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cadernos

de campo
revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da usp

issn 0104-5679 (desde 1991)


23
e issn 2316-9133 (desde 2012)
cadernos de SÃO PAULO v. 23 n. 23 p. 1-381 JAN.-DEZ./2014
campo
colaboradores deste número Esta revista é indexada pelo:
Amurabi Oliveira, Ana Caroline Amorim Oliveira, Ana Paula Luna Sales, Clase – Citas latinoamericanas em Ciencias Sociales y Humanidades
Bruno Puccinelli, Carla Souza de Camargo, Carlos Eduardo Pinto Procópio, Ulrich’s International Periodical Directory
Carlos Melo de Oliveira Paulino, Cecília Campello do Amaral Mello, Edgar Latindex – Sistema Regional de Información em Línea para Revistas
Rodrigues Barbosa Neto, Edson Matarezio, Fernando Ramírez Arcos, Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal.
Flavia Medeiros, Flora Rodrigues Gonçalves, Giórgia Neiva, Henrique Sumários de Revistas Brasileiras
Pougy, Jorge Luan Teixeira, José Cândido Lopes Ferreira, Julia Frajtag
Sauma, Juliano Bonamigo, Lorena França Reis e Silva, Lucas Barbosa Esta revista participa do portal http://revistas.usp.br e utiliza o sistema
Carvalho, Marcio Goldman, Marina Vanzolini, Morgane Avery, Nicolás OJS (Open Journal Systems) em seu processo editorial e divulgação.
Viotti, Patrícia Lora Léon, Rafael Barbi Costa e Santos, Raquel Sant’Ana,
Renata Freitas Machado, Renato Sztutman, Rose Mary Gerber, Thaiana Publicação Anual / Annual publication
Santos, Thiago Haruo Santos, Valéria Macedo Solicita-se permuta / Exchange desired

preparação e revisão de texto Tiragem: 400 exemplares


Comissão Editorial Cadernos de Campo e Tikinet Edição Ltda.
Todos os direitos reservados
editoração eletrônica e capa Copyright © 2014 by Autores
Pedro Barros І Tikinet Edição Ltda. [versão impressa]
FINANCIAMENTO PPGAS/USP
foto da capa

Jorge Luan Teixeira Nenhuma parte deste publicação pode ser reproduzida por qualquer
meio, sem a prévia autorização deste órgão.
projeto gráfico original

Ricardo Assis

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Cadernos de Campo: revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP / [Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social]. – Vol. 1, n. 1 (1991)-. -- São Paulo:
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP, 1991-[2014].

Anual
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1991); título da capa
Última edição consultada: 2009/18
ISSN 0104-5679
e-ISSN: 2316-9133

1. Antropologia. 2. Antropologia (Teoria e métodos). I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departa-
mento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social.
23ª. CDD 301.01
sumário
artigos e ensaios
Entre partidos políticos, facções, redes e famílias: o que são os grupos
políticos no sertão de Pernambuco?
Carla Souza Camargo.......................................................................................................11
Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi
Lorena França Reis e Silva................................................................................................29
Uma aventura antropológica: a perda da inocência
Rose Mary Gerber.............................................................................................................47
Os sujeitos por trás dos direitos: o território como fonte de direitos desde a
perspectiva indígena serrana
Patrícia Lora León............................................................................................................61
Visão e o cheiro dos mortos: uma experiência etnográfica no Instituto Médico-Legal
Flavia Medeiros.................................................................................................................77
A produção ritual da candidatura política
Carlos Eduardo Pinto Procópio.....................................................................................91
Na esquina do Bar d’A Lôca: produção de sexualidades no cruzamento com
a produção da cidade de São Paulo
Bruno Puccinelli............................................................................................................109
“É gay ou é hetero?” – Notas etnográficas sobre performatividade nas
sociabilidades alternativas
Giórgia Neiva...................................................................................................................125
La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes
Nicolás Viotti..................................................................................................................141

artes da vida
A vida como luta
Jorge Luan Teixeira.........................................................................................................161

entrevista
Entrevista com Carlo Severi
Edson Tosta Matarezio Filho........................................................................................171

traduções
Mitos e mitopoiese
Peter Gow........................................................................................................................187

especial
A relação afroindígena
Marcio Goldman.............................................................................................................213
Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é”
Cecília Campello do Amaral Mello..............................................................................223
Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG
Rafael Barbi Costa e Santos...........................................................................................241
Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena
Julia F. Sauma....................................................................................................................257
Daquilo que não se sabe bem o que é: a indeterminação como poder nos
mundos afroindígenas
Marina Vanzolini............................................................................................................271
A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani)
Valéria Macedo e Renato Sztutman..............................................................................287
Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana
Edgar Rodrigues Barbosa Neto.....................................................................................303

resenhas
BRAZ, Camilo. À meia-luz...: uma etnografia em clubes de sexo masculinos.
Goiânia: Editora UFG, 2012, 208p.
Fernando Ramírez Arcos................................................................................................321
SÁ, Guilherme. No mesmo galho: antropologia de coletivos humanos e animais.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
José Cândido Lopes Ferreira e Flora Rodrigues Gonçalves.......................................325
DAUSTER, Tânia; TOSTA, Sandra Pereira; ROCHA, Gilmar (orgs.).
Etnografia e educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012, 248p.
Amurabi Oliveira.............................................................................................................331
LEA, Vanessa Rosemary. Riquezas intangíveis de Pessoas Partíveis.
São Paulo, Edusp, Fapesp, 2012, 496 p.
Carlos Melo de Oliveira Paulino.................................................................................337
OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas da prostituição nas
experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. 358p.
Ana Paula Luna Sales......................................................................................................343
DAWSEY, John; MÜLLER, Regina; MONTEIRO, Marianna; HIKIJI, Rose.
Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013, 504p.
Raquel Sant’ana...............................................................................................................349

informes
Coletivo ASA - Artes, Saberes e Antropologia.....................................................................357
Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC)......................................................361

nominata de pareceristas.................................................................................365

números anteriores...............................................................................................369

Instruções para colaboradores......................................................................373


contents

articles and essays


Between political parties, factions and families: what are the political groups?
Carla Souza Camargo.......................................................................................................11
Mimesis of oneself: the construction of Paresi self-representation
Lorena França Reis e Silva................................................................................................29
The anthropological adventure: the loss of innocence
Rose Mary Gerber.............................................................................................................47
The subjects of the indigenous rights: the territory as a source of rights
from serrana indigeneous perspective
Patrícia Lora León............................................................................................................61
Sight and smell of corpses: an ethnographic experience in the Forensic Medicine Institute
Flavia Medeiros.................................................................................................................77
The ritual production of political candidacy
Carlos Eduardo Pinto Procópio.....................................................................................91
On the Bar d’A Loca’s corner: production of sexualities at the intersection with
the production of São Paulo city
Bruno Puccinelli............................................................................................................109
“Is it gay or straight?” – Ethnographic notes about performativity among the
alternatives’ sociabilities
Giórgia Neiva...................................................................................................................125
Invisible violence. Sorcery, aggression and personhood in the Andes
Nicolás Viotti..................................................................................................................141

the arts of life


Life as struggle
Jorge Luan Teixeira.........................................................................................................161

interview
Interview with Carlo Severi
Edson Tosta Matarezio Filho........................................................................................171

translations
Myths And Mythopoiesis
Peter Gow........................................................................................................................187

special section
The afroindigenous’s relationship
Marcio Goldman.............................................................................................................213
Becoming-afroindigenous: “so let’s do what we are”
Cecília Campello do Amaral Mello..............................................................................223
About culture and secret among the Xakriabá of São João das Missões/MG
Rafael Barbi Costa e Santos...........................................................................................241
Entrosar-se, an Afroindigenous ethnographic reflection about mutual implication
Julia F. Sauma....................................................................................................................257
About what we don’t know well what it is: indeterminacy as power in
afroindigenous worlds
Marina Vanzolini............................................................................................................271
The part of which one is part. Notes on individuation and divinization
(starting with the Guarani)
Valéria Macedo e Renato Sztutman..............................................................................287
On witchcraft as ritual aesthetic in African-Brazilian religions
Edgar Rodrigues Barbosa Neto.....................................................................................303

book reviews
BRAZ, Camilo. À meia-luz...: uma etnografia em clubes de sexo masculinos.
Goiânia: Editora UFG, 2012, 208p.
Fernando Ramírez Arcos................................................................................................321
SÁ, Guilherme. No mesmo galho: antropologia de coletivos humanos e animais.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
José Cândido Lopes Ferreira e Flora Rodrigues Gonçalves.......................................325
DAUSTER, Tânia; TOSTA, Sandra Pereira; ROCHA, Gilmar (orgs.).
Etnografia e educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012, 248p.
Amurabi Oliveira.............................................................................................................331
LEA, Vanessa Rosemary. Riquezas intangíveis de pessoas partíveis.
São Paulo, Edusp, Fapesp, 2012, 496p.
Carlos Melo de Oliveira Paulino.................................................................................337
OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas da prostituição nas
experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. 358p.
Ana Paula Luna Sales......................................................................................................343
DAWSEY, John; MÜLLER, Regina; MONTEIRO, Marianna; HIKIJI, Rose.
Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013, 504p.
Raquel Sant’ana...............................................................................................................349

announcements
Coletivo ASA - Arts, Knowledges and Anthropology..........................................................357
Anthropology of the City Research Group (GEAC)...........................................................361

list of appraisers....................................................................................................365

previous editions....................................................................................................369

instructions to collaborators...........................................................................373
7

editorial

Com grande satisfação, apresentamos o e dos investidores nacionais e internacionais.


vigésimo terceiro número da Cadernos de O artigo “Visão e o cheiro dos mortos: uma expe-
Campo, a revista discente do Programa de riência etnográfica no Instituto Médico-Legal”,
Pós-Graduação em Antropologia Social da de Flavia Medeiros, apresenta a “experiência
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). etnográfica” vivenciada no Instituto Médico-
A seção que abre esta edição, Artigos & Legal do Rio de Janeiro e as percepções visuais
Ensaios, conta com nove contribuições. O ar- e olfativas daqueles cuja principal atividade é a
tigo que inaugura a seção – “Entre partidos manipulação desses corpos mortos. No artigo
políticos, facções, redes e famílias: o que são “A produção ritual da candidatura política”,
os grupos políticos no sertão de Pernambuco?”, Carlos E. P. Procópio apresenta uma candidatu-
de Carla S. Camargo, parte da experiência et- ra a deputado federal na região sul do estado de
nográfica da autora no interior pernambucano, Minas Gerais, durante as eleições de 2010, e su-
explora a noção nativa de “grupos políticos” e gere que as estratégias utilizadas em campanhas
sinaliza que “parentesco” e “política” encon- políticas configuram um conjunto de movimen-
tram-se entrelaçados nesse contexto. O artigo tos desenhados pela presença do candidato nas
“Mímeses de si mesmos: a construção da autor- cidades em eventos que visam estimular o ima-
representação imagética dos Paresi”, de Lorena ginário daqueles que se deseja conquistar.
F. R. Silva, realiza uma discussão sobre a míme- “Na esquina do Bar d’A Lôca: produção de
sis que, no caso paresi, estabelece um movimen- sexualidades no cruzamento com a produção
to simultâneo de imitação e inovação. “Uma da cidade de São Paulo”, Bruno Puccinelli pen-
aventura antropológica: a perda da inocência”, sa a produção da cidade a partir de definições
de Rose M. Gerber, problematiza a distinção sócio-sexuais, sugerindo que definições de se-
entre campo e gabinete. A reflexão, realizada xualidade produzem cidades. Já o artigo “É gay
a partir da experiência junto às pescadoras do ou é hetero? Notas etnográficas sobre perfor-
litoral de Santa Catarina – e na experiência de matividade nas sociabilidades alternativas”, de
escrita na cidade –, trata dos deslocamentos fí- Giórgia Neiva, apresenta a etnografia realizada
sicos e epistêmicos vivenciados pela autora. em casas noturnas da cidade de Goiânia/GO,
Em “Os sujeitos por trás dos direitos: o ter- aponta para a importância da performance e
ritório como fonte de direitos desde a perspecti- da performatividade no contexto analisado.
va indígena serrana”, Patrícia L. León mostra a “La violência invisible. Hechicería, agresión y
preocupação dos indígenas da Serra Nevada de persona en los Andes”, de Nicolás Viotti trata
Santa Marta (Colômbia) com seu território an- da feitiçaria como traço central na socialidade
cestral frente ao ordenamento territorial dos pro- das populações rurais e urbanas do noroeste da
cessos de planejamento e intervenção do Estado Argentina.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


8 | editorial

Em Artes da vida, apresentamos o ensaio fo- os desafios antropológicos colocados pela no-
tográfico “A vida como luta”, de Jorge L. Teixeira, ção de afroindígena e seus usos.
que condensa a visão que os moradores das fa- Esta edição também traz seis resenhas sobre
zendas de Catarina, no Sertão dos Inhamuns/ publicações recentes da antropologia brasileira.
CE, têm da própria condição e trabalho. A primeira trata do livro “À meia-luz...: uma
A seção Entrevista realizada por Edson T. etnografia em clubes de sexo masculinos” de
M. Filho com o antropólogo Carlo Severi, Camilo Braz. Em seguida, temos resenhas de
durante a produção do documentário O que “No mesmo galho: antropologia de coletivos
Lévi-Strauss deve aos Ameríndios, apresenta suas humanos e animais”, de Guilherme Sá; e de
apreciações em temas como relação entre filo- “Etnografia e educação”, coletânea organizada
sofia e antropologia, psicanálise e antropologia, por Tânia Dauster, Sandra P. Tosta e Gilmar
leis universais e particularidades etnográficas, Rocha. Também foram resenhados “Riquezas
possibilidades de tradução, índios na universi- intangíveis de pessoas partíveis”, de Vanessa
dade, a relação natureza e cultura, estrutura e R. Lea; “Devir puta: políticas da prostituição
oposições binárias. nas experiências de quatro mulheres militan-
O texto inédito em português “Mitos e tes”, de José Miguel N. Olivar; e “Antropologia
mitopoiese”, de Peter Gow, traduzido por e performance: ensaios Napedra”, coletânea
Henrique Pougy, compõe a seção Tradução. organizada por John C. Dawsey, Regina P.
Este capítulo da obra An Amazonian Myth and Müller, Rose Satiko G. Hikiji e Marianna F.
its History apresenta uma reflexão sobre atos M. Monteiro.
de narração de mitos entre os Piro e explora A Cadernos de Campo agradece aos autores
dimensões de temporalidade envolvidas na re- que submeteram seus trabalhos, publicados
lação entre os mitos e as dimensões de criação. ou não nesta edição. Agradecemos também ao
O Especial que ora apresentamos é um professore Márcio Goldman pela apresentação
desdobramento do evento “Sexta do mês”, da seção Especial, aos pareceristas ad hoc que
intitulado “Olhares cruzados: ensaios de an- gentilmente cederam seu tempo para colaborar
tropologia afro-indígena”, realizado pelos alu- com este número, aos professores e funcioná-
nos do PPGAS/USP, em maio de 2014, na rios do Departamento de Antropologia e, mais
FFLCH/USP. Tratou-se de uma mesa redon- especialmente, ao Programa de Pós-Graduação
da composta por Márcio Goldman, Marina em Antropologia Social da Universidade de
Vanzolini e Julia Sauma, com mediação de São Paulo pelo financiamento. Agradecemos
Yara de C. Alves. As seis contribuições, sob também aos leitores da revista e desejamos a
apresentação de Márcio Goldman, apontam todos uma excelente leitura!

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 7-8, 2014


artigos
e ensaios
11

Entre partidos políticos, facções, redes e


famílias: o que são os grupos políticos no sertão
de Pernambuco?1

Carla Souza Camargo


Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p11-27 this approach seeks to take into account its complex
and changeable combination, in which none of the
resumo Este artigo descreve as configurações e elements shall be considered separately.
práticas dos grupos políticos em um município do keywords Political groups; Political parties;
sertão de Pernambuco, a partir de uma pesquisa in- Family; Elections; Sertão de Pernambuco.
tensiva de campo. Tal município está localizado no
Vale do Pajeú e sua população é composta por cerca
de 79.000 habitantes e 55.000 eleitores. A principal Os grupos políticos em Monsanto
característica da política eleitoral é a existência de
dois grupos que disputam cargos eletivos; a cada um No município de Monsanto2 existem dois
destes é reconhecido um líder, assim como famílias grupos políticos: o vermelho e o azul. Os
e partidos que lhes são vinculados. Nesta aborda- grupos políticos são descritos como coletivos
gem, a inteligibilidade da atuação dos grupos políti- que promovem a associação entre indivídu-
cos busca levar em conta sua conjugação complexa os, famílias e partidos, que reúnem forças
e mutável, na qual nenhum dos elementos deve ser para alcançar objetivos diversos – particula-
considerado isoladamente. res e coletivos –, e que apresentam o anseio
palavras-chave Grupos políticos; Partidos comum de ascender membros a algum cargo
políticos; Família; Eleições; Sertão de Pernambuco. político. Apesar dos diferentes interesses que
podem construir as parcerias dentro de um
Between political parties, factions and families: grupo, todos seus esforços são compreendi-
what are the political groups? dos localmente como ações que visam eleger
seus candidatos. Tais coletivos permeiam os
abstract This paper describes the settings and discursos locais como um imperativo da po-
practices of political groups in a municipality of lítica de Monsanto, assim como o de muitas
the Sertão de Pernambuco (countryside of the state outras cidades do interior pernambucano. É
of Pernambuco, Brazil), from an intensive field re- entendido como um componente essencial,
search. This municipality is located in the Vale do ingrediente ou a maneira pela qual se faz po-
Pajeú and its population is made up​​ of about 79,000 lítica nos municípios do interior. No contex-
inhabitants and 55,000 voters. The main feature of to de Monsanto, considera-se ser impossível,
electoral politics is the existence of two political ou muito árduo, fazê-la fora de um desses
groups contesting elective positions; to each of these grupos, principalmente porque a política de-
groups is recognized as having a leader as well as sempenhada por meio deles normalmente é
families and political parties that are linked to them. encadeada em oposição àquela que se consi-
The intelligibility of actions of political groups in dera desenvolvida nos grandes centros3.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


12 | Carla Souza Camargo

Em sua atuação, o grupo político opera parti- expressa esse funcionamento claramente, como
dos e famílias. Aquilo que me foi dado a observar procurarei demonstrar ao final deste artigo.
sobre esta atuação compõe este artigo. De início,
ofereço um itinerário do que aqui será descrito, O dentro, o entre e o fora
a partir de um modelo básico do funcionamento
dos grupos políticos e de suas relações. A formulação sobre o funcionamento da
A posição de maior destaque no interior política de Monsanto por meio dos grupos
deles é a do chefe ou líder, que é filiado ao par- políticos ficou evidente de diversas formas
tido de maior representação do município em durante a pesquisa de campo. A maior parte
número de cargos ocupados na administração dos meus interlocutores de pesquisa se coloca-
pública. Esse partido é responsável pelas par- va dentro da chave dos grupos e, aos poucos,
cerias estabelecidas entre o grupo e políticos um conjunto de experiências e relatos apontava
de outras esferas do Estado, como aqueles que para essa configuração.
ocupam cargos no governo federal e estadual. Logo na primeira semana de minha pes-
Existem ainda outras posições de liderança, quisa, fiz uma visita à residência de Anacleto,
que são ocupadas, em maior parte, por pes- jornalista e dono de um periódico especializado
soas inseridas na estrutura administrativa de nas questões do município, o Jornal Enigma.
Monsanto e políticos em exercício, principal- Ficou manifesta sua opinião de que seriam sem-
mente na prefeitura e na câmara municipal. pre parciais as conclusões de uma pesquisa feita
Particularmente no que toca à relação entre os por uma pessoa de fora, pois para ele era ne-
vereadores e o líder do grupo político, é uma cessário estar dentro da configuração da política
via de duplo sentido, na qual os políticos re- para tomar dimensão de seu funcionamento:
alizam uma série de acordos com o grupo por
meio de seu líder para angariar seu apoio no Veja bem, não dá para ser de outra forma, pois
momento da campanha eleitoral, assim como aqui o cabra olha no olho e sabe em quem ele
lhe possibilitam, quando eleitos, a manutenção vota, então você estuda aqui dois anos e não sabe
e realização de novas parcerias. Alguns dos po- de nada! Pois falar de política e partidos aqui não
líticos que buscam apoio do grupo no momen- é assim tão automático, ainda vai demorar muito
to da campanha eleitoral são filiados ao partido tempo para as pessoas pensarem assim. Em Serra
de seu líder, ainda que outros sejam filiados aos Talhada só existe o cordão azul e o vermelho e
demais que compõem o grupo. aqui é o seguinte: tem que escolher um lado.
Além dos membros distribuídos por esses Não existe outro jeito. Pois até agora o que im-
partidos, há aqueles que estão filiados aos que porta para a política é a pessoa, o dinheiro e o
não participam de qualquer grupo. É comum apoio. Não o partido, mas o grupo. (Caderno de
que os parentes do líder filiem-se ao seu partido Campo, Anacleto, 23 de fevereiro de 2010)
político. No que toca à relação entre a família
do líder e o grupo ao qual está vinculado, essa O que Anacleto me disse, ao contrário de
não é de simbiose, mas de duas realidades que ser uma repreensão, era um conselho de con-
podem se atualizar mutuamente, ainda que, duta, pois ele mesmo teve que se equacionar
em outros momentos, operem por suas pró- de diversas formas para trabalhar como um
prias lógicas de funcionamento. O caso que jornalista que escreve sobre a política do mu-
envolve a sucessão do líder do grupo político nicípio. Inicialmente, o jornalista era do grupo

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 11-27, 2014


Entre partidos políticos, facções, redes e famílias | 13

vermelho, mas para comprar o Jornal Enigma “meu candidato é fulano e se fulano ganhou,
teve que fazer negociações com o líder do azul. viva! eu ganhei!”. É difícil falar em política sem
No entanto, ao longo do tempo entendeu que falar em grupo. Uma pessoa vota no candidato,
todas as vozes tinham que aparecer em seu jor- o partido vem depois. Muito mais no candida-
nal. Não adiantaria somente falar mal ou expor to, no partido quase nada. E aí entram vários
os aspectos positivos de um só grupo. Começou aspectos: o que vale é carisma, o grupo político
então a vender um espaço em seu jornal, que e o financeiro. Ou se é de um lado ou de ou-
ele chama de “cotas”, para membros de am- tro. (Caderno de Campo, Roberto da Silva, 5 de
bos os grupos, com o intuito de que além das abril de 2010)
reportagens envolvendo os grupos políticos,
os dois lados tivessem um espaço para expor Para o jornalista, apesar da existência de
suas ações e interesses. Desta forma, segundo vínculos partidários na cidade, eles são in-
Anacleto, apesar de atualmente não pertencer a significantes perto da dimensão que o grupo
qualquer um, ele teve que fazer “um casamen- político adquire entre os eleitores. Roberto
to na sociedade política”, pois para fazer um acredita ser fundamental convidar as pessoas a
trabalho realmente válido, é preciso compor participarem dos partidos, principalmente por
com as duas partes. Em sua opinião, qualquer conta dos projetos de inovação e mudança, por
político que vise a um trabalho bem feito em exemplos os de seu partido, que tem como foco
Monsanto teria que saber agir dessa maneira, o meio-ambiente. Apesar de ser membro do
assim como ele fez e me recomendava fazer. grupo vermelho, prevê que o partido do qual
Em outra ocasião, encontrei-me com outro é presidente poderá compor para as eleições de
jornalista do Jornal Enigma, chamado Roberto 2012 um outro coletivo, chamado terceira via.
da Silva. Ele atualmente trabalha como asses- Não é recente o projeto de formação de uma
sor de comunicação da Câmara de Vereadores frente partidária que concorra em pé de igual-
de Monsanto, mas continua escrevendo para dade com os grupos políticos, que apresenta
a publicação mencionada uma famosa colu- projetos de composição desde meados dos anos
na chamada “Alfinetadas”. Roberto da Silva é 1980, mas que até agora não conseguiu ganhar
membro do grupo vermelho e atualmente pre- projeção suficiente para fazer frente à força dos
side o PV (Partido Verde) na cidade, que não grupos na cidade.
se encontra aliado a grupo algum. Para ele, a Mesmo com toda a centralidade dos grupos
política por meio dos grupos políticos tem um políticos na arena eleitoral de Monsanto, existe
caráter de engajamento pessoal muito grande: uma parcela de candidatos que se opõe a políti-
ca desenvolvida por meio de famílias e grupos.
Época de eleição é assim, existe uma disputa Notadamente com uma orientação ideológica
muito acalorada. São carreatas de um lado e de socialista, partidos, associações e indivíduos
outro. Briga de bandeiras, as pessoas colocam tentam combater essa lógica local. Porém é pre-
bandeiras vermelhas, outras bandeiras azuis. ciso notar os mecanismos pelos quais esses can-
Entenda, Carla, as disputas que eles fazem é didatos aliados a partidos políticos de esquerda
uma espécie de um jogo pessoal de ganhar e articulam-se para realizar tal oposição.
perder. Não se pensa só em melhorias para a ci- Tomé é natural de Caruaru, foi semina-
dade. As pessoas assumem um candidato ou um rista durante quatro anos e, por intermédio
lado, pior que em jogo de futebol. Dizem assim de algumas pessoas ligadas à Igreja Católica,

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 11-27, 2014


14 | Carla Souza Camargo

envolveu-se na formação do PT (Partido dos respeitaram, sempre se quiseram bem. (Caderno


Trabalhadores), em meados da década de 1980, de Campo, Tomé, 16 de março de 2010)
sendo eleito vereador em 1996. Entretanto, em
2005, principalmente motivado pela expulsão Pode-se perceber, a partir do relato de
de Heloísa Helena, Babá, Luciana Genro e Tomé, que a posição de rivalidade dos grupos
João Fontes do PT, Tomé se desliga do partido políticos em Monsanto é muito menos rígida
e começa a participar da construção do PSOL do que parece. Os agentes políticos neles inse-
(Partido Socialismo e Liberdade) na cidade de ridos compartilham informações e estabelecem
Monsanto. No ano seguinte, depois de angariar relações de proximidade fora do período eleito-
filiados para o partido, lança-se como candi- ral. A oposição, que muitas vezes se apresenta
dato a vice-governador. Atualmente, continua como fixa e operante, ganha contornos mais
filiado ao PSOL, “na luta para conquistar o es- visíveis somente nos períodos eleitorais. Ainda
paço das massas”, principalmente vinculando- a partir das conversas que tive com Tomé, pude
-se à população de baixa renda na cidade. perceber que os processos de troca, alianças
Segundo Tomé, não importa a posição assu- e incorporações são sempre cogitados e que
mida no interior das oposições entre os grupos equações entre agentes e grupos políticos são
políticos, porque participar dessa estrutura é en- esperadas e não se apresentam como momen-
trar em um jogo que implica a existência da outra tos extraordinários, fora da lógica política local.
parte. Ainda segundo ele, estar em um grupo é Tomé defende a criação da Terceira Via em
também participar do outro, pois, em Monsanto, Monsanto, apesar de acentuar sempre que ela
as diferenças entre ambos são poucas, uma vez que pode estar “voltada pra questão do povo ou ter
a ideologia do grupo, assim como seu conjunto de um braço voltado pra um dos grupos, tiran-
ações e projetos, partilha das mesmas propostas: do voto dos candidatos do grupo rival, mas
sem nunca eleger um candidato”. Para Tomé
Aqui se criaram dois clubes. O clube do azul e o grande desafio da Terceira Via é constituir-se
o clube do vermelho. Eles lutam dentro desses “genuína”, escapando dos interesses dos grupos
clubes pra ver quem ganha mais votos. Quem políticos em tomá-la como um apoio, conse-
é contra o clube do azul, vai pro grupo do ver- guindo mais votos para seus candidatos.
melho. Isso cria uma falsa polarização, porque Cada grupo é referenciado por uma cor
na realidade eles são homem-aranha, são azuis (cordão, camisa, bandeira) que é inteiramente
e são vermelhos. Estão unidinhos, estão juntos. assimilada pelos habitantes da cidade, os quais
São uma unidade e comungam. Eu estive lá podem ser referidos também pelo nome de suas
dentro, eu fui uma pessoa de Silvino, eu escre- atuais lideranças. Não me foi apontada correla-
via os discursos de Silvino Rodrigues, todos eles! ção alguma entre as cores dos grupos e os par-
Os políticos dos dois grupos se ligam direto, e tidos políticos que os compõem; entretanto é
ainda brincam “um dia eu trago você pro meu preciso notar que elas seguem o padrão de tons
grupo!”, se encontram, bebem cachaça junto, dos principais partidos que compõem cada um
brincam junto, vão pra shopping em Recife. deles: o PTB, no caso do grupo vermelho, e o
Existe uma coisa assim de harmonia entre eles PR, no caso do grupo azul. Semelhante caso foi
muito forte. Quando na sede e no calor da po- notado e descrito por Borges (2003, p. 89-101),
lítica, no discurso, na oratória, surgem críticas em que a autora pôde perceber uma série de ín-
de um ao outro. Mas por baixo, eles sempre se dices que estabeleciam a conexão entre as obras

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e o governo de Joaquim Roriz, sendo que o prin- interesses e motivações. O vermelho atual-
cipal desses era a relação estabelecida entre esse mente é liderado pelo deputado estadual Paulo
governo e a cor azul. Segundo Borges (2003, p. Beltrão, e o azul, pelo deputado federal Vitório
95), “o uso das cores representa um refinamen- Cordeiro.
to nas estratégias da iconografia política”, sendo Em um primeiro momento, a descrição do
elas construídas como índices do tipo de dispu- grupo político me pareceu muito próxima ao
ta política no Distrito Federal, que estabelecia conceito de rede de Barnes (1968), pois parecia
a relação entre aqueles ligados a Roriz e seus descrever apenas laços interpessoais. O autor
opositores, estes vinculados ao PT. No entanto, retira tal conceito, principalmente, do livro de
diferentemente do caso descrito pela autora, em Fortes (1949) “The Web of Kinship among the
Monsanto as cores que nomeiam e classificam Tallensi”, que utiliza esse termo para discorrer
os grupos políticos opostos não se referem, pro- sobre como noções de igualdade de classe foram
priamente, à ideologia ou ao tipo de ação defen- aplicadas e, também, como alguns indivíduos
dida por cada um; também não faz referência fazem uso dos laços de parentesco e amizade
às obras realizadas por eles, pois as formulações em uma comunidade na Noruega. A ideia de
acerca dos projetos de cada candidato ligam-se rede foi desenvolvida na antropologia social
às atuações particulares, como atributos de um com o intuito de analisar processos sociais en-
representante político, no máximo, sendo esten- volvendo ligações que atravessam grupos so-
dível a sua família, mas nunca a todo o grupo. ciais. Para Barnes (1968, p. 111), funcionaria
como um fluxo imaterial interconectado, e a
Grupos, Redes e Lideranças utilidade do conceito estaria em “poder anali-
sar os processos políticos que são desvinculados
Cada grupo político é estruturado em torno da política nacional, mas que envolvem indi-
de uma liderança: representantes políticos do víduos e grupos que tentam mobilizar apoio
município de Monsanto que, no entanto, não de uma população local” (BARNES, 1968,
restringem sua influência política ao nível mu- p. 107) para suas mais variadas propostas, as-
nicipal. Note-se que a palavra utilizada para re- sim como influenciar as atividades e ações de
ferir-se à pessoa que coordena as atividades do seus companheiros. No entanto, no caso de
grupo é sempre líder ou chefe. Segundo meus Monsanto os grupos constroem parcerias com
interlocutores de pesquisa, liderar não signifi- outros coletivos da sociedade, mas mantêm
ca ter a posse, a ideia de propriedade, apesar íntimas relações com as estruturas do Estado.
de lhe ser associada, não é efetiva. O grupo Além disso, erigem-se padrões duradouros de
político não se encerra, necessariamente, com liderança, mas que são substituíveis. Seria inte-
o fim da carreira ou da vida de seu líder, pois ressante, entretanto, ressaltar que, assim como
podem existir sucessores no interior da organi- no conceito de rede desenvolvido por Barnes, o
zação. A liderança pode direcionar suas ações, grupo político pode ser entendido como uma
influenciar suas escolhas, mas existe um caráter unidade se tomado como uma abstração, pois
deliberativo contido no grupo. Determinadas cada membro estabelece um tipo de parceria
ações da liderança podem despertar diferentes diferente com o grupo, por um emaranhado de
apreciações entre seus integrantes. Percebe-se, linhas diversas que ligam, a partir de diversas
então, que o grupo político não é sempre um equações, todos os membros dos grupos políti-
todo homogêneo, podendo conter diferentes cos ao seu líder.

