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Estudos de cinema hoje e as vicissitudes da grande teoria’ David Bordwell" Oquehoje denominamos “estudos de cinema” existe ha poco mais de trinta anos. Em meados dos anos 1960, os cursos de cinema despontaram como uma altemativa interessante, nas humanidades, para faculdades ¢ uni- versicades norte-americanas. Uma nova geragao de professores de literatura e de filosotia, muitos deles cinéfilos, organizou cursos sobre Shakespeare e ci- nema ou sobre o idedrio humanistico em diretores como Ingmar Bergman, Satyajit Ray e Akira Kurosawa. Trabalhos em “estudos norte-americanos”," por sua vez, passaram a usar filmes como indices da dinamica social de um periodo. Uma arte de massa encontrava seu espaco na educagao de massa, Desde entao, nos Estados Unidos eno Canada, depois na Gra-Bretanha ena Escandinavia, e, mais recentemente, na Franca ena Alemanha, a teoriae ahistoria do cinema integraram-se a academia. Mais e mais editoras universi- tarias publicaram livros sobre cinema, e cresceu o numero de revistas especializadas. Hoje, ha todo um campo dos “estudos de cinema”, uma disci- plina académicaem sua plena maturidade. Esse campo compreende muitas escolas de pensamento, endo preten- dosubmeté-lo aqui a um levantamento abrangente, Em lugar disso, esbogo algumas idéias centrais que tém informado o desenvolvimento dos estudos de cinema no cendrio académico narte-americano. Depois de um breve pana- rama de algumas importantes contribuigdes que antecederam os anos 1970, procuro demarcar duas amplas correntes de pensamento: a teoria da posi¢io- subjetiva eo culturalismo. Estas sio, a meu ver, as correntes de maiorinfluén- cla durante os ltimos 25 anos. Eu procedo a umexame de seus pressupostos eidentifico algumas de suas transformagoes e continuidades. Titulo original “Contemporary Film Studies and the Vieisitudes of Grand Theory”, em Nol Carroll ke David Rordweil (orgs |, Poo! Theory: Revmstrurting Film Studiee (Madison: University of Whiconain Press. 1996), pp. 3-36 Tradugio de Fernando Mascaretio, Agradeyo a Nod Carrol, Kirstin Thompson ¢ Paisley Livingston polos comentirios nas primeiras versies deste ensaio, * No original, “american studies” (N. do 0.) Coguitinisnns © flsafia enalitca A teoria da posigio-subjetivae oculturalismo sio ambos “grandes teorias”, no sentido de que suas reflexées sobre o cinema sao produzidas dentro de marcos tedricos que tém como objetivo a descrigdoou explicagaio de aspectos ‘bastante amplos da sociedade, da histéria, da linguagem e da psique. Em con- traste com essas correntes, aparece uma terceira, mais modesta, que investiga questes cinematograficas mais pontuais, sem se entregar a comprometimentos teoricos tio abrangentes. Eu concluo este ensaio com uma discussiio desta pesquisa “nivel médio”. Gostaria ainda de fazer uma pequena adverténcia. Em geral, os mapeamentos da teoria do cinema identificam escolas de pensamento bem mais especificas do que as correntes por mim aqui demarcadas. Os anos 1970, comumente, sio abordados coma o perioda que assistiu a emergéncia, na teoria do cinema, da semistica, da psicanalise, da analise textual e do feminis- mo. © final dos anos 1980 é considerado o momento da ascensao do pds- estruturalismo, do pos-modernismo, do multiculturalismo e das “politicas de identidade”, como os estudos gays, lésbicos ¢ os estudos das culturas minoritarias, No ensaio, eu situo esses influentes movimentos dentro de cada uma das trés correntes mais amplas que apresentei. Porexemplo, 0 feminis- mo académico ¢ abordado como uma perspectiva a partir da qual 0s tedricos. examinam criticamente alguns aspectos da vida das mulheres dentro de cer- tas