está bem documentada e devidamente discutida por CARNEIRO, Marinha
Fernandes. A Parteira no contexto das Artes de Curar (Séculos XV-XVIII). População e Sociedade,
Porto, n. 4, p. 123-144, 1998, invocando o autor as medidas preconizadas por D. Luís Ferrari de
Mordau, Intendente Geral da Agricultura, no tempo de Pombal, que, no Despertador da
Agricultura de Portugal, apela à existência de parteiras “examinadas nos campos, que não há, e
pelas não haver; ou não prestarem, morrem neste acto muitas mulheres, e muitas crianças, pois
assim como ha Medicos pagos, deve haver parteiras pagas, com o maior fundamento de que das
mãos dos Medicos, vai se da vida para a morte, que não tem remedio, e das mãos das parteiras vem
o Homem do nada para a vida, que se facilita com a boa assistência”. Neste estudo encontra-se um
entendimento pertinente da parteira examinada como uma realidade urbana, na linha do
verificado para outros espaços como França, tal como é dito por GÉLIS, Jacques. La sage-femme
ou le médecin. Une nouvelle conception de vie. Paris: Fayard, 1988, p. 23.
 
101
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Quadrilheiros, de 1570, publicado entre as Ordenações Manuelinas e


as Ordenações Filipinas, em que se faz referência a movedeiras,
mulheres “que se tem infamadas de fazer mover outras com
beberragens, ou por outra via” e que estariam na lista de possíveis
criminosos.26 Tópico incorporado nas Ordenações Filipinas, em que
se incluem os casos de mulheres grávidas de que “se suspeite mal do
parto, não dando delle conta”,27 a que acrescem as conhecidas
situações de cumplicidades da parteira no abandono de crianças.28
Importa ainda referir um aspecto que ressalta do confronto
entre o Regimento das Parteiras de 1572, em que a parteira tem de
ser examinada pelo físico da cidade, e o Regimento do Cirurgião-mor
de 1631, em que compete ao cirurgião-mor examinar as parteiras.
Como tem sido apontado pelos historiadores da medicina, o cargo de
cirurgião-mor é mais tardio que o de físico, este com formação
universitária, ficando sob jurisdição do cirurgião-mor, este prático e
de “menor ilustração”, a certificação das artes de curar de ofícios para
os quais bastava a confirmação feita por outros profissionais.29
Com um exercício que não se restringia ao parto, mas à
prestação de cuidados de saúde femininos e infantis, e até ao
tratamento de “úlceras, chagas, boubas e apostemas”, exercido por
“unguentos, suadouros e benzeduras”,30 de entre as funções
atribuídas às parteiras está a do baptismo em situação de risco,
preocupação da moral tridentina, e que as Constituições Sinodais
incluem nas suas directivas, deste modo: “às parteiras, e bem assim
a qualquer outra molher, que se achar presente aos partos, que

26
Vide Collecção cronológica de várias provisões e regimentos de El-Rey D. Sebastião. Coimbra: Real
Imprensa da Universidade, 1819, p. 22. Vide o entendimento de Isabel dos Guimarães Sá sobre o
“não dar conta” que poderá significar tanto a “falta de participação às autoridades”, como “não
dar parte à comunidade da gravidez e do parto”, em GUIMARÃES SÁ, Isabel dos. A Circulação
de Crianças na Europa do Sul: o Caso dos Expostos do Porto no Século XVIII. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian; Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995, p. 80-82.
27
Ordenações Filipinas. Livro I, título LXXIII, § 4.
28
Para o entendimento deste fenómeno, vide REIS, Maria de Fátima. Os Expostos em Santarém.
A Acção Social da Misericórdia (1691-1710), por exemplo, p. 50.
29
Vide SILVA CARVALHO, Augusto. História da Medicina Portuguesa. Lisboa: separata de
Portugal. Exposição Portuguesa em Sevilha, 1929, p. 8-9.
30
Vide REIS, Maria de Fátima. Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-
1710), p. 42.
 
102
Medicina da mulher em Portugal

conhecendo serem perigosos, de maneira que possão morrer as


crianças antes de acabarem de nascer, as baptizem por aspersão de
agua em qualquer parte que aparecer de fóra, e que nas molheres que
falecerem de parto, em que pòde haver certeza da criança ficar viva
dentro no ventre, fação que por autoridade de justiça, seja aberto de
modo que não corra perigo a criança: e achando-a viva, seja
baptizada”.31 Actividade que justifica a denominação já referida de
“comadre”, por muitas das parteiras baptizarem as crianças em
perigo de vida e as levarem à igreja para o baptismo.32
Acreditando, pois, que antes de se conhecer regulamentação
para o ofício de parteira, cuja actividade abrangia o que se entende
por medicina da mulher, não estariam as praticantes sujeitas a
exame, sendo habitual a aprendizagem transmitida, nomeadamente
no seio familiar, melhor se entenderá que das 25 indicadas para
Lisboa, em 1551,33 se passará para o dobro na segunda metade do
século,34 não só por segura aplicação da legislação, mas também por
certo anterior sub-registo.
Verdade é que, merece que se prossiga no conhecimento desta
realidade, quer ao nível da história local com a exploração das fontes
municipais, quer ao nível dos discursos teóricos para percepção dos
trajectos do saber até se chegar às transformações contemporâneas.

31
Constituições Synodaes do Arcebispado de Lisboa […]. Lisboa: Na Officina de Filippe de Sousa
Villela, 1737, p. 23.
32
O “baptismo de precaução”, recomendado pelo Concílio Tridentino, deveria ser complementado
pelo pároco na igreja. Partindo destes casos, indicativos de nascimentos de risco, ligados a problemas
intra-uterinos, consegui estimar, para Santarém, para fins do século XVII e princípios do século
XVIII, uma média de 3,5 a 4% de crianças baptizadas em casa “por necessidade” e “risco de vida”.
Vide REIS, Maria de Fátima. Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710),
p. 141.
33
OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de. Lisboa m 1551. Sumário […]. Lisboa: Livros Horizonte,
1987, p. 99.
34
Vide SILVA CARVALHO, Augusto da. Subsídios para a História das Parteiras Portuguesas.
A Medicina Contemporânea, Lisboa, ano XLIX, n. 29, 19 jul. 1931, p. 256.

103
 

A Adoração dos Magos no Livro de Horas de Dom


Manuel I

Cintia Maria Falkenbach Rosa

Figura 1 - Livro de Horas de D. Manuel. Moedas do final do século XV a 1538


Iluminura do Livro das Horas de D. Manuel. Oficina Real de Lisboa - atribuído (em parte) a
Antônio de Holanda (c. 1517 – 1538). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.

 
105
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

D
om Manuel I, cognominado “O Venturoso”, teve seu
reino considerado a fase mais gloriosa de Portugal.
Assumiu a coroa em 1495, e durante seu reinado foram
consolidadas as Grandes Navegações Portuguesas que tornaram
Portugal uma nação rica com a Descoberta do caminho marítimo
para as Índias e consequente estabelecimento de colônias e comércio
de especiarias na Ásia e na África. Dom Manuel foi também o
patrocinador da Descoberta do Brasil por Cabral. Biografias de Dom
Manuel I não hão de faltar na historiografia portuguesa, inclusive
Damião de Góis, humanista português e historiador, escreveu a
crônica oficial do rei D. Manuel I, completada em 1567 por
encomenda do Cardeal Dom Henrique.
Entre as realizações arquitetônicas de Dom Manuel estão a
construção da Torre de Belém, de onde partiu Cabral com sua
esquadra até chegar às costas do Brasil, e o Mosteiro dos Jerônimos,
duas grandes obras da arquitetura portuguesa cujo estilo foi
denominado “Manuelino”, em homenagem ao soberano português.
Este estilo procurava evocar o movimento das ondas do mar. Dom
Manuel I também nos legou um Livro de Horas, um pergaminho
iluminado. Um Livro de Horas é um livro de veneração criado por
devotos no final da Idade Média. Em geral, continha o calendário das
festas e dos santos, as Horas da Virgem, as Horas da Cruz, as Horas
do Espírito Santo e o Ofício dos mortos (Liturgia das Horas), as
orações comuns e os salmos penitenciais. Costumeiramente eram
ricamente ilustrados com iluminuras.
O livro de Horas de D. Manuel levou 34 anos para ser
completado, e quem o fez foi D. João III, seu filho e sucessor no
trono. Por isso o livro também é conhecido como o livro de Horas de
D. João III. Nosso objeto de estudo é um de seus fólios que está
classificado na ficha de inventário do Matriznet português como
Pergaminho 14/87v. ilum. Este verso do fólio 87 representa uma
cena da Natividade do Cristo, a da Adoração dos Magos; o
pergaminho encontra-se hoje no Museu Nacional de Arte Antiga.
Segundo consta, o livro foi iniciado no ano de 1517 e traz em seu
interior a informação de que sua execução teria sido encerrada no ano
de 1551. Atribuído a Antônio de Holanda, iluminador ativo em

106
A Adoração dos Magos...

Portugal no século XVI, o verso do fólio 87 do livro de D. Manuel I,


incluído nas Horas da Virgem, mostra-nos uma representação da
cena da Adoração dos Magos (figura 2).
No centro da imagem onde se
encontram Maria, o menino Jesus e
José, acontece a cena da Adoração. Os
três Reis Magos estão ajoelhados
prestando sua homenagem ao Messias.
Embora normalmente nas
representações da cena apenas o rei
Melchior, o ancião, esteja ajoelhado,
nesta todos os três reis magos o estão.
Ainda que apresente diferenças para as
demais cenas da Adoração pintadas no
período, nada que se relacione a esta
pintura do livro de D. Manuel deve nos
surpreender. Nela encontramos os
mesmos elementos que aparecem em
Figura 2 – Detalhe da
outras Adorações do período e que
cena da Adoração dos ainda seguem as mesmas orientações
Magos no livro de das representações medievais segundo
iluminuras de D.
Manuel I mandava a tradição para a
representações cristãs.
Maria e José ocupam o centro da
cena, e o Menino Jesus encontra-se em
repouso no colo de Maria. Os personagens estão vestidos com roupas
nas cores básicas – amarelo, vermelho, azul e verde –, permeadas pelo
branco, o que torna a cena clara e envolvida em grande quantidade
de luz.
Do lado esquerdo de quem olha para José, ao fundo, brilha o
ouro dos presentes de dois dos reis magos ajoelhados. O terceiro rei,
o ancião, carrega seu cálice ou custódia na mão. O presente de
Melchior, o rei ancião, é o ouro. Sua simbologia o interliga à luz,
símbolo do Divino.
Os medievais também associaram os três reis magos e suas
idades à representação dos Continentes conhecidos de então: o Rei
Mago branco e mais jovem deles, Gaspar, representante do

107
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

continente europeu; o Rei Mago negro, o maduro Baltazar,


representante do continente africano; e finalmente o Rei Mago senil,
Melchior, representante do continente asiático.
Curiosamente, o que nos surpreende é que esta cena, embora
ocupe o centro da imagem, não é o ponto de foco para o olhar do
observador, ao contrário, não fosse a construção classicista em ruínas
ao fundo da família sagrada, a cena passaria quase despercebida na
imagem como um todo. O Renascimento cultural do século XVI está
dando seus primeiros passos, e a valorização de elementos que
retomam os padrões clássicos greco-romanos1 está em voga. As
imponentes colunas à esquerda da imagem e seus capitéis não
deixam dúvida. Atrás destas colunas vemos um frontão de tal forma
iluminado em seu lado direito que o excesso de luz não nos permite
saber mais detalhadamente a condição material desta construção - se
está em ruínas ou em bom estado de conservação.
Um olhar mais acurado nos mostra que a Estrela de Belém
não foi esquecida. Ela pode ser parcialmente vista por alguns dos
seus raios que cruzam o espaço aéreo no sentido vertical entre a
família sagrada e o frontão da construção arquitetônica. Neste
frontão, mais colunas greco-romanas podem ser observadas. Elas
estão pintadas em um tom de azul transparente causado pela adição
de água ao pigmento azul que cobre estas partes da construção. O
portal em forma de arco é sustentado por duas dessas colunas, um
pouco menores que as outras, que podem ser vistas ao fundo da cena.
Elas fazem um jogo de cor com o azul da moldura que percorre toda
a imagem sobre a qual as moedas estão colocadas. Estes dois azuis,
por hierarquia de valor entre o claro e o escuro, deixam a atenção solta
e o olhar escapar para o amarelo do ouro das moedas, que não pode
competir em brilho com o ocre das sombras no portal da construção
às portas de Belém. Esse ocre é de mesma potência que o de uma das
torres de Belém, colocada à esquerda e ao fundo do observador da
cena. Esta torre que parece uma vigia é parte das muralhas que
provavelmente escondem a cidade de Belém por trás delas, onde se
deu a Natividade do Cristo.

1
BAXANDALL, Michel. O Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália da
Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

108
A Adoração dos Magos...

Figura 3: Detalhe do boi e do


burro na Natividade no Livro de
Horas de Dom Manuel I

Mais dois elementos aproximam esta representação das


outras que conhecemos executadas no século XV: os animais
tradicionalmente presentes na cena, como o boi e o burro2 (figura 3),
e a menção à caravana que acompanha os Reis Magos.
O boi e o burro são animais de carga e tração. Eles detêm em
si significados pertinentes a sua utilidade na vida cotidiana e são
animais aos quais se faz menção nos escritos bíblicos. Na Bíblia eles
evocam um conteúdo simbólico invariável, e suas virtudes são
claramente exaltadas. Estas virtudes são consideradas qualidades
superiores. Em Habacuque (3:2), profeta do Antigo Testamento,
está escrito: “em meio a dois animais te manifestarás”; em Isaías (1:3)
é dito: “o boi conhece o seu proprietário e o burro a manjedoura do
seu Senhor; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não
entende”; estes dois animais, o boi e o burro estão quase sempre
presentes nas representações da Natividade nos séculos XIV e XV.
O burro, ou jumento, era tido como tolo e cabeçudo, embora
também fizesse parte de sua lista de qualidades a fama de ser útil e
bondoso. O boi é tratado como um animal cujo símbolo o identifica
com as virtudes da bondade, da tranquilidade e da força pacífica. No
século XIII, em 1223, São Francisco de Assis teria montado o
primeiro presépio, segundo consta, em argila, em que teria colocado
pela primeira vez os dois animais vivos. Quanto à caravana que
acompanha os reis, embora esteja no último plano da imagem quase
sem destaque, é possível perceber uma quantidade grande de
animais, entre os quais podemos identificar camelos e elefantes. Eles

2
VERMES, Geza. Natividade. Rio de Janeiro: Record, 2007.

109
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

se dirigem para o fundo da cena na direção dos portões de Belém


Efrata, onde se instala uma desordem eminente causada pela grande
quantidade de animais e pessoas que neste espaço se aglomeram.
Mais um animal doméstico está representado nesta cena, e
não por acaso. É o cachorro, identificado como “um rafeiro”, neste
momento, o objeto de nossa análise. Este cachorro que se encontra
também no primeiro plano da cena entre os dois guardas e o africano
é o cão denominado rafeiro do Alentejo, ou “mastim português”
(figura 3); à esquerda na figura 3, temos o cão da iluminura do livro
de Dom Manuel I. À direita temos uma imagem de um cão rafeiro
português da atualidade. Após uma pequena consulta sobre as raças
de cães portuguesas e suas origens foi possível encontrar um motivo
que nos explica a importância dada a este personagem para que fosse
colocado em posição tão relevante dentro da composição, no centro
da imagem em frente à Natividade. Portugal Medieval teve suas
fronteiras movediças em razão das lutas pelo domínio da região, por
isso a criação de ovinos, gado nômade, foi uma opção mais bem
adaptada ao contexto do que a agricultura sedentária.

Figura 4: à esquerda: cão denominado de rafeiro no site Matriznet na iluminura da Adoração dos
Magos de 1517 do pergaminho de Dom Manuel I. À direita, cão rafeiro do Alentejo da
atualidade.

Esta opção fez com que os pastores portugueses já no século


XIII necessitassem preocupar-se com a criação de cães de guarda
para este propósito. Foi assim que o cão guardador de gado
reproduziu-se em Portugal, ajudado pelo contexto econômico de
então. Flandres importava grande quantidade de lã das famosas

110
A Adoração dos Magos...

ovelhas merinas3 portuguesas, e o “rafeiro” demonstrou grande


aptidão para o papel de cão de guarda. É um cão “molosso”;4 este é o
grupo ao qual pertence o rafeiro do Alentejo. Assim, o contexto
histórico explica a importância dada ao cachorro na cena. Ele é um
símbolo português que, junto com o modelo de gado nômade ao qual
estava ligado, entrou em decadência com o passar do tempo,
tornando-se vulnerável a permanência da raça. Sua atuação
especializada como “ferramenta” ligada ao pastoreio quase o relegou
ao esquecimento. O rafeiro do Alentejo é um cão de guarda, de
animais e de propriedades, conhecido por defender seu território
com bravura e tranquilidade. Em 1994, os criadores portugueses
fundaram uma associação, a (ACRA) – Associação de Criadores do
Rafeiro do Alentejo, que o considera um valioso “Patrimônio
genético e cultural”.5
O boi e o burro na estrebaria são presença constante na
Natividade e aparecem em Adorações muitas vezes mesmo quando
José está ausente. Já o cão e os outros animais, como os camelos, os
elefantes e mais uma infinidade de animais exóticos que muitas vezes
acompanham os Reis Magos trazidos por suas caravanas, nem
sempre se mostram na cena em muitas das pinturas, particularmente
nas menos suntuosas.
Embora a cena represente a Natividade existe uma hierarquia
nítida e inconfundível entre a Adoração – ao centro da imagem, os
personagens – de costas no primeiro plano e que assistem à cena,
assim como nós, e as faixas decorativas abarrotadas de moedas que
emolduram a pintura. Todas estas peculiaridades, sem dúvida, são

3
Esta ovelha era o resultado do cruzamento da ovelha autóctone com carneiros das zonas conquistadas
aos muçulmanos no norte da África. Animal de constituição delicada e muito sensível ao clima extremo
do norte do País, levou os pastores a praticar e desenvolver um regime de transumância. CUTILEIRO,
Evaristo. Nobreza, Dignidade, Tranquilidade. In: Almanaque Alentejano. Disponível em:
<http://www.prof2000.pt/users/avcultur/luisjordao/almanaque/Numero01/page33.htm>. Acesso
em: 27 jul. 2016.
4
Molossos são um grupo de cães de físico forte. A palavra deriva de Molóssia, uma área do Épiro
antigo, hoje a Grécia ocidental, onde o grande cão pastor era conhecido como um Molossus. Cf.
VASCONCELLOS, José Leite; GUERREIRO, Manuel Viegas; SOROMENHO, Alda da
Silva; SOROMENHO, Paulo Caratão. Etnografia portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1994. v. II, p. 139.
5
CUTILEIRO, Evaristo. Nobreza, Dignidade, Tranquilidade. In: Almanaque Alentejano. Disponível em:
<http://www.prof2000.pt/users/avcultur/luisjordao/almanaque/Numero01/page33.htm>. Acesso em:
26 jul. 2016.

111
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

especificidades portuguesas, e é certo que se referem ao glorioso


momento histórico pelo qual passava o reino português.
A riqueza abunda com a descoberta do caminho marítimo
para as Índias e o comércio dos produtos trazidos do Oriente. Além
disso, D. Manuel, que é um grande empreendedor, conduz com
primor sua política externa pelo menos no que diz respeito à Igreja
Católica. Em 1514, envia ao Papa Leão X uma embaixada com
presentes magníficos; além dos animais exóticos – entre eles um
elefante e um rinoceronte –, pedrarias, tecidos e joias. Ele obtém a
benção do Papa para seus empreendimentos e, como um rei religioso,
impinge um caráter missionário de conversão cristã às grandes
navegações portuguesas. Tomando por base esses fatos históricos
talvez possamos explicar as peculiaridades acrescidas à cena que
certamente desviam nossa atenção da Natividade para a rica tarja
coberta de moedas de ouro, prata e cobre que emoldura a imagem.
Estas são moedas do tesouro português e espanhol que representam
os reis da Dinastia de Aviz, à qual pertence Dom Manuel I. Elas
abundam sobrepostas umas às outras na faixa decorativa que
emoldura a cena, intercaladas por pérolas e pedras preciosas. Sabe-se
que essas moedas representam os reinados de Dom Afonso V, Dom
João I, Dom Manuel I e Dom João II, e, segundo a ficha de inventário
do Matriznet,6 existe aí um grupo de moedas que teve sua cunhagem
proibida em 1538, o que torna a execução deste fólio anterior a esta
data. Na tarja à esquerda (figura 5) que emoldura a pintura, no
segundo grupo de moedas de cima para baixo, podem-se observar
também cunhadas as figuras dos Reis Espanhóis Católicos Fernando
de Aragão e Isabel de Castela. Este grupo nos mostra exemplares de
moedas espanholas.

6
MatrizNet. Consultado em:
<http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=26455
4>. Acesso em: 26 jul. 2016.

112
A Adoração dos Magos...

Figura 5 - Detalhe da Adoração dos Magos. Tarja com a pintura das moedas, parte esquerda da
moldura da Natividade onde se encontram as moedas com as efígies de Fernando de Aragão e
Isabel de Castela.

Logo abaixo deste existe outro grupo de moedas portuguesas.


Elas são cinco meios vinténs manuelinos em prata, com a Cruz da
Ordem de Cristo cunhada em seu centro. Esta cruz tornou-se um
símbolo de Portugal; sua reprodução singrou os mares dos Tempos
Modernos levada pelas caravelas portuguesas e orgulhosamente
ostentada em suas bandeiras. Ainda na mesma moldura, na tarja
horizontal abaixo da cena, é possível observar-se outro grupo de
moedas com a Cruz da Ordem de Cristo (ou Cruz da Ordem dos
Cavaleiros de Cristo) cunhada em seu centro. A cruz está contornada
pelos dizeres: in hoc signo vinces.7
Estamos supondo, então, que a frase faz uma referência à cruz
e à Cristandade. Um estudo mais acurado dessas moedas irá, com
certeza, nos fornecer muitos outros dados que podem enriquecer
nossa análise, mas a elas não dedicaremos mais tempo por ora, pois
não são nosso objeto de estudo.
De fato, as moedas são um dos pontos comuns que podemos
estabelecer entre a Adoração dos Magos do Livro de Horas de D.
Manuel I, realizada entre 1517-1551, e a Adoração dos Magos do
Museu Grão Vasco em Viseu, obra de Vasco Fernandes realizada
entre 1501-1506 (figura 6).

7
In hoc signo vinces. Tradução livre da autora: “neste sinal vencerás”.

113
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Figura 6: Adoração dos Magos de Vasco Fernandes 1501-1506

Como a cena ocupa todo o espaço da pintura, seus


personagens estão compostos numa configuração totalmente
diferente daquela da Adoração do Livro de Horas de Dom Manuel.
No primeiro plano o que se vê do lado direito, embaixo, é um
triângulo cujo traçado envolve o Menino no colo da Virgem, a
Virgem e o rei mago Melchior. Logo a sua frente existe uma pequena
construção feita com tijolos da cor da terra na qual repousa o chapéu
do rei Melchior que está ajoelhado; ele é o representante do
Continente Asiático, de acordo com a tradição dos séculos XIV e XV.
Embora o Menino Jesus e Maria não estejam no centro da
pintura, toda a atenção dos quatro visitantes é voltada para eles, que
se encontram no canto inferior direito. A pequena criança branca
sobressai sobre o colo de Maria que está envolvida num manto de
tecido escuro, cujo contraste com a pele branca do menino é singular.
Não existe moldura pintada decorando a pintura. Como estamos nos

114
A Adoração dos Magos...

anos de 1501-1506 a influência greco-romana ainda não se faz


evidente como na Adoração dos Magos do livro de Dom Manuel em
1517; portanto, a estrebaria onde Maria se abriga com o menino tem
mesmo o aspecto de uma estrebaria. As paredes são de tijolos de cor
natural, empilhados e circundados por uma armação de madeira. O
telhado está coberto por uma vegetação que parece uma espécie de
fardo empilhado de palha seca (ou fardos de feno).
Existe uma grande diferença de concepção na configuração
dessa construção nas duas pinturas. No livro de Dom Manuel a
construção é de cunho greco-romano ou renascentista,
acompanhando a corrente humanista que traz de volta os padrões
clássicos. Ela se mostra pomposa, com suas enormes colunas
sustentando o frontão. Este ganha em imponência até mesmo dos
guardas do Sultão e do africano destacados no primeiro plano. O boi
e o burro encontram-se lá dentro desta construção mais apropriada a
um palácio do que a uma estrebaria que guardava animais de tração.
Podemos supor que a construção ao fundo, nesse caso, representa o
Portal de entrada da cidade de Belém mais do que a estrebaria. Os
animais parecem estar num cercado que está localizado à frente das
imponentes colunas e da porta sob o frontão.
Na pintura de Viseu os portugueses assumem uma postura
vanguardista ao colocar em cena um número particular de Reis
Magos. Existe um índio brasileiro (o quarto rei mago), um
representante da Nação Tupinambá, que aparece na cena, colocado
entre Gaspar e Baltazar. Ele, assim como os outros reis magos, traz
uma oferenda para o Menino Jesus. Este gesto representa o
reconhecimento do Messias pelo indígena e sugere discretamente a
cristianização professada pelos navegadores portugueses nas terras
que conquistavam. Um olhar mais apurado para os Reis Magos
comparando-os nas duas pinturas nos coloca em posição bastante
esclarecedora quanto às diferenças apresentadas na concepção destes
três personagens. A descrição dos reis nas representações segue um
texto conhecido pelo título Excerpta Latina Barbari,8 um manuscrito

8
“Magi sunt, qui munera Domino dederunt: primus fuisset dicitur Melchior‘, senex et canus,
barba prolixa et capillis, tunica hyacinthina, sagoque mileno, et calceamentis hyacinthino et albo
 
115
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

traduzido para o latim e atribuído a Beda, o Venerável (conhecido


como o “Pseudo-Beda”, pois não tem sua autenticidade
comprovada), cuja data coincide com a do mosaico de Ravena do
século VI, primeira representação reconhecida dos reis magos usada
como um modelo que continuou sendo reproduzido,
transformando-se numa tradição. Ele descreve os três reis magos e
lhes dá um nome; essa descrição foi usada pelos pintores dos séculos
XIV e XV para orientar suas composições da cena da Adoração dos
Magos.
Durante a execução da pintura de Viseu (figura 6), o Brasil
tinha sido descoberto havia pouquíssimo tempo e só a partir desse
momento começa a fazer parte dos mapas do mundo conhecido de
então. Por isso, na pintura de Viseu está presente como um adorador
entre os reis magos Gaspar e Baltazar o indígena da Nação
Tupinambá. A execução desta pintura foi iniciada por Vasco
Fernandes apenas um ano após a Descoberta do Brasil pelo
navegador português Pedro Álvares Cabral. A representação do
índio é bastante fidedigna, exceção feita a sua vestimenta; sua figura
nos impressiona.
O primeiro rei descrito no texto do Pseudo-Beda é o mais
idoso deles, o rei de nome Melchior. A ele foi atribuída origem
asiática, cabeça calva e cabelos e barba longos e brancos. Sua túnica
era violeta, seu manto, verde, e seus calçados trabalhados em branco
e violeta. O texto afirma que todos os reis vestiam seda da Síria.
Um olhar mais apurado para estes dois reis, o Melchior de
Vasco Fernandes e o Melchior de Antônio de Holanda no Livro de
Dom Manuel, basta para nos mostrar as diferenças óbvias entre eles.
Na pintura de Vasco Fernandes o rei se encontra ajoelhado com as
mãos postas em posição de oração. Sua túnica parece ser de veludo
negro, assim como o manto da Virgem. Um olhar mais inquiridor

mixto opere, pro mitrario variae compositionis indutus: aurum obtulit regi Domino. Secundus,
nomine Caspar‘, juvenis, imberbis, rubicundus, mylenica tunica, sago rubeo,calceamentis
hyacinthinis vestitus: thure quasi Deo oblatione digna, Deum honorabat. Tertius, fuscus, integre
barbatus, Balthasar‘ nomine, habens tunicam rubeam, albo vario, calceamentis milenicis amictus:
per myrrham Filium hominis moriturum professus est. Omnia autem vestimenta eorum Syriaca”.
Corpus Corporum – repositorium operum Latinorum apud universitatem turicensem. Consultado em:
<http://mlat.uzh.ch/MLS/>. Acesso em: 26 jul. 2016.

116
A Adoração dos Magos...

revela o engano: é o belíssimo azul violeta que está presente na túnica


do rei e que, segundo a tradição, também colore o manto da Virgem.

Figura 7- Rei Melchior- detalhe da pintura de Vasco Fernandes, à esquerda do livro de Dom
Manuel I.

Se observarmos a pintura como um todo veremos que a cor


azul quase não foi utilizada; o pouco da cor em tom claro que se vê
está concentrado no céu. O manto do Rei parece feito de um tecido
adornado por riquíssimo bordado, bem de acordo com os tecidos
sofisticados que vinham do Oriente. Quase a totalidade da pintura é
abrangida pelos tons terrosos. Na pintura de Antônio Holanda a
posição dos reis difere largamente daquela observada em outras
pinturas contemporâneas: nela os três reis estão ajoelhados, em linha
reta e de costas para o público que a examinar. Embora suas vestes
sejam de cores puras e fortes e seu manto, assim como o do rei
Melchior de Vasco Fernandes, penda para uma cor próxima ao
dourado, os dois reis em quase nada se assemelham. Os cabelos
brancos do ancião na descrição foram respeitados; a barba não pode
ser vista. Ele está com sua oferenda nas mãos, a custódia de ouro.

117
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Figura 8 - Baltazar na pintura de Vasco Fernandes, à esquerda. À direita, no Livro de Dom


Manuel I.

O mesmo tratamento descompromissado de Holanda dado ao


rei Melchior foi aplicado ao Rei Baltazar, o representante do
continente africano (figura 8). Podemos identificá-lo pelos cabelos
negros encaracolados e pela pele escura. Ele carrega alguns acessórios
por cima da vestimenta, uma espécie de gola, e uma faixa branca
sobre o ombro esquerdo. Na pintura de Viseu, Baltazar entrega sua
oferenda à Virgem que, na palma da mão para cima, placidamente a
recebe. O rei africano de Holanda é quase inexpressivo na cena,
embora tenha grande relevância no contexto da Natividade.
Finalmente, não menos destratado que seus antecessores, o
rei mago Gaspar. Na pintura de Viseu (figura 9, à esquerda), Gaspar
é ruivo e traz em seus calções o listrado verde e amarelo. Suas vestes
são completadas por uma capa vermelha; a capa sobrepõe-se a uma
peça de tecido verde que deve ser sua camisa.

118
A Adoração dos Magos...

Figura 9 – Gaspar na pintura de


Vasco Fernandes à esquerda. À
direita, no Livro de Horas de
Dom Manuel I

Ele também carrega sua oferenda numa das mãos. Com a


outra ele segura o chapéu acima da cabeça em sinal de respeito. O
ponto comum entre esses dois personagens é a peça de tecido verde;
no rei Gaspar do Livro de Dom Manuel, ela está vestida sobre a
túnica branca como um manto que tem uma gola ou capuz, não fica
claro na imagem. Ela se mostra virada para fora com uma coloração
ocre que esconde o pescoço do rei, deixando exposta apenas parte de
sua cabeça. É a única peça na cor verde em toda a pintura e está
colocada bem no centro desta. Provavelmente, outra peculiaridade
portuguesa. Uma incógnita.
Podemos então concluir que a Adoração dos Reis Magos no
Livro de Dom Manuel, embora não fuja a nenhuma regra imposta à
representação da Natividade no momento de sua execução, mostra-
se de maneira bastante diversa da de suas coetâneas. Podemos
posicioná-la na condição de exceção à regra.

119
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Na pintura de Viseu existe também uma moeda colocada nas


mãos do menino Jesus, que a ficha de inventário do Matriznet9
atribui ao “secular desejo de riqueza associado aos Descobrimentos
Portugueses”. Concordo com a proposição e vou além. Ela está aí
para nos lembrar da riqueza portuguesa, mas também da
cristianização, por isso está nas mãos do Messias. A pintura de Viseu
conta ainda com a presença de um quarto rei mago na figura do índio
brasileiro tupinambá, o que só vem reforçar mais uma vez o caráter
missionário dos Grandes Descobrimentos.
Mas as peculiaridades da Adoração do livro de Dom Manuel
não param por aí. Observemos agora os três personagens no primeiro
plano. À direita vemos um africano que carrega um escudo sobre o
peito, e à esquerda, dois homens identificados como janízaros, por
seus turbantes e sabres; eles eram soldados da guarda de elite dos
sultões otomanos. Vale agora lembrar que, após saber da chegada de
Vasco da Gama às Índias, Dom Manuel proclamou-se: “Rei de
Portugal e Algarves, de aquém e além-mar em África, senhor da
Guiné, da conquista da Navegação e comércio de Etiópia, Arábia,
Pérsia e Índia”; sendo assim, fica fácil explicar estas personagens em
meio à Natividade no livro de Dom Manuel.
Ao encontrarmos esse ponto em comum com a pintura de
Viseu, a moeda portuguesa, não podemos nos omitir, ao contrário,
devemos salientar que ambas as cenas parecem delicadamente
sugerir uma ligação entre o reino português e a providência divina.
Comparando as duas cenas e suas particularidades podemos
perceber que enquanto a iluminura é uma imagem pequena e privada
dentro de um livro de horas, um objeto de luxo destinado à nobreza
no qual é evidente a homenagem ao soberano português a quem se
destina, a pintura de Viseu é uma imagem grande e pública que foi
elaborada para ficar no interior de uma igreja, destinada a representar
um dogma cristão, o da vinda do Messias; portanto, uma imagem
com um objetivo teológico. Parece-nos evidente que suas
semelhanças ficam mais na mensagem, nada sutil, à qual ambas
aludem, relacionadas ao estado português e seu momento histórico.

9
MatrizNet. Disponível:
<http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=20760
2&EntSep=5#gotoPosition>. Consultado em: 27 jul. 2016.

120
A Adoração dos Magos...

Mas enquanto a pintura de Viseu nos mostra um estado ávido em


mostrar sua face Cristianizadora, o livro de horas de D. Manuel I
passa ao largo desta mesma ideia. Em verdade, a Natividade do livro
de horas de Dom Manuel I busca apenas homenagear o Cristo
retratando o momento da Epifania, porque D. Manuel era um
homem religioso, mas seu objetivo primeiro neste fólio é exaltar o rei
português, suas conquistas ultramarinas e as riquezas que advieram
destas conquistas feitas por Portugal no primeiro terço do século
XVI.
Diante do que foi exposto e considerando o que historiadores
e estudiosos tem reconhecido, o Livro das Horas de D. Manuel
destaca-se como um dos mais notáveis livros iluminados em língua
portuguesa, graças as numerosas ilustrações do Portugal
quinhentista, nomeadamente esta folha com a representação de
moedas.10 Como podemos ver, a Natividade sequer é citada e fica, a
meu ver, em terceiro plano neste fólio, sendo a riqueza portuguesa e
a dinastia de Avis os grandes homenageados. Logo em seguida, a
pintura reafirma as conquistas e a Cristianização das colônias
portuguesas, e em terceiro plano está a Adoração dos Magos, que
pretendia ser nosso objeto de estudo, mas serviu apenas de pretexto
neste livro para reforçar mais uma vez as mais bem afortunadas
empreitadas de D. Manuel I, o bem-aventurado.

10
Livros de Horas de D. Manuel. In: Projeto Memória. Disponível em:
<http://www.projetomemoria.art.br/PedroAlvaresCabral/links/horas.htm>. Consultado em:
27 jul. 2016.

121
 

Operários do evangelho:
construindo a espiritualidade franciscana no Brasil

Maria Eurydice de Barros Ribeiro

T
alvez um dos traços mais marcantes da cultura artística
portuguesa transladados para o Brasil tenham sido os
azulejos bicromados nas cores azul e branco, reconhecidos
em qualquer parte do país como azulejos portugueses ou azulejos
coloniais. Foram introduzidos em Portugal no século XV, compondo
com a tijolaria a decoração geométrica dos palácios. Mais tarde
começaram a revestir as paredes dos edifícios civis e religiosos. Os
primeiros azulejos a desembarcarem no Brasil datam do século XVII
(1653), quando reinava, em Portugal, D. João V. Pareciam perfeitos
para o revestimento das paredes dos edifícios da colônia de clima
tropical. Os azulejos foram, então, destinados a grande parte do
espaço interno da Igreja Franciscana de Cairu no Recôncavo Baiano.
Uma das fontes mais importantes sobre a presença dos
Franciscanos no Brasil são as crônicas seráficas de Frei Antonio
Santa Maria Jaboatão. Trata-se de dois volumes impressos em

 
123
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Lisboa no ano de 1761. Segundo ele, sua crônica pretende esclarecer


“por falta de autores, que tratassem ex-professo dos primeiros e
segundos exploradores”.1 O Frei faz referência tanto aos dois
primeiros Franciscanos, que vieram com Pedro Álvares Cabral,
a mando do rei D. Manoel, e em 1500 aportaram no Brasil, quanto
aos outros, que “não foram declarados pelas crônicas da ordem e que
vieram na expedição de Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho, que
receberam ordem do rei para demarcarem as costas brasileiras em
1503”.2 Estes Franciscanos, cujo número o cronista não determina,
seguiram para Porto Seguro e acabaram sendo mortos pelas flechas
dos índios locais. Mas outros Irmãos Menores se seguiram, embora
esta vinda pioneira não tenha tido uma aparente relação com a
Ordem, que não os cita nas suas crônicas. A presença dos primeiros
Franciscanos pode ser compreendida talvez pelo desejo ardente que
caracteriza os irmãos na difusão do Evangelho. Ainda assim, foram
necessários quase 80 anos para que o Ministro Geral da Ordem
Franciscana instituísse a custódia de Santo Antônio do Brasil ao
Superior Frei Melquior de Santa Catarina. Frei Melquior3 “recebeu
autorização e licença” para fundar conventos e receber noviços na
Ordem. A partir daí, os Franciscanos iniciaram no Brasil um
movimento de territorialização da fé cristã. Isto significa que
assumiram, em um país de grande extensão, pouca densidade
demográfica e pequenas aglomerações humanas, a tarefa de ocupar
pontos estratégicos do vasto território. Iniciaram a construção dos
conventos pelo Nordeste, uma região próspera, devido aos engenhos
de cana de açúcar. Tornaram-se, no sentido moderno, verdadeiros
“operários do evangelho”, como tão bem os nomeou Frei Jaboatão
nas suas crônicas.
Os conventos e igrejas construídos pelos Franciscanos
centralizaram múltiplos papéis, que ultrapassaram o atendimento
espiritual da população. Além de celebrarem missas e realizarem
sacramentos, promoviam festas e procissões, contribuindo para a

1
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil. Por Fr.
Antonio de Santa Maria Jaboatam. Impressa em Lisboa em 1761. Reimpresa por ordem do
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de janeiro, 1858. v. I, p. 5.
2
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 8.
3
Decreto de 13 de março de 1584.

124
Operários do evangelho

socialização da população local e de suas redondezas. No interior do


convento, todos eram assistidos. Uma escola foi mantida com a
finalidade de ensinar aos filhos dos colonos, além da doutrina cristã,
os estudos de que necessitavam na época. Em síntese, a vida social se
fazia em torno dos conventos e das igrejas dos Franciscanos.
Desde o final do século XVI estabeleceu-se uma relação
política recíproca entre a Ordem Franciscana e o Governo Colonial.
No decorrer dos nove anos em que Frei Melquior exerceu a custódia
foram construídos cinco conventos, todos no nordeste do país: Nossa
Senhora das Neves, em Olinda (1585), São Francisco, na Bahia
(1587), Santo Antônio, em Igaraçú (1588), Santo Antônio, na
Paraíba (1589), Convento de São Francisco, em Vitória (1591). No
final do século, apesar de receber o Superior da Ordem,
determinação do Governador para prosseguir na construção de
conventos em outras regiões do Brasil (em Vitória e no Rio de
Janeiro), achou por bem não cumprir a determinação de imediato.
Os conventos construídos no Nordeste ainda eram motivo de
preocupação da Custódia que acreditava ser melhor se concentrar em
fortalecer os existentes. As novas construções só se iniciaram no Rio
de Janeiro no início do século seguinte, em 1606, no Rio de Janeiro,
com apoio direto do governador. Porém, três anos mais tarde, em
1609, o governo metropolitano interrompeu as novas construções de
conventos4 que só foram retomadas em 1624,5 podendo assim a
Ordem voltar a expandir a construção. Foi a partir deste contexto de
retomada de construção de conventos que os Franciscanos voltaram
a construir em meados do século no Nordeste. Embora a escolha do
lugar resultasse seguidamente da reunião do Capítulo, que tinha o
cuidado de verificar as condições locais, consta que, em Cairu, o novo
Convento e Igreja foram construídos atendendo aos pedidos dos
moradores.
A pequena Cairu está situada no arquipélago de mesmo
nome, no Recôncavo Baiano. É atualmente uma cidade bucólica,
simples, cujas ruas silenciosas e com poucos transeuntes exibe na sua
parte alta a Igreja e o Convento de Santo Antônio. Graças à

4
Decreto de 16 de outubro de 1609.
5
O alvará régio liberou novas construções, excluindo inclusive qualquer exigência de licença da
Câmara e do Governo Geral.

125
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

decadência econômica e à ausência de outras construções, o conjunto


arquitetônico se faz ver com toda a sua imponência.
A Cairu dos Seiscentos era próspera e ostentava um passado
de lutas e bravuras no povoamento do território onde resistiram com
coragem aos ataques frequentes dos indígenas, em particular dos
Aymorés, temidos pela forma como com suas flechas surpreendiam
e atacavam os colonos. Estes nem sempre tinham tempo para reagir,
caindo mortos onde se encontravam. Foi ali que os Franciscanos,
atendendo aos pedidos dos moradores, conforme mencionado,
resolveram fundar um convento e igreja da ordem.
O nome do local se deve ao gentio, cuja linguagem repetidas
vezes compõe com duas palavras apenas uma. Como Amcajtwú, que
quer dizer “Casa do Sol” e, segundo o cronista, tem uma fonética
áspera, “porque não existe na língua deles dois RR, e por isso não
tem em seu idioma dicção que comece com R”.6 De acordo com as
crônicas Seráficas, tratava-se de uma ilha, “de figura esférica,
levantada em moderado monte, em partes mais, em outras menos
levantado, com meia légua de diâmetro, por qualquer parte, e duas
de circunferência [...]”. Foi nesta região do Brasil – prossegue o
cronista – que “quis a Altíssima Providência daquele Supremo
Entender, que tudo dispõe e para seus determinados fins [...] que os
pobres filhos de Francisco fossem os primeiros que descobrissem
para a Igreja este importante tesouro”.7
A ilha já havia despertado a atenção dos portugueses quando
foi enviada a expedição de Martin Afonso de Sousa. De acordo com
o cronista, a povoação possuía poucos vizinhos. Uma única rua que
se iniciava no porto e ia até o alto, onde ao norte se encontrava a Igreja
Matriz, consagrada a Nossa Senhora do Rosário. No final da rua à
direita, o Convento de Santo Antonio, que se originou de uma
simples capela dedicada ao mesmo santo, deixada pelos moradores
aos religiosos.8 A Vila foi fundada por volta de 1610. A escolha se
deveu ao fato de que o lugar era seguro e que estariam mais
protegidos das invasões dos índios locais, principalmente dos

6
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 8.
7
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 9.
8
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 76-78.

126
Operários do evangelho

Aymorés. Os relatos, conforme se fez referência, descrevem ataques


de grande selvageria que ceifavam muitas vidas e deixavam rastros
de sangue e devastação. A ilha os protegeria mais que a terra firme.
Segundo depoimentos, os Aymorés não sabiam nadar. A escolha se
tornou providencial. Quatro rios de “grossas correntes”
asseguravam a fertilidade da terra. Além das fortes madeiras, havia
“todo o gênero de lavouras”.9
Frei Jaboatão, como o fizeram tantos outros cronistas do seu
tempo, escreve motivado pelo desejo de estabelecer a “verdade”
oferecendo sua versão, baseada em documentação variada que teve o
cuidado de recolher. Ao mesmo tempo, quis fazer justiça aos seus
irmãos da Ordem, que muitos ignoraram ou permitiram que suas
ações permanecessem silenciadas. O frade não poupou os
portugueses de críticas, lamentando a mudança do nome da terra:

de Província de Santa Cruz que a indiscreta política dos


homens, ou a sua imprudente ambição mudou depois em o
de Província do Brasil, mostrando sem o querer, que fazia
mais estimação do valor destes páos vermelhos, de que
dependem os seus lucros temporaes, do que do inestimável
preço daquele Sagrado Madeiro, donde com outra melhor
côr, sem comparação alguma.10

Discorrendo sobre os Frades Menores, “Descobridores da


Conquista Espiritual do Brasil”, o cronista afirma que foram eles os
primeiros que também cultivaram por cinquenta anos a região,
insistindo no pioneirismo dos franciscanos em sacralizar o lugar.11
Lembra, ainda, que os Franciscanos participaram com Frei
Henrique da celebração da primeira missa, do plantio da primeira
semente do evangelho e da palavra de Deus. Estavam presentes nas
primeiras funções eclesiásticas e divinas. Testemunharam o espanto
e a admiração dos naturais da terra que assistiram ao rito sagrado.
Foram os primeiros, mais tarde, em 1503, a pagar pela fé com o
próprio sangue. Foram eles que levantaram um templo para que

9
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 96.
10
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 5.
11
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. I, p. 10.

127
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

fosse o Senhor servido e louvado; sendo os primeiros também que,


na Terra do Brasil, ministraram os sacramentos do batismo, da
penitência, do matrimônio e outros da Santa Igreja. Permaneceram
na Capitania e não houve ilha em que não fossem os Religiosos
Menores pioneiros na pregação do evangelho e condução da fé. Toda
esta ação espiritual torna provável que os moradores tenham
solicitado a construção do convento. A esta solicitação acrescentava-
se o fato de que a ilha de Cairu atendia, pelas dificuldades naturais
de acesso, satisfatoriamente às exigências do Capítulo.
A construção dos conventos garantiu a formalização da
Província de Santo Antônio do Brasil, cuja sede ficou em Olinda. Era
mais uma oportunidade para homenagear o santo franciscano da
metrópole portuguesa. O conjunto igreja-convento era também,
como os outros conventos, centro da sabedoria, letras e ciências. Os
primeiros mestres vieram de Portugal, mas logo se formaram novos
no Brasil. Constituíam-se as Casas de Estudo de Filosofia e
Teologia, onde logo se formaram os filhos da própria terra que se
tornaram grandes pregadores, letrados e doutores, versados em
várias matérias místicas, expositivas, históricas e poéticas.
Em 10 de maio de 1624, as naus holandesas eram vistas no
litoral da Bahia. Ali permaneceram até 1° de maio de 1625. Em
seguida seguiram para Pernambuco. Os holandeses permaneceram
no nordeste brasileiro até 1654, quando assinaram o Tratado de
Rendição. A invasão dos holandeses oferece uma multiplicidade de
ângulos. É certo que desde o século XVI, o Brasil atiçava a cobiça de
outros países europeus devido à madeira vermelha. A partir da
construção dos engenhos de açúcar e a exportação do produto, a
riqueza que este proporcionava estava evidentemente entre as
motivações dos holandeses. No entanto, é importante considerar
que, na Europa, ainda se travava um importante conflito religioso
que dividiu para sempre os cristãos. A Holanda fazia parte dos países
dissidentes: havia se tornado protestante. A preocupação não podia
ser apenas econômica, mas também ideológica. Os hereges eram
motivo de preocupação de Roma, considerando que já haviam
conquistado a América do Norte. Temia-se a sua presença na colônia
portuguesa católica. Consequentemente, os Franciscanos foram alvo
da perseguição holandesa, desalojados dos conventos de

128
Operários do evangelho

Pernambuco e Paraíba, o que evidenciou a necessidade de prosseguir


a construção dos conventos em lugares menos vulneráveis. Entre
1629 e 1650 foram fundados nove conventos, dos quais cinco
formaram a Custódia da Imaculada Conceição.
Os representantes da Ordem com a finalidade de construir o
convento de Cairu chegaram à ilha em 1650. A construção do
convento, porém, só teve início em 1653, com a nomeação de Frei
Daniel de São Francisco, padre mestre, encarregado da obra. A igreja
foi iniciada em 1654. A planta do convento ainda hoje se mantém
completa e a recente restauração recuperou, consideravelmente, o
edifício que já havia passado por restaurações anteriores.12 A obra
clássica de Bazin o descreve destacando alguns dos seus cômodos13 e
apontando detalhes da arquitetura que o assemelha e o diferencia dos
demais conventos do Nordeste. Por exemplo, a fachada, a respeito da
qual afirma que “é o protótipo da forma barroca das fachadas
franciscanas do Nordeste, tem um campanário em forma de
pirâmide, recoberto de azulejos com figuras isoladas, à moda dos
tegels holandeses.” O claustro, por sua vez, “contrariamente aos
hábitos dos conventos franciscanos do Nordeste, [...] tem três
arcadas de cada lado e possui no andar térreo, pilares de pedra e cal
que sustentam arcos abatidos, em vez de colunas”.
Alberto Sousa tem insistido sobre a originalidade do modelo
inovador da arquitetura do convento de Cairu com relação às
construções que já haviam sido erguidas na Colônia. A originalidade
maior, aponta, estava no frontispício, considerado uma “invenção
brasileira”. É possível, todavia, que a inspiração tenha tido sua
origem nas gravuras renascentistas alemãs vistas por frei Daniel no
decorrer de sua estadia na Europa, em Lisboa e Roma. As gravuras
tinham boa circulação na Europa e o frontão em andares era comum
tanto na arquitetura alemã quanto na dinamarquesa.