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Mas quem é líder dentro de um grupo po- e também por seu empenho em trabalhar por
lítico? Quando fiz esta pergunta a Francisco aprovações orçamentárias para todo o estado
Rocha, ex-assessor do deputado Vitório de Pernambuco.
Cordeiro e atual presidente do PHS em Esta experiência foi fundamental para meu
Monsanto, ele me respondeu prontamente: trabalho, pois pude perceber pela primeira vez
“um líder se faz por atos e fatos. Você não leu um conjunto de pessoas ao qual poderia atri-
Maquiavel?”. Para Francisco, a liderança é exer- buir o nome de “grupo político”. Pude então
cida, não tem receita para alcançá-la e, dentro depreender que os momentos de homenagem
de um grupo, é demonstrada pela população: a algum membro do grupo político, ou a algu-
“um líder aparece quando a população o reco- ma obra de sua autoria – principalmente em
nhece e, mesmo entre políticos já eleitos, exis- eventos de inauguração –, são extremamente
tem aqueles que expressam liderança, enquanto importantes para a visibilidade do agrupamen-
outros não”. Ainda segundo ele, para mantê-la to de pessoas que se conhece por grupo políti-
efetiva é preciso ainda estabelecer alianças com co. Essa visualização só é possível se adquirida
políticos de outros níveis de administração, seja alguma posição em relação ao grupo ou alguma
municipal, estadual ou federal. Atualmente, aproximação de seus membros. Isso porque,
concebe-se que o líder do grupo azul, o deputa- mesmo que se reconheça uma cor incutida
do federal Vitório Cordeiro, é aliado político do a cada um dos grupos políticos, elas não são
governador de Pernambuco, Eduardo Campos acionadas a todo momento6.
4
, enquanto o do grupo vermelho, o deputa- Importante frisar a grande dificuldade de
do estadual Paulo Beltrão, é aliado do senador apreender, cotidianamente e fora desses mo-
Armando Monteiro. Se, por um lado, o líder mentos de homenagem, o grupo político
precisa manter suas alianças e demonstrá-la por enquanto um conjunto visível, pois é um cole-
“atos e fatos”, o grupo precisa, por outro lado, tivo que não tem sede, reuniões periódicas ou
mostrar apoio ao seu líder, como me lembrou quantificação sistemática de seus membros. A
Francisco: “N’O Príncipe de Maquiavel já está partir das movimentações dos indivíduos que
escrito que os momentos de honraria são im- se classificavam como membros de um, pude
portante para os correligionários5. Demonstra perceber que apesar de não existir sede algu-
apoio, união”. ma que pudesse os acolher, diversos pontos de
Uma situação em particular expressou et- apoio eram utilizados no interior das estrutu-
nograficamente o que Francisco Rocha havia ras do poder municipal para manter sua par-
me dito. Ele e alguns membros do grupo azul ceria, principalmente a Câmara de Vereadores,
– principalmente meus contatos do escritório a Prefeitura e também o escritório político do
político do deputado Cordeiro e a presidente deputado Cordeiro. Ou seja, nos casos em
do PR, Lourdes Cordeiro –, me convidaram que algum membro do grupo necessitava de
para acompanhá-los em uma viagem a Recife, ajuda, auxílio, informação e até mesmo acon-
para participar de uma cerimônia na Câmara selhamento, recorria a outros membros que
Municipal. Nesta ocasião, o deputado Cordeiro ocupavam determinada função em algum des-
recebeu o “título de cidadão recifense”, uma ses órgãos públicos. No entanto é importante
homenagem prestada pelos vereadores do mu- ressaltar que a relação estabelecida com a es-
nicípio em reconhecimento ao trabalho pres- trutura político-administrativa se dava a partir
tado pelo deputado Vitório, por sua trajetória de vínculos pessoais prévios. Dessa forma, cada

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membro mantinha um acesso específico à bu- espaço para a realização de encontros. Outra
rocracia municipal, gerando assim um suporte prerrogativa que pode ser acionada, como me
que acarretava ganhos políticos para o grupo, informou Tomás da Cunha, assessor do depu-
mesmo que primordialmente embasado em tado Cordeiro, é que para a realização de reuni-
uma relação pessoal. ões e convenções dos partidos, é lícita e prevista
Lourdes Cordeiro, prima do deputado por lei a utilização de edifícios públicos.
Vitório, trabalha atualmente na secretaria de Apesar de constituir-se, principalmente, por
administração da prefeitura de Monsanto. meio de alianças entre famílias e entre partidos,
Entre os anos 2000 e 2008, foi chefe do es- existem pessoas que se aliam aos grupos políti-
critório de seu primo. Seria compreensível – cos de outras formas, independente da vincu-
sendo o deputado líder do grupo azul – que lação prévia a outros coletivos. As motivações
seus membros procurassem o mencionado que as levam a fazer tais alianças são muitas e,
escritório para contatar seu grupo, pois ali de forma geral, motivadas por circunstâncias
trabalham seus assessores diretos e a comuni- particulares. Contudo há uma recorrência sig-
cação com os gabinetes oficiais do deputado é nificativa de pessoas que se vinculam ao grupo
diária. Entretanto, segundo Lourdes, mesmo político pela possibilidade de conseguir um
depois de deixar a chefia, muitos a procu- emprego junto aos políticos em momento de
ram na prefeitura de Monsanto para conse- campanha. Essas pessoas procuram os candida-
guir qualquer tipo de informação e ajuda do tos para trabalhar durante o pleito e, a partir de
grupo político. Isso porque as pessoas que um vínculo formado durante as eleições, pas-
mantêm um vínculo mais próximo a Lourdes sam a compor o grupo.
sentem-se mais à vontade em procurá-la ao Graça é um desses casos, em que a ligação
invés de ir atrás dos funcionários que traba- estabelecida durante a campanha eleitoral foi
lham cotidianamente no escritório de Vitório mantida, e passou a ser importante também
Cordeiro. Era comum que ela telefonasse fora dos períodos eleitorais. Hoje com 25 anos,
para os assessores do deputado a fim de soli- Graça trabalha desde os 12 anos na política –
citar algum tipo de ajuda, assim como trans- como ela mesma diz –, “mentindo”. Quando
mitir informações de correligionários que a a prima e as amigas mais velhas começaram a
requeriam pessoalmente. trabalhar em campanhas, ela ficou com “mui-
A utilização da aparelhagem político- ta vontade de participar” e foi conversar com
-administrativa do município para manter a um candidato a vereador, membro do grupo
parceria do grupo político ainda sustenta ou- azul, que contratava temporariamente cabos
tra particularidade. Apesar de não existir uma eleitorais para fazer o porta a porta no bairro
periodicidade regulamentada das reuniões en- Da Ponte, onde Graça residia. Porém, uma vez
tre os membros do azul, há situações em que ela era menor de idade, não pôde ser contrata-
é necessário o agrupamento de diversos deles da. Como sua “vontade era muito grande”, pe-
para tomada de decisões7. Como me disse gou um título de eleitor emprestado de uma
Airton, um funcionário do Escritório político, das primas e apresentou-o ao candidato, que
essas reuniões ocorrem – na maioria das vezes aceitou contratá-la, mediante a constatação de
– na Câmara dos Vereadores, pois o grupo de que a dona do documento tinha 17 anos (ano
Cordeiro está vinculado a quatro vereadores do 2000). Desde então Graça trabalhou em todas
município, e não é complicado contar com esse as campanhas pelo grupo político de Cordeiro;

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há oito anos, a antiga chefe do escritório polí- Palmeira (1996, p. 51), tratam-se antes de
tico a convidou para participar das atividades “eleitores de votos múltiplos”.
cotidianas da instituição. Como seu vínculo O conceito de adesão trabalhado pelo autor
empregatício não era formal, tornou-se assesso- está ligado também a sua interpretação sobre a
ra da vereadora Lourdinha Cordeiro por conta política desenvolvida por meio de facções. Para
do trabalho realizado em sua campanha nas ele, a utilização de uma imagem associada à po-
eleições de 2008. lítica local, na qual duas facções confrontam-se
Pertencer a um grupo político é uma marca permanentemente, apesar do que podem con-
pública, apesar de ser uma decisão particular8, ter de verdadeiro, pouco diz sobre o significado
no limite em que mesmo que sua família ou seu desse tipo de ordenamento. Por isso propõe a
partido indique a participação em algum deles, utilização do termo tempo da política para evi-
impera a decisão particular dos atores. Isto é, denciar não só a marcação do período eleitoral,
os eleitores e pessoas envolvidas em diversos mas o momento em que as facções ganham
setores do município, não só o político, identi- operacionalidade e declaram o conflito aberto.
ficam facilmente os integrantes dos grupos. Isso não quer dizer, entretanto, que as adesões
Outro ponto que tento demonstrar é a e as facções se desfaçam no período não eleito-
forma pela qual os indivíduos, a despeito de ral, mas que o tempo da política é o momento
suas famílias ou partidos políticos, podem no qual as posições são assumidas, trocadas e
se aliar ao grupo. Para traçar minha análise renegociadas. Para aqueles que mantiveram o
utilizo o conceito de adesão, formulado por compromisso com alguma facção, é o tempo
Palmeira (1996, p. 41-55)9. O autor propõe, de amortizar as dívidas assumidas com os polí-
em relação ao voto, que este não se relaciona ticos das que proporcionam fluxos de trocas de
apenas com um ato isolado e individual, mas favores e bens, para além do período eleitoral.
a um modo de adesão, no qual, mais do que O autor, remontando aos trabalhos de Daniel
depositar o voto em um candidato, trata-se de Gross, ainda evidencia o modo de operaciona-
se posicionar dentro de uma parcela da socie- lização das facções na política local:
dade. Algumas ressalvas, no entanto, devem
ser feitas a essa utilização para tratar do grupo Criado um município, o seu “fundador” exerce
político em Monsanto; a principal delas é que um poder sem limites até o momento em que o
o trabalho de Palmeira estabelece o voto como chefe político de um distrito lhe comece a fazer
uma adesão; em meu caso de pesquisa, por se oposição. O acirramento do conflito acaba pro-
tratar de um período não eleitoral, não tenho vocando a divisão do município e garantindo
condições de utilizar o voto como ferramen- um período de paz a ambos os municípios, até
ta para instaurar algum parâmetro. Discuto que, em cada um deles, o processo se reinicie.
a adesão como uma ferramenta de inteligibi- Essa ideia de ciclo de uma facção não é estranha
lidade para os processos de vinculação entre aos políticos, mesmo quando a possibilidade de
membros e grupo político. Nos casos aqui fragmentação do município, por que razões seja,
apontados, discorro sobre somente a parceria não se coloca. [...] Quando aproximamos mais o
de membros que dispõem de algum tipo de nosso olhar – tendo, obviamente, como referên-
capacidade para agir exatamente no interstí- cia um tempo mais restrito – de situações como
cio de comunicação entre eleitores e grupos aquelas analisadas pela literatura, constatamos
políticos; para já entrar nas terminologias de que a polarização da vida da localidade do interior

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entre “situação” e “oposição”, em especial das se- oposição um ao outro – oposição esta que se
des dos municípios, parece ser um processo cor- torna mais evidenciada durante o que é con-
rente e generalizado e, também, que o exercício siderado, também entre meus interlocutores,
ou a pretensão ao exercício do poder absoluto e a época da política em Monsanto –, podemos
discricionário pelo adversário é objeto não apenas perceber que, pelo menos desde o fim da dé-
de denúncias, mas do medo de muitos dos que cada de 1980, indivíduos e partidos políticos
são “do outro lado”. (PALMEIRA, 1996, p. 42) ligados ao que se concebe como ideologia de es-
querda tentam produzir um novo conglomera-
Apesar de insistir sobre a dupla polarização do com força política comparável à dos grupos
operacionalizada pelas facções, Palmeira evi- políticos: a terceira via. É notável, entretanto,
dencia que elas são sempre cíclicas. Segundo o que apesar dos esforços em consolidá-la há, no
autor, se existe um traço consensual na litera- mínimo, 25 anos, ainda não se conseguiu cons-
tura – principalmente da ciência política e da truir uma articulação comparável ao tamanho,
antropologia dos anos 1960 e 1970 – é que influência e força política dos grupos políticos
as facções não são permanentes, mas podem da cidade. Isto não quer dizer, entretanto, que
passar por períodos de longa duração. Vincent a terceira via não seja um ator importante para
(2002) faz uma análise da formulação do con- a política de Monsanto. Ao contrário, é um
ceito na literatura antropológica e nos mos- objeto de preocupações e disputas, sendo um
tra que as facções são sempre pensadas como constante alvo de negociações e tentativas de
grupos fluidos recrutados oportuna e vertical- incorporação a um dos grupos.
mente por líderes a fim de disputar assuntos O segundo ponto de dessemelhança tem
específicos: geralmente duas entram em confli- relação ao que Palmeira coloca sobre o aspecto
to sobre um problema específico, desfazendo- das facções se reduzirem nos períodos não elei-
-se quando este é resolvido. Na antropologia torais em contraposição ao período eleitoral,
política, segundo a autora, o conceito aparece no qual se procura incorporar o maior número
como um termo técnico para designar um tipo de pessoas (2005, p. 456): “A facção fora do
particular de organização política, dentro de tempo da política se resume aos chefes políticos
um alinhamento político informal. Vincent e a uns poucos seguidores”. Isso também é ver-
afirma ainda que, mesmo que o conceito de dade para o caso de Monsanto, mas segundo os
faccionalismo tenha sido alvo de críticas, prin- dados que procurei apresentar ao longo desta
cipalmente por aparecer como um “lugar co- exposição, é muito importante manter parce-
mum” nas abordagens processualistas, ele teve rias ativas com alguns membros estratégicos do
importantes desdobramentos. grupo político – tanto aqueles que mantêm li-
A ideia do voto como adesão a um grupo derança em alguma localidade10, como aqueles
que se organiza como facção política, assim que ocupam posições na estrutura político-ad-
como formulado por Palmeira, poderia ser de ministrativa da cidade –, auxiliando os eleitores
grande valia para minha análise. Entretanto do grupo azul e consolidando a parceria entre
algumas divergências se apresentam entre essa os membros fora do período eleitoral. No meu
ideia e a análise aqui realizada. caso de pesquisa, este “esvaziamento” parece
O primeiro ponto de dissensão é que ape- acontecer antes por conta do afastamento dos
sar da configuração dos grupos políticos apre- eleitores nos períodos não eleitorais – alguns
sentar dois grandes conglomerados que fazem desses somente procuram o grupo político em

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caso de necessidade – e não exatamente de to- interesses particulares e partilhados sejam mais
dos os membros do grupo. facilmente acolhidos pela população.
Atualmente, são aliadas do grupo políti-
Gostos e Vícios Hereditários co azul as famílias Cordeiro, Cunha e Soares,
sendo a Cordeiro a mais importante dentro
Em Monsanto, as famílias são indicadas como da organização. No período de pesquisa de
o principal coletivo associado ao grupo político. campo, o azul estava se aliando a um políti-
No sertão do Pajeú, tratam-se de compósitos que co rival – Faustino Rodrigues –, pertencente
agregam não apenas pessoas que partilham de la- a uma família tradicional e uma das centrais
ços biológicos. São também arranjadas a partir do grupo vermelho. Apesar de ele lançar mão
de outros conjuntos de relações, como de vizi- de várias razões para justificar sua saída do
nhança, amizade e compadrio. As concepções de vermelho, a justificativa mais bem aceita pela
família estão sempre associadas a um território população era a possibilidade da união de sua
a que estas pertencem; mesmo que atualmente família, pois um primo seu já havia se alia-
muitos de seus membros não residam nestes lo- do ao azul e, desde então, os primos haviam
cais, o território é produtor de família11. rivalizado, disputando o mesmo cargo nas
De maneira geral, existe uma família cen- eleições.
tral que promove alianças políticas com ou- O grupo político não cria parentesco entre
tras da cidade para compor o grupo político. seus membros, mas pode atualizar laços entre
Essas que se colocam no centro do grupo são parentes distantes, tornando-os novamente fa-
descritas como famílias tradicionais ou famí- mília. Um desses casos é o de Vilma Cordeiro,
lias políticas. Contudo, nem todas as que es- parente dos Cordeiro por parte de pai e mãe.
tão dentro do grupo são tradicionais, ainda Apesar do pai sempre participar da política, seus
que sempre haja uma indicada como porta- vínculos com a família eram mais distanciados.
dora de maior tradição na política. No caso Entretanto, a partir de seu trabalho junto aos
do grupo azul, mesmo que a família Cordeiro candidatos, em sua maioria primos – também
não seja considerada uma família tradicio- com algum parentesco com a citada família
nal, muitos membros remetem-se a um tio –, Vilma foi aos poucos se aproximando dela
do atual líder, que foi político e fundador da e também de muitos assessores do deputado
UDN na cidade, para afirmar que a mencio- Cordeiro. Desta forma, começou a trabalhar
nada família tem tradição na política, mes- com sua equipe e, como me conta, às vezes se
mo que apresente um vínculo mais recente aproxima de um ou outro primo por conta de
no meio em relação às famílias centrais que uma eleição. Foi assim nas últimas eleições para
compõem o grupo rival. vereador, quando conheceu uma prima distan-
Segundo uma apreciação geral, o grupo po- te, sobrinha carnal12 do deputado, Lourdinha.
lítico seria produto de alianças entre famílias Vilma trabalhou em sua campanha, ajudou a
menos numerosas – ou com menor tradição elegê-la e hoje ambas mantêm um convívio
política – e famílias tradicionais, que visam próximo.
compor forças para realizar os interesses políti- Mesmo sendo comum que membros de
cos de seus membros. Tais alianças são concebi- uma mesma família aliem-se a um mesmo gru-
das como estratagemas ou particularidades da po, e até mesmo filiem-se a um mesmo parti-
política local, que têm como objetivo fazer que do, há casos em que essas equações entram em

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curto-circuito. Fred Cordeiro é um exemplo. correligionários como um político extraordinaria-


O atual vereador me relatou a grande dificul- mente habilidoso, seu irmão Antonio Cordeiro
dade enfrentada nas últimas eleições. Apesar era visto como um político nato, um tipo especial
de ter sido eleito e fazer parte do grupo azul, que conseguia o apoio dos eleitores até mesmo
no momento da eleição seu partido estava co- por atos atrapalhados. Antonio, apesar de ser
ligado aos que compõem o vermelho. Sua fa- reconhecido pelo seu gosto especial pela políti-
mília, entretanto, estava aliada ao azul. Desta ca, era também conhecido por ter problemas de
forma, como me apontou o vereador, mesmo alcoolismo, um vício atribuído ao seu núcleo fa-
que todos os pormenores e negociações de sua miliar, segundo me relatou Gilberto Cordeiro, o
candidatura tenham sido feitas por meio do irmão caçula do deputado Vitório. Desde nosso
grupo vermelho, ele não se via como aliado ao primeiro encontro, disse que era alcoólatra e que
grupo. Sentia-se impedido de apoiar o candi- não tinha problema em reconhece-lo. Na conti-
dato a prefeito deste, apesar de seu partido es- nuação dessa mesma conversa, Gilberto me con-
tar na coligação. Era impedido, por outro lado, tou que apesar do vício, seu irmão Antonio era
de subir ao palanque do grupo azul, apesar de muito respeitado pela população de Monsanto:
toda sua família – inclusive ele mesmo – apoiar
o candidato a prefeito deste grupo. Fred me Ele gostava de beber, mas também sabia fazer
disse, que apesar de todas as dificuldades, teve as coisas. Quando tava no bar, pagava bebida
de manter-se neutro e não subiu em palanque pra todo mundo. O que viesse pedir pra ele em
algum, mesmo que essa decisão pudesse trazer nome de Nossa Senhora da Penha ele dava, pois
grandes prejuízos a sua candidatura. era a santa de sua devoção. Uma vez, chegando
Como me apontaram diversos interlocuto- em casa de uma bebedeira, um homem veio in-
res de pesquisa, existem algumas famílias que vocar com ele e deu um tiro, que pegou na pare-
parecem conter certas aptidões especiais para a de. O homem foi preso, mas o Antonio mandou
política. O gosto pela política aparece como um soltar. Disse que do mesmo jeito que tinha sido
elemento que se transmite a partir da organiza- ele, poderia ter sido qualquer um, que não era
ção familiar, tanto pensado como transmitido culpa do homem, mas da bebida que ele tava
por meio de um laço biológico, como pela con- na cabeça. Mas a vida dele era a política. Você
vivência próxima de parentes que participam pode não acreditar, mas a casa do meu irmão
desta atividade. A partir de alguns relatos, é era tão cheia que ele não tinha tempo pra cagar.
possível entender que as aptidões para a política Sem brincadeira, uma vez cheguei na casa dele e
são um conjunto de qualidades, que parecem ele tava na privada conversando com as pessoas,
estar contidas no sangue, presentes na noção de tinha uma fila pra fora do banheiro. E além de
gosto. Essas aptidões, entretanto, aparecem ema- tudo ele ainda anotava o que o povo pedia no
ranhadas com tantas outras, que às vezes po- papel higiênico. Pode parecer brincadeira, mas
dem ser vistas como empecilhos ou dificuldades na casa dele a sala dele era sempre cheia de gen-
para a política, traduzidas pela noção de vício. te. (Caderno de Campo, Gilberto Cordeiro, 26
Contudo, os gostos e vícios aparecem em bons de março de 2010)
e maus políticos, dependendo da habilidade de
cada um equacionar suas habilidades e defeitos. Gilberto Cordeiro afirma que mesmo
No caso do grupo político azul, mesmo que o irmão tenha sido o melhor prefeito de
que o deputado Cordeiro seja visto por seus Monsanto, “poderia ter ido mais longe na

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carreira política se não fosse seu vício”. Essa, da família ou do grupo político começa a ser
aliás, é uma afirmação que ouvi de diversos pensada e articulada antes da morte ou da pro-
membros do grupo político, mas que não ela- ximidade de troca da liderança, pois abriga uma
boram essa frase como um juízo de valor, pois preocupação com a aprendizagem das condutas
Antonio Cordeiro é reconhecido dentro do gru- específicas do campo político.
po azul como o melhor prefeito de Monsanto, Desta forma, a sucessão desse líder é um fa-
pelo carinho e reconhecimento que recebia da tor de preocupação, principalmente por conta
população. da importância do vínculo existente entre os
Em relação às disposições ou característi- líderes e seus grupos. Corre-se o risco, como
cas pessoais atribuídas à noção de sangue, Ana me advertiram diversos colaboradores de pes-
Cláudia Marques (2002, p. 143-144) nos for- quisa, com a sucessão da liderança, que o grupo
nece uma chave de inteligibilidade bem im- enfraqueça e até mesmo deixe de ser atuante.
portante para ponderarmos como essa noção é A escolha pela sucessão do deputado Cordeiro
trabalhada no sertão do Pajeú. Para a autora, a me foi descrita como um momento interessan-
categoria de sangue está intimamente relacio- te de notar algumas características essenciais
nada a uma série de qualidades fundamentais, acerca das relações entre os grupos políticos e
como moleza, mansidão, brabeza e valentia, a família. Vitório Cordeiro teve três filhos, sen-
que, por sua vez, relaciona-se com o cálculo do duas mulheres e um homem. Porém este
presente em uma questão. Neste sentido, a ideia último nasceu com uma grave deficiência e fa-
de sangue carrega valores que não podem ser leceu antes dos 20 anos. As filhas não residem
vistos como positivos ou negativos, mas classi- em Monsanto e não demonstram interesse em
ficados como virtudes ou defeitos. participar da política, assim como nenhum de
Essa noção encadeada para relacionar quali- seus genros.
dades que podem ser partilhadas dentro de uma Segundo Tomás da Cunha, a família
mesma família, quando articulada no contexto Cordeiro tinha dois candidatos interessados em
da política, também apresenta uma dimensão tornarem-se os sucessores do deputado Vitório.
que parece apontar para além da herança bio- O primeiro era Heitor Cordeiro, médico, so-
lógica. Cañedo (2005, p. 480-485), ao discutir brinho carnal de Vitório e que sempre foi reco-
a herança política entre elites tradicionais de nhecido pela família como um homem muito
Minas Gerais, aponta para o caráter da aprendi- inteligente. O segundo era Toninho Oliveira,
zagem que aparece imbricada na ideia de heran- filho de um primo legítimo de Vitório, tam-
ça política. Quando a autora traça a discussão bém médico, reconhecido por promover even-
acerca de uma família descendente de um ma- tos e por ser uma pessoa muito comunicativa.
gistrado, coloca que a capacidade de confronto Segundo Tomás, existiu uma votação dentro do
diante dos adversários é vista por seus interlocu- grupo para saber quem seria o sucessor político
tores de pesquisa como uma capacidade adqui- do deputado. Essa votação aconteceu antes das
rida dentro de um complexo e longo processo eleições de 2002, na qual os candidatos foram
de aprendizado familiar. Tal aprendizagem se apresentados e os membros do grupo levanta-
relaciona às regras não escritas da política e não ram as mãos para escolher quem concorreria a
pode se dar em outro contexto senão no da prá- deputado estadual pelo grupo. Toninho ganhou
tica. Isso talvez evidencie uma característica da por maioria de votos. No sertão do Pajeú, como
política de Monsanto, onde a sucessão dentro mostrou Jorge Villela (2009, p. 220-221):

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Uma família que tenha pretensões políticas (con- seu pertencimento à política por meio dessas
correr a cargos eletivos) precisa, em primeiro estratégias.
lugar, se constituir, formar grupo, atualizar-se
como sobrenome. Em contraposição, qualquer Partidos, grupos políticos e coligações
agrupamento político precisa – ao menos até mi-
nha última estadia de campo em 2008, embora O grupo político difere de um partido,
houvesse para alguns intervenientes da política principalmente por não ter institucionalidade,
uma sensação de mudança cujos desdobramentos ou seja, não existe qualquer código ou regu-
ainda não eram capazes de elaborar claramente lamentação sobre sua composição, atividade
– criar-se a si mesmo como família. Mesmo um e também sobre seus componentes. Isso não
pretendente à política como atividade profissional quer dizer, entretanto, que se coloque em uma
precisa incluir-se num agrupamento familiar com posição externa aos códigos eleitorais ou legais.
“tradição na política”. Ou então família é capaz de Além das famílias, os grupos políticos tam-
constituir-se em torno de um pretendente ou de bém são compostos por partidos. Dentro de
formar com ele uma espécie de dupla captura, um cada grupo existe um partido central, ao qual é
funcionamento em que cada parte retire um naco filiado o líder, que tem maior força dentro do
de vantagens do seu parceiro e agregue ao bolo município, principalmente por ter um maior
uma porção específica de ingredientes. Em ato, es- número de representantes eleitos e alianças
sas exigências não são formuladas sob um discurso com políticos dos governos estadual e federal.
voluntário. Muitas vezes elas não aparecem sequer A partir do partido de maior projeção é que se
proferidas de modo unívoco, porque se compõem dão as alianças com outros, menores em núme-
de ações dispersas e a custo unificáveis – o que não ro de representantes eleitos.
quer dizer que elas superem, não ao menos neces- Em Monsanto, atualmente, o líder do gru-
sariamente, a reflexão dos intervenientes. po azul é filiado ao PR, e o líder do vermelho,
ao PTB. O primeiro é composto, principal-
Não apenas facilmente descritas pelos laços mente, pelos partidos PR, PHS, PRT, PSB,
de sangue, conexões intrafamiliares de peque- PTC, PRP, PSL e PSD. O segundo, por sua
no e longo alcance são realizadas com o intui- vez, pelos partidos PTB, PDT, PMDB, PSDB
to de fabricar uma legitimidade, por meio de e PTN. Essas alianças também são operantes
conexões entre parentes, encerradas na ideia durante o período não eleitoral, mas sofrem
de sucessão. Abélès (1991; 2001) demonstra grandes modificações quando se aproximam
que inúmeros são os caminhos para se acio- as eleições. Isso porque o grupo político agen-
nar uma identidade. Candidatos ou mesmo cia, entre os partidos, as coligações eleitorais,
políticos em exercício fazem constantes rela- mesmo que este não seja o único motivo que
ções entre suas identidades e a de mentores sustente sua parceria. Nem todo partido que
ou parentes que já tiveram alguma importân- compõe os grupos fará composição dentro das
cia, com o intuito de demonstrar determina- coligações do partido central.
da “vocação política”. Abélès nos mostra que Nas eleições municipais de 2008, as co-
tais acionamentos identitários demandam um ligações estavam nas seguintes disposições:
grande esforço dos políticos, que fazem e re- Coligação 1 – PR, PHS e PRP; Coligação 2 (+
fazem suas tramas e genealogias de parentesco Por Monsanto) – PTN, PMN e PRB; Coligação
até conseguirem legitimar, de alguma forma, 3 – PMDB, PSDB, PRTB, PV e PTC; e

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Coligação 4 (+ Monsanto) – PRB, PDT, PTB, com menor força no município está sujeito;
PTN e PMN. Num primeiro momento, ao apesar de ser constante a apreciação local de
analisar esses dados, podemos ter a impressão que estes atuam como partidos de aluguel, ou
de que cada grupo político divide-se em duas seja, partidos menores que somente servem ao
coligações durante as eleições municipais de interesse do grupo político, essa prática é sem-
2008. Entretanto, como me afirmou Zezinho, pre demarcada como uma ação prejudicial aos
membro do azul que se envolve com as forma- secundários e objeto de grande preocupação de
lidades partidárias no momento das eleições, seus dirigentes e filiados. Tal submissão é vis-
“nem todo partido político sai pelo grupo polí- ta também como algo do passado, a que todos
tico, pois o grupo faz uma só coligação”. os integrantes dos partidos secundários devem
Mesmo que apontado por diversos interlo- atentar e, na medida do possível, procurar se
cutores de pesquisa que os partidos aos quais são desvencilhar. Muitos dirigentes me relataram
filiados os líderes dos grupos tenham maior força que um mecanismo comum para escapar a
dentro do município, o número de filiados não tal condição é sempre defender que as candi-
difere muito entre os partidos centrais e os que daturas do partido sejam independentes. Isso
aparecem como secundários, de menor força po- quer dizer que existe uma grande preocupação
lítica por terem menor número de representantes de que os projetos diferenciais defendidos pelo
eleitos. No azul, por exemplo, o PR, que aparece partido não se misturem aos interesses do di-
como central, conta atualmente com 243 filiados, rigente do grupo político – e também de seu
enquanto o PSB conta com 318. No vermelho, partido. Para isso, segundo Roberto da Silva,
enquanto o partido de seu atual líder, o PTB, presidente do PV na cidade, é necessário que
conta com 219 filiados, o PDT, que tem menor as discussões com o grupo e os possíveis can-
número de representantes eleitos, conta com 584. didatos comecem antecipadamente, fora do
Levando em consideração o número de fi- período eleitoral, para que todos os interesses
liados no caso do grupo político azul, este alia diferenciais do partido, como projetos e ações
o partido central, o PR (243 membros), a dois que remetam a sua ideologia, sejam respeitados
partidos de menor número de filiados, o PHS e mantidos como a frente de ação dos futuros
(52) e o PRP (96). No grupo político verme- mandatos. Ainda segundo Roberto da Silva e
lho, estão aliados em sua coligação o partido também Omar Ferreira – presidente do PT e
central PTB (219), que se alia ao PRB (77 fi- único vereador de sua legenda –, é interessante
liados), PDT (584), PTN (282) e PMN (19). compor alianças com o grupo, mas não sair sob
Desta forma, o que podemos perceber é que a uma só coligação, pois este seria um tipo de
filiação partidária em Monsanto, por si só, não arranjo que permitiria avançar com as propos-
é capaz de determinar quais os partidos que tas diferenciadas de cada partido político, sem
exercem maior força no âmbito municipal. deixar de compor forças dentro dos grupos.
Segundo meus interlocutores de pesquisa, Francisco Rocha, presidente do PHS, e
principalmente aqueles ligados a partidos de também Tomás da Cunha, delegado do PR na
menor representação no município, os que se cidade, me disseram que é fundamental o mul-
aliam por meio dos grupos políticos sempre tipartidarismo para manter a estrutura do grupo
correm o risco de congregar forças para o be- político. Isso porque, para este, seja por meio de
nefício dos partidos de maior projeção dentro coligações, seja por alianças entre candidaturas
do grupo. Este é um risco a que todo partido independentes, é interessante apoiar as diversas

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lideranças da cidade para seu interior, principal- de favores e os interesses desses acordos são
mente aquelas que se interessam em candidatar- sempre individuais e sua formação pode ser
-se ao cargo de vereador. Nas eleições de 2008, produto da iniciativa de qualquer um dos par-
para citar um exemplo, foram 99 candidatos a ticipantes. A aliança torna-se forte quando se é
vereador. Se não houvesse mais de um partido capaz de manter um fluxo de troca de favores
na composição do grupo, segundo meus interlo- entre dois parceiros. São consideradas impor-
cutores de pesquisa, muitas dessas lideranças não tantes por unir os membros de determinados
poderiam se lançar como candidatos e poderiam tipos de grupos não-corporados e se fazem cla-
opor-se ao grupo. A partir de sua composição ras em momentos de conflito, onde se é neces-
por meio das alianças entre partidos ou coliga- sário tomar um lado envolvido no confronto
ções eleitorais, o grupo político pode dar conta (LANDÉ, 1977, p. XIX-XX). Ainda segundo
dos requerimentos de candidaturas de diversas Landé, um grupo não-corporado é um agrega-
lideranças na cidade, mantendo sua difusa es- do discreto, de múltiplos membros que parti-
trutura, que por não contar com uma estrutura lham propriedade, objetivos e deveres inerentes
institucional definida, utiliza-se de tais composi- ao grupo em sua totalidade. Todos têm direitos
ções – entre os representantes e lideranças locais. e deveres que dizem respeito ao grupo e estão
unidos em virtude de sua filiação comum e por
A política alargada sua obrigação partilhada de proteger seus inte-
resses e cumprir suas demandas.
Qual seria a melhor maneira de definir o que Desenvolvido por Mayer (1977, p. 43), o
são os grupos políticos? A antropologia proces- conceito de quase-grupos também é interessante
sualista pode ser descrita como estudos que pro- de ser aqui relacionado. Os quase-grupos dife-
curavam retratar estruturas políticas intersticiais, rem-se dos demais grupos e associações por não
suplementares e paralelas e suas relações com o contarem com uma estrutura reconhecível, sen-
poder formal, principalmente o poder do Estado e do formado a partir dos interesses ou modos de
instituições a ele vinculadas. Apesar de muito dis- comportamento comuns a seus membros. São
tante do espaço e tempo abordados nesta análise, egocentrados, pois sua existência depende de
este conjunto de pesquisas mostrou-se empenha- uma pessoa específica, que está presente como
do na construção de análises políticas a partir de um foco da organização central. Quando mais
processos dissociativos (contradições, competições de um membro está diretamente ligado direta-
e conflitos), que normalmente até então eram dei- mente ao ego, podemos caracterizá-los como o
xados de fora das análises da política. Os concei- núcleo do quase-grupo, e a fixação desse centro
tos de grupos diádicos não-corporados (LANDÉ, pode configurar a formação de um grupo. Se
1977) e quase grupos (MAYER, 1977) podem este não se desenvolver, podem ser vistos como
render maior inteligibilidade sobre a proposta de uma “panelinha”. Embora possuindo líderes, as
análise apresentada acerca dos grupos políticos. “panelinhas” não são corpos egocentrados.
O conceito de grupo diádico não-corpo- Mesmo que nenhum dos modelos pro-
rado desenvolvido por Landé visa descrever postos pelas pesquisas da Antropologia
processos políticos e sociais que são singulares Processualista possam nos servir de molde
às sociedades em desenvolvimento. Segundo o nesta análise, o exercício comparativo me pa-
autor (1977, p. XV-XVIII), uma aliança diá- receu pertinente. A proposta de Landé, apesar
dica é construída por uma relação de troca de assemelhar-se em diversos pontos de meu

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26 | Carla Souza Camargo

caso etnográfico, principalmente no que toca de suas formas de composição e atuação, os


às relações de parceria entre os membros do grupos políticos podem ser visualizados enquan-
grupo diádico não-corporado, revela não exis- to conformações que não se opõem ou ignoram
tir qualquer liderança fixa ou duradoura. Para práticas políticas legais, mas que as consideram
o caso de Monsanto, a liderança é um núcleo em seus movimentos de produção contínua.
a partir do qual se estabelece todas as relações
de parceria. Já a formulação de Mayer acerca Notas
dos quase-grupos apresenta vários pontos con-
1. A pesquisa foi realizada durante três meses no iní-
vergentes com meu trabalho, principalmente
cio de 2010, ou seja, fora do período eleitoral. Serviu
ao determinar um conjunto associativo que, de aporte para a dissertação de mestrado “Partidos
apesar de não ter delimitações claras ou uma e grupos políticos num município do Sertão de
estrutura dura, apresenta um foco central de Pernambuco”, defendida em 2012, sob orientação
organização. Entretanto, diferente dos grupos do professor Dr. Jorge Mattar Villela, no Programa
políticos em Monsanto, não há relações entre de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de São Carlos.
os membros – não se cria uma parceria – pois
2. O nome da cidade, assim como o de todos os colabo-
todos aparecem diretamente ligados ao ego. radores da pesquisa são fictícios. Tais alterações foram
Neste artigo, relacionei os grupos a diversos feitas para evitar o tom denunciativo deste texto, pre-
coletivos presentes na literatura específica ao servando a identidade dos interlocutores da pesquisa.
campo do político: redes, facções, quase-gru- 3. Grande parte de meus interlocutores de pesqui-
pos, grupos não-corporados e grupos diádicos. sa envolvidos na disputa considerava que a política
desenvolvida em grandes centros se daria antes por
Acredito que o exercício comparativo serve para
identificação a uma ideologia partidária ou partidos
evidenciar, ao mesmo tempo, algumas carac- do que por laços pessoais e familiares.
terísticas comuns a esses agrupamentos, assim 4. Apesar de atualmente o deputado Vitório Cordeiro ser
como mostram a particularidade do caso retra- associado à imagem do governador de Pernambuco
tado. Ao longo desta exposição, discuti que o por conta das alianças entre seus partidos, outras figu-
grupo político é um produto de alianças estabe- ras da política nacional também são a ele associadas,
principalmente por terem participado de um mesmo
lecidas entre famílias e também entre partidos. A
partido no passado.
família da liderança principal promove alianças 5. “Correligionário” é um termo polissêmico que desig-
com outras da cidade, assim como o partido po- na os membros de um grupo político. Não se é corre-
lítico principal do grupo político promove com ligionário por si só, sendo esta palavra utilizada para
aqueles secundários no município. Esses acordos designar que determinados indivíduos mantêm uma
estão sempre vulneráveis a modificações, ruptu- pareceria com outros membros de um grupo. Em ou-
tros momentos, pode ser usada em substituição da
ras e novas composições. A dupla polarização e
palavra “eleitor”.
o acirramento das rivalidades são especificidades 6. Muitos interlocutores de pesquisa remetem-se ao mo-
da época eleitoral, sendo o período entre eleições mento da eleição como de grande visibilidade dos gru-
momento de renegociações e recomposição de pos políticos por meio de suas cores. Dizem que toda
grupos políticos. Entretanto, como procurei mos- a cidade se divide conforme as cores daqueles aos quais
trar ao longo desta discussão, ao contrário do eleitores, correligionários, políticos e candidatos estão
vinculados. Neste sentido, a pouca visibilidade dos gru-
que se evidencia em algumas etnografias sobre
pos no momento de minha pesquisa talvez se deva ao
eleições, o período entre elas também é perme- fato de ter sido realizada em um período não eleitoral.
ado por composições e decomposições de alian- 7. Um desses episódios será debatido a seguir, na discus-
ças. Quando tomados a partir de suas práticas, são sobre as famílias dentro dos grupos políticos.

