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Do site: http://www.sescsp.org.br/sesc/sites/index_result.cfm?referencia=105
Em: 07/02/06

UMA VIDEOLOGIA DA NOVELA, A DOENÇA DA NAÇÃO


Cine Imaginário - maio/1988

Rogério Sganzerla

Não quero convencer ninguém mas, se me perguntarem porque não há eleições diretas para
Presidência há mais de um quarto de século eu responderei (acreditem se quiser) que há
pouco menos do que isso o imaginário nacional foi ocupado por uma manipulação de natureza
escatológica, muito mais que escapismo ou válvula de escape, é alienação 100%
embrutecedora, chamada novela. Não é arte, diga-se de passagem, aqui não vai nenhum
preconceito contra uma fórmula (não há forma) de dominação mental de 120 milhões de
humilhados pela gratuidade descartável do universo baixo entretenimento; a fórmula deriva do
folhetim, um gênero igualmente periódico, alimentador de sonhos e pesadelos descartáveis,
mas com uma incomparável qualidade artística e estilística que a telenovela, infelizmente, não
tem... Se tivesse alguma qualidade de informação artística ou cultural, com seu quarto de
século de insistência redundante, já teria apresentado. Afora o comportamento (freqüentemente
falso, deformado e classista) a novela nada tem a ver com arte ou cultura. Já o folhetim, seu
antecessor em letra de forma, ao contrário, muito tem a ver com a melhor literatura em certos
casos especiais (Machado de Assis escreveu Helena e Yayá Garcia inicialmente para jornal,
tendo sido tipógrafo; igualmente Lima Barreto publicou folhetins etc., entre nós).
No exterior, o teledrama da televisão nova-iorquina dos anos cinqüenta influenciou todo o
melhor cinema polêmico da época: The left hand, estréia de Arthur Penn na direção, proveio de
um sucesso eletrônico, pontualmente dividido em capítulos que por sua vez determinariam a
fórmula fragmentária de um novo tipo de cinema; Doze homens e uma sentença também
proveio de um texto escrito especialmente para a televisão, revelador de inúmeros talentos
como Paddy Chaiefsky de Despedida de Solteiro, etc.

Claro, lá fora é diferente. Mas, aqui o que surgiu, além de ibope e exploração sentimental de
uma platéia inculta e analfabeta?

De minha parte, lembro bem das vexaminosas correrias em torno de Albertinho Limonta e sua
troupe por ocasião da vidiotização lacrimejante da colônia via O direito de nascer. Foi o início
da "nossa" revolução cubana: a cretinização de um veículo e de uma sociedade em nome da
exploração comercial. Pouco tempo depois surgia também outro vexame histórico: a passeata
das mal-amadas, manipuladas para derrubar um regime democrático, com a desculpa de
conter dois itens em que o regime implantado iria bater todos os recordes de agressão à
opinião pública: a corrupção e a inflação.

A televisão espontânea morreu quando conheceu o video-tape, perdendo o sabor incentivo de


espontânea inquietação - passou a ser "cozinhada" nas mesas de edição. Com o predomínio
da novela, ainda popularesca, virou um prato feito para débeis mentais, devido à pretensão
provinciana de seus detentores. No início da década de setenta, salvavam-se os programas de
humor e os instantes de liberdade de informação, devido a competência de seus
apresentadores. No entanto, as novelas não eram boas, mas pelo menos não eram tão
assépticas, modernosas e medíocres como hoje em dia.

Não há forma mas fórmulas: ti-ti-ti, fuxico, alcoviteiros. E só... jogam conversa fora.

Atualmente, além de só jogar conversa fora não há conflito na novela. O apelo ao "plot" tenta
justificar o ti-ti-ti permanente. Na verdade, os personagens (as vezes delineados por autores
sensíveis e atores talentosos) não lutam ou discutem entre si; freqüentemente falam mal de um
outro personagem fora de cena (geralmente acabou de sair). Ora, falar mal da vida alheia com
desculpa da ausência não sustenta dramaturgia e não há ninguém inteligente que aguente
essa apelação, além do mais um péssimo exemplo para a fragilidade mimética das crianças
(eis também uma das razões da apoplexia, afonia e inexpressiva vacilação de milhões de
débeis mentais, vítimas inconscientes da lavagem cerebral eletrônica, um veículo novo mas
totalmente dominado e falido em sua vocação de educação ou informação progressiva, um
crônico mau exemplo para as novas gerações e aqueles que ainda não nasceram mas já estão
sendo roubados pelo sistema de babilônia). Desse jeito o veículo mais novo tornou-se o mais
velho: uma torneira aberta, inferior ao rádio (que exigia certa concentração)... Não sou contra
as pessoas que fazem a televisão ser tão mesquinha e devagar mas contra os preconceitos
impostos por uma minoria que não soube compreender o veículo. Imitar demais a televisão
americana só poderia dar em cópia subserviente, colonialismo provinciano ou macaquismo de
auditório e, sobretudo, em anacoluto e deformação pleonástica. Quanto ao ganha-pão de
atores e técnicos, tudo bem. Se bem que a deformação aí seja igualmente intolerável,
considerando-se que por ano despejam setecentos enlatados estrangeiros e uma dezena de
nacionais (os piores nacionais, típicos desse modelo de ocupação da moda pelo medo ou vice-
versa, sempre excluindo a inventiva criatividade de nosso cinema do presente ou do passado,
do curta e do longa, do bom e não só do ruim teor transmitindo eletronicamente). Não falemos
dessa área mas poderíamos falar. A deformação formulizadora é a mesma: novela, cinemão,
enlatado, tudo "telefone-branco"... E o que tem a ver isso com o fracasso das diretas ou a
grande ausência de uma verdadeira democracia representativa entre nós?

Tem tudo a ver. Só um burro, ou um vidiota não percebe. Por quê?


A cada dia e noite milhões de brasileiros são ludibriados pela gratuidade ostensiva de cenários
alheios à encenação, em que a desejável ação interior é substituída pela multiplicação de
coadjuvantes que só servem para encher lingüiça ou - suprema descoberta da "modernidade"
mais irritante... - o império pouco criativo e previsível do "merchandising" abusivo. Da arte
moderna, os clichês; dos efeitos cinematográficos, os defeitos televisivos; da liberação de
costumes, a coisificação mercadológica. A fórmula antimágica da novela brasileira só retira e
expropria, confisca o público, oprimido pelo custo de vida, sem pão nem circo (mal servido pelo
cinema, traído pelo futebol, bombardeado pelo rádio) não tem muitas opções senão suportar o
discurso, resistindo à saturação pelo esquecimento de sua criatividade, negada há décadas
nas urnas, câmeras e microfones.

O povo brasileiro, tradicionalmente expontâneo e inventiva, se esquece de sua famosa intuição,


bossa, sexto sentido através do quê? A novela é um dos mais destacados capítulos da história
do desespero alienado de um povo humilhado pela infeliz marcha dos acontecimentos...

Bate-bocas e têtes a tete (reuniões) que só levam à galinhagem pura e simples.

Resultado: a classe média sobrevive sob a síndrome da passarela.

A população não quer ver, nem ouvir com olhos e ouvidos livres, mas tão somente ser vista,
aparecer, fazer fama para deitar na cama do subsucesso fácil, talvez virar sub-super-star de
uma hora para outra, trair sua condição colonial, enganando aos outros e, pior de tudo, a si
mesmo. O brasileiro não quer ver mas ser visto. Nem escolher mas ser escolhido pelo sistema
babilônico...

Macaquear é preciso... Estão aí os videotismos, cacoetes e maneirismos.

Passar a perna, levar vantagem, tirar proveito próprio explicam mais a nação ocupada pela má-
consciência do que o complexo de culpa e a culpa-bilidade colonial de autores (as vezes
competentes, em luta contra o aparelho repressivo no interior da produção/ distribuição do
subproduto pasteurizado, censura igualmente primária).

O videotismo é total. Isso sem falar no provincianismo, redundância, ausência de expressão e


dicção, mediocrização do ser humano, cretinização da opinião pública, desacerto dos cortes
entre uma seqüência e outra, imposição de bandas sonoras importadas de péssima qualidade,
mitificação da mediocridade, abuso de autoridade e desrespeito ao próximo, nível ginasiano da
representação...

Não falaremos dos comerciais porque aí o panorama é ainda mais desolador.

A novela só não é pior que o enlatado, igualmente gratuito e agressivo em suas tomadas
externas. Pelo menos, um atributo: ensinou o público brasileiro a ouvir a ação, devido às
qualidades do som de freqüência modulada que o cinema não apresentou. Afora isso suas
qualidades provêm exclusivamente do cinema. Mas e o nosso maltratado cinema nacional- de
qual o veículo seguiu o exemplo, sem apresentar a espontânea inquietação, sobretudo dos
anos sessenta - onde fica? Se você pensar que um clássico como O Pagador de Promessas
Palma de Ouro em Cannes, premiado em S. Francisco, só foi projetado na televisão brasileira
com uma década e meia de atraso, dá vontade de esquecer o assunto que deveria estar na
pauta da mísera ou não, necessária Constituição feita para salvaguardar direitos e obrigações,
sobretudo nas questões de trabalho e destinação da informação nacional. Ora, tudo isso é
ficção; o máximo que fazem é uma novela sobre o assunto e durma-se com um barulho destes.

E no entanto o cinema brasileiro faz noventa anos em 1988.

Não se esquecem que o velho e bom lrineu Marinho, além de corredor de automóveis, foi
cineasta: o que acontecerá com documentos da vida moderna como Limite, O Canto da
Saudade, O canto do mar, Agulha no palheiro, O grande momento, Absolutamente certo, O rei
do samba, O bandido da luz vermelha, Bla-bla-bla e muitos outros? (existem cópias e o público
está cada vez mais carente de verdadeira informação filmológica).

Que tal viagem ao fim do mundo, magnífico trabalho de 1967 assinado por Fernando Campos?
Deveria estar incluído entre os filmes que precederam e assumiram o movimento de 1968.

O Anjo Nasceu é de 1969 mas representa um tipo de revelação que todos poderiam, pelo
menos, tomar conhecimento e vibrar com sua textura...
Biscoito fino na prateleira é uma raridade generalizada no deserto de idéias chamado mercado.