12
O conjunto convento igreja recebeu duas visitas de inspeção do SPHAN respectivamente em 1946,
1937, 1957. Em 1962 nova visita constatou o desabamento do altar de Santa Barbara que veio a ser
restaurado no ano seguinte. A ordem realizou trabalhos de conservação em 1964 e teve apoio do SPHAN
para os mesmos fins em 1967. No final da década de 60 e início de 70, o SPHAN restaurou a sacristia e
duas escadarias. Em 2009 deu-se início a última restauração dos elementos artísticos.
13
BAZIN, Germain. A arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956, p. 14-15.

129
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Sua frontaria foi a primeira construída no Brasil que se


afiliava ao barroco – em razão do seu caráter cenográfico, da
agitação dos seus contornos, de sua dramaticidade, do papel
que a decoração nela desempenha. Ela foi mesmo
duplamente pioneira, pois surgiu antes que uma fachada
barroca aparecesse em Portugal. Criação de grande
originalidade em que se mesclam traços provenientes da
renascença italiana, do maneirismo alemão e do classicismo
seiscentista lusitano, ela foi uma invenção brasileira que não
tinha similares em Portugal e nos países europeus de
arquitetura renomada. Foi ainda a primeira alçada de igreja
de concepção erudita erguida no Brasil que não seguiu
nenhum modelo português. E foi também, dentro do
universo das frontarias originais de igrejas do Brasil colonial,
a que foi mais imitada, gerando uma verdadeira escola
arquitetônica.14

O conjunto arquitetônico – convento e igreja – construído no


Recôncavo Baiano adequava-se perfeitamente à sua época: era
construído em região próspera e de grande importância econômica e
política para a colônia. A posterior decadência econômica e o difícil
acesso que isolava o arquipélago de Cairu garantiram a preservação
dos azulejos das paredes das áreas nobres do convento, da capela de
Santa Rosa e da capela mor dedicada a Santo Antônio e de outras
dependências.
A restauração mais recente, pela qual passou o convento,
encontrava-se em curso, quando da publicação da obra consultada.15
A quantidade de azulejos é impressionante. Espalharam-se com
grandeza e encanto pela nave, capela-mor, capela de Santa Rosa de
Viterbo, claustro, galilé, capela de São Benedito, portaria, refeitório,
sacristia e no corredor que leva ao claustro. Azulejos com
predominância do tipo tapete foram colocados na torre direita onde
fica o campanário. A mistura de outros com padrão diferente, no

14
SOUSA, Alberto. In: Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro:
CBHA, UFRJ, UERJ, 2004. v.1, p. 39-49 (Foi consultada a versão revisada pelo autor).
15
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu. Restauração de Elementos
Artísticos. Brasília: IPHAN, 2009.
 
130
Operários do evangelho

entanto, levou os restauradores a supor que foram colocados na torre


restos de azulejos de outras partes da igreja e do convento.16 Além do
tipo tapete, vieram também de Portugal azulejos figurativos do
século XVIII e de figuras avulsas. Os azulejos de figura avulsa são
imitações feitas em Portugal dos famosos azulejos holandeses enkele
tegels, mais conhecidos como azulejos de Delft.17 Outros azulejos,
ainda, são obras de pintores portugueses famosos na época, tal como
Bartolomeu Antunes. É na nave, porém, que os azulejos adquiriram
maior monumentalidade: na parte inferior das paredes somam-se
três mil peças. São todas do período joanino e julga-se que foram
produzidas em Coimbra.
Os azulejos juntamente com a talha dourada, os altares e as
pinturas integram o fausto e a riqueza das igrejas que buscavam,
assim, dentro de uma longa tradição de sacralização dos lugares
sagrados – que data das primeiras civilizações orientais – honrar a
presença divina e motivar a devoção ao santo que os protegia. Neste
caso, em particular, Santo Antônio, o Franciscano português que
ocupava o altar mor, mas também os demais santos que ali eram
também venerados, tais como São Benedito, o negro Franciscano,
cuja capelinha que se encontra na galilé é bastante simples. Apesar
da simplicidade, tem as paredes decoradas por azulejos de figuras
avulsas. Trata-se, no entanto, de um santo que mantém ainda grande
popularidade na ilha. A sua festa é, ainda hoje, bastante concorrida.
Do outro lado da galilé, uma capela pequena foi destinada a Nossa
Senhora da Conceição. O retábulo é do século XIX, com pintura
similar à do altar de São Benedito. A capela-mor passou por
profundas modificações. O Cristo crucificado que se encontra no
centro ladeado por São Francisco e Santo Antônio é do século XIX.
O que resta da decoração primitiva são os azulejos cujos painéis
retratam a vida de Santo Antônio. Trata-se de duas passagens: do
lado do evangelho, “O milagre da mula” e “A pregação aos peixes”.
Do lado da epístola, a “Ceia na casa do incrédulo” e “A Cura da
criança paralítica”. Os painéis são obra de Bartolomeu Antunes.
Datam de aproximadamente 1740. Os altares colaterais dedicados a

16
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 61.
17
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 63.

131
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Cristo Crucificado e a Nossa Senhora das Dores pertencem


igualmente ao século XIX. Nossa Senhora do Rosário encontra-se no
andar superior. O pequeno altar é barroco e data da primeira metade
do século XVII. Durante a última restauração, a imagem de Nossa
Senhora do Rosário foi recolocada no nicho. Os restauradores supõem
que outrora sua talha foi inteiramente dourada com ouro brunido.18
A presença dos santos nas igrejas não se destinava apenas à
ornamentação, quer fossem esculpidos ou retratados em pinturas de
diversos suportes. Desde a idade média, em afrescos ou retábulos, a
vida dos santos passou a ser representada servindo à devoção, mas
também agindo como elemento de inspiração aos fiéis. Estes, visando
à salvação da própria alma, poderiam pautar suas ações em virtudes
que seriam avaliadas no dia do juízo final. A doutrina salvacionista
inspirava também as doações e as esmolas.
Em trabalhos anteriores mostrei como a vitrificação dos
azulejos podia induzir a idéia de espelho e também estimular os
sentidos.19 Tenho me dedicado ao estudo dos azulejos portugueses
desde 200620 buscando estabelecer um estudo interdisciplinar entre a
História e a História da Arte. O diálogo com o objeto de arte faz deste
último um testemunho da História, em especial da história da cultura.
As imagens falam e são interlocutoras poderosas. O historiador,
independente do período com o qual trabalha, deve sempre estar
atento aos aspectos materiais e formais de suas fontes. O material em
que são confeccionadas é também produtor de um discurso. Como
entender a Idade Média sem conhecer a produção do pergaminho?
Como estudar as igrejas barrocas sem conhecer a confecção dos
azulejos ou da talha dourada? Compreender o azulejo implica em
compreender a importância da fabricação, do conteúdo artístico e da
figuração representativa, quando é o caso. O interesse deste estudo

18
Embora tenhamos visitado a ilha e o convento de São Francisco e feito na época, algumas fotos,
em particular da capela de Santa Rosa, o trabalho de restauração estava no começo. Por esta razão
recorremos também, ao trabalho de José Dirson Argolo. ARGOLO, José Dirson. O Convento
Franciscano de Cairu, p. 59-61.
19
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Ver e sentir: Imagem e espiritualidade Franciscana. In: I
Colóquio Internacional de estudos medievais e I Encontro do GEPEM (Grupo de estudos e pesquisas
do medievo) da PUC-GO – ‘Entre a história e a historiografia’. Goiânia: PUC-Goiás, 2012.
20
Azulejos da Igreja Matriz de Cachoeira. In: Revista da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 2006.
 
132
Operários do evangelho

restringe-se ao azulejo figurativo, considerado um documento


revelador da história dos Franciscanos no Brasil.21
O desaparecimento de imagens, materiais e suportes
corroídos pelo tempo, e as alterações promovidas pelos
conservadores, fez do convento e igreja de Cairu um documento
histórico incompleto e adulterado. Se a arquitetura foi mais
frequentemente preservada, a pintura foi atingida duramente, como
o arco cruzeiro do altar mor que teve a policromia desfigurada ao
longo dos anos. Outra adulteração importante foi provocada pelas
mudanças estilísticas, que derrubaram parte importante do barroco
substituindo-o pelo neoclássico, em voga na época. De uma forma ou
de outra a decoração interna foi se modificando, adquirindo outras
características na virada do século XVIII para o XIX.22 Os azulejos,
todavia, foram salvos pelas dificuldades de acesso à ilha e pelo clima
da região.
As restaurações anteriores modificaram gradualmente a
decoração interna, entretanto, a mais recente buscou restabelecer a
originalidade, tomando posição e distanciando-se da escola
restauradora em que o arquiteto se permite até mesmo criar o que
nunca existiu; como, por exemplo, os seguidores do arquiteto francês
Violet le Duc, responsável pela restauração da Igreja de Notre Dame,
em Paris. É certo que seria ingênuo pensar que a restauração possa
assegurar a sua plena originalidade. Da história ali vivenciada,
provavelmente ficaram restos, vestígios, testemunhos, todos
datados, todos passíveis de uma interpretação que os atualiza na
época em que escreve o historiador. Porém, a memória se mantém
viva, permitindo um vai-e-vem constante entre o presente e o
passado, entre o que desapareceu ou foi consumido pelas pragas e o
que foi implantado, acompanhando o estilo do momento.
Apesar da devastação e das intervenções ocorridas no cenário
do Convento e da Igreja de São Francisco ao longo do tempo em
Cairu, no entanto, uma capela sobreviveu. A capela de Santa Rosa, a

21
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. A metamorfose do modelo. Estudos de espiritualidade e
iconografia franciscana. In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes
medievais do Brasil Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil. Lisboa: Academia
Portuguesa da História, 2012.
22
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 66-67.

133
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

peça mais antiga de toda a nave guardou os seus azulejos em perfeito


estado. É possível identificar nos azulejos sobreviventes uma parte
da narrativa figurativa da história dos Franciscanos, em particular da
Ordem Terceira. A capela dos Terceiros encontra-se na parte
central, ao lado do evangelho. O altar é barroco, do tipo românico,
inteiramente talhado em cedro, provavelmente datado de 1720.
Levanta-se a hipótese de que este altar tenha pertencido a outro local
maior, talvez a capela mor, e foi reduzido, na segunda metade do
século XIX, para adaptar-se ao recinto da capela da Ordem Terceira.
Este tipo de transferência de um lugar para outro parece ter sido
frequente na Bahia do século XVII. O altar foi recuperado pela
última restauração.23
No fundo da capela, Santa Rosa de Viterbo é representada
como uma imagem esculpida em madeira dourada e policromada, de
tamanho natural, com características do final do século XVIII ou
início do XIX. As paredes são completamente revestidas de azulejos,
cujos painéis atingem a altura de quatro metros, indo até a sanca. Os
painéis retratam cenas da vida da santa em duas grandes figurações:
do lado esquerdo de quem entra, a santa desafia, com êxito, uma
mulher da facção gibelina, expondo-se à prova de fogo.24 Embaixo,
pode-se ler Flagat et non flagat, “Queima ainda que não queime”.25
Do outro lado, a santa está representada em seu leito de morte, com
a seguinte legenda: Opero que ego facio e ipasa jaiet ,”As obras que
faço estão aqui”. O desenho é de qualidade e a obra foi atribuída a
Nicolau de Freitas, datando provavelmente da metade do século
XVIII. O forro da capela é abobadado e provavelmente foi pintado
com flores entrelaçadas.26
A dificuldade em localizar fontes coevas e, por consequência,
uma bibliografia mais expressiva que trate da fundação do Convento

23
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 68-69.
24
Ordália, ordálio ou sentença divina em que a verdade era atribuída a Deus, consistia em uma
forma de comprovação em litígios particulares e públicos. Era um meio de prova. De origem
anglo-saxã, generalizou-se pelos países europeus até o século XIII, quando a prática foi condenada
oficialmente no IV Concílio de Latrão e pelas Decretais do papa Gregrório IX(1234).
25
Foram mantidas as traduções feitas no original por Cândido da Costa e Silva. ARGOLO, José
Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 69.
26
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu, p. 69.

134
Operários do evangelho

Franciscano de Cairu, coloca sérios entraves aos historiadores e aos


historiadores da arte.
Frei Jaboatão localiza a presença dos irmãos terceiros no
Brasil desde o século XVI. Segundo ele, Antônia de Pádua de Gois,
irmã da Ordem Terceira chegou com os pais no Brasil. A história da
família é emblemática e representativa de muitas outras histórias dos
moradores da ilha.
Diversas passagens da crônica atestam a presença da Ordem
Terceira de São Francisco, os Terceiros da Venerável Ordem da
Penitência na região desde os primeiros tempos do povoamento. Nos
testamentos, localiza-se a declaração de doação dos Terceiros de São
Francisco. Jaboatão afirma que quando os frades da Ordem
chegaram já encontraram os Irmãos Terceiros. O frei assinala e
valoriza a presença de várias mulheres, cujos nomes são citados
dando conta do papel ativo que tiveram no povoamento. Boa parte
parece ter integrado a Ordem Terceira. Não se restringiram em
acompanhar os maridos e a cuidar da casa e dos filhos. Dedicaram-
se às obras pias. O cronista lamenta a falta de documentos que
possam permitir que ele se estenda mais sobre a presença dos
Terceiros: não há informações suficientes que

pudéssemos tirar notícia certa dos Irmãos Terceiros desta


Venerável Ordem, de virtude, santidade. Nem eles sendo ali
tão antigos, tem livro, ou assento, nem dos principais, e
fundação da sua capela, é o que tiramos de papeis avulsos.27

No decorrer da última restauração, os arquitetos encontraram


vestígios da construção de uma capela da Ordem Terceira da
Penitência iniciada no século XVIII. O edifício, contudo, nunca foi
concluído. Conforme se sabe, geralmente as ordens terceiras tinham
sua origem na ordem primeira, em cuja igreja construíam um
retábulo destinado à imagem da padroeira.

27
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil. Por Fr.
Antonio de Santa Maria Jaboatam. Parte Segunda (Inédita). Impressa por Ordem do Instituto
Histórico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1861. v. II,
Livro III., p. III.

135
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Em 1703 a igreja é descrita como sendo grande e com espaços


ordenados pela arquitetura. Possuía sete altares onde se veneravam
os santos. O altar de Santa Rosa do Viterbo era o terceiro, precedido
dos santos portugueses, Santo Antionio e Santa Isabel. Todos os
altares “são muito bem ornados e neles se celebram missas
anualmente para os irmãos defuntos” cujos testamentos
beneficiaram a ordem. Em todos se encontram a talha dourada e ricos
painéis.28
Pode parecer curioso que os Terceiros não tenham dedicado a
capela a nenhum dos santos já de grande devoção na região, como São
Benedito, N. S. do Rosário ou N.S. da Conceição. A escolha de santa
Rosa pode ter como justificativa a razão óbvia de ser ela a padroeira
da Ordem Terceira dos Franciscanos. A sua hagiografia, no entanto,
e em particular a parte representada nos azulejos nos fornece dados
que parecem mais convincentes e que podem ter correspondido aos
anseios dos irmãos e irmãs da Ordem Terceira em Cairu.
Os azulejos da capela representam provavelmente os dois
momentos mais importantes da vida de Rosa: do lado esquerdo,
enfrentando os gibelinos, posiciona-se a favor da Igreja, que defendeu
com bravura, submetendo-se inclusive à dolorosa ordália; o da direita
a apresenta no leito de morte. Rosa morreu muito jovem e o papa
Inocêncio IV, demonstrando a gratidão da Igreja, iniciou prontamente
o processo de canonização. No momento em que o corpo foi exumado,
percebeu-se que estava intacto. Rosa, portanto, não teve o seu corpo
consumado pela terra, comprovando, para a época, a sua santidade.
Ela permaneceu na forma em que havia morrido e assim foi
representada no azulejo. Do lado direito, que não foi escolhido por
acaso, Rosa está representada à direita do Pai, ao lado dos justos. A
gratidão de Inocêncio IV, todavia, não se revelou apenas na
canonização. Ele determinou que o seu corpo fosse sepultado no
cemitério das Clarissas, ordem religiosa, braço feminino fundado por
Santa Clara. Esta última decisão papal deve-se provavelmente ao fato
de Rosa ter sido recusada pelas Clarissas para o noviciato, ingressando,
então, na Ordem Terceira da Penitência, vindo a tornar-se a padroeira.

28
Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, v. II, p. 304.
 
136
Operários do evangelho

A vida de Rosa foi marcada pelo combate aos inimigos da


29
Igreja. Os holandeses que invadiram a Bahia não eram apenas
gananciosos em busca do enriquecimento com a cana do açúcar.
Tanto quanto os franceses, os holandeses eram protestantes. Em
outras palavras, aos olhos da Igreja Católica, hereges. Por isso,
considerando a figuração nos azulejos, é possível relacionar uma
identidade a mais entre os moradores, os irmãos da Ordem Terceira
e Santa Rosa. Além de ser a padroeira da Ordem, como eles, Rosa
lutou contra os inimigos da Igreja.
A representação da vida dos santos tem como objetivo
principal servir de inspiração e exemplo aos fiéis. No caso da Capela
de Santa Rosa, aos Irmãos Terceiros de Cairu, dentre os quais a
presença e a ação feminina, segundo Jaboatão, parece ter sido
bastante significativa.
As representações imagéticas podem promover e alimentar
um conflito, independente da sua natureza. A Reforma Protestante
teve consequências dramáticas para Roma. Os protestantes no Novo
Mundo tentaram mais de uma vez implantar e difundir a Reforma.
A obra propagandista de Théodore de Bry com um conjunto de
textos e gravuras de autoria de viajantes protestantes, reunidos e
editados com o título de Grandes Viagens, (História da América ou
Novo Mundo), teve grande impacto na Europa. De Bry claramente
se engajou no conflito que dividia na época: os portugueses e
espanhóis católicos contra ingleses e holandeses protestantes.

Da seleção dos textos e das imagens à edição final, a obra


desmoralizava a colonização portuguesa e espanhola

29
Santa Rosa de Viterbo viveu na primeira metade do século XIII, época em que parte da Europa
atravessava um momento de crise em que os poderes da Igreja, representado pelo Papa e o poder
temporal pelo imperador se enfrentavam. Do lado da igreja uma crise de espiritualidade de grandes
proporções abria espaço para a formação das ordens mendicantes, um fenômeno a mais que a
urbanização provocava. Francisco de Assis se tornou um emblema deste tempo, ao assumir uma
vida apostólica e seguir as pegadas do próprio Cristo. Neste contexto de luta entre poderes tão
distintos viveu a jovem Rosa. Seus pais trabalhavam no mosteiro São Damião de Clarissas, em
Assis, fundado por Clara de Assis, que havia seguido Francisco e seus companheiros. Rosa
começara a se inspirar em Francisco desde muito cedo. Como ocorria naquela época aos que o
admiravam, ela buscava uma vida de oração e doação a Deus. Recusado. O mosteiro das Clarissas
onde Rosa foi enterada passou a se denominado de Mosteiro de Santa Rosa.
 
137
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

servindo a ação dos países protestantes. Ao oferecer aos


leitores conhecimentos e imagens surpreeendentes,
Théodore de Bry nutria a curiosidade daqueles que
desconheciam a América e ao mesmo tempo cumpria a
finalidade político-ideológica-religiosa que motivara a
coleção.30

As imagens, independente do suporte, sejam em azulejos ou


em gravuras, narram uma história, traduzem desejos, bravura,
medo, sentimentos que nem sempre aparecem de forma clara nos
documentos escritos, mas que podemos visualizar e, assim,
compreender melhor os momentos do passado.

Anexos

Figura 1. Igreja de Santo


Antonio, Cairu, Bahia. 

30
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. O inferno terrestre. O tempo das imagens e o tempo da
história. Revista VIS (UnB), v. 5, p. 100-112, 2006, p. 110.

138
Operários do evangelho

Figura 2: Santa Rosa de Viterbo


/Com Hábito Franciscano
esmagando com os pés o inimigo. 

Figura 3: Arquipélago de Cairu


– Bahia

139
 

Os historiadores:
seus feitios e seus limites
 
 

O elogio do contraditório.
Reflexões sobre a cronística de Zurara

Margarida Garcez Ventura

E
m 2015 celebraram-se os 600 anos da conquista de Ceuta.
Os herdeiros mais ou menos explícitos da consagrada
análise dirigida por Pierre Nora sobre “locais de memória”
multiplicaram colóquios e congressos, com proveito no
aprofundamento e alargamento de perspectivas, é certo. Eu mesma
retornei a Ceuta através do obrigatório regresso à Crónica da Tomada
de Ceuta por El Rei D. João I e à Crónica do Conde Dom Pedro de
Menezes:1 revisitação aliciante pela constatação de que textos,
conhecidos pela comunidade científica ao longo de muitos anos,

1
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I [CTC].
Publicada por Francisco Maria Esteves Pereira. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915;
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde Dom Pedro de Menezes [CDPM].
Reprodução fac-similada com nota de apresentação por José Adriano de Freitas Carvalho. Porto:
Programa Nacional de Edicões Comemorativas dos Descobrimentos Portugueses, 1988. São estas
as edições por nós utilizadas, muito embora tenham saído recentemente outras igualmente fiáveis.
 
 
143
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

podem revelar novidades. Todo o historiador tem experiência de


retirar do tesouro que é a documentação – passe a alusão ao
evangelho2 – “coisas novas e coisas velhas”. O segredo está no
questionário… e o questionário depende do historiador, que é o
homem e a sua circunstância, como diria Ortega y Gasset. Todos os
mestres o fazem… eu lembrarei somente as lições de Emíliio Betti,
Hans-Georg Gadamer ou Jacques Derrida.
Assim, trago-vos um breve exercício de Metodologia da
História articulado em torno de dois eixos: ao longo do processo
narrativo sobre a tomada e a manutenção da praça de Ceuta, Zurara
vai apresentando as justificações e as objecções a esse mesmo
projecto, através do uso do contraditório; os temas presentes, já
expurgados de debate, irão constituir-se em topos de memória e de
consciência nacional.

**

Aristóteles dizia que os historiadores narravam o sucedido e


não, como os poetas, o que poderia ter acontecido.3 Todavia,
considero que será pela abertura dada pelos poetas, isto é, por todos
quantos pensam para além do óbvio, que nos libertamos da análise
determinista dos acontecimentos.
Situamo-nos, pois, no patamar em que a filosofia se cruza com
a hermenêutica dos textos historiográficos para proclamar a
imponderabilidade do devir histórico. Será necessário trazer a jogo a
frase do poeta Manuel Bandeira “a vida que poderia ter sido e que
não foi”,4 assumida pelo grande historiador que foi Borges de
Macedo como forma de nos falar – a nós, jovens alunos do primeiro
ano da licenciatura no longínquo ano de 1967 – de alternativas, muito
para além das alternativas vencedoras. Finalmente, recorrendo a um

2
Mt. 13: 52.
3
ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Trad e notas de Ana
Maria Valente. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, 1451 a-b.
4
BANDEIRA, Manuel. Pneumotórax. In: Poesias completas. Rio de Janeiro: CEB, 1948.
 
144
O elogio do contraditório

filósofo kantiano,5 digo: “possível é o que a estrutura do real permite


que possa ser sem ter de ser”.
Zurara narra quão imponderável foi o percurso da empresa de
Ceuta, desde os momentos iniciais da hipótese de conquista, até às
dúvidas sobre a permanência na praça já tomada, passando pela
consideração dos meios humanos e financeiros para a expedição ou a
conveniência geoestratégica de tal decisão: a marca do imponderável
quotidiano manifesta-se pela presença do contraditório. Convém, no
entanto, questionar se esse contraditório transversalmente presente
na narrativa corresponde ou não à realidade dos factos. A resposta é
positiva, tendo em conta duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, e indo aos factos, vejam-se os momentos
que, pela sua própria natureza, incluem debate: pareceres solicitados
a letrados, reuniões do conselho régio ou encontros mais ou menos
formais convocados para esclarecimentos e consultas. Em paralelo, e
trazendo à colação outros testemunhos textuais, sabemos a
frequência com que D. João I – diríamos antes D. Duarte, com
presença activa na governança desde 1411 e que desenvolve o
método – solicita pareceres escritos sobre questões políticas. Zurara
diz-nos que, o ofício de reinar em Portugal na primeira metade do
século XV, se está, em última instância, confiado por Deus ao rei, não
dispensa a consulta e o debate: as decisões régias não desconhecem
opiniões diversas nem são aleatórias.
Podemos, pois, caminhar tranquilos sobre a narrativa de
Zurara. Ao constatarmos o registo inscrito deste método de
governança, percepcionamos a profundidade do cronista em termos
do que agora apelidamos de filosofia política, com conhecimentos de
João de Salisbury e de Egídio Romano,6 entre outros, aplicados à
análise concreta dos acontecimentos.7 Repare-se na nossa insistência
no contraditório: é o próprio Zurara que usa o conceito, retirado do

5
BRITO, António José de. O possível e o real. Filosofia: revista da faculdade de letras da
Universidade do Porto. Porto, v. II, p. 71-92, 1994, p. 92.
6
CARVALHO, Joaquim de. Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara. In: Obra Completa.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. v. II, p. 185-340.
7
Tornam-se assim irrelevantes acusações com que a uma alegada historiografia, que ainda faz
escola, o arruma como cronista menor pela alegada falta de objectividade por obediência aos
interesses do seu mentor, o infante D. Henrique.

145
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

testemunho de D. João I sobre o seu comportamento na relação com


os outros poderes em diversas situações de governança.
É chegada a altura de levar os leitores para um primeiro
contacto com as supracitadas crónicas de Zurara, começando pela
fundamentação do título do presente trabalho: o elogio do
contraditório. Sigamos a sequência da Crónica da Tomada de Ceuta.
Após um encontro com João Afonso, Vedor da Fazenda, os infantes
D. Duarte, D. Pedro, D. Henrique e o bastardo D. Afonso solicitam
uma audiência a seu pai.8 Depois de ouvir as suas razões em prol da
conquista, o cronista diz que D. João I, “cujo coraçam nom se mouia
assi ligeiramente começou de se rrijr contra eles mostrando que tinha
em jogo suas palavras, como ante fezera a Joham, Affonso”, o qual,
segundo ele, fora o primeiro a alvitrar a expedição. Os infantes
insistem várias vezes até que, a pedido do pai, levam à sua
consideração, após alguns dias de ponderação, três razões bem
fundamentadas, pedindo-lhe resposta.
Zurara esclarece que D. João I protelava dar o seu
consentimento, não porque estivesse em desacordo, mas sim para
testar e incrementar o propósito dos infantes. Explica-nos, assim, a
estratégia do monarca e dele, enquanto narrador: “Porque as
duuvidas trazem muitas vezes azo pera que a cousa seja milhor
entendida, e por ello tem os velhos mestres em custume de mouerem
grandes e muitas questões aos seus nouos desçipollos porque o
trabalho que elles tomam a buscar as prouações traz sua sabedoria”.9
Assim procedia D. João I, e Zurara não deixa escapar esta
fundamental informação sobre o modo de governança do rei: neste
caso, esclarecer o porquê e o para quê através do contraditório,
fazendo acertado uso da Lógica ou da Dialética segundo o método
disputativo então em voga no ensino das Súmulas Lógicas de Pedro
Hispano, que conhecia.10 Note-se a não coincidência com a descrição
das relações entre os infantes e o pai, tal como foi descrita por D.

8
CTC, cap. 9, p. 24-26.
9
CTC, cap. 10, p. 28.
10
CARVALHO, Joaquim de. Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara. In: Obra Completa, p.
188.
 
146
O elogio do contraditório

Duarte aos infantes de Aragão:11 a imagem de completa submissão à


autoridade paterna não corresponde à realidade, pois mesmo em caso
grave como este (ou por isso mesmo), D. João I promove o diálogo
crítico, instigando os infantes a demonstrarem o fundamento das
respectivas posições.
É, pois, um método de governança que se vislumbra logo no
início do processo de decisão, assim como no do processo narrativo.
Tal método volta a ser reconhecido no conselho que o rei convoca
sobre a guarda da cidade recém-conquistada: Zurara coloca-o na
alocução introdutória por ele proferida. D. João I faz o historial das
razões que os infantes lhe tinham trazido e acrescenta que, embora
estas fossem muitas e de peso, ele ponderara “sempre muy bem
todollos comtrairos que podiam empachar nossa uitoria”.12 Aliás, os
próprios conselheiros iriam testemunhar que D. João I não tinha por
hábito ignorar opiniões contrárias à sua, sendo isto referido pelos
próprios como marca da sua governação: “Por quamto, senhor,
conheçemos de uossa uoomtade que he sempre seerdes comsselhado
em todallas cousas, e que uos nom despraz de uos serem ditas
quaaesquer cousas, que homem semta comtra uosso propósito”.13
Zurara expõe-nos seis anos pontuados por conselhos régios
ou simples encontros: um primeiro com os infantes (desdobrado em
duas sessões, a primeira da qual acabámos de referir); com
confessores e letrados; com o Vedor da Fazenda e com o Prior do
Hospital (que haviam sido enviados em missão de espionagem); com
D. Filipa; com o Condestável; com alguns conselheiros mais velhos
(o chamado conselho de Torres Vedras); de novo com os infantes,
que, por sua vez, convocam um pequeno grupo de catorze
conselheiros num vai e vem entre Lisboa e Alhos Vedros (onde o rei
se encontrava fugindo à peste); com os capitães da frota
expedicionária, uma e outra vez; na cidade recém-conquistada com
os que chamou para o aconselharem.

11
Trata-se da carta guardada entre os papéis de D. Duarte e incluída no Cap. 98 do Leal
Conselheiro. Cf. D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa).
Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, [18.], p. 100-113.
12
CTC, cap. 97, p. 257.
13
CTC, cap. 98, p. 259.

147
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Não faltam enaltecimentos ao projecto de conquista, como


não faltam, expostas em rigoroso paralelismo, dúvidas e objecções.
Dúvidas e objecções apresentadas com clareza, pois – atenção! – é o
próprio rei que suscita opiniões contrárias. Por isso, a decisão régia
não surge como arbitrária ou incompreensível para aqueles que
devem concordar com ela e se devem colocar ao seu serviço, com suas
almas, corpos, gentes e dinheiro…
Zurara dá-nos, pois, uma narrativa dinâmica com registo das
perplexidades e objecções e, portanto, das alternativas presentes, as
quais se movem desde a questão mais teórica ou teológica (saber se a
empresa era ou não serviço de Deus) à mais concreta contabilidade
de dinheiro, navios, homens, armamento e abastecimento
necessário, passando pela conveniência de controlar a nobreza
(impedindo «uniões» ou saídas do reino para serviço bélico em reinos
estrangeiros). O contraditório surge, pois, na governança de D. João
I, como método para fundamentar a alternativa escolhida.
Entremos na exposição das dúvidas e objecções que suscitou
a empresa de Ceuta, em paralelo com as soluções encontradas.
Embora este levantamento sistemático, muitas vezes repetitivo,
possa resultar fastidioso, a insistência nos temas e até na
argumentação e contra-argumentação faz parte do estabelecimento
de linhas de memória.
Como atrás ficou dito, os infantes decidiram confrontar o pai
com o propósito da conquista de Ceuta, mas D. João, aparentemente,
não se deixa convencer e pede-lhes que fundamentem o seu
propósito. Eles invocam, em primeiro lugar, o serviço de Deus;
depois, tendo no horizonte a recente luta contra Castela, louvam uma
guerra que seria travada por iniciativa própria e não para defender o
reino, e que seria o “selo firme” nas passadas vitórias; finalmente,
afirmam querer ser armados cavaleiros, não em festas, como tinha
sido pensado, mas numa conquista, sendo Ceuta a única praça
disponível.
O rei considera as razões dadas pelos infantes “justas e
rrezoadas”, porém disse: “eu tenho ajnda outros contrairos pera vos
rresponder”.14 Tratava-se de saber, sem qualquer dúvida, se a

14
CTC, cap. 10, p. 30.

148
O elogio do contraditório

conquista seria ou não serviço de Deus e, para completo


esclarecimento, mandará chamar os seus confessores e outros
letrados. Podemos nós duvidar da dúvida… Todavia sabemos,
porque Zurara nos diz logo no começo da Crónica da Tomada de
Ceuta que há “neisçeos e couardos”15 que não admitem que a guerra
contra os mouros é a melhor obra que um rei cristão deve praticar.
D. João I não duvidaria. Mas segue o seu método: deseja as razões a
favor da guerra expostas com clareza, e bem fundamentadas.16 O seu
pedido foi precedido por considerações também elas repetidas ao
longo das crónicas: que a guerra contra cristãos nunca lhe
proporcionara qualquer “alegria” e que só avançará se tiver a certeza
de que é serviço de Deus.
O franciscano Frei João Xira, o dominicano Frei Vasco
Pereira, assim como os principais letrados, a que se juntou o infante
D. Duarte, vasculharam Direito Romano e obras dos glosadores, a
Sagrada Escritura e livros de história. A resposta será dada
rapidamente e é clara: com base em crónicas antigas e na Sagrada
Escritura, D. João I, não só pode, mas deve guerrear os infiéis, na
sequência dos guerreiros israelitas do Antigo Testamento e
retomando a linhagem e os propósitos dos santos reis visigodos da
reconquista peninsular, aos quais Santiago apareceu. O rei manda
que os letrados passassem a escrito o parecer emitido para o poder
ver “com alguũ assessego e rrepouso”.17
Aqui não existe contraditório, ou seja, este pedido seria já a
resposta às objecções que sabemos existir, nomeadamente entre os
seguidores de Raimundo Lúlio e de que fará eco o parecer do infante
D. João nas vésperas da expedição a Tânger.18 Começa um longo
caminho de contrários. Para começar, D. João I considera que,
mesmo quando as “cousas som boas e desejadas em alguũas
uoomtades dos homees”, pode não existir o “poderio pera as
poderem acabar”.19 Os contrários são, agora, sobre a conveniência e

15
CTC, cap. 4, p. 15.
16
CTC, caps. 10, 11 e 12, p. 30-42.
17
CTC, cap. 12, p. 38.
18
D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), [6.], p. 43-86.
19
CTC, cap. 12, p. 38.
 
149
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

a capacidade efectiva para levar a empresa a bom fim. D. João I vai


colocá-los à consideração dos filhos,20 sistematizando-os em cinco
pontos. Em primeiro lugar, o dinheiro necessário, que ele não tinha
nem sabia onde consegui-lo sem escândalo do povo e quebra do
segredo necessário. Em segundo lugar, Ceuta é longe, e tudo o
necessário para o combate – gente do reino e estrangeira, armas,
artilharia, mantimentos – teria de ser transportado numa grande
frota, que ele não tinha nem sabia como obter. Em terceiro lugar, a
escassez de homens e a impossibilidade, por falta de dinheiro, de
contratar gente de fora do reino; por outro lado, a pouca segurança
nas tréguas assinadas com Castela, que logo aproveitaria o
desguarnecimento das frontarias e, se quisesse guarnecê-las, ainda
teria menos gente para levar na expedição. Em quarto lugar, que a
conquista de Ceuta enfraqueceria o reino de Granada, o qual seria
facilmente tomado pelos castelhanos. Livres desse inimigo
constante, os castelhanos estariam aptos para entrar novamente em
guerra com Portugal. Em quinto lugar, a dúvida que o rei considera
mais relevante: como manter e defender a cidade conquistada, tendo
em conta que os mouros da região não deixariam de flagelar os que lá
ficassem, que viriam ao reino do Algarve e que também
prejudicariam todo o comércio no mediterrâneo.
As dúvidas situam-se, pois, não na razão abstracta do
“serviço de Deus”, mas nas condicionantes e nas consequências de
ordem logística e geopolítica. D. João interpela novamente os
infantes: “e sse per uemtura alguũ de uos emtemder que estas
duuydas nom som justas nem rrazoadas, mostreme o contrayro, e eu
lho conheçerey segumdo for dereito e rrezam”.21 Os infantes que,
segundo Zurara, receavam que D. João I negasse o seu
consentimento ao projecto, acolhem o repto e começaram a trabalhar
“sobre os comtrairos que perteençiam aaquellas rrezoões”.22 Falaram
entre si e respondem ao pai, demostrando a possibilidade de concitar
meios e gentes necessários para acudir a todas as necessidades
inventariadas.

20
CTC, cap. 12, p. 38.
21
CTC, cap. 12, p. 42.
22
CTC, cap. 13, p. 42.

150
O elogio do contraditório

Em boa verdade, o fundamento da esperança em futuros


sucessos está na evocação dos “mujtos e gramdes feitos” do passado,
para os quais não tinha dinheiro suficiente: bastou-lhe a ajuda de
Deus. Foi este o argumento final do infante D. Henrique, chamado
à parte para debater as quarta e quinta objecções:23 a graça de Deus
torna o passado penhor do futuro, isto é, todo o processo da subida
ao trono do mestre de Avis, maiormente as vitórias militares contra
Castela, fundamentam a esperança do futuro, tanto mais que se trata
do “serviço de Deos e uossa gramde ffe e cristijmdade”. O infante D.
Henrique, que trazia de nascença as marcas da cruz, cita o salmista:24
“pois que o Senhor he na minha ajuda, nom temerey cousa que me
faça o homem”.25
D. João assume a ajuda divina mesmo no que concerne à
futura manutenção da praça, dizendo: “quero eu leixar de todo ao
Senhor Deos, que assy como elle he poderoso pera fazer do pouco
mujto, e de pequenas cousas mujto gramdes”.26 Os contrários são
desmontados por esta insistência na ajuda divina, que converte o
pouco em muito, permitindo que se façam grandes coisas com
poucos meios… à imagem do camelo, que D. João teria mandado
bordar numa tapeçaria. Mas depois, já com os “feitos começados”,27
nomeadamente o reconhecimento (secreto) da costa de Ceuta com
vista ao futuro desembarque,28 D. João I chama os infantes e diz que,
antes de continuar, terá de resolver ainda “dous muy gramdes
jmpedimentos”:29 obter o consentimento da rainha D. Filipa e o do
Condestável: as objecções expectáveis que se transformarão em
incentivos e reforçarão o projecto.
No que dizia respeito a D. Filipa, os infantes temiam que, por
ser mulher, não poderia consentir qualquer perigo para os seus
filhos; quanto ao Condestável, era um homem velho, que finalmente
descansava dos muitos trabalhos da sua juventude, e, mais ainda, não
quereria apoiar uma empresa de resultado duvidoso que pudesse pôr

23
CTC, cap. 14, p. 46.
24
Sl 118:6; 27:1; 84:11
25
CTC, cap. 14, p. 47.
26
CTC, cap. 14, p. 48.
27
CTC, cap. 19, p. 60.
28
CTC, caps. 16, 17 e 18.
29
CTC, cap. 19, p. 60.

151
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

em causa proveitos e honras bem merecidos pelos feitos do passado.


Os infantes foram falar com a mãe… contaram a história começando
pela conquista em alternativa às “festas e comuites” por ocasião do
recebimento do “estado de cavalaria”. Disseram que temiam que o
amor de mãe – o qual sentia “segumdo a condiçom das outras
molheres” – a impediria de apoiar qualquer trabalho que pusesse em
perigo as suas vidas. Ora, a rainha fundamenta a sua opção em
sentido oposto, exactamente nesse amor e na certeza de que
honrariam a linhagem de que descendiam.
A reversão do comportamento expectável numa mãe é, aliás,
explicada por D. Filipa ao marido, quando lhe solicita completo
apoio ao projecto de Ceuta.30 Todavia, a rainha não concorda com a
presença pessoal do monarca na expedição: porque já tinha ganho
todas as honras que poderia ganhar, porque tem já perto de 52 anos,
porque deveria gastar o tempo que lhe restava de vida no
“corregimento” do reino e no cuidado da sua alma… D. Filipa alerta
ainda para o perigo de se envolver numa guerra que, como todas, se
sabe como começa, mas não como vai acabar. Por isso, deveria
consentir que os filhos fossem na expedição, mas deveria ficar no
reino para o caso de ser necessário acudir a uma eventual derrota. D.
João I responde, e Zurara regista, não só com os argumentos já
referidos anteriormente, mas quase com as mesmas palavras: tinha
sujado os braços no sangue de cristãos, tinha morto ou dado ordens
para que matassem muitos homens, e não existe outra penitência,
orações várias ou esmolas avultadas que o redimissem, senão lavá-
los no sangue dos infiéis. O rei aplica a este caso a doutrina da
penitência canónica, dizendo eu não há melhor esmola do que o
dinheiro gasto na expedição e que não há melhor oração do que
aquela que se há-de fazer nas casas onde até então se adorava
“Mafamede, cuja alma […] he sepultada nas fumduras do
jmferno”.31 A rainha fica convencida e o rei oculta-lhe a decisão de
participar na campanha, para não a preocupar.32

30
CTC, cap. 20, p. 62 ss.
31
CTC, caps. 20, p. 65.
32
CTC, caps. 21, 37 e 38.
 
152
O elogio do contraditório

D. João começa os preparativos para a frota, mas devagar,


pois insistia em obter o consentimento do Condestável. Como era
necessário manter o segredo da empresa, foram usados vários
expedientes para ele e os infantes se encontrarem com D. Nuno,
então no Alentejo.33 Logo que o rei comunica ao Condestável o que
estava em causa, ele declara ter a certeza de que a inspiração para a
empresa de Ceuta só poderia ter origem em Deus, o qual desejava
receber do rei esse “tam espiçiall serviço”. Assim sendo, não é
necessário “escoldrinhar”, isto é, não convém mais esmiuçar,
duvidar, debater. Não pesou na sua adesão o facto de ser velho e
muito menos, como os infantes suspeitavam, estar indisponível para
arriscar sossego, dinheiro e prestígio. Daí em diante D. João acelerou
os preparativos distribuindo tarefas aos infantes.34 Tinham passado
cerca de três anos desde que o projecto da conquista fora
imaginado.35 O rei, reconhecendo que faltava o envolvimento dos
seus conselheiros, marca o “ajumtamento” de alguns do seu conselho
para Torres Vedras, pelo São João.36
Tendo em conta que estamos a fazer o levantamento dos
debates havidos, bem podíamos prescindir desta reunião, pois o
Condestável converteu-a num simples encontro para comunicar o
facto consumado da intenção de conquista e para ordenar a
cooperação dos presentes. Porém, ela serve-nos, exactamente, pela
anulação do debate e vale pela presença do que se vai tornando a
matriz do discurso justificativo, não só desta conquista, mas das
futuras expedições ao Benamarim. Conhecemos os nomes da maior
parte dos conselheiros, homens de grande confiança do rei e que o
tinham servido desde os primeiros tempos. Mas D. João, que estava
ciente de que alguns poderiam levantar certas dúvidas pelos grandes
perigos previstos e até por falta de coragem, combina com D. Nuno
a forma de antecipar qualquer oposição. Este não julga conveniente,
sequer, que haja lugar a debate, mas sim que o rei esclareça que a
reunião tem por finalidade comunicar a sua resolução e não lhes

33
CTC, cap. 22.
34
CTC, cap. 23.
35
CTC, cap. 24.
36
CTC, cap. 25.
 
153
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

solicitar parecer: dos conselheiros o rei só desejará colaboração sobre


a melhor forma de efectuar a conquista. E, contrariamente ao
costume instituído nos começos do reinado, segundo o qual os menos
importantes passaram a intervir em primeiro lugar,37 D. Nuno pede
para ser ele a abrir a reunião, pois o seu discurso será tal que ninguém
o poderá contradizer. Em paralelo, a forma por que foram dispostos
os lugares para construirem a imagem de uma “monarquia
preeminencial”,38 o facto de o ajuntamento se iniciar com a
celebração da missa do Espírito Santo poderá significar, não só o
apelo aos Seus dons, mas quiçá a vinculação de D. João I e do reino
com a Sétima Idade do Mundo, da qual um dos parâmetros é a
conversão dos infiéis.39
Aos conselheiros pediu o rei absoluto segredo ajuramentado
sobre o lenho da cruz e sobre os Evangelhos.40 Zurara avança com a
exposição das razões do projecto, as quais seguem uma quase-matriz
que Zurara vai consignando: a intenção primeira da conquista de
Granada; a vontade de paz perpétua com Castela, pois, apesar da
guerra travada, nunca desejara outra coisa, pois eram cristãos; o
esclarecimento que buscara sobre se a empresa era serviço de Deus;
a ideia de conquistar Ceuta como sendo de inspiração divina, o
segredo que guardou até estar seguro de poder superar as
dificuldades do projecto. Com esta certeza convocara aqueles
conselheiros, homens que tinham estado com ele nos seus “primeiros
trabalhos”.41 O rei diz-lhes que os convocara para os fazer
participantes nos méritos, que ele ganhará para a salvação da sua
alma, para ouvir os seus conselhos e, finalmente, para lhes ordenar
que providenciem as coisas necessárias para a expedição. O primeiro
a falar não será D. Duarte, como era regra, mas sim o Condestável,

37
CTC, cap. 27.
38
ALBUQUERQUE, Martim de. O Poder Político no Renascimento Português. Lisboa: Instituto
Superior de Ciências Sociais e Politica Ultramarina, 1968, p. 278; Vd, o conceito de reis como
“monopolistas do poder” em: ALBUQUERQUE, Ruy de; ALBUQUERQUE, Martim de.
História do Direito Português (1140-1415). 10ª ed. Lisboa: Pedro Ferreira, 1999. v. I, p. 51.
39
Cf. VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa: um estudo de mitologia política
(1383-1415). Prefácio de Martim de Albuquerque. Lisboa: Edições Cosmos, 1992, p. 97-98.
40
CTC, cap. 26.
41
CTC, cap. 26, p. 80.
 