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Entre partidos políticos, facções, redes e famílias | 27

8. Essas decisões que chamo “particulares”, entretan- universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação
to, não podem ser tomadas como opondo-se às de- Liberdade, 2005.
terminações coletivas. Em certo sentido, todas elas FORTES, Meyer. The web of kinship among the Tallensi: the
são equacionadas dentro e a partir dos coletivos.
second part of an analysis of the social structure of a trans-
Desvincular-se de um, é ao mesmo tempo, aproxi-
mar-se ou ser incorporado a outro. Para uma des- -Volta tribe. Londres: Oxford University Press, 1949.
crição próxima sobre as conjugações entre famílias e HEREDIA, Beatriz M. A.; PALMEIRA, Moacir. O voto
política, verificar Villela (2009). como adesão. In: Canêdo, L. B. O sufrágio universal e
9. Também pode ser encontrado em Heredia e Palmeira a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade,
(2005: 453-476). 2005.
10. Que poderíamos relacionar ao que Palmeira (1996:
LANDÉ, Carl H. Introduction: the dyadic basis of clien-
51) chama de “eleitor de voto múltiplo”, pois, ao fa-
zer parte de um grupo político, carrega consigo outros telism. In: Schmidt, S. W. et al. Friends, followers,
votos. and factions: a reader in political clientelism. Berkeley:
11. Como apontado por Marques (2002) e Villela University of California Press, 1977.
(2004), a família é produtora de território e também MARQUES, Ana C. Intrigas e questões: vingança de fa-
este é produtor de famílias, pois no sertão do Pajeú as mília e tramas sociais no sertão de Pernambuco. Rio de
relações familiares estão dentro de um conjunto de
Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
retroalimentação com outros elementos, principal-
mente a política e a violência. MAYER, Adrian C. The significance of quasi-Groups in
12. “Parente carnal” é um termo que designa pessoas que the study of complex societies. In: Schmidt, S. W. et
partilham laços sanguíneos próximos. al. Friends, followers, and factions: a reader in political
clientelism. Berkeley: University of California Press,
Referências bibliográficas 1977.
PALMEIRA, Moacir. Política, facções e voto. In:
ABÉLÈS, Marc. Avoir du povoir politique. In: Segalen, Palmeira, M.; Goldman, M. Antropologia, voto e repre-
M. Jeux de Familles. Paris: CNRS Éditions, 1991. sentação política. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1996.
______. Un ethnologue à la assemblée. Paris: Odile Jacob, ______. Apostas eleitorais: notas etnográficas. S/D.
2001. VILLELA, Jorge L. M.  O Povo em armas. Violência e
BARNES, John A. Networks and political process. In: política no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro:
Swartz, M. J. Local-level politics: social and cultural Relume Dumará, 2004.
perspectives. Chicago: Aldine, 1968. VILLELA, Jorge L. M. Família como grupo? Política
BORGES, Antonádia M. Tempo de Brasília: etnografan- como agrupamento? In: Revista de Antropologia, São
do lugares-eventos da política. Rio de Janeiro: Relume Paulo, v. 52, n. 1, p. 201-246, 2009.
Dumará, 2003. VINCENT, Joan. Political anthropology. In: BARNARD,
CANÊDO, Letícia B. Ritos, símbolos e alegorias no A.; SPENCER, J. Encyclopedia of Social and Cultural
exercício profissional da política. In: ____. O sufrágio Anthropology. Londres: Routledge, 2002.

autora Carla Souza Camargo


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Campinas (PPGCS-Unicamp)

Recebido em 21/06/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

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Mímesis de si mesmos: a construção da


autorrepresentação imagética dos Paresi

Lorena França Reis e Silva


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

doi 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p29-46 Introdução

resumo Este artigo traz reflexões sobre a míme- Este artigo traz reflexões parciais de mi-
sis empreendida nas mise-en-scènes fotográficas dos nha etnografia de mestrado sobre o processo
Paresi (grupo indígena Aruak), em franco diálogo de construção das autorrepresentações ima-
com as primeiras imagens feitas sobre eles no início géticas do grupo indígena Paresi (Aruak),
do século XX, e na mise-en-scène performatizada do levando em conta noções próprias da sociabi-
concurso de beleza Miss Paresi Haloti, ocorrido em lidade do grupo. Partindo do contexto inicial
2012. Para cada contexto, eles escolhem quais os de participação num projeto de documenta-
sinais diacríticos mais adequados para conformar a ção fílmica do Museu do Índio – o Programa
relação que estabelecem com os seus outros. de Documentação de Culturas Indígenas
palavras-chave Mímesis; Autorrepresentação; (Prodocult)1 –, que demarcou minha entrada
Imagem; Paresi; Comissão Rondon. em campo, procurei refletir sobre o sentido de
engajamento do grupo na produção de ima-
Mimesis of oneself: the construction of Paresi self- gens sobre sua história e cultura.
representation A atuação do Prodocult entre os Paresi, que
se dá exclusivamente na Terra Indígena Rio
abstract This article reflects on the mimesis stated Formoso (Mato Grosso)2, já vem sendo esta-
through the Paresi (Aruak indigenous group) photo- belecida há alguns anos, passando pela orga-
graphic mise-en-scènes in dialogue both with the first nização do acervo existente sobre o grupo até
images of them produced about themselves in the be- o desenvolvimento de projetos de capacitação
ginning of the XX century, and through the performed para que os próprios membros dessa etnia pro-
mise-en-scènes in the Miss Paresi Haloti beauty contest, duzam suas fontes atuais de documentação.
occured in 2012. For each context, they choose which No início de 2011, dois indígenas – Joscélio e
diacritics signals are more appropriate to conform the Lucindo ­– ­terminaram a realização de um cur-
relationship established with their Others. ta-metragem sobre a cestaria tradicional Paresi
keywords Mimesis; Self-representation; Image; tohidi (filme homônimo), e deram continui-
Paresi; Rondon Committee. dade à etapa seguinte do Prodocult, iniciada
quando fui inserida como coordenadora. O re-
sultado final dessa fase tornou-se um filme com
Mímesis não significa a duplicação da realidade; duração de 32 minutos, intitulado Apareci –
mímesis não é uma cópia: mímesis é poiesis, isto é, A história dos Paresi-Haliti, cujo processo de
construção, criação. desenvolvimento foi minuciosamente aborda-
Paul Ricouer do em minha dissertação.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


30 | Lorena França Reis e Silva

Assim, iniciei a pesquisa orientada pelas ponham em cena? Como é que esses povos ajus-
questões – onde se localizaria a origem do de- tam contas com os conceitos metropolitanos, em
sejo de visibilidade que o grupo manifestava particular com as percepções metropolitanas de
expressamente?” e “por que participar de um conhecimento e cultura? (CUNHA, 2009, p. 355)
projeto de autodocumentação?”. Assim, depois
que as questões gerais do objetivo da pesquisa Sem a pretensão de responder detidamen-
estavam delineadas de acordo com meu interes- te esse ajuste de contas, os quadros analíticos
se antropológico, pus-me a relacioná-lo com as que se seguem sobre a elaboração da autorre-
que emergiam nas experiências e discursos de presentação visual e performática desse grupo
meus interlocutores. A pesquisa etnográfica e apontam para a sustentação de uma face volta-
bibliográfica apontou que a história do início da para as relações com os brancos e uma face
do contato dos Paresi com os brancos, por meio para a reinvenção de si mesmos. Dentre os va-
da Comissão Rondon, no início do século XX, riados contextos em que tal elaboração ocorre,
tem reverberações na memória atual dessa etnia elegi, para fim de análise desse artigo, as mise-
e no modo como produzem sua autoimagem. -en-scènes fotográficas dos Paresi, em franco
Concordando com Dominique Gallois (2002, diálogo com as primeiras imagens feitas sobre
p. 206), “neste contexto, não cabe ao antropólo- eles no início do século XX, e a mise-en-scène
go ‘descrever’, ‘traduzir’ ou ‘interpretar’ a cultura performatizada3 do concurso de beleza Miss
indígena, mas compreendê-la a partir das reivin- Paresi, ocorrido em 2012. Para cada contexto,
dicações e das alternativas colocadas por estas como veremos, eles escolhem quais os sinais
sociedades para a construção do próprio futuro”. diacríticos mais adequados para conformar a
Para se pensar essas fronteiras de identidade relação que estabelecem com os seus outros.
e alteridade continuamente negociadas, a di-
ferenciação semântica que Manuela Carneiro “No tempo de Marechal Rondon”: a
da Cunha (2009) faz entre cultura e “cultura” história narrada para a câmera
foi bastante útil para compreender o conceito
nativo de cultura e observar etnograficamen- Tão logo iniciei minha estadia em campo,
te como isso se tornou uma moeda de troca. em fevereiro e março de 2012, os relatos sobre o
Analogamente, é o que se verá, neste artigo, tempo de Marechal Rondon se destacaram entre
que ocorre com o uso da palavra tradicional: as narrativas orais dos mais velhos e simultanea-
quando a uso sem aspas, refiro-me ao sentido mente no desejo dos pesquisadores indígenas de
de um costume transmitido há várias gerações, transformar esse “tempo” em imagem. Quando
por vezes, baseado em ensinamentos míticos; soube que eu estava na aldeia Rio Formoso para
ao passo que as aspas deslocam o sentido para fazer um trabalho com vídeo, João Titi, um
a noção empregada pelo discurso dos Paresi. senhor Paresi que já mantinha contato com o
Ademais, procurei levar adiante as indagações antropólogo Marco Antonio Gonçalves e co-
postas por Carneiro da Cunha em contextos de nhecia, portanto, esse tipo de pesquisa, pediu-
produção visual dos Paresi: -me que fosse visitá-lo em sua aldeia, com a
câmera. Diante da demanda posta, as primeiras
Como é que povos indígenas reconciliam prá- tomadas para a realização do filme, feitas por
tica e intelectualmente sua própria imaginação Joscélio e Lucindo, sob a supervisão de um
com a imaginação limitada que se espera que eles instrutor (convidado para ministrar oficina de

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 29-46, 2014


Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 31

audiovisual no âmbito do projeto) foram sobre bem mesmo. Hoje nós está muito diferente. Hoje
as narrativas contadas por João Titi. nós está acabado. Naquele tempo de Rondon ti-
Ainda que sua voz tenha sido gravada por nha natureza. Rondon andava no território Paresi
diversas vezes durante minha pesquisa, num de e era tudo alegre, só cheiro de natureza, só cheiro
meus últimos dias de campo, João Titi pediu- de nativo. [...] Meu avô, meu tio andava muito,
-me para ir a sua casa gravá-lo novamente, antes caçava ema, veado, ovo de ema, pássaro. Ovo de
que eu partisse. “As pessoas precisam conhecer a gavião. Nós comia tudo naquele tempo lá. Não
história dos Paresi”, dizia-me em outras palavras. perdia nada! Qualquer filhote de bichinho nós
Enquanto eu e Jeferson (um antropólogo que estava aproveitando e comendo tudo. Naquele
me acompanhava à ocasião) arrumávamos a câ- tempo, eu vivia bem mesmo. Mas depois apare-
mera na entrada da aldeia, João Titi entrou em ceu Marechal Rondon, aí ele deu arma para nós,
sua casa e saiu de lá com uma mochila, flechas deu entidade [identidade]. Nós acostumamos.
e borduna. Os objetos marcaram as diferenças Ele distribuiu arma, facão, roupa, miçanga4.
para as outras gravações: da mochila ele retirou
as tornozeleiras de algodão cru e um carregador Esse trecho da fala do velho paresi indica
de caça (konokwa), e, com o auxílio de sua silen- muitas questões: em primeiro lugar, refere-
ciosa mulher, pacientemente foi se vestindo com -se ao encontro que marcou uma passagem de
os adereços tradicionais. Era preciso contar não modo de vida de seu grupo, o “antes” caracte-
apenas verbalmente, mas junto com o corpo. rizado pela diversidade de alimentos e melhores
Falar do tempo de Marechal Rondon, mas com a condições materiais/naturais para a reprodução
indumentária o mais próximo possível dos Paresi da cultura paresi, contrastado com o “depois”,
“verdadeiros”, “tradicionais”. marcado pela destruição de “natureza” e “gente”.
O figurino pronto, a câmera ligada, João Aceitar os presentes (arma, facão, miçanga) tam-
Titi começou: bém implicou enfrentar perdas de suas terras,
seus animais de caça e de pesca, e o início do que
No tempo do Marechal Rondon, o pessoal vivia viria a ser uma contínua e intensa adaptação de
bem. Hoje está tudo destruído. Por isso que eu suas práticas sociais. Em segundo lugar, essa pas-
vou contar como que era naquela época. Vivia sagem evidencia que há na figura de Marechal

João Titi e Maria Mulata se preparam com adereços “tradicionais” para iniciar a gravação. Fotos: Lorena França, 2012.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 29-46, 2014


32 | Lorena França Reis e Silva

Rondon a personificação do momento em que Rondon, e fotografias de uma viagem ao Rio de


passaram a enfrentar essas mudanças. Janeiro, em companhia de sua sobrinha, no iní-
Na sequência, nosso narrador continua: cio dos anos 2000, quando conheceram o acer-
“Eu conheço muito natureza, eu sou caçador, vo do Museu do Índio sobre os objetos de sua
muita caça aqui, muito peixe, campo”. A fra- etnia. Com a câmera de filmar desligada, João
se implica uma identidade: “eu sou” ou “nós, Titi mostrou para nós as fotos de sua viagem e o
Paresi, somos caçadores”. A atividade de caça livro com imagens dos Paresi à época de Rondon
é um dos aspectos que os definem como gente que foi copiado nessa ocasião, guardados como
(haliti)5 e, uma vez que ela está em iminente relíquias. Rever essas imagens “históricas”, con-
extinção, a situação do grupo fica ameaçada: sideradas provas incontestes de sua memória,
intensificou o processo de rememoração, cuja tô-
Tá filmando a menina do Rio de Janeiro. Eu estou nica era baseada em algo como: “nós, Paresi, éra-
contando toda a verdade que nós passamos. Isso mos assim, tal qual mostra a foto dessa mulher”.
vai acontecer, Brasil inteiro, vai prejudicar tudo.
Não vai ter planta, vai secar tudo, árvore, capim
nativo já acabou. Só chão mesmo. Hoje você estar
gravando é muito importante para nós. Isso vai
espalhar para todo mundo conhecer minha recla-
mação. Isso é muito importante para mim.

A continuidade do argumento de João Titi


traz ao menos duas questões que gostaria de des-
tacar: 1) as ações de devastação da biodiversidade
têm consequências impactantes que vão além dos
João Titi mostra para o pesquisador uma foto dos Paresi no tempo
limites do grupo: segundo esse prenúncio, nós,
de Marechal Rondon.
brancos, também sofreremos quando todas as
Foto: Lorena França, 2012.
plantas e rios se acabarem, restando apenas o chão
seco. João Titi pede que a “verdade” seja dita sobre
o passado e que o futuro seja compreendido a par- A imagem acima traz uma mise-en-abyme:
tir do entendimento desse presente/passado; 2) a a imagem dentro de outra imagem, enquadra-
reclamação dele irá ecoar em espaços imponderá- mento sobre enquadramento. Olhar devolvido
veis a partir da gravação de sua voz. “É importante” ao olhar. João Titi observa aquela mulher paresi
para ele próprio e para os Paresi a divulgação desse de 90 anos atrás, que restitui o olhar para a câ-
discurso. O poder da gravação – do audivisual – mera e para o fotógrafo com o qual tinha um
é evocado, por João Titi, para testemunhar sua encontro, e por meio da reprodução da mate-
fala. Como colocaria Jean-Louis Comolli (2008, rialidade da foto, indiretamente devolve o olhar
p. 144), é a “reprodutibilidade do encontro [que] para ele, seu descendente, como também para
nos garante a realidade. O registro é a sua incan- o jovem que acaba de entrar em contato com
sável testemunha”. o grupo. E, ainda, em última instância, retorna
Da mochila preta de João Titi também saiu, obliquamente o olhar para essa câmera (operada
além dos adereços usados, um livro fotocopia- por mim) que faz o último enquadramento. A
do, com muitas imagens dos Paresi na época de dimensão reflexiva do olhar, diz Comolli (2008,

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p. 82) é o “retorno sobre si mesmo, reflexão, e de fácil trato, em especial contraposição aos
repetição. Revisão”. É sobre o movimento exis- seus vizinhos Nambikwara, que na resistência à
tente entre “repetir” e “revisar”, produzindo a di- entrada da Comissão Rondon realizavam em-
ferença, que esse artigo quer versar. Mas, antes, boscadas para os soldados. Segundo a pesqui-
façamos um recuo histórico para compreender- sa documental realizada por Denise Portugal
mos melhor a relação dos Paresi com o passado. Lasmar (2011), o interesse dos relatórios da
Comissão consistia, então, em enfatizar o pa-
O encontro com a Comissão Rondon pel civilizador do exército e a capacidade dos
índios de absorver os conhecimentos repassa-
Segundo os registros históricos oficiais, os dos ou de desempenhar trabalhos que davam
subgrupos Paresi entraram em contato com os “produtividade” à região, como a agricultura e
colonizadores do Mato Grosso, pela primeira a empresa dos postos telegráficos. A conversão
vez, em meados do século XVIII, e posterior- dos índios em trabalhadores nacionais signifi-
mente envolveram-se em ciclos econômicos de cava ao menos duas vantagens para o projeto
extração da poaia e da borracha já no século positivista encabeçado por Rondon: 1) facilita-
XIX. No entanto, o marco histórico de contato va a governança após a “povoação” e a ocupa-
considerado por eles se deu no encontro com a ção ordenada dos espaços considerados vazios;
Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas e 2) provava a hipótese de que esses povos não
do Mato Grosso ao Amazonas, criada sob esse eram “bárbaros”, mas, sim, “civilizáveis”.
título em 1907, e comandada por Marechal Rondon encontrou os Paresi em 1907,
Cândido Rondon6. Os objetivos da Comissão quando alguns grupos viviam próximo a re-
consistiam, em primeiro plano, na estratégia giões sertanejas, “engajados na economia re-
militar de ocupação do território com a instala- gional como extratores de produtos florestais
ção de postos telegráficos, em regiões ermas do e sujeitos à maior exploração” (BARBIO,
território brasileiro. No entanto, com a expedi- 2005, p. 44), e outros grupos habitavam áreas
ção cumpriram-se também mais duas funções: mais reclusas e, portanto, mais bem protegi-
“a socioeconômica, favorecendo a expansão do das da devastação. De acordo com a política
capitalismo e incorporação socioeconômica da de atuação, Rondon convenceu-os a mudar
região Centro-Oeste ao resto do país; e a cien- suas aldeias para locais próximo aos postos
tífica, através do levantamento da flora, fauna, telegráficos, com a promessa de trabalho re-
topografia, hidrografia, culturas e variedade munerado. Em 1911, a Comissão fundou
etnográfica de uma região ainda desconheci- duas escolas na região territorial dos Paresi,
da” (LASMAR, 2011, p. 35) – desconhecida, uma no Posto de Utiariti e outra em Ponte de
cabe acrescentar, ao Estado nacional brasileiro. Pedra, nas quais se ensinavam a língua portu-
A penetração no sertão levou os soldados da guesa aos alunos de diferentes etnias – sendo
Comissão a adentrar, inevitavelmente, nos ter- proibida a comunicação na língua materna –
ritórios indígenas e a provocar o “contato” en- e as instruções elementares de manuseio aos
tre as nações indígenas e a sociedade nacional. Paresi, que eram os responsáveis pela manu-
Entre os primeiros grupos nativos contata- tenção das linhas telegráficas daquela região
dos pelo Marechal Rondon e seus expedicio- (LASMAR, 2011, p. 49). A mudança social,
nários estavam os Bororo, os Nambikwara e os territorial e econômica da vida dos Paresi
Paresi, sendo estes últimos considerados dóceis foi de tal magnitude após o encontro com a

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Comissão que fez o contato com os colonos foram os indígenas que orientaram a migra-
dos séculos anteriores ficar amenizado e dis- ção e a exploração econômica da chapada dos
tantanciado na memória do grupo. Paresi”. Além de guias, muitos deles foram ope-
No entanto, é interessante observar que radores nos postos telegráficos – e não apenas
o discurso dos Paresi sobre o contato com a vigias, posto de trabalho geralmente destinado
Comissão Rondon sofreu oscilações ao longo aos grupos nativos –, o que demonstra o domí-
do tempo. Segundo afirma Barbio (2005, p. nio dos conhecimentos técnicos ensinados nas
48), “num primeiro momento, Rondon não escolas fundadas pela Comissão. Nesse contex-
gozava de prestígio entre os Paresi”, que o consi- to, encontramos um reforço na distinção entre
deravam responsável pela abertura do território índios “bravos” e “mansos”, que perpassa todo
às explorações subsequentes. Embora tenham o discurso sobre a relação brancos/índios. Com
sido proibidos de falar a língua materna nas es- efeito, “esta nítida diferença imposta pelo dis-
colas de formação, forçados a adotar práticas curso paresi quer mostrar que o grupo teve ini-
que não as suas e a modificar seus costumes ao ciativa, participou de tomadas de decisões, se
longo da convivência com a Comissão, hoje igualando aos militares no papel de realizadores
os Paresi se referem positivamente a Rondon de um importante feito para a história do país”
como um grande homem e caracterizam o (BARBIO, 2005, p. 91). O contato privilegia-
“tempo de Marechal Rondon” – predecessor do torna-os mais importantes e, de certo modo,
até a sua chegada – como um tempo glorioso. agentes ativos da história oficial.
Como afirma Sylvia Caiuby Novaes (1993, A memória recente do grupo é marcada pe-
p. 22), se “a realidade se apresenta como uma los conflitos travados com os fazendeiros que
imagem caleidoscópica de objetos e seres vivos cercaram suas terras, os quais, contrastados com
em condições dinâmicas”, ela é percebida histori- um imaginário de boas realizações de Rondon,
camente pelos agentes que dela participam e tem ajudam a estabelecer uma contraposição entre
variações de acordo com a combinação dos ele- dois tipos de relação com os brancos, uma favo-
mentos que compõem um contexto. Assim, para rável à proteção e emancipação dos indígenas e
compreender essa mudança no discurso sobre o outra ligada exclusivamente à exploração.
Marechal Rondon é preciso trazer algumas ques- Inegavelmente, Rondon conseguiu consoli-
tões localizadas tanto na estrutura de organização dar um elo entre os subgrupos Paresi e o Estado
da sociedade paresi quanto na história de contato brasileiro. Se, por um lado, representava os ideais
com os brancos ao longo do século XX. positivistas da República Velha, pautados numa
Os Paresi se viam, ao longo da convivência proposta de integração nacional, por outro, ob-
com a Comissão, como parceiros do Marechal teve o respeito e a confiança dos indígenas ao
e se distinguiam dos demais grupos por terem procurar aprender suas línguas, ajudar na demar-
desempenhado funções que auxiliaram sua atua- cação de terras e valorizar o estudo de seus aspec-
ção. Eles foram os guias das expedições militares tos etnológicos. Até hoje se pode perceber entre
na mata do cerrado na região, tal como confir- os Paresi uma valorização de signos nacionais – a
ma o líder indígena Daniel Cabixi, na etnogra- bandeira e o hino – como uma consequência da
fia de Luciana Barbio (2005, p. 91): “Os Paresi influência do poder militar de Rondon. Eles são
foram os grandes guias das grandes expedições capazes de identificar Rondon a qualquer estátua
das linhas telegráficas do Marechal Rondon, que vejam: dois indígenas, quando estiveram no
dos poaieiros, dos seringueiros; os Paresi sempre Rio de Janeiro em companhia de Marco Antonio

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Gonçalves (2010, p. 102), pensaram que tudo de “Rondon distribui brindes para os índios
mais importante na cidade fora construído por Paresi, 1913. Álbum de 1922” é a inscrição da
Rondon e todas as estátuas fossem suas represen- legenda dessa foto publicada pela primeia vez no
tações. Pude presenciar algo semelhante, quan- álbum de três volumes intitulado Índios do Brasil8.
do, em visita ao parque Pão de Açúcar do Rio A cena, composta por doze pessoas9 – dois oficiais
de Janeiro, Lucindo perguntou-me se a estátua da Comissão e dez índios Paresi – é marcada por
encontrada ali era a representação do Marechal. um cruzamento difratado dos olhares entre sorri-
sos e semblantes interrogativos das pessoas que ali
Imagem inaugural estão. O instante fotográfico captou o momento
de entrega de um conjunto de miçangas nas mãos
As primeiras fotografias dos Paresi de que de uma índia paresi (que está dentro do semicírcu-
se tem registro datam exatamente da época de lo), enquanto a maioria das pessoas concentra-se
atuação da Comissão Rondon, dentro da qual no ato de presentear, que é quase o centro geográ-
havia um setor de documentação fotográfica fico da foto e certamente o seu centro simbólico.
e fílmica, encabeçado por mais de vinte anos Uma mulher e um homem paresi, que estão mais
pelo Major Luiz Thomaz Reis, para registrar próximos do gesto em questão, observam-no
os povos recentemente contatados pelo Estado com um sorriso, e um casal à esquerda do qua-
brasileiro7. A imagem seguinte remete jus- dro olha atento e instigado, com as cabeças tom-
tamente ao contexto que João Titi se referia badas para enxergar melhor o objeto repassado.
nas gravações: a entrega das miçangas aos in- Na extremidade oposta, uma mulher de vestido
dígenas. Ela tornou-se uma das imagens mais dá um largo sorriso para a câmera, ligeiramente
conhecidas da história documentada sobre a ofuscado por um conjunto de flechas (seguradas
Comissão, recebeu lugar de destaque no livro por alguém totalmente fora de campo) que se so-
sobre o seu acervo imagético, organizado por brepõe no primeiro plano da foto. Embora mal
Lasmar (2011) e certamente já foi vista por vá- enquadrada, essa Paresi é a única que demonstra
rias gerações de Paresi. relativa intimidade com o ato fotográfico e parece
se importar mais com ele do que com a dádiva
em si. A menina mais nova da cena, do lado di-
reito do quadro, está entre Rondon e outro ofi-
cial da Comissão, que segura suavemente, com
as duas mãos, a mão e o antebraço da menina,
demonstrando certo “acolhimento” das crianças
indígenas. O rosto dela está quase inteiramente
encoberto pelos cabelos lisos e voltado com apa-
rente curiosidade para as miçangas presenteadas.
Em contraponto, três meninas na parte infe-
rior da foto desviam os olhares do foco principal.
Uma olha atentamente para um ponto fora de
O encontro com a Comissão Rondon, a partir do presenteamento
campo. Para um terceiro oficial da Comissão, tal-
de miçangas.
vez? As outras devolvem o olhar diretamente para
Fonte: acervo Comissão Rondon/Museu do Índio. Foto: Major Luiz
o fotógrafo e a câmera. Com André Brasil (2013,
Thomaz Reis. 1913.
p. 2), diríamos que esse é um exemplo em que o

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antecampo aparece não pela aparição do diretor fotografia permite vislumbrar futuros que não
em cena, mas pelo modo “como o sujeito filmado se atualizaram.
devolve o olhar à câmera ou se dirige à equipe Foram a partir do conjunto de fotografias
tornando presente, quase tangível, aquilo que feitas nesse contexto que os subgrupos Wáimare,
não é concretamente tangível”. O duro olhar da Kaziniti, Kozárini, Warére e Káwali engendraram
menina que está sentada mais abaixo na posição a noção do que é “ser índio” perante os não-índios
do enquadramento sugere desconforto em ser fo- e do que é pertencer a um grupo de identidade
tografada. A outra mantém um semblante ques- mais abrangente: Haliti. Esse termo de autode-
tionador, como quem não compreende ou não nominação significa, numa acepção mais ampla,
aceita a circunstância de captura da sua imagem. “gente”, relacionado ao gênero humano, e, numa
Ao descrever essa diversidade de direciona- acepção mais inclusiva, também quer dizer “povo”,
mento dos olhares, os sorrisos ou suas ausências, para expressar a ideia de unidade entre todos os
conseguimos perceber a complexidade desse mo- subgrupos da etnia11. O tom idílico atribuído à
mento de encontro. Enquanto alguns estranham descrição do “tempo de Marechal Rondon” está
o regalo de miçangas, outros estranham o aparato relacionado diretamente à “baixa visibilidade” que
fotográfico. E, ainda, outros indígenas acolhem os Paresi consideram ter no cenário atual. Nesse
a situação, enquanto os oficiais da Comissão es- sentido, o discurso em tom “ressentido” se conecta
tão seguros de seu papel social ali desempenhado. com a projeção que fazem sobre o passado. A nos-
Sabemos que por causa das limitações técnicas da talgia, presente nos discursos paresi, existe sobre
fotografia do início do século XX, demandava-se um “passado” que só existe no presente. Dito de
um tempo longo de exposição para que a imagem outra maneira, não que seja um passado imagina-
se formasse no negativo de vidro e, portanto, as do, mas é certamente recriado.
cenas fotografadas eram planejadas e montadas A chegada da Comissão instaurou, a um
com antecedência, diminuindo o caráter de es- só tempo, o encontro deles com o Outro (ra-
pontaneidade conseguido pela tecnologia subse- dicalmente distinto) e a inauguração de uma
quente. No entanto, a encenação das fotografias autoimagem paresi. Instaurou-se, como diria
não impedia que certos semblantes resistentes à Comolli (2008, p. 144), o “grau zero e a cena
captura imagética se inscrevessem, o que pode ser primitiva”, o encontro filmado reproduzido
observado em diversas imagens com grupos indí- mecanicamente “à distância no espaço e no
genas distintos no acervo da Comissão Rondon. tempo”. Assim, esse momento inaugural da
Essa imagem especificamente foi envia- relação com o grande Outro dos Paresi assu-
da como presente ao “Exmo. Sr. General de miu marcas densas na memória coletiva do
Divisão Fernando Setembrino de Carvalho D. grupo, cujas nuances foram sendo recuperadas
Ministro d’Estado dos Negocios de Guerra”10 e atualizadas por meio da narração oral dos
como forma de comprovação da tarefa de “pa- mais velhos, direcionada aos mais jovens. A
cificar” os indígenas; de vencer essa “guerra”. memória, segundo Ecléa Bosi (2003, p. 36),
A partir desse momento, bem sabemos, ain- pode ser entendida como uma força subjetiva
da que a resistência tenha encontrado outras duplamente ativa e latente: por meio dela “o
formas de expressão, os Paresi passaram, gra- passado não só vem à tona das águas presentes,
dativamente, a cobrir seus corpos e a aceitar misturado com as percepções imediatas, como
presentes diversos vindos dos brancos. Mas também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocu-
o congelamento do tempo realizado pela pando o espaço todo da consciência”. É dessa

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maneira que o momento histórico de chegada


da Comissão Rondon ganha uma expansão no
discurso memorial e os Paresi precisam reto-
mar esse momento imagético inaugural para
reinventá-lo.

Mimetizações fotográficas

Desde que se intensificaram as pesquisas


acadêmicas com essa etnia, da década de 1980
para cá, seus membros habituaram-se a ver
imagens de todos esses tipos, com gradativa Angelina carregando criança na zamata.
intensidade, e assim formaram um olhar sobre Foto: Marco Antônio Gonçalves, 2001.
tais trepresentações. O conjunto de fotos que se
segue foi tirado em 2001 por Marco Antonio Segundo o relato do fotógrafo, as pessoas
Gonçalves e Els Lagrou em visita à aldeia Rio em cena prepararam-se, retirando as roupas do
Formoso12. cotidiano e vestindo a indumentária dos índios
antigos para (re)encenar a si mesmos no tempo
de Marechal Rondon. Por “(re)encenar” entendo
as encenações provocadas ou performadas pelo e
para o artefato imagético (fotográfico ou fílmico),
“uma vez que a própria tradição constitui-se como
um conjunto de encenações em constante reno-
vação” (CÉSAR, 2012, p. 89). A presença de uma
câmera de registro e de um pesquisador branco,
interessado na história do grupo, provoca o início
da narração como se o ato fotográfico os reportas-
se àquele momento fixado pela memória coletiva.
No entanto, a narração de palavras não lhes basta.
É preciso contar (duplamente, necessitar e narrar)
com o corpo, jogar com ele e por a mise-en-scène
no quadro. Como afirmou Gonçalves (2008, p.
71), a respeito de painéis pintados que aparecem
num filme de Jean Rouch, “a imitação dos ce-
nários enfatiza simultaneamente os sentidos de
cópia e realidade”. Nesse contexto, os artefatos
usados especificamente para a câmera criam certa
artificialidade para mimetizar e recriar o passado.
Os sujeitos fotografados e os sujeitos que operam
a câmera sabem que os primeiros não vivem assim
Jocélia carregando koho na cabeça. cotidianamente, mas a (re)encenação transforma
Foto: Marco Antônio Gonçalves, 2001. a memória em realidade materializada.

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A terceira fotografia trata-se de uma bela


pose para conter em um só quadro toda a di-
versidade de elementos característicos da cul-
tura “tradicional” paresi, usados por homens e
mulheres, velhos, adultos e crianças. O homem
que está ligeiramente à frente dos demais possui
pinturas de jenipapo nos braços, no tronco e no
rosto. Ele porta o maior cocar, com penas de co-
res contrastantes, uma saia masculina também
(Re)encenações dos Paresi “tradicionais” – Foto: Marco Antonio de penas de animal, e carrega no braço direito
Gonçalves, 2001. um arco com flechas. Giovani, na plenitude da
vida adulta, simboliza a força masculina do gru-
Na primeira foto, Joscélia, seminua, por- po, os caçadores de outrora13. João Titi, ao seu
tando apenas a xiriba e o colar de sementes no lado esquerdo, carrega, entre o braço e a cintura,
pescoço, apoia o koho sob a cabeça em frente à um cesto platiforme de desenhos não figurativos
hati (casa) para (re)encenar o tempo em que as (tohidi ou abali), um dos principais elementos
mulheres usavam o cesto trançado como princi- da cultura material paresi14. Maria Mulata, ao
pal cargueiro da mandioca, sem ajuda dos usuais seu lado, está com um vestido branco longo ao
carrinhos de mão. Seu rosto está pintado com estilo daquelas vestimentas doadas às mulheres
pequenas manchas de urucum, que são as pintu- durante os primeiros contatos, caracterizando o
ras corporais usadas ancestralmente pelo grupo processo de colonização e cristianização ao qual
para proteger o espírito da pessoa – essas “tra- foram submetidos. E Angelina, em contraste,
zem o espírito para a terra” quando a pessoa está posa com a xiriba e os seios à mostra, e também
doente. As pinturas no rosto de Jocélia indicam com um abali às mãos.
uma reencenação da saída da menina-moça após Tal como afirmou Amaranta César (2012)
a reclusão (hitxikwatidyo) ou de uma menina acerca de três filmes construídos sobre explí-
que esteve doente por longo período. citas encenações dos sujeitos filmados, a (re)
Na imagem seguinte, Angelina carrega na encenação da tradição pode ser vista “como
zamata (tipoia), sua sobrinha que tem um meio de acesso à memória e instrumento que
colar de miçanga cruzado em “x” no dorso, promove sua transmissão” (p. 89), o que se
exatamente como uma imagem do acervo da torna um elemento-chave para a abordagem
Comissão, utilizada no filme Apareci e analisa- documental. De forma análoga, a fotografia
da em minha dissertação (Reis e Silva, 2013). funciona como um dispositivo que aciona o
Franciane, na tenra idade, aprende a se para- desejo da (re)encenação de um passado co-
mentar com adereços – os demais estão visíveis mum longínquo, mas sempre atualizado.
na fotografia seguinte: saia e cocar de penas Afinada com a proposta da autora, interes-
de pássaros coloridas – que representariam os sa-me a (re)encenação da tradição “enquanto
traços distintivos da cultura material de seu ação catalisadora de falas e performances que,
grupo. As duas imagens dialogam diretamen- na sua capacidade de religar os homens e mu-
te com o conjunto de imagens das mulheres lheres ao passado, recolocam-nos à disposição
Paresi, quase sempre em frente à hati (casa), do presente, liberando um pensamento sobre
fotografadas pela Comissão Rondon. a diferença” (p. 91).

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As narrações começam, em geral, por “no (ARISTÓTELES citado por GAGNEBIN,


tempo de Marechal Rondon...”, uma fórmula 1993, p. 70). Gagnebin depreende dessa pas-
oral equivalente ao “era uma vez...”, que atuali- sagem que no pensamento aristotélico a míme-
za uma dimensão do tempo passado no tempo sis caracteriza em particular o conhecimento
presente. Se compreendermos o tempo na chave humano e possui, portanto, características da
deleuziana/bergsoniana, sua definição não se dá ordem do lúdico, do ativo e criativo:
pela sucessão cronológica de passado, presente e
futuro. O passado estaria, nessa concepção, numa Poderíamos dizer, nesse sentido, que o impulso
dimensão distinta e coexistente com o presente, mimético está na raiz do lúdico e do artístico.
de modo que este é o grau mais contraído daque- Ele repousa sobre a faculdade de reconhecer
le. Ou ainda, as dimensões virtuais de passado e semelhanças e de produzi-las na linguagem.
futuro coexistem com o presente e se atualizam A teoria da mímesis induz, portanto, a uma
(não por completo) nos acontecimentos. teoria da metáfora. Podemos avançar mais um
A mimetização de si mesmos, em outro tem- passo no caminho esboçado por Aristóteles e
po, foi a estratégia escolhida pelos Paresi para dizer que conhecimento e semelhança, conhe-
acessar e reinventar a história de contato que cimento e metáfora entretêm ligações estreitas,
viveram com os brancos. A mímesis, na antigui- muitas vezes esquecidas, muitas vezes negadas
dade grega, referia-se à “representação” artística (GAGNEBIN, 1993, p. 71, itálico no original). 
em geral, tendo a música como grande exemplo
da arte que “apresenta” a beleza do mundo; logo, Assim como em Aristóteles, o mimetismo
a sua tradução por “imitação” é bastante restri- é percebido por Walter Benjamin (1994), em
tiva, segundo Jeanne-Marie Gagnebin (1993). seu ensaio “A doutrina das semelhanças”, como
O impulso mimético, para o platonismo, é uma característica do aprendizado (as crian-
desencadeado pela própria beleza do objeto, o ças mimetizam as atividades humanas e não
que se contrapõe à visão moderna que enxerga humanas ao seu redor), do jogo, do prazer de
a arte como uma atividade essencialmente liga- conhecer: “O homem tem a capacidade supre-
da à subjetividade e criatividade de um gênio. ma de produzir semelhanças” (p. 108). Elas se-
Para Platão, a filosofia deve traduzir e reproduzir riam determinantes nas faculdades superiores.
o paradigma ideal, na concepção mimética do No entanto, tais semelhanças, já existentes no
pensamento, em contraposição à atividade mi- mundo, foram se modificando ao longo dos
mética artística ilusória (mythos versus logos). séculos. Suas leis, no conhecimento antigo,
Já em Aristóteles, a mímesis aparece rea- estavam desenvolvidas e guardadas em conhe-
bilitada como “forma humana privilegiada de cimentos mágicos e, portanto, não racionais,
aprendizado”. Ele não pergunta o que deve ser como a astrologia, a adivinhação e as práticas
imitado, mas como se imita. Para o filósofo, a rituais. Nas palavras de Gagbenin (1993, p.
representação da obra artística tem o seu êxi- 80-81), “Benjamin tenta pensar a semelhança
to devido ao desenvolvimento integral da ca- independentemente de uma comparação entre
pacidade mimética (mimeisthai): “O imitar é elementos iguais [...]. A atividade mimética
congênito no homem (e nisto difere dos outros sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se
viventes, pois, de todos, ele é o mais imita- reduz a uma imitação.” Não há necessariamen-
dor, e, por imitação, aprende as primeiras no- te uma semelhança entre a “palavra” e a “coisa”.
ções), e os homens se comprazem no imitado” Para a criança, a convenção de significados da

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palavra não está dada a priori, e por meio do os dois autores concordam que as máquinas de
corpo ela brinca com as sonoridades para des- imagem, produtos da modernidade, por meio
cobrir os significados. de suas possibilidades de ampliação, reprodu-
ção, congelamento ou alteração do tempo – fo-
Do lado da mímesis, no sentido amplo que tografia ou cinema, respectivamente – provêm
Benjamin deu a esse conceito, do lado de uma nova escola para os nossos poderes mimé-
Nietzsche certamente e talvez também de Freud, ticos. O processo desencadeado pela presença
encontramos uma lógica não da identidade, mas de máquinas fotográficas (ou fílmicas) possui
da semelhança, portanto uma concepção nunca uma relação estreita com os modos miméti-
identitária do sujeito e da consciência. [...] A di- cos. Ainda que a capacidade mimética seja um
mensão temporal não consiste tanto na linearida- modo de conhecimento antigo, como indicou
de, mas mais na contiguidade, não num depois Benjamin (1994), “a modernidade provê a cau-
do outro, mas num ao lado do outro. Nessa des- sa, o contexto, o significado e a necessidade de
continuidade fundamental há momentos privile- ressurgência – não a continuidade – da facul-
giados em que ocorrem condensações, reuniões dade mimética” (TAUSSIG, 1993, p. 20)17.
entre dois instantes antes separados que se jun- Em suma, se a mímesis, para além de equivaler
tam para formar uma nova intensidade e, talvez, a copiar e imitar, é da ordem de “explorar dife-
possibilitar a eclosão de um verdadeiro outro renças, ceder-se ao e tornar-se outro” (TAUSSIG,
(GAGNEBIN, 1993, p. 84, itálico no original). 1993, p. xiii), os Paresi mimetizam seus antepassa-
dos tornados outros de si mesmos para trazer todo
A mímesis produziria, assim, na acepção um conjunto de questões passadas – e desatuali-
de Benjamin, não uma cópia conforme, mas zadas – para o presente. As representações mimé-
uma semelhança que produz diferença, e mais: ticas criadas sobre si possuem estreita relação com
é por meio do corpo que a mimetização ganha a representação que se faz do outro que devolve o
seu alcance. Também na esteira benjaminiana, olhar. Como disse Sylvia Caiuby Novaes (1993, p.
Michael Taussig (1993) entende que a faculda- 21), “há, na verdade, uma relação de interdepen-
de mimética aparece como o princípio da antiga dência entre a imagem que se faz de si e a imagem
compulsão das pessoas em se tornar e se compor- que se faz destes vários outros”.
tar como outra coisa. Em suas palavras: “a habili-
dade de imitar, e imitar bem, em outras palavras, Miss Paresi: a mímesis performatizada.
é a capacidade de tornar-se outrem” (p. 19)15. Na
mímesis ou na “magia simpática”, a representa- Em agosto de 2012, os Paresi realizaram
ção assume as características e o poder do objeto na aldeia Rio Formoso o evento Miss Paresi
original e é um meio necessário para “o processo Haloti (“mulher”, na língua haliti), o primeiro
completo de conhecimento” (p. xiii). acontecimento desse tipo no estado do Mato
Taussig (1993, p. 20) cita Susan Buck-Morss Grosso. O concurso de beleza feminina abriu
para quem a “cultura de massa, atualmente, es- a candidatura a meninas de toda a etnia, que
timula e é afirmada duplamente sobre os modos deveriam se apresentar em trajes “tradicionais”
miméticos de percepção, nos quais esponta- e ser julgadas por um júri composto exclusiva-
neidade, animação dos objetos, e a linguagem mente por imoti (“brancos”).
do corpo combinando pensamento com ação, Quando estive na aldeia, em março do
sensualidade com intelecção”16. Nesse sentido, mesmo ano, conversei longamente numa tarde