Da produção à veiculação, talvez a única possibilidade de afirmação da nacionalidade,


permitida pelo atual sistema Babilônico, seja a novela que, assim apesar de feita por pessoal
competente, com autores ágeis e atrizes de expressão não é, nunca será arte. O folhetim
jornalístico aproximava-se do romance e tinha uma vida própria. A novela só copia, dilui,
deforma e dificulta a relação do homem brasileiro com seu consciente e inconsciente. A perda
de tempo é imensa, se contarmos os períodos de tempo em que a idiotia se transforma em
convencionalidade. Ela existe para fazer boi dormir, enganar os otários e desviar a atenção do
assunto principal: acesso ao próprio mercado por parte de outras artes industriais.

Em nenhum país do mundo a televisão é tão centralizadora e renitente em relação ao veículo


cinematográfico.

As televisões oficiais são menos cumpridoras do seu dever e direito de veicular o filme
brasileiro de livre exportação poética.

Enlatado por enlatado, projetem-se as antigas chanchadas, por exemplo, aliás muito mais
moderna do que os pretensos modernosos.
PRESENÇA DO GÊNIO COMO HERÓI CULTO

Rogério Sganzerla

"Nunca há italianos demais no mundo", lembra o erudito pensador, por acaso maior cineasta da
América e por isso exilado, expatriado. vetado Orson Welles. Nada mais criativo, a esta altura
do que não ser criativo, isto é, copiar textos fundamentais como um de seus raro artigos "Para
onde vai o cinema americano?" (e ele refere-se a toda América, antes de se considerar
sobrevivente de uma espécie em extinção, a dos rebeldes da América). Atualmente, trabalha
em programas da tv em função do estado de ganha-pão, algo assim como a nossa grande
Araci de AImeida faz no vídeo; mora em Hollywood com a atriz iugoslava Oja Kodar; está
preparando um filme e - uma boa noticia transmitida por David Neves - (deve estar entre suas
cogitações, após quarenta anos de infortúnio devido a sabotagens empresariais (montar "lt's all
True"): o material saiu da mão da "Paramount" e encontra-se já no "American Film lnstilute" que
por acaso já me ajudou a entrar em contato com seu assistente e colaborador Richard Wilson.
Esperemos que a novela chegue ao fim logo e possa cumprir a promessa feita na partida de
que "voltarei um dia", após concluir os episódios "Carnaval" e "Jangadeiros".
Antes de embarcar afirmou a magnífica impressão que levou do Brasil, "de sua terra e de sua
gente e de que o único artista que eu conheço neste país chama-se Grande Otelo", indagando
a Lourival Fontes, diretor do DIP: "Mas o que há com esse país?". Por falar nisso, Grande Otelo
continua sendo mal aproveitado pelos "diretores" de novelas e "shows" provincianos de uma
rede que paralisa 100 milhões de pessoas para dizer que suas notícias sairão, "via satélite,
após os comerciais" (imagine se somássemos o tempo perdido de todo público sujeito a
baboseiras de um oligopólio que poderia noticiar melhor se não injetasse uma dos maciça de
sono de não sonho ) pré-fabricado para otários de todas idades).

Sendo também sistematícamente boicotado em minhas modestas incursões cinematográficas,


apesar de já ter feito algo pelo nosso cinema, sinto-me tentado a transcrever para provar que o
"dejá vu" é o que se está fazendo, impunemente, nesse nosso continente vagabundo e não o
que não deixam fazer, quase sempre necessário como essa análise assinada por um gigante
da tela do rádio e do teatro (pode-se incluir ballet, romance, televisão, tauromaquia, em suma,
mágica, prestidigitação dos meios de produção que ainda não estão na mão do artista que
melhor conhece direção de ator, lentes, montagem, som, servido por uma excelente bagagem
expressional, isto é, Orson Welles, herdeiro principal de Shakespeare, talvez por isso barrado
em suas invenções... Ele, além disso, é mais lúcido do que Godard, outro gigante da câmara
livre com microfone e tudo, mais humano que Rosselini, mais sarcástico que Losey, mais
fluente do que Hitchcock e mais Político do que Buñuel... Duvidam? Leiam o que diz... em
1970: "Todos nós temos sido submetidos, neste dois séculos, a lavagens cerebrais, ficando
reduzidos a extremo servilismo em face do Gênio como Herói Culto. O Gênio, com inicial
maiúscula, é uma instituição essencialmente romântica, que substituiu o monarca absoluto
como o homem que faz as suas próprias leis. A importância de um artista não depende, porém,
do modo pelo qual ele nos impressiona, mas dos benefícios ou da herança cultural que dele
recebemos, Shakespeare e Mozart nos abriram janelas. Foram libertadores. Mas o Herói Culto
é um invasor. Ele invade a nossa casa e, bêbado com o som dos nossos desmedidos louvores,
deita-lhe fogo."
"0 Gênio quintessencial - com maiúscula - foi esse gorducho ator italiano que queimou uma
infinidade de casas e fez de si mesmo o ditador da Europa, sob o nome de Napoleão. Era
realmente um Gênio. E era realmente um ator. E, embora ele e a França se amassem
apaixonadamente, era de fato um italiano. Nunca há italianos em excesso no mundo. Mas tem
havido excesso (nas artes e em tudo o mais) de Napoleões. Aqueles italianos, dotados de tanto
talento, são grandemente responsáveis pela ereção do diretor de filmes como ídolo
monumental da nossa cultura, ainda que eles se digam antifascjstas. E às vezes parece que
eles próprios gostariam de estar no antigo balcão do Duce, no Palazzo Venezia ou que foi o
próprio Mussolini quem ressurgiu das cinzas de uma câmara cinematográfica. Mussolini, é bom
lembrar, não passou de uma cópia ruim de Bonaparte.
"Tais heróis - e na verdade todos os demais heróis - são olhados de forma dúbia pela geração
de que HÁ de sair em breve os próximos grandes diretores de filmes. No presente momento, o
que prevalece é um sentimento anti-herói, mas é de esperar que com o tempo se vá
atenuando. Existe uma necessidade humana de heróis, uma necessidade bem mais universal,
permanente e urgente do que a necessidade de grama nos jardins públicos. No que toca ao
cinema, a sua idade áurea vai exigir que os heróis fiquem no lugar que lhes compete: diante
das câmaras. Por trás destas, o de que precisamos é de um pouco mais de disciplina e um
pouco menos de "glamour" diretorial. Precisamos é liquidar o mito do diretor cinematográfico
como o Grande Homem do Nosso Tempo no Domínio das Artes.
"O Prestígio desse mito, a ilusão do poder, a gloriosa solidão napoleônica, nada disso tem
coisa alguma a ver com a leitura de filmes. Se nenhuma outra forma de arte é tão válida em
nosso tempo, isso se deve unicamente ao fato de que os filmes continuam a ser populares (o
grifo é dele). Os filmes ainda pertencem ao povo. A autocomplacência, que é o vício de todas
as artes em nossa época, representa uma tentação óbvia a qualquer diretor investido de plena
e total autoridade na leitura do, seu filme. Em vez de regalar o seu próprio ego, ele deve limitar-
se a ser, no melhor sentido, um servidor do ator e não um rival deste. E, acima de todas as
coisas, deve ser leal à história que vai narrar.

"Amar seus próprios filmes mais do que a si mesmo (último parágrafo do texto-show:) Se há
um veio de ouro nesta idade nova, o novo diretor só o encontrará quando amar os filmes mais
do que ama a si mesmo (e sabemos quanto o brasileiro, explorado e raquítico, é vaidoso por
um condicionamento mental do neocolonialismo... sobretudo o cinema sempre velho do Rio).
Há um quarto de século, eu mesmo livre das restrições e pelas do sistema de produção de
Hollywood, consegui fazer um par de filmes (o terceiro lt's all True" permanece inédito... ) O
segundo, "The Magnificent Ambersons"/"Soberba") foi apreendido e dolorosamente mutilado
pela engrenagem do estúdio. O que é surpreendente é que eu tenha permanecido lá tanto
tempo quanto fiquei. Naquela época, os homens que ocupavam os postos executivos nos
estúdios não tinham razão para duvidar de si mesmos e de sua autoridade, inteiramente
sancionada pelo gosto do público. A indústria de filmes estava elaborando um produto de
sucesso para pessoas de idade média, da classe média, nas cidades médias. Como uma velha
nervosa ou histérica, Hollywood subitamente se apavorou com o intenso tráfico das ruas. Ela
necessita de mãos jovens que a guiem. Sua confiança é profundamente comovedora e, ao
mesmo tempo, ligeiramente ridícula. Mas, por trás disso, pode-se entrever um futuro para o
cinema americano".

Felizmente, o cinema é uma arte popular, pertence ao povo, nenhuma outra forma de arte é tão
válida em nosso tempo. Sabíamos disso quando seu texto foi escrito, Produzimos seis longas-
metragens em três meses: da mesma forma fomos boicotados há dez anos e ele há quarenta...
mas também que se trata de uma guerra de linguagem e se entramos na guerra é para ganhar,
claro... Para liquidar o mito do diretor-ditador é preciso antes de tudo revelar o lado
antidemocrático do elitismo, com sua má distribuição de renda para arrebentar os sepulcros
caiados da cultura, numa mesma operação contra o apadrinhamento, o coleguismo e a
mediocridade da "tietagem", do cinema novo à tropicálía, do "pornochic" à pornochanchada, do
culturalismo ao oportunismo (especialmente o disfarçado de esquerda, falso profeta "salvador
da pátria", pois o pior cego é o que não quer ver, tem asas e não deixa os outros voarem ... )
Quer vantagens, e não competição, porque é incompetente não aceita Hendrix-Rosa-Welles,
muito menos Oswald d' Andrade, João Gilberto e a presença - devidamente entronizado - do
Gênio como Herói Culto... Ser ou não ser, "to be or not to be (... ) tupy or not tupy significa ser
Tupy (pela Revolução Caraíba) e não tupiniquim, seus desmiolados...