154
O elogio do contraditório

segundo tinha sido combinado. Como dissemos, D. Nuno corta


qualquer hipótese de contestação classificando o assunto em causa
como tão extraordinário – um “feito ao Senhor, e he maravilhoso
amte os nossos olhos” –,42 de tal forma que não se lhe aplicavam
quaisquer normas.
O discurso do Condestável gira em redor da inspiração divina
da empresa, sem qualquer paralelo com outra conhecida: trata-se de
um feito que “soomente perteeçe ao seruiço de Deos e saluaçam das
almas”,43 e cujos encargos e preocupações deverão ser deixados a
Deus. Finalmente recupera a menção ao serviço que, no passado,
prestara ao rei, para declarar que o servirá da mesma forma. Após o
discurso do Condestável, e após o beija mão real e a anuência dos
infantes, os conselheiros foram convidados a falar, mas nenhum
ousou fazê-lo e muito menos contradizer os fundamentos da
expedição. João Gomes da Silva, que era homem corajoso e amigo de
brincar, levantou-se e disse: “Quamto eu senhor […] nom sei que
diga ssenom rruços aalem”,44 isto é, que embarquem os homens de
cabelo branco. Todos se riram e terminou o conselho, cujo
contraditório fora prevenido…
Os preparativos prosseguiam a bom ritmo e Zurara escreve
como desejaria chegar ao fim da narração da vitoriosa conquista sem
nenhuma sombra de tristeza. Mas a cega fortuna não o quis.45 Um
triste acontecimento vem questionar a certeza basilar da expedição,
isto é, que era vontade de Deus. A frota já estava pronta a partir
ancorada no Restelo, quando chega a notícia da doença da rainha. A
peste grassava no reino, pelo que qualquer doença ficava logo sob
suspeita. Neste caso era certo que a rainha contrairia peste, sem que
nenhuma das muitas costumadas mezinhas surtisse efeito.
Zurara testemunha que a rainha, no seu leito de morte,
declarara que assistiria “no alto” à partida da frota no dia de Santiago,
dali a uma semana.46

42
CTC, cap. 27, p. 81.
43
CTC, cap. 27, p. 81.
44
CTC, cap. 27, p. 83.
45
CTC, cap. 37.
46
CTC, cap. 44, p. 135.
 
155
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Este desejo quase profecia é significativo para esclarecer o


desfecho do último grande debate antes da partida da expedição, o
qual surge da interpretação do significado da morte da rainha e dos
acontecimentos que a antecederam.47 Conhecida a doença de D.
Filipa, todos os que estavam na frota se vestiram de luto e retiraram
todos os “arreos” das galés e outros navios. Surgiram fortes dúvidas
sobre continuação do projecto, fundamentadas no que consideravam
ser “tres synaees” de Deus: a peste, que há oito meses grassava em
Lisboa e no Porto; o eclipse total do sol durante duas horas, alguns
dias antes da morte da rainha; finalmente, a morte de D. Filipa,
vítima daquela epidemia.
Perante isto, os infantes consideram ser necessário repensar o
projecto e concordaram ir falar com D. João, então em Alhos Vedros.
A narrativa de Zurara transmite-nos a urgência: “a quall cousa loguo
em aquella noute seguimte poseroam em obra, ca pouco mais de mea
noute mamdarom fazer prestes os batees e sse foram a Alhos Vedros,
em tall guisa que quamdo era manhã estauam com seu padre”.48 Os
infantes chegam junto de seu pai, que estava acompanhado pelo
infante D. Afonso (o filho bastardo) e por Gomes Martins de Lemos,
homem da sua confiança. D. João invocou somente o seu desgosto
pela morte da esposa, e logo, dirigindo-se ao herdeiro, D. Duarte,
remete a decisão para os infantes e para homens do conselho.
Os infantes regressaram rapidamente ao Restelo e
convocaram os conselheiros disponíveis. Ao todo, contando com
eles, catorze homens. Zurara mostra-nos a divisão de opiniões: os
três infantes (D. Fernando, com treze anos, não conta) e quatro do
conselho eram a favor da continuação do projecto; os outros
opinavam o contrário.
Vejamos as razões das duas partes recolhidas por Zurara. Os
que opinavam pela prossecução do projecto argumentavam: com o
dispêndio de meios já realizado, meios tão custosamente
conseguidos; que a conquista era, indubitavelmente, serviço de Deus
e como tal se matinha; que a morte da rainha não constituía
impedimento, tanto mais ela era somente uma mulher cuja falta não

47
CTC, cap. 47.
48
CTC, cap. 57, p. 145.

156
O elogio do contraditório

tinha mais consequências do que tristeza; que a expedição era


conhecida em todo o mundo, e que todos esperavam notícias dela,
sendo grande vergonha quando se soubesse o motivo do
cancelamento.
Os que se opunham perguntavam como era possível a
expedição ser serviço de Deus e Ele enviar “tam manifestos synaees”,
de que destacavam a peste, a qual muito rapidamente contagiaria
toda a frota e, talvez, pessoas cuja morte seria grande perda para o
reino; e sem dúvida que Deus demonstrou quão importante seria o
sustentáculo das orações de D. Filipa, pois enviou sinais aquando da
sua morte; acresce ainda que, por causa da morte da rainha, se tinham
descurado alguns preparativos, os quais necessitariam cerca de um
mês para serem cumpridos, o que atiraria a partida para finais de
agosto, “que he já começo do jmuerno”.49
Zurara informa que “sobre estes dous contrairos ouue em
aquelle comselho muy grande debato” e que alguns dizem que o
infante D. Pedro respondeu mais asperamente do que devia ao
condestável D. Nuno, que se opunha à partida. Contudo, Zurara
duvida da verdade deste episódio… e nós também. Zurara julga que
as ásperas “reezoões” de D. Pedro não tinham sido verdadeiramente
dirigidas a D. Nuno, mas para antecipar “alguũ prasmo” por parte
daqueles que defendiam o cancelamento da expedição.50
Nesse mesmo dia o conselho deliberou e à noite os infantes
voltaram a Alhos Vedros.51 Mas, como todos eles eram da mesma
opinião, os opositores pediram que fossem também três conselheiros
da opinião contrária. Os infantes concordaram e logo pela manhã já
estavam junto do rei. O infante D. Duarte deu conta das objecções a
respeito da insistência na partida, com mais pormenores e clareza –
segundo Zurara – do que os que tinham sido encarregues de o fazer.
Zurara insiste na forma como D. Duarte desempenhou a missão de
ser porta voz da opinião contrária à sua e à dos outros infantes; dá
também notícia de que D. Duarte lhes perguntara se tinham algo a

49
CTC, cap. 57, p. 146.
50
CTC, cap. 47, p. 146.
51
CTC, cap. 48.

157
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

acrescentar, ao que eles tinham respondido que não teriam dito


melhor o que pretendiam.
Seguiu-se a exposição, também feita por D. Duarte, das
razões dos que insistiam na manutenção do projecto. D. João ouviu
e logo, simbolicamente, destapou a cabeça que trazia coberta em
sinal de luto. A intervenção régia fixa-se na maior causa do recuo de
parte do conselho: a morte da rainha e outros fenómenos adjacentes,
lidos como sinais de que Deus não favorecia o projecto. O rei agarra
os sinais interpretados como admoestações para o cancelamento da
expedição e transforma-os em sinais instigadores: convém que vão
purgados de todos os pecados pelas provações a que os submeteu e,
mais ainda, porque é sabido que a alegria se converte em tristeza e a
tristeza em alegria. Admite que, na realidade, que a perda de D.
Filipa não fez outro dano senão “huũa suydosa nembramça”; mas
acima de tudo, está certo que a sua alma, livre da “miseruell casa que
he a carne”, “sollta deste corporall carçer”, poderá mais livremente
“comtemplar na diuinall majestade”, intercedendo pela vitória.52
Assim, o rei decide prosseguir, com a graça de Deus, pois de outra
forma não lhe parece fazer o que deve fazer.
Tomada a decisão, que muito agradou aos infantes, só restava
resolver a dúvida posta pela parte contrária no que tocava a finalizar
os preparativos para a saída, que diziam demorar um mês.53 Mas o
infante D. Henrique, que fora encarregue de toda a logística,
responde à pergunta do rei afirmando que tudo está pronto: “a mayor
deteemça sera em alleuamtar as amcoras e aparelhar as uellas”.54
Assim sucedeu ao fim de três dias. Por ordem do rei os infantes e
todos os outros tiraram o luto e a frota foi novamente engalanada.
Zurara descreve a alegre azáfama daqueles dias e daquelas
noites na praia do Restelo e em Lisboa. Mas, a par disso, o cronista
não cala os “desuayrados juízos” que se ouviam entre o povo, que se
mantinha fiel aos sinais que atrás mencionámos.55 No dia 24 de julho,
véspera da festa de Santiago (recorde-se que é o santo intercessor na

52
CTC, cap. 48, p. 149.
53
CTC, cap. 49.
54
CTC, cap. 49, p. 149.
55
Sobre a suspeita lançada sobre o Prior do Hospital vd. infra, n. 41.
 
158
O elogio do contraditório

luta contra os mouros) o rei mandou que se desfraldassem as velas, e


logo navegaram a caminho da foz do Tejo.56 Foi somente na baía de
Lagos que foi divulgado o destino da expedição, no sermão do
franciscano mestre Frei João Xira.57 Retomando o topos do
arrependimento por terem lutado contra cristãos, louva o projecto de
ir conquistar Ceuta para que, de novo, fosse cristã, insistindo
também num tema que se tornará recorrente: a primazia da
conquista portuguesa relativamente a todos os reinos da Hispânia.
Em seguida, foi publicada a bula de cruzada.58
A viagem sofreu vários reveses, devido a ventos e correntes
que afastaram a frota da rota, empurrando-a para Málaga. Zurara diz
que na frota havia a forte convicção de que voltariam para Portugal;
testemunha também que existiam “desuairadas departições”, que
agora incluíam, mais abertamente, as suspeitas sobre o Prior do
Hospital:59 quem sabe se Álvaro Gonçalves Camelo, do qual, diziam,
partira a ideia da expedição, não fizera conluio com Sâlah ben Sâlah,
aquando da ida à Sicília, para entregar todos portugueses como
prisioneiros e depois os resgatar por bom preço? Não importa aqui
aprofundar esta grave suspeita a qual, pelos vistos, seria verosímil, e
que nos pode fazer alguma luz sobre as acções dos hospitalários no
mediterrâneo. O que interessa é a dúvida lançada sobre a autoria e as
intenções de quem convencera o rei e os infantes a conquistar a praça.
Mas outros, na mesma linha das suspeitas sobre o Prior, afirmavam
que “elRey nam he paruo” e que o assunto não é nenhuma
brincadeira, pelo que, a seu tempo, estavam certos que lhe daria um
castigo exemplar.60
D. João convoca mais outro conselho para deliberar sobre o
futuro da expedição. Zurara conta que o conselho estava “partido em
três partes”: uns diziam que se deveria voltar a rumar a Ceuta; outros

56
CTC, cap. 50.
57
CTC, cap. 52. Cf. VENTURA, Margarida Garcez. O Algarve nos primórdios da Expansão: um
sermão milenarista em lagos (12.VII.1415). Sep. da Revista da Faculdade de Letras, n 8, Lisboa,
1987 e nas Actas das IIIªs Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia, Loulé, 1992.
58
CTC, cap. 53.
59
Vd. MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins. 1415, A Conquista de Ceuta: O
relato empolgante da última grande vitória de D. João I. Barcarena: Manuscrito, 2015, p. 40.
60
CTC, cap. 52, p. 180.
 
159
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

opinavam que se deveria tomar Gibraltar; outros, que se deveria


voltar para Portugal.61 No primeiro grupo estavam os infantes, que
lembraram ao rei: como seria vergonhoso para o reino abandonar o
projecto; como tal demonstração de fraqueza poderia incitá-los a
intensificarem as acções de corso às costas do Algarve; por fim, o
argumento máximo que era a certeza de que a expedição fora
ordenada por Deus para Seu serviço, de tal forma que o rei tinha
desprezado “tantos contrairos” que se lhe “ofereçiam no começo”
daquele feito. Os infantes reiteram a certeza da ajuda divina para
acabar o feito começado. Os que alvitravam a tomada de Gibraltar
faziam-no enaltecendo a envolvência estratégica da cidade de Ceuta,
de forma a minorar a capacidade de coligação de outros “mouros
dAfrica”, o que sucederia quando pusessem cerco a Ceuta. Além
disso, diziam, não tardava o inverno.62
Zurara expõe ainda as razões dos que queriam voltar para
Portugal.63 Declaram que já “forom falados muitos contrairos”, mas
que ainda ninguém mencionou o que sucederia após o cerco: quanto
tempo demoraria? Como convencer os donos dos navios a
permanecerem fora das suas terras, com tantas mercadorias que têm
para transportar? Afirmam que bastará que D. João reconsidere
todos os “casos contrairos” já apresentados para perceber que “he
casi jmpossiuel” acabar o projecto. Quanto a Gibraltar, estes
mesmos afirmam que seria causa de rompimento com o rei de
Castela, interferindo numa zona que era de “sua conquista”. Por
isso, concluem que se deveria regressar a Portugal.64
O rei declarou querer protelar a resposta e mandou que a frota
rumasse à Ponta do Carneiro. Zurara afirma que os que desejavam o
regresso ao reino ficaram muito contentes, sem pensar sequer em
quantos trabalhos e despesas se perderiam, acabando tudo em
grande desonra ao rei e ao reino. Segue-se aí outro conselho, para o
qual foram chamados os que nele tinham assento.
No plano da relação entre rei e poderes não é despicienda a
gestão do espaço. Aqui, depois de desembarcar, o rei senta-se no

61
CTC, cap. 52, p. 181.
62
CTC, cap. 52, p. 182.
63
CTC, cap. 63.
64
CTC, cap. 53, p. 184.

160
O elogio do contraditório

chão, e todos à sua volta, para “rresponder a todo o que me fallastes


açerqua e meus feitos”. Começa pelos que desejam o regresso ao
reino, segue com os que sugeriram a conquista de Gibraltar. A
verdade é que dá respostas intencionalmente muito contidas,
enquadrando bem o fundamento de prosseguir a expedição. Zurara
regista:

abreuiando as çircunstamçias dos comtrairos, que sse


açerqua dello poderiam acarretar, declaro que minha
uoomtade he o dia de oje a Deus prazemdo seer sobre a
çidade de Cepta e de manhaã filhar terra, e dahi em diamte
prosseguir minha emtemçom, ataa que a Deos traga aaquella
fim que sua merçee for.65

Assim, embora a maioria dos do conselho considerassem a


viagem perigosa, não tiveram palavras para “a comtradizer, depois
que uiram determinadamente a uoomtade delRey” e dos infantes.66
Ergue-se, porém, outra contenda, agora “sobre o
desembarcar daquella frota”, isto é, sobre o local do arraial.67 D. João
I define a estratégia e entrega ao infante D. Henrique o comando dos
primeiros a desembarcar. Entre o aparato de citações de autores
clássicos e do Antigo Testamento, entre a invocação do favor divino
em anteriores lutas com os cristãos, como penhor da esperada vitória
contra os infiéis, Zurara descreve a táctica do assalto e progressão na
praça, depois de proclamada a bula de cruzada.68 A cidade foi tomada
a 21 de agosto da era de Cristo de 1415. A empresa foi um êxito e D.
João deu a notícia, primeiro ao alcaide de Tarifa com a incumbência
de a divulgar por toda Castela; depois, ao mundo, no concílio de
Constança, a 5 de junho de 1416;69 meses antes, com toda a carga

65
CTC, cap. 63, p. 185.
66
CTC, cap. 64, p. 185.
67
CTC, cap. 64, p. 185.
68
CTC, cap. 71.
69
Liber Gestorum Concilii Constanciensis. Livro de Arautos: de ministerio armorum. Estudo
codicológico, histórico, literário, linguístico por Aires do Nascimento.Lisboa: [s.n.], 1977, p. 330.
 
161
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

simbólica que isto envolve, tinha acrescentado à sua titulação


“Senhor de Ceuta”.70
Cumpria consolidar a vitória militar. Mas antes, e de novo, se
ergue a dúvida sobre a permanência na praça. De facto, logo no início
do processo, fica bem claro que se tinha a certeza da dificuldade, mas
que a dificuldade gera mais honra.71 E, como vimos, essa dúvida
surge, fundamentada, em diversas ocasiões. Conquistar e ficar: ser
capaz de manter a conquista é o que D. João pede a Deus, logo na
noite da vitória;72 apesar das óbvias dificuldades de defesa, como
teriam afirmado os mouros vencidos.73
A par com as várias acções que se seguiram à conquista,
continuaram as conversas e as “desuairadas opiniões” acerca da sua
manutenção.74 Para esclarecer este assunto D. João reuniu todos os
que tinha escolhido para o seu conselho. De novo faz o historial do
processo, afirmando que sempre levara em boa conta “todollos
comtrairos que podiam empachar” a vitória. Devemos enfatizar um
raciocínio, já recorrente: estando assente que a empresa era serviço
de Deus, e já efectuada a vitória, por certo que Deus acharia “aazo e
caminho” para que a pudessem guardar e manter.75
Por isso, o rei declara querer deixar a cidade “soo a
obediemçia de nosso Senhor Jesu Christo e da coroa do” reino,
expondo, seguidamente, quatro razões.76 A primeira, para que nela
se continue a celebrar a Eucaristia; a segunda, para impedir que
outros príncipes cristãos se aproveitassem desta primeira vitória
portuguesa; em terceiro lugar, para manter um local onde os bons
homens de armas portugueses se possam ocupar, sem irem oferecer
seus serviços a França ou a Inglaterra, assim como um local para os
degredados; finalmente, para tornar Ceuta numa base militar para

70
O primeiro doc. em que surge a nova titulação é de 8 Fev. 1416. Vd. BRAGA, Isabel M. R.
Mendes Drumond; BRAGA, Paulo Drumond. Ceuta Portuguesa (1415-1656). Ciudad Autónoma
de Ceuta: Instituto de Estudios Ceutíes, 2008, p. 23.
71
CTC, cap. 12.
72
CTC, cap. 88.
73
CTC, cap. 89.
74
CTC, cap. 97, p. 257.
75
CTC, cap. 97, p. 257-258.
76
CTC, cap. 97, p. 258.
 
162
O elogio do contraditório

todos quantos queiram lutar pela fé. Como se vê, o rei traz, a par de
argumentos sempre aduzidos, outros mais raros ou novos.
Uma vez mais – a última num conselho e com a presença régia
–, surgem as objecções, agora claramente assumidas pelos membros
do conselho que não estavam de acordo com a permanência na
praça.77 Objecções, ou seja, contrários com presença teorizada, como
já vimos: “Por quamto, senhor, conheçemos de uossa uoomtade que
he sempre seerdes comsselhado em todallas cousas, e que uos nom
despraz de uos serem ditas quaaesquer cousas, que homem semta
comtra uosso proposito”.78 Esses conselheiros, não obstante,
reconhecerem a boa intenção do rei, lembram que há necessidade de
ver “se ha hi outros comtrairos que uos possam embargar”.79 E, de
novo – porque já conhecemos estas objecções noutros contextos – se
lembra a distância a que fica Ceuta e o facto de estar no meio de
inimigos; aduz-se ainda a quantidade de gente que seria necessária
para a defesa da cidade, gente que não existe no reino, e o perigo deste
ficar indefeso perante um eventual ataque de Castela; as exigências
em dinheiro e mercês que seriam exigidas pelos que ficarem, com
grande escândalo do povo em geral; finalmente, lembram que, se o
rei quer erguer igrejas onde se celebre o culto divino, deveria começar
pelas que estão no reino, quase todas destruídas; e o facto de Ceuta
servir para cumprir penas, só vai multiplicar o atrevimento dos
criminosos.
A resposta régia80 vai insistir, precisamente, no longo
caminho percorrido, pontuado por conselhos que eles mesmos lhe
tinham dado, no sentido de abandonar o projecto; mas que ele,
quando se lembrava que o fundamento da empresa era ser serviço de
Deus, logo voltava a confiar na sua capacidade para a levar a bom
termo com a ajuda de Deus, e conclui: “ponho estes feitos nas maãos
de nosso Senhor Deus, e de minha Senhora a uirgem Maria sua
madre, sob cuja esperamça determino de guardar e mamteer esta
çidade aa sua homrra e louuor”.

77
CTC, cap. 98.
78
CTC, cap. 98, p. 259.
79
CTC, cap. 98, p. 259.
80
CTC, cap. 99.
 
163
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Ainda em conselho,81 o rei ordenou que Martim Afonso de


Melo ficasse por alcaide da cidade, prometendo-lhe deixar os
homens, mantimentos e meios bélicos necessários. D. Nuno Álvares
Pereira fora a primeira opção, mas ele recusara, por razões logo
aceites; poderia ser Gonçalo Vaz Coutinho, que também recusou,
aludindo à sua idade e outros impedimentos; segue-se então o
convite a Martim Afonso de Melo, que recusou, aconselhado por
alguns dos seus homens que não queriam ficar, porventura com as
mesmas desculpas invocadas por quantos foram coagidos a
permanecer na cidade.
Depois da escusa de Martim Afonso de Melo, D. João nomeia
governador e capitão o conde D. Pedro de Meneses. Com ele ficaram
na cidade fidalgos e outros homens escolhidos por si. Após um breve
discurso dirigido ao recém-nomeado,82 o rei dirige-se aos fidalgos,83
exaltando os benefícios da unidade, da concórdia e da obediência em
torno dos que têm o ofício de mandar: discursos direccionados para
o futuro, sem qualquer sombra das dúvidas passadas.
Na narrativa do cronista, essas dúvidas mantêm-se na gente
comum, “pessoas de baixo estado”,84 que permaneceram na praça
com manifesta resistência. Lamentavam a distância do reino e
ficaram entalados entre o mar e gente hostil que tudo fariam para
recobrar a praça, choravam pelas suas casas, campos, mulheres e
filhos. D. João deixa a D. Pedro de Meneses todo o seu “comprido
poder, perque possais mandar em esta Cidade como Eu
propriamente faria se presente fosse, com o qual poderees poer
Officiais assy de Justiça, como de Fazenda, e segundo vossa
conciencia podeis executar qualquer coisa, que sentirdes por bem do
comum dela”. Caberá a D. Pedro de Meneses apaziguar todas as
dúvidas, o que faz, apelando à dignidade e à coragem que devem ter
os descendentes dos Godos, que são os portugueses.
Não é agora ocasião de analisar esta arenga, na tradição das
arengas dos grandes chefes militares.85 Bastará sublinhar que,

81
CTC, cap. 100; CDPM, cap. 5.
82
CDPM, cap. 7.
83
CDPM, cap. 8.
84
CTC, cap. 101, p. 265; CDPM, caps. 10 e 11.
85
Cf. CONTAMINE, Philippe. La Guerre au Moyen Age. 5ª ed. Paris: Puf, 1999, cap. IX.

164
O elogio do contraditório

evocando as vitórias dos Godos na reconquista peninsular, e fazendo


a vinculação entre eles e os portugueses, D. Pedro de Meneses (ou
Zurara) prescinde de todas as objecções.
Mas, na verdade, os contrários permanecem e teriam sido
tema de conversa entre os infantes D. Duarte e D. Pedro. Disso dá
testemunho o que escreve este último na chamada “carta de
Bruges”.86 Trata-se de uma carta dirigida ao infante D. Duarte,
quando D. Pedro se encontrava fora do reino. Nela se referem várias
questões prementes com lúcida análise e aplicação de grandes
parâmetros de teoria política. Entre esses temas, vem o dos custos da
manutenção de Ceuta. D. Pedro escreve que ele e o infante herdeiro
tinham conversado sobre a forma de remediar os gastos de gente e de
dinheiro com a praça de Ceuta. Não sabemos se o remédio seria a
conquista de outras praças envolventes, como será a política de D.
Afonso V, ou se seria o abandono, em alternativa ao “impulso da
exploração das ilhas e da costa africana”.87
Polémica que se reabre tragicamente na sequência da derrota
de Tânger. Como é sabido, a capitulação portuguesa negociada entre
o infante D. Henrique e Sâlah ben Sâlah exigia que a libertação do
infante D. Fernando se fizesse em troca da entrega de Ceuta e de
todos os mouros feitos prisioneiros.88 Segundo Rui de Pina, D.
Duarte não considerava correcto abandonar a cidade sem primeiro
consultar os povos em cortes, o que efectivamente fez nas cortes
convocadas nos finais do ano de 1437 e realizadas entre janeiro e
fevereiro do ano seguinte. Nos argumentos dos grupos em confronto,
encontraremos ecos dos contrários aqui expostos.
Retomamos a nossa afirmação inicial: os temas presentes na
Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I e na Crónica do
Conde Dom Pedro de Menezes, expurgados do debate e da

86
D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), [4.], p. 37. Na carta
a D. Duarte aquando da sua subida ao trono (Ag. 1433) D. Pedro não inclui nenhum conselho
relacionado com o Benamarim.
87
É esta a opinião de José de Bragança, que aqui referimos, embora não nos convença. Vd.
GOMES EANES DE ZURARA. Cronica do Descobrimento e Conquista da Guiné [...]. Intr. José
de Bragança. Porto: Civilização, 1937. v. I e II, XLII.
88
RUI DE PINA Chronica do Senhor Rey D. Duarte. In: Crónicas de Rui de Pina. Introdução e
revisão de M. L. de Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977, caps. XXXVIII-XLI.
 
165
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

inquietação vivencial, irão constituir-se ao longo dos séculos e como


em “trans-memória” 89 em linhas de força da identidade portuguesa.
De facto, a alternativa vencedora que foi a conquista e a manutenção
da praça de Ceuta vai-se consolidando pela apresentação das
objecções superadas. As objecções referidas nas crónicas como
contrários vão sendo apresentadas recorrentemente pelo cronista, por
certo na senda dos protagonistas. Os temas sujeitos a debate voltam,
uma e outra vez, a ser apresentados. Protagonistas e cronista
avançam em elipse, obcessivamente, com argumentos e contra-
argumentos, até que estes se configuraram como constantes do
comportamento e do discurso político português. Citemos só alguns:
a certeza do favor divino, o fazer muito com poucos meios, o passado
como penhor do futuro, a apropriação da herança visigoda, o ofício
de reinar exercido tanto no debate como na responsabilidade das
decisões…
Deste modo, Zurara entra, através de temas e processos
narrativos matriciais, na construção da consciência nacional
portuguesa,90 constrói evocação em movimento, permitindo aos
vindouros, num jogo de memória e de esquecimento, a
“sobrevivência”91 de narrativas no tempo.

O A. não segue o acordo ortográfico de 1990

89
Apropriando-me do conceito de SERRÃO, Vítor. Trans-Memória das Imagens. Lisboa: Ed.
Cosmos, 2008.
90
Cf. ALBUQUERQUE, Martim de. A Consciência Nacional Portuguesa. Lisboa, [s.n.], 1972.
91
Consideramos operacional para os historiadores a formulação de Georges Didi-Huberman, ver:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 2000.

166
 

Investidas moralizantes na história da expansão


portuguesa1

Susani Silveira Lemos França

O
tempo e a grandeza das obras são os pontos destacados na
crônica sobre as primeiras conquistas do reino de
Portugal, a Crônica da tomada de Ceuta, como o que
justificava o historiar.2 Ambos os aspectos, retomados do saber
antigo, ganham, no século em que Portugal avança por outros
territórios, o século XV, sentidos históricos específicos, configurados
pelo desejo3 dos historiadores de então de colocar Portugal no centro

1
Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Temático “Escritos sobre
os novos mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa”, financiado
pela FAPESP (Processo: 2013/14786-6), e do projeto “Patrimônios escritos e a invenção de novos
mundos (séculos XIII-XV)”, financiado pelo CNPq (Processo 470371/2014-5).
2
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta. Francisco Maria Esteves Pereira
(ed.). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915, p. 8.
3
Vale destacar que o discurso histórico no período que nos interessa, entre o século XV e o XVI, é
um discurso que não tem pretensão de distinguir real e desejo. A ideia de que o discurso histórico
resulta de uma conjugação entre discurso do real e do desejo já foi apontada por diversos
 
 
167
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

das mudanças que resultaram na ampliação do mundo. Se o decorrer


do tempo e a inevitabilidade do esquecimento justificavam a
intervenção da escrita, mais ainda tal intervenção se justificava,
porque de grandes feitos e grandes homens se tratava, segundo se
pode perceber em diversas passagens da obra de Gomes Eanes de
Zurara (1410-1474). Para ele, contornar o esquecimento não devia
ser tomado em um sentido abrangente, ao contrário, era uma ação
seletiva em busca dos feitos e homens grandiosos que mereciam ser
lembrados e exaltados. E tal seleção, nessa época em que não se
questionava que a história deveria ensinar – dado o alicerce do
Cristianismo em um compreender-se no passado amparado nos
mitos da Criação e da Encarnação e dado o permanente
redimensionamento da existência a partir desses eventos fundadores
–,4 era muitas das vezes sustentada em comentários valorativos, que
recordavam o caráter exemplar da história.
Na crônica que se seguiu àquela, a Crônica de Guiné, Zurara
não perde de vista esse sentido da história, entre exaltação e
moralização, que defendia ser, sem qualquer constrangimento, o que
a justificava. Mas acrescenta um outro potencial, além do
ensinamento, que é o agradecimento. O registro histórico deveria
recompensar aqueles cujos feitos tinham se mostrado notáveis,
fazendo jus à máxima ciceroniana de que pelo agradecimento “o bem
se torna àquele que o deu”.5 Exaltação, exemplo e compensação são
três funções atribuídas à história que corroboram uma ideia que
séculos depois viria a ser apontada como um limite e até uma
deformação por aqueles que atacaram a história centrada nos grandes
homens e grandes feitos,6 ideia que, entretanto, era naquela altura

estudiosos, entre os quais vale lembrar Susanne Fleschman. Cf. FLESCHMAN, Susanne. On the
Representation of History and Fiction in the Middle Ages. History and Theory, v. 22, n. 3, oct.
1983, p. 278-310.
4
CAVALCANTE SCHUBACK, Mareia Sá. Para ler os medievais: ensaio de hermenêutica
imaginativa. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 171-172.
5
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné. Introdução, novas anotações e glossário de
José de Bragança. Lisboa: Livraria Civilização, 1973, p. 8.
6
Vale recordar, por exemplo, as proposições da “Nova História” francesa que, segundo Pomian,
põem abaixo três ídolos da tribo dos historiadores – os grandes homens e os acontecimentos; o
estudo da política, da diplomacia e da guerra; a cronologia – e expandem os domínios da história.
 
168
Investidas moralizantes na história...

para ser propalada e apregoada com orgulho, pois era justamente o


que honrava a história escrita. Agradecido nesta crônica se
apresentava, por exemplo, D. Afonso V (1432-1481) a seu tio;
exaltado e recompensado seria, diretamente, este tio, o Infante D.
Henrique (1394-1460), o biografado.7 Por meio dele, porém, ele
próprio, como rei, seria galardoado, pois “nenhum príncipe pode ser
grande se ele não reina sobre grandes”.8 Receberiam “proveitoso
ensino”, por sua vez, os príncipes que seguissem seu exemplo.9
No limiar do século XVI, uma outra narrativa, não
autointitulada crônica, mas que, alimentando as formas híbridas
características deste tempo em que os escritos se justificavam por sua
função utilitária e pragmática, invade o terreno da rememoração
histórica10 com objetivos que pouco se distinguem da exaltação,
exemplaridade e recompensa. Três funções que não escondem que o
fio do registro memorial nesses tempos de avanços portugueses eram
os homens notáveis; eram eles que deveriam ser exaltados e tomados
como exemplo de conduta. Trata-se do Esmeraldo de Situ Orbis, de
Duarte Pacheco Pereira (1460-1533). Por muitos lida como um
roteiro de viagem à costa da África, a obra mostra-se, logo à partida,
mais intricada que os roteiros correntes,11 em que os lugares visitados
ou percorridos são o elemento organizador do relato, ou seja, as
narrativas estão organizadas em função das etapas do itinerário
percorrido.12 Tais etapas, sem dúvida, virão a ocupar papel relevante
no escrito, mas as figuras ilustres que dão recheio às crônicas ganham
igualmente destaque no relato, denunciando que o passado também
aqui era recortado pelos condutores – reis, condes, cavaleiros etc. – e

POMIAN, Krzysztof. L´heure des “Annales”. La terre – les hommes – le monde. In: NORA,
Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. Paris: Éditions Gallimard, 1997, p. 905.
7
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 9.
8
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 10.
9
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 13.
10
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no «Esmeraldo de Situ
Orbis». Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, p. 19.
11
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no «Esmeraldo de Situ
Orbis», p. 19-20.
12
ZUMTHOR, Paul. La Medida del Mundo: representación del espacio en la Edad Media. Trad.
Alicia Martorell. Madrid: Cátedra, 1994, p. 288.
 
169
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

que eram esses justamente que davam e deveriam dar os contornos


do que se entendia como história.
É, tal como em Zurara, a reputação dos “excelentes barões”
navegadores aquela que não se duvidava digna de “perpétua
lembrança” e corroboradora da grandeza dos próprios reis,13 pois era
a expressão máxima de uma moral onde bem e fim, ou perfeição e
ordem, identificados com o criador, deviam ser o motor das ações.14
Dali, da fama e da glória alcançadas nas realizações em terras alheias
em nome da expansão da Cristandade,15 é que então se poderia
extrair matéria que teria serventia aos outros, pois tal etapa era, pode-
se dizer, entendida como uma etapa da teologia da história à moda
cristã.16 O infante D. Henrique destacava-se, segundo Duarte
Pacheco Pereira, por ter retomado a navegação para um lugar
durante mais de século e meio esquecido, a então chamada Etiópia,
por vezes extensiva da África oriental até a costa do Atlântico, por
vezes situada nas margens do Atlântico.17 Era este homem que
parecia “alumiado pelo espírito santo”, por meio do qual se
manifestava o auxílio divino,18 o portador de elementos

13
DUARTE PACHECO PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis. Intr. e anotações históricas
Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988, p. 9.
14
GILSON, Étienne. O espírito da Filosofia medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 395; 477-478; VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV.
Introdução à ética filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 216.
15
FERNANDES, Fátima R. A participação da nobreza na expansão ultramarina portuguesa. Estudos
Ibero-Americanos, PUCRS, Edição Especial, n. 1, p. 107-124, 2000, p. 124. Disponível em:
<https://www.academia.edu/4082546/A_participação_da_nobreza_na_Expansão_Ultramarina_port
uguesa>. Acesso em: 15 jan. 2016.
16
Sobre a ideia de ordem como normativa da existência ética segundo Agostinho e sobre os
fundamentos éticos teológicos da história cristã, ver: VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de
filosofia IV, p. 195-197.
17
Duarte Pacheco Pereira, no prólogo do Esmeraldo de Situ Orbis, define o território antigamente
chamado Etiópia como limitado entre os cabos Não e Bojador até a Serra Leoa. A localização da
Etiópia foi até o século XVI, vale destacar, marcada pela imprecisão, como mostram os mapas
desde o século VIII. No século XIV, um planisfério circular anônimo distingue uma área junto à
Índia, como Etiópia Oriental, e outra próximo ao Atlântico, chamada Etiópia ou Barbaria. Cf.
ALBUQUERQUE, Luís de. Uma releitura de Azurara. Studia. Lisboa, n. 47, 1989, p. 423. Além
disso, no tempo de Zurara, identificava-se a Etiópia como o reino do Preste João. ARNAUT,
Salvador Dias. Três estudos sobre descobrimento. Biblos, v. LXX, 1994, p. 102.
18
Aquele que é reconhecido como síntese da moral cristã, São Tomás de Aquino, propôs que o
exercício das virtudes requer, dada a condição humana, o “auxílio divino que se manifesta pelos
dons do Espírito Santo correspondentes a cada virtude”. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de
filosofia IV, p. 237-238.
 
170
Investidas moralizantes na história...

indispensáveis para servir de exemplo a todos. O seu


desprendimento é destacado, por exemplo, por não se escusar às
“grandes despesas e mortes de criados seus, naturais portugueses”,
tudo em nome do benefício que da expansão resultaria.19 Duarte
Pacheco não difere, pois, substantivamente do cronista
quatrocentista na expressão de juízos com conteúdo moralizador,
como aqueles que se referem às crenças. De bestas “em semelhança
humana”, os etíopes eram trazidos, pelas mãos do príncipe
navegador, para a fé católica, e alguns deles iam sendo assim
humanizados, segundo sua leitura.20
Por serem tidos como mais próximos da perfeição e de Deus,21
os grandes homens, cujas ações mereceram ser lembradas para a
posteridade entre o século XV e o início do XVI, passaram a ser
sobretudo aqueles que atuaram fora do reino de Portugal, mas com
claro benefício para o acrescentamento deste reino, como veremos a
propósito não só do referido infante mas de outros cavaleiros que
atuaram no norte da África, como os governadores de Ceuta e
Alcácer Ceguer – e se avançássemos pelo século XVI, algumas
aproximações seriam possíveis com os governadores e vice-reis da
Índia. Zurara deixa bem claro tal aspecto, ao ressaltar a
magnanimidade de D. Afonso V, que, apesar de ter governado
aproximadamente 20 anos e ter realizado grandes feitos, mandou
escrever uma crônica em que “antepôs o louvor dos outros à sua
própria fama”, pois preferiu glorificar o conde D. Pedro de Meneses
(1370-1437) e “outros nobres e virtuosos varões que com ele, por
defensão da Santa Fé e honra da Coroa de Portugal, naquela cidade
[de Ceuta] tão virtuosamente trabalharam”.22 Nos relatos que nos
foram legados do período em questão, cronistas e outros narradores
deslocam sua atenção sobretudo para a atuação dos portugueses nas
plagas africanas e, a despeito das funções diferentes que

19
DUARTE PACHECO PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 10.
20
DUARTE PACHECO PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 11.
21
As virtudes podiam se manifestar em diferentes escalas. ARMAS, Gregório. La moral de San
Agustin. Madrid: Asilo de Huérfanos del Sagrado Corazón de Jesus, 1955, p. 360.
22
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes. Reprodução
Facsimilada com nota de apresentação por José Adriano de Freitas Carvalho. Porto: s/n, p. 214-215.
 
171
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

desempenham suas narrativas, incidem sobre pontos semelhantes.


Movidos por uma ética fundada na vida virtuosa,23 é possível
observar, nessas narrativas que partilham um objetivo memorial,
que as virtudes – condutoras da vida com retidão e bem-aventurada24
ou disposições que nos levam a agir corretamente25 – são exaltadas
nos protagonistas das ações e abrem caminho para a construção das
suas histórias. Todavia, dado que o que começa a importar já não são
as lutas pela soberania, o deslocamento temático das crônicas –
envolvendo um passado de contato com outras terras e gentes – teria
trazido mudanças nos traços dos novos elos da memória histórica em
relação àqueles que outrora mereceram exaltação e perpétua
memória? Em outras palavras, se o organismo das virtudes
continuou a funcionar em torno das principais estabelecidas pela
tradição ocidental, que remonta a Platão (428/427-348/347)26 – as
teologais (fé, esperança e caridade) e as cardeais (prudência, justiça,
fortaleza e temperança) –, quais delas ganharam mais peso nessa
altura, quando as ações merecedoras de perpétua memória se
tornaram de outra ordem? Se a história não era um tratado de
virtudes, mas sem estas ela não podia ser escrita, quais delas foram
mais valorizadas e lembradas em relação àqueles que deviam servir
de modelo da história?
As narrativas da segunda metade do século XV e início do
XVI, apesar de suas peculiaridades e do avanço das histórias
regionais em detrimento das universais no século XV,27 são ainda
assombradas por uma história cristã balizada por grandes
acontecimentos, como a queda do Império Romano, a refundação de
um império com bandeira religiosa, como o de Carlos Magno (742?

23
Inspirada em Tomás de Aquino, que cumpriu papel fundamental na história da Ética ocidental.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV, p. 232 e 236.
24
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV, p. 233; GILSON, Étienne. O espírito da
Filosofia medieval, p. 397.
25
NERI, Demetrio. Filosofia Moral. Manual introdutivo. Trad. Orlando Soares Moreira. São
Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 148.
26
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV, p. 238.
27
GUENÉE, B. Histoire et Culture Historique dans l´Occident médiéval. Paris: Aubier Montaigne,
1980, p. 309.
 
172
Investidas moralizantes na história...

– 814),28 ou esta expansão da Cristandade, que pelas mãos do Infante


e de seus conterrâneos aspirava a trazer as “almas inocentes daquelas
bárbaras nações” africanas “ao verdadeiro caminho da salvação”;29
gentes que haviam de ser salvas “recebendo a água do batismo”.30
Nas histórias em torno desses acontecimentos, como nas anteriores,
as figuras ilustres ganham destaque em relação às outras não apenas
pelo papel que tiveram nas realizações, mas pelo espaço que as
narrativas conferem à descrição dos seus contornos morais, atestados
por sua ação virtuosa; afinal, o valor moral estava para os homens de
então – alimentados pelos moralistas cristãos – em agir como
convinha tendo em vista o que se era31 e, do mesmo modo, tendo em
conta a preservação da ordo – ordem substancial, tradutora da
harmonia do todo sustentada na sabedoria divina,32 à qual todos
estavam sujeitos e que preexistia a eles.33 Três homens definidos
como virtuosos, nesta história que pretendia não deixar o “bem-
fazer” perecer,34 merecem aqui mais atenção: o já citado Infante D.
Henrique e os condes D. Pedro de Menezes e D. Duarte de Menezes
(1414-1464), governadores de Ceuta e Alcácer-Ceguer.35 Sua
posição de comando nos primeiros avanços garantiu-lhes a
centralidade antes reservada aos reis, centralidade que, como vimos,
foi inclusive cedida pelo próprio Afonso V.

28
GILSON, Étienne. O espírito da Filosofia medieval, p. 473.
29
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 14.
30
DUARTE PACHECO PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 168.
31
Edifício ancorado na moral helênica, segundo Étienne Gilson. GILSON, Étienne. O espírito da
Filosofia medieval, p. 397.
32
Seja no sentido agostiniano de garantia da paz, seja no tomasiano, como definidora de certa
autonomia do cosmo. GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. Trad. Denise Rossato
Agostinetti; rev. Ricardo Marcelo Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 100-101.
33
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval, p. 117. Referência à lei divina, suprema, que é o
modelo de toda ordenação possível. GUGLIELMI, Nilda. Ley y virtud (Italia, siglos XIV-XV).
In: GUGLIELMI, Nilda; RUCQUOI (Coord.). Derecho y justicia: el poder en la Europa
medieval (Droit et justice: le pouvoir dans l´Europe médiévale). Buenos Aires: IMHICIHU –
CONICET, 2008, p. 179-180.
34
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 10.
35
D. Pedro de Menezes, Conde de Vila Real, foi o primeiro capitão de Ceuta. Seu filho bastardo D.
Duarte de Menezes, terceiro Conde de Viana, o sucedeu no governo de Ceuta. Sobre a trajetória de
vida de D. Duarte Menezes, ver: MORENO, Humberto Baquero. A batalha de Alfarrobeira. Volume
II – Antecedentes e significado Histórico. Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1980, p. 874.
 
173
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Nessa história fixada nas crônicas ou em outros registros do


passado que confluíram com essas, os homens que davam vida à
escrita cronística – ou melhor, para os quais a história seria escrita –,
por ganharem contornos em uma narrativa retrospectiva, como em
um romance começado do fim, são logo à partida identificados por
“seus costumes e virtudes”36 e, a seguir, por sua vocação ou boa
disposição, quando não predestinação, para a missão para à qual
tinham sido incumbidos.37 Sobre o Infante D. Henrique, por
exemplo, Zurara dá a conhecer que ele e seus irmãos eram todos
“desejosos de semelhante novidade”, como era a conquista de uma
praça africana.38 Aspiravam, conjuntamente, levar a cabo o grande
feito; contudo, assevera o cronista, “nenhuma daquelas vontades não
era igual à do Infante D. Henrique, pois isto nascera com ele”.39
Vocação que virá a ser depois corroborada quando escreve sobre seus
feitos ao longo da costa ocidental africana. Entre as várias razões
apresentadas por Zurara como motivadoras desses feitos, uma delas,
anunciada como “raiz de onde todas as outras procedem”, era a
“inclinação das rodas celestiais”. Para o cronista, mesmo que os
Santos Doutores da Igreja questionassem a determinação dos
astros,40 argumentando que os sábios e virtuosos são capazes de se
assenhorear das estrelas e que os “cursos dos planetas” não podem
prejudicar o “bom homem”, ele considerava que os astros são
“corpos ordenados no mistério de nosso senhor Deus, e correm por
certas medidas e a desvairados fins, revelados aos homens por sua
graça”. E posicionava-se favorável à conciliabilidade dos astros e da

36
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 12.
37
Vale recordar que Luís Filipe Thomaz e Jorge Santos Alves lamentam o caráter ideológico da
história da expansão portuguesa, extremado “em tom de lenda cor-de-rosa” no início e depois em
lenda negra, dado o peso do presente nas suas configurações. THOMAZ, Luis Filipe; ALVES,
Jorge Santos. Da cruzada ao Quinto Imperio. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo
Ramada (Orgs.). Memoria da Nação. Lisboa: Livraria Sa da Costa, 1991, p. 81.
38
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 28.
39
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 48.
40
Cf. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Ensaios de antropologia
medieval. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 376 e ss. Ver, também: VENTURA, Margarida Garcez.
Regalismo e anti-regalismo no século XV. In: Lusitania Sacra. Revista do Centro de Estudos de
História Religiosa. Cristianização na época medieval, 2 série, Tomo X. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa, 1998.
 
174
Investidas moralizantes na história...

graça, pois se esta podia reverter o não favorecimento dos astros a


certas pessoas, em contrapartida, aquelas que “proveitosamente
predestinadas forem, por essa mesma graça, não somente seguirão
seu curso, mas ainda se acrescentarão41 muito mais”. Tudo isso para
arrazoar que “por pungimento de natural influência, este honrado
príncipe [infante D. Henrique] se inclinava a estas cousas”,42 ou seja,
contara com o apoio dos astros e da graça para conduzir grandes
feitos.
Tal ideia é ratificada pelo cosmógrafo Duarte Pacheco
Pereira, ao registrar que, como os varões dotados de virtudes “nunca
são desemparados da graça do Espírito Santo, jazendo o Infante uma
noite em sua cama, lhe veio em revelação como faria muito serviço a
Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias, na qual região se acharia
tanta multidão de novos povos e homens negros [...].”43 Pendor
natural que ganha igualmente realce quase cinco décadas mais tarde
na pena do célebre cronista português dos feitos na Ásia, João de
Barros (1496-1570), que se refere, em sua parte dedicada à África, à
“natural inclinação que sempre teve de exercitar este ofício de
milícia” como uma espécie de ponto irrefutável. Ponto este
corroborado pela alusão na mesma crônica de que alguns, vendo-o
tão determinado e bem informado sobre o que havia para além do
Cabo Não, “quiseram afirmar que, como era príncipe católico e de
vida mui pura e religiosa, esta empresa mais lhe fora revelada que por
ele movida.”44
Predestinação engrandecedora que, nessa memória histórica,
não era para todos. O conde D. Pedro de Meneses não merece do
cronista Zurara qualquer referência a uma suposta predestinação

41
Na edição utilizada, o termo era “acreditarão”, mas utilizamos uma edição de apoio (Chronica
do descobrimento e conquista de Guiné. Escrita por mandado de El Rei D. Affonso V, Direcção
sciestifica, e segundo as instrucções do illustre infante D. Henrique, pelo Cronista Gomes Eannes
de Azurara; Edição do Visconde da Carreira. Paris: Aillaud, 1841) para o entendimento da frase.
Cf. GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 47.
42
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 47.
43
DUARTE PACHECO PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 78-79.
44
BARROS, João de. Asia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista
dos mares e terras do Oriente. Primeira Década. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
1988, p. 11, 13.
 
175
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

para o grande feito, porém, merece algumas notas sobre como se


mostrava de todo preparado para a tarefa de governar Ceuta – apesar
de não ter sido a primeira escolha, mas ter alçado ao cargo em
decorrência de os principais nobres não estarem dispostos a correr o
risco de se fixar em tal praça.45 Ele, cuja casa ascenderá por
consequência dos serviços militares ultramarinos, é apresentado pelo
cronista como homem “desejoso” de realizar o feito,46 e é
recomendado pelo Mestre da Ordem de Cristo, D. Lopo Dias de
Sousa (1373?-1417), como “homem em que cabe semelhante
encarrego”.47 Potencial reafirmado quando Zurara sugere que seu
filho, bastardo, tinha se redimido por mostrar, nos feitos da
cavalaria, “a bondade do sangue, que trazia do pai”.48 Ou ainda
quando D. João I (1357-1433) atualiza a máxima naturalista
tomasiana sobre o poder49 e expõe aos fidalgos do reino “que não
somente entre muitos, mas ainda entre poucos se requer sempre
algum que tenha carrego e regimento dos outros”, indicando o conde
D. Pedro para tal função. Não usa como argumento propriamente
seu pendor natural, mas, a despeito da valorização recente da sua
casa, a fiança da sua origem, da sua linhagem, dado que, nas palavras
do cronista, tinha “parte em todas as boas gerações de seu reino” e
era dotado de virtudes.50
Certificado de origem ou inclinação natural emergem, assim,
entre as principais peças de glorificação dos homens-objeto da
história. Sem contar com o mesmo atestado de origem de seu pai,
dada a sua bastardia,51 o pendor é, sem dúvida, de maior valia para

45
FARINHA, António Dias. Os portugueses em Marrocos. Lisboa: Instituto Camões, 1999, p. 13.
46
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 231.
47
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 232.
48
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 13.
49
A ideia do poder como necessidade é formulada por São Tomás de Aquino a partir de Aristóteles
e amparava-se no fundamento de que “toda multidão, para realizar seu fim comum, tem
necessidade de um princípio diretor” ou de que a força diretiva é imanente. SENELLART,
Michel. As artes de governar. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 176-180.
50
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 238-239.
51
Apesar de os bastardos gozarem de estatuto inferior aos legítimos, havia uma legislação
especialmente dedicada a regular sua condição. Cf. VENTURA, Leontina. A família: o léxico. In:
MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal. Vol 1. Idade Média –
Coordenação de Bernardo Vasconcelos e Sousa. Lisboa: Círculo de Leitores e Temas e Debates,
2011, p. 116-117. No caso de D. Duarte de Meneses, especificamente, o próprio pai assumiu-o
 
176
Investidas moralizantes na história...

D. Duarte de Meneses, conde de Viana e governador de Ceuta na


terceira década do Quatrocentos. Segundo Zurara, este conde,
“quase do berço, começou a ter autoridade e representação”. Como
nenhum outro, sua propensão cavaleiresca se manifestou cedo, como
alguém que igualmente “do berço usara o ofício das armas”.52 Insiste
o narrador que o conde, assim que “começou a andar logo mostrou
sinais daquilo que havia de ser, pois nunca podia falar senão em
cavalos e armas”.53Tais qualidades, com o passar dos anos, foram
sendo apuradas ao ponto de deixar maravilhados aqueles que
combatiam junto com ele, pois, ainda em idade pouco avançada, não
mais do que quinze anos, alguns já louvavam “a segurança com que
andava, outros a ardideza que mostrava no cometimento dos
contrários, outros a força com que feria”.54 A capacidade de
balancear ações extremadas que estava entre os motivos de orgulho
do seu pai, a quem Zurara atribui a confissão de que Deus tinha lhe
negado o nascimento legítimo, mas tinha-lhe compensado, não lhe
embargando “virtude” em que se assemelhasse a ele, seu pai.55
Mas o pendor ou a boa disposição, quando não até a
predestinação,56 como elementos de valorização dos protagonistas da
história,57 é preciso deixar claro, não eram novidades estritamente
vinculadas às ações que se tornaram necessárias nesse tempo de
expansão. Aqueles que outrora foram os eixos da história já
usufruíam de qualidades semelhantes, o que denuncia como, no que
diz respeito aos valores estimados, aquilo que se louvava nem
iniciava nem terminava ali. Outro bastardo já tinha sido apontado
por cronista anterior como predestinado, o célebre D. João I, pois,

como filho e o rei lhe assegurou o título de nobreza, depois que suas capacidades governativas
foram demonstradas.
52
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 49.
53
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 51.
54
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 54.
55
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 54.
56
VENTURA, Margarida Garcez. O messias de Lisboa: um estudo de mitologia política, 1383-
1415. Lisboa: Edições Cosmos, 1992, p. 18.
57
A predestinação como traço distintivo dos grandes homens foi tema recorrente nas crônicas e
tratados moralizantes. Alguns escritores da corte de Avis, entretanto, refutavam a crença na
predestinação porque ela colocaria em causa o livre-arbítrio e a ação da graça de Deus. VENTURA,
Margarida Garcez. Regalismo e anti-regalismo no século XV. In: Lusitania Sacra, p. 317.
 