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 41

com uma mulher paresi que mora na cidade com camisetas uniformes azuis, mas na passarela
de Tangará da Serra, filha de Justino (chefe do desfilaram sem blusa com as mechas dos cabe-
Formoso), e vai com certa frequência visitar os los e colares a cobrir os seios. Os adereços para
parentes na aldeia. O evento Miss Paresi foi enfeites foram escolhidos, dessa forma, de acor-
organizado por quatro jovens da etnia, mas do com os critérios estéticos “tradicionais” dos
Jaqueline Oloizomaierocê parecia se destacar Paresi, mas as posturas corporais das candidatas
no empenho da produção e foi ela quem fez (cabeça levemante inclinada para o lado e mão
questão de contar-me os objetivos e os deta- na cintura) para as fotografias são espelhadas
lhes da organização: “Você vê imagem de Paresi nas poses e trejeitos de modelos de moda e dos
nesses eventos de Jogos Indígenas? Vê imagem demais concursos de beleza feminina, nos quais
de Paresi na televisão quando fala de índio? se costuma usar luzes de holofotes e flashes, com
Só vê xinguano, Kayapó etc. Cadê os Paresi? muitos disparos fotográficos, para caracterizar o
Também queremos nos mostrar, mostrar as “glamur” da ocasião de desfile.
nossas belezas, o que a gente tem de bom para Jaqueline, em nossa conversa prévia ao
que todo mundo conheça os Paresi.” evento, disse que as candidatas se apresen-
Essas foram as primeiras questões apresen- tariam ao “natural”. Como se pode notar, o
tadas por minha interlocutora. Salta aos olhos termo natural não significa, como se poderia
um desejo expresso por visibilidade que se dá supor, sem adereços decorativos ou influências
em forma de competição com as demais etnias estéticas externas. Os corpos das meninas estão
indígenas por espaço de representatividade em longe de serem expostos “tal como vieram ao
canais midiáticos, de amplitude regional ou mundo”, o que as ligaria, em tese, ao campo
nacional. Jaqueline, em entrevista à rede de semântico “natureza”. Ao contrário, apresen-
televisão, também apresentou os motivos de tam-se, especialmente nessa ocasião, como re-
realização do evento: “Comecei a ver que tem sultado de uma fabricação social intensa.
tantas meninas bonitas. Por que não a gente mos- A opção enfática pelo desenho de pinturas
trar a beleza e a feminilidade do povo paresi?”. corporais, com motivos de pele de peixe e de co-
Nas imagens do evento18, pode-se observar os bra nas candidatas é um caso emblemático de uso
trajes das meninas vencedoras e todas as candi- estratégico da autoimagem Paresi. Durante meu
datas do desfile: usavam xiriba, pinturas corpo- trabalho em campo, nas aldeias, não vi ser execu-
rais com desenhos geométricos nas pernas e nos tada e nem mencionada na bibliografia pesquisa-
braços – algumas com as mencionadas pintas de da a prática da pintura corporal em momentos
urucum no rosto –, colares de miçangas, e tiaras, rituais ou cotidianos. No entanto, durante uma
braceletes, joelheiras com penachos e brincos – rápida visita aos Paresi com a dissertação impres-
todos confeccionados com penas coloridas, que sa, a observação das fotos do evento de Miss Paresi
compõem o artesanato feminino haloti. Há uma propiciou comentários explicativos sobre essa es-
predominância das cores amarelo e vermelho nas colha. Segue o diálogo que tive com Romero:
xiribas e nos adereços de penas, e todas portavam
tornozeleiras brancas. De modo geral, os itens de Antes não tinha essa pintura no corpo. Só tinha
vestimenta das candidatas foram confeccionados mancha de urucum para proteger na guerra ou
por suas mães, como aparece no depoimento de para curar doenças. Mas esse desenho a gente já sa-
Valdinéia para a matéria jornalística. Para algu- bia desde sempre, só que fazia no trançado. Tá ven-
mas fotografias, as meninas cobriram o tronco do aquele suporte de flecha ali [apontando com a

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42 | Lorena França Reis e Silva

mão]? É desenho de cobra. E são vários os dese- procurei mostrar anteriormente, hoje essa ca-
nhos que os Paresi fazem no Tohidi ou no Abali tegoria está dissolvida em distintas parcerias e
[cestos platiformes]. O Justino sabe fazer vários. O contatos. Assim, escolheram pessoas de notorie-
pessoal fala que os Paresi inventou esses desenhos, dade pública, entre elas uma procuradora fede-
mas não inventou. A gente só colocou os mesmos ral e a juiza federal do estado do Mato Grosso,
desenhos em outro lugar, no corpo. – “E por que para consolidar uma relação que possa garantir
resolveram mudar?”, eu perguntei. Porque chama a eles – não apenas, mas também – privilégios
mais atenção do público, na apresentação cultural. políticos. Os Paresi não foram os primeiros a re-
alizar um evento indígena de concurso de miss,
A “invenção” a que se refere Romero não mas o foram no Mato Grosso, e o pioneirismo
residia na forma do desenho, conhecimento é interessante para que o nome do grupo fique
partilhado ancestralmente entre eles, mas no marcado na história do estado e do país.
modo de exibi-lo. Inventar algo, modificar a
cultura “tradicional” paresi signfica, nesse con- Desdobramento político da imagem
texto, imitar uma prática de outras etnias para
potencializar a divulgação da autoimagem do Quando estive na T.I Rio Formoso após a
grupo. Não por acaso as pinturas ganharam conclusão da pesquisa, com exemplares da dis-
destaque na reportagem, referidas pela narra- sertação impressa para serem entregues, Angelina
ção da jornalista como “o detalhe mais impor- ficou ligeiramente envergonhada ao ver sua foto
tante da produção: a pintura corporal, que faz de 2001, com os seios à mostra. Mas para além
parte da pintura indígena”, o que ajuda a refor- da vergonha, sua observação cuidadosa de con-
çar a caracterizaração de “índio genérico”. juntos fotográficos que eu havia disposto ao lon-
O critério de escolha do júri, composto ex- go do texto (Comissão Rondon, as reencenações
clusivamente por imoti, também nos diz algo de 2001 e o evento Miss Paresi, de 2012) desen-
sobre a estratégia paresi. No discurso manifesto, cadeou preciosas explicações a mim, naquele en-
o argumento para essa escolha pauta-se na ideia contro. Ela dizia-me algo assim: “Lorena, vejam
de que haver parentes das candidatas no corpo as xiribas da época de Rondon e as usadas por
de jurados não seria aconselhável, o que poderia essas meninas no Miss. Não é a mesma coisa.
gerar ciúmes entre eles e conflitos por suspeitas A xiriba antiga tinha significado. Tudo tinha
quanto a critérios usados, enquanto, inversa- significado. Cada desenho era escolhido cuida-
mente, os brancos seriam pessoas “neutras” na dosamente por quem fazia. Se a menina usar o
relação, imbuídos do distanciamento necessá- desenho errado, pode ter hemorragia na mens-
rio para a escolha das mais belas meninas ha- truação”. Diante da foto de Jocélia carregando o
loti. Implicitamente, porém, essa opção revela koho, dizia: “ela está normal. Esse é o Paresi. Essa
o desejo dos Paresi em se tornarem conhecidos, tiara que estou usando, feita de pena de ema,
além dos seus limites territoriais, por meio do eu mesma que fiz, copiando dos Bacaeri. Mas
reconhecimento dos brancos. São estes que po- copiei pra vender, não pra usar!”.
dem legitimar essa visibilidade desejada porque Angelina acrescentou que as joelheiras (ka-
foram eles que ocuparam a relação de fundação thulari) presentes nas imagens do acervo da
do olhar do grupo sobre si mesmo. Mas se, no Comissão Rondon eram feitas antigamente com
início do século XX, esse “branco” estava “en- leite de mangaba e “usadas para fortalecer a ba-
carnado” na figura de Marechal Rondon, como tata da perna, não era só pra apresentação”. No

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 43

entanto, as meninas participantes do Miss Paresi de redefinição identitária no qual são reconstituídas
se apresentaram com tornozeleiras que, segundo as fronteiras tradicionais da alteridade, desestabili-
Angelina, só homem paresi usava antigamente. zadas por esse encontro (ALBERT, 2002, p. 13).
Ela olhava os colares, brincos e tiaras bem colori-
dos usadas pelas candidatas a Miss Paresi e dizia: Especificamente, na análise que procurei tra-
“usaram porque acharam bonito. Mas não repre- zer, essa “redefinição identitária” se dá nos quadros
senta nós. Se for representar mesmo, tem que imagéticos encenados. Os contextos abordados
ficar igual a Jocélia (na foto aqui reproduzida)”. indicam como essa etnia busca controlar preci-
Não se pode dizer que os comentários de samente o modo de visualidade da identidade ét-
Angelina representam as elaborações de seu gru- nica, para, “frente a frente”, “aparecer”, ganhando
po, no sentido de (não) ser fruto de uma co- visibilidade e, assim, tentar reverter uma relação
locação amplamente empregada. Ao contrário, desigual com os brancos. Os Paresi alcançaram,
sua fala expõe uma negociação interna, neces- a meu entender, aquilo que Gonçalves e Head
sária e contínua. A palavra “tradicional” tem (2009) chamaram de “devir-imagético”: “a fabu-
sido usada corriqueiramente por muitos Paresi lação de si como forma de autorrepresentação” e
para designar práticas recentemente incorpora- de redefinição da relação com o Outro.
das, mas que sugerem um retorno ao passado
e uma continuidade dos ensinamentos antigos. Notas
Essas práticas expressas, especialmente, no uso
de artefatos e trajes feitos com materiais orgâ- 1. O Prodocult é parte do Programa de Documentação de
nicos, naturais (colares de semente, saias artesa- Línguas e Culturas Indígenas (Progdoc), concebido pelo
nais de barbante, cocares de pena, arco e flecha Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio (Funai),
de madeira), são recuperadas estrategicamente e patrocinado pela Organização das Nações Unidas para
nos contextos em que seus usos proporcionarão a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e Fundação
maior visibilidade étnica aos Paresi, posto que Banco do Brasil (FBB). Conta também com a participa-
eles sabem que os imoti esperam essa correspon- ção de núcleos de pesquisa da UFRJ: o Núcleo de Arte,
dência à imagem indígena. E, por apostarem na Imagem e Pesquisa Etnológica (Naipe), coordenado pela
potência política das imagens, se paramentam professora Els Lagrou, e o Núcleo de Experimentação
para serem gravados diante das câmeras. em Etnografia e Imagem (NEXTimagem), coordenado
Em vez da mera sujeição aos parâmetros es- pelo professor Marco Antonio Gonçalves.
trangeiros induzidos pelo ideário colonizador, os 2. Os Paresi conformam um grande grupo de pelo me-
Paresi utilizam-se de recursos criativos que per- nos 1.955 indivíduos. Estão hoje distribuídos em sete
mitem uma redefinição dos parâmetros de rela- terras indígenas homologadas e duas em processo de
ção com os brancos. Como disse Bruce Albert demarcação no Estado do Mato Grosso, num total de
sobre uma domesticação simbólica da alteridade 1.146.027 ha. Fonte: <http://pib.socioambiental.org/
dos brancos, pt/povo/paresi/2031>. Acesso em 04 maio 2014.
3. A noção de performance tem sido utilizada por diver-
Na medida em que seus sistemas de construção sos autores da antropologia pós-moderna, tais como
simbólica do Outro constituem o quadro e a con- Victor Turner (1987), Richard Schechner (1985,
dição de possibilidade de sua autodefinição, as so- 1988), Clifford Geertz (1991, 2001) e John Dawsey
ciedades indígenas, ao confrontarem os brancos, (1999), valendo-se da análise sobre “encenações te-
têm, necessariamente, que passar por um processo atrais”, “dramas sociais” ou “eventos rituais” para se

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44 | Lorena França Reis e Silva

compreender a realidade social. Neste artigo não há de conjunto, criando três categorias de fotografias que
uma recapitulação conceitual da noção de performan- o compõem: “o índio selvagem”, correspondentes
ce, mas a utilizo no sentido dado por Geertz, para a imagens com pouca intervenção do autor, com os
quem a tentativa de compreensão da teia de significa- índios em suas vestimentas e locais habituais; “o ín-
dos, a qual se propõe o etnógrafo, baseia-se na leitura dio pacificado”, que consiste em imagens de índios
de sentidos do texto e do subtexto, ou da performance recebendo brindes; e “o índio civilizado”, composta de
e do contexto histórico e social na qual ela se insere. índios em escolas ou postos de trabalho.
4. Gravação realizada com João Titi em 21 de março de 9. Essa fotografia foi reenquadrada para a impressão do
2012. Preservo, nas transcrições, os traços mais mar- livro O acervo imagético da Comissão Rondon no Museu
cantes de oralidade. do Índio 1890-1938, de modo que uma mulher à di-
5. Romana Costa (1985, p. 137) afirma que os Paresi vi- reita do quadro não aparece nessa impressão. Para essa
viam, à época de sua pesquisa de campo, essencialmen- análise, no entanto, tomei como referência a foto ori-
te de caça e produtos de mandioca brava: “A atividade ginal consultada no acervo e utilizada no filme Apareci.
da caça é fundamental para o grupo local iyómowaké, 10. Inscrição retirada do livro de Lasmar (2011, p. 4).
pois além de ser básica para a dieta do grupo é fonte 11. Segundo consta da pesquisa de Max Schmidt, até a dé-
preciosa de matéria-prima para a atividade artesanal. cada de 1930 os subgrupos mantinham-se como uni-
A alimentação desse grupo consta basicamente de car- dades sociais separadas por territórios e com regras de
ne e derivados de mandioca brava”. casamento endogâmicas (COSTA, 1985). Os relatórios
6. As expedições de instalação de postos telegráficos na re- da Comissão Rondon referem-se aos subgrupos como
gião do Mato Grosso iniciaram-se antes da proclamação “parcialidades” dos Paresi, reunidas sob o pretexto das
da República e tiveram prosseguimento a partir de 1890, grandes festas de chicha. A partir do intenso contato
sob o comando do Major Ernesto Gomes Carneiro. com os brancos e das perdas territoriais, esses subgrupos
Cândido Rondon, aluno do positivista Benjamin passaram a casar entre si e a se misturarem. Atualmente,
Constant, passou a chefiar a 1ª Comissão Telegráfica em a divisão persiste entre eles (a maior parte dos habitantes
1900, que durou até 1906, e tinha como objetivo abrir da aldeia Formoso são Wáimare), mas não se faz marcan-
picadas e estabelecer locais de instalação dos postes, bem te nas relações com os brancos e demais etnias indígenas.
como mapear a topografia e os dados geográficos da lo- 12. As fotografias originais são coloridas, mas transformadas
calidade (LASMAR, 2011, p. 36). aqui em preto e branco para efeito de publicação. Agradeço
7. Acerca do conjunto iconográfico fotográfico e fílmico a Marco Antonio Gonçalves que gentilmente me cedeu
da Comissão Rondon, que contribuiu sobremaneira suas imagens para incorporá-las a minha pesquisa.
para a construção da imagem “oficial” do índio brasi- 13. É certo que hoje os homens Paresi também praticam
leiro, ver Tacca (2001, 2011). a caça, mas não com as flechas e seus arcos, em ca-
8. O álbum reúne as fotografias produzidas pelos agentes minhadas e acampamentos que duravam dias, mas,
da Comissão no período de 1907 a meados de 1940, de fato, com espingardas e deslocamentos de um dia,
embora seus dois primeiros volumes tenham sido pu- com carros motorizados.
blicados apenas em 1946. A organização das fotogra- 14. O abali é um cesto platiforme cujo padrão gráfico é
fias sem as suas respectivas datas e expedições indica “formado por linhas que não se cruzam, distribuídas
o esforço em construir uma narrativa coerente sobre em quatro setores iguais e espelhados, porém sem in-
a atuação “civilizadora” da Comissão, sem mencionar versão de figura e fundo” (ARONI, 2011, p. 51). O
que esta foi um conjunto de comissões chefiadas por tohidi tem a mesma distribuição espacial, dividido em
líderes e com objetivos diferentes (LASMAR, 2011). quatro setores, porém se constitui de alternância das
Ainda sobre esse álbum, Tacca (2011) faz uma análise taquaras pretas e claras, formando um grande número

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 45

de possibilidades de desenho com alternância entre Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
fundo e figura. A relação entre a confecção desses ces- Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
tos, a cosmologia e a noção de pessoa paresi foi bem BARBIO, Luciana. Identidade e representação: uma aná-
trabalhada na dissertação de Bruno Aroni (2011) e re- lise da sociedade Paresi através do discurso sobre as foto-
tomada na minha (REIS e SILVA, 2013) para tentar grafias de Marechal Rondon. Dissertação de Mestrado
compreender a significação da confecção do Tohidi, em Sociologia, com concentração em antropologia.
que se tornou objeto do primeiro filme feito no âmbi- Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
to do Prodocult sobre a etnia. Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
15. No original: “The ability to mime, and mime well, BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In:
in other words, is the capacity to Other” (TAUSSIG, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre litera-
1993, p. 19) – tradução minha. tura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo
16. No original: “Discerning the largely unacknowled- Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, p. 108-113.
ged influence of children on Benjamin’s theories of (Obras escolhidas, v. I), 1994.
vision, Susan Buck-Morss makes this abundantly BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicolo-
clear with her suggestion that mass culture in our gia social. São Paulo: Ateliê editorial, 2003.
times both stimulates and is predicate upon mi- BRASIL, André. Formas do antecampo: notas sobre a
metic modes of perception in which spontaneity, performatividade no documentário brasileiro contem-
animation of objects, and a language of the body porâneo. In: Encontro Anual da Associação Nacional
combining thought with action, sensuousness with dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
intellection, is paramount.” (TAUSSIG, 1993, p. (Compós), 22, 2013, Salvador. Anais... Salvador:
20) – tradução minha. UFBA, 2013. Disponível em: <http://compos.org.br/
17. No original: “Modernity provides the cause, context, data/biblioteca_2080.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2013.
means, and needs, for the ressurgence – not the conti- CAIUBY NOVAES, Sylvia. Jogo de espelhos: imagens da repre-
nuity – of the mimetic faculty” (TAUSSIG, 1993, p. sentação de si através dos outros. São Paulo: Edusp, 1993.
20) – tradução minha. CÉSAR, Amaranta. Tradição (re)encenada: o documen-
18. O leitor pode conferir uma reportagem televisiva fei- tário e a chamada da diferença. Devires – cinema e hu-
ta pelo canal Globo do Mato Grosso: Disponível em: manidades, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 86-97, 2012.
<http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2012/08/ COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – a inocência
concurso-de-beleza-indigena-escolhe-primeira-miss- perdida: cinema, televisão, ficção e documentário.
-da-etnia-pareci-em-mt.html>. Acesso em: 04 maio Seleção e organização de César Guimarães e Ruben
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Teixeira e Ruben Caixeta. Belo Horizonte: Ed.
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autora Lorena França Reis e Silva


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ)

Recebido em 07/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

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Uma aventura antropológica: a perda da inocência

Rose Mary Gerber


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p47-60 como elementos inescapáveis das afetações que


compõem o percurso de nos construirmos
resumo Este artigo é resultado de minha pesqui- constantemente como antropólogos. Para tan-
sa com pescadoras no doutorado em Antropologia to, tal escrita está dividida em quatro tópicos.
Social pelo PPGAS/UFSC. O objetivo é apresentar No primeiro, exponho algumas percepções so-
algumas reflexões sobre o exercício do trabalho de bre o processo indissociável de escrita e experi-
campo e da escrita como elementos que se interco- ência de campo em que os primeiros esboços,
nectam continuamente e que compõem nossa cons- nos quais registramos estranhamentos, dificul-
trução como antropólogos, tendo como exercício dades, percepções, são centrais como elemen-
central a etnografia. tos acionadores de nossa memória quando já
palavras-chave Antropologia; Etnografia; não mais estamos imersos em campo.
Campo; Escrita; Pescadoras. No segundo tópico falo um pouco sobre o
que denominei como sendo “Um campo e seus
The anthropological adventure: the loss of deslocamentos: deslocamentos em campo”, em
innocence que me vi instigada a descobrir e inventar meu
objeto mergulhando em uma pesquisa com
abstract This article is the result of my re- pescadoras, sendo que elas emergiam à medida
search with fisherwomen in the doctorate in Social que eu me deslocava pelo litoral catarinense,
Anthropology at PPGAS/UFSC. The aim is to pres- compondo um campo que não tinha, a priori,
ent some reflections on the exercise of fieldwork and uma definição. No terceiro, “Tempos de espe-
writing as elements that continuously interconnect ra e tempos de agito: sobre obstáculos episte-
and make up our construction as anthropologists mológicos”, me detenho em discorrer sobre os
having the ethnography as central exercise. meandros de meu campo, que é o mar, a par-
keywords Anthropology; Ethnography; Field; tir de onde me dei em conta de que teria que
Writing; Fisherwomen. lidar com muito mais do que a relação terra/
mar/praia. Para tanto, foi crucial ficar atenta
aos diferentes tempos e ritmos que preenchiam
Introdução aqueles espaços que percorri.
Por fim, no quarto tópico, “Uma aventu-
Este artigo advém dos resultados de minha ra antropológica, ou a perda da inocência”,
pesquisa de doutoramento realizada com mu- postulo que a etnografia se dá pela repetição e
lheres pescadoras no litoral de Santa Catarina, que fazê-la é estar presente de forma intensiva
Sul do Brasil. Meu intento é tecer algumas re- e repetitiva, haja vista que é o que nos permi-
flexões sobre a experiência de campo e a escrita te viver uma experiência densa, que inclui o

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


48 | Rose Mary Gerber

inesperado. Do que vivi, meu intento é com- por que este campo me escolheu?1 Estarei con-
partilhar uma pequena parte. seguindo compreendê-lo em sua amplitude? E
os que compõem seus meandros, até que ponto
Sobre as primeiras anotações em estão se dando em conta da proposta de pes-
campo quisa a qual me proponho2?
O diário de campo se tornou, no decorrer
Ao iniciar o campo, iniciei o processo de de meu tempo em campo, um confidente, um
escrita de minha tese, pois cada impressão espaço para registrar angústias, surpresas, ale-
inicial, suposição, sentimento, componentes grias, emoções, insights. As notas da caderneta
de meu estranhamento, foram matéria-prima e, em consequência, do diário, se constituíram,
para a composição de uma redação que buscou no decorrer do percurso que segui de idas e re-
ponderar questões alusivas à tríade ver, ouvir, tornos, o ponto de referência para tentar, já em
escrever (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006) campo, definir linhas de reflexão, melhor olhar
e aos meandros que fazem que seus primeiros o que havia olhado durante aquele dia e, pos-
elementos, ver e ouvir, sejam o norteador da teriormente, desenvolver a escrita, inicialmente
escrita. Porém também a escrita se intromete, é apenas esboçada.
iniciada e nos afeta (FRAVET-SAADA, 2005), A partir de rabiscos, rascunhos e notas é que
muito antes de nosso afastamento do campo me foi possível tecer uma narrativa que confi-
como processo de um estar lá. gurou um texto final denominado tese, cuja ur-
Desta forma, o diário de campo não se didura oscilou entre momentos de inspiração e
compôs e não é apenas um recurso material, transpiração fluidas e outros de impasses, perda
mas um espaço que vai sendo preenchido à momentânea da capacidade de articular pensa-
medida que o campo é vivido e experiencia- mento e escrita, sentimentos de que não con-
do. É uma espécie de recurso para lembranças seguiria chegar até o fim. Nesta oscilação entre
futuras quando já estaremos inseridos em ou- diferentes emoções, entre as quais uma persis-
tro momento, o da escrita. Portanto, em um tente angústia pelos retrocessos, alegria pelos
afastamento mais direto do campo. O diário avanços e temporalidades (BACHELARD,
de campo é, assim, central e faz parte da com- 1998), campo e escrita me permitiram viver
posição do que Cardoso de Oliveira (2006) experiência e reflexão.
denominou de escrever, pois a partir de ano-
tações ali feitas ter-se-á, muitas vezes, o ponto Um campo e seus deslocamentos.
de partida necessário para compor a redação de Deslocamentos em campo
nossos escritos imbuídos de um olhar e ouvir
atentos. Inicialmente pensei em discorrer sobre a
As anotações no diário nos permitem re- pesquisa de campo, descrevendo como che-
lembrar aspectos da chegada em campo, as guei lá. Mas então me questionei: lá onde? Isso
primeiras impressões, alguns sentimentos, difi- porque a pesquisa que empreendi, fruto de um
culdades, percepções, entraves, adaptações cor- diálogo contínuo com minha orientadora, le-
porais, reações, por vezes viscerais (LAGROU, vou em conta o campo iniciado no contexto da
1992). Contribuem para que, em dado mo- pesca e as sugestões da banca de qualificação. É
mento, nos perguntemos: como é que cheguei interessante rememorar que eu havia exposto
aqui, ou lá? Por que escolhi este campo? Ou, em uma das primeiras versões de meu projeto

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Uma aventura antropológica: a perda da inocência | 49

de pesquisa que o aprendizado do que então falar dela – produto dos antropólogos, mas, ao
denominei mulheres da pesca se daria de mulher mesmo tempo, produz a todos nós – trata-se,
para mulher, entre mulheres. No entanto, ao a antropologia, enfim, de um fazer e ser feito
conversar com as que embarcam e perguntar enquanto faz” (MENEZES BASTOS, 2010)3.
como aprenderam a ser pescadoras, as mesmas O fazer e ser feito a qual se refere o autor e a
me respondiam: com meu pai; com meus irmãos; descoberta e invenção em Calávia Saez (2009)
com meu marido. Isso me trouxe elementos para tem em comum o que considero o ponto no-
pensar sobre as redes de parentesco, as relações dal que viabiliza nossas criações, invenções, e,
de gênero e de transmissão e circularidade de como via de mão dupla, o sermos criados, fei-
saberes. tos e inventados: o campo. A criação aponta
Aliaram-se a esses aspectos a vontade de para a necessidade de estarmos atentos às si-
realizar uma pesquisa com mulheres que em- tuações que nele ocorrem considerando que é
barcam na pesca artesanal no litoral de Santa ali que emergem as afetações que condicionam
Catarina e o desejo de que os resultados de nossas experiências, positiva ou negativamente,
meu empreendimento venham a contribuir, mas cujo saldo nos trará subsídios para refle-
de alguma forma, com suas vidas e com o re- tir, escrever, rever sobre o que podemos extrair
conhecimento de sua existência como pesca- quando exercitamos o distanciamento pós-
doras. Meu propósito estava firmado: queria -campo no que, segundo Ricoeur (1977), é
saber mais sobre estas mulheres: pescadoras um “vis-à-vis não dado na situação do discurso
embarcadas. (mas) criado, instaurado, instituído pela pró-
Calávia Saez (2009) preconiza que a antro- pria obra” (RICOEUR, 1977, p. 57).
pologia tem como objetivo descobrir ou inven- Vi-me instigada a descobrir e inventar
tar objetos. “Descobrir porque o objeto, em meu objeto mergulhando4 em uma pesquisa
certo sentido, já está ali, em forma de algo que com pescadoras, sendo que essas começaram
atrai a atenção do pesquisador” (CALÁVIA a emergir à medida em que eu me desloca-
SAEZ, 2009, p. 14). Algo que nos faz ter os va pelo litoral de Santa Catarina, compondo
olhos, ouvidos, sentidos voltados para ques- um campo que não tinha, a priori, uma defi-
tões, detalhes, bordas, margens que, de certa nição. Ele não estava situado em um só local,
forma, nos afetam (FAVRET-SAADA, 2005). especificamente em uma só comunidade pes-
“Inventar porque ele só se define no diálogo queira. Seria, por isso, um campo dessituado?
entre o pesquisador e o nativo” (CALÁVIA Assituado? Multissituado? (MARCUS, 1986,
SAEZ, 2009, p. 14-15). 1998). Que contornos daria a este campo, cuja
O inventar ao qual se refere Saez diz respei- realização foi instigada pela vontade de saber
to a algo que, uma vez trazido à tona, de certa quantas e quem são, onde estão, como vivem,
forma ganha vida própria, apontando para a o que pescam, como pescam as mulheres que
busca e o estranhamento com que o antropó- embarcam na pesca artesanal catarinense?
logo cria seus nativos, mas é também por eles Fui seguindo pistas a partir do que me
criado; faz a antropologia, mas é por ela feito. apontavam alguns colegas de trabalho5 e pesca-
Tal argumento me remete a um diálogo como dores nas praias que percorri, além de trechos
o exposto por Menezes Bastos (2010), quan- de recortes de jornais e comentários sobre suas
do afirma que “seja o que seja nossa disciplina, possíveis existências. Não me desloquei de uma
ela não só é – e tem sido desde que se pode só forma. Pedi carona, fui de ônibus ou de carro

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próprio. Cruzei a BR 101 e também fiz traves- Tempos de espera e tempos de agito:
sias de balsas, dependendo de aonde queria sobre obstáculos epistemológicos
chegar. Em cima do mapa de Santa Catarina,
fui criando o percurso de meus deslocamen- Ao chegar ao meu campo, que é mar, me
tos e, por conseguinte, o de onde encontrei as dei conta de que teria que lidar com muito
pescadoras. Outras há, com certeza. As que en- mais do que a relação terra/mar/praia. Teria
contrei são mulheres que trabalham com seus que ficar atenta aos diferentes tempos e ritmos.
maridos, filhos, irmãos, genros, filhas. São suas Melhora do tempo; tempo bom; tempo ruim;
camaradas. Em alguns casos, elas próprias são mudança de tempo eram expressões que reme-
as mestras das embarcações. tiam não exatamente a questões de clima, de
Acabei concluindo minha pesquisa com 22 temperatura, mas usadas no sentido de tempo
mulheres entre 22 e 70 anos6. A maioria ini- bom para a pesca, geralmente aliado ao calor.
ciada na pesca muito cedo com seus pais, entre Porém, para alguns peixes, como a tainha, é
os 8, 9, 10 anos de idade. Duas são viúvas; as exatamente o oposto: quanto mais frio, me-
demais são casadas. Algumas alternam o tipo lhor. Ou mau tempo, definido como tempo
de pescaria, dependendo a época do ano e se ruim, que contava sempre um período de espe-
possuem redes apropriadas. Assim, existem as ra para que melhorasse. As épocas de agito com
que, passada a temporada do peixe, vão para movimentação diária devido ao tempo bom, por
a do camarão. Terminado esta, vão para outro conseguinte, preenchiam de diferentes ritmos
peixe. Poucas só trabalham com peixes; outras, meu trabalho de campo.
só com camarão. Trata-se de mulheres cujas Ingold e Kurttila (2000, p. 187-192), ao
trajetórias são pautadas por dificuldades eco- discutirem questões relacionadas ao conheci-
nômicas, de pobreza. Meninas que saíram da mento tradicional como advindos das práticas
escola, pois tinham que trabalhar e que hoje da localidade, citam os Sami, da região Norte
são, as mais velhas, semi ou totalmente analfa- da Finlândia, que usam a expressão weather
betas. Apenas uma havia concluído o curso de (tempo) em contraposição à expressão dos cien-
Pedagogia. tistas, climate (clima). Este, que é registrado pe-
Geralmente são as filhas mais velhas e fo- los cientistas, diz respeito a variáveis medidas,
ram chamadas sem que lhes perguntasse se como temperatura, precipitação e pressão at-
queriam ou gostariam de trabalhar na pesca. mosférica. “Tempo” diz respeito a calor ou frio,
Precisavam delas. E elas foram. Poucas se im- época de colheita, tempestade. Ao invés do pri-
puseram na pesca, mesmo os pais não que- meiro, registrado pelos cientistas, o segundo é
rendo que saíssem para o mar. A curiosidade experimentado pelo grupo como o ambiente,
por saber como é tal atividade lhes instigava obedecendo ao ciclo das estações. Os autores
desde cedo. Outras tiveram os maridos como postulam que não se trata de prescrições cul-
seus mestres no aprendizado. Algumas foram, turais, mas do conhecimento que vem da prá-
por sua vez, as mestras deles. Diziam-me que tica, das experiências de vida e do movimento
se acostumaram com o ofício. Ou que é só isso daquele lugar. Concordo com os autores sobre
que sabem fazer. Em comum, o riso, o bom este aprendizado se dar na prática, ocorrendo
humor e a jocosidade, aliados ao uso de ex- nas relações intra ou inter-geracionais. Consite
pressões como gostar, amar, ter paixão, vício em experimentação vivenciada em contextos
pela vida no/do mar. específicos.

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Ao que Ingold & Kurttila se referem como 1994 [1950])9 que compunha as muitas idas e
diferentes épocas que compõem uma expe- vindas foi me mostrando que não era eu quem
riência, Bachelard (1994 [1950], p. 133) de- definia, nem tampouco eles propriamente, mas
nominou ritmanálise, segundo a qual a vida é uma conjunção de outros fatores que, de cer-
ondulação. “O calendário das frutas é o calen- ta forma, faziam parte do que denominavam
dário da ritmanálise. A ritmanálise procura em tempo. Tratava-se de chegar no horário previa-
toda parte ocasiões para ritmos”. Os primeiros mente combinado, mas ficava-se à espera de
autores falam de época de colheitas; o segundo, algo que, no princípio, não entendi: todos, ou
de um calendário. Em meu campo, o que vi parados, ou conversando, esperando até que
dizia respeito a diferentes épocas que compõem o movimento se dava de forma muito rápida
um calendário anual de peixe, camarão, siri; quando corriam em direção às suas embarca-
calmarias ou tempestades; fartura ou escassez. ções. Era um matiz de luminosidade no céu
Uma ritmanálise que diz respeito à vida em que em que já não era noite, mas também de dia
o ciclo das estações é orientador não só dos pe- não se tratava. Naquela mudança sutil, saíamos
ríodos de ir ao mar ou esperar, mas da própria para o mar na Armação do Pântano do Sul, em
experiência de quem vivencia esses tempos. Florianópolis, neste tipo de pesca10.
Tempo bom ou tempo ruim dizia respeito às Em Barra do Sul, nas saídas para ver as re-
épocas de fartura ou escassez de pescado, sendo des que tinham sido colocadas no dia anterior
que o verão era considerado a melhor ocasião próximo ao costão, o horário orientador era
pois, com o aquecimento da água, os peixes em torno de seis horas da manhã, mas a saída
migravam e entravam, facilitando a pesca. dependia de fatores como o clarear do dia alia-
O inverno, período mais difícil para as pesca- do à situação de mais ou menos agito na saída
doras que acompanhei, era a época de miséria7. da barra11, considerado o local mais perigoso,
Porém é mais do que isso. O tempo se destrin- pois se trata de passar a fronteira da tranquili-
chava para além de bom ou ruim. Percebi que dade do abrigo que está antes da barra e o mar
a marcação cronológica dos relógios, que eu aberto. Já para sair para a pesca do baiacu em
buscava definir com elas para saber quando São Francisco do Sul, dona Paulina poderia sair
sair ao mar, era um tempo aproximado que me às sete, às nove; voltar às dezessete, às vinte ou
davam como referência para me orientar, mas às vinte e duas horas, dependendo do nível da
o que contava, na prática, era a observação de maré. Tempos que não seguem o determinado
mudanças muito sutis na luminosidade do céu. crono do relógio, mas que se definem pelo rit-
As saídas para o mar, inicialmente combinadas mo cronos (LEACH, 1972)12 que o começo do
para às cinco da manhã, em Florianópolis, por nascer do dia, a agitação na saída da barra ou o
exemplo, se mostravam mais complexas do que movimento das marés indicam. Ou que a fúria
eu estar naquele horário na praia. “O tempo do mar impede.
era simplesmente algo que não podia ser con- As pescadoras13, ao mesmo tempo em que
signado” (BARLEY, 2006, p. 101)8. estavam diariamente sintonizadas com o que
Guardadas as diferenças, recorro a Barley os meteorologistas diziam, comentando a pre-
(2006) no sentido de expor o quão difícil era visão do tempo: bem que disse; bem que avisou;
conciliar a angústia por querer avançar no tra- acertou mesmo; errou feio, trabalhavam e obser-
balho de campo e o tempo necessário de es- vavam ciclos e mudanças constantes em que a
pera em que a temporalidade (BACHELARD, composição era sempre plural14.