Folha de S. Paulo, 8/07/1981


Manifesto ao Bandido da Luz Vermelha, outubro de 1968

Rogério Sganzerla

Meu filme é um far-west sobre o terceiro mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros
pois para mim não existe separação gênero. Então fiz um filme-soma, um far-west mas
também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada (não sei exatamente) e ficção
científica. Resumindo, do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência
(Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Senett, Keaton); do western, a simplificação brutal da
narrativa (Hawks), assim como o amor pelos planos gerais e os grandes espaços (Mann).
Poderia falar muito mais sobre a chanchada, que considero uma das nossas mais ricas
tradições culturais, como também do estilo radiofônico do filme; o rádio brasileiro é outra
tradição que não pode ser desconhecida, principalmente quando se tenta mergulhar nas
origens e implicações do subdesenvolvimento.
Não tive nenhum pudor em realizar tal plano inclinado, tal diálogo ou situação cafajeste. Fiz
questão inclusive de filmar como habitualmente não se deve filmar; isto é, utilizando
angulações preciosista e de mau gosto, alterando a altura da câmera, cortando
displicentemente, não enquadrando direitinho, sendo acadêmico quando me interessava.
Nesse filme marginal há citações de Primo Carbonari e das peças dirigidas por José Celso
Martinez ( O Rei da Vela e Roda Viva), além de José Mojica Marins.
Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, malcomportado,
cinematográfico, sangüinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme
mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são
dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil,
colonial e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, aliás como
80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à cretinice do "Boca de Ouro",
passando por Zé do Caixão e pelos atrasados pescadores de Barravento. Assim, o Bandido da
Luz Vermelha é um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, um rebelde
importante, um recalcado infeliz que não consegue canalizar suas energias vitais."

in: FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. RJ, EMBRAFILME/Max Limonad, 1986.


CINEMA NOVO

Eu sou contra o cinema novo porque eu acho que depois dele ter apresentado as melhores
ambições e o que tinha de melhor, de 62 a 65, atualmente ele é um movimento de elite, um
movimento paternalizador, conservador, de direita. Hoje em dia, como eu estou num processo
de vanguarda, eu sou um cineasta de 23 anos, eu estou querendo me ligar às expressões mais
autênticas e mais profundas de uma vanguarda e eu acho que o cinema novo é exatamente a
anti-vanguarda. O cinema novo está fazendo hoje exatamente aquilo que em 62 ele negava. O
cinema novo passou pro outro lado. (...) eu acho que tenho que romper também com esse
condicionamento e partir pra outra jogada sem saber o que seja essa outra jogada mas, de
qualquer maneira, fazendo o que eu acho. Sou um cara em liberdade (...) eu sou uma das
poucas pessoas que estou continuando a me manter livre o que eu acho extremamente difícil
no Brasil de hoje. Eu estou feliz porque estou mantendo minha liberdade. (Sganzerla)

(...) eu concordo com isso que ele falou do cinema novo. Eu estava praticamente intoxicada de
cinema novo então eu não conseguia fazer uma crítica ao cinema novo. Eu estava tão dentro
dele, a minha vida era aquilo e eu não podia ter uma visão crítica. O Rogério me abriu
exatamente isto, eu consegui ver melhor as coisas e talvez, por isso, eu acho, que fiz uma
coisa extremamente bacana, que foi essa interpretação minha em A Mulher de Todos. (Helena
Ignez)

A gente falar do cinema novo eu acho chato. É melhor não falar das pessoas, nem dos
criadores, mas ver os filmes...O Luiz Carlos Barreto começou produzindo o Assalto ao Trem
Pagador que era um filme na época relativamente importante. Depois junto com o Glauber e o
Nelson Pereira dos Santos, ele eclodiu um movimento, explodiu toda uma conceituação sobre
cinema. Mas, agora, o que é que ele está fazendo? Ele está fazendo co-produção como os
filmes franceses, com um cineasta péssimo que eu não sei nem o nome (...) está fazendo filme
com os piores cineastas do Brasil. Os piores filmes de 68 quais são? Brasil Ano 2000, Capitu, A
Vida Provisória, quer dizer os Piores filmes quem foi que fez? O Luiz Carlos Barreto(...) O
trabalho do Joaquim Pedro em Macunaíma é um trabalho falso, um trabalho deturpador, é um
trabalho que não corresponde aos ideais cinematográficos. Não dá pé. Você pode notar pelos
filmes.

SUBDESENVOLVIMENTO E CINEMA
(...)Quando eu faço um filme eu tenho mil problemas de subdesenvolvimento da produção e tal,
então eu escolho o subdesenvolvimento não só como condição, mas, também, como escolha
do filme. Então os filmes são subdesenvolvidos por natureza e por vocação (...) eu faço cinema
inferior, acho perfeito. Acho que obra-prima não existe, não.
(...) eu faço os melhores filmecos do Brasil.

CINEMA E JORNALISMO - ESTÉTICA


(...)Eu uso cinema de uma forma jornalística.
(...) Quando eu vejo um filme da Atlântida eu acho bacana porque eu vejo lá um clima de
perversão estética. Você pode notar que eles pegam filmes americanos de grande sucesso,
filmes assim fascistas como Matar ou Morrer, o próprio Sansão e Dalila e transformam em
aventuras com Oscarito e José Lewgoy. É exatamente nisto que eu estou interessado.

Trechos da entrevista de Rogério Sganzerla e Helena Ignez ao Pasquim, n°33, de 5-11 de


fevereiro de 1970.
JIMI, GÊNIO TOTAL

Rogério Sganzerla

De 1965 a 1970, um gênio reinou sob a Terra - Jimi Hendrix (27/11/45-18/9/70), mais uma vez a
Terra não soube coroar seu rei. E se assim não o foi mais porque por dentro de altas estruturas
astrais (isto é, físicas, e seguindo do principio único a lei de encarnação) ele como rei sabia que
iria partir breve. "He's not gone, is just dead", prediz Hendrix em 1965, numa gravação com
Curtis Knight de uma canção intitulada justamente "Ballad of Jimi", onde fala, com diferença de
um dia, a exata data - mês e ano - de passagem - deste para outro(s) mundo(s) onde segundo
ele estará nos esperando para a próxima revoada de trovões que transformará a face da Terra,
mas até lá ele voltará (I'll return" - repete em "Highway Chile", presciente de sua vida transitória
e abissalmente genial, em péssimo estado como Noel que por sua vez desabafa: "...tenho
passado tão mal/ a minha cama é uma folha de jornal...") Gênios ceifados na flor da idade não
fazem senão rejeitar: "I don't live today/ maybe tomorrow". "Até amanhã, se Deus quiser". "I will
return". Rejeição deste mundo , mente e sociedade do medo, não fazem senão recusar tudo
que deve ser recusado - em nome do novo homem, nova sociedade e de tudo que é de Deus.
Desvendo o véu de lsis: tenho para mim que antes de mais nada é necessário pensar em
Hendrix como uma divindade. Não uma ''divindade do som", se assim posso exprimir, mas
divindade do homem. Total mente gênio total - pois ele próprio é uma divindade que se
alimenta de sua própria aura, um gênio encarnado suntuosamente num negro-índio; gênio da
América e americano por dentro número um.
Hendrix já é século 21 e 23 - além de 20.
Três séculos atravessam e informam com sua maneira típica de tocar com a mão esquerda,
cordas (12 na stringuitar) na posição invertida por exemplo.
Suas letras devem ser ouvidas como um ideograma, com grande elegância e concisão de
forma - referindo-se ao essencial - se fala do poder (e formas subalternas de usar o poder -
dinheiro medo moeda repressão chicletes e metralhadora, por ai afora): "Sweet talks in vain".
Já a música é uma explosão de luz (e cor; como a língua-raiz sânscrito e o tupi - or not to be),
onde o som representa um valor tonal e é escrito sob uma pauta musical novamente Hendrix
reina sob nossa mente. Não divaga sobre anedota ou deslumbramento menor: ele diz o
essencial, isto é, o supérfluo: vinho, o uno, poder, tudo é possível. Fala sobre "quetzal", o poder
de transformar tudo e a mente à medida positiva de desmedido negar. Sobretudo diz tudo
sobre tudo com pouco ou quase nada: três homens - guitarra, baixo, bateria - soam como
multidão em músicas escritas, cantadas e freqüentemente mixadas por ele em seu estúdio
"Electric Ladyland". Mal admitido, claro, pelos que tolhem o pensamento com medo, quem ne-
cessita de tal artigo (seu empresário fez questão de "apagá-lo" e só relançá-lo em sucessivas
gravações dispersas, voluntariamente mal escolhida entre as duas mil horas gravadas em
dezesseis canais ... ).
Tocando "Red House" ou "Voodoo Chile" simplesmente varre do planeta toda perda de tempo,
levando-nos até altura inalcançada por qualquer outro ingênuo terrestre. Para todos e para
ninguém: mente livre, homem superior, relação com divindade - eis o abc hendrixiano onde
como em qualquer revolução tudo começa e termina na mente livre (sem esforço partido medo
ou classe).
Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu, em Seattle filho de índia e negro. Gostava de passar
as férias em companhia da mãe alcoólatra (perdeu-a aos dez anos) em tendas de
antepassados "cherokees" na reserva de Vancouver, Canadá. Segundo o pai, um jardineiro
austero "Jimmi era um verdadeiro sagitário, obcecado com a justiça, com a idéia de fazer as
coisas certo. Uma personalidade muito forte, difícil de curvar e individualista. Vivia interessado
em coisas não comuns nos garotos; uma delas era a música. Em sua casa não faltavam discos
de Robert Johnson Muddy Water e B.B. King; todo domingo os amigos paternos após o serviço
religioso iam tocar "blue" e beber cerveja. Aos quatro anos irrompeu sala adentro soprando
uma gaita "como um maluco mas dentro do ritmo", aos sete recebeu de uma tia um violino ("e
eu cheguei a tocar mesmo, sempre curti os instrumentos de corda, foi aí que descobri que era
canhoto para tocar também.
Eu só dedilhava a vassoura com a mão esquerda! - tocava-a com a mão esquerda"). Ganhou
um violão e depois uma guitarra usada ( "ele ouvia um disco uma vez, e minutos depois, já
tocava igualzinho"). Alistou-se no Exército como pára-quedista. Desmobilizado vinte e seis
saltos depois, com fraturas na costela e tornozelo - rolou dez anos pelas estradas no circuito de
música negra americana, aprendendo ou ensinando (tocou com Litle Richard, B.B. King, Sam
Cooke, Salomon Burke e o grudo de "twist" Joey Dee e the Starlinghts" e o "Isley Brothers" até
chegar só e desconhecido em Nova York em 1965.
Mudou nome para Jimmy James com um grupo próprio o "Blue Flames" - fracasso completo -
teve que empenhar e vender guitarra para continuar num hotel miserável no Greenwich Village.
Aceitou gravar com Curtis Knight e salvou sua situação financeira. "Eu acho que nunca cheguei
a conhecer Jimi", declara Curtis Knight. "Acho que nunca ninguém o conheceu. Ele não se deu
a conhecer a ninguém. Era fechado, se guardava como quem guarda um segredo. Mas nós
nesses tempos em Nova York, conversávamos muito".
Jimi estava sempre intrigado, preocupado com coisas como a origem da vida, o problema da
morte. Nunca curtiu uma de orgulho racial ou preconceito. Estava mais preocupado com a
noção de humanidade e conceito de fraternidade". Lia muito, nunca soube o quê. Não
conseguia acompanhar suas conversas. Certa vez me disse acreditar que os seres humanos
devem passar por várias encarnações em nove diferentes planetas cada um mais evoluído que
o outro até chegar à eternidade, à perfeição (Nirvana? em sânscrito significa extinção). Ele
dizia também que esse mundo em que vivemos é apenas uma imagem distorcida de um outro
mundo, espiritual e perfeito".
Em 1969, apara o cabelo, reduz a quantidade de anéis e colares. Como a palavra, o rei: "Isso
Já foi Importante para mim. agora não é mais.
O que é Importante? Minha música e minha mente é o que conta. Quanto a elas, me sinto
ilimitado. Tentei sempre fazer minha música honestamente e se as pessoas não me entendem,
é porque não ouviram direito. Até "EIectric Ladyland" eu queria basicamente pintar paisagens
do céu e da terra com a guitarra para as pessoas se soltarem dentro delas. Sofri muitas
mudanças, descobri muitas coisas que ainda não contei. Gostaria agora de pintar a realidade
de uma forma simbólica capaz de levar as pessoas a pensar.
Eu sou tantas raças.. como poderia tocar uma música... como poderia trair uma dessas raças,
se eu sou todas elas ao mesmo tempo? Tenho pensado multo sobre o futuro , sobre essa era
em declínio. Mas não quero acabar, quero continuar, vá para onde for o futuro.
Talvez escrevendo mais para os outros, fazendo arranjos. Talvez com uma orquestra ... não
uma dúzia de harpas e violinos mas uma banda de verdade para que eu possa reger músicos
competentes... e talvez algo visual como filme ou slides que alarguem aquilo que a música quer
dizer. Assim tudo poderia ser novo, excitante. Acho que é isso que virá. Música é tão importante
agora. Política já teve sua importância e é a música e as artes que vão mudar o mundo.
Aprecio Straus e Wagner - eles são muito bons. Acho que servirão de base dessa minha nova
música.
Mas acima de tudo, quero "blues" e um pouco de western tudo misturado. Estamos tentando
fazer um terceiro mundo acontecer mas ainda há tanta coisa para aprender, tanta coisa nova
para fazer. Como o mundo, a música está ficando pesada demais... quando, como o mundo, a
música fica assim pesada eu simplesmente quero me chamar hélio, o gás mais leve que o
homem conhece".
Foi sua última entrevista. Como uma fera do astral parece ter vindo ao mundo para sacudir-nos
de nosso terrestre e passageiro sono - grandeza, consciência e humildade - saber-se bom é
para o bom demais um limite, ou uma tentação - como ele prematuramente falecido ou
desfalecido.
Não existe maldição mas há sortilégios, sinas e sinais.