177
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ainda que o rei D. Pedro (1320-1367), seu pai, estimasse que as


profecias promissoras a propósito de um dos seus filhos de nome
João se cumprissem no seu filho com Inês de Castro,58 foram
cumpridas naquele que se tornou rei e, segundo seu cronista Fernão
Lopes (1380/1390-1460), recebeu o reconhecimento por muitos de
que “todas as humanais virtudes floresceram” nele.59 Tal como o
conde D. Duarte, também ele compensara a mácula do nascimento e
a pouca idade com seus “bons costumes”60 e com a competência para
levar a cabo o que lhe estava reservado.61
Para além de corresponderem ao que deles se esperava,
corroborando uma ideia, difusa entre os narradores e alimentada por
grandes moralistas, de que alguns tinham nascido para serem
proeminentes perante os outros,62 os cavaleiros que mereceram
histórias à parte recebem louvor, tal como os reis que os
antecederam, por serem esteio da existência ética,63 caracterizada
pela prática das virtudes teologais e cardeais em geral, em especial de
algumas delas. Se as virtudes verdadeiras, como tinha ensinado
Agostinho (354-430), ordenavam-se a Deus, a fé, a começar, não
podia faltar entre as virtudes destacadas no Infante, pois estava entre

58
FERNÃO LOPES. Crónica do senhor rei Dom Pedro. Introd. de Damião Peres. Porto: Livraria
Civilização, 1979, cap. XLIII, p. 196. Lembremos que João das Regras defendeu a ilegitimidade
dos filhos de Inês de Castro e apresentou uma carta do papa Inocêncio VI indeferindo o pedido de
D. Pedro para legitimá-los (FERNÃO LOPES. Cronica del rei Dom João I de boa memoria. Parte
Primeira. Ed. Braamcamp Freire. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973, cap. CXC,
p. 365-368). Todavia, o esforço deste rei fora no sentido de provar o contrário (FERNÃO LOPES.
Crónica do senhor rei Dom Pedro, cap. XXVIII, p. 129-134), o que, portanto, significa que os queria
como legítimos.
59
FERNÃO LOPES. Cronica del rei Dom João I de boa memoria. Parte Segunda. Ed. William J.
Entwisle. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1977, p. 3.
60
FERNÃO LOPES. Crónica do senhor rei Dom Pedro, cap. XLIII, p. 198.
61
VENTURA, Margarida Garcez. O messias de Lisboa, p. 9.
62
REBELO, Luís de Sousa. A concepção do poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983,
p. 48. Ver também sobre as condições especiais da realeza. RINCÓN, David Nogales. Los espejos de
príncipes en Castilla (siglos XIII-XV): un modelo literario de la realeza bajomedieval. Medievalismo:
Boletín de la Sociedad Española de Estudios Medievales, n. 16, 2006, p. 9-40, p. 20.
63
Cf. RINCÓN, David Nogales. Los espejos de príncipes en Castilla (siglos XIII-XV): un modelo
literario de la realeza bajomedieval. Medievalismo: Boletín de la Sociedad Española de Estudios
Medievales.
 
178
Investidas moralizantes na história...

os dons gratuitos de Deus,64 ao lado da esperança e da caridade,65 e


era a condição para a realização plena das demais virtudes.66 Dado,
porém, que estas se fundavam em princípios universais mas
manifestavam-se de forma particular,67 as demonstrações de devoção
a Deus por D. Henrique, que mereciam atenção de cronistas e outros
autores, já não podiam se revelar, como ocorria a propósito das
figuras exemplares das crônicas anteriores, nas batalhas de
reconquista do território aos mouros e no impulso à memória
monumental da fé católica manifesta nas construções de templos e
doações às igrejas, como na história de D. Dinis (1279-1325),68 ou no
impulso à feitura de livros de devoção ou na permanente reiteração
de que devia a Deus todas as suas “bem-aventuranças”, como na
história de D. João I.69 No caso do Infante, também ele não descurava
“todos os mandados da santa Igreja” e o acrescentamento dos
espaços e meios de devoção,70 mas a crônica que lhe é destinada mais
exalta a sua defesa da fé católica expressa, por exemplo, no cuidado,
depois da tomada de Ceuta, em manter “continuadamente [...]
navios armados no mar contra os infiéis”.71Forma de mostrar a fé
pela qual quis viver e pela qual pretendia morrer, se não tivesse sido
impedido, pois queria “partir para Ceuta, com intenção de fazer lá

64
Sobre a fé como dom de Deus e confiança na autoridade divina em Agostinho. MARROU,
Henri-Irenée. Saint Augustin et l’augustinisme. Paris: Seuil, 2003, p. 64.
65
FRESNEDA, F. M.; NAVAS, J. L. P. Teología y Moral Franciscanas. Murcia: Editorial
Espigas, 2002, p. 169.
66
Os espelhos de príncipes ensinavam, por exemplo, que o temor e amor a Deus eram os princípios
básicos que deviam guiar. Cf RINCÓN, David Nogales. Los espejos de príncipes en Castilla
(siglos XIII-XV): un modelo literario de la realeza bajomedieval. Medievalismo: Boletín de la
Sociedad Española de Estudios Medievales, p. 21; ARMAS, Gregório. La moral de San Agustin,
p. 286-290.
67
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. Trad. Raimundo Vier
(OFM). Petrópolis: Vozes, 1982, p. 11; COLEMAN, Janet. Ancient and medieval memories.
Studies in the reconstruction of the past. New York; Port Chester; Melbourne; Sydney:
Cambridge University Press, 1992, p. 3-4.
68
Crónica de Cinco Reis de Portugal. Ed. diplomática de A. Magalhães Basto. Porto: Liv.
Civilização, 1945, p. 5; RUI DE PINA. Chronica Del Rey D. Diniz. Sexto de Portugal. In: Crónicas
de Rui de Pina. D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV,
D. Duarte, D. Afonso V, D. João II. Introd. e rev. de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmão,
1977, cap. XXXII, p. 310.
69
FERNÃO LOPES. Cronica del rei Dom João I de boa memoria. Parte Segunda, prólogo, p. 2.
70
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 25. Ver, também, p. 21-24 e p. 31-32.
71
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 30.
 
179
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

fim de sua vida, trabalhando por suas armas por honra do Reino e
exalçamento da santa Fé”72 – palavras praticamente reproduzidas no
século seguinte por João de Barros.73 Sem economizar elogios, como
então convinha a cronistas que entendiam os epítetos exaltatórios
como forma de recordar o estado e a essência da dignidade real,74
Zurara exalta esse príncipe como “tão religioso” e, na sequência,
reúne as marcas dessa qualidade, entre as quais, ter passado a vida,
sem descanso e “cercado de gente de diversas nações”.75 Ainda sobre
a sua fé, o cronista não deixa de lembrar que das cinco razões que o
moveram aos grandes feitos de conquista da África, três delas eram
claramente amparadas no seu dever de príncipe “tão católico”:
conhecer melhor o poder dos “inimigos” de outra fé; buscar supostos
príncipes cristãos em outras terras para apoiá-lo; e tentar trazer à
santa fé “todas as almas que se quisessem salvar”.76 A “energia de sua
vontade”, segundo escreve Mateus de Pisano (1383-1466?) –
tradutor para o latim da crônica de Zurara –, era mantida por este
móbil religioso,77 que o fez arriscar-se muitas vezes, sem perder de
vista a recomendação de sua mãe para não hesitar “em preferir às
doçuras da vida a morte com glória”.78
Tal motor religioso fundador de todas as verdadeiras
virtudes, a fé,79 não se apaga na história dos Menezes em Ceuta.
Sobre o conde D. Pedro, um rol de virtudes genéricas recorrentes em
outros nobres ou reis é igualmente retomado a seu propósito,
mostrando tanto o peso das convenções na história quanto a

72
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 32.
73
BARROS, João de. Asia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista
dos mares e terras do Oriente. Primeira Década, p. 11.
74
Tal como nos Espelhos de Príncipe. RINCÓN, David Nogales. Los espejos de príncipes en
Castilla (siglos XIII-XV): un modelo literario de la realeza bajomedieval. Medievalismo: Boletín
de la Sociedad Española de Estudios Medievales, 20.
75
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 37.
76
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p.45.
77
O cristianismo prolongava a ordem natural com uma ordem sobrenatural. GILSON, Étienne.
O Espírito da Filosofia medieval, p. 445; CALAFATE, Pedro. História do Pensamento Filosófico
Português. Lisboa: Caminho, 1999, p. 420-425.
78
MATEUS DE PISANO. Livro da Guerra de Ceuta. Publicado por Ordem da Academia das
Sciências de Lisboa e vertido em português por Roberto Corrêa Pinto. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1915, p. 12 e 28.
79
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo, p. 92 e ss.
 
180
Investidas moralizantes na história...

permanência de certos valores a figurarem como elementos na


exaltação dos nobres. Além de acolhedor e magnânimo, “liberal e
prestador de suas riquezas”, ele é descrito como “amigo de Deus”,
especialmente porque, naquele tempo em que a prática da obtenção
de cativos tanto por cristãos quanto por mouros era corrente, seu
empenho no resgate de cristãos era destacado.80 O capitão é
distinguido como “grande remidor de cativos”, que não media
despesas para não desamparar cristãos, por pobres que fossem, que
estivessem em cativeiro, “nem receava de dar um mouro de grande
redenção, por um muito pobre cristão”.81 Uma fé, pois, que ganhava
corpo justamente nos seus serviços ultramarinos.
O outro dos Meneses é também definido pela tópica de
“amigo de Deus”. Todavia, o que nele se destaca, para além do ponto
em comum dos feitos de conquista ou preservação das conquistas
que então garantia um lugar para a nobreza de serviços,82 era a sua
invencibilidade em decorrência dessa devoção. O cronista Zurara
conta que ele pôde sempre usufruir da ajuda divina, de forma que,
“de quantas pelejas teve com os contrários, sempre saiu com vitória,
sem nunca ser vencido”;83 afirmação apresentada para defini-lo a
despeito do seu triste fim em defesa do rei na serra de Benacofu, em
Marrocos.84 A fé – que se apresentava no topo das marcas de
legitimação dos nobres, porque constituía experiência fundadora e
existencial, dada a compreensão da vida como de origem divina e

80
A prática da obtenção e troca de cativos foi corrente no período de guerra entre cristãos e
muçulmanos, legitimada de ambas as partes. D. Afonso V criou inclusive o Tribunal da Redencão
dos Cativos para regular as negociações. Os cristãos, explica António Farinha, eram resgatados
por preços mais elevados, de forma que a liberdade às vezes era por pagamento em numerário.
FARINHA, António Dias. Os portugueses em Marrocos, p. 51.
81
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 221.
82
Com o fim das guerras com Castela nas primeiras decadas do seculo XV, “Marrocos tornou-se o
grande palco de nobilitacão, para escudeiros e cavaleiros da nobreza não fidalga, por servicos
prestados”. MICHELAN, Kátia Brasilino. Ceuta, para alem da terra dos mouros. Tese (Doutorado
em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Franca, 2013, p. 82. Cf. também CRUZ, Abel dos Santos. A nobreza portuguesa
em Marrocos no século XV (1415-1464). Porto: [Edição do Autor], 1995. Disponível em:
<https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/27423>. Acesso em: 6 fev. 2016.
83
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, cap. III, p. 49.
84
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 44.
 
181
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

dirigida a Deus85 – é virtude lembrada no caso de D. Duarte de


Meneses pelo seu poder de reverter vitórias aos cristãos em território
de riscos acrescidos, pois há muito ocupados pelos mouros, como era
o caso no norte da África – onde a afirmação do poder do reino era
garantida.86
Se os cavaleiros que foram louvados nas crônicas anteriores
venceram mouros em território peninsular, com o qual, portanto,
estavam mais acostumados, o capitão português nas terras africanas
precisava da sua fé para vencer inimigos em território desconhecido.
Nas proximidades de Tânger, por exemplo, à fé do conde é atribuída
uma vitória sobre exército inimigo muito mais portentoso, e um
diálogo introduzido na crônica entre o conde e um mouro permite ao
cronista apelar para o elemento maravilhoso cristão como decisivo
para a explicação da vitória surpreendente e para o estabelecimento
de elos históricos. O mouro explica ao conde que seus companheiros
evadiram temerosos de uma batalha em que estavam em vantagem
numérica, porque a evocação de Santiago pelo capitão fez com que
pouca gente parecesse “infinda” aos olhos dos mouros, ao ponto de
que não ousaram “voltar o rosto” para os combatentes cristãos e
aceitaram a derrota, atribuindo a vitória, segundo as palavras que o
cronista diz ser do mouro, ao “Deus principal que senhoreia os céus
e a terra”.87
A obediência a Deus era ainda, como se vê, moeda corrente
na valorização das figuras exemplares da história, porém, a narrativa
contava com outros elementos ilustrativos de como também as
virtudes, apesar do seu estatuto de universal cristão retomado aos
antigos,88 se adaptaram às circunstâncias e necessidades históricas. A

85
CAVALCANTE SCHUBACK, Mareia Sá. Para ler os medievais, p. 200. MARROU, Henri-
Irenée. Saint Augustin et l’augustinisme, p. 68.
86
A nobreza de então se mostrava confiante com as entradas no reino muçulmano de Granada e
vislumbrava agora conquistas mais avançadas. THOMAZ, Luis Filipe; ALVES, Jorge Santos.
Da cruzada ao Quinto Imperio. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada
(Orgs.). Memoria da nação, p. 84.
87
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 60
88
Os teólogos medievais cuidavam para conservar da moral antiga o que ela continha de verdade,
de forma que nem sempre é fácil ver com exatidão como se distinguem. Porém, a relação entre os
meios e os fins não é a mesma entre os antigos e os moralistas cristãos. GILSON, Étienne. O
espírito da Filosofia medieval, p. 394-397, 419, 433. Sobre a tradição das virtudes retomando a
 
182
Investidas moralizantes na história...

mesma adaptação ocorreu a propósito de duas outras virtudes que,


tal como a fé, mereceram destaque nesta história em que os feitos
para ampliação do espaço conhecido – interpretados, como vimos,
como um dos grandes acontecimentos da história iniciada na
Encarnação – eram pensados como o ponto a não ser esquecido: a
prudência e a fortaleza. Essas virtudes, classificadas como cardeais
ou morais, isto é, condutoras da vida ativa,89 aparecem
profundamente articuladas e interdependentes90 na
caracterização/exaltação dos cavaleiros em questão.91 Tal como a
justiça e a prudência nas crônicas dos reis tinham se mostrado
virtudes por excelência, nesta história de conquistadores, a
prudência e a fortaleza formam o par que sobressai. Os cronistas
régios tinham ajudado a fundar a prudência não propriamente como
técnica do agir, mas como condutora e conduzida por um bem a
realizar,92 perseguindo suas marcas: no trajar dos príncipes;93 na sua
conversação;94 nos seus cuidados com a paz e a guerra;95 e, entre
outros, nos planos de acrescentamento do reino.96 Ao focar, já não
tanto o rei, mas ainda a governação e os preparativos para a expansão
na Crônica da Tomada de Ceuta, Zurara incide sobre tais pontos,
posicionando a prudência atrás da justiça, mas exaltando-a como um
hábito “pelo qual o homem por intrínseco conhecimento pode
receber conselho para se arredar das cousas más, e se achegar às

Platão, ver: VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV, p. 238.


89
GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 131.
90
ARMAS, Gregório. La moral de San Agustin, p. 300-302.
91
Vale destacar que, na história ou nas histórias aqui escritas, caracterizar ou descrever é ação
que não se distingue de exaltar.
92
SENELLART, Michel. As artes de governar, p. 192.
93
RUI DE PINA. Chronica do senhor rey D. Affonso V. In: Crónicas de Rui de Pina, cap.
CXXV, p. 753.
94
FERNÃO LOPES. Cronica del rei Dom João I de boa memoria. Parte Primeira, cap. CXCIII, p. 374.
95
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 21, p. 26; RUI DE PINA.
Chronica d´El Rei Dom João II, In: Crónicas de Rui de Pina, cap. XXX, p. 945; FERNÃO
LOPES. Cronica del rei Dom João I de boa memoria. Parte Segunda, p. 2; GOMES EANES DE
ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, cap. X, p. 31.
96
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 26; p. 36-37.
 
183
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

boas”;97 uma definição, pois, que denuncia sua qualidade racional,


ou melhor, de permitir alcançar racionalmente os objetivos no plano
contingente.98 Enquadrada entre os epítetos exaltatórios que os
espelhos de príncipes, outros escritos medievais e as histórias
anteriores e de outras partes tinham ensinado que não podiam faltar,
a prudência, às vezes tradutora da ideia de culto das letras – como
quando se refere a reis cultivadores ou impulsionadores dos saberes,
em especial os reis da dinastia de Avis, por exemplo –,99 é, entretanto,
especialmente lembrada pelo reconhecimento do seu potencial de
delimitar o que é bom do que é ruim, como bem a define Zurara no
retrato que traça de D. Filipa Lencastre (1387-1415): “hábito ou
clara disposição por que o homem por intrínseco conhecimento pode
receber conselho para se arredar das cousas más, e se achegar às
boas”.100 Anunciava-se, assim, no período aqui em questão, não
tanto pelos fins salvacionistas que a distinguiam anteriormente,101
mas sobretudo como a arte de deliberar de forma racional e reta.102
Quando o cronista dedica sua história especificamente aos
“grandes” da expansão, o Infante D. Henrique, depois de religioso,
é distinguido como “tão prudente”.103 Prudência associada ao seu
avisamento e temperança nos atos, e que fica demonstrada, segundo
o cronista, ainda antes de dar início ao seu labor expansionista na

97
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 141. Definição devedora de
Cícero, que definia prudência como a virtude que permite “o conhecimento daquilo que é bom,
daquilo que é mau e daquilo que não é nem bom e nem mau”. CICERO. Treatise on Rhetorical
Invention, 1852, p. 373
98
“Reta razão das coisas por fazer”. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica (1265-1273). Os
hábitos e as virtudes – Os dons do Espírito Santo – Os vícios e os pecados – A lei antiga e a lei nova
– A graça. Vol. 4 – I seção da II parte – Questões 49-114. São Paulo: Edições Loyola, 2005,
Questão 47. Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar, p. 190.
99
Cf. RUI DE PINA. Chronica Del Rey D. Diniz. Sexto de Portugal. In: Crónicas de Rui de Pina,
cap. I, p. 222. Cf. Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. Ed. crítica de Carlos da Silva
Tarouca. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1952. 2 v, p. 4; RUI DE PINA. Chronica do
senhor rey D. Duarte. In: Crónicas de Rui de Pina, prólogo, p. 488; FR. JOÃO ÁLVAREZ.
Chronica do Infante Santo D. Fernando. Ed. crítica por Mendes dos Remédios. Coimbra: F.
França Amado – Editor, 1911, cap. VIII, p. 17; RUI DE PINA. Chronica do senhor rey D.
Affonso V. In: Crónicas de Rui de Pina, cap. CXXIV, p. 752, 880.
100
ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 141.
101
SENELLART, Michel. As artes de governar, p. 49
102
SENELLART, Michel. As artes de governar, p. 190.
103
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 37.
 
184
Investidas moralizantes na história...

África, quando encontra justificativas sábias para convencer seu pai,


D. João I, da viabilidade da tomada de Ceuta. Argumentos como:
sua ascensão ao trono pela graça e vontade de Deus no passado; a
necessidade da guerra contra os infiéis no presente; e o benefício
futuro da conquista, que seria fortalecer a amizade estabelecida
recentemente com Castela, de cujo rei tinha sido inimigo por
acidente e não “por natureza”, como era o caso dos infiéis.104 Fica
igualmente expressa nos traços que compõem seu retrato, em que
“fortaleza de coração e agudeza de engenho” são destacadas “em mui
excelente grau”,105 diferentemente do que era no seu irmão rei, D.
Duarte, em quem a fortaleza não parecia bastante, “como convinha
à sua tamanha dignidade”.106 Mas se tais tópicas ou lugares comuns
se poderiam achar nos louvados de outrora, a singularidade da
prudência do Infante ganha materialidade na sua precaução para
avançar sobre os mouros. Sua qualidade de sisudo e dotado de
“natural prudência” é relacionada ao seu cuidado em “querer saber
o poder de seu inimigo”, tendo trabalhado “de o mandar saber, para
determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles
infiéis”.107
Prudência ou “agudeza de engenho”, complementada por
uma incomum “fortaleza para suportar tantos e tão grandes
trabalhos”, em especial com as armas. Homem cuja “aspereza de sua
vida” não podia ser, certamente, por outro continuada, celebra o
cronista.108 Para ressaltar tal virtude moral no Infante, Zurara chega
mesmo a sugerir que se ela pudesse ser personificada ou pintada, “no
seu rosto e nos seus membros se pudera achar a verdadeira forma”,
afinal, ele tinha vencido a si próprio.109 Tal fortaleza se manifesta na
sua capacidade de suportar as variadas adversidades, como a fome e
a sede ou as noites sem que seus olhos conhecessem sono. Era tão

104
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 47.
105
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 22. Cf. DUARTE PACHECO
PEREIRA. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 78.
106
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, cap. XXV.
107
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 45.
108
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 37.
109
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 37.
 
185
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

notável essa sua virtude que “as cousas que aos homens pareciam
impossíveis, a sua continuada força as fazia parecer ligeiras”,
exclama o cronista.110 Usada como sinônimo de força, a fortaleza
aparece nesta Crônica de Guiné especificamente associada ao uso das
armas. Inúmeras vezes, e não apenas a propósito do Infante mas
também de outros cavaleiros, ela é associada ao desempenho na
guerra contra os mouros – nos quais às vezes se reconhece fortaleza,
apesar de sem o fundamento da verdadeira fé para reforçá-la –, como
evidencia o capítulo final, quando Zurara anuncia que os feitos
derradeiros do Infante, ainda por registrar, não demandaram o
mesmo quantum de “trabalho e fortaleza”, pois manifestaram-se
mais por meio de “tratos e avenças de mercadoria, que por fortaleza
ou trabalho das armas”.111
Aos dois outros “grandes” cujos feitos mereceram capítulo à
parte na história da expansão portuguesa não faltavam, do mesmo
modo, prudência e fortaleza. O conde D. Pedro, nos mais de vinte
anos em que preservou Ceuta sob domínio português, manteve-a,
segundo o cronista no seu retrato final, como cavaleiro dotado de
“grande prudência e não menos ardideza”,112 justamente por não se
deixar vencer em batalha. Cavaleiro “valente e esforçado”, não
apenas mantinha sua própria fortaleza como avivava a dos
portugueses que com ele combatiam, “lembrando-lhes amiúde a
antiga virtude de seus antecessores”.113 No seu espelho e de outros
nobres cavaleiros que o acompanhavam, força e fortaleza,114 muitas
vezes confundidas, aparecem distinguidas como próprias
respectivamente do corpo ou do coração e como causa da conquista
de Ceuta;115 ou “ardimento e fortaleza”, que vinha com eles dos
ventres de suas mães, segundo D. João I.116 Distinguidas, mas

110
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 37, 23.
111
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica de Guiné, p. 406.
112
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 625.
113
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 258.
114
Para uma definição da virtude da fortaleza, ver: Glosa Castellana al “Regimiento de Príncipes”
de Egidio Romano (1344). Edición, estúdio preliminar y notas de Juan Beneyto Perez. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2005, p. 73.
115
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 214.
116
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 259.
 
186
Investidas moralizantes na história...

ligadas, era esta última, entretanto, aquela que realmente importava


e denunciava grandeza. A ela apela o conde para encorajar os seus
quando se mostravam fragilizados, altercando que “não as forças dos
corpos, mas as fortalezas dos corações são as que acabam os feitos das
batalhas”.117
Nascida do coração, a fortaleza, juntamente com aquela arte
de deliberar de forma racional e reta,118 ordenada a um fim, a
prudência,119 teriam lhe garantido tantas vitórias em território
inimigo. Segundo o cronista quatrocentista, depois do cerco a Ceuta,
o louvor ao conde foi acrescido, pois se “conheceu nele a perfeição
que tinha na prudência e fortaleza, porque nunca seu semblante foi
mudado, mas sempre mui alegre, e todas suas cousas feitas mui
sossegadamente sem nenhuma torvação”.120 Como ele, seu filho, o
conde D. Duarte, conjugando “grande esforço e avisamento”,121 pelo
que se entende força do corpo, fortaleza do coração e sabedoria, em
um sentido prático,122 tinha, segundo Zurara, muitos trabalhos e não
sofria por isso, “por que quando lhos a necessidade não apresentava
ele por si mesmo os buscava”.123 Tamanha era sua fortaleza que o
passar do tempo não a diminuía, antes “acrescentava sua vontade
para obrar grandes coisas”, trazendo ainda maior prosperidade, a tal
ponto que, por “suas obras, bem parecia que estava posto no
derradeiro grau de fortaleza”.124
Apesar de mais destacado por sua fortaleza, seu siso para
“governar em grandes feitos” logo cedo se manifestou, pois, tal como
seu pai, não obrava “com maior desassossego e alteração”, segundo a

117
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 214.
118
SENELLART, Michel. As artes de governar, p. 190.
119
TOMÁS DE AQUINO. Do governo dos Príncipes ao rei do Chipre e Do Governo dos Judeus à
Duquesa de Brabante. Editora Anchieta: São Paulo, 1946, p. 20-23.
120
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do conde Dom Pedro de Menezes, p. 485.
121
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, cap. RIIIJ.
122
Confundida por vezes com prudência, a sabedoria, no sentido prático – em que se diferenciava
da erudição também recomendada aos reis –, permitia pensar no alvo, contemplando as coisas
passadas e as futuras. RINCÓN, David Nogales. Los espejos de príncipes en Castilla (siglos XIII-
XV): un modelo literario de la realeza bajomedieval. Medievalismo, p. 25.
123
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, cap. II, p. 49.
124
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 72.
 
187
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

impressão daqueles que o acompanharam.125 Prudência conjugada à


temperança, é esta uma das manifestações daquela virtude também
destacada no conde, e que aparece do mesmo modo reforçada por sua
capacidade de usar uma de suas partes, a previdência,126 na guerra
contra os mouros. Conta Zurara que, “de noite e de dia, provia sobre
as cousas da cidade”, procurando se informar sobre qualquer
movimento que os mouros estivessem preparando para que ele e os
seus não fossem pegos de surpresa.127 Não perdia, pois, de vista o
poder dos inimigos, como os prudentes capitães e reis que antes dele
mereceram louvor.
A confrontação das virtudes e dos vícios, como se pode
observar, embora mais diluída do que nos espelhos de príncipes,
dado que os vícios são principalmente apontados nos inimigos e em
sequências narrativas diferentes, é também, na história/crônica
dedicada às primeiras incursões expansionistas dos portugueses, um
traço notável. Sem poder ou querer se desprender de uma noção
partilhada no seu tempo – e alimentada em grande parte por
pensadores de síntese, como Tomás de Aquino (1225-1274) –, as
crônicas de Zurara, que entendia a história como fonte de verdades,
apresentam-se a nós como uma espécie de quadro de verdades
congeladas, fundado em uma noção de tempo como cadeia
progressiva, em que cada geração se beneficia das verdades
acumuladas pelas precedentes.
Aqueles que por vezes têm dificuldade em aceitar que a verdade
de uma época se reduz a um dizer verdadeiro, e que insistem na verdade
como reflexo dos objetos a que se referem,128 certamente consideram
desprezível tal dimensão convencional e repetitiva da história.
Costumam esses considerar de pouca valia tal face formal da história,
que mais nos permite penetrar nas persistências e moedas correntes de
uma dada época do que nas sutis singularidades que a definem. Foi,
entretanto, esse jogo das verdades naturalizadas o foco do presente

125
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 65.
126
Sobre as partes da prudência, memória, inteligência e previdência, ver: YATES, Frances A. A
arte da memória. Trad. Flavia Bancher. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 38-39.
127
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica do Conde D. Duarte de Menezes, p. 67.
128
VEYNE, P. Foucault. Seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de
Janeiro, 2011, p. 25.

188
Investidas moralizantes na história...

capítulo. De um imenso rol dessas moedas correntes, em que se poderia


destacar a humildade, a piedade, a nobreza, a honra, a castidade, e seus
contrapontos, a soberba, o orgulho, a deslealdade, a intemperança, entre
tantas outras, mereceram aqui destaque a fé, a prudência e a fortaleza.
Por sua recorrência nas crônicas, surgem estas como as virtudes que
mais comumente serviram de referência ao primeiro historiador da
expansão para interpretar as ações dos homens e para avaliá-los.
Trata-se, sem dúvida, de instrumentos de exaltação dos homens,
cuja verdade, por ser da ordem dos valores, não pode ser buscada na
oposição entre aspiração, interesse e realidade vivida, mas nas
combinações entre princípios morais herdados, regras estabelecidas e
personagens e eventos históricos específicos, em outras palavras, na
combinação entre referências do passado e particularidades de uma
formação histórica específica. Examinar, pois, como a história escrita
portuguesa fez uso desses enunciados não significa aceitar como
verdadeiras as virtudes elevadas atribuídas aos personagens das
histórias, apenas significa que aquilo que eles disseram ser verdadeiro
era o que, ao menos, poderia parecer crível àqueles homens de outrora.
Amor a Deus, constância do coração e juízo para seguir no
percalço do bem, seriam esses lugares comuns nos escritos de então
meros epítetos exaltatórios com elevado grau de convencionalismo?
Talvez. Mas nessa trama histórica em que os heróis deviam se
configurar como as obras-primas duradouras e imperecíveis, a
exaltação, se não julgarmos por nós mas por eles, pode dizer muito do
real desejável que conduzia sua história ou suas histórias.

189
 
 

Narrativas portuguesas sobre a Costa da Guiné:


Séculos XV-XVII1

José Rivair Macedo

E
ste texto apresenta uma visão geral, introdutória, acerca do
potencial informativo de narrativas escritas em língua
portuguesa sobre os povos da Costa da Guiné – com maior
ênfase para a região do Noroeste africano nomeada entre meados do
século XV e meados do século XVII de “Guiné do Cabo Verde” e
que mais recentemente tem sido chamada pelos pesquisadores de
Senegâmbia ou “Grande Senegâmbia” – cujos limites naturais eram
o vale do rio Senegal a Norte e o rio Kolenté ao Sul, e que, do ponto
de vista geográfico, corresponde grosso modo aos territórios dos
atuais Senegal, Gâmbia e Casamance, ao arquipélago de Cabo
Verde, à Guiné e ao litoral norte de Serra Leoa, acima da antiga Costa

1
A base inicial deste texto foi uma exposição feita no Seminário Nacional Interlocuções Brasil-
África, promovido pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África, FFLCH-USP, nos dias 11-13
de novembro de 2013. Os dados apresentados integram o projeto de pesquisa “Portugueses e
africanos no contexto da abertura do Atlântico: séculos XV-XVII”, agraciado com Bolsa de
Produtividade em Pesquisa pelo CNPQ, no período entre março de 2013 e fevereiro de 2017.
 
 
191
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

da Malagueta.2 O texto tem finalidade didática, motivo pelo qual não


se pretende desenvolver uma análise mais aprofundada de cada uma
das narrativas nem de seus contextos particulares de produção
textual e enunciação discursiva. Em todos os sentidos, remetemos o
leitor às leituras obrigatórias, incontornáveis, da extensa obra de
Avelino Teixeira da Mota (provavelmente o mais autorizado editor
das fontes portuguesas desse período e lugar),3 aos estudos e edições
documentais feitos por P. E. Hair e, mais recentemente, aos estudos
e interpretações de José da Silva Horta – o mais autorizado
especialista nos assuntos que serão aqui apenas apontados.

***

Na caracterização do amplo corpus documental produzido em


Portugal entre os séculos XV-XVII, uma observação preliminar diz
respeito a quanto tais fontes históricas são representativas das
realidades históricas das sociedades africanas autóctones. Elas
expressam de modo mais direto o mundo afro-europeu aberto pelos
contatos através do Atlântico - eivado de hibridismos e de inovações
em relação ao cenário anterior à expansão marítima.4 Aquelas
realidades aparecem filtradas e ressignificadas aos olhos de
marinheiros, missionários, mercadores e oficiais a serviço da coroa

2
O conceito de Grande Senegâmbia aparece na obra de: BARRY, Boubacar. La Sénegambie du
XV au XIX siècle: traité négrière, Islam et conquête coloniale. Paris: L’Harmattan, 1988, p. 7-35,
esp. 25. Ele foi repensado e alargado pelos pesquisadores Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta
para quem tal noção ia além de uma realidade espacial homogêna, que expressasse algum tipo de
unidade, mas antes sugere um amplo espaço de interação econômica, política e cultural. DIAS,
Eduardo Costa; HORTA, José da Silva. La Senegambie: un concept historique et socioculturel et
un objet d’études réevalués. Mande Studies, Bloomington, n. 9, p. 9-19, 2007.
3
VALENTIM, Carlos Manuel. O trabalho de uma vida. Biobibliografia de Avelino Teixeira da
Mota (1920-1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007.
4
A respeito dessa identidade luso-africana, ver o estudo clássico de BOULEGUE, Jean. Les luso-
africains de Sénegambie. Lisboa: IICT; Université de Paris, 1989; ver também: MARK, Peter The
evolution of “Portuguese” identity: luso-africans on the Upper Guinea Coast from the sixteenth
to the early nineenth century. Journal of African History. Cambridge, n. 40, p. 173-191, 1999 e
MARK, Peter. “Portuguese” style and luso-african identity. Precolonial Senegambia, seixteenth-
nineeenth centuries. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 2002.
 
192
Narrativas portuguesas...

portuguesa, produzindo um rico leque de representações.5


Pouquíssimas vezes os testemunhos documentais procedem ou
dizem respeito diretamente aos africanos, e mesmo quando isso
acontece os referenciais discursivos encontram-se impregnados
pelos valores culturais euro-cristãos,6 o que, entretanto, não invalida
nem compromete o uso que se possa fazer deles em pesquisa
histórica, apenas minimiza sua potencialidade como fontes diretas de
informação das antigas sociedades africanas.
Outra questão preliminar tem a ver com a necessária distinção
entre fontes portuguesas, fontes escritas em português e fontes
escritas por portugueses. Isto quer dizer que o espectro documental
aqui considerado vai muito além daquele restrito à autoria de
lusitanos, pois a primazia de Portugal na expansão marítima
europeia atraiu ao reino navegadores, cartógrafos e homens de saber
provenientes de outros lugares da Europa que deixaram registros em
suas linguas nativas, dando origem a um rico fenômeno de co-
produção textual.7 Os casos mais conhecidos nesse sentido dizem
respeito aos cosmógrafos Hyeronimus Münzer e Martin Behaim;8 ao
veneziano Alvise Da Mosto (vulgo Luís de Cadamosto), que esteve
numa empreitada marítima autorizada pelo Infante Dom Henrique
na embocadura do Rio Senegal e do Rio Gâmbia em 1455-1456; ao

5
HORTA, José da Silva. Entre a História européia e História africana, um objecto de charneira:
as representações. In: Colóquio construção e ensino da História de África. 7, 8 e 9 jun. 1994,
Lisboa. Actas das Sessões realizadas na Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995, p. 189-200.
6
Não quer dizer que tais fontes sejam dispensáveis. Pelo contrário, elas têm grande relevância não
apenas pelas descrições que apresentam, mas pelos testemunhos de africanos que os viajantes e
observadores europeus incorporaram em seus escritos. O valor documental e os critérios de edição
e anotação crítica destes documentos foram longamente debatidos no colóquio European sources
of african history, sobretudo nos textos de P. E. Hair e David Henige. HAIR, P. E. The task ahead:
the editing of Early european-language texts ob black Africa. Paideuma, Stuttgart, v. 33, p. 29-51,
1987; HENIGE, David. The race is not always to the swift: thoughts on the use of written sources
for the study of early african history. Paideuma, Stuttgart, v. 33, p. 53-79, 1987.
7
HORTA, José da Silva. O africano: produção textual e representações (séculos XV-XVII). In:
CRISTOVÃO, Fernando (org.). Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e
biografias. Lisboa: Edições Cosmos, 1991, p. 269-270.
8
Behaim registrou em latim o depoimento oral de Diogo Gomes sobre a descoberta da Guiné. O
texto, reatribuído ao autor da narrativa, foi recentemente editado por Aires Augusto Nascimento.
Descobrimento primeiro da Guiné. Estudo preliminar, edição crítica, tradução e notas de comentário
de Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, 2002.
 
193
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

impressor morávio Valentim Fernandes, estabelecido em Lisboa


desde 1495 até seu falecimento, ocorrido em 1519, responsável pela
publicação dos primeiros livros impressos em Portugal, entre eles,
uma coletânea de obras que registram os conhecimentos das terras da
costa ocidental africana entre 1506-1508;9 e ao caso do relato
intitulado Navigation da Lisbona all’Isola di San Thomè, posta sotto
la linea dell’equinottiale scritta per un pilotto Portoghese, feita entre
1540-1541, publicado em Veneza no ano 1550 no primeiro volume
das Navigationi e Viaggi, de Giovanni Battista Ramusio.10
Conviria ainda considerar a existência de fontes de
informação não-portuguesas coetâneas à expansão marítima e que
tratam de assuntos relacionados aos interesses de Portugal,
preservados em acervos franceses, ingleses e espanhóis, entre outros.
Por exemplo, dois breves relatos germânicos no princípio do século
XVI testemunham o interesse e projeção das navegações portuguesas
no cenário mais vasto da Europa. O primeiro é uma descrição da
Rota da Índia, aparentemente baseada no relato da segunda
expedição de Vasco da Gama (1502-1503), escrito em 1504 por
Lucas Rem, jovem mercador de Augsburg que viveu em Lisboa
entre 1503 a 1508. O outro é de Balthasar Sprenger, que passou por
Lisboa em 1505. A parte mais significativa do relato diz respeito a
uma região denominada Byssegicks, Bissegitz ou Bisegits, que
alguns pesquisadores interpretaram incorretamente como sendo
uma referência ao Arquipélago dos Bijagós (da atual Guiné-Bissau),

9
Sobre o interesse Europeu pelas descobertas portuguesas e o afluxo de estrangeiros para Lisboa,
ver: MATOS, Luís de. La littérature dês découvertes. Les aspects internationaux de la découverte
oceanique: aux XV et XVI siècles. In: Colloque international d’histoire maritime, n. 5, 14, 15 e 16
sept. 1960, Lisbonne. Actes du cinquième colloque international d’histoire maritime présentés par
Michel Mollat e Paul Adam. Paris: S.E.V.P.E.N., 1966, p. 23-29. A respeito especificamente de
Cadamosto e Valentim Fernandes, ver abaixo, notas 26-27, 32.
10
Viagens de um piloto português do século XVI à Costa de África e a São Tomé. Trad. Arlindo
Manuel Caldeira, Lisboa: Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
2000; A Ilha de São Tomé nos séculos XV e XVI: Navegação de Lisboa à Ilha de São Tomé, situada
sob a linha equinocial, escrita por um piloto português e mandada ao conde Rimondo Della Torre.
Edição de Luís de Albuquerque. Lisboa: Edições Alfa, 1979.
 
194
Narrativas portuguesas...

mas é preferível pensar ter-se tratado da Angra de Bezeguiche, nome


de origem local atribuído à atual ilha de Gorée, no Senegal.11

Literatura de viagens

Os mais conhecidos relatos a respeito do encontro entre


portugueses e africanos da área atlântica situada abaixo do Cabo
Bojador a partir de meados do século XV costumam ser associados à
designação geral de “literatura de viagens”,12 o que levanta uma série
de problemas devido à imprecisão, à abrangência e à elasticidade de
um rótulo que continua a ser empregado mais por comodidade que
por convicção.13 Com efeito, mesmo quando submetido a um exame
tipológico superficial, o único denominador comum em produções
textuais tão diferentes quanto a forma, finalidade e conteúdo é o fato
de constituirem enunciações a partir de um mesmo referencial
cultural: a visão de mundo euro-cristã, nesse caso, luso-cristã.14

11
JONES, Adam. The earliest German sources of West Africa (1504-1509). Paideuma,
Frankfurt, n. 35, p. 149-153, 1989.
12
Há dois trabalhos fundamentais para a discussão do conjunto dessas fontes: GODINHO,
Vitorino Magalhães. Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e Guiné. Revista
de História, São Paulo, ano IV n. 13, p. 47-65, 1953; HAIR, P. E. The early sources on Guinea.
History in Africa, ASA-Nova Jersey, v. 21, p. 87-126, 1994.
13
Para a discussão conceitual, ver: CHOUIN, Gérard. Vu, dit ou déduit? L’étude des relations de
Voyage en Guinée. Journal des Africanistes, Paris, v. 75-2, p. 97-111, 2005; CRISTOVÃO,
Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTOVÃO, Fernando (org.).
Condicionantes culturais da literatura de viagens, p.16-52; CARVALHO, João Carlos F. A. de.
Ciência e alteridade na literatura de viagens: estudo de processos retóricos e hermenêuticos.
Lisboa: Edições Colibri, 2003.
14
O quadro geral da imagem construída pelos europeus foi analisado por HORTA, José da Silva.
Le portrait de l'Africain dans l'écriture de la recontre: XV-XVI siècles. Les Ateliers des intérpretes:
Revue Européenne pour Historiens d'Art, Berlim, n. 4, p. 61-91; 1992.; HORTA, José da Silva.
Primeiros olhares sobre o africano do Saara Ocidental à Serra Leoa: meados do século XV - inícios
do século XVI. In: FERRONHA. António Luís (org.). O confronto do olhar, o encontro dos povos
na época das navegações portuguesas (séculos XV e XVI): Portugal, África, Ásia, América. Lisboa:
Ed. Caminho, 1991, p. 73-126; DESTRO, Letícia Cristina Fonseca. Diferentes olhares sobre a
África negra: uma análise etnográfica dos relatos de viajantes. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional –MinC, 2008; MONIZ, António Manoel de Andrade. A literatura portuguesa de
viagens do século XVI: deslumbramento e confrontação. In: portos, escalas e ilhéus no
relacionamento entre o Ocidente e o Oriente, 2001. Actas do congresso internacional comemorativo
do regresso de Vasco da Gama a a Portugal. Coordenação de Avelino de Freitas de Meneses.
 
195
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Do ponto de vista da configuração narrativa, o mais antigo


desses textos – a Crônica dos feitos notáveis que se passaram na
conquista da Guiné, escrita em 1453 pelo Guarda-Mor da Torre do
Tombo, Gomes Eanes de Zurara – se enquadra na tradição cronística
portuguesa de enaltecimento dos príncipes da dinastia de Avis, aqui
representados na figura heróica do Infante Dom Henrique,15 e o
espírito que anima sua descrição é a tradicional guerra contra os
mouros, ainda que ao longo da narrativa a percepção da alteridade se
modifique na medida em que, aos mouros convencionais do litoral
do Marrocos e da Mauritânia, os navegadores passaram a ser
confrontados com essa outra categoria étnico-racial portadora de
formas sócio-culturais, aspecto corporal e cor distintos, os “mouros
negros”, logo identificados pelo adjetivo “guinéus”, ou
simplesmente “pretos”.16
Bem diferente quanto a forma, conteúdo e padrão narrativo é
a Navigazione, de Alvise Cadamosto, que se enquadra melhor no
gênero textual dos relatos de viagem.17 Nesse caso, o que se tem é uma
enunciação discursiva em primeira pessoa, portadora de uma
experiência original de contato cultural com povos estranhos aos seus
costumes, de quem dá a conhecer o modo de vida e o modo de

Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Universidade dos


Açores, 2001. v. 2, p. 455-482.
15
GOMES EANES DE ZURARA. Crónica dos feitos notáveis que se passaram na conquista da
Guiné por mandado do Infante D. Henrique. Estudo crítico e anotações por Torquato de Souza
Soares. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1978; GOMES EANES DE ZURARA.
Chronique de Guinée (1453) de Gomes Eanes de Zurara. Traduite et annotée par Léon Bourdon.
Paris: Éditions Chandeigne, 1994.
16
LOUREIRO, Rui Manuel. A visão do mouro nas crónicas de Zurara. Cadernos Históricos,
Algarve, v. IV, p. 60-83, 1991; CARVALHO, Margarida Barradas de. L’idéologie religieuse dans
la Crónica dos Feitos de Guiné de Gomes Eanes de Zurara. Bulletin des Études Portugaises, Lisboa,
t. 19, p. 34-63, 1955-1956; BARRETO, Luís Filipe. Gomes Eanes Zurara e o nascimento do
discurso historiográfico da transição. In: BARRETO, Luís Filipe. Descobrimentos e Renascimento:
formas de ser e pensar nos séculos XV-XVI. Lisboa: Comissariado para a XVII Exposição
Européia de Arte, Ciência e Cultura, 1985, p. 63-125; BOISVERT, Georges. La dénomination
de l’autre africain au XV siècle dans les récits des découvertes portugaises. Lhomme, Paris, n. 153,
p. 167-168, 2000.
17
Sobre as aproximações e distanciamentos entre “relato de viagem” e a categoria mais vasta de
“literatura de viagens” consultar: SILVA, Lorenzo. Viajes escritos y escritos viajeros. Madrid:
Anaia, 2000; ALMERCEGUI, Patrícia. La experiencia del viaje. Revista de Occidente, Madrid,
n. 280, p. 5-6, 2004; ver ainda o sítio eletrônico do Centre de Recherche sur la litterature des voyages,
da Université de Nice. Disponível em: <http://www.crlv.org>. Acesso em: 02 dez. 2013.
 
196
Narrativas portuguesas...

organização social sem referências etnocêntricas prévias.18


Cadamosto não julga, não enaltece nem inferioriza, apenas se esforça
para enquadrar em termos convencionais ideias e conceitos que ele
tem consciência de serem essencialmente diferentes dos seus.19 Daí o
excepcional valor da descrição “etnográfica” que ele oferece dos
povos de língua wolof da embocadura do Rio Senegal e do rio
Gâmbia.
Outro testemunho em primeira pessoa, que se enquadra no
subgênero do relato memorialístico, é a narrativa do flamengo
Eustache Delafosse (ou Eustache de la Fosse) sobre uma expedição à
Costa da Guiné iniciada em 1479, numa tentativa de quebra do
monopólio reivindicado pela coroa portuguesa.20 Aprisionado em
1481, sem suas mercadorias e embarcação, acabou sendo levado a
Lisboa, de onde conseguiu fugir depois de algum tempo, refugiar-se
na Espanha e de lá retornar a sua terra.21 O pouco conhecimento que
tinha do incipiente negócio do trato atlântico fica bem evidenciado
na descrição, que acaba sendo mais de incompreensões e desventuras
que de experiências adquiridas ou vistas nas populações com as quais

18
LUÍS DE CADAMOSTO. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. Prefácio e notas
históricas por Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1988.
19
CORRÊA, Silvio Marcus de Souza. A imagem do negro no relato de viagem de Alvise Cadamosto.
Revista Politéia, Vitória da Conquista, v. 2, 2001. Disponível em:
<http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/view/157>. Acesso em 04 nov. 2013;
DEVEAU, Suzanne. A organização do Espaço, de Arguim a Serra Leoa na segunda metade do século
XV e a sua progressiva descoberta pelas portugueses. In: DEVEAU, Suzanne. A descoberta da África
Ocidental. Ambiente natural e sociedades. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 241-242; RONCIÈRE, Charles de la. La découverte de
L'Afrique au Moyen Age: Cartographes et Explorateurs (Mémoires de la Société Royale de
Géographie d'Égypte). Caire: Institut Français d'Archeologie Orientale, 1924. v. 3, p. 88-99.
20
EUSTACHE DELAFOSSE. Voyage d´Eustache Delafosse à la côte de Guinée, au Portugal &
en Espagne (1479-1481). Prefácio de Théodor Monod e transcrição, notas e comentários de Denis
Escudier. Paris: Ed. Chandeigne, 1992; MAUNY, Raymond. Eustache De La Fosse – Voyage à
la Côte Occidentale d’Afrique (1479-1480). Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Bissau, n. 14,
p. 181-195, 1949; EUSTACHE DE LA FOSSE. Crónica de uma viagem à Costa da Mina no ano
de 1480. Trad. e adaptação por Pedro Alvim. Lisboa: Editorial Veja, 1992.
21
HERAS, Ignacio Iñarrea las. Animales y animalidad en el Voyage de Eustache de la Fosse.
Revista Francofonia, Madrid, n. 17, p. 131-148, 2008; RUSSELL, P. E. New light on the text of
Eustache de la Fosse’s Voiage à la Guinée (1479-1480). In: RUSSELL, P. E. Portugal, Spain and
the African Atlantic, 1343-1490. Londres: Varioum Reprints, 1995, p. 1-12; HAIR, P. E. A note
on De La Fosse’s Mina vocabulary of 1479-1480. The journal of West African Languages,
Londres, v. 3, n. 1, p. 55-57, 1966.
 
197
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

entrou em contato direto e que são poucas, devido ao


desconhecimento das línguas locais. De qualquer modo, é um olhar
diferenciado, distante dos móveis ideológicos que orientaram os
navegadores portugueses e deram legitimação à empresa
ultramarina, alheio e contrário àquilo que Jaime Cortesão chamou de
“política do sigilo” na era dos descobrimentos.22
Muito menos significativos quanto ao substrato
“etnográfico” são os textos que se enquadram no gênero roteiros de
navegação, cuja intenção declarada é fornecer orientação segura aos
“homens do mar” que percorriam a Senegâmbia.23 São textos
sumários que contêm a denominação dos acidentes geográficos,
enseadas, ilhas e áreas marítimas propícias à navegação, as distâncias
aproximadas e a duração prevista para o deslocamento das
embarcações. Indicações utilíssimas aos navegadores que percorriam
caminhos ainda pouco conhecidos no princípio do século XVI,
quando Valentim Fernandes os inseriu no códice destinado a servir
de repositório dos conhecimentos náuticos adquiridos na centúria
anterior. Os dois mais antigos deles são De prima inventione Guinee,

22
A expressão aplica-se a certo conjunto de iniciativas da coroa portuguesa, sobretudo no período
de governo de D. João II, no sentido de manter em segredo determinados fatos e conhecimentos,
de modo a garantir o monopólio dos lugares mais importantes contatados pelos navegadores
portugueses, ver: CORTESÃO, Jaime. A política do sigilo nos descobrimentos: nos tempos do
Infante Dom Henrique e de D. João II. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do
Quinto Centenário da Morte do Infante Dom Henrique, 1960. Também os africanos mantiveram
em sigilo certas informações sobre as rotas do comércio e as fontes de exploração do ouro, não
obstante a insistência dos portugueses em ter acesso direto a elas, cf: SANTOS, Maria Emília
Madeira. Caminhos e contatos comerciais na Costa da Mina durante as duas primeiras décadas do
século XVI. In: DOMINGUES, Francisco Contente; BARRETO, Luís Filipe (org.). A abertura
do mundo: estudos de História dos descobrimentos europeus em homenagem a Luís de
Albuquerque. Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 117; WEN-MEWUDA, J. Batoora Ballong.
São Jorge da Mina (1482-1637): la vie d’un comptoir portugais en Afrique occidentale. Lisbonne;
Paris: Foundation Calouste Gulbenkian; Commission Nationale pour les Commemorations des
Decouvertes Portugaises, 1993. v. 2, p. 407-412.
23
Desenvolveram-se paralelamente ao aprofundamento dos conhecimentos geográficos e ao
florescimento da cartografia, que assumiram papel de centralidade na ampliação da visão de
mundo europeia no final do século XV e início do século XVI, ver: MOTA, Avelino Teixeira da.
O Noroeste africano na cartografia portuguesa antiga. Boletim cultural da Guiné Portuguesa,
Bissau, v. III n. 9, p. 173-198, 1948; DEVEAU, Suzanne. Os geográfos portugueses e os
Descobrimentos. In: DEVEAU, Suzanne. A descoberta da África Ocidental, p. 247-272;
MASSING, Andreas. Mapping the Malagueta Coast: a history of the Lower Guinea Coast, 1460-
1510 through portuguese maps and accounts. History in Africa, ASA - Nova Jersey, v. 36, p. 331-
365, 2009.
 