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Não há vento. Há qualificações de ventos: de como estiver, é impossível se arriscar e sair


sul15, nordeste, este, leste, rebojo, lestada, terral, para fora, como costumavam dizer. Há ven-
conforme explicou dona Merabe. tos mais temidos, de um modo geral, como
o leste, também chamado de lestada, e o ter-
Lestada é o vento que mais deixa o mar agitado; ral, que vem da terra. Chegam com força e
traz tempestades que costumam durar muitos permanecem dias, impossibilitando qualquer
dias seguidos, às vezes quinze dias, mas é o que atrevimento no sentido de tentar a pesca.
traz fartura, traz tudo. Com o vento terral não dá Os pequenos barcos são puxados para os ran-
para pescar. Ele só leva a pessoa para fora, para o chos ou amarrados e ficam em descanso até
golfo do mar. É um vento que vem da terra e dura que o tempo melhore. Para tanto, é preciso
cerca de três dias. O rebojo é um vento que não que o vento mude, pois contra vento, só ou-
dá para ir para fora. Ele não engrossa o mar, mas tro vento.
é muito forte. Também não traz nada; só leva, e Os diferentes tempos, de maré alta ou bai-
dura cerca de dois dias. Entre o sul e o leste, seria xa, de vento nordeste, sul, terral, lestada, inter-
o rebojo. Rebojo por quê? Porque reboja, como ferem nas saídas para o mar. Mas não se trata
uma máquina lava. Na época da tainha é bom de um período de espera ociosa, porém reple-
para trazer ela (Merabe, 60 anos, Barra do Sul).   to da agilidade dessas mulheres em remendar
ou fazer redes, lavar roupa, preparar comida,
Segundo Safira, que viveu por vinte anos em comprar mantimentos, olhar a embarcação
uma ilha e que observava diariamente as fre- averiguando se tudo está bem. Não havia um
quentes mudanças do tempo, ao explicar sobre momento de descanso definido no que diz res-
as diversas formas de manifestação do vento, peito a “fim de semana”. Era o tempo bom de
contou-me que há, inclusive, briga de ventos. pesca que guiava os dias de trabalho, inclusive
sábados, domingos e feriados, assim como o
Passava vinte minutos, meia hora, de vento sul. tempo ruim dava uma trégua nas idas ao mar.
Daqui a pouco, o nordeste vencia o sul. E pelo Essas diferentes temporalidades interferiam
nordeste que está forte, já se sabe como o sul vai diretamente no tempo que eu levava para rea-
entrar. Outro dia a gente vê: hoje a briga já está lizar o que era previamente combinado com as
diferente! A briga é este/sueste. Entre o leste e o mulheres, pois quando me diziam que o tempo
oeste tem o norte, que os antigos aqui chamam não estava bom, queriam dizer que teríamos
de nortão duro. Não é de pegador como o leste. que dar, de fato, tempo ao tempo, e esperar a
O nortão é temporário. Tem o noroeste, que é melhora do vento, da maré, do mar agitado.
um vento quente, que fica entre o terral e o nor- Cardoso de Oliveira (1995) propõe, entre ou-
te. É um vento doentio, quente, de novembro, tros objetivos, mostrar “os limites do méto-
dezembro; traz a mutuca16. Para nós, o melhor do, ou [...] o que poderia estar em seu lugar”
é o nordeste porque é seguro, o tempo firme, (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995, p. 2).
água quieta, limpa, calmaria. É mais no verão. As contradições, a diversidade, as inquietações
É um vento que limpa o tempo (Safira, 38 anos, que emergem quando estamos no exercício do
Barra do Sul).   trabalho de campo contribuem com o apren-
dizado de nosso ofício. Fazer um campo, que é
O vento influencia as mudanças para o su- mar, exigiu-me muita paciência e um exercício
cesso ou insucesso da pesca, pois, dependendo contínuo de espera e observação antes de ser

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acionada pelas mulheres para o que inicialmen- precisamos estar atentos ao processo de cons-
te, a meu ver, constituía participar de seus coti- trução do conhecimento científico em que
dianos, o que, às vezes, me deixava angustiada emergem contradições, erros e insuficiências.
pela sensação de não estar fazendo coisa algu- É preciso honestidade e paciência, fazendo-se
ma a não ser observar e esperar. central buscar formular bem os problemas e
Inquietava-me constantemente pois, de conviver com uma constante reformulação de
meu ponto de vista, me sentia perdendo tem- perguntas, pois tudo é construído e reconstru-
po. Uma espécie de agito interior me irritava. ído continuamente. “Todo conhecimento é
“Odiava desperdiçar tempo, detestava perdê- resposta a uma pergunta. Se não há pergunta,
-lo” (BARLEY, 2006, p. 101). Muito distante não pode haver conhecimento científico. Nada
da sensação de aventura nas saídas para o mar, é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído”
ficar esperando me fazia sentir que faltava algo, (BACHELARD, 2008, p. 18).
que havia uma espécie de incompletude nos
momentos, mais de observação do que de par- Uma aventura antropológica: a perda
ticipação, até que busquei me aquietar e viver da inocência
apenas o que estava me sendo disponibilizado.
Foi aí que os tempos de espera se converteram Ao discutir questões relativas à necessida-
em muita conversa, pelas quais passei a com- de de uma contínua discussão teórica sobre
preender os meandros de suas vidas, observan- os caminhos da observação participante em
do e experimentando o que faziam enquanto que postula que é necessário valorizar tanto a
se esperava o tempo melhorar, instigando-as a observação quanto a participação17 e que de-
contarem-me sobre suas vidas e por que opta- seja saber por que a observação participante
ram por embarcar ao invés de atuar em terra. se transformou em participação observante,
Enfim, tempos de escuta de narrativas sobre Cardoso (1988 [1986], p. 101), se remete ao
aventuras vividas, dores, alegrias, dificulda- texto de Da Matta (1978), comentando que
des, aprendizados. Por vezes, elas choravam. o autor mostra que nossa formação postula o
Outras, era eu quem não conseguia me conter planejamento do trabalho, mas não nos prepa-
com as suas narrativas, o que fazia, por vezes, ra para ver com olhos críticos nossos humores,
meu humor oscilar entre a solidariedade e uma cansaços, infortúnios.
profunda angústia, solidão e decepção comigo Segundo a autora, às vezes os relatos se limi-
mesma por não ter me contido. tam às aventuras dos antropólogos sem colocá-las,
Era uma constante eu me perguntar: estava de fato, como etapas do conhecimento, etapas es-
fazendo bem feito o que fazia? Estava utilizan- tas que compõem o processo dado em um ques-
do-me corretamente do método etnográfico? tionar-se contínuo. Bachelard (2008) se propõe a
Seria aquela a melhor forma de fazer o campo mostrar o que chama de dificuldades das abstra-
ao qual me propunha? Agitava-me uma angús- ções corretas “ao assinalar a insuficiência dos pri-
tia por desejar ter uma resposta certa que con- meiros esboços, o peso dos primeiros esquemas,
seguisse esclarecer as muitas questões, mesmo ao sublinhar também o caráter discursivo da coe-
quando ainda estava tão incipiente meu traba- rência abstrata e essencial que nunca alcança seu
lho de campo. Sobre esse constante questionar- objetivo num só golpe” (BACHELARD, 2008,
-se, Bachelard (2008), ao discutir o que definiu p. 8). Barley (2006), por sua vez, diz que se trata
como obstáculos epistemológicos, afirma que de erro e revisão constante.

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Eu acrescentaria que é o próprio campo A nossa Aventura Antropológica pode lembrar a


que se encarrega de nos colocar repetidamente visão romântica que cerca os antropólogos, quase
em estado de atenção e autorrevisão. O dia em sempre confundidos com excêntricos aventureiros
que o mar me mostrou sua força permitiu-me que se lançam em estranhas viagens por regiões
avançar em questionamentos sobre os limites desconhecidas ou espaços urbanos inabituais.
de minha observação que se queria também Mas, mesmo rejeitando estas pinceladas român-
participação, entendendo ambas como centrais ticas, não seria enganoso dizer que a pesquisa é
no investimento antropológico. Neste sentido, sempre uma aventura nova sobre a qual precisa-
no início de meu trabalho de campo, quando mos refletir (CARDOSO, 1988 [1986], p. 13).  
eu contava a colegas da antropologia ou demais
pessoas que estava iniciando uma pesquisa com A autora não aprofunda uma discussão sobre
mulheres pescadoras, a grande maioria de- a composição que ela própria apresenta. No en-
monstrava curiosidade e admiração, tentando tanto, entendo ser interessante ter claro que, ao
esclarecer o que eu dizia: “com mulher de pes- adjetivarmos aventura – uma aventura antropo-
cador?” “Com pescadoras mesmo?” “Que vão lógica – estamos qualificando uma experiência
para o mar?”. Em seguida, não raro, resumiam que nada tem de romântica ou excêntrica. Pelo
que consideravam que eu estava vivendo uma contrário, trata-se de um exercício que implica
verdadeira aventura. superar a inocência que permeia a aventura-
Assim, logo após o início dos embarques, -fantasia se considerarmos que a antropológica
a vaidade me seduziu e tudo parecia, de fato, seria o exercício da própria etnografia, aquela
uma grande aventura, até o dia em que o mar que, no dizer de Maanen (2004), implicaria
mudou de repente, e o tempo passou de bom perder a inocência. Diz o autor (2004, p. 427):
a ruim. Primeiro, olhei o mar de baixo para “a etnografia não é mais pintada como um pro-
cima, dentro da pequena embarcação, pois ele cedimento relativamente simples de olhar, escu-
cresceu tão rapidamente, que fiquei estática, tar e aprender, mas antes como algo próximo a
embora extasiada com o que via. Só conseguia uma intensa prova de fogo epistemológica”. Ele
pensar que parecia estar diante de uma grande se refere ao que denomina de fim da inocência,
catedral, inspiradora de respeito. A seguir, o inocência esta que pressuporia que a etnografia
mar agitado jogou a embarcação para cima, emerge mais ou menos naturalmente a partir de
e com ela fui junto no breve desequilíbrio de uma simples estada em campo. Pelo contrário,
meu corpo. Ao olhá-lo de cima para baixo enfatiza que ela não estará dada em um primeiro
e observar o que me parecia ser uma grande momento, mas precisará ser construída no agu-
boca que recebia violentamente água de qua- çamento do olhar.
tro direções, e que vindo de quatro direções Neste direcionamento, pondero que a
se encontrava no centro, só consegui pensar, imersão em campo deve ter os sentidos volta-
antes de projetar meu corpo para cair den- dos para a observação de sutilezas, a exemplo
tro da embarcação: não adianta saber nadar! do antropólogo inocente de Barley (1983, p.
Naquele momento, assimilei que estava em 63) em que é preciso tempo para apreendê-las.
um campo tão perigoso quanto instigante. O autor ainda preconiza que é central estar aten-
Acabou a aventura-fantasia18 e começou uma to ao que daí será extraído, selecionado, como
aventura antropológica. Segundo Cardoso um verdadeiro processo de garimpagem em que
(1988 [1986]): “o trabalho de campo tem muito em comum

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com a mineração” (BARLEY, 2006, p. 136). “É que minha orientadora definiu como mergulho
preciso muito esforço para extrair algumas onças tem a ver, portanto, com um exercício extenu-
de ouro”, enfatiza. Eu diria que é preciso aguçar ante vivido em uma tensa suspensão e expec-
vivamente os sentidos pois, muitas vezes, esta- tativa sobre o que viria no momento seguinte.
mos tão determinados a garimpar em um lado, Ao mergulhar em campo, imaginamos o que
que não nos damos conta que as onças de ouro podemos encontrar, mas é só no fazer que é
podem estar em outro. É preciso olhar tudo, ob- possível ver/sentir/experienciar repetidamente
servar tudo, participar de tudo, viver a experiên- o exercício etnográfico.
cia com o máximo que o campo nos possibilitar. Considero, portanto, que a etnografia se dá
Enquanto Cardoso (1988 [1986]) empre- pela repetição. É repetir a observação, a convi-
endia uma discussão visando compreender os vência, repetir momentos como se nada fosse
meandros entre observação participante e par- acontecer19, e, de repente, tudo acontece. Fazer
ticipação observante, Geertz (1989, p. 119), ao etnografia é estar presente de forma intensiva e
defender a centralidade de uma descrição densa, repetitiva em campo. É isso que permite viver
afirmava que em “todo empreendimento nós já a experiência densa que inclui o inesperado. É,
estamos explicando e, o que é pior, explicando às vezes, era ficar sentada na praia observando
explicações. Piscadelas de piscadelas de pisca- aquilo que parecia não ter sentido. Mas esse
delas”. Concordo com Cardoso sobre ser a par- era o sentido. E este aprendizado o campo me
ticipação tão importante quanto a observação, trouxe. Esse é o próprio sentido da pesca: esta
e que a busca de uma descrição densa, preconi- espera contínua. A etnografia é, portanto, a re-
zada por Geertz, é central. Por outro lado, há petição da experiência que se densifica à medi-
campos e campos e formas distintas de com- da que temos condição de observar se um fato
por o fazer antropológico – uma pluralidade. é extraordinário ou ordinário.
Nas palavras de Menezes Bastos (2010, p. 3), E é no ordinário, segundo DeCerteau
tomaríamos “essa pluralidade [...] como uma (1994), que é possível observar a criatividade
primeira grande marca da antropologia, uma e as formas como as pessoas e os grupos conse-
pluralidade que tem sido – e é – tensa”. guem se reinventar, se recriar no seu cotidiano.
Em alguns trabalhos de campo, a possibili- É essa observação contínua, cansativa e exaus-
dade viável é a observação. Em outros, é pos- tiva que, acredito, nos permite construir a et-
sível exercitar a participação, aliando uma e nografia, como método, como epistemologia,
outra. Porém, quero ponderar que em alguns, como um conjunto de saberes-fazeres que diz
como o que eu me propus a realizar junto às respeito à antropologia.
mulheres pescadoras com o que eu denominei Assim como as embarcações entravam e
como sombra (sobre o que discorro em minha saiam todos os dias, assim foi o meu fazer
tese), só me foi possível a partir da busca por etnográfico. Um mergulho no cotidiano da
apreender meandros, sutilezas, temporalidade, pesca buscando compreender como as mu-
corporalidade, em seus cotidianos, com o que lheres são e vivem como pescadoras. “Um
proponho chamar de uma experiência de ob- ato solitário” (MALUF, 2010) que se realiza
servação/participação densa. A descrição densa com o aporte de nossos pares. Roy Wagner
sobre o vivido será densa conforme a densida- (2010 [1975], p.29) diz que “um antropó-
de da experiência do exercício de um profundo logo experiencia, de um modo ou de outro,
mergulho em campo, no meu caso, o mar. O seu objeto de estudo”. Acredito que só assim

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é possível fazer e ser feito, como resumiu experiência do mergulho etnográfico com uma
Menezes Bastos (2010). aventura.
Por outro lado, tão difícil quanto viver a
 Considerações finais experiência do/no campo é, a partir de nos-
sos próprios significados, encontrar formas de
DeCerteau (2008), ao tratar sobre a opera- comunicar a experiência vivida, inventando a
ção historiográfica, levanta questões como: “o cultura do outro e, assim fazendo, inventando
que fabrica o historiador quando faz história? formas de fazer antropologia. Eu diria que a
Para quem trabalha? Que produz? [...] O que é escrita tem uma temporalidade muito própria
esta profissão?” (DECERTEAU, 2008, p. 65). que se compõe também de momentos em que
Por outro lado, Deleuze e Guattari (2009), na não estamos escrevendo. No entanto, se há – e
obra O que é a Filosofia?, afirmam que simples- são muitos – momentos de impasses na cons-
mente chegou a hora de perguntar o que é esse trução da escrita, de não saber por onde ir, de
campo do saber, embora tenham uma resposta aflições por emperrar na produção textual, não
que não variou, “mas não seria necessário so- quer dizer que não a estejamos construindo.
mente que a resposta acolhesse a questão, se- Assim como viver o campo é parte da compo-
ria necessário também que determinasse uma sição redacional, compor a redação prescinde
hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e de momentos aparentemente vazios, mas não
personagens, condições e incógnitas da ques- menos elucubradores de ideias.
tão” (2009, p. 10). Tanto nas questões agonísti-
cas de DeCerteau quanto na alusão à hora final Notas
de Deleuze e Guattari, inserem-se as possíveis
paisagens, personagens, condições e incertezas 1. Ver Seeger (1980). A partir das exposições do autor
que, muitas vezes, nos remetem ao que afirma sobre tempo e escolha do campo é interessante refletir
Menezes Bastos (2010) sobre ser irrespondí- sobre quando deixar de trabalhar com aquele e se há
vel de maneira cabal esta questão: o que é a um mínimo de tempo, bem como até onde escolhe-
antropologia? mos o campo e/ou ele nos escolhe.
Deleuze e Guattari apontam para o fato de 2. Sobre esta discussão, ver Barley (1983). O autor traz
que não é que não vimos nos questionando so- instigantes reflexões sobre questões que acompanham
bre o que é a antropologia, mas que continua- a antropologia desde seus primórdios, entre as quais,
mente nos propomos a “não ficar só na rama, dificuldades de comunicação em campo, sugerindo
mas em deixar-nos engolir por ela” (2009, p. 9). que nos questionemos seguidamente até que ponto os
Ao usarem a imagem da rama, os autores nos nativos apreendem o que estamos fazendo e, por outro
remetem a pensar sobre uma busca contínua de lado, até que ponto compreendemos o que nos dizem
aprofundamento, de ir da rama à raiz de nossas quando dizem.
próprias questões, angústias e dúvidas e, ao nos 3. Texto em construção, cuja citação foi autorizada pelo
deixar engolir por ela, passar, de certa forma, a autor.
fazer parte dela, e ela de nós. Nos momentos 4. “Mergulhar”, “mergulho”, “mergulhando” são expres-
mais solitários em campo, a angústia se aprofun- sões utilizadas como metáfora que querem dizer res-
dava em forma de dúvidas e questionamentos peito à especificidade de meu campo, que é mar, mas
persistentes sobre se não estaria eu sendo irres- também a um dos pressupostos centrais do trabalho et-
ponsável e ingênua, confundindo o exercício da nográfico que preconiza viver intensamente o estar em

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Uma aventura antropológica: a perda da inocência | 57

campo. A expressão “é preciso mergulhar” me foi ins- além dos dez minutos seguintes”. O autor observa que
tigada por minha orientadora, Sônia Weidner Maluf, os dowayos organizam as coisas a seu próprio jeito, em
durante um de nossos muitos diálogos. Bachelard um tempo ao qual ele levou muito tempo a habituar-se.
(2008), ao falar sobre os obstáculos epistemológicos 9. Bachelard (1994[1950]), ao falar do que define como
(experiência primeira, conhecimento geral, obstáculo temporalidade, diz que em tudo há uma ritmanálise
verbal, conhecimento unitário e pragmático, obstácu- que modula momentos de agito e de descanso em uma
lo substancialista, obstáculo animista, obstáculo do composição temporal que faz parte da duração. Aqui,
conhecimento quantitativo) preconiza que urge ao do fazer-se pescadora e do viver na/da pesca.
conhecimento epistemológico uma construção que 10. A pescadora que acompanhei estava trabalhando com
vai do interior ao exterior, sendo que muitas vezes pre- rede de espera, o que significa que se colocava a rede
valece a experiência externa evidente, escapando-se à em um dia, deixando-a a noite inteira literalmente à
crítica pelo mergulho na intimidade (BACHELARD, espera dos peixes que ali entrariam. No dia seguinte,
2008, p. 121. Grifo meu). É neste sentido que “mer- cedo, ia retirar a rede em que os peixes estavam vivos.
gulho” se refere em Maluf à necessidade de adentrar 11. A barra é o local limite para saída das embarcações
ao campo de forma profunda, o que corrobora com em Barra do Sul. Quando o tempo estava ruim, era
Bachelard quando ponderamos que quanto mais o comum os pescadores voltarem do local chamado boca
mergulho adentrar a intimidade, possivelmente mais da barra. Esta é o perigo e, ao mesmo tempo, a per-
complexos serão os elementos encontrados que nos missão, pois é ali que o mar mostra se deixa ou não sair
permitirão criticar, questionar e ponderar sobre o para mais um dia de trabalho. É o ponto crítico de pe-
vivenciado. Para Amit (2000, p. 6), “the notion of rigo, de possibilidade de acidente. Da barra para den-
immersion implies that the ‘field’ which ethnogra- tro é a calmaria. Sair dela implica ir para o mar aberto
phers enter exists as an independently bounded set of e, portanto, para as surpresas que ele reserva. Quando
relationships and activities which is autonomous of em campo, eu ficava em vários momentos diferentes
the fieldwork through which it is discovered. Yet in na saída da barra apenas observando as embarcações
a world of infinite interconnections and overlapping saírem e voltarem, momentos em que percebi que to-
contexts, the ethnographic field cannot simply exist, das saíam e voltavam pelo lado direito da barra, de
awaiting discovery”. quem olhava de dentro para fora, demonstrando que
5. Sou empregada da Epagri (Empresa de Pesquisa há uma forma, uma técnica, um ponto-chave para sair
Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), e entrar, dando mais abrigo e segurança às manobras
responsável pelo serviço de extensão rural e pesqueira das embarcações.
no Estado. 12. Leach (1972), em uma discussão sobre a valoração
6. Mantive a idade da ocasião do trabalho de campo, en- e as formas de ver o tempo, rememora três estórias
tre 2010 e 2012. sobre o deus Cronos, pai de Zeus, citando como ritual
7. Além das constantes mudanças de tempo, o período de mais importante o festival conhecido como Cronia,
campo que fiz, entre 2010 e 2012, foi considerado de que “ocorria no tempo da colheita, no primeiro mês
invernos de miséria aliado ao grande número de água do ano, e parece ter sido uma espécie de celebração do
viva, em tamanho e quantidade, muito superior aos Ano Novo” (LEACH, 1974, p. 198). O autor esclare-
anos anteriores. Tal fato fazia que ocorressem sérios es- ce que o tempo de cronos não é aquele como o consi-
tragos nas redes e, portanto, perdas e prejuízos diários. deramos, pautados “em relógios, rádios, observatórios
8. Barley (2006, p. 100) observa em especial que “a ca- astronômicos” (p. 192). “O tempo de Cronos é uma
lendarização dos acontecimentos na Terra dos dowayos oscilação, um tempo que vai e vem, que nasce e é en-
é um pesadelo para quem quer que procure planejar, golido e é vomitado, uma oscilação do pai para a mãe,

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da mãe para o pai, repetidamente” (LEACH, 1974, p. afetação e uma disponibilidade de vivenciar uma ex-
199). Cronos, portanto, é oscilação. periência densa.
13. Diz respeito a profissionais que atuam e vivem na/da 18. Michel Leiris (2007), ao falar sobre “A África fan-
pesca, mas me refiro às pescadoras por se tratar de uma tasma”, discorre sobre suas decepções em que o cam-
pesquisa em que são elas as protagonistas. po lhe permitiu desmitificar ilusões anteriores. Na
14. Minha cabeça fervilhava quando ouvia comentários apresentação da obra, Fernanda Peixoto afirma que
que, a princípio, me eram ininteligíveis: ou vai entrar “é de decepção que nos fala Leiris ao longo do relato:
uma lestada ou um terral. Ontem já deu rebojo. a partida, rodeada por imagens românticas e fantasias
15. Dependendo da localização geográfica, o impacto dos de evasão; o cotidiano em terra estranha; o regresso,
ventos se dá de forma diferenciada. O vento sul traz, definido antes por frustrações que por conquistas [...]
geralmente, marés agitadas, mas também, na época da a narrativa aponta assim para a desmitificação da via-
tainha, de maio a julho, traz este peixe, que é muito espe- gem, das realidades encontradas e do próprio trabalho
rado, e que migra de sul para norte do Estado, e do País. etnográfico como possibilidade de acesso ao ‘outro’”
16. Mutuca é um pequeno inseto que, ao picar, provo- (LEIRIS, 2007, p. 31). Considero que a ida a cam-
ca muita coceira, podendo produzir sérias reações po propicia e coloca à prova qualquer romantismo,
alérgicas. ingenuidade ou ilusões iniciais que, por sua vez, nos
17. Durham (1988) considera dois tipos de participação, alertam, como no meu caso. Ou nos decepcionam,
a objetiva (que estaria mais afeita aos trabalhos com a exemplo de Leiris (2007). Mas eu argumentaria
povos indígenas) e a observação subjetiva (pesquisa que também nos surpreendem e fornecem subsídios
realizada nas cidades), sobre a qual diz que é preciso para pensarmos sobre o próprio exercício etnográfico.
ter cuidado para não cairmos em análises a partir de Se não tivesse se decepcionado, se frustrado, Leiris
categorias nativas (DURHAM, 1988, p. 33). A auto- (2007) não teria como escrever “A África fantasma”.
ra pondera ainda sobre os meandros de quando uma Ou seja, não teria deixado uma contribuição tão rica
pesquisa passa de observação participante para uma sobre tópicos vivenciados em campo.
participação observante, resvalando para a militância 19. Leiris (2007) fala sobre o que considera uma rotina
(DURHAM, 1988, p. 27). Ter-se-ia que empreender monótona permeada pela mesmice, que tem o efeito
uma discussão apurada sobre questões teórico-meto- permanente de paralisar o tempo em que, segundo ele,
dológicas e epistemológicas aí envolvidas. Segundo nada acontece: “as cidades e os lugares se sucedem no
ela, a observação participante é um trabalho impor- correr das horas, das jornadas, das estações, dos me-
tante, mas é preciso avançar na procura de novos ca- ses do ano. Mas como a viagem etnográfica não narra
minhos (DURHAM, 1988, p. 34). Considero que a aventuras – ao contrário, está enraizada na rotina –,
observação participante é o que nos propícia a apro- seu registro frisa monotonia e tédio” (LEIRIS, 2007,
ximação com o campo. É o princípio do que o de- p. 32). Considero que é aí, no que parece a mesmice,
correr do tempo em campo nos permitirá viver e que que está a possibilidade e de onde emerge a experiên-
eu estou qualificando como uma experiência densa. cia da etnografia.
Entendo que cabe um salto em termos de avançarmos
no que Malinowski (1976) postulou. A observação Referências bibliográficas
participante do autor estava contextualizada em uma
antropologia feita a partir da varanda, se podemos ADOMILLI, Gianpaolo K. Terra e Mar, do viver e do
assim pensar. Atualmente, considero que precisamos trabalhar na pesca marítima: tempo, espaço e ambiente
qualificar nossa estada em campo como participação junto a pescadores de São Jose do Norte – RS. Tese de
que contempla observação, inserção no cotidiano, Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 47-60, 2014


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autora Rose Mary Gerber


Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC)

Recebido em 14/04/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

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Os sujeitos por trás dos direitos: o território


como fonte de direitos desde a perspectiva
indígena serrana

Patrícia Lora León


Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p61-75 context of larger state territorial zoning plans aimed


at facilitating state and private firms access to ex-
resumo A partir dos artefatos comunicati- isting natural resources in their ancestral territory.
vos criados pelas organizações indígenas da Serra In this context, the indigenous critical positioning
Nevada de Santa Marta (Colômbia) para a inter- vis-à-vis state schemes point to the need for the pro-
locução e o posicionamento do pensamento próprio tection of the integrality of territory, in this man-
diante dos representantes da sociedade nacional, a ner suggesting other forms of comprehending the
presente comunicação pretende mostrar a preocu- theory and the praxis of human rights.
pação indígena por pautar formas de ordenamento keywords Human rights; Amerindian thought;
territorial próprias nos processos de planejamento e Political philosophy; Territory; Indigenous people
intervenção no âmbito do seu território ancestral, (Colombia).
particularmente perante as iniciativas do Estado e
dos investidores nacionais e internacionais interes-
sados nos recursos naturais do maciço montanho- Introdução
so. Nesse contexto, os posicionamentos críticos
indígenas apontam pela defesa da integralidade do A Serra Nevada de Santa Marta, Reserva
território, sinalizando nesse caminho formas outras Mundial da Biosfera desde 1979, é o maciço
de compreensão sobre a teoria e práxis dos direitos montanhoso mais alto do mundo ao lado do
humanos. mar. Localizada no norte da Colômbia, nos de-
palavras-chave Direitos humanos; Pensamento partamentos1 de Magdalena, Cesar e La Guajira
ameríndio; Filosofia política; Território; Povos indíge- e isolada da cordilheira de Los Andes pelos va-
nas (Colômbia). les dos rios Cesar e Rancherias, a Serra, com
uma superfície aproximada de 17.000 km2 e
The subjects of the indigenous rights: the uma altura de 5.755 metros, tem sido conside-
territory as a source of rights from serrana rada como paraíso natural desde o século XIX
indigeneous perspective por exploradores e viajantes colombianos e eu-
ropeus2 assombrados com suas extraordinárias
abstract By employing communicative ar- condições geográficas, a diversidade de climas
tifacts created by the indigenous organizations of e de espécies de fauna e flora tropicais. Para
Sierra Nevada de Santa Marta (Colombia) to relate seus habitantes originários, os povos indígenas
to the national society and express the own way of Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo, a Serra
thought, this presentation aims to shed light on the é seu território ancestral e o cenário do pensa-
indigenous efforts to ensure that self-determined mento cosmológico que os configura enquanto
forms of territorial mapping, particularly in the guardiões da Lei de Origem e irmãos mais velhos3

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


62 | Patrícia Lora León

da humanidade: para eles, a Serra Nevada de cenário das relações interculturais os univer-
Santa Marta é o Coração do Mundo. sos conceituais que exprimem a complexidade
Desde o processo colonizador nos séculos do pensamento e da cosmovivência indígenas,
XVII e XVIII, seguido pelas tentativas de in- pretendo discutir como os posicionamentos
tegração destas comunidades no projeto de críticos dos povos Kogui, Wiwa, Arhuaco e
nação no século XIX, até hoje, os grupos serra- Kankuamo contestam os pressupostos da mo-
nos têm sido vítimas de reiterados processos de dernidade jurídica e a configuração de um
ocupação e de colonização do seu território an- sujeito de direito universal e ancorado funda-
cestral, tornando-se, por sua vez, alvo de várias mentalmente no indivíduo. Isto é evidencia-
tentativas de colonização espiritual, de imposi- do de maneira particular nos documentos e
ção de instituições alheias às suas práticas cul- posicionamentos produzidos no contexto dos
turais, de ocupação e perda no acesso aos seus recentes megaempreendimentos de explora-
lugares sagrados e da violência desencadeada ção dos recursos naturais do maciço serrano,
pela bonança local da maconha nos anos 1970 cenário no qual é possível identificar posicio-
e da disputa acirrada das guerrilhas, dos grupos namentos indígenas que dizem respeito ao or-
paramilitares e do negócio do narcotráfico pelo denamento territorial ancestral e à defesa da
controle territorial da região. Tal situação foi integralidade das relações entre o território e o
agravada recentemente pelas tensões geradas sentido de ser indígena serrano.
pelos megaempreendimentos, projetos lidera- Nos posicionamentos críticos indígenas
dos pelo Estado e os investidores internacionais contra os megaempreendimentos em pauta na
no intuito de integrar os recursos naturais do Serra Nevada de Santa Marta, e particularmen-
maciço ao fluxo das iniciativas e necessidades te contra o porto Multipropósito Brisa locali-
do mercado global. zado no morro sagrado de Yukulwa, os povos
Três megainiciativas ganham destaque serranos revelam, como pretendo demonstrar
neste contexto: a barragem El Cercado, de a seguir, a existência de um sujeito de direito
23.000 hectares, sobre o rio Rancherias (ter- “outro” que surge na interligação com a diver-
ritório Wiwa, departamento de Cesar); a bar- sidade espiritual e material do mundo e que
ragem multipropósito Los Besotes sobre o rio é preciso levar em consideração no intuito de
Guatapurí (território Arhuaco e Kankuamo, compreender como, desde a perspectiva ser-
departamento de Cesar) e o porto multipro- rana, os direitos fundamentais encontram-se
pósito Brisa, iniciativa privada localizada em ancorados à práxis da relação indígena com o
Yukulwa (território Kogui, departamento de todo da ordem universal, aspectos claramente
La Guajira), lugar sagrado da Linha Negra relacionais não considerados pelos dispositivos
(fronteira espiritual do território ancestral) jurídicos que visam proteger e garantir seus di-
para os quatro povos serranos (FUNDACIÓN reitos humanos.
CULTURA DEMOCRÁTICA, 2009).
Embora as lideranças e organizações dos O sujeito indígena como sujeito de
diferentes povos serranos venham constituindo direito
nas últimas décadas um lugar de enunciação
indígena materializado num conjunto extenso A luta pelo reconhecimento dos territórios
e diverso de artefatos comunicativos próprios dos povos indígenas, entendidos como cenários
que visam veicular, visibilizar e incorporar no do desenvolvimento da cultura e da autonomia

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 61-75, 2014


Os sujeitos por trás dos direitos | 63

que dizem respeito a uma identidade pensada Debido a que los pueblos indígenas son pue-
justamente na relação com os vínculos ances- blos y naciones “originales” históricamente, sus
trais e com o entorno natural, tem se tornado derechos tienen una cierta precedencia histórica
um elemento central na pauta das comunida- y, por esa razón, los derechos colectivos por los
des indígenas na Colômbia e América Latina. que luchan no son concebidos por ellos como
Para o caso colombiano, os representantes indí- derechos que les son otorgados, sino más bien
genas no processo da Reforma Constitucional como derechos que siempre habían disfrutado
de 1991 levantaram claramente esta questão, antes de que les fueran arrebatados por los con-
exigindo nesse contexto expressões concretas quistadores, colonos, misioneros o comerciantes
de reconhecimento dos seus direitos na pers- provenientes de lugares distantes. Esta preceden-
pectiva da diferenciação das suas particulari- cia histórica no puede ser invocada por todas las
dades enquanto povos (ARIZA, 2009, p. 254) minorías étnicas (SANTOS, 2002, p.161).  
e a formulação de estratégias de proteção da
existência física e cultural destas comunidades, Para o caso colombiano o sujeito de di-
ancoradas justamente na permanência, respeito reito “indígena”, isto é, o sujeito considerado
e autonomia do território como fonte de gover- como objeto da prática jurídica do Estado, re-
nança e desenvolvimento cultural. conhecido e regulado a partir dos critérios da
Para Santos (2002), a luta pelos direitos razão legislativa moderna, começa a adquirir
dos povos indígenas, numa marcada diferen- uma caracterização indígena a partir dos re-
ciação diante das reivindicações das outras conhecimentos consignados na Constituição
minorias étnicas, configura-se a partir da li- colombiana de 1991 e nos diferentes instru-
gação da cultura com a existência de “direitos mentos internacionais que abrangem a questão
e recursos ancestrais” e do apelo recorrente dos direitos desses povos4. Considera-se nes-
à memória histórica que vincula a dimensão se caminho a especificidade coletiva das suas
geoespacial com uma temporalidade anterior reivindicações, levando em conta aspectos fun-
à constituição do Estado-Nação e das formas damentais dessa ordem que permite o desfru-
de ordenamento e organização política que te coletivo dos direitos: as formas próprias de
lhe dizem respeito. Embora contestem o mo- direito e de governabilidade, de justiça, a pro-
delo de ordenamento moderno-ocidental, as priedade coletiva da terra e o fortalecimento
reivindicações indígenas, desde a perspectiva da língua, saúde e educação próprias. É nesse
do autor, não são necessariamente uma ten- marco que será pautada quaisquer discussão e
tativa de criação de um Estado autônomo, negociação relacionadas com a proteção, defesa
mas, pelo contrário, um caminho na procura e garantia dos direitos desses sujeitos, mesmo
de mecanismos de acesso à terra, aos recursos quando as violações das quais vêm sendo ví-
históricos, à organização cultural autônoma timas estejam classificadas na perspectiva ju-
e à identidade cultural, e fundamentalmente rídica moderna como “direitos fundamentais”
na formulação de políticas que garantam sua do indivíduo, entre eles, à vida, liberdade e
integridade física diante da possibilidade la- igualdade.
tente de tornar-se, de novo, vítimas do etno- No entanto, a ideia do sujeito de direito –
cídio, questões compatíveis com o Estado no categoria central da modernidade jurídica –
qual esses territórios e povos estão atualmente torna-se uma caracterização abstrata que, em
inseridos. sua pretensão de regulamentar a relação entre

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 61-75, 2014


64 | Patrícia Lora León

o indivíduo e o Estado, universaliza e generali- intrinsecamente com territórios configurados


za as particularidades dos sujeitos e grupos em como resguardos a partir da normatividade
detrimento do homem concreto e real. Esse su- estatal – considerados estratégicos para o de-
jeito “concreto” que vem à tona claramente nas senvolvimento e preservação de recursos na-
lutas das minorias étnicas e raciais denuncia, turais, uma vez que levam ao reconhecimento
como no caso dos povos indígenas, como essa da importância dos sujeitos coletivos que, por
concepção universalista da modernidade jurí- meio de suas práticas e conhecimentos tradi-
dica do sujeito tributário dos direitos desconsi- cionais, participam do processo de conserva-
dera, invisibiliza e marginaliza as diferenças, e ção desses recursos – não pode, porém, apagar
nesse processo, as experiências desses grupos e a existência dos sujeitos e das subjetividades
suas concepções próprias do sentido da lei, do que ele pretende fixar na categoria de sujeito
Direito, da justiça e dos direitos humanos. Daí indígena de direitos. Os povos indígenas, na
que o reconhecimento do caráter coletivo dos condição de sujeitos políticos e portadores de
direitos das comunidades indígenas permita posicionamentos diante das questões e proble-
reformular o campo do Direito e dos direitos máticas que lhes dizem respeito, participam
humanos, desconstruindo a ideia de um sujeito ativamente dessa reconfiguração do campo dos
de direito exclusivamente baseado no indivíduo direitos humanos – tanto na Colômbia como
como ponto de partida de qualquer normati- no nível global – no intuito de se reposicionar
va e configuração jurídica possível, o que não como atores políticos e de se beneficiar das ga-
pressupõe, necessariamente, uma compreensão rantias que o Estado pode e deve fornecer-lhes
da diferença que sustenta essa visão de mun- com o propósito de restaurar e reparar a “dívi-
do e que se instala para além das fronteiras do da histórica” que emana dos danos acarretados
próprio indivíduo e das liberdades individuais. pelo processo de expropriação e destruição dos
Como indica Ariza (2009) para o caso co- seus territórios e culturas desde o processo co-
lombiano, já no processo de colonização e sua lonial até hoje. Como afirma Silva de Sousa:
incorporação no projeto de Nação, os indígenas
eram caracterizados e classificados como “dife- O fato de as minorias socioculturais se valerem
rentes”, e nesse caminho, pensados a partir de da categoria “direitos humanos” como meio de
políticas diferenciadas capazes de permitir a luta por seus direitos, impossibilita uma leitura
transição do “estado de natureza dos selvagens” simplista, que tenda a ver os direitos humanos
ao processo civilizatório que os torna poten- apenas como mais um instrumento de domi-
ciais sujeitos do direito. Logo, o território, por nação e opressão do Ocidente sobre grupos su-
meio da figura do resguardo5, cumpre um pa- bordinados. Embora, em muitos casos, valores
pel fundamental como dispositivo de definição ligados à afirmação dos direitos humanos – in-
da identidade indígena desde a perspectiva do dividualismo, democracia, universalismo –, e
Estado, e, porém, de controle, classificação e mesmo, a categoria “direitos humanos”, sejam
tutela de indivíduos considerados “incapazes” vistos como mais uma forma de imperialismo de
de gerenciar suas próprias vidas. Assim sendo, Ocidente para com o “resto” do mundo, existem
constituir-se-ia no cenário que possibilitaria a minorias tanto no Ocidente quanto em países
transição desses sujeitos à condição de cidadãos. não ocidentais que utilizam a categoria “direitos
O artifício de uma “subjetividade criada” humanos” como forma de proteção e luta e di-
no intuito de controlar identidades ligadas reitos (SILVA DE SOUZA, 2001, p. 71-72).  