Folha de S. Paulo, 11/08/1980


VIVA A BELEZA

Rogério Sganzerla

Quem foi Stanley Kubrick, o cineasta do confronto e da virulência estilística? Sabemos que se
trata de um dos maiores arquitetos da imagem e som, um monstro sagrado e uma legenda em
seu próprio tempo, um criador essencialmente rebelde, de produção bissexta e extremamente
excêntrico no set. Juntamente com Bergman e Godard, constitui o vértice da pirâmide quinta-
essencial dessa arte das evidências, para quem metade do mundo é real. A outra é feita de
sonhos... A própria história da descoberta do Novo Mundo diz que é preciso (saber) ouvir as
lições dos antepassados e, sobretudo, de nossos pajés indígenas, para quem metade do
mundo é real. A outra metade é feita de abstrações, ilusões e perseguições da indústria da
chatice contra o artista independente. Eis aí o sentido e a permanência de seu desafio às
convenções industriais, o que gerava pânico. De qualquer forma, bem-aventurados os caolhos,
porque só vêem a metade da realidade. E pior cego é o que se recusa a ver e ouvir a melodia
do pensamento unificado pela câmera de Kubrick, um objeto que nas suas mãos ganha uma
maleabilidade impressionante. Mais do que Godard, foi SK quem inventou o binômio câmara
leve e ator-personagem, integrados pelo poder da imagem e pela sugestão do instante
presente, criando toda uma dramaturgia inimitável. Dramaturgia que se pôde ver em clássicos
revolucionários como "A Morte Passou por Perto", "O Grande Golpe" (pedra angular do cinema
moderno), "Lolita", "Glória Feita de Sangue" (até hoje proibido na França por retratar um
episódio da Primeira Guerra e provavelmente o maior filme de guerra jamais feito), "Dr.
Fantástico", "O Iluminado" _toda uma constelação de estrelas-gigantes em permanente
expansão. Também em "Spartacus" o autor não pedia licença para quebrar inúmeras regras e
convenções acadêmicas em Hollywood. Para Kubrick, a beleza era uma eterna batalha, claro
(e bem clara). Quantos artistas quinta-essenciais deverão assim passar para que se digam
todas as verdades sobre a sua época, que ele soube tão bem discutir com insolência? Esse
homem livre, um autodidata egresso da fotografia jornalística (ainda nos anos 40 trabalhou na
revista "Look", onde David Zingg também iria se revelar), travou uma batalha quixotesca contra
a indústria da chatice. Não cansava de desafiar convenções, o que gerava pânico. E desse
conflito nascem todas as suas tragédias. Embarca Kubrick num sonho sem volta? Trocando em
miúdo, entre o sono e o sonho, embora exilado em seu mercado natural, sempre foi um mito.
Não se viu ainda o perfil vivo e completo do gênio que preencheu o espaço livre entre o céu e a
terra do dólar.

Folha de S. Paulo, 10/03/1999


O MITO EM ESTADO PURO

Rogério Sganzerla
Um dos mais enigmáticos e desconcertantes filmes não só deste exímio diretor como da
própria história do cinema de arte _e tão pouco conhecido devido à exiguidade dos catálogos
em vídeos_ chama-se ''Viver a Vida'' (''Vivre Sa Vie'', 1963) e marcou a presença insólita da
fase fenomenológica do cinema segundo Godard. É uma obra-prima do conhecimento
ontológico, uma rara abstração do mais puro cinema, pois põe o mito ao alcance da total
visibilidade ocular.
Nada de conceitos e preconceitos _apenas seres e objetos situados ao nível do olho e da
câmera à altura da sensibilidade humana, vale dizer, à altura de sua própria desenvoltura. Uma
insolência atrás de outra. O que é o cinema? Misteriosa verdade a 24 quadros por segundo. Os
amorosos amam, os assassinos matam, os ladrões roubam...
O que é uma mulher? Ele já tinha respondido no musical ''Uma Mulher É uma Mulher'', em som
direto e cinemascope.
O que é a vida? Um prato é um prato, os homens são os homens e a vida... é a vida.
Parodiando Gertrude Stein (''uma rosa é uma rosa é uma rosa''), Jean-Luc Godard aboliu toda
interpretação sociológica, psicológica e moral diante do clichê da mulher que cai na vida para
se defender, não beija seus fregueses na boca e no final é sacrificada por alguns desafetos
parisienses.
A cortina da tela é rasgada para mostrar o mito em estado puro. Conhecendo profundamente a
alma e o corpo de uma mulher, Godard evita os preconceitos sociológicos, as edificantes
facilidades moralistas ou mesmo os lugares comuns da psicologia tradicional. Como analisar o
comportamento de uma mulher que abriu todas suas portas, rendendo-se à coisificação da
mais velha profissão, mas sem perder jamais sua ternura? Apenas o que interessa: a vida
própria e sem especulações, pretextos e outras intelectualizações de seus atores-personagens:
vultos, cartazes, automóveis, Anna Karina (então mulher do diretor), a cidade de Paris e o
próprio espetáculo cinematográfico.
A fotografia em branco e preto de Raoul Coutard é esplendorosa, e a espantosa autonomia de
câmera, circulando livremente em bares e bistrôs com um novo estilo de captação da realidade,
é capaz de deixar qualquer cinéfilo babando. Como sempre, a montagem revela o que há de
mais secreto na construção acumulativa de um filme dividido em 12 quadros, nivelando por
baixo a paixão de Joana d'Arc e a tragédia de uma prostituta na cidade-luz. Ver para crer.
Quem não conhece esse filme não sabe o que é cinema. E muito menos o que é o instigante
cinema de Godard, um dos raros deuses da mise-en-scène, ainda em atividade.