198
Narrativas portuguesas...

atribuído a Diogo Gomes de Sintra, Livro de rotear (1508), de autoria


anônima, e Roteiro de João de Lisboa (1514), que foi um dos mais
experientes pilotos portugueses.24
A esses devem-se acrescentar as informações deixadas em
Esmeraldo de Situ Orbis, composto entre 1505-1508 pelo navegador
Duarte Pacheco Perreira, mas, devido à abrangência e à variedade
temática deste livro, é difícil reduzi-lo a um mero roteiro marítimo,
sendo antes preferível ver nele a grande síntese dos conhecimentos
náuticos e a primeira tentativa de enquadramento histórico dos
contatos dos portugueses com os povos africanos ocidentais.25 Para
Joaquim Barradas de Carvalho, no testemunho de Pacheco Pereira
podem-se detectar elementos da crônica, dos relatos de viagem, dos
roteiros e guias náuticos e dos tratados de geografia.26 Bom leitor dos
escritores greco-romanos e conhecedor da tradição árabe e cristã dos
tempos medievais, foi além da tradição geográfica ao incorporar em
seu discurso registros da própria experiência de navegador e bom
conhecedor dos “rios da Guiné”, quando observou in loco as terras,
povos e acidentes geográficos que descreve nos três primeiros livros
do seu tratado.27

24
Os mais antigos roteiros da Guiné. Edição crítica de Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa
da História, 1992; Descobrimento primeiro da Guiné; Description de la cote Occidentale d’Afrique
(Senegal au Cap de Mont, Archipels) par Valentim Fernandes (1506-1510). Edição de Raymond
Mauny. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1951; Códice Valentim Fernandes.
Edição de José Pereira da Costa. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1997.
25
Esmeraldo de Situ Orbis. Côte occidentale d’Afrique du sud marocain au Gabon, par Duarte
Pacheco Pereira. Trad. Raymond Mauny. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1956;
Esmeraldo de Situ Orbis. Introdução e anotações de Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa
da História, 1988.
26
CARVALHO, Joaquim Barradas de. A la recherche de la specificité portugaise: L’Esmeraldo de
Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira et la litterature portugaise de voyages à l’époque des grandes
découvertes. Paris: Centre Culturel Portugais; Fondation Calouste Gulbenkian, 1983, p. 399-400;
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de Situ
Orbis. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982.
27
Sobre o valor da experiência e a mudança de paradigma explicativo da visão de mundo expressa
na fonte, ver: MARINHO Elby Aguiar. Imaginário e experiência no Esmeraldo de Situ Orbis de
Duarte Pacheco Pereira (séculos X-XVI). Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal de Goiás. Goiás, 2008; SOUZA, Camila
Fernandes de. O Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira: mudanças e permanências
epistemológicas em Portugal no século XVI. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2011;
CARVALHO, João Carlos F. A. de. Ciência e alteridade na literatura de viagens, p. 183-224.

199
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

O Esmeraldo de situ orbis constitui talvez o mais eloquente


testemunho do processo de incorporação do universo africano à visão
cristã de mundo; o que transparece na nomeação dos acidentes
geográficos e dos povos mencionados. Conhecer, nomear e
caracterizar eram, nesse caso, operações pelas quais todo um mundo
que se descortinava tornava-se palpável, mais próximo, conhecido.
Tratava-se de uma apropriação mental, simbólica, do espaço
africano, que ocorria em paralelo a uma aproximação efetiva de
pontos estratégicos do litoral atlântico desde a fundação do forte de
São Jorge da Mina, em 1482. Na denominação dos povos, os
etônimos ou topônimos são transportados para a língua portuguesa,
ganhando sonoridades novas, ressignificadas, mas neles se reconhece
a marca original, como Çanagá (Senegal), Tambuctu (Tombuctu;
Timbuktu), Jalofo (Wolof; Jolof), Beni (Benin), Mandinga
(Mandinka; Mandenka), Guabu (Kaabu; Gabu). O ideário cristão é
a todo instante projetado no ambiente natural: montes e serras, cabos
e enseadas que, ao serem batizados (ou rebatizados) com nomes de
santos ou eventos da cristandade, acabam por ser refundidos,
assimilados ao universo cultural lusitano.28
Espécie de “fotografia do real”, o Esmeraldo de Situ Orbis se
move no campo do imediato, de modo que sua estrutura narrativa,
os critérios de seleção e de escolha dos assuntos são de ordem
eminentemente material, econômica. O texto é dirigido àqueles
interessados em participar do lucrativo comércio aberto nas carreiras
dos “rios da Guiné”, e o historiador Luís Filipe Barreto detetou este
traço fundamental de sua composição ao afirmar: “o seu discurso é
uma exposição informativa para uma melhor e maior economia do risco

28
Reproduzia, neste ponto, um traço comum do comportamento dos navegadores portugueses,
que deste modo enquadravam mentalmente espaços recentemente descobertos nos modelos bem
conhecidos de sua própria visão de mundo, ver: ROSA, Maria de Lurdes. Velhos, novos e
mutáveis sagrados... Um olhar antropológico sobre formas ‘religiosas’ de percepção e
interpretação da conquista africana (1415-1521). Lusitania Sacra, Lisboa, 2ª série, n. 18, p. 13-85,
2006; VENTURA, Maria da Graça Alves Matheus. O batismo do(s) novo(s) mundo(s): a
toponímia como sistema de leitura do mundo. In: VASCO DA GAMA: HOMENS, VIAGENS
E CULTURAS, 4 a 7 de novembro de 1998. Actas do Congresso Internacional. Lisboa: Comissão
Nacional das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 279-304.
 
200
Narrativas portuguesas...

e do lucro na navegação da costa ocidental africana”.29 De fato, a todo


instante o escritor aponta os produtos que interessavam aos
negociantes portugueses e sua equivalência em cauris e manilhas de
ferro ou de latão. A mercadoria mais indicada é a humana: escravos
obtidos em diferentes pontos de troca para serem levados nas
embarcações, nem sempre até Lisboa. Junto com tecidos de algodão,
peles de leopardo, óleo de palma e cauris, serviam de moeda de troca
por ouro no incipiente comércio mantido com mercadores africanos
em São Jorge da Mina.30

Literatura missionária

Comparativamente, o volume de informações de documentos


de proveniência religiosa produzidos a respeito da Guiné foi muito
menor do que o que se produziu na África central, onde o processo
de difusão do cristianismo ocorreu em paralelo com os primeiros
contatos político-econômicos estabelecidos no antigo estado do
Congo, desde o fim do século XV, e se intensificou com a conquista
gradual do Ndongo, a partir do fim do século XVI. Aqui, as
referências textuais de autores vinculados aos meios religiosos
aumentaram apenas a partir do século XVII, quando se
multiplicaram as ações missionárias e se consolidaram as estruturas
administrativas do clero secular local.31 Todavia, ainda que
incipiente, a ação missionária aparece retratada em textos de
diferente teor, qualidade e tamanho, desde informações pontuais em
cartas e relatórios até exames mais detalhados da cosmologia e

29
BARRETO, Luís Felipe. Duarte Pacheco Pereira e a ordem do discurso empírico. In:
BARRETO, Luís Filipe. Descobrimentos e Renascimento, p. 219.
30
Sobre esse incipiente comércio: VOGT, John. Portuguese rule on the Gold Coast. Athens:
Georgia University Press, 1979; WEN-MEWUDA, J. Batoora Ballong. São Jorge da Mina
(1482-1637); PEREIRA, João Cordeiro. Resgate do ouro na Costa da mina nos reinados de D.
João III e D. Sebastião. Studia, Lisboa, n. 50, p. 5-48, 1991.
31
Henrique Pinto Rema idêntica a origem da obra missionária no próprio contexto da abertura de
contatos dos portugueses com a Guiné e Cabo Verde. Entretanto, ele próprio informa ter sido
criada a diocese de Santiago em 1533 e que, embora tenham havido esforços da parte primeiro de
carmelitas e depois de jesuítas a partir de 1584, caberia aos franciscanos capuchinhos espanhóis
maior sucesso na empreitada espiritual a partir de 1644. REMA, Henrique Pinto. História das
missões católicas da Guiné. Braga: Editorial Franciscana, 1982, p. 119.

201
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

costumes dos africanos, em longos tratados descritivos com vistas à


conversão.
Entre os primeiros testemunhos da ação missionária na região
mais ampla da Guiné está a correspondência dos frades franciscanos
Mestre Miguel Magro, Frei Francisco e Frei Antônio com os reis D.
Manuel e D. João III, a respeito da tentativa de conversão dos povos
do Benin. As cartas oscilam entre o otimismo de uma primeira
conversão do Obá Esigie, em 1514, e a decepção frente ao gradual
abandono do cristianismo e ao retorno à “idolatria”, com a prática de
sacrifícios humanos e, inclusive, perseguição aos cristãos.32
Para a reconstituição do contexto em que se deu a implantação
inicial dos jesuitas na África, um testemunho de excepcional
qualidade são os anais do padre Fernão Guerreiro, durante os anos
decorridos entre 1600-1608. A julgar por suas informações, a ação
jesuítica foi bem mais modesta do que a missão dos capuchinhos, que
seria iniciada algum tempo depois, em meados do século XVII, e que
contou com centenas de missionários a serviço da Propaganda Fide
– vinculada à Santa Sé. Para a área e período que nos interessam, um
amplo panorama da ação catequética aparece descrita no quarto
livro, intitulado Das coisas da Guiné e Serra Leoa, onde constam as
atividades realizadas e os obstáculos enfrentados pelo Padre Baltasar
Barreira e seis ou sete outros missionários, no fim do século XVI.33
Não se trata, porém, de relato direto, de primeira mão, mas o
resultado de um trabalho de cópia de informações retiradas de um
manuscrito que sintetizava as principais informações da área insular
de Cabo Verde, Guiné e Serra Leoa, a partir, por sua vez, do relato
minucioso deixado por André Álvares d’Almada – sobre o qual se
tratará adiante.
A falta de exatidão de muitas informações concernentes a
Guiné que circulavam em Portugal parece ter motivado a redação do
mais importante testemunho da obra jesuítica na região, a Descripção

32
Documento n. 29 - Carta dos missionários do Benin a D. João III, 30/08/1539. In: Monumenta
Missionária Africana. Edição de António Brásio. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1963. v. 2,
p. 79-80; BRÁSIO, António. Política do espírito no ultramar português. Portugal em África,
Lisboa, 2ª série, ano VI, n. 31, 1949, p. 20-290, 75-86, 209-222.
33
Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas suas missões, nos anos
de 1600 a 1609, pelo padre Fernão Guerreiro. Edição de Arthur Viegas. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1930. v. I, p. 240-284.

202
Narrativas portuguesas...

da Etiópia Menor e Província da Serra Leoa, composta pelo Padre


Manuel Álvares em 1615, que se apresenta como o relato mais
completo das tradições religiosas, “superstições” e cerimônias
qualificadas como “idolatrias”. Embora a narrativa esteja
condicionada à visão de mundo cristã que rechaçava tais práticas,
fechando-se em seus próprios referenciais e negando valor social às
formas de organização religiosa das populações locais, o autor teve
que prestar grande atenção aos costumes que pretendia erradicar, de
onde, então, a descrição detalhada de hábitos associados ao
enterramento, às crenças nos antepassados; as instituições
domésticas e públicas que davam sustentação ao tecido social dos
jalofos e fulas do Senegal e Gâmbia; dos mandingas, biafadas e
bijagós da Guiné; dos manes, bagas e sumbas de Serra Leoa.34 Não
se tratava apenas de descrever, comparar e classificar os dados
observados, mas de se valer deles para, com conhecimento de causa,
os erradicar.35
O acesso à obra de Manuel Álvarez tem sido dificuldado
devido ao fato de seu único manuscrito não dispor de edição
impressa. A obra encontra-se no setor de “reservados” da biblioteca
da Sociedade de Geografia de Lisboa, com acesso e pesquisa local
autorizados a pesquisadores, mas sem possibilidade de reprodução
parcial ou integral. Uma cópia encontra-se na biblioteca do Instituto
de Investigação Científica Tropical, onde vem sendo desenvolvido
desde 2011 um projeto de publicação do documento por José da Silva
Horta e, a julgar pela informação de Carlos Lopes, outra cópia
poderá ser encontrada no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
da Guiné Bissau, INEP.36 Enquanto não se concretiza o trabalho de

34
MANUEL ÁLVARES. Descripção da Etiópia Menor, e Província da Serra Leoa. Lisboa:
Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Ms. Res. 3 E-7. 1615. 123 fls.
35
Por causa disso é que parece prematura a qualificação das informações dos relatos missioneiros
como “pré-antropológicas” ou “proto-antropológicas”, como pretende GONÇALVES, José
Júlio. Contribuição dos missionários para o desenvolvimento da Antropologia. Studia, Lisboa, n.
53, p. 103-146, 1994. Além disso, os africanos não se mantiveram passivos diante do processo de
cristianização, selecionando nele aquilo que lhes convinha, não pondo em causa seus próprios
sistemas de valores, como bem demonstrou MBEMBE, Achille. África insubmissa: cristianismo,
poder e Estado na África pós-colonial. Luanda; Lisboa: Edições Mulemba; Edições Pedagô, 2013.
36
LOPES, Carlos. O Kaabu e seus vizinhos: uma leitura espacial e histórica explicativa de
conflitos. Afro-Ásia, Salvador, v. 32, p. 9-28, 2005, p. 22.
 
203
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

edição do documento, o único recurso de acesso a seu conteúdo é


conseguido a partir de uma tradução feita para a língua inglesa por
Paul E. Hair em 1978,37 disponibilizada em meio eletrônico no sítio
da African Studies Collection, da Universidade de Wisconsin.38
Dois outros textos portugueses relativos à evangelização da
Guiné são bem menos ricos em informação de cunho “etnográfico”.
O primeiro é um opúsculo escrito pelo Padre Manuel Severim de
Faria em 1622, Sobre a propagaçam do evangelho nas provínicas de
Guiné, no qual se apresentam as vantagens políticas e morais da
criação de seminários para a formação de um clero local.39 O segundo
é o relato do pregador e missionário André de Faro que, junto com
outros 12 franciscanos portugueses, em 1662 atuou a partir da Ilha
de Santiago na tentativa de conversão dos povos da Guiné. Nesse
caso, o núcleo da narrativa é mesmo a ação missionária, suas agruras
devido às intempéries e ao clima tropical, as dificuldades
encontradas nos contatos com os chefes locais, a estranheza diante da
flora e da fauna e a incompreensão dos usos e costumes locais,
perpassados pela idolatria que, como era de esperar nesse tipo de
relato, acabava por impregnar toda a imagem dos africanos – vistos
como “selvagens”. Não obstante, cada capítulo começa geralmente
pela descrição do respectivo povo, suas crenças e hábitos, costumes
alimentares e tradições jurídicas, sua posição perante o cristianismo,
atividades de subsistência, curiosidades ou particularidades.40
Tambem devem ser mencionados os documentos produzidos
pelos capuchinhos andaluzes que atuaram nas tentativas de

37
HAIR, Paul E. The Teixeira da Mota Archive and the Guinea texts Project. History in Africa,
ASA – Nova Jersey, v. 10, p. 387-394, 1983, p. 389.
38
Ethiopia Minor and a geographical account of the Province of Sierra Leone (c. 1615). Department of
History, University of Liverpool, 1990. Disponível em: <http://digicoll.library.wisc.edu/cgi-
bin/AfricanStudies/AfricanStudies-idx?id=AfricanStudies.Alvares01>. Acesso em: 30 nov. 2013.
39
FARO, Jorge. Manuel Severim de Faria e a evangelização da Guiné. Boletim Cultural da Guiné
Portuguesa, Bissau, v. XIV, n. 53, p. 460-497, 1959, onde consta a transcrição integral do
documento.
40
Peregrinação de André de Faro à terra dos gentios. coleção As Grandes Aventuras e os Grandes
Aventureiros. Edição de Luís Silveira. Lisboa: Tipographia Portugal; Brasil; Livraria Bertrand,
1945, p. LIV; SILVEIRA, Luís. Contribuição portuguesa para o conhecimento da Guiné: os
testemunhos de André Álvares de Almada e de André de Faro. In: Conferência internacional dos
africanistas ocidentais (Bissau, 1947). Lisboa: Junta de Investigações Coloniais – Ministério das
Colónias, 1952. v. IV, p. 405- 412.
 
204
Narrativas portuguesas...

evangelização dos povos do Benin, de Arda (Ardra, Adra ou Allada,


onde posteriormente viria a se desenvolver o antigo reino de Daomé)
e de Popó, de 1658 a 1660. Embora a missão não tenha tido pleno
sucesso, dela resultou a elaboração de um catecismo cristão bilíngue
intitulado Doctrina christiana, em espanhol e na língua de Ardra.41
Os missionários atuaram igualmente em Cabo Verde, Guiné e Serra
Leoa desde 1644 até 1688, e as informações que fornecem na
correspondência com os representantes da ordem na Espanha dão
conta tanto das dificuldades enfrentadas com os chefes locais quanto
com as autoridades portuguesas, que tudo faziam para dificultar sua
missão evangélica.42
Dos franciscanos portugueses há um manuscrito inédito
numa biblioteca particular de Braga em que consta o segundo
volume da Crónica da Província franciscana de Nossa Senhora da
Soledade, composto em 1697 por Francisco de Santiago e continuada
em 1771 por Frei Manuel da Mealhada. A obra registra dados
retirados de relatórios ou depoimentos recolhidos entre seus
confrades que de Ribeira Grande partiam com o intuito de
evangelizar os povos das terras guineenses. Nos capítulos XVII e
XVIII do 10º livro há apontamentos de indiscutível valor histórico
sobre as instituições sociais, políticas e religiosas dos papéis (ou
pepéis) antes de sua conversão ao cristianismo. Constam
informações sobre as práticas ocorridas em locais de sacrifício
chamados “Chinas” ou nos pequenos templos denominados
“Valoba”, onde realizavam-se augúrios e vaticínios. Há igualmente
registros a respeito do modo pelo qual faziam a guerra, seus costumes
alimentares, suas concepções de justiça, formas de organização

41
O documento manuscrito contém 14 fólios, encontra-se transcrito e reproduzido em edição
facsimilar ao final do livro de: LABOURET, Henri; RIVET, Paul. Le royaume d’Arda et son
evangélisation au XVII siècle. Paris: Institut d’Ethnologie, 1929.
42
O conjunto da documentação encontra-se publicado por Mateo de Anguiano. Misiones
capuchinas en Africa. Publicado por Mateo Anguiano. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas; Instituto Santo Toribio de Mogrovejo, 1957. t. II – Misiones al reino
de la Zinga, Benin, Arda, Guinea y Sierra Leona. Para a reconstituição histórica dos eventos, ver:
RECHEADO, Charlene. As missões franciscanas na Guiné. Dissertação (Mestrado). Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2010.
 
205
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

administrativa e de sucessão dos régulos, a quem conferiam o título


de mandimácenessey.43
Para finalizar esta parte, cumpre mencionar a documentação
reunida, anotada e editada por Avelino Teixeira da Mota,
concernente ao batismo de Becampolo-Có, régulo dos papéis que
ocupavam Bissau, após a intervenção de Frei Vitoriano Portuense,
que era bispo de Cabo Verde desde 1687. Firmava-se deste modo a
posição dos portugueses, após uma longa disputa pela evangelização,
com sucessivas tentativas por parte de jesuítas e franciscanos
portugueses, e depois, espanhóis. Além das cartas redigidas pelo
bispo ao rei de Portugal em 1695-1696, encontram-se publicados
excertos de relatos de viajantes franceses, trechos de relatos de
missionários, a correspondência mantida pelo chefe papel com a
coroa portuguesa e documentos concernentes à crise sucessória
aberta após a morte daquele que, com o batismo cristão, passou a ser
chamado de D. Pedro pelo tio, Izinhá, e pelo irmão uterino, Tôro Có,
que pretendiam igualmente sucedê-lo.44

Narrativas locais

A partir das últimas décadas do século XVI começa a ganhar


corpo na Guiné um tipo distinto de configuração discursiva, cuja
maior particularidade prende-se ao fato de ser enunciada por
indivíduos bastante familiarizados com o contexto local, seja por
terem ali atuado durante muito tempo na condição de mercadores ou
servidores da monarquia, seja por terem ali nascido. Pertencem ao
grupo dos “filhos da terra” ou dos “práticos da Guiné” que, junto
com os “lançados”, contribuíram para o povoamento e exploração

43
DIAS, António J. Crenças e costumes dos indígenas da ilha de Bissau no século XVIII – segundo
manuscrito inédito. Portugal em África: revista de missiologia, Lisboa, 2ª série, v. II, 1945, p. 159-
165, 223-230; ARAÚJO, António de Souza. Em torno da Crónica da Província de Nossa Senhora
da Soledade de Frei Francisco de Santiago. Lusitania Sacra, n. 23, p. 233-241, 2011.
44
As viagens do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné e a cristianização dos reis de Bissau.
Edição de Avelino Teixeira da Mota; Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar –
Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1974.
 
206
Narrativas portuguesas...

econômica das ilhas do Arquipélago de Cabo Verde e estabeleceram


os primeiros contatos com os povos da Guiné insular e continental.45
Essa categoria de produção escrita corresponde, grosso modo,
a uma modalidade de representação e apropriação do espaço
africano, atribuindo-lhe significados novos de modo a lhe conferir
uma identidade portuguesa ou luso-caboverdiana que se expressa na
denominação que se tornará corrente doravante: “Guiné do Cabo
Verde”.46 Expressa em última instância certa identidade luso-
africana no espaço litorâneo atlântico que, embora seja tributária dos
códigos culturais e de uma visão de mundo europeia, não era alheia
às particularidades das sociedades africanas em que ganharam
forma.
O contexto histórico no qual tais textos foram produzidos
explica em parte sua importância como veículos de uma imagem
positiva da África em Portugal e na Espanha, considerando-se que
alguns foram escritos no período da União Ibérica (1580-1640). O
primeiro deles, que é o menos carregado de dados “etnográficos”, é
Relação da gente que vive desde o cabo dos Mastos te Magrobamba na
Costa da Guiné, ditado oralmente por António Velho Tinoco,
magistrado e capitão da cidade de Ribeira Grande, ao jesuíta Padre
Fernão Rebelo, entre 1582-1585.47 O conteúdo diz respeito à ação
militar por ele liderada em 1574 em Serra Leoa, onde venceu uma

45
Para os processos de interação na África atlântica, ver o estudo de VENÂNCIO, José Carlos. A
problemática social dos mestiços em África: a sua comparação com a situação asiática. Disponível
em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6896.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2013; sobre os
processos de interação entre populações africanas no contexto guineense, ver SANTOS, Beatriz
Carvalho dos. Entre mouros e cristãos: os Mandingas da Guiné do Cabo Verde. Dissertação
(Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niteroi, 2013; quanto ao fenômeno de interação
lingüística que esteve na origem do processo de constituição das línguas crioulas e pidginização,
ver: COUTO, Hildo Honório do. Comunidade e linguagem na Costa da Guiné nos séculos XV,
XVI e XVII. Polifonia, Cuiabá, n. 7, p. 87-102, 2003.
46
O estudo mais completo a respeito do assunto foi realizado por HORTA, José da Silva. A Guiné do Cabo
Verde: produção textual e representações (1578-1684). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011; uma
síntese do estudo aparece em texto do mesmo autor: HORTA, José da Silva. O Nosso Guiné: representações
luso-africanas do espaço guineense (séculos XVI-XVII). Disponível em: <http://cvc.instituto-
camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/jose_silva_horta.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2013.
47
Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625). Publicado por Avelino Teixeira da Mota,
como apêndice ao texto de André Donelha. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar – Centro
de Estudos de Cartografia Antiga, 1977, p. 332-357.
 
207
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

armada francesa que tentava estabelecer contatos comerciais com as


populações nativas, e suas negociações posteriores com um chefe dos
manes, que, segundo ele, manifestava vivo interesse em se converter
ao cristianismo. Conversão, pacificação e difusão da influência luso-
caboverdiana aparecem entrelaçados em seu discurso que, dessa
forma, assume forte caráter propagandístico.
O que se pretendia naquele instante era a defesa de áreas
consideradas de exclusivo acesso aos portugueses por mercadores
franceses e ingleses, que disputavam dentro e fora da Europa as áreas
de influência do vasto império espanhol. Enquanto a exploração
portuguesa na Costa da Mina tinha se enfraquecido e começava a
soçobrar diante da pressão dos mencionados concorrentes e dos
flamengos,48 na Alta Guiné alguns “lançados” rompiam com o
monopólio pretendido pela coroa ao negociar diretamente com não-
ibéricos. Era preciso, além disso, frear o avanço dos concorrentes
rumo ao Sul, na região de Serra Leoa, até então pouco contactada
pelos portugueses. Os textos, em seu conjunto, pretendem servir de
instrumento para o conhecimento deste último espaço e para a
posterior conversão de seus governantes, estratégia costumeira de
aproximação e estabelecimento de relações diplomáticas e
comerciais. Vincula-se, entretanto, a um projeto cabo-verdiano de
colonização da Serra Leoa.49
É este o intento do mais conhecido entre os textos aqui
considerados, o Tratado Breve dos Rios (ou dos Reinos) de Guiné do
Cabo Verde, escrito de próprio punho em 1594 pelo capitão André
Álvares d’Almada, que era natural da Ilha de Santiago, filho de pai
português e de avó de origem africana.50 O mesmo intento que levou

48
Aspectos retratados de modo detalhado no longo documento intitulado Informação da Mina, redigido em
1572, que se encontra no setor dos “reservados” da Biblioteca Nacional de Lisba. Informação da Mina.
Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, Setor dos "reservados". Ms. 8457. 1572.
49
HORTA, José da Silva. A Guiné do Cabo Verde, p. 176-227; SANTOS, Maria Emília Madeira.
As estratégias ilhas de Cabo Verde ou a ‘FrescaSerra Leoa’: uma escolha para a política de expansão
portuguesa no Atlântico. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1988.
50
ANDRÉ ÁLVARES D’ALMADA. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde. Publicado por
Diogo Kopke, Porto: Typografia Commercial Portuense, 1841; Tratado breve dos rios de Guiné feito
pelo capitão André Álvares d’Almada. Edição nova e tradução de Luís Silveira. Lisboa: Edição
patrocinada pelo Governo da colónia da Guiné no V Centenário do Descobrimento, 1946. As
traduções mais recentes do Tratado breve dos rios de Guiné são: Tratado breve dos rios de Guiné do
 
208
Narrativas portuguesas...

algumas décadas depois outro escritor nativo, André Donelha, a


compor em 1625 sua Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do
Cabo Verde.51 Neles se pode encontrar a identificação dos acidentes
geográficos, rios e enseadas das áreas retratadas, farta descrição da
flora e da fauna, das particularidades das terras e dos climas, seguido
de detalhada relação dos povos nativos, como os jalofos e fulas
(Senegal), arriatas, falupos, buramos, bijagós, beafares ou biafadas,
nalus, manjacos, bagas e coquolins (Guiné), sapes e sumbas (Serra
Leoa), com suas formas de organização social e política, crenças,
cerimônias e, inclusive, acontecimentos que envolviam as relações
entre portugueses e determinados chefes locais.
São textos de natureza completamente distinta daqueles
anteriormente inseridos no gênero da “literatura de viagens”.
Procedem não de considerações genéricas e exteriores, feitas por
indivíduos pouco afeitos aos costumes nativos, mas da profunda
experiência pessoal e direta de seus autores, que haviam participado
militar ou diplomaticamente dos contatos com os africanos durante
vários anos. Embora o foco da enunciação discursiva seja o mesmo,
isto é, o ponto de vista dos portugueses, que aparecem sempre
identificados como “os nossos”,52 os “outros” não são
completamente estranhos, e os narradores dominam, ao menos de
modo parcial, os códigos culturais daqueles a quem descrevem, pelo
que são textos mais extensos do ponto de vista da descrição, mais
ricos do ponto de vista das informações e mais densos e profundos do
ponto de vista do retrato fornecido.53 Seus autores percebem ao

Cabo Verde. Leitura, interpretação e notas de António Brásio. Lisboa: Editorial L.I.A.M., 1954;
Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde. Leitura, introduçao, modernização do texto e notas de
António Luís Ferronha. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994.
51
ANDRÉ DONELHA. Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625). Lisboa:
Junta de Investigações Científicas do Ultramar – Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1977.
52
PUGA, Rogério Miguel. O discurso (etnográfico) da alteridade no Tratado Breve dos Rios da Guiné
do Cabo Verde (1594) do Capitão André Álvares de Almada. Disponível em: < http://cvc.instituto-
camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/rogerio_miguel_puga.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013;
FERNANDES, Raul Mendes. André d’Almada: um certo olhar ‘renascentista’. Disponível em:
<http://cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n2/documentos/2006_raul_fernandes_andre_dalmada.pdf>.
Acesso em: 18 dez. 2013.
53
Alguns aspectos particulares desses escritos foram ressaltados nos seguintes estudos: HORTA,
José da Silva. Evidence for a luso-african identity in ‘portuguese’ accounts on Guinea of Cape
 
209
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

menos superficialmente a dinâmica interna das sociedades africanas,


notam os pontos de aproximação entre as populações senegambianas
que antes fizeram parte do Estado do Grão Jolof (nomeados de Grão
Fulo), o movimento migratório e comercial dos povos mandingas
rumo ao Oeste e sua vinculação com a difusão do islã e, sobretudo, a
instalação dos povos manes e sumbas em Serra Leoa a partir de 1550,
o que reconfigurou a ocupação daquele território.
Quanto a Descrição da Costa da Guiné desde o Cabo Verde
athe Serra Leoa com todas ilhas e rios que os brancos navegam, redigida
pelo mercador Francisco de Lemos Coelho em 1669, e depois
reescrita em 1684,54 como nos demais, a abundância de informação
sobre os povos e sociedades locais tinha a finalidade de instruir os
interessados a tirar melhor proveito dos contatos comerciais. O foco
principal da narração envolve os contatos estabelecidos na
negociação de produtos de interesse, como tecidos, bebidas
alcoólicas, noz de cola, objetos de metal, artefatos de uso doméstico,
ouro e “presas” para o tráfico de cativos. Mas aqui também se pode
vislumbrar um amplo painel das vivências sociais em espaço
atlântico, onde os africanos, embora não sejam detentores da palavra
narrada, ganham protagonismo e aparecem em traços menos
estereotipados.

***

Eis, em síntese, um breve balanço do conjunto da


documentação portuguesa nos dois primeiros séculos de contato na
área guineense, período em que a coroa portuguesa pretendeu
exercer o monopólio nos encontros com os povos do litoral atlântico
africano. Neste trabalho não se teve a pretensão de fornecer uma
avaliação precisa das possibilidades de estudo e pesquisa, mas apenas
o propósito de identificar a variedade de testemunhos históricos,

Verde, sixteeenth-Seventeenth centuries. History in Africa, ASA - Nova Jersey, v. 27, p. 93-130,
2000; SANTOS, Beatriz Carvalho dos. Os escritos do ultramar: o aporte do olhar luso-africano
nos relatos sobre a “Guiné de Cabo Verde (séculos XVI-XVII). Cultura Histórica & Patrimonio,
Alfenas, v. 1 n. 2, p. 152-173, 2013.
54
ANDRÉ DONELHA. Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625).

210
Narrativas portuguesas...

quando se sublinharam os mais conhecidos ou os mais significativos


e foram verificados seus diferentes condicionamentos histórico-
culturais. Em sua diversidade de gênero, forma e composição, tais
fontes podem fornecer ao pesquisador importantes registros acerca
das experiências dos povos africanos, contribuindo dessa forma para
lhes devolver a consciência histórica de sua antiguidade e
singularidade.

211
 

 
 

A hagiografia na escrita da História Medieval:


convergência e divergência de dois modelos de
discurso

Armando Martins
Universidade de Lisboa

Ao P. Benoît Lacroix, OP
(1915-2016)

E
m um dos seus mais belos diálogos, Platão refere o mito da
invenção da escrita. Põe Sócrates a dizer ao seu amigo Fedro
que deseja contar-lhe uma história transmitida pelos
antigos, avisando-o, porém, de que se ela é verdadeira ou não só Deus
sabe; mas, se nós pudermos conhecer a verdade, porquê preocupar-
nos com o que dizem os homens?!
Havia no Egipto um deus, de nome Toth que inventou os
números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e
os dados e também a escrita. O país era governado pelo rei Tamuz
que residia no sul, na cidade de Tebas. Toth foi ter com ele e
mostrou-lhe as suas artes, dizendo-lhe que elas deveriam ser
ensinadas aos egípcios. O rei, porém, quis saber da utilidade de cada

 
213
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

uma e, à medida que o inventor explicava, ele aprovava ou criticava,


conforme lhe pareciam boas ou más.
Quando chegaram à escrita, disse Toth: “Esta arte, caro rei,
fornecerá aos egípcios mais saber, mais ciência e mais memória;
portanto, com a escrita, inventei um grande remédio – pharmakon.
Para a ciência e para a memória, o remédio está encontrado! Depois
de pensar um pouco, logo o rei lhe replicou: “Grande artista, Toth!
Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou
prejuízo que advirá aos que a exercerem! Tu, como ‘pai da escrita’,
esperas dela, com o teu entusiasmo, precisamente o oposto do que ela
pode fazer. A verdade é que, ao contrário do que dizes, tal coisa
tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória;
confiando apenas no que estiver escrito, só se lembrarão de um
assunto por meio de sinais e não por si mesmos. Logo, tu não
inventaste um remédio para a memória, inventaste foi um seu
veneno”!1
Permitamo-nos, como fez o filósofo Paul Ricoeur, a
transposição do mito da invenção da escrita para o plano das relações
entre memória e a história, a história escrita, na Idade Média. Tal
operação é-nos autorizada na medida em que a história também é
escrita. Exorcizemos, primeiro, toda a suspeita de que a história seja
prejudicial para a memória, mas não ignorando que pharmakon,
sendo sinónimo de “remédio” e de “veneno”, também o é de
“cosmético”! Podíamos citar, como prova, muitos prólogos dos
diplomas exarados nos cartulários, das vitae ou das crónicas. Demos,
porém, a palavra a cronistas ou historiadores.
Num manuscrito de 1176, proveniente do mosteiro
cisterciense de Alcobaça, em Portugal, afirma-se, confiadamente,
que a escrita além de guardiã fiel da memória, inova, confirma e
transmite: “Fida memoriae custos est scriptura; haec enim, antiqua
inovat, nova confirmat, confirmata ne in posterum notitiae temporum
diuturnitate oblivioni tradantur representat”.

1
PLATÃO. Fedro. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, p. 120-121. Aqui adaptada a partir de
Platon. Phèdre. Paris: Flammarion, 1997.
 
214
A hagiografia na escrita...

Richard de Bury, em Inglaterra, ao falar dos livros escritos,


saúda-os como antídoto salutar contra todo o esquecimento: “O
dirae cladis antidotum salutare”!2

2.

Tem-se designado, tradicionalmente, com o nome de


“hagiografia” um conjunto de textos nos quais se conta a vida e
milagres dos santos. Etimologicamente, o vocábulo significa
precisamente “escrita sobre os santos”, embora tal matéria tenha
sido também conhecida como “hagiologia” ou “hagiológica”.
Hagiógrafos eram os seus autores. Depois, começou a entender-se
como um género literário próprio, visto ter um objecto preciso (os
santos) e visar uma finalidade concreta: a edificação (por actos
exemplares). Enquanto “género” era devedor da biografia, do
panegírico, do elogio fúnebre romano e da lição de moral. Alguns
autores preferem hoje dizer que, mais que género literário, a
hagiografia é antes “um feixe convergente de modos narrativos
complexos, tendo por objecto comum exaltar a recordação e o poder
de um santo” (A. Boureau).3
Nascida com alguma dificuldade com os primeiros
calendários litúrgicos e praticada nos meios cristãos desde a
Antiguidade Tardia, com a redacção das primeiras vitae (Vita
Antonii, Vita Martini), o conceito evoluiu semanticamente, quer
com a extensão da sua finalidade ao longo da Idade Média, quer com
o trabalho crítico exercido sobre seu o corpus constituinte, levado a
cabo, em Bruxelas, pela Sociedade dos Bolandistas4 desde o século
XVII – época em que o vocábulo se forjou.

2
BURY, Richard de (1286-1345). Philobiblon ou O Amigo do livro. Ed. bilíngue, tradução e notas
de Marcelo Cid. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 43 e 168.
3
Certos autores contemporâneos utilizam “hagiologia” para se referirem ao campo de estudo que
toma como objecto o corpus hagiográfico. Ver: SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo
hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval,
2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de
Literatura Medieval. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 97.
4
A sociedade dos ‘Bolandistas’ nasceu em Bruxelas, formada por um grupo de jesuítas, em torno
de Jean Bolland, no século XVII, com o objectivo de proceder a estudos críticos sobre as obras
 
215
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

A hagiografia crítica afirma-se assim como um ramo da


história, na medida em que os seus métodos não diferem dos que são
aplicados a qualquer outro assunto embora, como ramo especial,
tenha procedimentos próprios derivados do objecto e do carácter
especial dos seus documentos. Neste segundo sentido, hagiografia é,
hoje, o trabalho científico feito por um investigador (filólogo,
linguista, historiador, etnólogo) sobre os textos hagiográficos, sua
tradição, o culto dos santos, as vivências sociais e o carácter histórico
das repercussões à sua volta!
Sintetizemos: as formas mais conhecidas do primeiro sentido,
praticadas na Idade Média, são as vidas de santos (vitae, legenda,
historia), mas também certos episódios que os notabilizaram (actas
de martírio, passiones) ou colectâneas de milagres e narrativas de
trasladações das suas relíquias. O leque é mais vasto se lhe
acrescentarmos martirológios, martirológios históricos, calendários,
catálogos episcopais, sermões, livros litúrgicos, relatos de
peregrinações e outros.
Até final do período medieval (e um pouco para além dele)
caracterizou-as um modelo discursivo de narrativas, com várias
versões, quase sempre romanescas, com recurso ao maravilhoso,
onde a imaginação é mais fértil que o rigor histórico; obedece a
lugares comuns da retórica de exaltação, tornando-as uma linguagem
codificada que exige cuidados especiais por parte do historiador de
hoje, do arqueólogo e do historiador da Arte.
Aparentemente repetitiva e monótona, sempre dramática,
esta literatura conheceu grande evolução especialmente nos séculos
XII e XIII, em ligação com as novas concepções de santidade, a sua

hagiográficas. Trata-se de um trabalho que começou a realizar-se no quadro da Contra-Reforma,


para responder aos Protestantes que atacavam o culto dos santos. Assim nasceu a publicação das
Acta Sanctorum, edição erudita de todos os textos conhecidos acerca de santos, segundo a ordem
do calendário. Publicaram-se 68 grandes volumes de entre 1 de janeiro a 10 de novembro, detendo-
se aqui na impossibilidade de estudar todos os textos hagiográficos acerca de S. Martinho de Tours
(11 de novembro). A colecção dos textos foi acompanhada de um trabalho crítico que analisava a
santidade da personagem e justificava o culto que lhe era dirigido. Este aspecto deu origem a
amplos comentários colocados na introdução do texto de cada santo. Inicialmente apologética esta
hagiografia deu origem, nos séculos seguintes a um procedimento crítico mantido pelos seus
continuadores. A obra de padre Hippolyte Delehaye, SJ., Cinq leçons sur la méthode
hagiographique, Bruxelles, 1934, define esta hagiografia crítica como um ramo da ciência histórica,
importante também no domínio da história das mentalidades.

216
A hagiografia na escrita...

utilização e a sua difusão. Permanecendo herói, o santo, em relação à


ideia que dele se fazia no passado, deixa de ser uma figura só
admirável, para se tornar um modelo imitável. Se os santos da alta
Idade Média eram nobres ou tidos como tal, por uma questão de
princípio simbólico, desde o século XII começam a ser canonizados
homens comuns, tal como Omobono, um obscuro alfaiate de
Cremona, na Itália, em 1199.
Esta mutação conceptual foi favorecida pelo desenvolvimento
da espiritualidade penitencial: ao contrário do que enunciavam os
textos anteriores, o santo não era um predestinado desde a sua
origem, não nascia como tal, mas fazia-se através de uma conversão
de vida, tanto mais notável quanto antes mais conhecido era como
pecador. Esta é uma das razões por que o culto de santas antigas
como Maria Madalena ou Maria Egipcíaca começou a conhecer
desde então, uma extraordinária difusão em todo o Ocidente.
Sob a influência dos Cistercienses, mas sobretudo das Ordens
Mendicantes, a dimensão pastoral da hagiografia não deixa de
aumentar sendo a sua finalidade apresentar aos fiéis, através da vida
dos santos, modelos de comportamento e ortodoxia numa época em
que heresias como o catarismo e a pregação valdense se difundiam e
seduziam muitos crentes. O apelo mais directo era à conversão de
vida pela prática dos sacramentos, em especial da Eucaristia. Neste
sentido vemos surgir narrativas de milagres de tipo novo, já não
ligados a um santuário mas a um santo e à frequência sacramental:
por toda a parte se fala de milagres eucarísticos, como em Santarém
em 1266 ou, dois anos antes, em Bolsena, que Rafael imortalizou
num fresco célebre.
Por outro lado os hagiógrafos começam a organizar
legendários breves para colocar à disposição do clero paroquial textos
até então pouco acessíveis e que lhes pudessem ser de utilidade nas
festas dos santos ao longo do ano litúrgico. Sabemos que o principal
instrumento de difusão dessas compilações foi a obra Legenda
Dourada ou Áurea, do dominicano Tiago de Varazze (ou Voragine),
composto entre 1260-1265 na Itália, de que existem mais de mil
manuscritos latinos e viria a conhecer extraordinário sucesso até
meados do século XVI, sendo logo traduzida nas principais línguas
vernáculas. Com a invenção da imprensa foi um dos livros mais

217
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

editados, conhecendo-se 49 edições nos últimos trinta anos do século


XV (1470-1500) e treze, nos primeiros do século XVI (1531-1560).5
O conhecido Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, com
ilustrações em xilogravuras, acrescentado com mais alguns santos
dispersos, então ditos “extravagantes”, foi em Portugal o nosso
modelo hagiográfico, por excelência.
É possível, hoje, estabelecermos relações próximas entre os
modelos de discurso da história, da hagiografia e da arte? Ou
poderemos continuar a dizer que a hagiografia se situa na
extremidade da história, é a sua tentação, a sua traição e que aos
artistas como aos poetas são lícitas outras liberdades?! Que método
utilizar para o averiguar? Numa óptica tradicional, o medievalista
francês, Pierre-André Sigal, há uns quarenta anos, ainda entendendo
a hagiografia como género literário, propunha um procedimento em
duas etapas: Primeiro, tentar ver o que as fontes hagiográficas trazem
ao historiador enquanto material de história e questionar-se,
criticamente, para saber se elas nos fornecem elementos válidos para
a reconstituição do passado ou não. Em seguida, podemos examinar
as relações entre o “género histórico” propriamente dito e o “género
hagiográfico”, isto é, a maneira como os autores de obras históricas e
os autores de obras hagiográficas conceberam e organizaram o seu
trabalho de escrita.
Acerca da primeira atitude, sabemos hoje, depois de muitos
anos de controvérsias e debates, ultrapassada a fase de atitude
hipercrítica ligada com a escola metódica ou positivista, e
especialmente com o advento da prática da história das
mentalidades, como muitos textos hagiográficos contêm
informações fidedignas sobre factos que reportam e da época da sua
escrita, em geral, pormenores e dados da vida quotidiana.6 Mas, a sua
leitura exige do historiador de hoje o exercício da arte da
descodificação.

5
LE GOFF, Jacques. À la recherche du temps sacré Jacques de Voragine et la Légende dorée. Paris:
Parrin, 2011, p. 7-8.
6
SIGAL, Pierre-André. Histoire et hagiographie: les miracula aux XIe et XIIe siècles. In:
L'historiographie en occident du Ve au XVe siècle, n. 8, 1977, Tours. Actes des congrès de la Société
des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public. Tours, 1977. p. 237.

218
A hagiografia na escrita...

Apoiando-se em alguns autores muito seguidos há meio


século, Sigal mostrava como as opiniões sobre esta matéria eram
divergentes, sendo difícil de traçar uma fronteira nítida entre os dois
tipos de escritos. Faria a hagiografia parte da historiografia?
Deveriam distinguir-se claramente? Porquê? Para responder a estas
questões, Sigal socorria-se dos argumentos e da autoridade de
autores como Dom Jean Leclercq, OSB (1911-1993), Baudouin de
Gaiffier (1897-1984), Hippolyte Delehaye (1859-1941) e Benoît
Lacroix (1915-2016), entre outros. Para Leclercq, nos anos 50, a
hagiografia era, efectivamente, uma forma de historiografia,
aplicando-se-lhe simplesmente os métodos de um domínio
específico.7
Hippolyte Delehaye, bolandista, marcara posição muito
tempo antes, especialmente com o seu trabalho Les Légendes
hagiographiques, cuja primeira edição datava de 1905, especificando
que “a obra hagiográfica pode ser histórica mas não o é
necessariamente”8 e precisava o seu pensamento:

o hagiógrafo inspira-se em ideias correntes sobre a história,


mas escreve a história com uma finalidade especial e bem
definida que não fica sem influência sobre o carácter da sua
obra. De facto, ele não conta apenas para interessar mas,
antes de tudo, para edificar. Um género novo se criou que
tem parte de biografia, de panegírico e de lição de moral.9

Por sua vez, o historiador canadiano Benoît Lacroix, na


conhecida obra L’historien au Moyen Age, distinguiu nitidamente
hagiografia e história e decidiu afastar do estudo desta as Vitae ou
outros textos do género, justificando essa separação pela submissão
a critérios da própria Idade Média que via na história e na hagiografia
dois géneros distintos10!
Sigal, colocando-se ao lado da posição de Leclercq precisava,
sublinhando a importância do tempo:

7
LECLERCQ, Dom Jean. Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age. L’Amour des lettres
et le désir de Dieu, Paris: Les éditions du cerf, 1963, p. 154.
8
DELEHAYE, Hippolyte. Les Légendes hagiographiques, Bruxelles: [s.d.], 1905, p. 2.
9
DELEHAYE, Hippolyte. Les Légendes hagiographiques, p. 77.
10
LACROIX, Benoît, p. 44-55.

219
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Quando a intenção moralizadora domina o desejo de


reconstituir o passado no seu desenrolar cronológico, o
hagiógrafo afasta-se do historiador. Pelo contrário, quando a
proximidade dos eventos, a exigência dos arquivos ou de
tradições torna possível um plano cronológico, o autor
comporta-se como historiador – historiador do culto
prestado ou do poder taumatúrgico atribuído: é este
elemento que opera a ligação entre os factos individuais e
isolados, que lhes permite serem notados e, por isso,
tornarem-se factos históricos.11

Os temas hagiográficos têm, tradicionalmente, encontrado


pouco eco na historiografia portuguesa contemporânea, mesmo a
medieval. É certo que, desde os anos 40-50 do século XX, alguns
autores, dispersos vinham fazendo estudos notáveis: Miguel de
Oliveira e Mário Martins estão entre os principais.12 Investigavam e
escreviam numa linha herdada da Academia Real da História
Portuguesa (1721) que começara a estudar de forma crítica certas
tradições que se tinham introduzido na liturgia e importava expurgar
santos imaginários, como Pedro de Rates (45-60 d.C.), suposto
primeiro bispo de Braga do qual não havia documento algum!
Porém, só desde finais do século passado estes estudos, no que
à Idade Média se referia, encontrariam eco na Universidade, com
trabalhos pioneiros não propriamente de historiadores (com
excepções, como Pierre David em Coimbra ou José Mattoso em
Lisboa) mas, de especialistas em estudos de filologia românica, na
FLUL, como Aires do Nascimento ou Maria Clara de Almeida
Lucas e, mais recentemente, Cristina Sobral,13 ou a historiadora

11
SIGAL, Pierre-André. Histoire et hagiographie: les miracula aux XIe et XIIe siècles. In:
L'historiographie en occident du Ve au XVe siècle, n. 8, 1977, Tours. Actes des congrès de la Société
des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public, p. 256-257.
12
Ver: NASCIMENTO, Aires do. Hagiografia. In: TAVANI, Giuseppe; LANCIANI, Giulia
(org.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa, Caminho, 1993.
13
SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da
Associação Hispânica de Literatura Medieval, 2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção
Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, p. 97-105; SOBRAL, Cristina.
 