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Os sujeitos por trás dos direitos | 65

Em diversos documentos e posicionamen- território quanto o vínculo que esse território


tos políticos dos povos da Serra Nevada de estabelece com as práticas indígenas por meio
Santa Marta, levanta-se também a questão da do cumprimento dos códigos originários.
centralidade das garantias estatais no intuito de
dar continuidade às práticas culturais que os El territorio para nosotros es la condición espa-
vincula com um território que funcione como cial de la permanencia como cultura, para cum-
cenário onde seus ancestrais, isto é, seus pais plir con nuestra función como seres humanos,
e mães espirituais, habitam e estabelecem co- de la misma manera que otros seres de la natura-
municações e diretrizes fundamentais para seu leza tienen su función para que la conservación
ser e agir no mundo como indígenas. Para estes tenga una finalidad que vaya más allá de la sola
grupos existe uma clara diferenciação entre o existencia de la naturaleza y de la sociedad como
reconhecimento das reservas indígenas, proces- “recursos”. El manejo artificial en el territorio
so iniciado em 1959 com a declaração da re- afecta el dominio por parte de nuestras culturas,
serva natural da Serra Nevada e que finalmente según nuestros usos y costumbres, previsto por
materializa-se na constituição dos resguardos la Constitución como función del Estado para
para cada um dos quatro povos serranos6; e la preservación de la diversidad cultural; este
o “reconhecimento efetivo dos territórios das dominio territorial lo consideramos indiscutible
culturas”, cenário onde se exprimem os senti- dado que es algo que venimos ejerciendo desde
dos e significados que constituem seu modo de antes que se conformara la Nación colombiana.
vida. A demarcação territorial desenhada pelo Solamente esperamos que el Gobierno recono-
Estado não conseguiria dar conta, neste sen- zca y haga efectivo este derecho existente des-
tido, do “conteúdo” e “significado” imbuídos de siempre (CONSEJO TERRITORIAL DE
nos morros, rios e em cada um dos elementos CABILDOS, 2007, p. 5).  
constitutivos desse território, experiência apre-
ensível somente na ligação que eles estabelecem Daí a importância capital que para os po-
entre o território e os espíritos ancestrais pela vos serranos tem o fato de tornar visíveis esses
comunicação indígena com a diversidade espi- sentidos e significados que escapam à compre-
ritual e material que configura o mundo. ensão da lógica jurídica dos brancos, e, assim
No documento Posicionamento dos quatro sendo, a possibilidade de apelar aos mecanis-
povos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta mos políticos que permitam comunicar o sen-
sobre os projetos multipropósito de Porto Brisa tido dessa diferença, para, nesse caminho, tecer
em Dibulla e barragens em Besotes e Rancherias: formas de ação conjunta no diálogo com a so-
afetação às nossas culturas (CONSEJO ciedade nacional.
TERRITORIAL DE CABILDOS, 2007) –
documento que faz parte dos múltiplos arte- Jukulwa: duas ordens tensionadas no
fatos comunicativos serranos elaborados no ser do território da Serra Nevada
intuito de enunciar tanto o significado filo-
sófico e político das categorias do pensamento No caminho da construção política de es-
próprio, como seus posicionamentos críticos paços de encontro e diálogo entre as lideranças
existenciais (WALSH, 2008) na condição de dos povos Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo
habitantes ancestrais do maciço montanhoso – e os representantes da sociedade nacional,
evidencia-se tanto a precedência histórica desse nas últimas duas décadas foram estabelecidos

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importantes acordos no intuito de incorporar Neste trecho e ao longo do documento do


as questões por eles levantadas na pauta dos Conselho Territorial de Cabildos7, os indígenas
processos de ordenamento e planejamento que serranos pretendem demonstrar como, com a
comprometem o território da Serra Nevada de projeção e construção desses megaempreendi-
Santa Marta. Embora tenham conseguido ser mentos, tudo o que até agora foi dito e coloca-
efetivamente reconhecidos como habitantes do na pauta da discussão com os representantes
originários e atores a serem consultados nas da sociedade nacional ficou no escuro: os re-
iniciativas que comprometem o presente e o conhecimentos amparados no direito e as leis
futuro da Serra Nevada, torna-se visível para ocidentais, assim como os princípios de direi-
suas lideranças, no contexto do surgimento de tos humanos neles ancorados, parecem não
diversas iniciativas de desenvolvimento eco- corresponder com as práticas e os argumen-
nômico na região, a ausência de uma “vonta- tos da “racionalidade técnica” que sustentam
de autêntica” de respeitar e honrar os acordos a realização de projetos de desenvolvimento
cadenciosa e cuidadosamente construídos nos econômico em seu território ancestral. Com
últimos anos. a projeção da barragem de Besotes, as obras
da Represa El Cercado no rio Rancherias e a
El relacionamiento con el Estado y los dis- construção do porto multipropósito Brisa, em
tintos Gobiernos, siempre ha sido con el Dibulla, afirmam no texto, os irmãos mais no-
profundo interés de buscar caminos de enten- vos ou não-indígenas pretendem mais uma vez
dimiento y concreción, ellos han permitido fragmentar o ser do Coração do Mundo median-
el acercamiento de dos formas distintas de te o desconhecimento e a invisibilidade dos po-
pensamiento y hemos mostrado que cuando sicionamentos postados nos cenários políticos
hay voluntad política se puede rellenar ese nos últimos anos pelas organizações indígenas.
abismo antagónico y poder por el contrario Dita afirmação sustenta-se na destruição
establecer un puente de comprensión y de parcial de um dos lugares sagrados que confor-
respeto en nuestros propósitos comunes; por mam a rede espiritual da Linha Negra: Jukulwa,
eso ahora para hablar de nuestra inconformi- morro localizado à beira do Mar Caribe na ci-
dad de los casos Puerto en Dibulla, represas dade costeira de Dibulla, desembocadura dos
en Besotes y Ranchería es imposible olvidar rios Lagarto e Cañas e espaço sagrado de con-
la trascendencia de ese camino largo y com- trole de todo tipo de doenças (humanas, dos
plejo que aún mantenemos en construcción. animais, das plantas, dos ventos, das chuvas).
Hoy, cuando se nos comunica la decisión de A afetação do sítio sagrado, ao ser quebrado
actuar en nuestro territorio, lo único que em duas partes para assim dar passo à estrutu-
se presenta es un documento que contiene ra do Porto Brisa, constitui-se na perspectiva
la “racionalidad técnica de lo que se quiere dos indígenas serranos numa grave violação aos
hacer”, desconociendo todo el proceso de acordos estabelecidos nos espaços de concerta-
construcción conjunta soportada por actas, ção com as instituições do irmão mais novo e
resoluciones Ministeriales, convenios, acuer- num claro desconhecimento da integralidade
dos y compromisos que tienen como susten- sagrada do território, reiteradamente pautada
to el Ordenamiento Territorial de la Sierra nos artefatos comunicativos construídos nos
Nevada (CONSEJO TERRITORIAL DE últimos anos para explicitar a compreensão ser-
CABILDOS, 2007, p. 2).   rana sobre o ordenamento territorial ancestral.

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Os sujeitos por trás dos direitos | 67

Eis a causa da mobilização de cerca de a visão indígena, diz respeito ao “mandato de


quinhentos indígenas dos quatro povos, que, origem” que lhes foi entregue e que só é possí-
convocados pela decisão dos mamos – suas au- vel de ser pensado a partir da integralidade da
toridades espirituais ou xamãs – de comunicar relação dos seres humanos com o ser de todas
a gravidade desses acontecimentos todos para as coisas, consignado desde sempre nos códigos
a integralidade da existência da Serra Nevada e da Lei de Origem8.
dos povos indígenas que são “parte viva e ine-
rente” dessa integralidade, por meio das práti- Hemos elaborado muchos documentos, en los
cas de cuidado que, desde as práticas culturais, que hemos intentado expresar nuestro pensa-
tornam ação no mundo os princípios da Lei de miento y conocimiento del territorio, de la cul-
Origem, deslocaram-se no dia 18 de abril de tura, del universo, como explicación de nuestra
2007 desde todos os cantos do maciço mon- forma de vivir y como fundamento para nuestras
tanhoso até o lugar sagrado localizado na ci- propuestas, reclamaciones y solicitudes, copias
dade de Dibulla. O documento Posicionamento de ellos reposan en los archivos de las institucio-
dos quatro povos indígenas da Serra Nevada de nes del Estado. En ellos hemos expresado como
Santa Marta sobre os projetos multipropósito de principios y fundamentos culturales que el uni-
Porto Brisa em Dibulla e barragens em Besotes e verso es para nosotros una realidad unitaria física
Rancherias: afetação às nossas culturas, lido pe- y espiritual, y que en el origen de las cosas y en
los porta-vozes indígenas, foi nesse contexto o el establecimiento de su función se sustentan las
artefato comunicativo invocado para expressar, normas para el comportamiento de las personas
mediante a palavra, o posicionamento, as re- y de la sociedad en la relación entre los seres
flexões e as questões estruturantes do sentido humanos y de estos con todos los elementos de
de ser e existir como indígena serrano na atual la naturaleza. Por eso para nosotros las normas
conjuntura. A declaração lida torna-se então no solamente están en los códigos legales o en
um instrumento de expressão e visibilização mandatos morales, sino en el origen del ser de las
daquilo que não tem sido suficientemente cosas y la llamamos en castellano Ley de Origen,
compreendido e que, pelo contrário, tem sido sin ignorar que las leyes se constituyen en herra-
negligenciado e apagado no marco da relação e mientas que propenden por el reconocimiento,
dos acordos conjuntamente estabelecidos com la defensa y la protección del territorio y la iden-
o Estado colombiano durante os últimos anos. tidad cultural (CONSEJO TERRITORIAL DE
Assim, como explicitado no conteúdo da CABILDOS, 2007, p. 1).  
mensagem, o movimento realizado pelos indí-
genas serranos pretendia evidenciar a ausência O problema sobre as formas e os dispositivos
de formas de comunicação na relação com o a partir dos quais estão sendo abordados tanto
Estado que levem em consideração tanto os a realidade do seu território ancestral quanto os
princípios que contornam o sentido da sua princípios indígenas que lhe atribuem sentidos
existência como povos, quanto os elementos e significados próprios por meio das práticas
que desde a institucionalidade permitiriam es- culturais, adquire importância capital na argu-
tabelecer pontes de diálogo e efetivação desses mentação crítica apresentada no documento.
acordos, considerando ambas as partes interes- Se os “códigos” de ambas as intencionalidades
sadas no propósito comum do “ordenamento” de “ordenamento” da Serra Nevada, isto é, os
da Serra Nevada. Ordenamento que, segundo instrumentos jurídicos do Estado e os códigos

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da Lei de Origem “escritos” no território9 da ser- allí viven y que eso no es solo importante para
ra por seus pais e mães espirituais, explicitam nuestra supervivencia cultural sino que afectará
e reconhecem que há uma “diferença cultural” a la naturaleza en su conjunto, a las personas que
estruturada em princípios cosmológicos, que viven a los alrededores, en definitiva a la riqueza
deve permanecer e que cumpre uma função de la humanidad (CONSEJO TERRITORIAL
fundamental no futuro e na permanência do DE CABILDOS, 2007, p. 5).  
maciço montanhoso, por que elas, na atual
conjuntura, parecem não confluir nem dialo- A contestação das lideranças indígenas pre-
gar na perspectiva de um propósito maior que tende, assim, visibilizar a falta de comunicação
comprometa ambas as visões? Qual seria, en- entre a realidade dos acordos e dos instrumen-
tão, a causa da impossibilidade de elas coexisti- tos jurídicos que no papel explicitam reconheci-
rem e agirem conjuntamente? mentos à autoridade e à autonomia que emana
A declaração apresentada diante dos repre- dos seus princípios culturais, e que fornecem,
sentantes da sociedade nacional e internacional como no caso do articulado de direitos e liber-
(funcionários governamentais, delegados de dades consignado na Constituição Política de
ONGs e de órgãos internacionais de direitos 1991, as ferramentas necessárias para defender
humanos e jornalistas) manifesta, nesse sentido, e preservar sua “diferença existente” enquanto
que não existem “razões humanas nem jurídicas” povos indígenas e minorias étnicas. Apesar do
que legitimem essas iniciativas, mas duas realida- valor do compromisso depositado nessas atas e
des paralelas que operam nas formas de relação convênios redigidos no marco dos espaços de
entre eles e os representantes do Estado: uma diálogo e negociação entre os representantes da
que, no papel, reconhece positivamente o valor e sociedade nacional e as lideranças do Conselho
a importância da diferença cultural e espelha nos Territorial de Cabildos, assim como nos dife-
documentos legais a receptividade às propostas e rentes instrumentos jurídicos (leis, resoluções
às colocações levantadas pelas lideranças políti- ministeriais, decretos) que estabelecem reco-
cas indígenas nos diferentes espaços de encontro nhecimentos sobre seu território ancestral e
estabelecidos para a discussão das questões re- sobre o exercício da sua autonomia e autorida-
lacionadas com seu território ancestral; e outra, de “segundo seus usos e costumes” no âmbito
que contradiz na prática esse reconhecimento, deste território, parece que a realidade da no-
negligenciando os acordos e compromissos ad- meação da racionalidade jurídica na qual estão
quiridos em detrimento da integralidade sagrada inscritos não consegue transcender efetivamen-
do território da Serra Nevada. te e desvelar seu potencial vinculante por meio
dos sujeitos que os tornam ação no mundo.
Nuestra oposición, en este caso, no es solo por O que para os indígenas serranos é senti-
el sitio sagrado Jukulwa, no debe entenderse que do como ausência de vínculo e de coerência
nuestra única preocupación se limita al lugar de entre duas realidades que poderiam na práti-
pagamento, sino que lo vemos en el contexto ca política dialogar e tornarem-se formas de
del espacio territorial de la Sierra Nevada en el transformação e ação, para Damázio (2009) é
que los cuatro pueblos indígenas somos parte uma expressão clara do subjetivismo moder-
viva e inherente en esa integralidad por la tierra, no que preenche de legitimidade e validade os
el mar y sus desembocaduras, vemos una gran corpos axiomáticos dos preceitos de direito por
afectación al mar, a los animales y plantas que ele formulados. No bojo da ciência racional e

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sistemática do Direito, segundo a autora, está o ser de todas as coisas, e, portanto, da relação
o sujeito e sua capacidade racional de classifi- do sujeito indígena como ser vinculado com
car e formular princípios gerais que lhe per- essa integralidade, precisa, por conseguinte,
mitem dar coerência e ordem à realidade, e, vir à tona desde o lugar de enunciação dos po-
consequentemente, considera desnecessária a vos serranos, para que assim, na disputa com
experiência desse sujeito e a capacidade que as categorias construídas pela ciência racional
tem de desconstruir esses princípios universais, e sistemática do Direito, a experiência desses
vivenciando-os e tornando-os ação a partir dos sujeitos e as formas próprias de se compreen-
sentidos e significados que lhe dizem respei- der seu universo de relações com o território e
to. O pano de fundo desta questão estaria, na com a natureza possam vir a participar desses
leitura de Segato, na importância do Direito cenários de diálogo/disputa com a sociedade
como narrativa-mestra da Nação e no poder da nacional.
lei como instrumento chave nas lutas simbó- No artefato comunicativo citado, os indíge-
licas travadas pela dita narrativa. Isto eviden- nas colocam claramente na pauta quais são as
cia, em sua perspectiva, o poder nominador do questões a serem consideradas na relação com o
Direito entronizado pelo Estado como “a pala- território ancestral da Serra Nevada, segundo a
vra autorizada da Nação, capaz, por isso, não própria experiência e o universo de significados
só de regular, mas também de criar, dar status que exprimem seu mundo. Para eles, a ocupa-
de realidade às entidades sociais cujos direitos ção e exploração de Jukulwa por parte dos ir-
garante, instituindo sua existência a partir do mãos mais novos não apenas comprometem a
mero ato de nominação” (2006, p. 212). existência do lugar sagrado ou a supervivência
Logo, o problema de fundo que emerge cultural dos quatro povos: comprometem a na-
do simples “ato da nominação” que coloca o tureza em seu conjunto, a existência dos não-
Direito como uma trilha autônoma incapaz de -indígenas e da humanidade.
dialogar com a experiência dos sujeitos é que
essa simples nomeação não tem nem a força Es preciso aclarar que el sitio sagrado de Jukulwa
nem a capacidade suficiente para dar conta concierne y estructura el principio de la integra-
das múltiplas contestações que, como no caso lidad del territorio y de la cultura, por eso el
dos indígenas da Serra Nevada, emergem jus- referido sitio como lo son los otros se consti-
tamente da experiência deles, e que, segundo tuyen en elemento y espacio fundamental que
Santos (2003, p.65), vão contrariar aquilo que irradia y orienta para la administración del con-
é simplesmente considerado como dado nessa cepto general de la educación propia que se sus-
nominação e axiomatização da realidade, afigu- tenta esencialmente por el mantenimiento del
rando-se estes princípios em questões altamente equilibrio y la armonía entre la naturaleza y el
problemáticas e conflituosas quando encaradas hombre quien tiene en sí mismo obligaciones
para além das fronteiras do Direito e da própria insustituibles para que dicha misión sea posible
visão da racionalidade moderna ocidental. a perpetuidad. De igual manera, de allí se irra-
dia el concepto de la salud propia, que se refiere
Os sujeitos por trás dos direitos a un entendimiento de los preceptos y princi-
pios cuyo cumplimiento evoque armonía, pues
A questão da integralidade que pressupõe o de esa manera allí está encarnado el principio
vínculo inerente entre o ser do território com de la verdadera salud universal del hombre. Por

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eso Jukulwa es lugar de control de toda clase peça política fundamental no processo de rea-
de enfermedades humanas, animales, plantas firmação da autonomia cultural e da defesa do
y elementos ambientales (vientos, lluvias, etc.) território ancestral. Mas nesse mesmo processo
desde allí se debe evitar que pasen y se desarrol- de reflexão e conceptualização dessas categorias
len las enfermedades en nuestras comunidades no intuito de criar pontes de compreensão en-
(CONSEJO TERRITORIAL DE CABILDO, tre sua visão de ordenamento e a do irmão mais
2007, p. 7).   novo, a noção de integralidade surge como uma
categoria recente que pretende expressar em si
A estratégia política desenvolvida a partir mesma o emaranhando das relações individu-
da questão da integralidade do lugar sagrado ais, coletivas e cósmicas que perpassam o senti-
Jukulwa, pretende evidenciar, ao mesmo tem- do do território ancestral.
po, outro elemento central na pauta e nas crí-
ticas levantadas pelos indígenas serranos nos La integralidad territorial y política es la máxi-
cenários de discussão, diálogo e interlocução ma connotación ancestral de nuestros pueblos,
com os representantes da sociedade nacional: o que se sustenta en la misión de protección y
caráter permanente e imutável dos códigos que conservación, acciones que nuestras autoridades
informam esse sentido da integralidade e a im- deben ejercer y cumplir. El significado profundo
portância capital de compreender que os seus y la explicación de la integralidad, se resume en
“direitos” não emanam da nomeação jurídica un eje básico para el hombre: la vida. Todos los
civilizada que lhes torna sujeitos de direitos, elementos del territorio son portadores de vida y
mas do papel que eles, enquanto “guardiões” se constituyen en principio de vida entre todo lo
desses códigos “escritos” no território, desem- existente, vista desde el orden social y político,
penham pela celebração e cumprimento dos como también desde la visualización profun-
princípios culturais, possibilitando o exercício da del pensamiento y del espíritu (CONSEJO
dos seus direitos humanos e dos direitos da hu- TERRITORIAL DE CABILDOS, 2003, p.6). 
manidade como um todo.
Embora a essência do conceito de integrali- Logo, a questão da integralidade, como
dade apareça em alguns dos artefatos comuni- explicitado neste trecho do documento
cativos produzidos nas décadas anteriores, não Lineamentos para a Coordenação Institucional,
é à toa que a questão da integralidade, enquanto do Conselho Territorial de Cabildos, reivindica
conceito que exprime o sentido dessa interliga- precisamente a vida como um valor fundamen-
ção essencial entre todas as formas de existên- tal a ser considerado prioritário nos processos
cia, ganhe um espaço nos enunciados indígenas que pretendam gerenciar ou planejar o ter-
no final da década de 1990. Já no processo de ritório da Serra Nevada de Santa Marta, ou
discussão das políticas de ordenamento terri- incidir no futuro de cada um dos seus “elemen-
torial ao longo do decênio, em que as orga- tos” (água, árvores, petróleo, minerais etc.),
nizações indígenas serranas consolidaram um que, na perspectiva indígena, são igualmente
lugar político fundamental na interlocução portadores de vida e princípio de tudo o que
com as instituições do Estado, as categorias existe. Desta forma, a integralidade como ques-
indígenas atreladas a essa dimensão territorial tão política incorporada nas reivindicações e
(a Linha Negra, os lugares sagrados, os rituais denúncias desses povos sobre os megaempre-
de pagamento)10 tinham se constituído numa endimentos no território ancestral, enuncia-se

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por sua vez como um princípio ético que con- e espiritual da existência e que vem a tona
testa a visão ocidental, segundo a qual se pre- no contexto do debate e da exigibilidade dos
tende transformar esse território em fonte de seus direitos humanos, os indígenas serranos
recursos naturais ou em objeto de exploração, reportam o sentido de suas “garantias ances-
com todas as implicações que essa perspectiva trais” e que têm relação com a integralidade
de ordenamento subjaz para a sobrevivência e das relações que esses sujeitos estabelecem na
integridade física e cultural dos quatro povos comunicação com seus espíritos ancestrais por
serranos e para a vida como um todo. meio do território. Essas garantias, portanto,
No cenário político de contestação que re- referem-se aos princípios originários que desde
presenta o manifesto dos quatro povos contra o começo dos tempos permitem o processo de
as represas de Rancherias e Besotes e o Porto reprodução da vida, princípios “vivos” que se
multipropósito de Dibulla, essa integralidade tornam práxis no mundo, se reproduzem nas
emerge como uma maneira de firmar a Serra práticas culturais e se “encarnam” na “integra-
Nevada de Santa Marta enquanto unidade de lidade viva do tempo e do espaço do território”
existência, quer dizer, como um “sujeito” – no (RESGUARDO ARHUACO DE LA SIERRA
sentido de existência viva que “age” nesse im- NEVADA, 2006, p. 4).
bricado de relações – que possibilita a comu- A “garantia ancestral” estaria, portanto, na
nicação entre o ser do território representado possibilidade permanente de recriar a integra-
nas múltiplas existências que nele habitam e lidade dessas relações, da qual os indígenas são
os sujeitos indígenas, agentes e guardiões dos parte inerente, no meio das afetações e restri-
códigos consignados na Lei de Origem e defen- ções impostas pela disputa do território ances-
sores do ser do território do Coração do Mundo tral. Garantia de dupla via, pois se bem resulta
que é a fonte de todos seus direitos. indispensável o respeito das práticas culturais
Contudo essa integralidade, nem sempre indígenas no marco do reconhecimento dos
enunciada explicitamente, mas onipresente nos direitos constitucionais que o Estado outorga-
artefatos indígenas produzidos anteriormente -lhes na condição de sujeitos de direitos, tam-
como um fio invisível que costura discursiva- bém se torna fundamental explicitar que esses
mente as narrativas de origem e a descrição dos direitos não emanam exclusivamente da “no-
universos conceituais que ordenam o (seu) mun- meação jurídica” civilizada que os configura
do, apresenta-se como uma categoria importante enquanto tal, quer dizer, em tributários de di-
no intuito de desentranhar como os indígenas reitos e obrigações, mas, com efeito, das “ga-
serranos compreendem a relação do homem em e rantias ancestrais” e do papel que eles, como
com o mundo. As práticas sociais, espirituais, po- “guardiões” dos códigos “escritos” no território,
líticas e epistêmicas que dizem respeito ao ethos desempenham pela celebração e cumprimento
dos povos serranos nos informam justamente das práticas culturais.
sobre uma forma “outra” de compreensão do ter-
ritório como fonte de direitos, que entende o su- El territorio no es solamente un espacio definido
jeito indígena como parte dessa integralidade, e, como lugar, es decir, no es tan solo una magnitud
assim sendo, como responsável da continuidade en la que están contenidos los cuerpos, no es un
do processo infinito de reprodução da vida. afuera y por supuesto tampoco es una frontera en-
Considero que na defesa da integralidade tendida como una línea legal de la manera en que
como princípio que vincula o plano material se entiende en la sociedad mayoritaria. El territorio

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72 | Patrícia Lora León

es una escucha específica de nuestras culturas, de os direitos fundamentais encontram-se ancora-


lo que dice la Madre Tierra. Por tal razón, los pue- dos à práxis da relação indígena com o todo da
blos indígenas insistimos en el vínculo existente ordem universal. Sujeito que diz respeito à in-
entre el sentido de la territorialidad y el sentido de tegralidade do ser do território da Serra Nevada
pertenencia, pero éste no es sólo físico sino que es de Santa Marta e dos indígenas que são par-
un vínculo entre lo material (físico) y lo espiritual. te inerente desse vínculo entre o espiritual e o
Ahora eso que llamamos espiritual podemos expli- material, aspectos claramente relacionais não
carlo como aquel entramado de relaciones vitales considerados pelos dispositivos jurídicos que
que nosotros los seres con existencia compartimos visam proteger e garantir seus direitos, e que
con la tierra. Ahora bien, la forma en cómo nues- desde a perspectiva do pensamento serrano
tro pueblo está en la tierra que nos vio nacer no constituem-se como fundamentos de um ethos,
tiene el aspecto de relación como cuando un vaso de uma forma de se compreender a relação do
contiene agua (no es una relación de continente homem em e com o mundo, que preserva esse
– contenido) sino que la relación que tenemos universo causal de relações pelas quais todas as
con nuestro territorio es similar a la relación del formas de existência (subjetividades) partici-
cómo el agua está implicada con el agua misma o pam da ordem e do equilíbrio do mundo.
la implicación que los pájaros tienen con el viento Portanto, para além de um reconhecimento
( RESGUARDO ARHUACO DE LA SIERRA que se expressa na formulação das normativi-
NEVADA, 2006, p. 52).   dades nacionais e internacionais, e que, nes-
se caminho, cria os mecanismos necessários
A integralidade dessas relações nas quais os para proteger os indivíduos que conformam
sujeitos indígenas estão “implicados” como a a coletividade do povo indígena, a vida e in-
água com ela própria, como os pássaros com tegridade deles, a identidade que os constitui
o vento, são as que considero poderiam sina- enquanto minoria étnica e o território no qual
lizar-nos uma forma de compreensão “outra” essa cultura tem a possibilidade de produzir-se
sobre o sentido do “sujeito de direitos” estru- e reproduzir-se, o posicionamento político ser-
turante da gramática dos direitos humanos rano visa colocar no eixo de qualquer aspecto
desde uma perspectiva ocidental. Esse sujeito relacionado com o exercício dos seus direitos a
de direito “outro”, a meu ver, não seria pro- existência desse sujeito de direito “outro” que
priamente uma subjetividade “outra” em si (os não é levado em consideração na centralidade
espíritos ancestrais, o território), mas o alarga- do sentido e significado que ele exprime segun-
mento do sujeito individual na muldimensio- do perspectiva indígena.
nalidade e pluriversalidade das relações com o Ultrapassa-se assim a questão da proprieda-
território e com as diversas formas de existên- de e titularidade das terras que constituem o
cia (DAMAZIO, 2009)11 que configurariam a espaço vital para o desenvolvimento da cultura
possibilidade de garantir a vida como a quinta- e para a sobrevivência física das comunidades e
-essência de qualquer direito possível. suas lideranças. O território é defendido como
Esse sujeito “outro”, portanto, seria o su- “fonte de direitos”, isto é, como o ser do qual
jeito plural, polifônico e multiversal que surge emana qualquer direito possível e, assim sendo,
na interligação com a diversidade espiritual e é considerado como o elemento de cuidado que
material da existência e que é preciso levar em deve ser defendido e protegido. A perspectiva
consideração no intuito de compreender como de sujeito indígena de direito do irmão mais

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 61-75, 2014


Os sujeitos por trás dos direitos | 73

novo apresenta aqui uma configuração nova: relação com as múltiplas existências que tornam
não são os indivíduos e as coletividades as por- ação no mundo qualquer direito que emana de
tadoras e usufrutuárias dos direitos atribuídos e cada elemento presente no ser do território da
reconhecidos pelo Estado, mas, sim, os sujeitos Serra Nevada de Santa Marta.
indígenas os agentes que tornam ação no mun-
do esses direitos “escritos” no território a partir Notas
das práticas culturais, para além de qualquer
artifício criado e nomeado pela razão humana. 1.
Divisão político-administrativa do território
A defesa da integralidade do sítio sagrado colombiano.
Jukulwa evidencia tanto a importância dele en- 2. Segundo Uribe (1988), são vários os viajantes e
quanto existência, quanto o papel essencial que exploradores científicos nacionais e estrangeiros que
os indígenas cumprem como agentes e guardi- visitaram a Serra Nevada de Santa Marta durante
ões dos códigos consignados na Lei de Origem, o século XIX, entre eles, o militar colombiano
ou seja, como defensores do ser do território Joaquín Acosta em 1851; o francês Elíseo Reclús,
do Coração do Mundo que é a fonte de todos entre 1855 e 1857; o presbítero colombiano Rafael
seus direitos. Posicionar-se diante destas ques- Celedón em 1876; o naturalista inglês F. A. Simons
tões centrais para a continuidade das suas prá- em 1878; o poeta e romancista colombiano Jorge
ticas culturais que dão sentido à diferença que Isaacs em 1882; o geógrafo e geólogo alemão
os constitui, persistir na responsabilidade de Wilhem Sievers em 1886; o inglês J.T. Bealby em
manter os vínculos e de estabelecer os acordos 1887; e o conde francês José de Brettes entre 1891
necessários com as diferentes existências (entre e 1895.
elas, a do irmão civilizado) que participam des- 3. Dessa maneira os indígenas serranos referem-se aos
sa realidade compartilhada, e reiterar a necessi- não-indígenas. Consideram-se os irmãos mais velhos
dade de visibilizar e comunicar sua experiência da humanidade, detentores dos conhecimentos herda-
pelas ações conjuntas dos quatro povos serranos dos desde o começo dos tempos pelos seus pais e mães
e suas organizações, são as formas políticas que espirituais por meio da Lei de Origem e guardiões desse
acompanham seus posicionamentos diante das conhecimento no intuito de garantir a continuidade e
questões que, como no caso da construção do equilíbrio de tudo que existe.
porto multipropósito de Dibulla, colocam em 4. Refiro-me particularmente à Convenção 169 da
risco o ser do território e, nesse caminho, o que Organização Internacional do Trabalho sobre Povos
para eles é a possibilidade de ser e de agir como Indígenas e Tribais, o instrumento internacional vin-
diferença viva. culante mais antigo que trata especificamente dos
Logo, continuar cumprindo a missão que direitos desses povos, e que reconhece, entre outros,
lhes foi entregue de ser guardiões do seu territó- o direito de autonomia e controle de suas próprias
rio (e agir em coerência com aquilo) é para eles instituições, formas de vida e desenvolvimento econô-
a questão política de fundo que subjaz qualquer mico, assim como a propriedade da terra e de recursos
discussão e negociação possíveis no campo do naturais.
reconhecimento e defesa dos seus direitos como 5. Instituição legal e sociopolítica – herança das institui-
indígenas. Consequentemente, a pauta política ções econômicas coloniais – de caráter especial assen-
apela ao respeito da função que cumprem como tada na propriedade coletiva da terra.
parte dos sujeitos que estão por trás desses di- 6. A reserva Arhuaca (1974), posteriormente constituída
reitos, o que quer dizer: sua participação na em Resguardo Arhuaco da Serra (1983); o Resguardo

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74 | Patrícia Lora León

Businchama de Pueblo Bello (1996); o Resguardo relação o jaqi contém a chave da pluralidade de vidas
Kogui-malayo-arhuaco (1980); e o Resguardo terrestres e não terrestres, não só depende da estru-
Kankuamo (2003). tura dos direitos humanos, mas também se encontra
7. Instância política de unidade das organizações in- imerso em um mundo de existências e faculdades plu-
dígenas dos quatro povos serranos (Organização riversas. Nesta multidimensionalidade garantem-se os
Gonawindua Tayrona, Confederação Indígena Tayrona, direitos plenos e múltiplos, de forma diferente dos di-
Organização Wiwa Yugumaiun Bunkwanarrwa reitos humanos de origem ocidental, contradizendo a
Tayrona e Organização Indígena Kankuama) criada noção filosófica básica de que os direitos humanos são
em 1999. inerentes à pessoa”. (DAMAZIO, 2009, p. 47)
8. Princípio cosmológico compartilhado pelos povos
da Serra Nevada que dá sustento ao exercício quo- Referências bibliográficas
tidiano da identidade indígena, estrutura as formas
organizativas próprias e define os lineamentos na re- ARIZA, Libardo J. Derecho, saber e identidad indígena.
lação do indígena serrano com tudo o que existe no Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2009.
mundo. BARBOSA, Reginaldo. El orden del todo. Sierra
9. O território é, na sua perspectiva, “um livro aberto” Goanawindwa – Shwndwa, un territorio de memorias,
preenchido do conhecimento e dos códigos que, a tendencias y tensiones en torno al ordenamiento ances-
partir da Lei de Origem, garantem a vida. Por meio tral. Bogotá, La Carreta Editores, 2011.
dele é possível acessar a esses códigos, escritos nas pe- CARRILLO, Diana; PATARROYO, Santiago. Derecho,
dras, as lagoas, as montanhas, os rios, as árvores, en- interculturalidad y resistencia étnica. Bogotá:
fim, em cada ser da natureza. Universidad Nacional de Colombia, 2009.
10. Cerimônias ou rituais necessários para obter as “per- CONSEJO TERRITORIAL DE CABILDOS DE
missões” requeridas dos espíritos ancestrais para ação LA SIERRA NEVADA DE SANTA MARTA.
conjunta do homem com o mundo. Declaración conjunta de las organizaciones indígenas de
11. A concepção indígena aymará de direitos humanos, la Sierra Nevada para la interlocución con el Estado y la
referida pela autora, evidenciaria assim uma forma sociedad nacional. Santa Marta: Imagen Visual, 1999.
“outra” de compreensão da subjetividade moderna e __________. Lineamientos para la coordinación institu-
do sujeito de direitos, concebido como “um ser re- cional (Documento de trabalho). Santa Marta, 2003.
lacionado com a multidimensionalidade”, atrelado a __________. Visión ancestral indígena para el ordena-
uma “cadeia intrínseca” que incorpora todos os com- miento territorial de la Sierra Nevada de Santa Marta.
ponentes da natureza e da ordem cosmológica: “Os (Documento de trabalho). Santa Marta: 2006
direitos humanos vistos a partir do mundo indígena __________. Posición de los cuatro pueblos indígenas
devem ser entendidos como um todo indivisível e de la Sierra Nevada de Santa Marta frente a los
interconectado. A dignidade da pessoa deve ser con- proyectos multipropósito de Puerto Brisa en Dibulla y
textualizada em seu meio social, cultural, emotivo, represas en Besotes y Rancheria: afectación a nuestras
ambiental, geográfico e cosmológico. Os fundamentos culturas. (Documento de trabalho). Santa Marta,
humanos indígenas concebem o sujeito como ser re- 2007
lacionado com a multidimensionalidade, onde não há DAMÁZIO, Eloise da S. Descolonialidade e intercultu-
normas abstratas, pois a relação entre jaqi (indivíduo ralidade epistemológica dos saberes político-jurídicos:
social), comunidade, autoridade, divindades, animais, uma análise a partir do pensamento descolonial. In:
plantas e cosmos, constitui uma cadeia intrínseca que Direitos Culturais, Santo Ângelo (RS), v. 4, n. 6, p.
outorga e garante a geração de direitos à vida. Nesta 105-118, 2009.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 61-75, 2014


Os sujeitos por trás dos direitos | 75

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Autónoma de México, 1998. 2008.

autora Patrícia Lora León


Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 61-75, 2014


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Visão e o cheiro dos mortos: uma experiência


etnográfica no Instituto Médico-Legal

Flavia Medeiros
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p77-89 “revelatory experience” that occurred when the


research was already underway , and showed me
resumo Neste artigo irei apresentar e analisar how the smell is a constitutive element of the re-
duas circunstâncias diferentes da “experiência etno- lationship among people that circulate daily in
gráfica” que obtive ao realizar trabalho de campo no the hallways and rooms of the IML. For this, I
Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (IML). use my perception of two human senses: vision
A “primeira impressão” ao estar em contato com o and smell. And I analyze them as tools that I mo-
campo e ver corpos mortos; e a “experiência revela- bilized for conducting fieldwork with informants
dora”, que ocorreu quando a pesquisa já estava em whose main activity was handling with dead bod-
andamento, e me demonstrou como o cheiro é um ies. Thus, I present how conducting fieldwork
elemento constitutivo das relações dos que circulam among the dead I have identified my visual and
cotidianamente entres os corredores e salas do IML. olfactory perceptions as central methodologi-
Para tanto, acionando a percepção de dois sentidos cal tools for reflection for my ethnographic
humanos – a visão e o olfato –, analiso como no experience.
contexto pesquisado estes são ferramentas daqueles keywords Ethnography; Dead; Smell; Vision;
cuja principal atividade é a manipulação de corpos Medical Legal Institute.
mortos (médicos legistas, papiloscopistas legistas e
técnicos de necrópsia). Discuto ainda como, ao re-
alizar trabalho de campo entre mortos, identifiquei Introdução
as percepções visuais e olfativas como ferramentas
metodológicas centrais para a reflexão da “experiên- Na Antropologia, diversos trabalhos apresen-
cia etnográfica.” tam como a percepção e posterior classificação
palavras-chave Etnografia; Mortos; Olfato; dos sentidos humanos, e também os possíveis
Visão; Instituto Médico-Legal. usos metafóricos destes, conformam um im-
portante objeto para a análise etnográfica (cf.
Sight and smell of corpses: an ethnographic CLASSEN, 1993, 1997; BUBANDT, 1998;
experience in the Forensic Medicine Institute VIVEIROS DE CASTRO, 2002; HOWES,
2004; OVERING, 2006; RENOLDI, 2006).
abstract In this article I will present and Ao acessar e compreender as experiências de
analyze two different circumstances in “ethno- ser e habitar o mundo, na continuidade e di-
graphic experience” that got me while perform- ferenças construídas culturalmente entre o
ing fieldwork in the Medical-Legal Institute in corpo e a mente (INGOLD, 2000), aciona-se
Rio de Janeiro. The “first impression” being in a percepção dos sentidos humanos, e a experi-
touch with the field and see the dead bodies; and ência advinda daí passa a compor a etnografia