Folha de S. Paulo, 27/07/1997


GO(O)D-ART Y MANHA

Rogério Sganzerla

O caso Go-dart é curioso: arte ou artimanha? Go(on)od-art faz com o cinema moderno o que
James Joyce realizou com o romance... Tudo é verdade: verdadeiramente, o "cinema é a
verdade a vinte e quatro quadros por segundo", conforme a definição de Godard em 1960.
Ainda hoje, com o premiado "Prenom Carmem" - Leão de Ouro do Festival de Veneza, 1983 -
ele nos ensina superbamente assim como qui peut (Ia vie) "Salve-se quem pouder" - que viver
a vida livre, isto é ver e ouvir com olhos e ouvidos livres - é uma aposta muito arriscada, coisa
muito difícil senão perigosa, um processo aleatório ou um jogo fortuito de ação/decisão com
vista à síntese decisivamente sintética, simultaneidade, profundidade de campo.
Godard surpreende sempre: quando pensam que parou, dedica-se à produção contínua de
videocassetes extremamente experimentais, mais de trezentos. Ao invés de ficar na moda,
atirou-se à militância política, defendendo oprimidos com sua câmera sempre criativa, jamais
medíocre. Com "Salve-se quem pouder" que a distribuidora Gaumont ainda não lançou
devidamente no mercado brasileiro, surpreende a nova geração por acharem seu filme "linear
demais"; o que para Godard é um elogio, constitui uma ofensa para a maioria dos cineastas (ou
cine-asnos) responsáveis pelo atual estado de coisas ex-nossas e ao baixo nível de áudio-
visual mediocrizador... Da década de setenta em diante, insistem na mediocridade quase
generalizada - salvo Godard - realizando sempre algo além de suas insólitas obsessões
adolescentes pelo amor/humor/revolta, distanciamente exemplar de nada sem-sentido ou forma
monista de retratar a realidade como ela é e atualmente se apresenta ao olho/ ouvido livres; da
relação interna de seus atores/personagens fechados, às vezes secretos, misteriosos,
contraditórios, intransponíveis diante de uma câmera cínica por vocação e natureza. O
tratamento epidérmico dos seres/objetos é sensivelmente insinuante; devido a presença física
clã câmera, com suas distâncias e durações relativistas, o cinema de Godard situa-se como
testemunha ocular da história... Coppola, Fassbinder, Herzog não dão no couro: o resto é
paisagem.
Não há originalidade "recherché" com o autor de "A preguiça", um dos episódios mais simples
de "Os sete pecados capitais", de 1961. O que se aprende com o passado pode-se transmitir
ao futuro, trabalhando no presente... O real pode se transformar em irreal e vice-versa, através
de um "continuum-temporal" mágico ou espaço/tempo da quarta dimensão em direção à última
dimensão. Seja através do amor, próprio ou não, revolta/revolução (vasos comunicantes) do
"id" individual ao inconsciente coletivo, do pessoal e intransferível à sociedade-anônima, cuja
verdade só pode ser desvendada pelo cinema (a TV não alcança os joelhos de uma sociedade,
quanto mais o sexo de uma cidade aberta ou às vezes fechada).
Corno balanço de um ano de desespectativa justificada em torno da criação filmológica, devido
à indevida circulação cultural, exploração audiovisual num mercado decadente porque não
reciclado às novas exigências mercadológicas, à necessidade do espectador exigente e à
liberdade do leitor atento. Em todo caso, do interlocutor interessado (pelo cinema espontâneo):
só assim: escre-vendo criptograficamente pode-se entender alguma coisa do anedotário sócio-
cultural de um cinema quase sempre alijado, marginalizado, separado do público por enquanto
por uma insistente dissociação no espaço/ tempo, indo do talento do realizador ao disponível
(inferior às suas determinações e possibilidades), notáveis sobretudo num país sem a menor
memória ativa para o bem cultural de livre-exportação-poética e da necessária compreensão de
sua importância fundamental que só pode ser associado à (livre) criatividade, ao exercício
criativo do ofício, ao empenho histórico e à reflexão inventiva de novas formas para novos
conteúdos. Sem fórmulas gastas. Espontânea, Inquieta e planificadamente.
A Construção do novo homem e de uma realidade humana e social condizente com a
dignidade e alteridade de uma nova humanidade, deve ser a meta de quem tem algo na
cabeça e sabe como dizê-lo com a câmara e o microfone. Nada disso se consegue na
programação oficial, bem entendido.
Lá na cidade-luz, onde o cinematógrafo foi inventado pelos irmãos Lumière sobretudo por Louis
(cinema significa pelo menos para mim - luz em movimento contínuo) desde adolescente
Godard observou que viver/filmar é bastante perigoso mas que é preciso viver/filmar
perigosamente, apostando tudo na narração linear de um "Salve-se quem pouder (a vida)",
provando uma vez mais que o cinema moderno é simplesmente uma questão de respiração ou
batida do coração generoso em suas distâncias e durações criativas entre ator e autor,
personagem e cenário, plano-seqüência e montagem por atração...
Necessidade da ilusão no cinema, arte das aparências ilusórias. Cinema, em última análise,
nada mais é do que o ponto de vista do fotograma sobre o mundo - e não do mundo sob a
emulsão sensível - verdadeiramente é uma "verdade vinte e quatro vezes por segundo", ainda
segundo Jean-Luc Godard...
A SOLUÇÃO É PLURALISTA

Rogério Sganzerla

O cinema é a arte das evidencias e a evidência comprova que a melhor saída para o atual
impasse é abrir democraticamente o leque da produção à distribuição, isto é, desburocratizar,
descentralizar e agilizar um complexo ocupado pelo concorrente estrangeiro, devido à sua
incapacidade de absorver a maioria das realizações (geralmente as melhores não chegam a
entrar em circuito ou mercado paralelo).
A experiência comprova, em qualquer cinematografia que a diversidade da produção, a
multiplicidade de projetos e a pluralidade de pensamento - enfim o pluri-partidarismo cultural -
constituem o desaguadouro natural de qualquer arte-industrial importante mesmo em um país
de analfabetizantes. Sabemos que é preciso validar o maior número possível de filmes, para
emancipar o veículo, liberar a câmara e emancipar o mercado, através de certo equilíbrio na
distribuição de recursos e efetivar a sua vinculação comercial para depois pensar em formar
um público e firmar uma cultura cinematográfica, já que o grande público prestigia o produto
nacional mas dificilmente encontra uma programação conseqüente.
O recente Festival do Rio assim como o encontro de independentes do Rio e S. Paulo nos
debates acalorados repetidos na cabine da própria autarquia encarregada de aprimorar e
desenvolver o processo-cinema no Brasil, serviu para esclarecer algumas questões vitais
(referentes à sobrevivência de uma profissão instável como o próprio País) assim como a
esquentar ainda mais a temperatura informacional na questão filmológica em um País de
contrastes cada vez mais crescentes, sem a necessária planificação... A listagem de angústias
individuais e problemas coletivos continuam os mesmos do início do século, agravados pela
recessão, monopólio, sonegação... É preciso estômago, humor, cabeça-fria...
Com palavras diversas, os realizadores independentes diziam basicamente a mesma coisa: é
preciso garantir espaço a todos - eis a verdade do cinema brasileiro - todos têm direito a filmar
e exibir o seu produto cultural ou não - é necessário respeitar o trabalho de todos profissionais -
há lugar para todos, repito, desde o grande orçamento milionário ao filme de custo médio e ao
experimental (de Barreto a Bressane, passando pelo pornô), sim, podemos aceitar a imposição
do modelo concentracionário do "telefone-branco" entre nós, desde que exista garantia de
trabalho ao independente para não perder de vista as vantagens inovadoras da câmara ágil e
do produto independente, livre, espontâneo, portátil - sem deixar de ser inteligente... O que, na
verdade, quase nunca tem sido admitido, estimulado, desenvolvido... Para exercitar a
imaginação com filmes realmente modernos - à altura do momento histórico - e atender à
solicitação crescente de um público cada vez mais interessado em obra de arte funcional, útil,
criativa (vide o caso "Jango", recorde de bilheteria) a Embrafilme tem que modificar a sua
política culturalista...
O que é necessário? Valorizar o independente, o experimental/regional com cor local e cheiro
de terra ("do samba, prontidão às outras bossas' - na fórmula roseana insistentemente
lembrada por Alex Viany em sua antológica "Introdução ao Cinema Brasileiro", INC, 1959)...
Valeu a reunião? Só o tempo dirá a respeito... Por enquanto, constatou-se que é mais que
oportuno - urgente - modificar as metas das prioridades da colônia cinematográfica - antes que
seja tarde demais e o aparato da exploração, já esclerosada, venha a desabar sobre quem se
preocupa com a consciência cinematográfica no Brasil...
Enquanto inúmeros realizadores de rotina desfilavam o seu tradicional rosário de lamentações
brasílicas, outros se acusavam mutuamente, quase sem imaginação, sob o pretex-to de que já
sabiam das coisas (mas não desconfiaram do óbvio: de que é fundamental valorizar o talento,
saber valorizar os projetos e investir firme nas cabeças bem pensantes do nosso cinema, que
já deram prova de real valor mas, infelizmente, não são suficientemente aceitas ou consumidas
pelas engrenagens da manipulação autoritária, para quem a quali-dade de um projeto nada
significa), impossibilitando nosso filme de fôlego e respiração controlados... Assim, sim, nosso
trabalho estimulará a imaginação do público exigente - se as fitas deixarem de ser arte ou
comércio, separados (muitas vezes, nem uma coisa, nem outra, muito pelo contrário ...).

Folha de S. Paulo, 1984


CINEMA, ARTE DO COLETIVO HUMANO

Rogério Sganzerla

"Nosso mundo é Faustiano", observa com ênfase maiúscula e garrafal bem empregada como
sempre por Orson Welles: "Todos personagens que interpreto são formas variadas de Fausto
embora eu seja contra todos os Faustos, confessou a André Bazin no "Cahier du Cinéma",
porque julgo impossível um homem ser grande a não ser que admita existir algo maior que ele -
talvez a Lei, talvez Deus, Arte ou não importa qual crença ou concepção - necessário existir
algo maior que o homem. Interpretei toda uma classe de egotistas e eu detesto o egotismo,
tanto da Renascença como de Fausto, detesto todo e qualquer egotismo."