220
A hagiografia na escrita...

Maria de Lurdes Rosa, da UNL e da UC.14 No Porto, afirmaram-se


os modernistas José Adriano de Carvalho, Maria de Lurdes
Fernandes e Pedro Vilas Boas Tavares. Também nos domínios da
História da Arte, têm sido feitos trabalhos especialmente com Vitor
Serrão e Luís Afonso, ambos da Faculdade de Letras da UL.
Nos últimos anos, estudos de historiadores, linguistas e
filólogos, sobre a especificidade da hagiografia – enquanto género
literário ou género histórico – e sobre a sua validade documental,
mostram que a tentativa de enquadrá-la num sector exclusivo não
contribui para a compreensão adequada dos seus textos!
Conhecendo as distinções conceptuais acima referidas e a prática
tradicional dos historiadores, admite-se que quase todos os traços
definidores da hagiografia (incluindo os de carácter edificante e
pedagógico ou o recurso a modelos bíblicos e litúrgicos) se
encontram também na historiografia medieval e que, concretamente,
uma distinção rigorosa não é fácil.15
Aires do Nascimento, em edições de certos textos do século
XII redigidos no mosteiro de S. Cruz de Coimbra, como as Vita
Tellonis, Vita Theotonii e Vita Martini Sauriensis, que em 1998
publicou com o nome de Hagiografia de Santa Cruz, manifestou
mais recentemente dúvidas sobre aquela designação, inclinando-se,
sem optar pela sua classificação historiográfica, para uma elaboração
no que chama de “registo paralitúrgico”.16
Filólogos e linguistas, como já o fizera em França o
historiador modernista Michel de Certeau (1925-1986), propõem a
substituição do conceito de “género” pelo de “discurso”: não é a
atenção a factos da história política nem de marcos cronológicos ou a

Hagiografia em Portugal, balanço e perspectivas. Revista Medievalista on line, Lisboa, n. 3, p. 1-


18, 2007.
14
Maria de Lurdes Rosa. Hagiografia e Santidade. In: AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Dicionário
de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. v. C-I, p. 326-335.
15
GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans l’Occident médiéval. Paris: Aubier
Montaigne, 1980, p. 53 e 55.
16
NASCIMENTO, Aires do. O Júbilo da vitória: celebração da tomada de Santarém aos Mouros
(a.D. 1147). In: Congrés internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval, n. 10,
2005, Alicante. Actes del X Congrés Internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval.
Alicante, 2005, p. 1217-1232.
 
221
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

interpolação de documentos jurídicos que impede a formalização


hagiográfica do discurso que os integra, desde que além destas
características este apresente as que definem o discurso hagiográfico:
“Uma narrativa hagiográfica é histórica por ser um emblema da
consciência colectiva num dado lugar e num dado tempo e por ter
modelado o posterior entendimento do seu objecto, o santo”.17
Ou seja, propõem que a hagiografia se inscreva no mesmo
campo epistemológico da historiografia, se inclua numa história
sagrada, ao considerar o santo como objecto de um culto, porque há
entre as duas formas uma permeabilidade enquanto modelos de
discurso, lugares de fixação da memória e de construção simbólica do
passado!
Assim: se é verdade que “o devir histórico e a modificação das
condições cultuais formam e alteram modelos de comportamento
cujo cumprimento os textos demonstram (os textos imitam a
realidade);” também é certo que “a tradição literária enquanto tal,
também determina e condiciona o devir histórico: os santos imitam
os santos dos textos que conhecem (a realidade imita os textos)”.18

Conclusão

Condenadas, como fantasias, pela Igreja logo nas origens


(objecto de um decreto gelasiano, 492-496, qual primeiro Index), as
narrativas hagiográficas, Gesta Martyrum e especialmente as
Passiones Sanctorum, só tardiamente e com reticências foram aceites
na liturgia (séc. VIII). Com o “renascimento carolíngio”, nos séculos
VIII e IX, nas frequentes ‘translationes’ de relíquias, muitas vitae
foram re-escritas, (ou seja, re-interpretadas, visto que o contexto
histórico tinha mudado, sendo agora rica a comparação dos dois
planos de escrita).19 Os séculos IX e X foram igualmente de

17
Thomas Hefferman apud SOBRAL, Cristina. Hagiografia em Portugal, balanço e perspectivas.
Revista Medievalista on line, p. 99.
18
SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da
Associação Hispânica de Literatura Medieval, 2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção
Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, p. 100.
19
SOT, Michel. Hagiographie. In: GOUVARD, Claude; SIRINELLI, Jean-François (dir.).
Dictionnaire de l’historien. Paris, PUF, 2015, p. 326.

222
A hagiografia na escrita...

criatividade hagiográfica, mas a sua idade de ouro seria nas centúrias


centrais da Idade Média, como dissemos.
A partir do século XVI a hagiografia conhece dois caminhos
divergentes: por um lado é combatida como idolatria nos meios da
Reforma protestante, vindo depois a ser severamente condenada,
como literatura de superstição, pelos coriféus do Iluminismo. O
século XIX romântico redescobriu-a como literatura destinada ao
povo, e seguidamente entrada no folclore, “onde representaria esse
fundo ‘natural’ do homem de que uma elite erudita de folcloristas e
etnólogos seria agora intérprete e espécie de consciência”.20 Poderia
esta via perceber o que ela tinha de fundo próprio e característico,
verdadeiramente?
O segundo caminho foi inaugurado no século XVII com o
trabalho e selecção crítica dos bolandistas – “esses ourives da
hagiografia”, no dizer de Jacques Fontaine – preocupados com a
restituição dos textos, a historicidade dos relatos, a influência do e
sobre o culto dos santos pelo público leitor ao longo dos séculos. No
século XX os progressos da linguística, da história literária e da
história das mentalidades medievais vieram a contribuir, naquela via
crítica, para uma aproximação mais distante e mais científica na
busca do seu significado mais profundo.
Hagiografia e história?
Consciente da diferença, no século XII, o historiador
Orderico Vital lamentava-se de não poder ser hagiógrafo para poder
narrar apenas factos edificantes! “Gostava mais de nos meus escritos
falar apenas dos santos e dos seus encantadores milagres”!21 Como a
ele, a Guilherme de Tiro era-lhe dramático ter de falar mal da pátria,
não poder celebrar a terra natal e mostrar-se orgulhoso dos seus
compatriotas,22 porque o tema do historiador é uma coisa concreta,
narrar verdade é muitas vezes arriscado e, como já dissera Salústio,
mesmo entre os perigos, o historiador devia sentir-se espicaçado a
servir a sua terra com a pena, como outros a serviam com as armas,

20
CERTEAU, Michel de. Hagiographie. In: Encyclopédie Universalis. Paris, 1980. v. 8, p. 208.
21
ORDERICO VITAL. Historia ecclesiastica, VIII apud LACROIX, p. 146.
22
ORDERICO VITAL. Historia ecclesiastica, VIII apud LACROIX, p. 145.
 
223
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

arriscando a vida: “Inter tot higitur periculorum (…) urgentissimus


instat amor patriae (…) si id necessitatis articulus exigat, vitam tenetur
impendere”.23
Assim, se entendermos como D. Jean Leclercq, história e
hagiografia como dois géneros distintos, devemos reconhecer que
eles têm características comuns, mas não uniformidade, nem no
estilo nem nos métodos. Quanto ao objecto, os historiadores
monásticos medievais inscreviam a história particular na história
geral da salvação e a finalidade última de ambas confluía.24 Ao
contrário do que hoje fazemos, pois como diz H. Marrou: “a verdade
da história não é a verdade da hagiografia”! Também não é a da Arte!
Se, porém, entendermos hagiografia e história como dois
modelos de discurso, afastado o hipercriticismo positivista, os traços
comuns permitem-nos situá-las ambas no mesmo campo
epistemológico.25 Com efeito, o modelo hagiográfico é mais do que
mera retórica de edificação ou de transmissão de uma intenção
didáctica. “Não é discurso inocente”.26 Sob um aparente
conservadorismo e monotonia de lugares comuns há um dinamismo
de apelo à mudança através da evocação de um passado, em parte
imaginário e eivado de maravilhoso. “A narrativa quer dizer outra
coisa diferente de si mesma: transmite a verdade da fé; ilustra o
dogma, figura a santidade. Oferece um princípio de sentido”.27 A
hagiografia que, nos séculos XI a XIII, se tornou elemento central da
vida religiosa, na dimensão pastoral de acesso à prática sacramental,
organizara o seu cânone cujo melhor exemplar foi a Legenda
Dourada, obra de uma verdadeira ‘teologia alternativa’, mais lida e
de maior influência nas massas do que as obras dogmáticas dos
grandes teólogos!

23
Guilherme de Tiro. Historia rerum apud LACROIX, p. 167. Tem directa ressonância medieval
o lema que os eruditos editores alemães escolheram, em 1826, para os MGH: ‘Sanctus amor patriae
dat animum’!
24
Ver LECLERCQ. Dom Jean. Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age. L’Amour des
lettres et le désir de Dieu. Paris: Editions du Cerf, 1963, p. 151.
25
Bernard Guenée refere que sendo em princípio géneros distintos, em 1338 na biblioteca da
Sorbonne as hagiografias estavam agrupadas numa secção de crónicas. GUENÉE, p. 53 e 55.
26
LE GOFF, 1984, p. VII.
27
BOUREAU, p. 253.

224
A hagiografia na escrita...

Os seus consumidores não eram passivos. Pedro Valdo


(c.1140-c. 1220) iniciou as suas pregações depois de ter ouvido um
jogral cantar a história de S. Aleixo e Inácio de Loyola (1491-1556),
ligou a sua conversão à leitura de vidas de santos que lhe deram, na
falta de romances da cavalaria! O seu potencial era de facto
“subversivo”. Tais histórias, embora não tendo explicações lógicas
em si mesmas tinham, no dizer do historiador Aviad Kleinberg,
como que ‘um poder mágico que consistia em expulsar o terror,
dando nomes: permitiam nomear o mundo. Se o acto criador de Deus
é descrito no começo do evangelho de S. João na frase: “E o Verbo se
fez carne”, a forma discursiva da história dos santos como que
obedecia a um movimento de retorno e, segundo este autor, não
menos criativo: “a carne se fez verbo”!28 Já o dizia José Mattoso,
referindo-se à função do historiador na escrita da história: “Porque a
palavra recria o mundo, elevando-o do caos ao cosmos”!29
E tudo, através desse pharmakon divino que, no Antigo
Egipto, o deus Toth inventara: a escrita!

Estruturas comparadas de textos históricos e textos


hagiográficos medievais
Estrutura de um texto histórico Estrutura de um texto hagiográfico
Contar, narrar : ‘historia est narratio’, Narrar, vita, legenda, etc. [objectivo:
impedir perda de ‘grandes’ feitos e aedificare]
«grandes’ personagens; remedium
peccati O herói (personagem mais que
indivíduo)
Obsessão das datas (ano mil, origens,
genealogias) Discurso de virtudes e milagres

Sentido relativo do espaço; espaço Circularidade do tempo (fechado, de


cósmico! calendário, ciclo festivo)
Geografia do sagrado: predomínio das
Cuidados dos números precisações do espaço sobre as do

28
KLEINBERG, Aviad. Histoires de saints leur rôle dans la formation de l’Occident. Paris:
Gallimard, 2005, p. 357-358 (tradução do hebraico).
29
MATTOSO, José. A Escrita da história teoria e métodos. Lisboa: Estampa, 1988, p. 27.

225
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Estrutura de um texto histórico Estrutura de um texto hagiográfico


tempo; primado das manifestações e
Paixão da etimologia irrupções

Funcionalidade do texto Composição do lugar:

Apoio em autoridades; cópia, imitatio, Viagem: ida e volta


citações imprecisas
Da cidade ao deserto (exílio, prova),
Importância do estilo; pedem regresso à cidade
desculpas
Coincidência dos opostos ou
Séc. XII: mudança estrutural [história justaposição dos contrários
das Cruzadas: novos heróis, dúvidas
das autoridades tradicionais, outro Simbolização
público leitor, fama em vez de moral]
O sentido da hagiografia é o discurso

Ex. Beda Venerável, Historia Ex. ‘Havia um homem: Bento, de nome e


Ecclesiastica Gentis Anglorum de graça…’ (Gregório Magno, Diálogos)

B. Guenée, Histoire et culture Michel de Certeau, ‘Hagiographie’,


historique dans l’Occident medieval, Encyclopédie Universalis, 1980
1980;
Benoît Lacroix, L’historien au Moyen
Age, 1971
Tabela 1 – Elaborada pelo autor.

226
 

Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia luso-


brasileira:algumas considerações

Adriana Zierer

O
objetivo deste artigo é discutir alguns elementos da
historiografia contemporânea luso-brasileira relacionados
a Fernão Lopes e ao rei D. João I. Os estudos aqui tratados
se referem à chamada Nova História Política, na esteira do
Movimento dos Annales, e buscam relacionar História e Poder.1

1
Sobre essa discussão, importantes historiadores a serem mencionados são: Marc Bloch, com a sua
obra fundamental até os dias atuais, publicada originalmente em 1924: BLOCH, Marc. Os Reis
Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; passa-se também pelo importante artigo
de Jacques Le Goff: A História Política Continua a ser a Espinha Dorsal da História? In: LE
GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 357-367. Em Portugal, é
possível citar, sobre as possibilidades de relações entre o político e o simbólico: GOMES, Rita
Costa. A Reflexão Antropológica na História da Realeza Medieval. Etnográfica, Portugal, v. II, n.
1, p. 133-140, 1988, p. 137-138. Ainda sobre o Movimento dos Annales e a Nova História Política,
nos remetemos a ZIERER, A. M. S. Forças Diabólicas e Cristãs: confronto e poder na Crónica de
D. João I. Signum, Londrina, v. 16, n. 1, p. 103-104, 2015. Outros autores lusos da Nova História
Política serão discutidos ao longo deste trabalho.
 
 
227
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Neste sentido, é possível afirmar que, no período medieval, o poder


está muitas vezes relacionado ao sagrado.
Não se pretende aqui realizar um panorama completo dos
trabalhos sobre o cronista nem sobre o fundador da Dinastia de
Avis.2 A ideia é focalizar alguns estudos produzidos principalmente
a partir dos anos 80 do século XX e que influenciaram a
historiografia brasileira, bem como o papel de alguns pesquisadores
e grupos de estudo brasileiros e portugueses sobre o assunto.
Também buscamos mostrar que, embora seja um tema recorrente, a
figura do filho natural do rei D. Pedro e o papel de Fernão Lopes na
construção da imagem de D. João I na crônica a ele dedicada é ainda
um tema rico e interessante para os estudos históricos da atualidade.
Em primeiro lugar, faremos uma breve exposição sobre o
momento histórico da ascensão do primeiro monarca avisino ao
poder. D. João, nascido em 1357, era filho do rei D. Pedro com uma
dama galega chamada Teresa Lourenço, da qual e de cuja família,
segundo as palavras do historiador Armindo de Sousa, “não se sabe
dizer nada”.3 Havia entrado para a Ordem de Avis e, por essa
condição, não podia contrair matrimônio. A morte do rei D.
Fernando (1367-1383), seu meio-irmão e sucessor do rei D. Pedro
(1357-1367), sem herdeiros masculinos, abriu a possibilidade para
que D. João pleiteasse o poder político. A sucessão tinha como
possibilidades as seguintes: 1. o trono passar para a viúva, D. Leonor
Teles; 2. ir para o rei de Castela, D. João, casado com a filha de D.
Fernando, D. Beatriz, na época com apenas dez anos de idade; 3. ser
transmitido a um dos filhos de D. Pedro e Inês de Castro,
considerados ilegítimos; 4. ser ocupado pelo meio-irmão de D.
Fernando, D. João, o Mestre de Avis, opção que acabou por se
realizar.

2
Neste sentido, não serão discutidos trabalhos importantes, como, por exemplo: ARNAULT,
Salvador Dias. A Crise Nacional dos Fins do Século XIV: I – a sucessão de D. Fernando. Coimbra:
Universidade de Letras, 1959 e COELHO, António Borges. A Revolução de 1383: tentativa de
caracterização. Lisboa: Portugália, 1965, entre outras obras relevantes, uma vez que o recorte deste
artigo se volta a um período um pouco posterior da historiografia contemporânea, com algumas
incursões pontuais a trabalhos mais antigos.
3
SOUSA, Armindo. D. João I. In: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, s/d,
p. 496.
 
228
Fernão Lopes, o rei D. João I....

Este último, com o apoio de membros da nobreza


secundogênita (como o seu comandante militar, Nuno Álvares
Pereira), de comerciantes e outros citadinos, além de pessoas pobres
da cidade de Lisboa, conseguiu, inicialmente, ser nomeado regedor
de Portugal, em 1383. Neste meio tempo, a rainha abdicou em favor
de sua filha, e o rei de Castela, apoiado por boa parte da nobreza
tradicional portuguesa, veio ocupar o trono.4 Seguiram-se conflitos
como o cerco de Lisboa (1384) e várias batalhas. D. João obteve êxito
e foi eleito rei nas Cortes de Coimbra, em 1385. Para isso
contribuíram suas primeiras vitórias contra Castela nos conflitos
bélicos (como em Atoleiros, em abril de 1384, e Trancoso, maio de
1385), as justificativas do jurista João das Regras sobre a não
realização do casamento entre o rei D. Pedro e Inês de Castro, daí os
outros pretendes ao trono serem ilegítimos, e ainda a “atitude
ameaçadora” do comandante militar de D. João em favor deste
último.5
A ascensão de D. João I de fato como rei foi coroada com a
vitória na batalha de Aljubarrota, em agosto de 1385, contra o
exército castelhano. A par de problemas econômicos e sociais, de a
paz com Castela só haver sido assinada em 1411, o reino luso saiu
rumo às Grandes Navegações, conquistando Ceuta em 1415 e
desviando para fora do reino a atenção de nobres descontentes.
A nova dinastia percebeu a importância da legitimação deste
novo grupo político, e coube a Fernão Lopes – homem de origem
humilde, filho de pessoas pobres, que chegou a ser guarda-mor do
Torre do Tombo, uma espécie de chefe do Arquivo Geral do Estado
– escrever a Crónica de D. João I entre 1440 e 1448.6 D. Duarte, em

4
A Crónica de D. João nos mostra que ainda não existia sentimento de nacionalidade em Portugal
na época do Movimento de Avis, daí o fato de as linhagens tradicionais terem apoiado D. João de
Castela. Até então a nobreza ibérica portuguesa se via como um grupo único, como aparece, por
exemplo, na Crónica Geral de Espanha de 1344 e no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340).
5
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença,
1986, p. 529-530.
6
Embora só tenha sido publicada em 1644, a historiografia considera ser muito provável que o seu
conteúdo fosse conhecido muito antes disso. A Crónica pode ter sido lida em locais públicos das
cidades, onde havia grande circulação de pessoas, como nas praças, mercados, feiras, entre outros;
também pode ter sido utilizada para a educação de nobres e príncipes. O texto mostra a constante
presença do vocativo e o autor parece se dirigir a um público ouvinte, além do fato de a oralidade
 
229
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

1418, encomendou a Lopes que escrevesse as crônicas de todos os


reis de Portugal até os dias do cronista, garantindo-lhe uma tença
anual para realizar esta atividade.
Os seguintes relatos lhe são atribuídos: Crónica de D. Pedro,
Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I, primeira e segunda
partes. Além disso, teria reunido material para uma terceira parte da
Crónica de D. João I, material este que foi absorvido por Zurara na
Crónica da Tomada de Ceuta. Também parece ser Fernão Lopes o
autor da Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal ou Crónica de
1419, que é anônima, mas considerada de sua autoria por muitos
filólogos.7 O fato é que este cronista exerceu grande papel na
legitimação da Dinastia de Avis, bem como na cronística portuguesa.

Fernão Lopes e a legitimação política de D. João I

Um elemento interessante a ser ressaltado sobre a figura do


cronista é que ele, diferentemente dos outros de seu tempo, agia com
preocupação em encontrar documentos verdadeiros e buscava
atestar a veracidade das fontes – ia a locais para verificar dados,
conferia o nome em túmulos e consultava a documentação a que teve
acesso na Torre do Tombo. Isso não quer dizer que seus escritos
fossem “neutros”, uma vez que escreveu como funcionário
contratado da Dinastia de Avis e com o objetivo de legitimar esta
dinastia. Desta forma, segundo Ferreira, seu “discurso [...] se
revelava abertamente partidário”.8 Outro aspecto interessante dos
seus escritos, além da preocupação com a documentação, foi dar
espaço às pessoas pobres no seu relato, o que não era feito por outros
cronistas. Talvez isso esteja ligado ao fato de que ele próprio também

ser bastante presente no período em questão. Desta forma, acreditamos que o conteúdo da crônica
auxiliou a formação uma memória positiva sobre D. João que se prolongou no tempo.
7
LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe (org. e coord.). Dicionário de Literatura Galega e
Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 186.
8
FERREIRA, Maria da Conceição. Imagens dos Reis na Cronística Medieval. In:
MORENO, Humberto Baquero (coord.). História de Portugal Medievo. Lisboa:
Universidade Aberta, 1995, p. 17.
 
230
Fernão Lopes, o rei D. João I....

provinha de origem humilde, como já foi mencionado.9 Na Crónica


de D. João I, particularmente, a participação popular dá vivacidade
ao relato e tem grande papel na narrativa, quando ele chama de
“miúdos” e “arraia-miúda” os apoiantes do Mestre de Avis, que são
apresentados como os “verdadeiros portugueses”:

Desta guisa que avees ouvido, se levamtarom os poboos em


outros logares, seemdo gramde çisma e divisom amtre os
gramdes e os pequenos./O quall, ajumtamento dos
pequenos poboos, que sse estomçe assijumtava, chamavom
naquell tempo arraya meuda. Os gramdes aa primeira
escarneçemdo dos pequenos, chamavõ-lhe pobboo do Mexias
de Lisboa, que cuidavom que os avia de rremiir da sogeiçõ
delRei de Castela. 10

Estes esperavam que D. João os libertasse, de acordo com a


citação, da “sujeição ao rei de Castela”. Com o intuito de afirmar a
figura de D. João como rei, a crônica a ele dedicada dialoga com as
escritas sobre seus predecessores, D. Pedro e D. Fernando, já
buscando elementos de legitimação e de predestinação do Mestre de
Avis como rei de Portugal.11
Outro elemento importante é que, em virtude de D. João ser
filho natural, o cronista evita o tempo todo fazer esta afirmação e, ao
contrário, diz que ele era “filho de rei”, ou ainda, “filho do rei D.
Pedro”. Procura elaborar seu discurso buscando dar legitimidade a
D. João. Além de ser filho do rei D. Pedro, ele teria o carisma do

9
Foi filho de um mesteiral e possuía uma sobrinha casada com um sapateiro. Mas foi nobilitado
mais tarde pelo rei D. João I, em 1433.
10
FERNÃO LOPES. Crónica de D. João I. Ed. preparada por M. P. Lopes de Almeida e
Magalhães Basto. Lisboa: Livraria Civilização, 1990, v. I, p. 86. (grifos nossos). Dorante será
citada com a abreviação: CDJ.
11
A crônica dedicada a D. João dialoga com outras obras do cronista, como a Crónica de D. Pedro.
Neste último relato, Lopes procura argumentar que o casamento do monarca com Inês de Castro
nunca se efetivou, o que diminuiria as chances de que os filhos dessa união pleiteassem o trono
após a morte de D. Fernando. ZIERER, A. M. S. Forças Diabólicas e Cristãs: confronto e poder
na Crónica de D. João I. Signum, p. 108. Além disso, nessa mesma crônica é mencionado um sonho
do rei D. Pedro com um filho seu, João, que apagaria um imenso fogo, o que pode estar associado
ao fato de que o Mestre de Avis livraria Portugal da invasão castelhana. FERNÃO LOPES.
Crónica do Rei Dom Pedro I. Porto: Liv. Civilização, 1977, p. 196.
 
231
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

poder (segundo Lopes, seria apoiado pelo povo, os humildes, o que,


segundo o relato, representava o apoio popular e um nascente
“sentimento de nacionalidade”).
De acordo com o cronista, os que apoiavam D. João eram os
“verdadeiros portugueses”, ou a mansa oliveira portuguesa, em
oposição aos “enxertos tortos” dessa árvore, cujo fruto dava “amargo
licor”, representados pelos “maus portugueses”, em especial, a
nobreza tradicional, que apoiava o rei de Castela no trono
português.12
Ao comparar os dois grupos, Fernão Lopes considera os
partidários do Mestre de Avis “mártires” a lutar para “defender o
reino contra os mortais inimigos”, os castelhanos, os quais, conforme
o cronista, eram “induzidos pelo espírito de Satanás”, adoravam
“ídolos”, além de serem apoiados pelos “falsos portugueses”.13
Outro aspecto primordial para que D. João fosse o rei seria a
escolha divina, o que está diretamente associado ao messianismo.
Neste sentido, é apresentado pelo cronista como salvador de
Portugal contra o domínio estrangeiro (representado pelo rei de
Castela). O que provava a vontade divina na crônica são
principalmente os milagres que ocorrem durante a narrativa, como o
cerco de Lisboa, no qual apareceram anjos,14 houve chuva de cera,15
castelhanos eram infectados pela peste, mas esta não atingia os
portugueses,16 entre outros elementos.
Além disso, de acordo com Lopes, D. João tinha analogias
com Cristo e era o “messias de Lisboa”. Ele e seu comandante
militar, Nuno Álvares Pereira, conduziriam o povo ao Evangelho
Português, que consistia em seguir o “verdadeiro” papa, o de Roma,
enquanto que o rei de Castela seguia o papa de Avignon. Este era o
momento do Cisma do Ocidente, quando a Cristandade chegou, em
alguns momentos, a ter três papas. Além disso, o rei e D. Nuno, de

12
CDJ, I, p. 343-344.
13
CDJ, I, p. 343.
14
CDJ, I, p. 213.
15
CDJ, I, p. 213.
16
CDJ, I, p. 311.
 
232
Fernão Lopes, o rei D. João I....

acordo com a Crónica, levariam a sociedade lusa à Sétima Idade,


período de abundância e justiça iniciado com a Dinastia de Avis.
Outro milagre importante seria, antes da eleição de D. João
como monarca nas Cortes de Coimbra, a sua aclamação por crianças
e depois disso por um bebê de sete meses, que bradou: “Portugal,
Portugal, pelo Mestre de Avis!”17 Dentre todos os milagres, porém,
o mais importante teria sido a vitória na Batalha de Aljubarrota, em
que os portugueses foram vitoriosos apesar de um exército menor.18
De acordo com Maria Helena Coelho, representa na narrativa uma
espécie de ordálio e a consagração da nova dinastia.19
As ações de D. João são reforçadas pelos discursos de dois
franciscanos no relato do cronista, frei Rodrigo de Cintra e frei
Pedro. Ambos explicam os milagres, comparam com eventos
bíblicos e mostram o apoio de Deus a D. João e à causa portuguesa.
Já os representantes do Anticristo são todos aqueles contrários à
ascensão de D. João ao poder, como o rei de Castela, a rainha D.
Leonor e a nobreza tradicional portuguesa, partidária do rei
estrangeiro. A eles se opõem os modelos ideais de cristãos, D. João –
como rei – e D. Nuno – como nobre – que, apoiados pelo povo
português, segundo Lopes, conseguem a vitória abençoada por
Deus, em Aljubarrota.

Estudos sobre D. João I e Fernão Lopes no Brasil e em Portugal

O Scriptorium - Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos


da UFF, um dos mais importantes e antigos laboratórios sobre o
medievo atuando no Brasil, apresenta uma significativa produção
relacionada à Dinastia de Avis e em especial sobre o fundador da
Dinastia. Vânia Leite Fróes apresentou estudos pioneiros sobre a

17
CDJ, II, p. 125.
18
Sobre a técnica do quadrado a pé utilizada por D. Nuno e sua estratégia guerreira ver
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 530-531;
COELHO, Maria Helena. D. João I: o que re-colheu Boa Memória. Lisboa: Círculo de Leitores,
2008, p. 107-112.
19
COELHO, Maria Helena. D. João I, p. 336.
 
233
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

questão do discurso do paço,20 elaborado por essa dinastia, que


possibilitou a ascensão de D. João I ao poder. Este discurso era
baseado no seguinte tripé: povo, sentimento de nacionalidade e rei.
Pregava determinados modos de comportamento para a nobreza e
monarquia, e foram compostos vários escritos que visavam a
fortalecer o novo grupo político reinante.
Dentre os trabalhos do Laboratório, Paulo Accorsi Jr.
abordou a Crónica de D. João I e o Leal Conselheiro na construção do
Discurso do Paço.21 O autor discutiu especialmente a dicotomia na
Crónica de D. João I entre os “enxertos tortos” versus a “mansa
oliveira portuguesa”, no sentido da construção do modelo de nobre
ideal que auxiliaria a governança da nova dinastia, ligado ao
sentimento de nacionalidade. Roberto Fabri Ferreira analisou a
utilização do messianismo pela Dinastia de Avis na elaboração da
imagem do primeiro monarca português, Afonso Henriques,22 e
também a criação de uma nova temporalidade a partir do
Movimento de Avis.23 Neste sentido, opõe o novo ao velho nobre,
sendo o novo identificado com essa dinastia, e também D. João I e
Afonso Henriques, associados a este “novo”.
Sobre o papel feminino desempenhado pelas rainhas de
Portugal, Miriam Coser opõe o modelo ideal, D. Filipa – esposa de
D. João I, a qual possui, conforme os relatos cronísticos, uma série
de atributos marianos –, a D. Leonor, consorte de D. Fernando, que

20
FROÉS, Vânia Leite. Espaço e Imaginário em Gil Vicente. Tese (Doutorado). Universidade de
São Paulo. São Paulo, 1986. Cf. também: FROÉS, Vânia Leite. Teatro como Missão e Espaço de
Encontro de Culturas. In: MISSIONAÇÃO PORTUGUESA E ENCONTRO ENTRE
CULTURAS, v. 3, 1993, Braga. Actas. Igreja, Sociedade e Missionação. Braga: Fundação
Evangelização e Cultura,1993, p. 180-202.
21
ACCORSI JR., Paulo. Do Azambujeiro Bravo à Mansa Oliveira Portuguesa: A Prosa
Civilizadora da Corte do Rei D. Duarte (1412-1438). Dissertação (Mestrado). Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 1997.
22
FERREIRA, Roberto Fabri. O Papel do Maravilhoso na Construção da Identidade Nacional
Portuguesa: Análise do Mito Afonsino (séculos XIII-XV). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1997.
23
FERREIRA, Roberto Godofredo Fabri. O tempo novo e a origem dos novos tempos a construção
do tempo e da temporalidade nos primórdios da Dinastia de Avis (1370 a 1440). Tese (Doutorado
em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2003.
 
234
Fernão Lopes, o rei D. João I....

pretendia ocupar o poder depois da morte do marido.24 Esta última


foi vinculada nas crônicas à figura de Eva e representava o
contramodelo feminino régio.
No caso desta pesquisa, buscamos analisar no Doutorado a
ascensão de D. João I ao poder, ligada ao sentimento religioso do final
da Idade Média e à incorporação de ideias milenaristas sobre a vinda
do Messias no discurso de Fernão Lopes, numa conjuntura marcada
pelo medo do fim do mundo, em virtude da Peste Negra, e o temor
da morte. Neste sentido é que abordamos a dicotomia entre o
Messias de Lisboa, D. João, e seu opositor, D. João de Castela,
apresentado por Fernão Lopes como o Anticristo.25 Os termos
Anticristo e Messias são explicitamente citados na crônica,
respectivamente nos capítulos 63 e 123 da primeira parte.
Sobre a vinda do Antagonista de Deus representado pelo rei
de Castela:

[...] bem sabees como este rreino por nossos pecados he ora
deviso em duas partes, de guisa que a viimda do
Amtechristo, nom podia em ell fazer moor devisom do que
ora esta terra esta; ca os Castellaãos som todos comtra
Portugall, e a moor parte dos Portugueses segumdo bem
vedes.26

Assim, Fernão Lopes equipara a luta entre o Mestre de Avis


e seus opositores como um conflito divino, e todos aqueles que eram
contra ele como do lado do Anticristo. Analisamos narrativas
literárias que circularam no período relacionadas ao modelo de rei
(como A Demanda do Santo Graal) e os locais do Além-Túmulo
(como a viagem imaginária Visão de Túndalo), relatos estes que
circularam na Baixa Idade Média e nos auxiliam a compreender o
imaginário religioso português. Na esteira destes trabalhos muitos

24
COSER, Miriam Cabral. Política e Gênero: o modelo de rainha nas crônicas de Fernão Lopes e
Zurara (Portugal - sec XV). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense.
Niterói, 2003.
25
ZIERER, Adriana M. de S. Paraíso, Escatologia e Messianismo em Portugal à época de D. João I (1383-
85/1433). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.
26
CDJ, I, cap. CXXIII, p. 240.
 
235
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

outros foram e são desenvolvidos no Scriptorium, sob a orientação da


docente Vânia Fróes, sobre a família real avisina, a diplomacia no
tempo da Dinastia de Avis, entre outros.27
Outros laboratórios de pesquisa no Brasil desenvolvem
pesquisas relacionadas ao estabelecimento da Dinastia de Avis no
poder monárquico. É o caso do Nemed – Núcleo de Estudos
Mediterrânicos, da Universidade Federal do Paraná, coordenado por
Fátima Regina Fernandes. Originário deste grupo de estudos é, por
exemplo, o trabalho de Marcella Lopes Guimarães, que dialoga com
as três crônicas de Fernão Lopes (de D. Pedro, D. Fernando e D.
João) e com documentação produzida em Castela no final da Idade
Média, em especial as crônicas escritas por Pero Lopez de Ayala.28
Um trabalho que também faz um diálogo interessante com as
três crônicas, preocupando-se com a sua circulação em Portugal, é o
de Ana Carolina Delgado Vieira, desenvolvido junto ao GEMPO –
Grupo de Estudos Medievais Portugueses, laboratório coordenado
pelo professor Carlos Roberto Nogueira, da Universidade de São
Paulo.29 Há outros laboratórios no Brasil em contato com Portugal
dedicados aos estudos sobre a Dinastia de Avis, como é o caso da
Rede Luso-Brasileira de Estudos Medievais, uma colaboração entre
pesquisadores brasileiros e lusos, criada em 2012.
Destacamos ainda o Grupo Luso-Brasileiro Raízes Medievais
do Brasil Moderno, fundado por iniciativa das docentes Manuela
Mendonça (Universidade de Lisboa/Academia Portuguesa de
História) e Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de
Brasília), que completou 10 anos de existência em 2016, por ocasião
do XI Encontro Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno,
com o tema A Escrita da História nos dois lados do Atlântico,

27
Dentre alguns trabalhos desenvolvidos junto ao Scriptorium e concluídos no primeiro semestre
de 2016, citamos as teses de: LIMA, Douglas M. X. A diplomacia portuguesa no reinado de D.
Afonso V (1448-1481). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense.
Niterói, 2016; TREVISAN, Mariana B. A primeira geração de Avis: uma família 'exemplar'. Tese
(Doutorado em História): Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2016.
28
GUIMARÃES, Marcella Lopes. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas de Fernão
Lopes (séculos XIV e XV). O Espelho do Rei: “Decifra-me e te devoro”. Tese (Doutorado em
História). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004.
29
VIEIRA, Ana Carolina Delgado. “Como he doçe cousa reinar”: a construção de uma dinastia sob
a ótica de Fernão Lopes. Dissertação. (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2011.

236
Fernão Lopes, o rei D. João I....

coordenado pela fundadora brasileira e realizado na Universidade de


Brasília (UnB). O Grupo Luso-Brasileiro congrega docentes
brasileiros e portugueses, realiza eventos anuais, ora em Portugal,
ora no Brasil, e publicações constantes, em que se debatem vários
assuntos do Portugal Medievo e outros períodos, o que auxilia novas
reflexões historiográficas.
Ainda outros docentes que se dedicaram a D. João I e Fernão
Lopes devem ser citados e influenciaram nossa produção. Maria do
Amparo Maleval analisou a retórica utilizada por Fernão Lopes para
compor o relato sobre D. João I, inspirando-se em autores da
Antiguidade Clássica,30 os quais valorizavam a arte da palavra e do
convencimento. De acordo com a autora, ao fazer a apologia do
fidalgo na figura de Nuno Álvares Pereira, o cronista valorizaria
virtudes como a coragem, lealdade, bondade, religiosidade e fé e,
enfim, a Justiça que, de acordo com Aristóteles, contém em si todas
as outras virtudes.31 Além disso, Lopes adotou elementos da
persuasão da literatura clássica, não somente inspirado por
Aristóteles, mas também por outros autores, como Cícero.
Susani França voltou-se para a preocupação com a escrita,
desde a Dinastia de Avis, com vistas a elaborar um discurso
direcionado a ressaltar as virtudes dessa prática e ações para
aumentar a produção de livros, vistos como essenciais à correta
instrução dos dirigentes. Neste sentido analisou as crônicas de Lopes
e os escritos de seus filhos, como D. Duarte e D. Pedro.32 Outros
trabalhos importantes também têm sido produzidos, mas nos
referimos principalmente aos que estão relacionados aos nossos
estudos.
Com relação à historiografia lusa, ela é essencial para embasar
as pesquisas realizadas no Brasil, em virtude da maior proximidade
dos portugueses com os arquivos e bibliografia especializada nas
temáticas desenvolvidas. Assim, a historiografia brasileira busca
dialogar com os colegas lusos.

30
MALEVAL, Maria do Amparo T. Fernão Lopes e a Retórica Medieval. Niterói: Eduff, 2010.
31
MALEVAL, Maria do Amparo T. Fernão Lopes e a Retórica Medieval, p. 133.
32
FRANÇA, Susani L. Os Reinos dos Cronistas Medievais. Século XV. São Paulo: Annablume, 2006.
 
237
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Uma importante investigação sobre Fernão Lopes, produzida


nas últimas décadas do século XX, é a de Luís de Sousa Rebelo, na
qual o autor trabalhou com a questão do messianismo ligado a D.
João I e explica elementos como o carisma do poder, desenvolvido
por Fernão Lopes acerca do primeiro monarca avisino.33 O autor
explica que o cronista se baseou em pensadores, como João de
Salisbury, ao mostrar que o carisma do poder (apoio popular a um
governante) foi utilizado por Lopes para suprir a falta do carisma do
sangue de D. João, em virtude da bastardia.
Rebelo também analisou os elementos do Messias de Lisboa
e a construção de uma nova temporalidade feita pelo cronista.
Enquanto para a maior parte dos autores medievais, como Beda, o
mundo, dividido em seis idades, entraria em decadência na sexta, a
“idade decrépita”, anunciando-se logo a seguir o Juízo Final, para
Lopes haveria ainda a Sétima Idade, período de felicidade na Terra
após o estabelecimento da Dinastia de Avis no poder, e o Juízo Final
ocorreria em data incerta.34 O autor também estuda a predestinação
de D. João e sua relação com um religioso de origem castelhana, frei
da Barroca, que vem a Portugal, fica emparedado e anuncia que D.
João e seus descendentes seriam os reis de Portugal, agindo, segundo
Rebelo, como uma espécie de profeta anunciador do messias
português.
Outro nome importante nos estudos relacionados ao
messianismo e à figura de D. João I é Margarida Garcez Ventura.35
A autora analisa o aspecto simbólico deste rei, conhecido como o
messias de Lisboa, e a influência dos franciscanos para dar
legitimidade ao discurso do cronista Fernão Lopes.
Ambos os estudos, de Rebelo e Garcez Ventura, foram
importantes para nossas considerações acerca do messianismo
relacionado a D. João, desenvolvidas em nossas pesquisas junto ao
Scriptorium. Neste sentido, acreditamos que D. João é apresentado
por Lopes inspirado pelas ideias milenaristas que circularam na

33
REBELO, Luís de Sousa. A Concepção do Poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983.
34
REBELO, Luís de Sousa. A Concepção do Poder em Fernão Lopes, p. 61-71.
35
VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa. Um Estudo de Mitologia Política (1383-
1415). Lisboa: Cosmos, 1992.

238
Fernão Lopes, o rei D. João I....

sociedade portuguesa do final da Idade Média, como uma espécie de


Imperador dos Últimos Dias, que vem trazer um novo período de
felicidade na Terra.
A primeira vinda do Anticristo pode ser interpretada como o
cerco imposto a Lisboa em 1384. Já a segunda vinda teria ocorrido
quando, na visão de Lopes, os castelhanos são desbaratados na
Batalha de Aljubarrota, mesmo com um exército maior, o que
indicaria o apoio divino ao eleito, D. João. Estudos derivados desta
investigação começaram a ser desenvolvidos no Maranhão, junto ao
Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval –,
inicialmente pelos nossos alunos de iniciação científica.36
As figuras de D. João I e seu comandante militar como
modelos ideais e elementos-chave para o Movimento de Avis foram
analisadas de forma instigante por Teresa Amado.37 A autora mostra
que, embora louvando o povo, apresentado como um protagonista
importante por ter escolhido o Mestre de Avis como governante e
salvador de Portugal, os grandes heróis que decidem os destinos do
reino são D. João e D. Nuno. A respeito, mostra a influência da
Crónica do Condestabre, relato anônimo sobre este último, na escrita
de Lopes e as características de cada um desses protagonistas.38
Enquanto D. João é apresentado na Crónica de D. João I com
falhas humanas, com indecisão num primeiro momento ao pensar
em se retirar de Portugal por ocasião da morte de D. Fernando, D.
Nuno seria mais ativo e ousado. No entanto, as ações do monarca
seriam mais ponderadas, fazendo com que ambos se
complementassem na narrativa. Outro elemento analisado pela

36
Como exemplo dessas pesquisas, citamos ZIERER, A. M. S.; RIBEIRO, Josena N. L.
Messianismo, Escatologia e Pedagogia Cristã na Crônica de D. João I, de Fernão Lopes. Imagens
da Educação, Maringá, v. 3, p. 31-44, 2013; RIBEIRO, J. Messianismo e Poder no Reinado de D.
João I, de Portugal. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade
Estadual do Maranhão. São Luís, 2014. Esta última desenvolveu estudos no Mestrado junto à
docente Miriam Coser, na Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), com o trabalho “Voz por
Portugall”: construções de tempo e espaço na Crônica de D. João I, de Fernão Lopes (1383-1434).
Dissertação (Mestrado em História) – UniRio, Rio de Janeiro, 2017.
37
AMADO, Teresa. Fernão Lopes, contador de História: sobre a Crónica de D. João I. Lisboa:
Estampa, 1991.
38
Ainda sobre o heroísmo na Crónica de D. João I, há o estudo de PASSOS, Mária Lúcia. O Herói
na Crónica de D. João I de Fernão Lopes. Lisboa: Prelo, 1974.
 
239
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

autora é a personificação da cidade de Lisboa no relato do cronista.


A cidade é “viúva de rei” e D. João é seu senhor e esposo. Amado
mostra o papel não só dos dois heróis, como também de Lisboa
personificada e seu apoio à eleição de D. João como o eleito para
governar Portugal.
Importante sobre as categoriais sociais que aparecem nas
crônicas de Lopes é o estudo de Maria Angela Beirante.39 João
Gouveia Monteiro também analisou a Crónica de D. João I e o
momento de ascensão de D. João I ao poder.40 Mais recentemente, o
autor tem se dedicado ao estudo da guerra ligada a D. João I, como,
por exemplo, as batalhas enfrentadas por este rei contra Castela.41
Para uma visão mais geral sobre o momento histórico do
início da nova dinastia, importantes estudos são os de A. H. de
Oliveira Marques, que nos auxiliam a compreender o contexto e a
sociedade portuguesa no período da Baixa Idade Média.42 Outro
autor a ser mencionado sobre as contestações de grupos sociais no
final da Idade Média é Humberto Baquero Moreno.43
Dentre as biografias, um importante trabalho foi publicado
na Coleção Reis de Portugal, dirigida por Rodrigo Carneiro e editada
pela Temas e Debates/Círculo de Leitores. Trata-se de uma
biografia densa sobre o fundador da Dinastia de Avis elaborada pela
professora Maria Helena Coelho.44 A autora faz um relato
abrangente sobre D. João I, analisa aspectos políticos,
propagandísticos, guerreiros e mesmo simbólicos acerca de seu
governo, como a elaboração de uma memória pétrea da nova dinastia
a partir do panteão construído no mosteiro da Batalha, erigido em

39
BEIRANTE, Maria Ângela. As Estruturas Sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Livros
Horizonte, 1984.
40
MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes. Texto e Contexto. Coimbra: Minerva, 1988.
41
MONTEIRO, João Gouveia. A guerra em Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa: Notícias,
1998; MONTEIRO, João Gouveia (coord.). Aljubarrota Revisitada. Lisboa: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2001.
42
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV; MARQUES, A.
H. de. A Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981.
43
MORENO, Humberto Baquero. Exilados, Marginais e Contestatários na Sociedade Portuguesa
Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
44
COELHO, Maria Helena. D. João I. Foi publicada inicialmente em 2005, mas a edição que
consultamos é de 2008.
 
240
Fernão Lopes, o rei D. João I....

memória da Batalha de Aljubarrota e inaugurado com o túmulo de


D. Filipa, consorte desse soberano. A obra é essencial a quem quer
se dedicar aos estudos do fundador da Dinastia de Avis, bem como
tem reconhecimento no meio historiográfico. Segundo Armando
Luís de Carvalho Homem, a biografia de D. João I redigida por
Coelho é um dos livros de destaque da coleção e uma “visão
completa do rei e do período que ambos já mereciam”.45
Sobre as rainhas, também foi publicada uma importante
coleção, Rainhas de Portugal,46 cujo volume dedicado a D. Filipa
ficou a cargo da historiadora Manuela Santos Silva,47 e o de D.
Leonor foi escrito por Isabel de Pina Baleiras.48
Outros relevantes trabalhos relacionados a D. João e à
Dinastia de Avis têm chamado a nossa atenção. É o caso das
investigações de Garcez Ventura sobre a figura de D. Duarte, filho e
sucessor de D. João I,49 bem como a simbologia acerca do
comandante militar do rei, D. Nuno, que a dinastia buscou sacralizar
desde a morte deste,50 figura também valorizada nos tempos do
Estado Novo Português.51 D. Nuno foi efetivamente canonizado em
2009, como São Nuno de Santa Maria, o que mostra as amplas
possibilidades de relacionarmos a História entre o passado e o
presente.
Cabe refletir um pouco sobre a figura de D. João I, tecida por
Fernão Lopes, e sua influência sobre a historiografia lusa. Em seu

45
HOMEM, Armando Luís de C. Central Power: Institutional and Political History in the
thirteeth-fifteenth centuries. In: MATTOSO, José. (Dir.). The Historiography of Medieval
Portugal, c. 1950-2010. Lisboa: IEM (Instituto de Estudos Medievais), 2011, p. 205. (grifo nosso).
46
Coleção com 28 volumes, coordenada pelas professoras Isabel dos Guimarães Sá, Manuela
Santos Silva e Ana Maria S.A. Rodrigues.
47
SILVA, Manuela Santos. Filipa de Lencastre: A Rainha Inglesa de Portugal. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2012.
48
BALEIRAS, Isabel de Pina. Uma Rainha Inesperada: Leonor Teles. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2012.
49
VENTURA, Margarida Garcez. A Corte de D. Duarte: Política, Cultura, Afetos. Aveleda, Vila
do Conde: Verso da História, 2013.
50
VENTURA, Margarida Garcez. Uma Lâmpada de Prata e Muito Mais. Testemunhos de D.
Duarte sobre a Santidade de Nuno Álvares Pereira. Revista Portuguesa de História do Livro,
Lisboa, Ano XIV, v. 27, p. 243-271, 2011.
51
MARTINHO, Francisco Carlos P. O Pensamento Autoritário no Estado Novo Português:
algumas interpretações. Locus: revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 9-30, 2007, p. 14-15.
 
241
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

verbete sobre D. João I, contido no Dicionário de História de


Portugal, Oliveira Marques (1933-2007) apresenta algumas
características físicas e psicológicas do monarca, de acordo com os
documentos. Com relação às características físicas, estão baseadas
em duas representações de D. João, o retrato chamado de Viena da
Áustria e a estátua do rei existente no mosteiro da Batalha. Com base
nelas, Oliveira Marques afirma que o primeiro rei avisino era de
estatura média, entroncado e com tendência à obesidade (de acordo
com a moda do tempo, segundo o autor), com lábios carnudos bem
desenhados, olhos papudos e nariz corpulento.52
Quanto aos traços psicológicos, Oliveira Marques afirma tê-
los encontrado principalmente nas obras de Fernão Lopes,
especialmente em relação à sua pusilanimidade, nos fatos que
mostram sua indecisão quanto à morte do Conde Andeiro, isto é, se
efetivaria ou não tal ação, e o desejo de fugir de Portugal por medo
das perseguições do grupo de D. Leonor. Outras características
seriam a habilidade política, mencionada, por exemplo, pelo fato de
dar grandes terras a seus colaboradores, como D. Nuno, e depois
retirar essas terras quando o poder do nobre tendeu a ameaçar o seu.
D. João também teria como atributo a prudência,
característica que o oporia a D. Nuno, este último, mais afoito nas
coisas da guerra, enquanto D. João era mais prudente e comedido,
aspectos do ofício da realeza. Outro atributo que vimos amplamente
reforçado na Crónica de D. João I é a piedade, pois ele mandou
construir o mosteiro da Batalha e deixou legados pios.53 Sobre a
personalidade de D. João, Marques afirma que o rei tinha acessos de
cólera com crises de violência, não gostava de ser contrariado nem
pelos filhos e exerceu excessos e autoridade.54
Em seu retrato de D. João I, o mesmo autor oscila entre a
crítica e o elogio. Critica o monarca quando diz que D. João foi:

52
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História
de Portugal, p. 385.
53
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História
de Portugal, p. 386.
54
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História
de Portugal.
 