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


78 | Flavia Medeiros

e elucidar formas possíveis de relação com o trabalho de campo, visão e cheiro foram a mim
meio ambiente e o mundo cotidiano. apresentadas como habilidades desenvolvidas por
Construído pela “prática etnográfica”, que médicos legistas, papiloscopistas e técnicos de ne-
tem no olhar sua principal ferramenta, esse co- crópsia que, naquele contexto, tinham como prin-
nhecimento sobre o outro é fruto da observação cipal atividade a manipulação de corpos mortos.
planejada e continuada (cf. MAGNANI, 2009, Neste sentido, ao refletir sobre questões oriundas da
p. 151). Na realização contínua desse exercício, realização do trabalho de campo entre mortos, de-
porém, a etnografia também passa a ser vislum- monstrarei como percepções sensoriais se apresen-
brada como uma experiência através da qual o tam como ferramentas metodológicas na reflexão da
pesquisador não apenas acessa e compreende experiência etnográfica, ao mesmo tempo em que
os elementos acionados pelos interlocutores, foram um elemento relevante na comunicação que
como também é movido, durante o trabalho estabeleci com meus interlocutores.
de campo, a perceber a partir de seus próprios A seguir, o artigo está organizado da seguinte
meios, do seu “organismo/pessoa”, aquele meio forma: primeiramente cotejo o trabalho de campo
ambiente no qual está imerso, acessando assim realizado no IML com aqueles que manipulavam
um novo mundo para si (INGOLD, 2000, corpos mortos. Em seguida, apresento as represen-
p.153). E, nesta direção, constitui a “experiên- tações e opiniões de colegas, amigos e familiares
cia etnográfica”, que desenvolve “tipos não-vi- sobre os mortos e o IML, e como essas me permi-
suais de percepção”, tendo o cheiro como uma tiram compreender as relações de “pureza” e “peri-
de suas alternativas para abranger os diferentes go” (DOUGLAS, 2010) socialmente estabelecidas
estímulos provocados na realização do trabalho em relação aos mortos. Posteriormente, descrevo a
de campo (BUBANDT, 1998, p. 49). minha “primeira impressão” (MAGNANI, 2009)
Neste artigo tenho como objetivo refletir acer- no trabalho de campo e demonstro como o ver e
ca da minha “experiência etnográfica”, durante o o estar em contato com mortos permitiram-me
trabalho de campo1 que realizei no Instituto acessar as “intensidades específicas”, ou seja, os
Médico-Legal do Rio de Janeiro,2 analisando “afetos [...] que geralmente não são significá-
aquele ambiente a partir de duas formas de per- veis” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159) e que,
cepção: a visão e o olfato. Para cada uma delas, por sua vez, tornaram possível a naturalização
destacarei uma circunstância distinta da “experi- da relação de ver e estar em contato com os cadá-
ência etnográfica” que obtive. Na primeira, o veres. A seguir, descrevo a “experiência reveladora”
olhar, ferramenta de percepção tradicional da (MAGNANI, 2009) na qual o cheiro de um cadá-
antropologia, se fez central e é apresentado ver específico me alertou para como o odor que pre-
por meio da “primeira impressão” ao estar em enchia o espaço e impregnava os corpos auxiliava
contato com o campo e ver corpos humanos na classificação dos cadáveres, na organização do
sem vida. A outra circunstância descrita tem o espaço e marcava as relações no meio ambiente.
cheiro como forma de percepção que, em uma Além disso, demonstro como para aqueles que têm
“experiência reveladora”, se demonstrou como a habilidade do faro,3 o olfato é ferramenta de or-
um elemento constitutivo das relações dos que ganização nas relações no tempo e no espaço. Por
circulam cotidianamente entres os corredores e fim, reflito sobre como essa experiência etnográfi-
salas do IML. ca possibilitou compreender aspectos referentes ao
Ademais, minhas percepções, acionadas como ambiente por mim observado e de qual forma uma
ferramentas que mobilizei para a realização do etnografia que leve em conta a multiplicidade das

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Visão e o cheiro dos mortos | 79

percepções é o meio que o antropólogo possui de No que se refere aos corpos humanos sem
construir conhecimento sobre o outro, tanto quan- vida, são executados exames necroscópicos que
to (re)construir-se após a passagem pelo trabalho de possibilitam identificar a causa mortis, ou me-
campo. lhor, a defini-la em termos médico-legais de
mortes violentas ou daquelas que não tenham
O Instituto Médico-Legal diagnóstico médico conclusivo. Assim, víti-
mas fatais de acidentes de trânsito; projéteis
O IML é onde corpos sem vida encontram por arma de fogo (PAF); perfuração por arma
a morte e, por meio de técnicas da medicina-le- branca (PAB); incêndios; afogamentos; atro-
gal e de procedimentos burocráticos e policiais, pelamento; desabamentos; envenenamento;
são definidos como mortos, sendo a morte suicídios; acidentes em geral; ossadas; partes de
institucionalizada. A partir dos processos de corpos humanos – denominados despojos; ca-
institucionalização e distanciamento da morte, dáveres encontrados em via pública, residência
“tudo se passa na cidade como se já ninguém ou estabelecimento comercial; fetos e alguns
morresse” (ARIÈS, 1988, p. 310), mas, no indivíduos que morrem em estabelecimentos
IML, a caixa preta das vítimas fatais da cidade de saúde têm seus corpos encaminhados ao
do Rio de Janeiro, tudo se passa como se, na IML. São esses cadáveres que ocupam as salas
cidade, todo mundo estivesse, a todo tempo, e circulam entre os corredores do Serviço de
morrendo. Necrópsia do IML. Lá a morte não está escon-
O Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, dida, ela é um “acontecimento” (SAHLINS,
nome oficial do IML do Rio de Janeiro, está 1990), pois faz parte do cotidiano. Numa so-
inscrito na estrutura da Secretaria de Estado de ciedade onde a morte não é bem-vinda e os
Segurança, subordinado diretamente à chefia mortos são continua, ritual e burocraticamente
da Polícia Civil, no grupo de instituições de- expulsos de suas relações sociais, pode-se afir-
nominado Polícia Técnico-Científica. Além mar que o IML é o esconderijo do “tabu da
do IML, compõem esse grupo: o Instituto morte” (RODRIGUES, 2006).
de Criminalística Carlos Éboli (ICCE); Inicialmente, meu objetivo era compreender os
o Instituto de Identificação Félix Pacheco procedimentos realizados em relação aos cadáveres,
(IIFP); o Instituto de Perícias e Pesquisa bem como identificar as lógicas e os valores morais
em Genéticas Forense (IPPGF); e os Postos acionados pelos funcionários dessa instituição no tra-
Regionais de Polícia Técnico-Científica. balho cotidiano com corpos sem vida. Assim, duran-
O IML está localizado na Leopoldina, re- te o trabalho de campo, observei como uma série
gião central da cidade do Rio de Janeiro, e fun- de procedimentos referentes aos mortos eram
ciona num prédio de cinco andares que fora realizados com a finalidade de produzir a identi-
construído, no ano de 2009, com a finalidade ficação civil e estabelecer a causa mortis de um ca-
de abrigar esse instituto. No IML são realiza- dáver por meio dos exames médico-legais. Meus
das perícias médico-legais em corpos humanos interlocutores se referiam a este conjunto de
com e sem vida. Tais procedimentos visam à procedimentos, que denominei de “construção
construção de documentos públicos que per- institucional de mortos” (MEDEIROS, 2012),
mitam estabelecer uma verdade médico-legal como “matar o morto”. Como demonstrarei ao
sobre os corpos, envolvidos ocasionalmente em longo do artigo, tendo como referência direta o
algum tipo de ocorrência policial. corpo sem vida, tais procedimentos construíam

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classificações sobre os mortos, projetando neles pesquisar num lugar sujo, contaminado, fedido,
ações e ativando suas relações sociais. carregado?

Quem vê, nem acredita que ela possa Dente de alho


fazer um trabalho de campo desses!
Diversas dicas e conselhos me foram apre-
Ao contar a colegas, familiares e até professo- sentados e, em certa medida, me preocupei
res no programa de pós-graduação onde seria meu com eles. Uma amiga umbandista, ao saber de
trabalho de campo, sempre recebia reações, minha intenção de pesquisar no IML, reco-
fossem elas de surpresa, nojo ou preocupação. mendou-me o uso de um dente de alho junto
Alguns diziam: você é maluca!, outros achavam ao peito, pois aquele é um lugar muito pesado.
corajoso, maneiro, mórbido, sádico, interessante. Eu também deveria tomar banhos especiais –
Não me recordo de alguém que tenha ficado por exemplo, com sabão de coco antes de ir, e
apático. Ninguém disfarçava surpresa, nojo, ad- com sal grosso ao voltar para casa. Os banhos,
miração ou preocupação todas as vezes que eu falava sempre do pescoço para baixo, e o dente de
sobre minha pesquisa. alho funcionariam como uma proteção para as
Muitas pessoas não viam em mim alguém que energias ruins com as quais eu entraria em con-
pudesse trabalhar no IML. Nossa, tão boniti- tato ao também circular naquele espaço. “No
nha, tão novinha, tão limpinha. Quem vê, nem IML as pessoas morreram com muito sofrimento,
acredita que ela possa fazer um trabalho desses!, seus espíritos ainda não estão tranquilos e ficam
me disse uma professora durante uma aula procurando alguém vulnerável para ocupar”, me
de Métodos em Antropologia. Quando vista explicou.
como antropóloga fazendo pesquisa no IML, era Muitos poderiam achar esse procedimento
atingida pelas preocupações dos outros, em de banhos e dente de alho uma bobagem; ou-
especial preocupações de caráter emocional e tros, no entanto, creem nele e não deixariam
espiritual, como demonstro adiante. de fazê-lo. Investindo em minha “experiência
Após explicitar as motivações e explicar etnográfica”, optei pela combinação das duas e,
como construía as questões da pesquisa, as apesar de achar que poderia ser uma bobagem,
pessoas demonstravam interesse. Além de faze- o fiz numa das vezes que fui ao IML. Não sei
rem muitas perguntas em relação ao trabalho, se pela crença no ritual ou por acreditar em mi-
lembravam-se de histórias pessoais ou que ou- nha amiga, mas o dente de alho foi comigo ao
viram contar a respeito do IML. Muitas pes- IML simplesmente para não ter na consciência
soas também me indicavam filmes e livros que o peso de não carregá-lo.
remetiam à morte e aos mortos. Como nos apresenta Mary Douglas (2010),
No entanto, a reação das pessoas colocava qualquer noção de impureza se relaciona dire-
algumas questões a mim: por que tantas pes- tamente a determinado sistema de crenças que
soas, apesar de curiosas e de terem algum tipo se propõe a organizar o mundo a partir de um
de conhecimento sobre a morte e os mortos, sistema de classificação ideal. Ao tomar banho
repudiavam a priori o Instituto Médico-Legal? e colocar dente de alho no peito antes de en-
Por que o fato de uma antropóloga realizar trar em contato com os mortos, expressei uma
trabalho de campo com mortos era algo tão tentativa de me purificar e proteger-me, afas-
surpreendente? Por que, para muitos, escolhi tando os maus espíritos que por lá circulavam.

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Dessa forma, eu mesma reafirmava esse siste- como seria quando eu estivesse no trabalho de
ma de crenças e reproduzia as representações campo. Sabia que naquela instituição há uma
de nojo e contaminação em relação à morte e grande diversidade de estados do corpo. Não
aos mortos. seriam apenas corpos de pessoas inertes como
eu já havia visto5. mas também ossadas, carbo-
Quanto à visão oposta – de que o ritual primi- nizados, despojos, putrefatos, baleados, corpos
tivo nada tem em comum com nossas ideias de com dimensões e formas alteradas etc. As im-
limpeza – lastimo por ser igualmente prejudicial pressões de professores, colegas, amigos e a fala
ao entendimento do ritual. Nesta visão, nossos dos meus interlocutores reforçavam que o IML
atos de lavar, escovar, isolar e desinfetar, têm so- era reconhecidamente o espaço dos mortos e
mente uma semelhança superficial com purifi- da morte.
cações rituais. Nossas práticas são solidamente Ao se referir ao afeto, a antropóloga
baseadas em higiene; as deles são simbólicas: Favret-Saada (2005) apresenta uma nova for-
nós matamos germes; eles afastam espíritos. ma de se relacionar com o trabalho de campo
(DOUGLAS, 2010, p. 47)   na qual ao “ser afetado”, o antropólogo per-
mite se expor à dimensão do outro, ao afeto
Não é que os “primitivos” apresentem as- dos seus interlocutores, enfim, a se submeter
pectos apenas simbólicos ao que se refere à à “experiência etnográfica”. Durante todo o
sujeira, enquanto “nós” – “ocidentais” e “mo- tempo que estive fazendo trabalho de cam-
dernos” – e “nossas ideias de sujeira” se refiram po no IML, os policiais buscavam me ensinar
ao caráter higiênico (DOUGLAS, 2010, p. como olhar os corpos e explicitavam sua com-
49).4 O que é “socialmente mal visto” em nossa preensão acerca das relações de distanciamen-
sociedade não é o IML, mas a própria ideia da to naturalmente tomadas diante dos mortos e
morte que o IML e os mortos trazem. Os mor- da morte. Na minha pesquisa, foi a partir da
tos são representantes da desordem nessa clas- experiência cotidiana de meus interlocutores
sificação sistemática, e o IML é o lugar onde com os cadáveres que eu pude experimentar
os mortos são manipulados e as técnicas sobre como era o ver e o estar em contato com os
estes são exercidas. cadáveres.
Portanto, o que se expressa pelas reações Desde a “primeira impressão” foi assim.
e impressões que descrevi pode ser pensado Vinte e sete de dezembro era a data que havia
como repúdio e desejo de distanciamento por marcado com o papiloscopista que se dispo-
parte daqueles cuja noção não admite a morte nibilizou a me auxiliar no início da pesquisa.
como parte da vida. “Resumindo, nosso com- Cheguei ao IML no horário marcado e, após
portamento de poluição é a reação que condena passar pelo balcão, fui direto a sua sala. Lá,
qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou ele me perguntou se eu queria ver os mortos,
contradizer classificações ideais” (DOUGLAS, ao que respondi que não era uma questão de
2010, p. 51). querer, mas que poderia vê-los, sim. Naquela
ocasião, ele havia combinado que iria me apre-
Estando lá: “primeira impressão” sentar a estrutura do prédio do IML, e com a
positividade de minha resposta, saímos pela
Deixando de lado as impressões e repre- entrada principal, passando pelo pátio – que
sentações sobre o IML, passei a me focar em também serve de estacionamento – e seguimos

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pelos fundos do prédio, onde estava a porta Com a porta da geladeira aberta, o papilos-
pela qual os corpos entravam no instituto. Ao copista me explicava como é o procedimento
invés de fazer o percurso dos vivos, o papilosco- de organização de corpos ali. Foi quando um
pista optou por me mostrar o IML a partir do dos técnicos de necropsia, responsável pela
percurso feito pelos mortos. remoção de corpos, se aproximou, nos cum-
Assim que subimos a rampa, havia o cadá- primentou e entrou na câmara. Lá olhou em
ver de uma senhora de aproximadamente 90 três gavetas, abriu a terceira, viu o número de
num caixão. Não me assustei, pois já espera- registro na placa de metal presa no dedão do
va ver um morto e, talvez, porque, depois de pé do cadáver e preparou a maca de remoção. A
tantos meses ouvindo histórias e absorven- funerária havia chegado para buscar o corpo.
do representações, esperasse por “algo pior”. Saímos dali.
Contudo a lembrança daquele corpo franzino e Voltávamos pelo mesmo corredor, e no-
encolhido com a pele já num tom esverdeado, vamente passamos pela Sala de Necrópsia.
mal encaixado num caixão, por muito tempo O cadáver da mulher ainda era necropsiado
foi facilmente acessada em minha mente. enquanto o cadáver de um homem aguar-
Depois, seguimos pelo Setor de Necrópsia dava por sua vez na outra mesa. Um pouco
e passamos em frente às salas onde eram fei- depois, quando os exames já tinham sido re-
tos os exames. Em uma delas o cadáver de uma alizados, fui com o papiloscopista até o Setor
mulher aguardava para ser aberto. Fomos até de Vestes para observá-lo coletar as digitais.
o Laboratório Necropapiloscópico, do lado Eram os cadáveres da mulher e do homem
oposto do corredor, pegar o E.P.I6. Enquanto que eu vira minutos antes. Ela havia sofrido
vestia as luvas, observava os potes de vidro um infarto no miocárdio, e ele fora balea-
com punhos, falanges e mãos carbonizados que do no abdômen. Ambos os corpos estavam
boiavam nas soluções químicas. Tive a certe- muito inchados. O papiloscopista iniciou
za de que naquele momento meu trabalho de seu procedimento de coleta de digitais pelas
campo havia começado. Minha sensação era de mãos da mulher.
ansiedade, não apenas por ver outros corpos Enquanto isso, contava-me sobre como
mortos, mas, principalmente, para ter certeza começou a trabalhar com mortos. No come-
de que eu não teria nojo ou qualquer problema ço tinha nojo; quando estava na Academia da
com cadáveres, pois disso dependia meu traba- Polícia Civil gastou todas as faltas que podia
lho de campo. Hoje compreendo que minha nas visitas do IML. A primeira vez que viu um
ansiedade era em ver naturalmente os corpos. morto tão de perto na vida foi quando começou
Dirigimo-nos à câmara frigorífica. Quando a trabalhar nesse Instituto, e que a dica que de-
passamos novamente pela sala de necrópsia, o ram para ele, a qual usa até hoje, é não olhar
corpo da mulher estava sendo aberto. Olhei ra- para o corpo, mas apenas para as mãos. Eu não
pidamente, mas não consegui ver nada. O pa- preciso de mais nada, só de saber se a digital tá
piloscopista abriu a porta da câmara frigorífica. boa ou não.
Junto com a saída do vapor gelado, a minha Ao compartilhar como desenvolveu sua téc-
ansiedade se resfriou. E então, pela primeira nica para lidar, manipular e identificar cadáve-
vez, passei a olhar atentamente para aquela res, o papiloscopista buscava demonstrar que,
coleção de corpos em gavetas, dos quais eu só em certo nível, compreendia a sensação de ver
conseguia ver os pés. corpos sem vida pela primeira vez, pois já havia

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passado por ela. Ou melhor, além dela, afinal simplesmente não queria pensar ou me im-
ele não apenas observava como inclusive deve- portar com eles.
ria tocar e movimentar os corpos. Tentei seguir Assim que cheguei em casa, o primeiro de-
a dica por ele oferecida e me concentrar em sejo era de tomar banho. Sabia que qualquer
olhar as mãos, mas a curiosidade de compreen- risco de contaminação biológica ou sujeira é
der a costura bizarra que atravessava longitudi- nulo7, mas a sensação era de que minhas roupas
nalmente o corpo, a cabeça jogada para o lado pesavam mais do que de costume.
direito, a língua quase que para fora da boca e
as pernas inchadas daquele corpo atraíam meu Impureza ou sujeira é aquilo que não pode
olhar. Assim como aqueles que trabalham roti- ser incluído, se se quiser manter um padrão.
neiramente com os cadáveres, eu estava tentan- Reconhecê-lo é o primeiro passo para a com-
do ver um cadáver naturalmente. preensão da poluição. Não nos envolve numa
A “comunicação involuntária” (FAVRET- distinção clara entre o sagrado e o secular. O
SAADA, 2005) que estabelecia com meus mesmo princípio se aplica do começo ao fim.
interlocutores se dava nos momentos em que Outrossim, não envolve uma distinção especial
nenhuma fala podia significar a sensação de es- entre primitivos e modernos: estamos todos
tar junto aos mortos por mais que se tentasse sujeitos às mesmas regras. (DOUGLAS, 2010,
fazê-lo. Apesar de descrever minha experiência p. 56).  
e as sensações que tive a partir delas, minha
descrição não é capaz de transmitir tal afeto: Nesse dia foi difícil não retomar incons-
“o próprio fato de que aceito ocupar esse lu- cientemente a imagem dos corpos. Fui deitar
gar e ser afetada por ele abre uma comunicação às onze horas da noite. Ainda me esforçava
específica com os nativos: uma comunicação para pensar em outra coisa e tentei até ficar
sempre involuntária e desprovida de inten- cansada de tanto forçar o pensamento, mas
cionalidade, e que pode ser verbal ou não”. só consegui dormir poucas horas antes do
(FAVRET-SAADA, 2005, p.159). amanhecer.
No final do dia, saí do IML e joguei fora
o dente de alho que estava junto ao meu pei- [...] quando um etnógrafo aceita ser afetado,
to. Imagens iam e vinham na minha cabeça. isso não implica identificar-se com o ponto de
Eram imagens de corpos mortos. E enquan- vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de
to me dirigia ao ponto de ônibus e passa- campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
va por transeuntes, rapidamente na minha afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de
mente via essas pessoas como corpos sem ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois
vida, deitadas nas macas de metal do IML se o projeto de conhecimento for onipresente,
aguardando pela necrópsia. Quanto mais eu não acontece nada. Mas se acontece alguma coi-
me esforçava para não pensar em cadáveres, sa e se o projeto de conhecimento não se perde
mais eu pensava. Eram cadáveres desconhe- em meio a uma aventura, então uma etnografia é
cidos, de pessoas de quem não sabia o nome possível. (FAVRET-SAADA, 2005, p.160)
ou a identificação. Na tentativa de parar de
ver imagens dos corpos, me esforçava para Em algumas semanas de observação, esse
pensar em outras imagens. Buscando natu- ver involuntário diminuiu. E, depois de algum
ralizar o ver cadáveres, naquele momento, eu tempo, o ver cadáveres já não me impressionava

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tanto. Habituei-me a ver corpos e assistir a to- Se, por um lado, eu já havia naturalizado o
dos os procedimentos nos exames de necrópsia. ver e o estar com os mortos e até estava protegi-
Aos poucos, no decorrer de um pouco mais do da deles, por outro me encontrava plenamente
que a metade dos nove meses de trabalho siste- vulnerável a sua presença. O repúdio e a curio-
mático de campo, considerava que eu havia me sidade em relação ao IML não se dão apenas
socializado com os corpos. Já parecia ter na- por essa via espiritual, em que o contato com
turalizado aquela atividade. E, ao rememorar os mortos é visto como algo perigoso. O cheiro
os cadáveres para narrá-los, sou capaz de cons- daquele lugar também é tomado como um mo-
truir mentalmente as imagens desses corpos. Se tivo para o distanciamento e evidência de sua
após minha “primeira impressão” no IML eu impureza. É um dos principais motivos para o
não tinha controle sobre as visões em minha repúdio, mas também fator de curiosidade aos
mente, depois do trabalho de campo finalizado que não conhecem o local.
continuei não o tendo, só que em um sentido O sentir cheiro de carnes humanas em es-
diferente. Se a princípio essas imagens eram tado de putrefação – os chamados corpos po-
exarcebadas, depois se tornaram quase nulas. dres – é considerado muito desagradável. E, ao
Eu havia aprendido a ver corpos de pessoas mencionar o IML no Rio de Janeiro, muitas
mortas. pessoas comentam que no antigo IML, cujo
Além disso, compartilhar o mesmo espaço endereço é na Rua dos Inválidos no bairro da
com corpos sem vida por um período de tempo Lapa, o cheiro era tão forte e tão ruim que não
construiu em mim uma capacidade de imagi- só o prédio mas também seu entorno fediam a
nar cadáveres. E, por mais que eu não consiga corpos putrefatos. No atual lugar, os corpos, em
vê-los exatamente como os vi nos corredores e geral, não circulam no interior do prédio, tendo
salas do IML, sou capaz de representar mental- uma área anexa reservada e separada a eles. Foi
mente o cadáver de qualquer pessoa e inclusive por isso que, quando o cadáver de Lucilene8 foi
saber que os corpos sem vida que figuram em aberto na sala dois do Setor de Necrópsia, um
filmes e séries policiais, por exemplo, muito grande incômodo se instalou, o fedor era muito
pouco têm a ver com o possível. forte, e ao perceber a intensidade daquele chei-
ro, eu passava ali por uma “experiência revela-
Cheiro: “experiência reveladora” dora” em meu trabalho de campo.
Esqueceram essa mulher no hospital!, excla-
[...] as pessoas podiam fechar os olhos diante da mou o perito ao constatar que o cadáver, com
grandeza, do assustador, da beleza, e podiam ta- morte registrada no hospital às 18 horas, já
par os ouvidos diante da melodia ou de palavras estava em estado de putrefação às 21 horas.
sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. No interior do cadáver, vísceras em putrefação
Pois o aroma é um irmão da respiração - ele pe- e estômago em estado intermediário de putre-
netra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe fação corroboravam com a hipótese do perito
caso queiram viver. E bem para dentro delas é médico-legista: Sacanagem! Ela tá podre!.
que vai o aroma, diretamente para o coração, Quando saí da sala de necropsia e entrei na
distinguindo lá categoricamente entre atração e de digitação de laudos, a policial do setor virou-
menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem -se e me disse: Vixe, você tá fedendo! Cheirei meu
dominasse os odores dominaria o coração das cabelo e minhas roupas em busca do fedor, e não
pessoas. (SUSKIND, 1985).   encontrei. Sério?! Você acha?, e levei meu cabelo

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para próximo ao nariz dela. Ih, não é você, não! vezes o odor se assemelha ao de dejetos fecais;
Você não foi lá fora?. Ela se referia ao outro exame outras vezes, quando coletado o material do es-
que ia ser realizado na sala de necrópsias destina- tômago, um forte cheiro similar ao de vômito
da a putrefatos. Não, tava aqui mesmo, respondi. era exalado. Cadáveres carbonizados também
Não é possível! Esse cheiro é daqui, então?! Meu apresentam seu cheiro característico. Como
Deus! Neguinho perde a noção, espantou-se. carnes que passaram do ponto, o odor de um
O forte cheiro do cadáver putrefato de corpo humano queimado é percebido como
Lucilene ocupou os corredores. O perito médi- um dos menos desagradáveis.
co-legista entrou na sala de digitação de laudos. Já na câmara frigorífica, junto com o ar frio
Esse podrinho eu acho que vou indeterminar, se que sai desse congelador de corpos, chega o
referindo a causa mortis que iria declarar no odor azedo de carne não tão fresca. O cheiro do
Laudo Médico-Legal de Lucilene: morte inde- Setor de Necrópsia, em geral, não é agradável,
terminada por avançado estado de putrefação do mas, para mim, também não era insuportável.
cadáver. Enquanto o médico-legista e a poli- Quanto mais me aproximava do fim do corre-
cial construíam o Laudo, e o técnico de cortes dor, onde está a câmara frigorífica, percebia que
suturava o cadáver, funcionários da equipe de menos agradável ficava o cheiro.
limpeza começavam o trabalho no corredor Pela percepção de diferentes odores, o ol-
para amenizar o cheiro. Os produtos de lim- fato auxilia na leitura do corpo, permitindo
peza utilizados eram tão densos, que dessa vez identificar seu estado e condição. O olfato é a
foi o cheiro da creolina que incomodou perito ferramenta que faz perceber os cheiros e ativa
e policial. Cacete, isso aqui não tem janela! Cês a memória dos que por aquelas salas e corre-
querem me matar?, exclamou a policial. dores circulam. O cheiro é uma das maneiras
O cheiro, ou fedor, era tema constante possíveis de percepção do meio ambiente e de
de conversa entre os funcionários do IML. expressão da existência do “organismo/pessoa”
Os serventes da empresa terceirizada de limpeza (INGOLD, 2000, p. 95). A elaboração dos
contavam que muitas pessoas, principalmente aromas no corpo e na mente constitui um lu-
mulheres, não conseguiam trabalhar no Setor gar determinado (CLASSEN, 1993) e, ao mes-
de Necrópsia porque passavam mal devido ao mo tempo, quando vinda dos corpos sem vida,
cheiro. Ver morto a gente acostuma, mas o chei- mantém viva a presença dos mortos no mundo.
ro mexe com a gente diferente... nem sempre tem Além daquele dos corpos, outros odores ha-
como controlar, me explicou uma das serventes. bitam os corredores do IML. Metaforicamente,
Para ela, o cheiro é um daqueles sentidos cuja o faro é o “olfato dirigido” (RENOLDI, 2007a,
percepção atinge os sentimentos9. p. 156) que torna os policiais capazes de per-
Diferente do cadáver de Lucilene, durante ceber e intuir o mundo. No Instituto, o faro
a realização de necrópsias de corpos não-putre- policial faz parte do denominado tirar policial,
fatos, o odor é outro. Esse era descrito como sendo usado como uma ferramenta de avalia-
sendo cheiro de sangue, muito sangue mistura- ção policial que constitui o saber dos policiais
do. Há também o odor dos órgãos do sistema sobre o outro (KANT DE LIMA, 1995). Ele é
digestório e as substâncias presentes neles. Os ativado pelos odores que ocupam os corredores
cadáveres são frescos, mas os alimentos ingeri- e são indicadores das práticas e dos momen-
dos horas antes de morrer, nem tanto. Assim, tos da rotina de trabalho. O cheiro permite
quando aberto o abdômen dos cadáveres, por que se visualizem coisas onde essas não estão

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evidentes e que se identifiquem características O escrever se dá enquanto o momento,


nas pessoas, lugares e situações antecipadamen- ou ato cognitivo, nesse processo de constru-
te – “o olfato não é nem o ‘treinamento’, nem ção do conhecimento quando o olhar previa-
a ‘intuição’ em si, mas a complexa coexistência mente orientado é refratado pela disciplina, e
em movimento dessas habilidades, mais outras, o ouvir atento e exercitado já foram realizados
talvez” (RENOLDI, 2007b, p. 62). (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). A etno-
Aos que têm a habilidade do faro, o chei- grafia é, assim, a expressão do pensamento e da
ro é ponto de referência nas relações de espaço memória do antropólogo no “being here” sobre
e tempo, sendo um dos indicadores do ritmo o “being there”. “Seja a etnografia o que mais
social do IML. Isto é, permite perceber e iden- for […], ela é, acima de tudo, uma apresen-
tificar os diferentes odores que se espalham tação do real, uma verbalização da vitalidade.”
pelo ambiente. Gradativamente, no trabalho (GEERTZ, 2009, p. 186). A etnografia é por-
de campo, aprendi a perceber que o cheiro de tanto, uma construção narrativa da experiência
café entre as 15 e 16 horas era indicativo da vivida pelo antropológo com seus interlocuto-
volta do horário de almoço, e do retorno, após res. Para descrever os processos institucionais
o café, da realização de exames. Passei a identi- de construção de mortos, apresentei algumas
ficar também que o cheiro de formol estava nos de minhas interações com meus interlocutores
laboratórios que conservam órgãos e partes hu- durante o trabalho de campo, destacando as
manas; e que, na parte externa, vez ou outra o experiências pelas quais passei ao elaborar essa
odor de madeira dos caixões da Santa Casa era etnografia.
encoberto pelo de fumaça que saía dos canos
de descarga dos rabecões, dos carros funerários A etnografia como experiência
e dos veículos da Polícia Militar que entravam
e saíam trazendo pessoas detidas para exames Identificar as sensações que percebia durante
médico-legais. Diante de tantos aromas, chei- o trabalho de campo fez parte de um processo
ros, fedores e perfumes, o IML seria um paraí- que me permitiu obter “uma experiência”, no
so olfativo a Grenouille10. sentido apresentado por Dilthey e discutido por
Turner (2005)11. Ao se referir à origem da pala-
Estando aqui vra experiência, Turner demonstra que ela se re-
fere tanto a uma passagem, no sentido de passar
Na Antropologia, a textualização dos fenô- por algo, o que denota um rito; quanto a um
nemos socioculturais observados a partir do experimento, um perigo em relação a algo que
“being there” (GEERTZ, 2009), da “capacidade põe o passante diante do risco do desconhecido.
de nos convencer de que o que eles (os antropó- Nessa perspectiva, ser antropóloga num
logos) dizem resulta de haverem realmente pe- espaço de construção da morte foi um expe-
netrado numa outra forma de vida” (GEERTZ, rimento tanto quanto uma passagem. Para al-
2009, p. 15), se dá enquanto um processo de guns, um risco junto aos mortos. Para mim,
comunicação interpares e de conhecimento. É um rito junto aos vivos. Realizar o trabalho de
por meio de uma linguagem específica, o idio- campo, esse rito de passagem (DA MATTA,
ma da disciplina, que as categorias e os conceitos 1981), é necessário antropologicamente e
básicos constitutivos da antropologia se apresen- implica a possibilidade de redescobrir for-
tam para a análise do que se viu, ouviu e sentiu. mas de relacionamento social. Foi no IML, a

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instituição que consolida a linha de separação en- Notas


tre mortos e vivos, que me apresentei para tal rito
da experiência antropológica do trabalho de cam- 1. Realizei nove meses de trabalho de campo nesta ins-
po. Lá estabeleci novas relações sociais e explorei tituição, em pesquisa que resultou na etnografia
minhas capacidades de percepção e compreensão apresentada em minha dissertação de mestrado em
sobre um meio ambiente desconhecido, sobre um Antropologia, intitulada “Matar os mortos: a constru-
mundo ocupado pelos vivos, mas que é represen- ção institucional de mortos no Instituto Médico-Legal
tado como sendo dos mortos. E foi a imersão do Rio de Janeiro”, orientada pelo Prof. Roberto Kant
nesse universo social, o distanciamento das de Lima e coorientada pela Dra. Lucía Eilbaum. A et-
minhas próprias relações sociais para a cons- nografia foi defendida em abril de 2012 no Programa
tituição de outras, novas, que me permitiram de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
passar pelas experiências que aqui descrevi e Federal Fluminense.
analisei sob o ponto de vista etnográfico. 2. A partir daqui, identificado ao longo do texto pela si-
Portanto, a reflexão sobre esses sentidos e sen- gla IML.
sações faz parte de um processo que me permitiu 3. Ao longo do texto, apresentarei categorias nativas em
obter “a experiência etnográfica”. Realizar uma itálico. As categorias analíticas estão entre aspas.
etnografia num espaço de construção dos mor- 4. Redimo-me aqui de qualquer autorreferência ao “nós,
tos foi o experimento que me possibilitou pas- ocidental” construído por Mary Douglas. Ao contrá-
sar pelo que é denominado rito de passagem do rio, suponho que, na perspectiva dessa autora, estou
trabalho de campo, e me construir como antro- (enquanto antropóloga brasileira) muito mais próxi-
póloga. Logo, foi na instituição que consolida a li- ma da noção “primitivos” do que dos “ocidentais” ou
nha de separação entre mortos e vivos que eu mesma dos “modernos”.
passei pelo rito antropológico do trabalho de campo. 5. Já havia visto os mortos em ocasião de outra pesqui-
Para concluir, quero destacar que nos dois sa, quando fiz trabalho de campo na emergência de
sentidos aqui apresentados – o olfato e a vi- um hospital público em Niterói/RJ. Essa pesquisa re-
são – os mortos eram mediadores das relações sultou em minha monografia de conclusão de curso
entre vivos no tempo e no espaço. Em ambos de bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade
os casos, seja pela “primeira impressão”, seja Federal Fluminense, sob orientação do Professor
pela “experiência reveladora”, uma forma es- Dr. Roberto Kant de Lima (cf. MEDEIROS, 2009,
pecífica de estar em contato com os mortos 2011).
direcionava a vida de meus interlocutores e, 6. Equipamento de Proteção Individual. Composto por
por consequência, a minha. Em ambas eram luvas, touca, máscara e avental.
consideradas razões externas e particulares 7. Sobre a possibilidade de contaminação biológica
de relação com os mortos – que têm sua face e as noções de contágio moral e risco no IML, ver
negativa quer pelo contágio, quer pelo incô- PESCAROLO, 2007.
modo. A experiência de convívio cotidiano com 8. Nome fictício.
corpos sem vida me permitiu compreender como 9. Outros antropólogos que também passaram pela ex-
os mortos são construídos institucionalmente periência de trabalho de campo em um IML destacam
e me levou a refletir sobre o distanciamento e a essa dimensão: “Num primeiro momento pensei que
evitação, a impureza e o perigo que há em rela- o termo ‘podrão’ (ou “podre”, frequentemente utili-
ção à morte e, por consequência, em relação aos zado) fosse alguma espécie de chiste utilizado pelos
mortos. funcionários do IML para se referir a determinados

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corpos, notadamente aqueles em estado avançado de Referências bibliográficas


decomposição. Rapidamente, porém, descobriria que
o termo é mais denotativo que conotativo, e que a par- ARIÉS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente
tícula aumentativa não faz, nem de longe, jus ao odor desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1989a.
que corpos nessas condições exalam. Lembro-me de _________. O homem diante da morte. Trad. Luiza
que meu primeiro pensamento ao adentrar o necroté- Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v.1. 1989b.
rio naquela tarde foi o medo de vomitar logo no início ARLEY, Patrick. Corpos sem nome, nomes sem cor-
do trabalho de campo; enquanto o segundo foi que pos: Desconhecidos, desaparecidos e a constituição
não há descrição densa capaz de descrever a densidade da pessoa. Dissertação de Mestrado. Programa de
do cheiro de um corpo humano em estado avançado Pós-Graduação em Antropologia. Belo Horizonte:
de putrefação. O máximo que posso dizer a respei- UFMG, 2012.
to é que se trata de um odor impregnante, algo que BUBANDT, Nils. The Odour of Things: Smell and the
fica, algo diante do qual se respira com todo o corpo, Cultural Elaboration of Disgust in Eastern Indonesia.
como se todo o corpo fosse olfato. Pode-se aprender a In: Ethnos, v. 63. Routledge, 1998, p.48-80.
conviver com esse odor, mas é impossível ignorá-lo.” CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do
(ARLEY, 2012, p. 21). antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In: __________.
10.Jean-Baptiste Grenouille é o personagem princi- O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998.
pal do livro alemão O perfume, de Patrick Süskind. CLASSEN, Constance. Worlds of Sense: Exploring the
Grenouille é um jovem francês nascido no século Senses in History and Across Cultures. Londres e Nova
XVIII que não exalava cheiro algum e que, ao mesmo York: Routledge, 1993.
tempo, apresentava olfato extremamente desenvolvi- DA MATTA, Roberto. O trabalho de campo como rito
do, capaz de identificar odores por mais longe que de passagem. In: _________. Relativizando: uma in-
estivessem e armazená–los todos em sua memória. trodução à Antropologia Social. Petrópolis, Vozes. 1981.
Em busca do odor humano perfeito, Grenouille tor- DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Ed.
na-se um assassino em série e um grande perfumista Perspectiva, 2010.
com técnicas e acervo de odores únicos. Ao alcançar FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser Afetado. In: Cadernos
o perfume ideal e perfumar-se com ele, torna-se o de Campo, n. 13. São Paulo: FFLCH/USP, 2005,
principal e único prato de um banquete canibal em p.155-161.
praça pública. GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como au-
11. Sobre a origem da palavra experiência, Turner afirma: tor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
“ensaiei uma etimologia da palavra inglesa ‘experien- HOWES, David. Empire of the Senses: The Sensual Culture
ce’, derivando-a da base indoeuropéia *per-, ‘tentar, Reader. Oxford e Nova York: Ed. Berg, 2004.
aventurar-se, arriscar’ – podemos ver como seu duplo, INGOLD, Tim. The perception of the environment, essays
‘drama’, do grego dran, ‘fazer’, espelha culturalmen- on livelihood, dwelling and skills. Londres e Nova York:
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experiência com ‘passagem’, ‘medo’ e ‘transporte’, por- seus dilemas e paradoxos. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed.
que p torna-se f na Lei de Grimm. O grego peraō rela- Forense, 1995.
ciona experiência a ‘passar através’”, com implicações MAGNANI. José G. C. Etnografia como Prática e
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associa-se a perigo, pirata e experimento”. (TURNER, IFCH. Ano 15, n. 32, 2009. Porto Alegre: PPGAS,
2005, p. 178) 2009, p. 129-156.