"Evidentemente um ator apaixona-se pelo papel que representa pois ele é como um amante
que abraça uma mulher ou alguém de outro sexo, Fausto para mim é como um outro sexo.
Acredito que existem dois tipos de gente no mundo e uma delas é Fausto. Pertenço ao outro
tipo mas, interpretando Fausto, quero ser justo e leal para com ele, lhe dar o melhor de mim
mesmo e os melhores argumentos que possa encontrar pois nós vivemos em um mundo que
foi feito por Fausto. Nosso mundo é faustiano."
O maior diretor de cinema do mundo continua. "Existem atores que fazem não importa qual
personagem; quanto a mim sou aquele que faz o Rei (Como se sabe na Idade Média todos os
autos prescindiam de um ator especialmente dotado pelo seu físico generoso talvez para
Interpretar sua Majestade, representante de Deus na terra (com t minúscula, mesmo).
"Não os condeno necessariamente na tela, somente eu os condeno na vida. Em outros termos,
é muito importante fazer essa distinção, eu os condeno no sentido que eles são contra o que
eu sou mas não os condeno em meu coração, somente em meu espírito. Trata-se de uma
condenação cerebral, de uma operação mental e isso se complica pelo fato que interpreto os
meus condenados. Agora, direis que um ator não interpreta nada senão seu próprio papel...
quando se interpreta, começa-se por eliminar o que não é ele mesmo mas nunca se põe em
algo que não existe. Nenhum ator pode interpretar outra coisa senão ele próprio. Assim, bem
entendido, em todos meus personagens entra muito Orson Welles. Não há nada a fazer: é ele
quem os faz, não somente fisicamente, mas o próprio Orson Welles. Nada posso fazer; assim,
deixo de lado uma parte de minhas convicções políticas e morais, ponho um nariz falso, faço
tudo isso mas sempre permanece Orson Welles. Nada a fazer contra isso. Acreditando multo
nas qualidades cavalheirescas, quando faço o papel de alguém que detesto... tento ser
cavalheiresco em minha Interpretação."
"Para mim a generosidade é a virtude essencial. Detesto qualquer opinião que priva a
humanidade do menor de seus privilégios: se uma crença qualquer exige renúncia a qualquer
coisa de humano, eu a abomino. Sou enfim contra qualquer coisa que queira diminuir uma nota
da escala humana: deve-se a todo momento poder vibrar todos acordes ..." É uma posição
difícil, anota Bazin: "Detestais pessoas que agem em nome de." "Não detesto pessoas que
agem em nome da religião, de política... elas eu não as detesto, detesto que ajam assim..."
Volta à carga André Bazin, considerado pelos "experts" como o maior crítico de cinema de
todos os tempos, caso essa profissão existisse, adianto eu que sei que os bons e verdadeiros
"cobras" sobre o assunto não publicam nas revistas livros e jornais e a maioria está desativada
apesar da excelência do texto.

Folha de S. Paulo, 18/01/1982


CINEMÃO OFICIOSO

Artigo de Rogério Sganzerla especial para CINEMIN

Antes tarde do que nunca, nota-se que a chamada "democratização dos meios de produção" é
uma história, uma ficção ou fricção malcontada pelos manipuladores da opinião pública e
privada. Meia dúzia de eleitos pelo sistema babilônico impõem suas molduras sem quadro,
marginalizando os quadros sem moldura.

O aparelho estatal nas mãos de uma casta ou camarilha serve para comprometer a
credibilidade do próprio veículo, ameaçado pela politicagem.

Presenciei, desde a adolescência, inúmeras reuniões e debates abertos sobre uma improvável
conquista da reserva de mercado na tela grande e telinha para o nosso Cinema. Mais tarde,
soube que a participação democrática do conjunto de interessados em le-vantar o barco
cinematográfico era um eufemismo em ação.

Exatamente o mesmo processo se repete nos planos artístico e cultural: entre o extraordinário
e o ordinário, os donos da verdade sempre se comprometem com o último...

Observa-se uma crise de credibilidade ética, além da imaginação poética (pertencente ao povo
brasileiro, negada em fitas atrasadas, retrógradas, quando não capengas e reacionárias). Não
é o que dizem os seus "responsáveis", que se proclamam salvadores da pátria, batendo na
velha tecla da falta de apoio ao setor cultural (cujas minguadas verbas são canalizadas para
exploradores da paciência e da boa vontade de muitos).

Assim, o brasileiro tem grande amor pelo Cinema... mas o Cinema não tem nenhum amor pelo
brasileiro ...
Do jeito que aí estão as coisas "nossas" ...
Por acaso, isso aí é Cinema?
Todos sabem que um povo viverá feliz se tiver, além de um pouco de esperança, o necessário
pão e circo... Ambos são negados ao brasileiro há muito tempo. . As boIas-fora, cometidas por
alguns débeis mentais saídos da porta dos fundos de algum hospício oficioso, confirmam o
panorama de desolação e desrespeito às liberdades de expressão.
Alguém já disse que a pior coisa é oferecer projeto a tipos que não acreditam, desconfiando do
que deveriam acreditar e vice-versa... Meu pai dizia que é melhor ser prejudicado por alguns
(parasitas, tecnocratas, cobras e lagartos) do que prejudicar conscientemente o próximo. O
pessoal do beco que o diga ... O exercício de uma profissão ameaçada pela mediocridade
autocomplacente é um direito constitucional que vem sendo violado diariamente pelos cães
carreiristas e outros bichos do mesmo canil...
Enfim, a burrice totalitária não é privilégio de ninguém, muito menos desses falsos brasileiros,
ladrões de todo tipo de energia e dedicação cultural.
Abuso de autoridade, descontrole, desperdício e outras imposições se sucedem como uma
rotina infindável, típica de sistemas políticos mesquinhos e desumanos ...
A nação cinematográfica é uma ficção malpensada e pior ainda praticada pelos do-nos da
verdade exclusiva, oficializando o des-respeito e o atentado às liberdades de expressão,
negadas pelos animais ditatoriais e outros fantasmas que assombram a vida nacional há várias
décadas...
Não falaremos sobre a crise de imaginação e a pretensão de alguns abusos finan-ciados pelo
aparelho estatal, em um autêntico mercado-negro de idéias, típico Saara da inteligência...
O circo de horrores impronunciáveis se expande até proporções alarmantes, denunciando a
desinformação e a falta de qualquer critério de uma desprogramação oficiosa, sem nada a
demonstrar a não ser seus compromissos rastejantes, convidando insistentemente a todos se
comportarem como vidiotas.
Por isso, inexiste planificação ou mesmo um modelo de filme nacional com orçamen-to médio,
proporcionalmente interessante ou inteligente em meio à dosagem comercial: o que falta é
estrutura de direção e não de pro-dução e outras mentiras muito malcontadas pelos
manipuladores. A área cultural se de-sorganizou à beira do abismo...
O critério é a falta de critério. A década vai chegando ao fim e as distorções aumentando...
Estética? De quê? Ética em relação ao erário? "Farinha é pouca, meu pirão primeiro" - assim
pensam e fazem os truculentos aborígenes da tribo cinematográfica nacional. Enfim, para
aqueles, "tudo é Brasil"...
Uma vergonha... No entanto, o Cinema é a arte das evidências... e as fitas são feitas para
serem esquecidas. Atingida a depaupe-ração do veículo, resta um único consolo Rolland
Barthes já disse: "Chegamos a um ponto da modernidade (artística e literária), onde é muito
difícil aceitar-se ingenuamente a imposição de uma 'obra de ficção'... De agora em diante, trata-
se de obras de linguagem." No Brasil, ignoram o óbvio, insistindo em obra de fricção sem fogo
e sem fôlego...
Não passam de pernetas querendo andar de patins. Sua vaidade e a pose marcada pela
sisudez pretensiosa comprometem irremediavelmente o over-acting do lote de mediocridade
imposto pela antiga gestão kafkiana, típica de novos-ricos deslumbrados, depauperação mental
de um modelo de asnocracia inconseqüente, atraso em todo sentido...
Enquanto as melhores intenções de veteranos sem profissão e estreantes apavorados pela
manipulação restritiva impõem o retorno da cinematografia a seu estado predatório, sem o
apoio, muletas ou pretextos inventados pelos tecnocratas.
(Vale a pena refletir sobre um Cinema que já foi grande): Há três séculos o Pe. Vieira já dizia:
"No juízo de Deus, as nossas obras nos defendem ...
Não há, no mundo, maior débito que ser melhor...
Para um grande débito, muitas vezes se acha a piedade ...
Para um grande merecimento, jamais..."
ESTÉTICA ECONÔMICA