242
Fernão Lopes, o rei D. João I....

Rei de Portugal. Mas rei de Portugal talvez menos por


mérito seu do que por um conjunto de circunstâncias
favoráveis e pelo apoio de homens de coragem e de valor,
como Nun’Álvares ou João das Regras.55

Em outro verbete do Dicionário de História de Portugal sobre


o cronista Fernão Lopes, Marques faz a importante afirmativa de
que os estudiosos não deveriam considerar o monarca segundo a
visão da crônica, como faziam muitos historiadores portugueses.56
No entanto, mais adiante o medievalista rende-se ao rei da
‘Boa Memória’ e afirma que ele “de todos os monarcas medievais
foi sem dúvida [...] o mais culto e o mais apto para gerir a
república”.57 A cultura louvada do monarca deve-se ao fato de este
ser o autor de um manual de caça, o Livro da Montaria, composto
após o ano de 1415.
Assim, pelo retrato de um pesquisador dos nossos dias (†
2007) sobre D. João, é possível observar que o monarca exerce
fascínio sobre os historiadores portugueses até hoje, os quais
alimentam e propagam sua Boa Memória. Em sua importante obra
Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, este historiador não
consegue esconder a admiração pelo soberano:

A popularidade do monarca ajudou, sem dúvida alguma, a


superar muita coisa. D. João I era benquisto e deixou de si
‘Boa Memória’. Cercou-se de ministros e conselheiros
competentes e hábeis. Chefiou uma família real que passou
à História como família-modelo e que, mau grado todos os
exageros dos cronistas, soube fazer-se respeitar e amar.
Austeros, piedosos e destemidos, o Rei, a Rainha, os
infantes, o Condestável e vários outros davam exemplo
de moralidade e de protecção divina que se julgavam

55
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História
de Portugal, p. 384.
56
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Fernão Lopes. In: Dicionário de História de Portugal, p. 58.
57
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: Dicionário de História de Portugal, p. 386.
(grifo nosso).
 
243
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

os melhores remédios quanto a adversidade dos


tempos.58

A opinião de historiadores portugueses mais antigos, como


Damião Peres (1889-1976), por exemplo, segue a visão de D. João
que lhe apresentam os relatos cronísticos. Assim, em História de
Portugal, coleção com vários volumes produzidos entre 1928 e 1954,
o autor reproduz as opiniões de Rui de Pina ao falar do monarca, o
qual – segundo o cronista – morreu em 1433, “com mui claros sinais
de salvação de sua alma”. Segundo Peres, reproduzindo o cronista
Rui de Pina:

[...] era o dia quatorze de agosto de 1433, dia de júbilo e de


tristeza. Completavam-se justamente quarenta e oito anos,
que fora, ao cair da tarde, a inolvidável vitória de
Ajulbarrota; e em dia de tam grata recordação agonizava e
morria aquele grande português, que nesse entardecer já
longínquo imorredouramente se cobrira de glória!”59

Estudiosos de literatura e da historiografia atual são


influenciados pelos escritos de Lopes sobre a imagem de D. João. De
acordo com Saraiva (1917-1993), sobre a relevância desse cronista:

Deve-se notar que quase tudo o que sabemos sobre a


chamada revolução de 1383-1385 o sabemos por
Fernão Lopes, pois dela nos ficaram poucos
documentos ‘autênticos’. Foi Fernão Lopes quem lhe deu
o caráter de cataclismo social, o carácter ‘revolucionário’ que
seduz os historiadores modernos.60

Além dessa concepção de Saraiva, importante estudioso da


área de Literatura, outros historiadores contemporâneos também

58
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Ibid., p. 538.
(grifos nossos).
59
PERES, Damião. História de Portugal. Porto: Portucalense, 1929. v. 3, p. 27.
60
SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média Em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988,
p. 178. (grifo nosso).

244
Fernão Lopes, o rei D. João I....

parecem compartilhar com ele de uma concepção favorável sobre D.


João I.
Quanto a Maria Helena Coelho, em sua biografia já citada
sobre D. João I, ela termina o livro com um saldo que também parece
positivo desse governante: “Rei da Boa Fortuna, de Boa Memória,
Pai dos Portugueses, será a memória luminosa que, ultrapassando
negros ou sombras, colheu em vida, e re-colheu para além do seu
tempo, o rei que mais longamente se sentou em um trono em
Portugal”.61
Porém, embora seja lembrado como o rei da Boa Memória, o
período do governo de D. João foi dos mais difíceis para a população:
guerra prolongada contra Castela, impostos, inflação. No seu
governo as críticas contra os abusos dos poderosos continuaram.
Além disso, lançou um novo imposto para custear a guerra, que antes
era temporário, mas passou a ser definitivo, as sisas.
Um dos autores com olhar mais crítico sobre o reinado do
iniciador da dinastia de Avis foi Armindo de Sousa (1941-1998), que
afirmou o seguinte:

D. João I vai ficar na história como o rei da Boa Memória. Só


por razões de propaganda dinástica ou por motivos
patriótico-políticos isso pôde ter sucedido. É certo que essas
razões e esses motivos contagiaram os povos, pois o
recordam em 1451, 18 anos depois de falecido, como ‘pai dos
portugueses’. A verdade, porém, é que no seu governo a vida
dos portugueses não foi fácil./ Até 1411 andou-se
praticamente em guerra; a inflação monetária atingiu
níveis nunca antes igualados em nenhum governo até
hoje; as tradicionais queixas do povo contra os
privilegiados persistiram, tendo mesmo recrudescido,
conforme se lê nos textos parlamentares; os impostos
extraordinários, os ‘pedidos’, não se tornaram crónicos
como até foram lançados à revelia das cortes e por
finalidades diferentes da defesa nacional, e finalmente, coisa
extremamente censurada e qualificada de roubo, as ‘sisas’,
imposto indirecto municipal, só em situações muito graves

61
COELHO, Maria Helena. D. João I, p. 395. (grifo nosso).

245
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

concedidas a reinantes, foram apropriadas como se se


tratasse de direitos reais. De modo que é grandemente
equívoca a ‘boa memória’ desse rei que a tem como
cognome.62

Portanto, fica claro pela explicação deste historiador


português que nem tudo foi bem no governo joanino, pelo contrário.
Por isso, houve toda uma construção por parte da dinastia de Avis
para que, pelas crônicas e outros documentos, o bastardo D. João
fosse transformado numa figura modelar, cuja justificativa para ser o
rei era a escolha divina, daí o messianismo ser o principal traço da
Crónica de D. João I.
É importante refletirmos como a Crónica referente a este
monarca serviu para que fosse elaborada sobre D. João a imagem de
que ele foi o Rei da Boa Memória. Como vimos, este manuscrito,
embora não tenha sido o único documento produzido com esta
função, tem um grande papel sobre a propagação de uma memória
positiva sobre D. João, além de a construção do Panteão em Batalha
e do início das Grandes Navegações ocorrerem em seu reinado, o que
projetou Portugal para logo depois se tornar uma grande potência
marítima e comercial. Esses fatores contribuíram para um saldo
positivo do seu reinado, na visão dos então contemporâneos e das
gerações que vieram logo a seguir.
Temos, ao mesmo tempo, duas imagens sobre D. João. A
primeira, positiva, com base no imaginário político, na qual a ação de
Fernão Lopes foi bastante importante na fixação dos feitos do
primeiro monarca avisino. A segunda, baseada na realidade social a
partir dos dados que hoje conhecemos sobre seu governo, mostra
que, na prática, a promessa de Lopes sobre os “novos tempos” para
os humildes e de mais equidade social não veio, ou melhor, foi
protelada somente para a outra vida, depois da morte.
Apesar disso, a conclusão sobre a construção da imagem
tecida por Fernão Lopes acerca de D. João é a seguinte: ainda que
hoje em dia outros documentos além da crônica sejam consultados
pelos historiadores – tais como chancelarias, cortes, cartas,

62
SOUZA, Armindo de. D. João I. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. II, p. 497-
498. (grifos nossos).

246
Fernão Lopes, o rei D. João I....

legislações, tratados, entre outros –, a visão elaborada pelo cronista


teve importância não somente no passado, mas no presente,
contribuindo nas concepções sobre D. João I atualmente. O
historiador do século XV teve papel fundamental nesse processo, e
sua tarefa resultou vitoriosa na elaboração de D. João I como bom rei,
cujos feitos devem continuar a ser lembrados, daí a permanência da
sua “boa memória” na contemporaneidade.63

Considerações Finais

Buscamos neste artigo mostrar um percurso acerca de alguns


estudos sobre Fernão Lopes e o rei D. João I, enfatizando o diálogo
entre a historiografia brasileira e a lusa. Acreditamos que esse tema é
instigante e pode ter muitas continuidades. Neste sentido, com a
publicação das Chancelarias de D. João I, há nova documentação a
ser analisada, que permite ampliar os estudos sobre o assunto. Outra
possibilidade é analisar a chamada “memória pétrea” erigida no
mosteiro da Batalha, já apontada por Maria Helena Coelho.64
Outras pesquisas possíveis são o aprofundamento nos livros
escritos por D. João e seus filhos no sentido de formar o nobre e o rei
ideal, segundo o olhar da Dinastia de Avis: o Livro de Montaria, de
D. João I; o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, o Livro
dos Conselhos de el-rei D. Duarte (Livro da Cartuxa) e o Leal
Conselheiro, redigidos por D. Duarte, e o Livro da Virtuosa
Benfeitoria, de D. Pedro.65 Além desses, uma vertente seria o estudo
das crônicas relacionadas a D. João I e D. Duarte sobre diversos
aspectos, como o modelo de rei, de nobre, a expansão portuguesa, a

63
ZIERER, A. M. S. Fernão Lopes e seu Papel na Construção da Imagem de D. João I, o rei da
Boa Memória. Opsis, Catalão, (UFG), v. 12, n. 1, jan./jun 2012, p. 291.
64
COELHO, M. H. D. João I, p. 354. Ver também: MELO, Joana Ramôa; SILVA, José Custódio
Vieira da. O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um novo paradigma de
representação. Revista de História da Arte, Lisboa, n. 5, p. 77-95, 2008.
65
Sobre essas obras ver: MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). A Literatura Doutrinária na Corte
de Avis. Int. de A. H. de Oliveira Marques. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Membros do
Scriptorium já desenvolveram alguns trabalhos sobre esses escritos, mas acreditamos que podem
ser retomados e aprofundados, vinculados com os modelos de rei e nobreza ideal e comparados
com as crônicas de Lopes e com outras obras, gerando novas investigações.

247
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

simbologia religiosa, o que possibilita novas interpretações sobre a


Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, e a Crónica
de D. Duarte, de Rui de Pina.
A figura de D. Nuno como modelo de nobre cristão ideal
também pode ser aprofundada nas Crónica do Condestabre e Crónica
de D. João I, e os esforços para a santificação de D. Nuno desde a
Dinastia de Avis podem seguir caminhos, por exemplo, da Chronica
dos Carmelitas, do frei José Pereira de Sant’Anna (século XVIII),
apontados por Margarida Garcez Ventura.66
Sobre a questão do messianismo ligado à Dinastia de Avis,
um exemplo é analisar o Livro dos Arautos, em que aparece pela
primeira vez a figura de Cristo crucificado diante de Afonso
Henriques, além da Crónica de 1419 sobre este rei e também a
Crónica de Afonso Henriques, de Duarte Galvão. Os aspectos
messiânicos de Afonso I nessas obras podem ser problematizados e
cotejados com outros reis, como D. João I e D. Sebastião. Embora
alguns estudos já tenham sido feitos no Brasil no âmbito do
Scriptorium, por exemplo, acreditamos que ainda mais pode ser
analisado, relacionando-se os três reis, seus aspectos messiânicos e
sua utilização no discurso legitimador da Dinastia de Avis.
Pensando no messianismo relacionado a D. Sebastião,
acreditamos que novos estudos podem ser efetivados.67 E o
messianismo no Brasil também oferece amplas possibilidades, como
seu papel nas terras brasileiras relacionado a uma série de
movimentos sociais para uma vida melhor, especialmente em
movimentos do século XIX e início do XX (como o Movimento da

66
VENTURA, Margarida Garcez. Uma Lâmpada de Prata e Muito Mais. Testemunhos de D.
Duarte sobre a Santidade de Nuno Álvares Pereira. Revista Portuguesa de História do Livro, p.
243-271.
67
Sobre o messianismo associado a D. Sebastião, cf. Colóquio O Sebastianismo. Política, Doutrina
e Mito (sécs XVI-XIX). Lisboa: Edições Colibri/Academia Portuguesa de História, 2004. Ver
também: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado. A Construção do Sebastianismo em
Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998; MEGIANI, Ana Paula.
O Jovem Rei Encantado: Expectativas do Messianismo Régio em Portugal, Séculos XIII a XVI.
São Paulo: Hucitet, 2003.
 
248
Fernão Lopes, o rei D. João I....

Serra do Rodeador, Canudos e o Contestado),68 e também na crença


de que D. Sebastião está encantado até hoje numa ilha no Maranhão
e é recebido como entidade espiritual em terreiros da cultura afro-
brasileira.69
Vale lembrar que os elementos ideais dos nobres e reis da
Dinastia de Avis estão associados aos elementos bíblicos e também
às novelas de cavalaria, influenciadas pela circulação de A Demanda
do Santo Graal em Portugal do século XIII ao XVI, mas que tiveram
vida longa no reino, inclusive moldando comportamentos, como o
do rei D. Sebastião ou o de D. Nuno. Neste sentido seria positivo
relacionar algumas novelas de cavalaria (como a Crónica do
Imperador Clarimundo, de João de Barros, o Memorial das Proezas da
Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, entre
outras)70 e seus elementos com os modelos ideais de rei e nobreza,
que vemos apontados nas crônicas e em outros documentos como
indicação de normas comportamentais.
Por fim, gostaríamos de concluir numa perspectiva otimista,
pois acreditamos que os estudos sobre a Dinastia de Avis, em
especial sobre D. João I, têm, na nossa visão, vida longa e muitos
caminhos de desenvolvimento. A parceria do Grupo Luso-Brasileiro
Raízes Medievais do Brasil Moderno e os contatos constantes entre
portugueses e brasileiros têm se mostrado frutíferos e, com certeza,
continuarão contribuindo com novas reflexões acadêmicas.

68
QUEIROZ, Maria Isaura. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977.
Dentre as obras sobre os vários movimentos sociais no nordeste brasileiro, citamos a seguinte:
CABRAL, José Gomes. Paraíso Terreal: a Rebelião Sebastianista na Serra do Rodeador,
Pernambuco, 1820. São Paulo: Annablume, 2004.
69
BRAGA, Pedro. O Touro Encantado na Ilha dos Lençóis. O Sebastianismo no Maranhão. Petrópolis:
Vozes, 2001; GODOY, Marcio H. Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da comunicação em
tempo/espaço. São Paulo: Khronos, 2005. Sobre a relação do “Encantado” com a cultura afro-brasileira
e sua manifestação nos terreiros, cf. FERRETI, Sérgio. Encantaria Maranhense de D. Sebastião. Revista
Lusófona de Estudos Culturais, Minho, v. 1, n.1, p. 262-285, 2013.
70
Além de A Demanda do Santo Graal, proveniente da França, ter tido circulação longa em
Portugal, no reino luso foram produzidas várias obras de cavalaria no século XVI que mereceriam
ser estudadas com mais profundidade na busca de modelos ideias de nobre e rei propostos pela
nova dinastia. Megiani aponta a importância desses escritos literários para a formação do
imaginário cavaleiresco português. MEGIANI, Ana Paula. O Jovem Rei Encantado, p. 51-78.

249
 

 
 

A diplomacia portuguesa quatrocentista:


notas historiográficas

Douglas Mota Xavier de Lima

O
presente texto propõe retomar a reflexão sobre a
diplomacia medieval, em especial, no século XV.
Buscaremos discutir a produção historiográfica acerca do
tema, levando em consideração a historiografia portuguesa. Com
esta orientação, dividiremos a exposição em três etapas:
primeiramente, uma breve caracterização da chamada “nova história
da diplomacia medieval”; em seguida, os caminhos percorridos pela
historiografia portuguesa; finalmente, apontamentos sobre a
documentação a partir de nossas investigações.

Uma nova história da diplomacia medieval

Em 1946, na revista dos Annales, Lucien Febvre (1878-1956)


publicou o artigo “Contre l’histoire diplomatique en soi. Histoire ou
 
251
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

politique? Deux méditations: 1930, 1945”, texto que em 1952 foi


incorporado ao seu Combats pour l’histoire.1 Esse e outros artigos do
fundador dos Annales são expressão da mudança de paradigma
ocorrida no campo da História nas primeiras décadas do século
passado. Em síntese, tal reorientação historiográfica, somada às
contribuições do marxismo, da sociologia, da economia, etc., foi
marcada pela crítica a estudos restritos aos documentos oficiais, aos
acontecimentos, aos grandes nomes e ao Estado e passou a dar
centralidade às coletividades, aos problemas econômico-sociais e aos
processos históricos inseridos na média e na longa duração.2
Paralelamente – questão por vezes despercebida pelos
medievalistas –, convém ter em vista que, nesse mesmo período e em
meio às guerras mundiais, as Relações Internacionais se
estruturaram como um campo do saber, caracterizando-se pela
crítica à história diplomática, entendida como limitada, e voltando-
se aos problemas do mundo contemporâneo, mormente, ao desafio
da guerra e da paz.3
No bojo desse duplo movimento, observa-se que a história
política conheceu um recuo, acontecendo o mesmo processo com a
história diplomática e o tema da diplomacia, classificada como
tradicional, narrativa, alheia às profundidades tão caras aos
primeiros Annales. Não obstante, constata-se que no limiar do
processo de recuo da história política e de constituição da história
política renovada, isto é, nos anos 1950 e 1960, foram publicados
importantes estudos sobre a diplomacia medieval. Destacamos desse
período as obras: English Diplomatic Administration (1259-1339)
(1940), de George Cuttino; Le Moyen Âge (1953), de François
Ganshof; Renaissance Diplomacy (1955), de Garrett Mattingly; The
Congress of Arras, 1435. A Study in Medieval Diplomacy (1955), de

1
FEBVRE, Lucien. Contre l’histoire diplomatique en soi. Histoire ou politique? Deux
méditations: 1930, 1945. In: Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1952, p. 60-69.
2
DELACROIX, Christian, DOSSE, François; GARCIA, Patrick. Correntes historiográficas na
França, séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 163-196.
3
MARTINS, Estevão de Rezende. História das relações internacionais. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, p. 75; MOREIRA, Adriano. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Almedina, 2008,
p. 37-39; NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais:
correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 3-5.

252
A diplomacia portuguesa quatrocentista

Joycelyne Gledhill Dickinson; The King's Messengers. 1199-1377. A


contribution to the History of the Household (1961), de Mary Hill; The
Office of Ambassador in the Middle Ages (1967), de Donald Queller.
Chama atenção que, apesar das inúmeras contribuições, as
fontes privilegiadas por tais estudos sejam os documentos
“tradicionais” da história diplomática, como tratados, cartas de
crença, memorandos e procurações. Além disso, em linhas gerais, a
diplomacia medieval é discutida sob a referência da constituição da
diplomacia moderna, expressa, por exemplo, no surgimento das
embaixadas permanentes. Desta maneira, há uma distância clara
entre essa produção e a historiografia ligada à nova história política
dos anos 60 e 70.
À procura dessas diferenças na abordagem, observa-se um
cenário significativamente distinto a partir dos anos 90. Ressaltam-
se desse período obras como: La circulation de nouvelles au Moyen
Âge (1994); Arras et la diplomatie européenne XVe-XVIe siècles
(1999); Negociar en la Edad Media (2004); Faire la paix au Moyen
Âge (2007), de Nicolas Offenstadt; English Diplomatic Practice in
Middle Ages (2003), de Pierre Chaplais; Au nom du Roi. Pratique
diplomatique et pouvoir durant le règne de Jacques II d’Aragon (1291-
1327) (2009), de Stéphane Péquignot; Communication and conflict:
Italian diplomacy in the Early Renaissance, 1350-1520 (2015), de
Isabella Lazzarini.
Em suma, consideramos que a mudança representada por tais
obras resulta da conjunção de diversos fatores, em especial do
revigoramento da história política, com bases renovadas e pautadas
no diálogo com diferentes ramos das Ciências Sociais, desde a
Antropologia à Ciência Política. Destarte, a nova história da
diplomacia medieval4 avança sobre temas como rituais e gestualidade,
mas não deixa de explorar o pessoal envolvido nas missões
diplomáticas ou mesmo as instituições que assessoravam os
monarcas. Analisa a dinâmica guerra/paz, porém investiga crônicas,
narrativas de viagens e outras documentações até então colocadas em

4
A identificação de uma nova história da diplomacia medieval e moderna é a base, por exemplo,
do artigo de WATKINS, John. Toward a New Diplomatic History of Medieval and Early
Modern Europe. Journal of Medieval and Early Modern Studies, Winter, n. 38, p.1-14, 2008.

253
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

segundo plano. Problematiza o uso da diplomacia pelo poder régio,


mas não limita sua abordagem ao Estado como único agente das
relações diplomáticas. Nesse sentido, parafraseando a clássica obra
de Jacques Le Goff e Pierre Nora, consideramos que essa nova
história da diplomacia medieval se constitui atualmente mediante
“novos problemas, novas abordagens e novos objetos”.

Caminhos da diplomacia na historiografia portuguesa

Tendo em vista esse cenário, passa-se a algumas


considerações acerca da produção portuguesa. Ainda que a
diplomacia medieval não tenha sido objeto de grandes sínteses e
ponto de investigação dos principais estudos que marcaram a
historiografia no último meio século, existe um conjunto de obras
sobre o medievo que merece destaque.
Em primeiro lugar, é necessário mencionar o clássico Quadro
Elementar, de Visconde de Santarém, que permanece como peça-
chave da literatura lusitana sobre o tema.5 Com início em Paris, em
1842, os volumes recolhem notícias referentes às relações de Portugal
com França, Espanha, Inglaterra, Roma e outros Estados europeus.
O texto em questão, como lembram Maria João Branco e Mario
Farelo, é marcado pela preocupação em traçar as origens da
monarquia por meio da diplomacia, orientação que também
caracterizou a produção do período do Estado Novo, inclinada aos
temas da formação de Portugal e da exaltação nacional.6
Tendo a observação dos autores como referência, lembra-se
que, no período anterior à Revolução dos Cravos (1974), foram
publicadas algumas obras de destaque para a temática: D. João I e a

5
SANTARÉM, Visconde de. Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal
com as diversas potências do mundo desde o princípio da Monarchia portugueza até os nossos dias.
Paris: J. P. Aillaud, 1842-1853. v. I-VIII; continuados por Luís Augusto Rebelo da Silva:
SANTARÉM, Visconde de. Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal
com as diversas potências do mundo desde o princípio da Monarchia portugueza até os nossos dias.
Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864-1876. v. IX-XVIII.
6
BRANCO, Maria João; FARELO, Mario. Diplomatic Relations: Portugal and the Others. In:
MATTOSO, José (dir.). The Historiography of medieval Portugal, c.1950-2010. Lisboa: Instituto
de Estudos Medievais, 2011, p. 232-233.

254
A diplomacia portuguesa quatrocentista

Alliança Ingleza: investigações históricas e sociaes (1884), de Conde


de Villa Franca; Portugal e Veneza na Idade Média (1933), de Conde
de Tovar; O Papado e Portugal no primeiro século da História
Portuguesa (1935), de Carl Erdmann; A Aliança Inglesa (1943), de
Armando Marques Guedes; Descobrimentos Portugueses.
Documentos para a sua História (1944), de João Martins da Silva
Marques; Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XII
siècle (1947), de Pierre David; Portugal na Bélgica (de Filipe de
Alsácia a Leopoldo I), de Eduardo Brazão; Monumenta Henricina
(1960-1974), dirigida por António Joaquim Dias Dinis; Monumenta
Portugalia Vaticana (1968-1970), organizada por António
Domingues de Sousa Costa.
Identificam-se nesse conjunto duas tendências principais: a
publicação de documentos ligados a grandes comemorações
nacionais e o estabelecimento das relações entre Portugal e um
determinado estado num longo período.7 Ambos os aspectos se
aproximam das abordagens da história diplomática, esta que, como
demonstramos, conheceu profundas críticas desde inícios do século
passado e lentamente apresentou um recuo na produção
historiográfica. Nota-se ainda o peso da referência nacional e da
exaltação do período avisino expansionista, características marcantes
da produção do governo Salazar.8
Maria João Branco e Mário Farelo discutem amplamente em
“Diplomatic relations: Portugal and the others”9 como a
historiografia portuguesa ampliou seu universo de investigação a
partir dos anos 80 e como esse alargamento envolveu a revisão da
história nacional e a inserção de Portugal no cenário ibérico e
europeu, além de abranger temáticas relacionadas à “new diplomatic
history”. O detalhado levantamento possibilita observar os caminhos

7
Entendemos que o estudo de Carl Erdmann é uma exceção por estar ligado aos interesses do autor
alemão no tema da reconquista e das cruzadas, eixo central de sua grande obra: ERDMANN, Carl.
The Origin of idea of Crusade (1977 [1935]). Nova Jérsei: Princeton University Press, 1977.
8
Cf. TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da
História em Portugal, séculos XIX – XX. Lisboa: Temas e Debates, 1998. v. 2.
9
BRANCO, Maria João; FARELO, Mario. Diplomatic Relations: Portugal and the Others. In:
MATTOSO, José (dir.). The Historiography of medieval Portugal, c.1950-2010, p. 231-259.
 
255
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

de investigação da diplomacia em Portugal e, nesse sentido, permite


constatar as temáticas privilegiadas. Entre elas, citam-se
preocupações com as relações nobiliárquicas na Península Ibérica, as
relações religiosas a partir de instituições eclesiásticas presentes em
Portugal, as ordens militares, as relações comerciais no mar do Norte
e no Mediterrâneo, entre outros temas que não excluem trabalhos
dedicados a questões político-econômicas.10
Especificamente sobre o século XV, lembram-se os
importantes trabalhos de Joaquim Veríssimo Serrão,11 Humberto
Baquero Moreno,12 Luís Adão da Fonseca,13 Jorge Borges de
Macedo14 e Manuela Mendonça,15 autores que investiram no estudo
das relações entre Portugal e as demais regiões da Cristandade, com
especial ênfase às relações peninsulares. Nesses estudos as
preocupações da nova história política, em especial a questão da
sociedade política e das redes de sociabilidade internas e externas,
mostram-se como temáticas centrais na revisão sobre o século XV

10
Limitamo-nos a apresentar apenas alguns livros como exemplo da produção portuguesa: KRUS,
Luís. A concepção nobiliárquica do espaço ibérico (1280-1380). Lisboa: FCG, 1994; OLIVEIRA
MARQUES, A. H. de. Hansa e Portugal na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1993 (1959);
MARQUES, Maria Alegria Fernandes. O Papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (1245-
1279). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990; MATTOSO, José.
Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987; MATTOSO, José. Le
monachisme ibérique et Cluny: les monastères du diocese de Oporto, de l’an mil à 1200. Louvain:
Université de Louvain, 1968; MATTOSO, José. Portugal Medieval: novas interpretações.
Lisboa: IN-CM, 1985; VELOSO, Maria Teresa. D. Afonso II: relações de Portugal com a Santa
Sé durante o seu reinado. Coimbra: Archivo da Universidade de Coimbra, 2000.
11
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Relações históricas entre Portugal e a França. (1431-1481). Paris:
Fundação Calouste Gulbenkian. Centro Cultural Português, 1975.
12
MORENO, Humberto Carlos Baquero. A Batalha de Alfarrobeira. Coimbra: Biblioteca Geral
da Universidade, 1979. 2. v.
13
FONSECA, Luís Adão da. O Condestável D. Pedro de Portugal: a Ordem Militar de Avis e a
Península Ibérica do seu tempo (1429-1466). Porto: INIC, 1982; FONSECA, Luís Adão da. O
essencial sobre o Tratado de Windsor. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986; FONSECA, Luís Adão da.
O tratado de Tordesillas e a diplomacia luso-castelhana no século XV. Lisboa: Edições Inapa, 1991.
14
MACEDO, Jorge Borges de. História Diplomática Portuguesa. Constantes e linhas de força.
Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 1987.
15
MENDONÇA, Manuela. Relações externas de Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa:
Colibri, 1994.
 
256
A diplomacia portuguesa quatrocentista

português, porém a diplomacia é estudada quase exclusivamente no


plano das relações diplomáticas.16
Os apontamentos anteriores podem sem percebidos e
ampliados ao considerarmos as obras de síntese sobre a História de
Portugal. Nos livros de José Mattoso e Armindo de Sousa, História
de Portugal, vol. II, A Monarquia Feudal (1993), e de Bernardo
Vasconcelos de Sousa, História de Portugal (2009), o tema pouco
aparece, e mesmo a questão das relações diplomáticas passa
praticamente despercebida. Outro cenário, mas não menos
elucidativo, se encontra na obra de Joaquim Veríssimo Serrão,
História de Portugal, vol. II, Formação do Estado moderno (1979).
Nela, o autor destaca uma parte do livro para a “História política,
diplomática e militar”, em que o próprio título já indica a abordagem
escolhida. Por fim, a grande exceção é o livro de Oliveira Marques,
Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, com um capítulo dedicado
a “Estado e as Relações Diplomáticas”, no qual se apresenta uma
análise mais detalhada da diplomacia medieval.17
Visando a observar outro aspecto relacionado ao tema da
diplomacia, há um conjunto de trabalhos monográficos e artigos
acerca de personagens da sociedade quatrocentista que tiveram uma
participação acentuada em embaixadas. Citam-se os trabalhos: Dom
Frey Gomes: abade de Florença, de Eduardo Nunes;18 D. Jorge da

16
Um exemplo emblemático dessa inclinação é o artigo de Luís Adão da Fonseca, no qual o autor
analisa a questão cultural na diplomacia a partir do estudo das relações diplomáticas. FONSECA,
Luís Adão da. Política e cultura nas relações luso-castelhanas no século XV. Península: revista de
Estudos Ibéricos [da Universidade do Porto], Porto, p. 53-61, 2003.
17
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença,
1987, p. 279-334. Duas outras importantes obras de síntese, História de Portugal – A Monarquia
Feudal, de José Mattoso e Armindo de Sousa, e História de Portugal, com a parte medieval de
Bernardo Vasconcelos e Sousa, pouco deram espaço para a diplomacia. Acrescenta-se que coube
ao mesmo autor escrever sobre a temática na obra A Gênese do Estado Moderno no Portugal do
Tardo-Medievo (século XIII-XV), porém o texto, “Estado, fronteiras e relações exteriores”, limita-
se a tratar das embaixadas permanentes e do uso do latim como língua das relações diplomáticas.
Cf. OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Estado, fronteiras e relações exteriores. In: COELHO,
Maria Helena da Cruz e HOMEM, Armando Luis de Carvalho (coord.). A Gênese do Estado
Moderno no Portugal do Tardo-Medievo (século XIII-XV). Lisboa: UAL, 1999, p. 189-197.
18
NUNES, Eduardo. Dom Frey Gomes: abade de Florença, 1420-1440. Braga: Livraria Editora
Pax, 1963.
 
257
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Costa. Cardeal de Alpedrinha, de Manuela Mendonça;19 Dois


embaixadores de el-Rei D. Afonso V, de Dias Dinis;20 Um grande
diplomata português do século XV: o Doutor João Fernandes da
Silveira, de Baquero Moreno;21 Diplomacia e burocracia nos finais da
Idade Média: a propósito de Lourenço Anes Fogaça, chanceler-mor
(1374-1395) e negociador do Tratado de Windsor, de Carvalho
Homem;22 A Burocracia Régia como veículo para a titulação
nobiliárquica. O caso do doutor João Fernandes da Silveira, de Pedro
Caetano.23
Notam-se importantes aportes sobre a trajetória dos
personagens (vínculos sociopolíticos, ofícios, formação, etc.), porém
a atividade diplomática e o exercício da negociação tendem a ser um
entre vários aspectos da análise. Outro elemento a ser destacado é o
fato de os trabalhos se concentrarem nos “grandes embaixadores”,
permanecendo ofuscada a atividade de homens que atuaram
esporadicamente em missões, ainda que estes sejam a maior parcela
dos embaixadores do período.
Como último exemplo dos temas privilegiados entre os
estudos portugueses, destacamos a análise dos casamentos régios.
Nesse quadro, especificamente sobre o período quatrocentista,
citamos: “A política matrimonial da dinastia de Avis: Leonor e
Frederico III da Alemanha” (2003), de Maria Helena da Cruz
Coelho, e “O casamento de D. Beatriz (filha natural de D. João I)
com Thomas Fitzalan (Conde de Arundel) – paradigma documental

19
MENDONÇA, Manuela. D. Jorge da Costa. “Cardeal de Alpedrinha”. Lisboa: Colibri, 1991.
20
DIAS DINIS, António Joaquim. Dois embaixadores de el-Rei D. Afonso V. Cadernos Históricos
1. Braga: Editora Franciscana, 1955.
21
MORENO, Humberto Baquero. Um grande diplomata português do século XV: o doutor João
Fernandes da Silveira. In: A diplomacia portuguesa na história de Portugal, 1990, Lisboa. Actas
do Colóquio A diplomacia portuguesa na História de Portugal. Lisboa: Academia Portuguesa da
História, 1990. p. 93-103.
22
HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Diplomacia e burocracia nos finais da Idade Média: a
propósito de Lourenço Anes Fogaça, chanceler-mor (1374-1395) e negociador do Tratado de
Windsor. In: Estudos e Ensaios em Homenagem a Vitorino Magalhães Godinho. Lisboa: Sá da
Costa, 1988, p. 217-228
23
CAETANO, Pedro Nunes Pereira. A Burocracia Régia como veículo para a titulação
nobiliárquica. O caso do doutor João Fernandes da Silveira. Dissertação (Mestrado). Universidade
do Porto. Porto, 2011.
 
258
A diplomacia portuguesa quatrocentista

da negociação de uma aliança” (2007), de Manuela Santos Silva.24


Além desses dois artigos, a preocupação com os casamentos régios
aparece inserida em diferentes obras, como as relacionadas à coleção
Reis e Rainhas de Portugal. No entanto, talvez o artigo de António
Joaquim Dias Dinis “À volta do casamento de D. Duarte. (1409-
1428)” seja aquele que mais enfatizou a atuação dos embaixadores no
processo de negociação matrimonial.
Essa breve exposição dos caminhos percorridos pela
historiografia portuguesa tem por objetivo compreender, tal como
Manuela Mendonça argumentou em 1994,25 que ainda existe um
campo a ser explorado sobre a diplomacia medieval do reino
português, lacuna que entendemos se encontrar, especialmente, na
investigação do universo multifacetado que marca os estudos
contemporâneos sobre o tema e que tem na diplomacia seu principal
foco de pesquisa. Por mais que seja perceptível que os estudos
citados tenham inserido Portugal no cenário ibérico e europeu,
contribuindo para uma série de aspectos ligados à diplomacia
medieval, sobretudo nos séculos XIV e XV, permanecem pouco
analisados temas como as práticas de negociação, a circulação de
informações, o perfil dos embaixadores esporádicos, a construção
discursiva da paz, entre outras problemáticas presentes na “new
diplomatic history”.
Desta maneira, passa-se a considerações sobre os trabalhos
que exploraram outros elementos da diplomacia medieval.
Primeiramente, mesmo não sendo sobre o século XV, destacam-se os
artigos de Armando Martins, “Diplomacia e gestos diplomáticos no
reinado de D. Fernando (1367-1383)” (2008) e “Depois da guerra, a
difícil arte de fazer a paz. D. Fernando (1367-1383)” (2009).26 Em

24
Para além desse texto, citamos: SILVA, Manuela Santos. Relações Internacionais na Idade
Média: tratados de amizade, alianças dinásticas, movimentações territoriais. In: MENDONÇA,
Manuela; REIS, Maria de Fátima (coord.). Do reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2016, 95-109. Neste artigo, a autora analisa
os contratos matrimoniais em suas implicações no plano das relações entre os reinos, afastando-se,
assim, da ênfase na questão da política matrimonial.
25
MENDONÇA, Manuela. Relações externas de Portugal nos finais da Idade Média, 1994.
26
MARTINS, Armando. Diplomacia e gestos diplomáticos no reinado de D. Fernando (1367-
1383). In: Raízes medievais do Brasil moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2008, p.
 
259
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

linhas gerais, o autor analisa o processo de construção e negociação


da paz, assim como o papel negociador dos embaixadores do rei e a
importância dos gestos de diplomacia na afirmação da identidade
política do reino. Acrescenta-se que Martins apoia-se em variadas
fontes e no diálogo com a Antropologia.
As negociações comerciais relacionadas à diplomacia e a
atuação dos embaixadores na construção de alianças externas foi
estudada por Tiago Viúla de Faria na tese The Politics of Anglo-
Portuguese Relations and its Protagonists in the Later Middle Ages
(2012) e em artigos, como “Por proll e serviço do reino”? O
desempenho dos negociantes portugueses do Tratado de Windsor e
suas consequências nas relações com a Inglaterra (1384-1412)”
(2009) e “‘Pur bone alliance et amiste faire’”. Diplomacia e comércio
entre Portugal e Inglaterra no final da Idade Média” (2010), este, em
coautoria com Flávio Miranda. Contudo, considera-se que é no
artigo “Comunicação visual e relações externas: abordagens a partir
do caso anglo-português”27 que o autor mais avançou nas
possibilidades de pesquisa do campo das práticas diplomáticas,
analisando-se os mecanismos visuais de que o poder régio tardo-
medieval dispunha para gerir suas ligações com o exterior.
Destaca-se ainda a dissertação Discursos dos embaixadores
portugueses no Concílio de Constança, 1416 (1999),28 de Reina
Marisol Pereira. Defendida na área de latim medieval, a dissertação
traz a documentação relacionada à participação portuguesa transcrita
e traduzida, e explora a atividade da comitiva, em especial no plano
dos discursos proferidos. Mesmo que não constitua um estudo de
fôlego, leva às possibilidades existentes nessa via para a pesquisa da
diplomacia medieval, caminho que tem, talvez, sua principal

137-154; MARTINS, Armando. Depois da guerra, a difícil arte de fazer a paz. D. Fernando
(1367-1383). In: VI Jornadas Luso-espanholas de Estudos medievais. A Guerra e a Sociedade na
Idade Média. Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, 2009. v. 2, p. 69-76.
27
FARIA, Tiago Viúla de. Comunicação visual e relações externas: abordagens a partir do caso
anglo-português. In: SEIXAS, Miguel Metelo de; Rosa, Maria de Lurdes (coord.). Estudos de
Heráldica medieval. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 209-222.
28
PEREIRA, Reinal Marisol Troca. Discursos dos embaixadores portugueses no Concílio de
Constança, 1416 (1999). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra. Coimbra, 1999.
 
260
A diplomacia portuguesa quatrocentista

expressão na tese Les réseaux d’alliance en diplomatie aux XIVe et


XVe siècles: étude de sémantique, de Nathalie Nabert (1994).
Também merece destaque a dissertação De olhar atento e
ouvidos à escuta... A espionagem militar na cronística portuguesa de
Quatrocentos: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara (2015), de
Vítor Manuel Pinto.29 Ligada ao campo da história militar, o
trabalho discute as ações de exploração e comunicação de informação
inteligente presentes nas crônicas de Fernão Lopes e Zurara, além de
contribuir diretamente para a discussão da espionagem de finais da
Idade Média, tema que foi tratado no clássico artigo de Christopher
Allmand, “Les espions au Moyen Âge” (1983) e que tem sido
revisitado por Santiago González Sánchez,30 Walter Bastian31 e Éric
Denécé e Jean Deuve,32 por exemplo.
Por fim, cita-se a tese A sociologia da representação político-
diplomática no Portugal de D. João I,33 de Maria Alice Pereira Santos.
Tendo como referência os trabalhos de Stéphane Péquignot, a tese
apresenta, como principal contribuição, a prosopografia dos
diplomatas portugueses no reinado de D. João I, ao analisar os
vínculos deste grupo com o poder régio, as relações familiares, a
formação e a condição socioeconômica dos embaixadores.

Notas sobre a documentação

Com o intuito de direcionar o texto para as considerações


finais, cabe apresentar algumas considerações breves sobre a

29
PINTO, Vítor Manuel da Silva Viana. De olhar atento e ouvidos à escuta... A espionagem militar
na cronística portuguesa de Quatrocentos: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara. Dissertação
(Mestrado). Universidade de Coimbra. Coimbra, 2015.
30
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Santiago. El espionaje en los reinos de la Península Ibérica a
comienzos del siglo XV. En la España Medieval, Madrid, v. 38, p. 135-194, 2015.
31
WALTER, Bastian. Urban Espionage and Counterespionage during the Burgundian Wars
(1468–477). In: CURRY, Anne; BELL, Adrian R. Journal of Medieval Military History: Soldiers,
Weapons and Armies in the Fifteenth Century. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2011. v. IX, p.
132-145.
32
DENÉCÉ, Eric; DEUVE, Jean. Les Services Secrets au Moyen Âge. Rennes: Éditions Ouest-
France, 2011.
33
SANTOS, Maria Alice Pereira. A sociologia da representação político-diplomática no Portugal de
D. João I. Tese (Doutorado). Universidade Aberta. Lisboa, 2015.
 
261
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

documentação referente à diplomacia quatrocentista portuguesa. O


critério que orienta tais apontamentos fundamenta-se em dois
aspectos: a trajetória individual de pesquisa no trato com essas fontes
e, principalmente, o objetivo de discutir documentações que
tradicionalmente não são privilegiadas pelos estudos sobre a
diplomacia.
Em primeiro lugar, destacamos o Livro Vermelho do Senhor
Rey D. Affonso V.34 Datado de 1471, sob o título “Dytados em
lynguoajem d'ElRey Dom Affonso o Quynto nosso Senhor pera Rex e
Primcipes e Senhores e todas as outras pessoas estrangeiras de fora de
seus Reinnos[...]”, o documento 4 sistematiza as formas que deveriam
ser usadas nos contatos diplomáticos com os monarcas e príncipes
estrangeiros, além dos representantes destes e dos grandes senhores
do próprio reino.
Outro documento de relevante interesse é o número 6, que
organiza o assento dos embaixadores na Capela real e em outras
cerimônias. Sob o título de "Detriminaçaõ do Conselho d'ElRey
acerqua da maneira que se aja de ter com os Embaixadores dos Rex e
Principes estramjeiros, que a Sua Corte vierem, asy acerqua do
asentamento em Sua Capela como das outras cerimonias",35 o texto
indica a solenidade do cotidiano das embaixadas dentro do espaço da
corte, além de informar acerca das distinções de estatuto.
Por fim, há o documento 26, intitulado “Determinaçam, e
Regimento d’ElRey, da maneira que se daquy em diante aja de ter
acerqua dos mantimentos ordenados, e corregimentos que se ham de dar
aos Embaixadores, e pesoas que ele por seu serviço mandar fora de seus
Reinos, com embaixadas, ou recados a algua partes[...]”, datado de
setembro de 1473, na cidade de Lisboa.36 Primeiramente, esse

34
Livro Vermelho do Senhor Rey D. Affonso V. In: Collecção de Livros Ineditos de História
Portugueza dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Affonso V e D. João II. Publicados por José
Corrêa da Serra. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1793, t. III, p. 391-540. No
prólogo da edição é informado que o documento foi tirado da coleção de Manoel Severim de Faria,
à época, em poder do conde de Vimieiro. O códex não é original, posto que este foi molhado e
danificado, mas é uma cópia encomendada por D. João III. José Corrêa da Serra argumenta que o
nome do livro foi tirado da cor da capa em que estava encadernado, visto que no período a cor
vermelha estava frequentemente aplicada aos livros em que os príncipes mandavam registrar os
estilos e ordens, e que precisavam consultar-se nas cortes.
35
LV, doc. 6, p. 420-421.
36
LV, doc. 26, p. 467-469.

262
A diplomacia portuguesa quatrocentista

documento estabelece a distinção entre espaços diplomáticos: a


“Espanha”, com Castela, Aragão e Navarra, etc; e “fora da
Espanha”. Em segundo lugar, a fonte destaca elementos como
vestimentas, mantimento do embaixador e meios de transporte
necessários para a viagem diplomática e a condução das negociações.
Além disso, o documento 26 aponta para a cristalização de um
estatuto de embaixador, ainda que temporário, reforçando-se a
identificação de doutores, cavaleiros e “outro senhor mayor”, por
meio da designação “embaixador”.
Observa-se que os três documentos presentes no Livro
Vermelho são de suma importância, pois permitem a percepção de
diferentes aspectos da estruturação diplomática durante o reinado de
D. Afonso V. Neles encontramos a hierarquização e a distinção do
quadro de relações externas, marcado por termos envoltos em
categorias de parentesco e em relações de amizade; a normatização
do procedimento de recepção de embaixadas, assim como o
cerimonial diplomático presente no espaço da corte; e o
estabelecimento de um estatuto provisório dos enviados
diplomáticos.
No plano das investigações, consideramos que o documento
26 e as temáticas diretamente a ele relacionadas, isto é, o estatuto do
embaixador, os gastos com a diplomacia, a estruturação da comitiva
e o próprio perfil do enviado diplomático, são aspectos que carecem
de novos estudos, os quais poderão ser supridos, em grande parte,
pelo detalhamento das missões diplomáticas quatrocentistas. De
forma distinta, o regimento presente no documento 6 traz o
investigador para o plano das normatizações cerimoniais,37 porém
acreditamos que esse regimento pode ser confrontado com outras
fontes que ofereçam indícios da prática cerimonial, como as
narrativas de viagem. O documento 4 constitui um caso singular,
pois é frequentemente utilizado como indicativo “do âmbito geral
das relações diplomáticas de Portugal durante o século XV”,

37
Cf. GOMES, Rita Costa. A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995.
 
263
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

perspectiva que aparece, por exemplo, em Virgínia Rau,38 Oliveira


Marques39 e Saul António Gomes.40 Todavia, pensamos que o
mesmo documento pode ser objeto de reflexão tanto no campo das
fórmulas de cortesia, sendo um exemplo dessa via o estudo de David
Rincón,41 como para a discussão dos laços de amizade na
documentação diplomática.42 Em nossa tese, apresentamos uma
sistematização das fórmulas de cortesia presente no Livro Vermelho
(Quadro 1):

38
RAU, Virgínia. Relações diplomáticas de Portugal durante o reinado de D. Afonso V. In: RAU,
Virgínia. Estudos de história medieval. Lisboa: Presença, 1986. p. 66-80.
39
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 279-334.
40
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Lisboa: Círculo de Leitores, temas e debates, 2009.
41
RINCÓN, David Nogales. La cultura del pacto en las relaciones diplomáticas luso-castellanas
durante el período Trastámara (1369-1504). En la España Medieval, Madrid, v. 35, p. 121-144, 2012.
42
Nesse campo indicamos os seguintes estudos: ALTHOFF, Gerd. Family, Friends and
Followers: political and Social Bonds in Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004; SÈRE, Bénédicte. Ami et alié envers et contre tous: etude lexicale et
sémantique de l'amitié dans les contrats d'alliance. In: FORONDA, F. (dir.). Avant le contrat
social... Le contrat politique dans l'Occident médiéval (XIIIe-XVe siècle). Paris: [s.n.], 2011. p. 245-
268; SÈRE, Bénédicte. Penser l’amitié au Moyen Âge. Étude historique des commentaires sur les
livres VIII et IX de l’Éthique à Nicomaque (xiiie-xve siècle). Turnhout: Brepols, 2007; NABERT,
Nathalie. Les réseaux d’alliance en diplomatie aux XIVe et XVe siècles: étude de sémantique. [S.I.:
s.n.], 1994.

264
Quadro 1. Fórmulas de cortesia presentes no documento 4 do Livro Vermelho

Dinamarca
Inglaterra

Nápoles

Mouros
Polônia

Escócia
Aragão
Castela

Chipre
França

Hungria

Navarra
Sicília
Tipos de fórmulas de cortesia Fórmulas

Muyto alto, muyto excelemte, (e) muyto X X


poderoso
Muyto alto, muyto excelemte, e poderoso X X
Retórica de exaltação
Muyto alto, muyto excelemte X X X X X X X X
Muito nobre, e muito honrado antre os X
mouros
Mui(y)to amamos/muyto amado X X X X X X X X X X X X
Retórica do amor Amiguo X X X X X X X X X X X

Irmaaõ X X X X X X X X X X X X

Primo X X X
Retórica familiar

Tio X

Fonte: Elaboração própria a partir do documento 4 do Livro Vermelho.

265
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Levando-se em consideração listagem de 1471 a partir dos


eixos propostos por David Rincón (a retórica familiar, que envolve
vínculos decorrentes de matrimônios e da familiaridade simbólica; a
retórica de exaltação; e a retórica de amor), destacamos uma fórmula
de tratamento específica, “Irmaaõ per cunhadya, ho Irmaaõ primeiro,
e depoys o primo”, utilizada para o rei de Castela.1 Ainda no campo
da “retórica familiar”, apenas os reis mouros não são chamados de
“Irmaaõ”, e o rei de Castela é o único que aparece de forma
diferenciada entre os “irmãos”. Se este termo constitui uma fórmula
de tratamento cortês sem representar laços de consanguinidade
efetivos, indicando somente os vínculos de parentesco simbólico que
uniam os membros da Cristandade, o mesmo não acontece com
“Primo”, utilizado para os reis de Castela, Inglaterra e Nápoles, e
“Tio”, referência ao rei de Aragão.
A “retórica do amor” também oferece elementos para a
análise, pois o único monarca cristão que não é citado como “amiguo”
é o rei da França, ao passo que todos são tratados com “aquelle(s) que
muyto amamos” ou ‘muyto amado”. É interessante lembrar que, no
período, a relação luso-francesa era instável, situação então
favorecida pelos laços que ligavam D. Afonso V a Borgonha, que
estava em conflito com a França, e ainda pelos constantes casos de
atividades corsárias contra os navios portugueses. Esta circunstância
só mudaria efetivamente em 1475, após a assinatura de tratados entre
os reinos, aliança que culminou na viagem de D. Afonso à França
(1476-1477). Por fim, o conjunto da “retórica da exaltação”
apresenta-se como o mais variado, sendo a fórmula “Muyto alto,
muyto excelemte” a mais utilizada (Aragão, Sicília, Nápoles, Navarra,
Dinamarca, Polônia, Chipre e Escócia). Os reinos de Castela e da
Hungria aparecem pelo tratamento “Muyto alto, muyto excelemte, e
poderoso”, ao passo que a França e a Inglaterra aparecem destacadas
com “Muyto alto, muyto excelemte, (e) muyto poderoso”. Nota-se que
os reis mouros recebem um ditado bem particular, "Muito nobre, e

1
Livro Vermelho do Senhor Rey D. Affonso V. In: Collecção de Livros Ineditos de História
Portugueza dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Affonso V e D. João II. Publicados por José
Corrêa da Serra, t. III, p. 402.