organizagdes sociais (particularmente as patriarcais). Sob o panto de vista aqui adotado, ¢ possivel identificar tanto versdes feministasna teoria da posi- ao-subjetiva como inflexdes feministas no culturalismo ou, ainda, projetos feministas dentro da tradi¢ao da pesquisa “nivel médio", Da mesma forma, questdes de identiciade pés-colonial podem ser estudadas sob qualquer um desses trés pontos de vista. Certamente, a inclusdo dessas contribuigdes dentro de tendéncias inte- lectuais mais amplas produz 0 risco de perda das suas nuances eespecificidades. Mas possibilita,em compensacao, a identificagao das afinidades conceituais e conexées histéricas que se estabelecem entre as varias abordagens, Preambulo: autoria Os estudos decinema na academia eram, em 1970, uma area modesta e notinham respeitabilidade. Uma temporada de férias era suficiente para que 2 Estudos de cineria hope € 48 i des ie grande wuwia um aluno dedicado de graduagao lesse todos os livros relevantes sobre cine- ma publicados em inglés. A historia do cinema, de um modo geral, era en- tendida como o desenvolvimento da “linguagem cinematografica”, repre- sentado, porsua vez, por um conjunte de filmes canonizados. A andlise filmica ~ por essa época, jamais referida como “andlise textual” ~ dedicava-se, sobre- tudo, a interpretagaoe a avaliagdo, esua énfase recaia sobre o tema, a trama e 0 personagens. Para os anglfonos, a teoria do cinema era ainda, majoritaria- mente, o territérie dos tedricos “clissicus": Amheime Eisenstein seguiam tendo grande influéncia, ea tradugio dos ensaios de Bazin era acontecimento recente. Omarco conceitual dominante era a politica dos autores. Os jovens cri- ticos dos Cahiers du Cinéma haviam detendiio uma estetica da expressao pes- soal no cinema, e tanto o “cinema de arte” europeu da pos-guerra como o reconhecimento aos grandes diretores hollywoodianos durante os anos 1950) impulsionarama linha autoral. Osucesso da politica dos autores fol intemacio- nal, Como ja ocorrera antes coma teoria da montagem sovistica, ela modifi- cou © panorama da teoria, da critica e da historiografia cinematograficas. Dai pordiante, a parcela mais expressiva da critica jomnalistica e da reflexao acadé- mica sobre cinema se concentrarianos diretores nos universos particulares manifestos nos conjuntos de suas obras.' Nos anos 1970, até mesmo os direto- Tes mais comerciais aderiram as homenagense referéncias intertextuais que eram comuns entre os expoentes da nouvelle vague francesa” Em uma perspectiva histérica mais ampla, no entanto, a politica dos autores configurou uma interrupgdo de muitos dos debates centrais manti- dos sobre o cinema ao longo dos cingiienta anos anteriores. O cinema fora discutido em duas grandes linhas: como uma nova forma de arte e comouma forga politica e cultural peculiar a modema sociedade de massa. O trabalho de Bazin ¢ do corpo de criticos dos Cahiers du Cinéma pode ser entendido como uma ruptura tanto com os debates sobre a especificidade do meio, proprios a estética dos anos 1920, como com a agenda politica de esquerda, de uma importante parcela da cultura cinematografica a partir do final dessa década_ Mas a linha autoral significava também a renovagao de uma das premissas basicas de boa parte daestética tradicional, assim formulada por Iris Barry emt * Howe, ponim, esiongos para apresentar 0 roieirisia como autor, As discusses. nos Estadces Unidos setomarim os debates antes }4 ccorricios aa Alemanhs, nos apos 1910 @ 1920, ena Franca, duranie os ano 1940. * Ver Noél Caeroll. "The Future of Allusion: Hollywoad in the Seventies (and Beyond)", em Cetober, 20, primavera de 1982, pp. 51-81

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