Rogério Sganzerla

Não se esqueçam que cinema é arte e indústria, e se a arte sossobrou no vácuo porno-chique-
chanchada, garantiremos a indústria para, em seguida, colocá-la nos seus devidos termos.
Fique claro o seguinte: ataquem, se puder, funcionários, e não a empresa oficial de hipotético
apoio democrático ao cinema brasileiro, tão carente desde que seus representantes mais
criativos foram cassados, expulsos ou exilados das telas e circuitos de exibição, do boicote à
inteligência exercido durante certo período de obscurantismo totalitário.
Nesse momento o Presidente, com sua fibra de soldado, deveria providenciar o número de dias
de exibição obrigatória de nossos filmes, garantir para nós o nosso próprio mercado, assegurar
trânsito de nossa câmara na televisão nem que seja pela madrugada, enfim estabelecer um
pacto ou acordo tático com a classe, convocando-se e representando-se criativamente os
jovens. Defenda-se, modifique-se, transforme-se a Embrafilme num real instrumento de
conquista de nosso mercado, mente e nacionalidade, a partir de um consenso: fechada
questão de defesa da autarquia, necessário esclarecimento público do fato econômico e
cultural.
De nada adianta o esforço em pedir desculpas ao Presidente por suas impudicícias de
produtores candidatos a diretores e atrizes formosas, se a penúria cultural ou sujeira mental de
nosso (?) cinema afastado de seu verdadeiro público - o jovem - consegue raspar os fundos de
cofres de autarquia (erário público financia pornografia?) e só quer saber de coisa velha ou, no
mínimo, daquilo que todo mundo - principalmente o público cansado de um só e mesmo tipo de
filme... - já sabe?
Estética econômica: a má qualidade quase generalizada de curtas e longa metragens nacionais
serve aos concorrentes que dispõem do público contra o produto nacional através de ação de
lixo exclusivo, como se a opinião pública pudesse ser considerada propriedade de alguns
proprietários de salas e salões imundos em todo sentido. Não querem saber de oferecer ao
público a devida adequação de talento. Para tanto seria preciso acabar com os blefes culturais
de algumas conquistas econômicas.
Corrigindo-nos, e a nossos filmes, reconquistamos a opinião pública que mais do que ninguém
sabe que os filmes são ruins mesmo em época de vaca gorda e mesmo assim prestigia-os. O
vôo cego da mediocridade cerceia o. trabalho de reconstrução cultural. Não o confundamos
com moda. O deslumbramento continua sendo a causa principal do rebaixamento, atraso,
marcha a ré ou vôo rasante da cultura brasileira, escamoteando, hoje como há dez anos, a
questão vital da forma-conteúdo revolucionário (novas formas para novos conteúdos) em nome
de uma falsa moral como a que ostenta os exibidores. Quem enfraqueceu o nível do cinema
brasileiro foram os que não me deixaram falar certas verdades desde que empunhei a câmara,
mas nem por isso deixo de dar todo apoio, como deve ser obrigatório para quem pensa e vive
em nosso mercado, aos administradores que - é notório - acertaram mais do que erraram
(quanto aos meus filmes, foram sistematicamente boicotados, e Isso já é uma .outra história,
senhor Presidente, e só desagrada os inimigos do cinema brasileiro porque serve de
esclarecimento público e de lição para os intolerantes).
A Embrafllme que pretende assumir-se como exibidora provoca reações desesperadas que o
público e a história já está julgando. Precisa sair das mãos de uma panelinha, já
suficientemente cumulada de bens e divisas culturais, para absorver sangue novo. A panelinha
é imbatível: quer tudo para si, 100%, parte do leão. Presa exclusiva. O povo não tem direito
nem aos seus próprios despojos. Por isto, cadaverizaram o cinema brasileiro que - por incrível
que pareça - ainda é uma das poucas coisas feitas por brasileiros (no caso, amadores) neste
país onde querem reeditar no final do século vinte a lei brutal do "tudo ou nada".
Quem não quis ouvir aprende mais uma vez que a falsa união é pior do que a desunião criativa;
ou seja, é necessário diálogo, discussão, consenso. Não quiseram saber do (nosso) cinema
como código, linguagem, uso, insinuante, informação, redundância e controle mental, inclusive.
Ao invés, arquivaram, boicotaram, queimaram nossos filmes. Mas algo permaneceu indelével:
é a marca de uma geração produtiva mas infelizmente massacrada pelas circunstâncias, que
poucos fazem questão de admitir nos jornais, talvez por ter dado prova de muita coisa boa
nossa e nova para melhor.
Sobretudo numa economia de guerra num momento recessivo a tendência majoritária é: a)
reduzir importação; b) se possível abastecer-se a si mesmo, isto é, ocupar seu próprio
mercado; c) exportar. Inclusive nosso som e imagem. Para tanto é necessário, organizar,
organizar, organizar. Criar uma nova mentalidade de ação benéfica do Estado na planificação
de uma nova economia de mente e mercado de livre ,concorrência, mesmo para o bem
cultural. Que a ele seja outorgado o direito, já não digo privilégio, de exibição em seu próprio
território. Nem que seja necessário, mais uma vez, sua Excelência convocar os jovens, até
então não por acaso, marginalizados do processo do cinema no Brasil.
Escrevendo ou filmando fomos explícitos - a cortina de fumaça espalhada pelos elitistas de
1968 em diante serviu-lhes de faca não de dois gumes, mas, se assim posso me referir,
desserviu-lhes de faca de três gumes... Mutilaram uma geração e agora essa geração,
generosamente, defende-os mas sem ceder um milímetro de sua (necessária) lucidez histórica.
Para interromper nossas experiências nos acusaram injustamente de irresponsáveis, e agora a
opinião pública é quem os censura pelos dramas abomináveis que pretendem retratar todo o
corpo e a alma do brasileiro; será que aprenderam a lição histórica dez anos confirmada , pela
mediocrização da produção?
Se a história reflete erros, ensina a pensar, e isso eu sempre fiz muito bem...

Folha de S. Paulo, 20/10/1980.


Único brasileiro a ganhar a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes, Anselmo Duarte teria
provocado um ataque de ciúmes no cineasta Orson Welles, que se apaixonara por sua noiva
quando estava no Rio no início dos anos 40 para produzir um musical

GOSTO PELO IMPREVISÍVEL

Rogério Sganzerla

Cinema é um ofício que permite realizar tudo. Mesmo o (que parece) impossível, a arte das
aparências enganosas, conferindo aparência de realidade aos sonhos mais quiméricos e
mirabolantes invenções do espírito. Isso ocorre desde a criação do espetáculo cinematográfico
por George Meliès, há um século, quando se fazia tudo com nada (ao contrário da era do
asneirol), pois tinham imaginação para usar a serviço da sétima arte. E hoje?
Permanece, no entanto, a grande aula de um cinema maior praticado durante três ou quatro
décadas por um dos nossos monstros sagrados. Seu exemplo vivo de grandeza deve servir
como matéria de reflexão para que não se cometam tantas vezes os erros do passado.
Valorize-se o realizador, o autor, o projeto (e não os modelos da moda). São poucos os
diretores profissionais nesse país de contrastes.
Como tudo começou? O destino jogou duro com uma obra sem exemplo nem seguidores.
Devido ao seu pronunciado gosto pelo imprevisível, produziu seqüências majestosas e
colossais movimentações de massa. Sua prestidigitação dos meios de reprodução do real se
deve a propósitos honestos de interpretação das coisas nossas, sendo a um só tempo nobre e
popular.
Ainda capaz de imantar a multidão, merece o reconhecimento e o apoio que se faz necessário
numa arte industrial como o cinema. Enfim, não há nada a acrescentar; é preciso realizar o
impossível, passando por todas as ilusões que podem produzir prestidigitação. Na tela (e cheia
de ação contínua). A arte era a razão de sua vida; sem ela não poderia explicar a que veio a
este mundo imundo. A arte e um par de coxas monumentais chamadas Lolita, o "furacão de
Santos", com quem abandonou a Paulicéia e formou par constante, arrancando aplausos nos
clubes santistas. Ao chegarem ao Rio, estava desempregado e as contas no hotel não
permitiam adiamentos. Anúncios de emprego eram os menos convidativos possíveis. Assim,
aquela página de jornal logo o atraiu: "Precisa-se de bailarinos". Onde era? No Cassino da
Urca. Duas horas depois, chega a pé ao local, pois não tinha dinheiro para a condução. E sem
a fantasia, uma exigência do anúncio. Onde arranjar dinheiro ou crédito para comprá-la?
Anselmo tinha que tentar a sorte. Felizmente, ela estava à sua espera na pessoa de Lolita, seu
par de outros Carnavais. Ela já fazia parte do elenco contratado, pois conquistara a simpatia do
empresário, que era nada mais nada menos do que Orson Welles, que planejava rodar um
musical no Rio em 1942.

Maxixe com elegância


Dançaram um número de maxixe com elegância e agilidade. Mesmo sem a indumentária
exigida, foi admitido. Tudo começava a dar certo, porém cedo se mostrou o reverso da
medalha. O americano dava em cima da dançarina e, para dobrar sua resistência, bancava no
jogo da roleta. Lolita jogava alto, e as fichas não faltavam. Quem não juntaria de boa vontade
aquela mulher belíssima à sua coleção? Percebendo que tinha em Anselmo um rival, Welles
mordia-se de ciúmes ao vê-lo sair todos os dias depois dos ensaios de braços dados com a
garota sorridente e feliz. Welles se apaixonou, mas Lolita negaceava todas as suas investidas.
Quem faturava era o ex-escriturário. O carro da produção costumava apanhá-lo no Catete,
mas, em vez de rumar à Urca, abalou para o Alto da Boa Vista. Dentro, dois brutamontes,
seguranças ou leões-de-chácara do cassino tinham caras de poucos amigos. E revelaram ter
sido contratados pelo gringo para lhe darem uma boa surra em lugar ermo, ameaçando novas
represálias se continuasse a procurar Lolita. Daquela data em diante, já estava dispensado. E
que não aparecesse mais na Urca. Anselmo tentou e conseguiu levá-los na conversa.
Condoídos pela sorte do rapaz ou irritados com a brincadeira do americano, desistiram da
empreitada. Não iam mais surrá-lo. Bastava o passeio e pronto. Com sua imaginação à solta,
convenceu seus raptores a darem ao fato um desenlace sem maldade, mas desmoralizante
para o gringo. Dali mesmo telefonou e relatou o rapto, sugerindo que aparecesse lá com o
empresário. Lolita relutou a princípio, pois temia más conseqüências para Anselmo, que
acabou a convencendo a vir devidamente acompanhada. Fingindo se dobrar às suas
investidas, Lolita saiu a passeio com o empresário. Rodaram muito, até que se viram no local
escolhido. Muito bem, pensou, era só saltar para um breve romance na mata. Welles já estava
ansiosamente satisfeito, esfregando as mãos de contentamento. Mas, ao desembarcar, sumiu-
lhe o sorriso das faces. Lá estava o rival, fagueiro e despreocupado, ladeado pelos capangas,
abrindo flores enquanto calmamente assoviava.

Desfecho rocambolesco
Um desfecho cômico, mas frustrante. Essa passagem, relatada pelo único ganhador brasileiro
da Palma de Ouro em Cannes (em 1962, por "O Pagador de Promessas"), que foi, em seus 80
anos, homenageado na entrega do Grande Prêmio Cinema Brasileiro, em Petrópolis, no dia 12
de fevereiro, tem sabor de uma película barata, narrada com pendor rocambolesco e desfecho
empolgante, ou cômico, se quiserem.
Meio século depois, a garota perdida na noite paulistana, o ator e diretor conclui que Lolita
tinha mesmo provocado uma paixão avassaladora em Welles, cujo ciúme pelo noivo também
ciumento seria uma das razões do descontrole emocional, contribuindo para o escandaloso
episódio no Hotel Copacabana.
Logo em seguida, teria Welles jogado os móveis da sala do apartamento na calçada da
avenida, onde uma pequena multidão urrava (como sempre): "Joga mais".
Existem quatro ou cinco versões para o fato, mas, segundo Anselmo, essa é a verdadeira
explicação para a ciumeira, sua paixonite aguda e outros escândalos, culminando com o
arquivamento definitivo do material, embora totalmente rodado.
Lolita o transformou. É algo muito suave e indecifrável o grande movimento que se opera num
coração que começa a amar. Aquele filme, construído sob um trocadilho como a Igreja Católica
para James Joyce, nascido de um mal-entendido no famigerado DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda), se desfez em horas, após o estranho acidente ocorrido na Barra da
Tijuca em 18/5/42. A partir daí, Welles nunca mais foi o mesmo. E tudo isso faz o homem tanto
antes quanto depois do dilúvio universal do nosso cinema.