266
A diplomacia portuguesa quatrocentista

muito honrado antre os mouros", e não participam da retórica familiar


e do amor.
Como indicamos, ainda estamos distantes de análises
conclusivas sobre as fórmulas de cortesia, contudo sua
sistematização nos revela que os códigos presentes na estruturação
das relações diplomáticas tardo-medievais reafirmam a centralidade
dos laços de parentesco e das relações de amizade que ligavam os
monarcas cristãos, elementos fundamentais para a compreensão da
diplomacia do período.
Como segundo exemplo documental, citamos as narrativas de
viagem. Estas constituem uma documentação ímpar para a
compreensão da diplomacia medieval, ao possibilitar ao investigador
problematizar os caminhos e meios de transporte utilizados pelas
comitivas, as composições das embaixadas, os ritmos das viagens e
dos tratos diplomáticos, as estratégias de negociação, as trocas de
presentes, as recepções oferecidas aos embaixadores, os lugares do
reino e da corte onde ocorriam as negociações, as festas e demais
celebrações relacionadas à diplomacia e, no limite, a forma como o
espaço estrangeiro ou do próprio reino foi descrito pelos viajantes.
No caso das narrativas de viagem quatrocentista, elas permitem
identificar as transformações ocorridas em Portugal ao longo do
século, tanto no plano das cerimônias monárquicas e dos
instrumentos do poder régio, como na própria dinâmica comercial e
social do reino.
Nesse quadro, o investigador dedicado ao estudo do reino
português encontra narrativas que abarcam quase a totalidade do
século XV: Livro de Arautos (1416); Voyage de Jehan van-Eick
(1428-1430); Diário da Jornada do Conde de Ourém (1436-1438); Le
livre des faits du bon Chevalier messire Jacques de Lalaing (1446-
1453); Diário de viagem do embaixador alemão Nicolau Lanckman de
Valckenstein (1451-1452); Viaje a España – George von Ehingen
(1456-1459); Viaje del noble boemio León de Rosmital de Blatna, por
España y Portugal, hecho del del año 1465 à 1467; Voyage à la côte
occidentale d’Afrique, en Portugal et en Espagne (1479-1480); Viaje
de Nicolas de Popielovo por España y Portugal (1484-1485); Journals
of Roger Machado (1488-1489).

267
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Este corpus documental, formado pelo Livro Vermelho e pelas


narrativas de viagem, serviu de base para nossa análise das
cerimônias e festas na diplomacia afonsina. A partir dos documentos,
identificamos que durante o reinado do Africano foram
sistematizadas as cerimônias de recepção de embaixadas na Corte e
estabelecidos em português os ditados a serem utilizados nas
correspondências e no envio de missões diplomáticas. Tais
documentos, presentes no Livro Vermelho, demonstram que o rei
dava especial atenção aos cerimoniais, dentre eles, os específicos da
prática diplomática. Numa época marcada pela ampliação das
alianças externas e por uma maior projeção de Portugal na
Cristandade, internamente a realeza preparava o reino para receber
ilustres comitivas de embaixadores. Do mesmo modo, as narrativas
de viagem indicam que ao longo do reinado o padrão cerimonial
português ganhou novos contornos, transformando-se num
complexo espetáculo que já apontava para as práticas quinhentistas
e envolvia de forma crescente os elementos exóticos do ultramar.
Nesse quadro, as recepções de embaixadas e os casamentos régios,
essencialmente cerimônias relacionadas à diplomacia, constituíram
momentos propícios para a propaganda externa da monarquia.
Os apontamentos apresentados não buscam oferecer uma via
única para a abordagem dos documentos, pelo contrário,
procuramos contribuir para a ampliação dos estudos sobre a
diplomacia medieval, em especial relacionada ao reino de Portugal,
tendo como base documentações que consideramos relevantes para a
constituição de novos olhares sobre o tema.

Considerações finais

No que pesem as barreiras enfrentadas para o estudo da


história medieval ou mesmo para a análise da historiografia
estrangeira neste lado do Atlântico, com os recursos disponíveis, em
grande parte, na internet (publicações de fontes, periódicos on-line
etc.), consideramos possível desenvolver pesquisas criteriosas sobre
o período medieval, e a produção crescente desde os anos 80

268
A diplomacia portuguesa quatrocentista

reafirmam tal perspectiva. Tentamos nessas breves palavras discutir


uma temática tida, por vezes, como necessariamente tradicional,
conservadora, ultrapassada, e demonstrar que nas últimas décadas
ela vem conhecendo uma retomada pelos mais diferentes aspectos.
Ao observar a historiografia portuguesa, consideramos ser possível
identificar as linhas gerais das mudanças encontradas no plano mais
amplo dos estudos acerca da diplomacia medieval. Passada uma
etapa deveras associada à exaltação do Estado e à narrativa dos
grandes acontecimentos da história político-militar, os estudos
lusitanos, em grande parte fazendo uso da história política renovada,
exploraram diversos aspectos da diplomacia, em que se privilegiam
temas como as relações diplomáticas, os casamentos, os
embaixadores com acentuada participação em missões. Este
movimento de ampliação e enriquecimento das pesquisas por meio
da incorporação de novas fontes, métodos e objetos, tem sido
expresso principalmente por estudos que procuraram analisar as
práticas de negociação, a gestualidade, os mecanismos visuais, os
discursos dos embaixadores, a identificação do conjunto dos
enviados diplomáticos, entre outros aspectos relacionados à nova
história da diplomacia medieval. Que este caminho continue a ser
trilhado em ambos os lados do Atlântico.

269
 

“Das cousas do Brasil”.


As cartas e relações dos jesuítas como género
narrativo-historiográfico

João Marinho dos Santos

N
as “Cartas” e “Relações” de Quinhentos-Seiscentos,
particularmente nas que tiveram como autores os Padres e
Irmãos da Companhia de Jesus que se dedicaram à
missionação ultramarina, o conceito “cousas” tem por significado
geral tudo quanto interessa aos homens e com eles tem relação.
Abrange, portanto, as cousas ou os assuntos temporais e religiosos,
se não mesmo as manifestações divinas.
Com o progressivo e surpreendente alargamento da visão do
Mundo e da Humanidade, como resultado das Conquistas e das
Grandes Descobertas em espaços exteriores à Respublica Christiana
ou à “Europa” emergente, as “cousas novas e estranhas”
converteram-se em inesgotável objecto de narração, descrição,
informação, notícia, enfim, de relato ou relação. Por curiosidade

 
271
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

empírica e pré-científica umas, por interesse privado e oficial (por


iniciativa da Coroa-Estado e da Igreja de Roma) outras, ou seja, no
âmbito dos processos da emigração e da colonização modernas, mas
quase sempre numa relação dominador (o “civilizado” ou o
“cristão”) e dominado (o “bárbaro”/“selvagem” ou o “gentio”), não
faltou a preocupação de unir o real e o ideal. Nesta perspectiva, o
interesse comum dos Estados Cristãos e da Igreja Católica,
balanceado para a construção de Impérios e do Reino universal de
Deus, exigiu, além de instrumentos físicos de dominação, o
conhecimento de outros mundos geográficos e dos “mundos”
antropológicos dos outros. Logo, a circulação da informação, nos
dois sentidos, entre centros (de dominadores) e periferias (de
dominados) foi imprescindível, mais versátil, mas menos rigorosa,
tratando-se de registos orais, mais formal, mas menos livre,
tratando-se de registos escritos. Assinale-se a possível coexistência,
em paridade (ou quase), do meio oral e do meio escrito na cultura de
uma mesma sociedade (o que só a enriquecerá ou modernizará),
ainda que a passagem da primazia do escrito sobre a oralidade ou a
memória se afirme como importante e decisiva etapa para a
construção da “história-realidade” e da “história-estudo”, sobretudo
a partir do século XVI. João de Barros, em concreto, assinalará a
pouca apetência dos Portugueses de Quinhentos pelo registo escrito
(descurando, compreensível e logicamente, as grandes vantagens da
imprensa), pelo que a Realeza se viu obrigada a encarregar os
escassos naturais que dominavam as técnicas da escrita de
elaborarem, oficialmente, crónicas e histórias às escalas nacional e
imperial.1
Não se verificou o mesmo com a direcção e a maior parte dos
agentes da Companhia de Jesus, já que, desde cedo, Inácio de Loiola
deu ordens expressas aos seus companheiros de escreverem
regularmente entre si e para os seus superiores, como forma de
cimentar a coesão e a solidariedade na Instituição. Porém, nem todos
cumprirão esta norma. Estando a Companhia particularmente
empenhada na realização de um projecto espiritual de âmbito

1
Cf. Prólogo. Da Asia de João de Barros e de Diogo do Couto Nova Edição Offerecida a Sua
Magestade D. Maria I, Rainha Fidelissima. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1778.

272
“Das cousas do Brasil”

mundial, compreende-se o inconveniente do descuido e a insistência


na informação sobre as novas terras e as novas gentes.
Documentemos com este excerto de uma carta do P. Juan de Palanso,
para o Prepósito ou Provincial Manuel da Nóbrega no Brasil:

Hasta aqui tienense informaciones muy imperfectas de las


cosas de allá [Ultramar], parte por que se dexa a los que estan
en cada parte [região] el cuydado de scrivir, y así unos lo
hazen y otros no, que son los más, parte porque aún los que
scriven dan información de algunas cosas, y déxanse otras
que se convendría se supiessen.2

Enfim, era preciso informar (narrando e descrevendo) sobre


“cousas” com interesse para a ecuménica Companhia de Jesus e, em
última instância, para a Cristandade, obedecendo a um modelo de
registo para maior eficácia. O que é que resultou?
Como é sabido, a narração ou o discurso dos factos constitui
o esqueleto de qualquer texto literário e, também ou mais ainda, do
texto historiográfico, já que a História, na sua essência, é uma
narração factológica e acontecimental tida por verdadeira. Porém, no
propósito de estabelecer o sentido dos factos, ou seja, de proceder à
sua interpretação (como deve ser apanágio da História que pretende
ser científica), é conveniente captar a interpenetração ou a dialéctica
dos temas e dos motivos, ainda que a análise da narrativa tenda a
separar as acções das situações. Deste modo, só o estudo da
tematologia (dos temas e dos motivos) nos permite aceder à
integralidade ou globalidade dos factos, com o objectivo de tornar
completo e inteligível (“perfeito”, como se dizia no século XVI) o
processo histórico. Assim, algumas Cartas e Relações dos primeiros
jesuítas, designadamente dos que missionaram no Brasil, por
satisfazerem tais requisitos, podem já integrar o género narrativo-
historiográfico, quer no que concerne ao objecto, quer até ao método.
Porém, também não faltaram os que, militando na Companhia, por
razões catequéticas sobretudo se dedicaram aos géneros lírico e
dramático, podendo dar-se o exemplo de José de Anchieta, autor da

2
LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae (1538-1553). Roma: Monumenta Historica Societatis
Iesu, 1956. v. I, p. 519-520.

273
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

lírica intitulada De Beata Virgine Dei Matre Maria e de várias obras


de teatro em português, castelhano, latim e tupi. Depois de
assinalarmos a diversificação da produção literária dos primeiros
jesuítas no Brasil, voltemos a focar o género narrativo.
A designação explícita no início do texto ou implícita no
decurso da narração das “Cartas” e das “Relações” dos jesuítas
estabelece o tipo de mensagem principal, ou seja, o tema e as
circunstâncias que o emissor deseja destacar e transmitir, não sendo,
porém, alheia a tal escolha a qualidade do(s) destinatário(s). Por
exemplo, para um companheiro jesuíta era natural que prevalecesse
a natureza intimista ou quase exclusivamente pessoal da missiva.
Foi, contudo, maior o número daquelas que procuravam informar e
motivar, ainda que endereçadas ad hominem, muitas vezes com a
observação de irem abertas e poderem ou deverem ser lidas por
outras pessoas, para se verificar esta função. Documentemos com
este excerto de uma carta de Francisco Xavier, datada de Cochim, a
27 de janeiro de 1545, para o P. Simão Rodrigues em Lisboa: “As
cartas que screvo a Roma mando-as abertas, para que as leaes e
saibaes as novas de quaa, e provejaes de mandar muita gente [da
Companhia] todos os annos”.3
Sem deixarem de assumir a característica de carta longa ou
“larga”, mas obedecendo a uma estrutura cronológica e temática
para a descrição e a narração, as “Relações” ou “Informações” eram
dirigidas, por regra, a destinatários mais ignotos ou anónimos, sendo
as respectivas mensagens compreensivelmente também mais
generalistas. Assim, uma Relação é, essencialmente, uma narração
ainda que integre elementos descritivos e, como tal, procura
reconstituir factos e acontecimentos tidos não só por verdadeiros e
reais, mas de maior objectividade, aproximando-se, nesta vertente,
da História e não tanto da Literatura. Mais: ao contrário da Carta,
carregada, por regra, de subjectividade e visando
predominantemente o singular (mesmo que institucionalizado), a
“Relação”, sobretudo a composta ou sistematizada, tal como a
História, tende a ter por objecto e objectivo o geral, o universal, o

3
SAINT FRANCIS XAVIER. Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta, por G.
Schurhammer S. I. et Wicki S. I. Roma: Monumenta Historica Soc. Iesu, 1944. t. I, p. 279.

274
“Das cousas do Brasil”

regular, o repetitivo, o constante ou estrutural, sob a forma de


“narração-explicação”, o que valoriza o papel científico do narrador.
Lembremos que esta, a História-estudo, é a narração-descrição do
que é específico ou compreensível nos acontecimentos humanos.
Para adequada e concretamente inserirmos as “Cartas” e
“Relações” dos jesuítas, em particular dos primeiros que
missionaram no Brasil, no género narrativo-historiográfico, convirá
pois distinguir entre História-realidade e História-estudo ou
História-ciência. No âmbito da primeira, designadamente nas
Cartas longas e/ou nas simples Relações e Informações, o objecto
centra-se, por regra, em temas ou “cousas” temporais de substância
geo-natural, antropológica (física e cultural) e etnográfica (com
relevo para os costumes). Estas serão, de facto, já no século XVI
matérias novas, como a abordagem da influência do clima na história
(isto é, nos comportamentos humanos) ou o encontro da
etnografia/etnologia com a história, revelado concretamente no
interesse pelos costumes das etnias (“nações”). Em qualquer dos
domínios (História natural, Etnografia e Antropologia), os jesuítas
mostraram-se observadores e investigadores interessados,
conferindo maior preferência ao passado recente e ao presente. Ou
seja, os que estavam no terreno privilegiarão, à semelhança do
conhecimento dos modernos ou renascentistas, o testemunho
pessoal (com o eu “vi e ouvi”) ou recorrerão a relatos de testemunhas
tidas por idóneas. De qualquer modo, esta objectividade vivida ou
testemunhada directa e indirectamente tem apegada a subjectividade
interpretativa, constituindo tal binariedade, como é sabido, um
elemento imprescindível em qualquer ciência, incluindo a História.
No entanto, convirá não perder de vista que, com os primeiros
jesuítas, a informação das “cousas” do temporal teve por finalidade
principal contextualizar a missão evangélica e os seus resultados ou
“frutos”, pelo que, na narração, logicamente, o espiritual se sobrepõe
ao temporal, o que não significa que assuma uma ordenação
primeira. Mais, quer através dos temas, quer das circunstâncias ou
dos motivos, independentemente da sua natureza, a edificação dos
destinatários tem como sentido ou função tentar mobilizar mais
agentes para a difusão da “Boa-Nova” em terras longínquas e
estranhas, de que poderão servir de exemplo os seguintes apelos:

275
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

“Acudi irmãos a estas criaturas [...], vinde a ver estas novas estrellas,
e Reinos [...]”;4 ou “Manday muita gente à Índia, porque
acrescentarão muito os limites da Sancta Madre”.5
Outra das vertentes em que as “Cartas longas” e as
“Relações” se aproximam da História-estudo é a preocupação de
datar e periodizar, normalmente por décadas. No que concerne à
datação, paira já nesses registos uma certa ideia de historicismo ou de
valorização das circunstâncias, ou seja, o que acontece deve ser
explicado em função do momento em que aconteceu, podendo tal
registo ser importante para a leitura que o destinatário fará.
Da Baía e muito provavelmente da primeira quinzena de abril
de 1549 (já que, pela narrativa, precede uma outra missiva datada do
dia 15 dos mesmos mês e ano), o Padre Manuel da Nóbrega escreverá
ao Padre-mestre Simão Rodrigues, em Lisboa, a sua primeira carta.
Esta será também a primeira a ser enviada, pelos jesuítas, do “Novo
Mundo” para o “Velho Mundo”. Outras do mesmo missionário e
dos seus companheiros se seguirão, sendo curioso registar, quanto ao
carácter divulgador destas missivas, que, já em 1551, em treslado do
português para o castelhano, circulará Copia de unas cartas [em
número de 6] enbiadas del Brasil por el Padre Nobrega dela
Conpanhia [sic] de Jesus: y otros padres que estan debaxo de su
obediẽcia al padre maestre Simon [...]. A primeira deste conjunto tem
a designação Informação das Terras do Brasil, o que indicia sobre a
sua finalidade ou função essencialmente descritiva.
Releve-se que a preocupação com a divulgação, cumprindo
ordens superiores, também concorria para aproximar estes conjuntos
epistolares da História, ao torná-los mais inteligíveis na sua
significação do que se se mantivessem singularmente. Quanto à
contextualização temporal, espacial e substancial, ela é mais notória
nas “Relações ordenadas” ou sistematizadas, segundo critérios
subjectivos do compilador, ainda que satisfazendo, naturalmente, os

4
De uma carta do P. Gaspar Vilela, datada da Índia a 24 de abril de 1554, para os residentes no
Colégio de Coimbra. In: Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos
de Japão e China aos da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580. Ed.
fac-similada. Maia: Castoliva Editora, 1997. t. I, f. 30-30 v.
5
De uma carta de Francisco Xavier, de Cochim, a 27 de janeiro de 1545. In: SAINT FRANCIS
XAVIER. Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta, p. 281.

276
“Das cousas do Brasil”

objectivos da Companhia. No que concerne ao modelo expositivo


que acabou por ser consagrado, trata-se de um processo já próprio do
historiador, ou seja, de alguém que não interveio directamente na
história-realidade, mas que pretende estudá-la pelo menos
incipientemente, torná-la mais inteligível e divulgá-la. Neste
sentido, ganharão primeva e notória projecção editorial as Cartas que
os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de
Japão e China aos da mesma Companhia da Índia e Europa desdo anno
de 1549 até o de 1580. Em 1598, a mando do Arcebispo de Évora, D.
Teotónio de Bragança, foi publicada uma edição (Évora, por Manuel
de Lira) com as 206 cartas que foram fac-similadas em 1997 (Maia,
Castoliva Editora).
É verdade que o que preside à formação deste “corpus” é a
cronologia, contudo as missivas estão transcritas na íntegra e com
cuidado. É nítida, de facto, a observação da linearidade temporal por
anos, como o seguinte registo no fólio 47 v do Primeiro Tomo da
edição de 1598 deixa perceber: “Carta que o Padre-Mestre Belchior
escreveo da India aos Irmãos da Companhia de Iesu de Portugal
depois que veo de Japão, escrita em Cochim, a 10 de janeiro de 1558.
Poem-se aqui, porque as cousas della sam do anno de 1556 e de
1557”. Porém (insista-se), já se verifica alguma sistematização nestas
Cartas de Japão e China [...], ao sumariar-se parte dos seus conteúdos
e ao evitar-se repetições informativas. Exemplifiquemos, também,
com este registo: “O que vay notado [numa carta datada de Cochim
a 5 de outubro de 1559] com esta estrela [asterisco] se tirou de hũa do
padre Baltasar Gago, que toca as mesmas cousas”.6 Mas, voltemos
ao modelo.
Singularmente, a epistolografia de natureza descritivo-
narrativa pelos anos 50/60 de Quinhentos parece obedecer a um
modelo prévio, deste modo confirmado e sumariado numa carta do
P. Cosme de Torres, escrita no Japão a 8 de outubro de 1561 e
endereçada ao Provincial da Índia: “Nesta darey a V.R. algũas novas
desta terra de Japão, que creo serão das melhores que della a essas

6
Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos
da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580, t. I, f. 67.
 
277
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

partes se tem escrito, e direi primeiro da terra, e de suas qualidades,


e depois do fruito [espiritual] que se faz [...]”.7 Concretamente, no
que diz respeito às “cousas” temporais, a informação centrar-se-á
nas aptidões geoeconómicas, no clima dominante, nas produções, na
alimentação, na troca e comercialização, nas especificidades
etnolinguísticas, na governação e administração, na arrecadação
fiscal. Confirma-se, pois, o interesse já pela climatologia, economia,
política e fiscalidade, o que se afigura estar de acordo, como
dissemos, com uma História nova, “plena” ou geral. Vinham, depois
destes elementos ou motivos contextualizadores, as notícias sobre a
evangelização (suas dificuldades e seus resultados) de acordo com as
particularidades ao nível dos costumes e da linguística. Por regra,
eram lentos os ritmos de evangelização, por razões culturais e
civilizacionais, mas persistia a esperança do aumento do “fruto”.
Demos outro exemplo do modelo informativo, observado noutro
continente. Em 1594, por ordem do Visitador da “residência” dos
Padres da Companhia de Jesus em Angola, o P. Pero Rodrigues, com
base em informações de “pessoas dignas de fee”, como eram os
padres jesuítas Baltasar Afonso e Jorge Pereira, proceder-se-á à
elaboração de uma “Breve relação da conquista de Angola”. O 1º
capítulo redigiu-o o próprio Pero Rodrigues, tendo os capítulos 6º,
7º, 8º e 9º saído da pena do P. Baltasar Afonso, com as matérias
tratadas a dizerem respeito à geografia e história natural do Reino de
Angola, à sua história política e administrativa (com particular
destaque para a chegada definitiva de Paulo Dias Novais), à
missionação primeva, às guerras entre os portugueses e o N’Gola, à
escravaria, aos costumes dos negros ambundos, às vitórias (datadas)
que Deus deu aos portugueses, bem como às derrotas e aos reveses
sofridos, sem esquecer, por fim, o fruto espiritual conseguido
sobretudo pelos jesuítas.8
Uma outra questão ou curiosidade sobre o modelo que foi
sendo usado seria a de se saber se foi imposto superiormente ou se se

7
Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos
da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580, t. I, f. 73 v.
8
Monumenta Missionaria Africana. África Ocidental (1469-1599) coligida e anotada pelo P.
António Brásio, Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954. v. IV de suplemento aos séculos XV
e XVI, p. 546-581.

278
“Das cousas do Brasil”

foi estruturando sobretudo por influência de prestigiados secretários


dos “Visitadores” enviados pela Companhia às suas missões, como
foi o caso do célebre Fernão Cardim. Este embarcou em 1583, com a
incumbência de secretariar o Visitador Cristóvão de Gouveia, e da
sua pena saiu a conhecida Informação do Padre Cristóvão de Gouveia
às partes do Brasil no ano de 83, publicada por Varnhagen, com o
título Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica [...] desde
o anno de 1583 ao de 1590, indo por Visitador o Padre Christovão de
Gouvea. Escripta em duas cartas ao P. Provincial em Portugal [...],
Lisboa, Imprensa Nacional, 1847. Posteriormente e porque
continuou no Brasil, Cardim pôde escrever Do Clima e Terra do
Brasil e de algumas cousas notaveis que se achão asi na Terra como no
Mar; e Do Principio e Origem dos Indios do Brasil e de seus costumes,
adoração e cerimónias.
Outro secretário, no caso do Visitador Manuel Lima, que
aliás procurou completar as “Informações” ou “Relações” de
Cardim, foi o P. Jácome Monteiro, autor de uma Relação da
Provincia do Brasil (1610), em que volta a sobressair a visão
descritiva, mas com referências históricas sobre a colonização dos
Portugueses e outras de natureza etnográfica sobre os costumes dos
Índios.9
Estes são alguns exemplos de informadores directos, ligados
à Companhia de Jesus, e que decidiram escrever “largo”, por vezes
em estilo epistolográfico. Quanto ao passado sobre que farão incidir
as suas descrições-narrações, como já foi dito, verifica-se ser de
pouca espessura temporal, o que não surpreende, por serem recentes
tanto o início da colonização, como o da missionação. Naturalmente,
a visão diacrónica alongar-se à medida que aumentar a datação dos
registos.
Este tipo de “Relações directas” apresenta algumas diferenças
das “Relações sistematizadas” com extractos de cartas enviadas por
outros. A fim de melhor se compreender o começo deste processo,
citamos esta passagem de uma carta do secretário do Provincial de
Portugal, datada de 8 de agosto de 1561: “Al officio de secretario

9
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro – Ministério da Educação, 1949. v. VIII, p. 393-425.

279
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

pertenece escrivir todas las cartas del P. Pronvincial asi para personas
de la Compañia como [para] otras de fuera della, respondiendo de
otra manera; sacar extratos de las que vienen, copiar en libros las que
se enbian [...]”.10 Posteriormente, será tomada a decisão de
aperfeiçoar este serviço de secretariado e de proceder, com mais
cuidado e intensidade, ao registo dos factos e acontecimentos
notáveis da Companhia, ao que se propuseram vários agentes
internos, como foi o caso do P. Francisco Guerreiro.
A primeira edição da Relação, organizada (estruturada e
redigida em parte) pelo jesuíta P. Fernão Guerreiro, foi publicada em
cinco volumes (é raríssima a colecção completa) nos anos de 1603,
1605, 1607, 1609 e 1611. Em 1930, foi reeditado o Tomo Primeiro
(1600-1603) por Artur Viegas, com a chancela da Imprensa da
Universidade de Coimbra. O novo título será: Relação Anual das
Coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas missões
Do Japão, China, Cataio, Tidore, Ternate, Ambóino, Malaca, Pegu,
Bengala, Bisnagá, Maduré, Costa da Pescaria, Manar, Ceilão,
Travancor, Malabar, Sodomala, Goa, Salcete, Lahor, Diu, Etiopia
a alta ou Preste João, Monomotapa, Angola, Guiné, Serra Leoa,
Cabo Verde e Brasil nos anos de 1600 a 1609 e do processo da conversão
e cristandade daquelas partes: tirada das cartas que os missionários de
la escreveram. Este título da nova edição tinha a vantagem de
enunciar as proveniências geográficas do epistolário dos jesuítas na
primeira década do século XVII e, deste modo, concorrer para
cartografar as missões da Companhia. Porém, fora mais sucinto, logo
menos específico, o frontispício do primeiro volume da edição
princeps, a saber Relaçam Annual Das Cousas Que Fizeram os Padres
da Companhia de Jesus na India, e Japão nos annos de 600, e 601, e
do processo da conversão, e Christandade daquellas partes: tirada das
cartas gẽrais que de la vierão pello Padre Fernão Guerreiro da
Companhia de Jesus. Em Évora, por Manuel de Lira, ano 1603.
Os temas ou as “cousas” concernentes ao Brasil na Relação do
Padre Fernão Guerreiro são, logicamente, também de
predominância espiritual e eclesiástica, a ponto de o motor da

10
LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae (1538-1553). Roma: Monumenta Historica Societatis
Iesu, 1958. v. III, p. 384.

280
“Das cousas do Brasil”

evolução histórica ser a própria divindade, como esta passagem


evidencia: “[...] no que tudo se mostra bem o braço poderoso de
Deus, que em tão breve tempo, de tão feros lobos [certos índios] está
fazendo tão mansos cordeiros; e assim esperamos na sua misericórdia
que o mesmo sucederá a todos os outros [...]”.11 Mas, para ele, os
mediadores entre os homens e Deus no que concerne à missionação
eram principalmente os agentes da Companhia, mesmo quando
intervinha o trabalho de outro clero regular e secular. Assim, apoiado
nas cartas que esses agentes no terreno escreviam, Guerreiro retirará
excertos de provas recentes do muito que eles, maravilhosa ou
milagrosamente, iam conseguindo junto dos índios “bárbaros”, pelo
que a colonização, estruturada na economia do açúcar, ia
progredindo e os decisores políticos, no Reino e na colónia, se
obrigavam ao reconhecimento público do quanto, com sacrifício, era
obrado pelos “Padres”. Eis a história-objecto a reflectir,
sobremaneira, os interdependentes interesses do Estado e da Igreja,
enquanto os particulares ou os não entendiam ou os não
reconheciam. Muitos dos temas temporais, registados nesta Relação,
dizem respeito, portanto, aos insucessos da governação e aos êxitos
dos “Padres”, concretizados em vários casos, desde 1549 até começos
do século XVII. “Relações” como esta, obedecendo, conforme se
disse, a um modelo prévio, testemunham, além do mais, a ingente
importância conferida pelos jesuítas ao movimento humanista do
Renascimento, particularmente nas vertentes da afirmação do
indivíduo e das instituições e na perenização do passado “através da
memória e da história”, sem esquecer o presente repleto de “novas
novidades”.
Atentos e curiosos humanistas, é sobejamente conhecida a
importância que os jesuítas conferiram às suas escolas, em particular,
aos seus “colégios”. Só no que concerne ao século XVI, relembremos
as datas fundacionais dos seguintes colégios brasileiros: 1551,
“Colégio dos Meninos de Jesus”, de que terá derivado o “Colégio de
Todos os Santos”, na Baía e em 1556; 1554, “Colégio de Santo Inácio

11
GUERREIRO, Fernão, S. J. Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de
Jesus nas suas Missões do Japão, China, Cataio... Nos anos de 1600 a 1609 e do processo da conversão
e cristandade daquelas partes; tiradas das cartas que os missionários de lá escreveram. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1930. t. I, p. 395.

281
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

ou de Piratininga”, em São Paulo; 1568, “Colégio de Santo Inácio”,


no Rio de Janeiro; 1576, “Colégio de Pernambuco”.
Em 1565, o secretário do Propósito geral da Companhia de
Jesus ordenara ao responsável pela “Província de Portugal” que se
compusesse a história de cada colégio, com referências expressas às
suas origens e aos sucessos mais notáveis.12 Entre outros, nos anos de
1573 e 1574, viram registada a sua história os colégios de Santo Antão
(em Lisboa), de Coimbra, Évora e Bragança, surgindo, pouco
depois, a Historia Da Fundación del Collegio de la Compañia de
Pernambuco hecha en el año de 1576. O manuscrito referente a este
colégio acabou por integrar o espólio da “Biblioteca Pública
Municipal do Porto”, a qual, em 1923, com a chancela da “Imprensa
Portuguesa”, decidiu publicá-lo na Colecção de Manuscritos Inéditos
Agora Dados à Estampa. Consta de 9 capítulos, o primeiro sob a
epígrafe “De los primeros padres que fueron a Pernanbuco”,
registando o ano de 1551 como o da chegada dos representantes da
Companhia de Jesus. E, uma vez mais, a temática dominante é a do
“fruto espiritual” que os “Padres” iam obtendo nas suas missões, a
partir do colégio Pernambucano, em pequenas narrativas sobre as
“cousas de edificação” que foram sucedendo anualmente, no período
de 1572 a 1576.
Este projecto da história da fundação dos colégios da
Companhia acabou por suscitar outra produção historiográfica de
contornos temporais mais vastos e de temas mais diversificados. É
que, em 1587, a Congregação Provincial, reunida em Lisboa, decidiu
que era conveniente

[...] pôr em historia os sucessos dignos de lembrança, quais


eram aqueles primeiros princípios da Companhia em
Portugal, as fundações dos seus colégios, as navegações, os
trabalhos e exemplos de virtude de seus religiosos e coisas
semelhantes, como já nos anos atrás se principiara em Lisboa
e Coimbra, e por desleixo se não continuara”.13

12
Cf. RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal.
Porto: Apostolado da Imprensa – Empresa Editora, 1931. t. I, v. I, p. XIV.
13
apud RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XV.

282
“Das cousas do Brasil”

Mais: o contributo historiográfico de Portugal integraria a


redacção de uma história universal ou geral da Companhia de Jesus.
O que foi conseguido a este respeito em Portugal? Daremos
exemplos de alguns títulos.
O P. Álvaro Lobo escreveu, em 4 Tomos, os primeiros 17
anos da história da Província de Portugal, sob o título Crónica da
Companhia de Jesus da Província de Portugal em que se contém sua
fundação e progresso e os varoens insignes que nela floreceram.14
Faleceu a 28 de abril de 1608, pelo que o P. António Leite se
encarregou de prosseguir a tarefa, tendo registado as matérias ou as
“cousas” referentes aos anos de 1565 a 1570. Em 1662, por morte,
deixou inacabado o seu trabalho, tendo-o retomado o P. Baltasar
Teles, com a Chronica da Companhia de Jesu na Provincia de Portugal
(Primeira parte, 1645 e Segunda parte, 1647), e o P. António Franco,
com A Imagem do Primeiro Século da Companhia de Jesus em Portugal
e a Imagem do Segundo Século.15 Também este último estudo ficou
inédito e incompleto com o falecimento do autor em 1732.16
E, no Brasil, o que se ia conseguindo? Lembremos que serão
registados dados biográficos sobre os agentes da Companhia, de que
é exemplo o Catálogo dos PP. e Irmãos da Pronvincia do Brasil em
janeiro de 600, elaborado pelo P. Pero Rodrigues (1542-1628),
Provincial do Brasil durante nove anos. O mesmo missionário
compôs, com a máxima fidelidade (segundo declara), uma Vida de
José de Anchieta, V Provincial que foi da Companhia de Iesus, no
estado do Brasil [...] e as cousas que escreve foram tiradas de originaes
authenticos e jurídicos e com testemunhas juradas, na Bahia a 30 de
janeiro de 1607. Não foi editado em português este trabalho
historiográfico sobre o prestigiado Anchieta, durante o século XVII,
mas o original suportou outras publicações em latim e francês

14
RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XVI.
15
Relativamente à Chronica, uma leitura dos subtítulos deixa perceber o interesse pelo registo da
vida e acção do padre Simão Rodrigues, fundador e governador da Província de Portugal, e de
outros jesuítas que serviram a Companhia em tempo de Inácio de Loyola, “Com o summario das
vidas dos Serenissimos Reys Dom Ioam Terceyro, E Dom Henrique, Fundadores e Insignes
bemfeytores desta Provincia”.
16
Abona também estas últimas informações bibliográficas RODRIGUES, Francisco, S.J. História
da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XVII-XXI.
 
283
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

naquela centúria. Outra obra Seiscentista, extremamente rara, logo


valiosa do ponto de vista bibliográfico, é a Vida do Veneravel Padre
Ioseph de Anchieta da Companhia de Iesu, Taumaturgo do Novo
Mundo, na Provincia do Brasil, da autoria do P. Simão de
Vasconcelos (1597-1671) e também Provincial ali.17 Entretanto,
convirá lembrar que não cessaram a redacção e a publicação de
Cartas, Relações ou Informações tendo como autores os jesuítas em
missão no Brasil. Exemplifiquemos, além do já citado, com a Relação
das cousas do Rio Grande, do sítio e disposição da terra (1607);18 ou
com a Informação do Rio do Maranhão e do grãde Rio Pará (1618).19
Do que fica dito, talvez se possa reter, como mais importante,
que os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram
mais memorialistas do que historiadores. No entanto, quer uns, quer
outros, registaram, directa e indirectamente, múltiplos e
diversificados temas e motivos que já foram ou poderão vir a ser
matéria da história-realidade. Alguns poucos atingiram ou estiveram
próximos de atingir níveis em que a história é menos o real do que o
inteligível, ou seja, em que é História-ciência, revelando assim
estarem em sintonia com a historiografia mais avançada da transição
do século XVI para o XVII.

17
No título actualizou-se o emprego do u e do v. Foi publicada “Em Lisboa, na officina de Ioam
da Costa, 1672”. De visita ao Brasil, em 1922, o Presidente da República Portuguesa, António
José de Almeida, ofereceu uma cópia da obra ao seu par brasileiro.
18
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1938.
v. I, p. 557 – 558.
19
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, p. 425-426.

284
 

Sobre os autores

Adriana Zierer

Doutora em História Medieval na Universidade Federal


Fluminense (2004). Realizou estágio Pós-Doutoral na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, junto ao Groupe
d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM).
Docente da Graduação e do Mestrado em História da Universidade
Estadual do Maranhão (PPGHIST-UEMA); professora do
Mestrado em História da Universidade Federal do Maranhão
(PPGHIS-UFMA). É uma das coordenadoras dos laboratórios de
pesquisa Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e
Mnemosyne - Laboratório de História Antiga e Medieval. Participa
de vários periódicos, sendo atualmente diretora da revista Mirabilia
e editora-chefe da Brathair. Coordenadora dos Encontros
Internacionais de História Antiga e Medieval do Maranhão,
realizados na UEMA desde 2005. É membro do Grupo Luso-
Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno. Foi contemplada
com bolsa de Produtividade concedida pela UEMA no período
2016-2018.

 
285
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Armando Martins

Professor Agregado de História na Faculdade de Letras da


Universidade de Lisboa. Dos seus vários trabalhos destacam-se: O
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média, Lisboa, 2003
(tese de doutoramento, distinguida em 2004 com o prémio ‘História
Medieval’, pela Academia Portuguesa da História), e os livros
Guerras Fernandinas (2006), D. Fernando, o Formoso (2009), D.
Leonor Teles, flor de altura (2011), D. Beatriz a princesa enjeitada
(2011). É Membro-fundador do Instituto Histórico Alexandre
Herculano; Membro da Sociedade Portuguesa de Estudos
Medievais, Académico de Número (N.º 18) da Academia
Portuguesa da História, Académico Efectivo da Academia de
Marinha, além de Académico Correspondente do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro.

Cintia Maria Falkenbach Rosa

Professora adjunta no Departamento de Artes Visuais da


Universidade de Brasília (1995). Artista visual; calcogravura,
desenho e aquarela. Graduada em Licenciatura Plena em Educação
Artística (1982). Mestre em Artes Visuais (2004) e Doutora em
Teoria e História da Arte (2014) pelo Departamento de Artes
Visuais da Universidade de Brasília. Coordenadora da Oficina de
Cutelaria Artesanal do Departamento de Artes Visuais. Membro
colaborador do Programa de Estudos Medievais do Departamento
de História. Publicações coletivas diversas em Encontros e
Congressos de História Medieval e Artes Visuais.

Douglas Mota Xavier

Professor Adjunto da Universidade Federal do Oeste do Pará


(UFOPA), campus Santarém, na área de História Antiga e

286
Sobre os autores

Medieval. Doutor (2016) e Mestre (2012) em História pelo PPGH-


UFF, com pesquisa financiada pela CAPES e pelo CNPq,
respectivamente. Bacharel e Licenciado em História (2009) pela
UFF. Pesquisa temas relacionados: ao poder e sociedade na
Península Ibérica medieval; à diplomacia e às relações diplomáticas
medievais; às viagens medievais; e às novas linguagens e tecnologias
no ensino de História. Coordenador do Vivarium - Laboratório de
Estudos da Antiguidade e do Medievo/Núcleo Norte e membro do
Scriptorium - Laboratório de Estudos Medievais e ibéricos da UFF.

Dulce Amarante dos Santos

Professora Titular da Universidade Federal de Goiás. Possui


graduação em História pela Universidade de São Paulo (1971) e
doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1997).
Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Complutense de
Madri (2000) com bolsa de hispanista do Ministério de Asuntos
Exteriores da Espanha; pós-doutorado em História da Medicina na
Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha, em 2012 com
bolsa estágio sênior da CAPES. Tem experiência em pesquisa e
orientação, mestrado e doutorado, na área de História medieval
ibérica, com ênfase em História das Mulheres e Gênero, Imaginário
social e História social da Medicina. É Líder do PEM - Programa de
Estudos Medievais da UFG (CNPq) e integra desde 2006 o Grupo
Luso-brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno, que se reúne
anualmente, em Portugal e no Brasil, sendo que em 2012, organizou
o VII Encontro do grupo na UFG. Membro eleito em 2014 da
Academia Portuguesa de História.

Francisco José Silva Gomes

Possui Graduação em História pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense (1979) e Doutorado em História

287
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

pela Université de Toulouse Le-Mirail (1991). Atualmente é


Professor Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tem experiência na área de História, com ênfase em História
Medieval e História da Igreja no Brasil, atuando principalmente
nos seguintes temas: cristianismo - cristandade - igreja - poder,
catolicismo, etnia - religiosidade - identidade - escravidão, milênio
- calendário e catolicismo - irmandades - Rio de Janeiro.

João Marinho dos Santos

Professor catedrático do Departamento de História da


Faculdade de Letras e pesquisador da História dos
Descobrimentos e da Expansão Ultramarina Portuguesa da
Universidade de Coimbra. É autor e organizador de inúmeros
livros, dentre os quais merece destaque o livro Santa Cruz do Cabo
de Gue d´Agoa de Narba – Estudo e Crónica (edição em
Português/Árabe e distinguido com o prêmio Calouste
Gulbenkian em 2008, atribuído pela Academia Portuguesa de
História), e de diversos artigos publicados em periódicos de
Portugal e do exterior.

José Rivair Macedo

Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da USP (1993), Professor Titular no
Departamento de História da UFRGS e professor do quadro
permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
UFRGS). É coordenador do livro O pensamento africano no século
XX (Outras Expressões, 2016) e autor, entre outros estudos, de
História da África (Ed. Contexto, 2013). É sócio da Academia
Portuguesa da História e da Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros.

288
Sobre os autores

Manuela Mendonça

Presidente da Academia Portuguesa da História, desde 2006.


Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi
Diretora Geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em sua
vasta produção científica, destacam-se as edições de fontes
fundamentais da história portuguesa, como a edição da Chancelarida
de D. João II – Índice e Tratamento de dados (Lisboa, NA/TT,
1944, 2 vols) e do Livro de Montaria de D. João I. Introdução, leitura
e notas (Ericeira, Edições Mar de Letras, 2003), além dos estudos: D.
João II. Um percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade
em Portugal (Lisboa, Editorial Estampa, 1990, 2ª ed. 2005); A Guerra
Luso-Castelhana no Século XV (Lisboa, 2006); As relações externas
de Portugal no final da Idade Média (Lisboa, Colibri, 1994).

Margarida Garcez Ventura

Pesquisadora medievalista da Universidade de Lisboa, é


professora auxiliar, com agregação, da Faculdade de Letras;
Membro do Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa
(desde 1972), especialista em história das mentalidades políticas,
Académica de Número da Academia Portuguesa da História,
Membro Efectivo da Classe de História Marítima da Academia da
Marinha; fundadora da Sociedade Portuguesa de Estudos
Medievais; Académica Correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). Pesquisadora com vasta
produção científica publicada em revistas da especialidade,
destacam-se os livros: A Corte de D. Duarte. Política, cultura e
afectos, Vila do Conde, Verso da História, 2013. (Prémio Fundação
Engº Eugénio de Almeida / Joaquim Veríssimo Serrão, 2014); D.
Leonor de Aragão. A Triste Rainha. 1402 (?) – 1445, (em colab. com
Julieta Araújo), Matosinhos, QuidNovi / Academia Portuguesa da
História, 2011; D. Duarte, o Eloquente, Matosinhos, QuidNovi /
Academia Portuguesa da História, 2009; A Definição das Fronteiras

289
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

(1096-1297), Matosinhos, Academia Portuguesa da História /


QuidNovi, 2006; 1ª ed. 2004; Santo António, Lisboa, Planeta De
Agostini, 2004 (– prémio de Dr. M. P. Laranjo Coelho (2005),
instituído na Academia Portuguesa da História); Estudos sobre o
poder (séculos XIV-XVI), Lisboa, Edições Colibri, 2003; A
Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XIV-XVIII).
Transcrição paleográfica do Fundo Documental e Estudo Introdutório,
Mafra, Câmara Municipal, 2002 – prémio de História Calouste
Gulbenkian – “História Regional e Local” (2001); Igreja e poder no
século XV em Portugal. Dinastia de Avis e Liberdades Eclesiásticas
(1385-1450), Lisboa, Edições Colibri, 1997; O Messias de Lisboa -
Um Estudo de Mitologia Política (1383-1415), Prefácio de Martim de
Albuquerque, Lisboa, Edições Cosmos, 1992.

Maria de Fátima Reis

Doutora em História Moderna pela Universidade de


Lisboa, onde é Professora Associada na Faculdade de Letras,
investigadora do Centro de História, Directora dos cursos de Artes
e Humanidades e de Estudos Gerais e Directora da Cátedra de
Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da mesma Faculdade. É
Secretária-Geral da Academia Portuguesa da História, Académica
Efectiva da Academia de Marinha, Membro Correspondente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Membro do Conselho
Científico do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão e
Delegada da Fundação para a Ciência e a Tecnologia na Aliança
Internacional para a Memória do Holocausto. A investigação tem-
se centrado na história da Assistência, Caridade, Saúde (Hospitais,
Misericórdias, Outras Confrarias e Associações de Beneficência),
na História Religiosa da Época Moderna, na história social das
elites e nas questões de Património e Arquivo. Dos estudos
publicados, destacam-se os livros: D. Estefânia, A Caridosa. 1837-
1850. D. Maria Pia, O Anjo da Caridade. 1847-1911 (Colecção
Rainhas e Infantas de Portugal coordenada por Manuela
Mendonça, Matosinhos, Lisboa, Quidnovi, 2011); D. João V. O

290
Sobre os autores

Magnânimo. 1706-1750 (Colecção Reis de Portugal coordenada por


Manuela Mendonça, Matosinhos, Lisboa, Quidnovi, 2009 [i. é
2010]); Campanhas do Norte de África. Conquista de Marrocos.
1415-1550 (Lisboa, Matosinhos, Quidnovi, 2006); Santarém no
Tempo de D. João V. Administração, Sociedade e Cultura (Prefácio
de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Edições Colibri, 2005); Os
Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710)
(Prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Edições Cosmos,
2001).

Maria Eurydice Barros Ribeiro

Pesquisadora medievalista brasileira, é professora do


Departamento de História e dos Programas de Pós-Graduação em
História e em Arte da UNB, fundadora e coordenadora do
Programa de Estudos Medievais (PEM), membro da Academia
Portuguesa da História; especialista em estudos sobre a tradição
manuscrita medieval portuguesa. É autora do livro Os símbolos do
Poder (Editora UnB, 1994), organizadora do livro A vida na Idade
Média (Editora UnB, 1997) e Arte e Temporalidades (Programa de
Editora da Pós-graduação em arte / UnB, 2007), além de ser autora
de inúmeros artigos, palestras e comunicações.

Maria Helena da Cruz Coelho

Professora e pesquisadora medievalista da Universidade de


Coimbra desde 1971, tendo obtido a nomeação definitiva de
Professora Catedrática de História em 1991. Ao longo destes anos
regeu várias cadeiras e seminários de Licenciatura e Cursos de Pós-
Graduação, Mestrado e Doutoramento no âmbito da História
Medieval, das Ciências Documentais e de Política Cultural
Autárquica, da História da Alimentação, do Património e Cultura.
Tem publicados, entre livros, artigos, prefácios, recensões, notícias,
entradas em Dicionários, mais de trezentos estudos, alguns traduzidos
em russo, espanhol, francês, inglês, italiano e alemão. Recebeu o

291
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Prémio Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian e os prémios


Laranjo Coelho, Costa Veiga, Pedro Cunha Serra (duas vezes),
História. Calouste Gulbenkian. História Regional e Local (duas
vezes), Prémio Fundação António de Almeida. Prof. Doutor Joaquim
Veríssimo Serrão da Academia Portuguesa da História, 3º Marquês de
São Payo, a medalha de mérito, Grau Ouro, da Câmara Municipal de
Arouca. Foi agraciada pelo Presidente da República com a Ordem do
Infante D. Henrique. Grande Oficial em 2011. Dos livros publicados,
destacamos: O Baixo Mondego nos finais da Idade Média. Estudo de
História Rural (2 vols. Lisboa, 1989), Ócio e Negócio (Coimbra, 1998),
Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI (2 vols. Lisboa, 1990); D.
João I (Lisboa, Círculo de leitores, 2005; Lisboa, Temas e Debates,
2008), D. Filipa de Lencastre (Vila do Conde, 2011).

Susani Silveira Lemos França

Doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de


Lisboa (1998) e professora Livre-Docente em História Medieval
na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP). É autora, entre outros estudos sobre viagens medievais
e registros do passado, de Mulheres dos outros. Os viajantes cristãos
nas terras a oriente (séculos XIII-XV) (Editora Unesp, 2015 -
Menção Honrosa - Prémio de História Calouste Gulbenkian,
Academia Portuguesa da História); Peregrinos e Peregrinações na
Idade Média (Vozes, 2017); Os reinos dos cronistas medievais
(Annablume, 2006); e da edição e tradução de Viagens de Jean de
Mandeville (EDUSC, 2007). É organizadora de Questões que
incomodam o historiador (Alameda, 2013) e As cidades no tempo
(Olho d'Água, 2005). A pesquisadora é Acadêmica
Correspondente Brasileira da Academia Portuguesa da História,
pesquisadora principal do grupo Escritos sobre os novos mundos,
sediado na UNESP/Franca, financiado pelo CNPq e pela Fapesp
(Auxílio Projeto Temático). É também uma das coordenadoras do
Grupo Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno.

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