Folha de S. Paulo, 14/05/2000


ZERO ABAIXO DE ZERO

Rogério Sganzerla

Estupenda peripécia de distribuidor espertalhão e prova da ingenuidade do publico americano


com idade mental de 12 anos, não deixa de ser um tremendo "fake" e uma gozação sem graça,
verdadeiro idiotismo sem pé, cabeça ou qualquer membro interessante. E não apresenta
mistério algum. O que poderia sair desse fútil bombardeamento? Ignora-se.Com um falso-ego
tão inchado que fecha a alma, alguns adolescentes rechonchudos chegam e pisam na remota
floresta que não leva a lugar nenhum, a não ser à exaustão de qualquer espectador que não
seja obrigatoriamente um débil mental. Como hoje em dia não há certeza absoluta, confirma-se
a "tese" da fita, exposta num diálogo curto e grosso: "Jovens idiotas nunca aprendem". Será?
Afinal, a burrice não é privilégio de ninguém, muito menos de brasileiros. Godard já observou
que o atual cinema americano não passa de um fake, um fenômeno falso que nada tem a ver
com o verdadeiro cinema americano, hoje um mito do passado. A bruxa (completamente presa
em cenas capengas) só serve como reflexão sobre a idiotice reinante. Mercado não é, nunca
foi, cultura. Os picaretas que me desculpem. Alguém deve ter faturado em cima disso e não só
no mercado americano. Enfim, a corrupção burocrática deslanchou o cretinismo em todo o
mundo. "A Bruxa de Blair", essa fitinha chinfrim (impossível assistir até o final), merece o
grande prêmio chamado "Haja Saco" do Rio Cine. O resto é conversa de bar novo-rico num
momento pobre da sétima arte, para não dizer abominável como esse filme. Embora
(infelizmente) o evento tenha custado caro à Petrobrás e à Telemar, o filme foi vaiado em todas
as sessões. Faltou somente um asnocrata, qualquer pateta alvar, para receber a merecida
ovação. Cotação: zero abaixo de zero (e da crítica).Só o tema é válido _a bruxaria americana_
desse subproduto pasteurizado, isto é, televisivo, no que a TV tem de pior: a masturbação
transmental onde, a cada instante, sobrevêm novos anti-sustos. Tudo é previsível e nada
envolto em circunstâncias com hálito de irrealidade na rota de alguns adolescentes em busca
de Coffin Rock, onde se perde tempo, mas os dólares sempre retornam aos bolsos dos
vivaldinos. "Jovens idiotas nunca aprendem", diz algum entrevistado pela câmera capenga, que
oscila até a exasperação. Todos os maus filmes já foram feitos, faltam os inacabados.

Folha de S.Paulo, 01/10/1999


PERSISTÊNCIA DA RETINA

Rogério Sganzerla

Novamente, o homem e sua câmara deve se portar como uma sentinela alerta a 24 fotogramas
por segundo, atenta a 24 horas por dia, sem separar a realidade e a imaginação, o mundo e a
arte, a vida e o cinema. O cinema é uma arte anacrônica, daí sua modernidade.
O filme, efeito da ação de uma emulsão, objetiva e obturador para captar (registrar e reviver) ao
decompor - e falsear o movimento com o tempo falseando - partindo da Ilusão como princípio
principal (ponto de partida e de chegada, avançados); porque baseia-se no princípio físico da
persistência da retina, que é a impressão de realidade ou ilusão de movimento que o olho
humano sofre em "movimento" de registros Inanimados de seres e objetos, aparentemente
"móveis", mentira erigida como verdade pela consciência e pela ciência (a reprodução do
movimento é a própria "mentira'') e a arte - que como o pensamento é e conduz ao mistério; ou
ao supremo. Cinema "arte da ilusão" baseia-se no falso. Devido à ilusão mesma da visão
humana nasceu a câmara e antecessores do cinema, arte temporal pois a matéria-prima da
câmara é o tempo, e do cinema a duração. Baseia-se no falso, nada mais - como a vida
mesma - na ilusão, matéria, nada mais. Nesse universo em representação, a arte acorre a seu
duplo e o autor em busca do "outro". O que é o duplo e o outro?

Não existe duração contínua, estável e linear como se oferece a tela; o movimento não é
apreendido, mas decomposto: a câmara de filmagem é semelhante a uma câmara de
fotografar, nada mais é do que uma câmara fotográfica em movimento constante. As imagens
separadas são projetadas como (se fosse) uma coisa só graças a um mecanismo de relojoaria.
O instante não é captado mas secionado, dividido, falseado, Pois o princípio ocular da
persistência da retina - como o pensamento - tende a associar movimentos separados no
tempo, confundindo Ilusoriamente por uma "Ilusão da mente". Dá associação (projeção,
relação) à Ilusão, há um passo. Aparência Ilusória. Tire a roupa acenda um cigarro e
experimente; ouça o rádio e elimine o som da televisão; desligue temporariamente o rádio e
ponha no "pick-up" João Gilberto, Pixinguinha e evidentemente "I don't live today" do querido
Jimi Hendrlx. Então, tente olhar somente o teto e não o chão, corno habitualmente. Se você por
acaso é bandeirinha ou conhece algum massagista entendido, procure cultivar o silêncio - em
vez do palpite errado. Por favor, querido transatlântico leitor, diga menos besteira, fique sem
pensar com cara de quem está pensando. Bárbaros, crédulos e brasileiros. Leitores de X-9 em
porta de barbearia, leitores de números de revistas atrasados em busca de formas as mais
redundantes possíveis, experimentem os opostos: rádio e televisão por exemplo conjugados
em harmonia total. Pela proximidade, os sorridentes apresentadores de televisão são
Irremediável e metafisicamente afastados do pólo receptor. O rádio ao contrário é íntimo e
social e nos introduz diretamente no universo do condutor embora tudo pareça provar o
contrário do que digo nas últimas 18 Iinhas - me perdoem insistir em destruir uma evidência, no
mundo do "speaker" realista das macacas de auditório. Para nós brasileiros o rádio é tudo:
rádio é capa de "Manchete", cronista social de Jacareacanga (se ainda existem tais espécies
juscelinistas), rádio nos traz à guerra diária, exigindo obrigatoriamente o "transistor'' para cada
um de nós, rádio socializou a opereta e a televisão tornou o terrorismo possível. Como a
política é da essência e da natureza do teatro, sem rádio e televisão não há terrorismo
possível. Você, como eu, é um habitante do sobrenatural magnetizador Inconsciente da própria
energia. Você pode fazer tudo!
O fantasma chega ao fim da página. Os instrumentos tocavam para mim no "London Week-
End". Banheira cheia d'água a 34 graus. Cúmplice da sabedoria lunar, ele encontrava o ponto
de acerto entre a intenção e o recado. Atente para o detalhe (e) leitor.- já supere há multo o
ponto em que conseguimos efetivamente arrebentar a razão, sem pensar ou raciocinar sobre a
gravidade desta operação. Sei de tudo, sabiam? Acho-que-sei-de-tudo-e-escondo.

Folha de S.Paulo, 19/10/1981


POR UM CINEMA DE LIVRE INVENÇÃO POÉTICA

Com alguma elegância e brutal fanatismo, falo de uma sétima arte, feita de acaso e rigor,
magia mínima e mania de grandeza, esplendor e miséria do subconsciente coletivo, imantação
do id, capaz de imantar o interesse do espectador selecionado entre o interesse da multidão.
Falo da estréia no filme de cinema, um faroeste do terceiro mundo, um filme de cinema, um
faroeste do terceiro mundo, um fime de cinema anormal narrado por um comentarista
esportivo.
Então - num cinema basicamente feito de perguntas e nunca de assertivas, vem à baila a
estranha pergunta, pelo menos para o diretor do filme: o que é um filme-objeto? Para o Rogério
Sganzerla de 1968, o poderoso experimento não deve passar de uma reflexão concentrada nos
limites da política e do crime, formas essenciais de abordagem do imaginário poético local, às
vezes insuportável, mas de qualquer modo bem brasileiro.
Em primeiro lugar, denominamos Luz a concepção e execução de um projeto de filmagem de
um poderoso experimento: um filme de cinema, diferente e, sob certos pontos de vista,
revolucionário para o nosso cinema.
À sugestão inicial de fazer um filme de cinema, somando gêneros e estilos aparentemente
contraditórios, somou-se a vontade de filmar uma comédia criminal sobre a condição colonial,
reunindo todo o kitch do subdesenvolvimento.
Nada de idealismo ou primarismo estetizante, portanto, mas o máximo de relativização das
distâncias e durações. O cinema para nós era a arte das evidências mentirosas. Daí a
multiplicação de perspectivas enganosas.
De saída, optávamos por um modelo antropofágico de captação do real, mais forte do que
dogmas, mensagens, estereótipos que não aceitávamos.
Depois de uma profunda reflexão sobre a função da obra de arte aberta, à altura do olho
humano do Terceiro Mundo, situado no horizonte do provável (talvez do improvável também),
embarcávamos na imensa aventura de tentar fazer um filme-soma, livre de qualquer
interferência racionalista, próximo à tradição revolucionária de ser brasileiro, próximos de uma
sensibilidade intuitiva, espontânea e evidentemente inquieta ação filmológica.
O objetivo era filmar, rápido, direto e sem maiores explicações além do manifesto escrito
durante a filmagem. Havia sempre o risco oswaldiano de captar uma realidade mais forte do
que o cinema (e a boca do lixo funcionaria como sintoma de uma realidade nacional, com seu
imaginário povoado pelo banditismo e pelo jogo do bicho) enfim, um filme vulgar mas lógico...
Antes de ser feito - o que exigiu um ano e meio de trabalho contínuo, aquele "filme de cinema"
tentava ser uma aplicação prática das concepções filmológicas defendidas ao tempo de
militante da crítica cinematográfica (Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, Jornal da
Tarde, Folha da Tarde, Visão).
A idéia básica - uma comédia criminal - definir-se-ia com um filme policial narrado por um
comentarista esportivo...( e não foi isso o que o país virou pouco tempo depois?). E por que
não começar com um policialesco? Os melhores diretores já tinham dado o exemplo há muito
tempo

in: CINE ACADEMIA, Belo Horizonte, 1997.

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