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autora Flavia Medeiros


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal
Fluminense (PPGA/UFF).

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 77-89, 2014


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A produção ritual da candidatura política

Carlos Eduardo Pinto Procópio


Instituto Federal de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p91-108 contact, in which their bases of support and what is


said about him by the collectives that give him cred-
resumo Quando os processos eleitorais são ins- it can be extended to the others voters of a locality.
taurados, os aspirantes a cargos políticos emplacam In each city they pass, the candidates inaugurate a
uma ação ritual que tem por intenção agregar ao committee, and then they went back to the town,
candidato não apenas apoio, mas também colocá- have a meeting, pray, commune, make a walk or a
-lo como um representante legítimo de determina- motorcade, talk to people, present themselves with
dos coletivos. Durante esse processo, buscam uma the remarkable of the city or people that within it
agenda de contato face a face, em que suas bases de may have some projection, and slowly mark their
apoio e aquilo que é dito em relação a eles pelos co- territory in the body and imaginary of the city. The
letivos que lhe conferem crédito, possam ser esten- aim of this paper is to present how this ritual pro-
didas aos demais votantes de uma localidade. Em cess occurred in a candidacy for Congress in the
cada cidade que passam, os candidatos inauguram southern of the State of Minas Gerais during the
um comitê, depois voltam, fazem uma reunião, re- 2010 elections.
zam, comungam, realizam uma caminhada ou uma keywords Candidacies; City; Elections;
carreata, conversam com as pessoas, apresentam-se Religion; Ritual.
junto de notáveis da localidade ou que dentro dela
possam ter alguma projeção, e aos poucos vão mar-
cando seu território no corpo e no imaginário da Introdução
cidade. A proposta deste texto é apresentar como
esse processo ritual ocorreu numa candidatura a Odair Cunha (PT/MG) tentava sua se-
deputado federal na região sul do estado de Minas gunda reeleição em 20101, sendo um proe-
Gerais, durante as eleições de 2010. minente candidato a deputado federal, dentre
palavras-chave Candidaturas; Cidade; as dezenas de outros que a coligação “Todos
Eleições; Religião; Ritual. Juntos por Minas” (PT/PRB/PCdoB/PMDB)
lançou em Minas Gerais2. Seu número de ins-
The ritual production of political candidacy crição era 1307 (13 era o número de registro
de seu partido, e 07, o número escolhido pelo
abstract When electoral processes are estab- próprio candidato, de modo aleatório, numa
lished, the candidates to political positions starts a escala de 00 a 99). Em sua tentativa de reelei-
ritual action that is intended to add to the candi- ção, Odair Cunha contava com uma platafor-
date not only support, but also put him as a legiti- ma extensa, que procurava agregar adeptos ao
mate representative of certain collectives. During longo de um amplo espectro de códigos. Estes
this process, they seek a schedule of face-to-face emergiam na medida em que o candidato

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incorporava e reincorporava adesões. Para Ritual na conformação da campanha


tanto, como na maioria das candidaturas, in- eleitoral
dependentemente do cargo pleiteado, Cunha
realizava variadas atividades de campanha, as A presença de candidatos em lugares públi-
quais serviam como uma maneira do candida- cos, ao longo de suas campanhas, marca um
to conseguir visibilidade e, consequentemen- rito político significativo que tem por intenção
te, adeptos. O principal recurso para isso era agregar ao candidato não apenas apoio, mas
entrar em contato com eleitores em potencial também colocá-lo como um representante legí-
e com eles falar, conversar, abraçar, oferecer, timo de determinados agrupamentos coletivos.
pedir. Elas também serviam para o candidato Aqui, seu corpo presentificado é uma metáfora
demonstrar força, já que trazia para junto de que vai encarnar a própria vontade dos eleito-
si lideranças dos mais diversos níveis, como res de se verem representados. Por conta disso,
uma maneira de se mostrar vinculado a deter- cada candidato procurará aparecer num meio
minadas bases, em uma demonstração de que do qual se vê como representante em potencial.
possui prestígio. Nesse contexto, busca uma agenda de contato
Ao longo de sua campanha, Odair Cunha face a face, em que suas bases de apoio e aqui-
inaugurou vários comitês, próprios ou de can- lo que se diz dele pelos grupos que lhe confe-
didatos a deputado estadual, com os quais fazia rem crédito, possam ser estendidas aos demais
o que, nativamente, chamavam de “dobradi- votantes de uma localidade. Entretanto, esse
nha”3. Esses comitês, por sua vez, eram insta- processo não ocorre como fruto de uma ação
lados em cidades que se julgavam estratégicas, espontânea, diante de circunstâncias aleató-
seja pelas ligações políticas que o candidato ali rias. O comportamento público do candida-
mantinha, seja pelas conexões pessoais com to só surte efeito porque uma “ação ritual” o
elas estabelecidas. Os escritórios dessas comis- conforma, justificando a realização de deter-
sões eram esporadicamente visitados, por meio minada conduta e seus desdobramentos. Essa
de “caravanas”, em que se fazia ou uma carre- ação consistiria em “uma manipulação de um
ata ou uma caminhada na cidade que os abri- objeto-símbolo com o propósito de uma trans-
gava. Nessas localidades, algumas vezes, eram ferência imperativa de suas propriedades para o
realizadas plenárias e/ou reuniões com parte da recipiente” (PEIRANO, 2002, p. 27), permi-
comunidade e/ou grupos, nas quais a popula- tindo ao candidato usar os recursos disponíveis
ção poderia colocar seus problemas e ouvir o em seu contexto social para gerar vantagens
que o candidato pensava sobre isto. Em outros para sua candidatura e para aquelas a que ele se
momentos, Cunha aproveitava sua estadia em inclina a apoiar.
alguma cidade para participar de atividades da Conceber o ritual político nesses termos
Renovação Carismática Católica (RCC) ou da implica considerar dois pares conceituais: fo-
Igreja Católica. Tais ocasiões, assim como os calização e transvaloração; nacionalização e
discursos públicos pronunciados em comícios paroquialização. Retirados da antropologia de
realizados nessas mesmas localidades, serviam Stanley Tambiah (TAMBIAH, 1996 e 1997;
para a promoção do candidato e daqueles que COMEFORD, 1998; PEIRANO, 2002), es-
julgava necessário promover, convertendo es- tes pares conceituais são bons para pensar o
ses momentos em ritual político recheado de processo de fabricação de campanhas políticas,
articulações. na medida em que ajuda a mensurar os vetores

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que atravessam o cotidiano de uma candida- Os conceitos de nacionalização e paroquia-


tura, haja vista que a inauguração de comitês, lização são, por sua vez, utilizados pelo autor
comícios, caminhadas, visitas, reuniões e fre- (TAMBIAH, 1996) no intuito de tentar pen-
quência em cultos vão se colocar como o ló- sar como questões macro são reproduzidas e
cus do entrecruzamento de questões vindas de engajadas em contextos micro. Para ele (1996,
várias ordens, motivadas pelos candidatos, seus p. 257-58), nacionalização é o desdobramento
apoiadores e seus pretensos eleitores. de um processo [macro] em cadeia, enquanto
Tambiah (1996) usa os conceitos de foca- paroquialização tem a ver com a “reprodução
lização e transvaloração no intuito de tentar de uma causa [macro] em diferentes lugares,
compreender como eventos locais e questões onde ela explode de múltiplas maneiras”. Tal
em pequena escala, oriundas de diversas ordens dinâmica passa a ser vista na medida em que
(religiosa, econômica, interfamiliar, regional, causa e eventos de âmbito nacional começam
entre outros), vão cumulativamente desdo- a ganhar equivalência nos termos de causas e
brando-se em uma escala maior. De acordo interesses gestados localmente, manifestando-
com esse autor (1996, p. 81), se a focalização -se aí de maneira dispersa e fragmentada, obe-
“desnuda progressivamente os incidentes e decendo a clivagens e dinâmicas próprias do
disputas locais de suas particularidades con- lugar. Quando configurados, nacionalização
textuais”, a transvaloração “distorce, abstrai e e paroquialização funcionam como processos
agrega esses incidentes em questões coletivas de que se endereçam de cima para baixo e do cen-
interesse nacional e/ou étnico”. Esse duplo mo- tro para a periferia (TAMBIAH, 1997). Nas
vimento fica perceptível quando eventos de or- eleições, esse par conceitual se torna evidente
dem local começam a ser distorcidos e inflados quando a condição de representante de um
em uma direção indireta ao modo como estava candidato se dá pela portabilidade que apre-
sendo performado localmente. Nesse senti- senta em relação à capacidade conquistada pela
do, “desnuda-se da especificidade dos eventos posição que ocupa na política, projetando-se
ocorridos em seus contextos locais em benefí- junto aos eleitores em potencial por meio da-
cio de sua translação e assimilação livre do con- quilo que foi feito por ele e das estruturas pelas
texto originário” (TAMBIAH, 1996, p. 192). quais isso pôde ser realizado.
Nesse processo, seguindo Tambiah (1996), Olhando para o caso de Odair Cunha, sua
questões performadas localmente começam a presença em atividades de campanha nas cida-
ganhar formas éticas, de identidade, interesses des do Sul de Minas Gerais servirá como exem-
e direitos comuns, que passam a ser abraçadas plo prático de como uma campanha eleitoral é
por conta de sua suposta universalidade. Por marcada por uma dimensão fortemente rituali-
compreender os processos de baixo para cima zada, dentro dos termos apresentados. Para este
e da periferia para centro (TAMBIAH, 1997), caso, é possível afirmar que todo o movimento,
uma vez desdobrados para a questão das elei- voltado para marcar a presença do candidato
ções, esse par conceitual ajuda a pensar como observado em determinadas localidades, con-
as candidaturas vão se colocar como receptá- tribui para sua projeção, o colocando, a par-
culo de demandas dos coletivos que desejam tir de suas articulações, dentro de um amplo
representar, elevando-se como agentes capazes espectro de apoios inclinados para a conquista
de conduzir desejos e necessidades dentro da do êxito eleitoral. Nas campanhas que pude
esfera política para a qual querem ser eleitos. acompanhar ou obter informação, realizadas

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nas cidades sulmineiras, Odair Cunha colo- realiza em defesa de projetos políticos que não
cou em evidência um cenário de focalização e são diretamente os seus, ou que não interessam,
transvaloração, quando vários atores se coloca- de modo imediato, à localidade na qual recla-
ram a falar e a agir em seu favor, ou mesmo ma votos. O mesmo ocorre quando pede votos
quando o candidato fala como que assimilando para outras candidaturas ou sinaliza para valo-
uma demanda local. Além disso, um cenário de res políticos que estariam desconectados com
nacionalização e paroquialização foi colocado a concretude das demandas e necessidades da-
em destaque quando o próprio candidato to- queles com quem fala. Ao agir dessa maneira,
mou a palavra ou agiu em defesa de outros can- o candidato não estaria sofrendo um efeito das
didatos, projetos e valores, ou, ainda, quando bases, mas o contrário, exercendo efeito sobre
seu vínculo com determinada localidade serviu elas. Contudo esse processo pode ter um efeito
para disseminar políticas que destoavam das inverso, em que o impacto do candidato sobre
comumente realizadas por ele junto à própria suas bases pode, reversamente, ressoar sobre ele
localidade. novamente, tanto quanto aquilo que sobre ele
Em cada cidade que passa, o candidato desencadeou pode, a partir dele mesmo, retor-
inaugura um comitê, depois volta, faz uma reu- nar sobre aqueles cuja ação lhe ressoou.
nião com a comunidade, reza, comunga, reali-
za uma caminhada ou uma carreata, conversa Inauguração de comitês
com as pessoas, apresenta-se junto de pessoas
da localidade ou que dentro dela possam ter al- A inauguração de comitês se constitui
guma projeção, e aos poucos vai marcando seu como estratégia para o candidato desenvolver
território no corpo e no imaginário da cidade. sua campanha dentro de uma cidade. Por um
Na medida em que se coloca como a personi- lado, esse espaço se conforma como sua base
ficação de demandas e necessidades, expressas de apoio, no qual panfletos, banners, adesivos,
por apoios recebidos ou nos compromissos fir- bandeiras, placas e outros materiais de campa-
mados em viva voz, pode-se falar em focaliza- nha são recebidos, alojados e distribuídos por
ção e transvaloração, de forma que a presença seus correligionários. É por essa instância que
de Odair Cunha em cada cidade vai agregando passam a entrar em circulação na parte pública
adesões que, no dia das eleições, converte-se da cidade, sendo entregues a transeuntes, ex-
em quantidade. As causas, que o candidato se postos em esquinas e praças, exibidos nas fa-
prontifica a fazer não são, nesse sentido, pro- chadas de casas ou dentro de terrenos privados.
priamente suas, mas fruto dos anseios dos elei- Esses comitês também servem para que outros
tores da localidade. candidatos, coligados com o candidato respon-
Por outro lado, Cunha vai conduzir várias sável pela estrutura da comissão, possam tam-
questões macro em nível micro, colocando bém usufruir da infraestrutura física e logística
em movimento situações políticas desconecta- e por ali circular seus materiais de campanha.
das localmente, mas que podem fazer sentido Esse arranjo é comumente visto durante os
e desencadear processos de adesão àquilo que processos eleitorais e acaba servindo como uma
é proliferado, desde que encontre ressonância forma do candidato se fazer visível.
entre aqueles que recebem a informação. Essa Por outro lado, os comitês também servem
nacionalização e paroquialização, na campanha como espaço de referência para que o candida-
sob análise, pode ser observada nas falas que to possa começar ou terminar uma caminhada,

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e é o local de onde saem ou para onde vão seus Virgílio Guimarães; o prefeito de Pouso Alegre,
correligionários, quando precisam abastecer as Agnaldo Perugini; o prefeito de Heliodora,
ruas com sua figura e mensagem. São também Cilinho; o prefeito de Carvalhópolis, Gilsão; o
espaços em que discursos públicos podem se diretor de Gestão Corporativa de Furnas, Luís
constituir, já que toda inauguração de comitê Fernando Paroli; o chefe de gabinete de Odair,
implica a formação de um palanque no qual Sebastião Milanez; e os candidatos a deputado
o candidato, seus apoiados e apoiadores têm estadual, Ulysses Gomes e Dulcinéia, além de
a chance de ganhar voz e falarem uns para os vereadores e secretários municipais5. A presen-
outros e para todo interessado que queira ou- ça deles foi lembrada pela pessoa que pessoa
vir. Nesses ritos, o comitê é colocado como um que fazia as vezes” de “mestre de cerimônia”,
marco da campanha, que presentifica o candi- mas nem todos ganharam a palavra.
dato para seus eleitores potenciais e inaugura A inauguração teve início com uma oração
um ponto de encontro para a própria cam- realizada pelo prefeito de Pouso Alegre, que pe-
panha. Assim, o comitê funciona como uma diu pelo sucesso do candidato, instaurando um
“mancha”, que cobre e resignifica a cidade, ge- rápido momento de louvor e agradecimento.
ralmente de modo parcial, e enquanto durar as Finda a oração, a palavra é passada a Virgílio
eleições4. Guimarães, que fala sobre Cunha enquanto
Na eleição que Odair Cunha disputou em parlamentar:
2010, muitas cidades receberam um comitê seu.
Na maioria delas, esse possuía uma composição Sou seu amigo e seu admirador, você é um
dupla, porque Odair Cunha, então candidato exemplo de dedicação, solidariedade e firmeza.
a deputado federal, compartilhava o espaço Está sempre aberto, recebendo os prefeitos e as
com algum candidato a deputado estadual, lideranças aqui da região. Você é um parlamen-
com quem fazia “dobradinha”. Esses comitês tar muito capaz, assumiu relatorias difíceis, e
recebiam vasto material de campanha, não só assume posições necessárias na comissão e no
dos candidatos, mas também dos que con- plenário. Como Terceiro-Secretário6 demonstra
corriam ao Senado, Governador e Presidente, coragem e determinação para assumir medidas
que faziam parte da coligação dos candidatos. necessárias para valorização da casa.  
A cada comitê inaugurado, um palanque era
montado, e a cada retorno à cidade onde esta- Logo após, Agnaldo Perugini ganha nova-
va localizado, o comitê era visitado. São nesses mente a palavra: “Nós temos razões para agra-
momentos de inauguração que perceberemos decer. A realidade de Pouso Alegre está sendo
como os processos de focalização e transvalora- mudada, principalmente, das classes mais po-
ção e nacionalização e paroquialização se fazem bres. Odair apostou no nosso projeto, e hoje
presentes. Vejamos alguns exemplos. nossa cidade pode dizer que Odair Cunha é
Uma das inaugurações ocorreu em Pouso um deputado que faz a diferença.”
Alegre, no dia 31 de julho (sábado). Nesse Odair Cunha, como última fala da noite,
evento, mais de cem pessoas puderam ver e agradeceu a presença de todos, falando que
ouvir Odair Cunha e seus correligionários suas ações como parlamentar são reflexos de
falarem sobre os motivos de se votar no can- um mandato que julgava como sendo partici-
didato. Várias personalidades regionais parti- pativo: “Nós precisamos continuar mudando a
ciparam do evento, como o deputado federal história de Pouso Alegre, assim como do Sul

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e Sudoeste de Minas. Ainda há muito para se ações na Câmara têm servido para uma va-
fazer. A nossa reeleição está nas mãos de cada lorização desta. Tal colocação serve para levar
um, o sucesso do nosso mandato se dá pela de “de cima para baixo” e “do centro para a
coletividade, juntos temos feito a diferença na perifeira” uma concepção de política que não
nossa região.” se resume a resolver os problemas das cidades
Com esta fala a inauguração é encerrada. que o candidato representa. Assim, Virgílio
O candidato, após ser ovacionado, direciona- Guimarães dissemina uma visão técnica e éti-
-se aos presentes, cumprimenta alguns e con- ca que, de certa forma, entra na consciência
versa com outros. Enquanto esse processo se dos presentes e que poderia servir como recur-
dava, muitas pessoas comentavam sobre Odair so de justificação do próprio voto, para além
Cunha e coisas que ele teria feito por uma ou de uma dimensão clientelista. Essa dimen-
outra cidade, bem como falavam a respeito de são se torna possível por alguns comentários
coisas ditas nos discursos, sempre em uma to- que ouvi ao final do evento, que levavam em
ada positiva. conta os elementos salientados por Virgílio
Nesse evento, o par focalização e transvalo- Guimarães na hora de justificarem o voto em
ração se mostra no contingente de pessoas que Odair Cunha.
ali se uniram, em comunidade, para prestigiar
e reconhecer o lugar de Cunha na cidade de ***
Pouso Alegre. A oração do prefeito da cidade
mostra a unidade em torno de seu nome e a Outra inauguração de comitê aconteceu
canalização de forças a favor de sua reeleição, no dia 13 de agosto (sexta-feira), na cidade
fato que se prova pelo pedido de intercessão de Campos Gerais, ato presenciado por de-
religiosa pelo deputado, que ganhou eco en- zenas de pessoas. Nesse evento, Odair Cunha
tre os presentes. A fala de Virgílio Guimarães e o candidato a deputado estadual Professor
acentua o sucesso de Odair Cunha pela sua Dimas (PT) não só discursaram como ouviram
capacidade e empenho em resolver questões falas favoráveis vindas do presidente do PT lo-
ligadas ao Sul de Minas Gerais. Essa posição cal, Vicente, e de um vereador daquela cidade,
o coloca dentro de um ciclo de compromis- Lázaro. Logo após chegarem ao comitê, junto
so local, que inclusive ganhou lugar na fala de com os políticos citados, Cunha e Dimas abra-
Agnaldo Perugini. Nessa perspectiva, Cunha çaram e conversaram com as pessoas presentes.
só é um bom deputado porque representa as Na sequência, um palanque é improvisado,
necessidades de sua região. A fala do candidato no qual os candidatos e alguns de seus corre-
se mostra em continuidade com essa temática, ligionários, dentre eles o presidente do PT e o
já que sela seu compromisso na luta pela mu- vereador, tomam a palavra e discursam para o
dança da região. público presente. O primeiro a falar é Vicente,
Ainda nessa inauguração, as falas colocam que, dirigindo-se para Cunha, procurou jus-
em evidência alguns efeitos que podem ser tificar os motivos pelos quais acredita que to-
considerados como nacionalização e paroquia- dos deveriam lutar pela sua reeleição: “Você
lização. Virgílio Guimarães mostra o candida- nos impressiona pela coragem e simplicidade,
to em questão como parte de uma estrutura nós temos a missão de reelegê-lo e com isso le-
de poder que demanda capacidade técnica, ao vantar a bandeira da igualdade, da justiça e da
mesmo tempo em que deixa entrever que suas fraternidade.”

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Na sequência, é o vereador Lázaro que ga- “baixo para cima” ganham seus contornos. A
nha a palavra: “Odair é um grande parceiro de primeira fala de Odair Cunha só ganha senti-
Campos Gerais, fez casas populares e duas qua- do se vista como reflexo do apoio de uma par-
dras poliesportivas. Vamos reeleger o deputado cela da população de Campos Gerais, como
Odair Cunha, pois nós precisamos dele.” sinal do reconhecimento de seu trabalho. Este
Após aplausos e murmúrios, que se inicia- reconhecimento é personificado na fala de
vam ao final de cada fala, o Professor Dimas Lázaro, que exalta alguns feitos do deputado,
tem a palavra, e, por ela, tenta enfatizar as possibilitando ao candidato fazer alusões, em
vantagens de sua parceria com Odair Cunha, seu próprio discurso, àquilo que realizara para
e deles com a comunidade: “Parceria só se faz a localidade em que o comitê estava sendo
coletivamente, de braços e mãos dadas. Juntos inaugurado. Já a fala do prefeito coloca Odair
temos mais vontade e motivação para realizar como um expoente de valores políticos uni-
os sonhos e melhor desempenho pelas causas versais e que por isso deve ser reeleito. A posse
públicas. Junto com o deputado Odair faremos de tais valores estabelece, para o candidato,
muito mais pela nossa cidade e nossa região.” uma credibilidade que vai alçando-o a condi-
Por fim, Cunha assume o microfone e fala ção de representante dentro daquela cidade.
ao público presente: Os valores colocados pelo prefeito fazem parte
de um lugar comum da representação política
Ninguém é candidato de si só, somos candida- e, por isso, sendo considerados como parte de
tos de um projeto. E vocês me motivam a bus- alguém, serve como a base para sua projeção
car a reeleição, pois são a resposta que preciso como representante.
para ver que ainda temos muito a fazer. Tivemos Além disso, é possível visualizar um efeito
inúmeras ações nestes dois mandatos, mas hoje inverso ao da focalização e transvaloração. De
temos mais experiência, podemos ir mais longe cima para baixo e do centro para a periferia se
e crescer mais. colocam a posição do candidato a deputado es-
[...] tadual e a do próprio Odair Cunha. O Professor
Podem ter a certeza de que não faltará suor e Dimas aproveita a fala do prefeito e do verea-
comprometimento de minha parte e da parte do dor para se mostrar atrelado ao deputado fe-
Professor Dimas. deral, tentando mostrar não só que está com
[...] ele, mas que, por isso, pode fazer as mesmas
Nos últimos 8 anos nós crescemos produzindo coisas, porque são parecidos na ação de ajudar
inclusão social, 24 milhões de pessoas saíram da e promover a cidade. Cunha, em sua segunda
miséria. Tudo isso vem [ao] encontro com que o fala, tenta facilitar a penetração da candidatura
presidente Lula disse na posse do seu 2º manda- de Dimas, acenando para uma ação conjunta,
to, que três verbos regeriam o seu governo: ace- tal como este último preconizou em sua fala.
lerar, crescer e incluir. Nós temos um Governo Por fim, coloca em movimento o projeto ma-
que olha para aqueles que mais precisam, e ago- cro político a que dizia pertencer, promovendo
ra temos a oportunidade de dar continuidade a os feitos do governo federal e a necessidade de
este processo com a eleição de Dilma.   se progredir nesse caminho, por meio da elei-
ção da presidenciável Dilma. Nesse momento,
Em vários momentos da inauguração do tenta mostrar que os feitos ressaltados para a
comitê os efeitos “periferia para o centro” e cidade são frutos de um macro projeto político,

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e cuja continuidade depende da manutenção da reação, estão não só a admirar aquele que
do modelo político em vigor. passa, mas o motivando a caminhar, já que,
quando olham, demonstram a eficácia do ato.
Caminhadas Essa disposição vai justificar o fato de que as ca-
minhadas se conformam a partir e por meio do
As caminhadas se constituem em espaços candidato, porque ele não só se coloca como o
de enunciação (BARREIRA, 1998), utilizadas protagonista da cena, mas também como ator,
como recurso por candidatos a cargos repre- cuja ação só se faz admirada se fruto da atenção
sentativos como forma de se mostrarem e se e interesse daqueles que se predispõe a vê-lo.
fazerem presentes junto a determinadas locali- Nesse processo, a candidatura passa a ser reco-
dades. Quando ocorrem, as caminhadas procu- nhecida na medida em que desperta o interes-
ram percorrer trechos importantes da cidade, se dos espectadores, fazendo da existência da
que não só servem como meio para o candidato caminhada uma relação de dependência entre
encontrar possíveis eleitores e ser reconhecido esses dois personagens.
como alguém que conhece a cidade, mas tam- Odair Cunha realiza várias caminhadas nas
bém como uma forma de valorizar o próprio cidades do sul de Minas Gerais, com correli-
espaço percorrido, que ganha valor por conta gionários, candidatos a deputado estadual e
da presença física daquele. Por conta disso, ruas também com os candidatos ao Senado e ao
afamadas no imaginário local, monumentos e Governo do Estado. Nesses eventos, partin-
praças são os alvos preferenciais das caminha- do geralmente de seus comitês ou de pontos
das. Na medida em que é desenrolada, elas se da cidade para depois culminar nos primeiros,
convertem em “grandes cartazes ambulantes, à procura ser visto e receber apoio dos transeun-
moda do panfleto ao vivo, cuja eficácia está na tes. Na medida em que vai andando e vendo
busca da atenção mínima à passagem do cor- sinalizações de apoio, Cunha intensifica seu
tejo” (BARREIRA, 1998, p. 84). Apesar de contato, conversando e abraçando as pessoas
uma participação caracteristicamente efêmera, que encontrava ou que iam em sua direção
caminhadas, enquanto ocorrem, são extrema- para cumprimentá-lo. Quando caminhava
mente intensas performaticamente. Essas ca- com Fernando Pimentel (PT), candidato ao
racterísticas, de acordo com Barreira (1998, p. Senado, e/ou Hélio Costa (PMDB), candidato
84), “não se efetivam em falas ordenadas, mas ao Governo do Estado, esse processo se maxi-
em cânticos e gestos que lembram procissões”, mizava, aumentando com isso o público que,
em que a participação do candidato é “acompa- ao querer ver esses dois últimos, acabava vendo
nhada de slogans e manifestações de adesão que Odair Cunha e, de alguma forma, se aproxi-
lembram congraçamentos coletivos”. mando dele.
Como uma estratégia comum em campa- Como exemplo, tomemos a caminhada
nhas eleitorais, as caminhadas se destacam pela de Odair Cunha com Hélio Costa na cidade
promoção do candidato enquanto alguém que de Alfenas, que se realizou no dia 29 de ju-
se coloca para ser visto e, na efetividade de tal lho (quinta-feira). Eles aterrissaram com um
ato, que tem sua passagem pela cidade reco- pequeno jato na parte da manhã, no também
nhecida e reverenciada. Isto se prova pelo misto pequeno aeroporto da cidade. De lá se direcio-
de atividade e passividade que compõem os es- naram, de carro, até a Praça da Bandeira, na re-
pectadores desse ato, que, independentemente gião central da cidade. Essa praça é referenciada

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como um lugar de intenso trânsito de pessoas, fabricação de pastéis, produto que, segundo
por abrigar o terminal de ônibus urbano local. contam na cidade, é o mais consumido no
Além disso, suas dimensões permitem a distri- lugar. Continuando a peregrinação, parando,
buição de bancos e jardins, o que a converte cumprimentando e abraçando as pessoas com
em um lugar que pode ser facilmente aprecia- quem encontravam ou paravam para lhes diri-
do e utilizado para o descanso por aqueles que girem a atenção, os candidatos adentraram o
passam. Ademais, pode ser adicionado como Mercado, causando a curiosidade dos feirantes,
referência desta praça o fato de que à sua frente donos de bares e lanchonetes e de seus fregue-
está o prédio que sediava a Escola de Farmácia ses, que espiavam com interesse a presença dos
e Odontologia de Alfenas (EFOA)7. Esse pré- dois e de seus correligionários no interior do
dio, que não é mais usado para fins educacio- local. Entre uma conversa e outra, um aperto
nais, é patrimônio da cidade, mas pertencente de mão e um “tapinha nas costas”, os candida-
à UNIFAL. Em frente ao ponto de ônibus, tos a deputado federal e a governador pararam
situa-se o Mercado Municipal, e, do outro lado em uma das lanchonetes para provarem os pas-
da praça, uma padaria que é considerada, pelos téis; certamente sabiam de sua fama.
alfenenses que conversei, a melhor da cidade, Do Mercado continuaram a caminhada até
não só por conta da qualidade dos produtos fa- outra praça, de nome Getúlio Vargas, que fica
bricados, mas também pela condição elitizada a aproximadamente quatro quadras de onde
expressada na variedade dos produtos e da in- saíram. O trajeto foi feito por uma rua mo-
fraestrutura do estabelecimento. Odair Cunha vimentada, que concentrava estabelecimentos
e Hélio Costa chegaram e então se somaram comerciais, de onde as pessoas saíam para ver
aos correligionários que os esperavam com o acontecimento. Sem cessar de se aproximar
bandeiras e adesivos nas roupas. Entrecortaram de potenciais eleitores, a caminhada continuou
o lugar cumprimentando e conversando com até chegar a praça em questão, onde os can-
transeuntes e pessoas que paravam para ob- didatos aproveitaram para fazer discursos em
servá-los. Na medida em que a caminhada se uma “concha acústica”, já preparada para tal
desenvolvia, chamavam a atenção do público, atividade. Após os discursos, eles se dirigiram
que se avolumava para vê-los. Algumas pessoas para o comitê de Odair Cunha, que ficava em
comentavam quando observavam, falando dos uma rua próxima, e de lá partiram para outras
candidatos, quem eles eram, o que representa- atividades de campanha na região.
vam, o que eles faziam, mas também critica- Ao escolherem começar a caminhada pela
vam, desdenhavam seus comportamentos ou Praça da Bandeira, Odair Cunha e Hélio Costa
expressavam indiferença. De qualquer modo, penetraram em uma parte central da cidade, já
a visibilidade buscada foi conquistada, o que se que ela é ponto de passagem para quem preci-
provava a cada passo dado por Odair Cunha e sa vir ao centro. Suas candidaturas, nesse sen-
Hélio Costa. tido, atuaram de cima para baixo e do centro
Saindo de lá, os candidatos se direciona- para perifeira usando um ponto nevrálgico da
ram para o Mercado Municipal de Alfenas, o cidade como mediador. Por este puderam ser
qual se configurava como um lugar de acesso vistos por pessoas vindas de vários lugares da
a produtos rurais, principalmente frutas e ver- cidade, facilitando a proliferação da notícia de
duras, mas também abrigava pequenos bares sua presença, e, também pela Praça, tiveram
e lanchonetes, muitos deles especializados na acesso a outros lugares, por meio da mensagem

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transportada por aqueles que os viram. A partir de negligenciarem a padaria, do outro lado da
de cada pedaço da cidade que percorriam, pro- praça, como caminho, dirigindo-se para o local
curavam ser notados, marcando suas posições em que a aglutinação de pessoas é muito maior
de candidatos que querem entrar em contato e cujo apelo popular é mais presente. Fazer o
com eleitores em potencial. A cada passo, o elei- que a maioria das pessoas faz naquele pedaço
tor podia identificar os personagens, sobretudo da cidade reduz a distância entre candidatos
Hélio, cuja figura era mais facilmente reconhe- e eleitores, justificado nos trajetos por pontos
cida por suas tentativas de eleição ao Governo que são de conhecimento e uso comum. Ao
do Estado e pelo fato de ser senador. Aqueles invés de marcarem uma diferenciação com o
que cumprimentam Hélio Costa, em seguida público, os candidatos vão atrás da equalização.
veem a mão estendida de Odair Cunha, para Aqui, parece que as pessoas os veem porque eles
que possam apertar. Muitos atos do primei- se comportam, num certo sentido, como elas,
ro acabam sendo repetidos pelo segundo. Por fazendo da caminhada na cidade algo marca-
conta disso, Cunha usa a notoriedade de Costa do pela familiaridade, permitindo as aproxi-
para também se fazer reconhecido. Algumas mações. Se não fosse essa familiaridade, talvez
pessoas com quem encontravam sabiam quem não galgassem tamanha afamação nas ruas por
ele era e lhe faziam reverência. Contudo, é cer- onde caminharam.
to afirmar que esse candidato fez de sua pre-
sença ao lado do senador uma forma de estar Comícios
mais visível e converter sua presença ali em
mais legítima. Os comícios são recursos amplamente uti-
Por outro lado, a peregrinação dos candi- lizados no período eleitoral, configurando-se
datos, em meio à multidão, dá indícios de um como um adereço obrigatório para a consecução
processo significativo do tipo de baixo para da performance política dos candidatos. Sua re-
cima e da periferia para o centro. Ao iniciarem alização implica uma maneira de marcar força,
a caminhada, a partir de um ponto central de agregando em torno do candidato uma multi-
Alfenas, os candidatos não só estariam reconhe- dão que dará significado para o acontecimento,
cendo o lugar como importante, mas também já que dispensam ao palanque uma atenção es-
sendo reconhecidos como pessoas que conhe- pecial, reagindo a ele com aplausos, gritos, pa-
cem o lugar e sabem seu significado. Isso faria lavras de ordem e murmúrios. Por outro lado,
que se confundissem com a própria atividade apoiadores renomados comporão o palanque e
da praça, fazendo inteligíveis suas projeções na vão avalizar a candidatura como detentora de
cidade a partir dela, uma vez que conformada legitimidade em falar pela comunidade, já que
como porta de entrada e saída de pessoas e suas aqueles que nele estão representam a voz local
trajetórias. Assim, é a praça que faz que sejam e, portanto, têm capacidade para selar compro-
vistos, diante da importância que ela ocupa missos com terceiros. Nessa acepção, o lugar
na vida alfenense. Tal projeção se acentua no que recebe um comício ganha “uma posição
mercado, comportando-se ali como qualquer de centro” (PALMEIRA; HEREDIA, 2010, p.
pessoa do lugar, quando param para comer 32), um centro em que gravitam princípios e
um pastel, o que vai reforçando a intimidade posicionamentos que podem servir para orien-
dos candidatos com a cidade e lhes abrindo o tar a candidatura, fazendo que essa agregue ló-
caminho da visibilidade. É significativo o fato gicas locais e assuma compromissos com ela.

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A produção ritual da candidatura política | 101

Quando ganha corpo, um comício vai se (PALMEIRA; HEREDIA, 2010, p. 65). Nesse
mostrando como um espaço no qual uma sentido, esses eventos se caracterizariam como
hierarquia ganha evidência8. Não há diálo- lócus do receptáculo de demandas, que se en-
go nas colocações dos falantes, apenas reação cerrariam na fala do candidato que as assume.
àquilo que eles falam, cujo êxito vai depender No caso de Odair Cunha, seus comícios refor-
da forma como o público lida com as inda- çam essas assertivas, e é por meio deles que ele
gações ouvidas. Cada aplauso ou murmúrio não só conseguirá disseminar sua candidatu-
pode servir como termômetro para o sucesso ra, como também torná-la fruto daquilo que
da fala empreendida. Com exceção do apre- seus apoiadores e o público que o acompanha
sentador, todos que estão no palanque, ou desejam.
que ganharão voz nele, são assimilados como O comício realizado na cidade de Boa
detentores de uma atividade política, legiti- Esperança9, na noite do dia 13 de agosto (sexta-
mando o ato de falar ao público presente. Na -feira), pode servir como ilustração. Na ocasião,
medida em que vão assumindo a palavra, os Cunha se mostrou para centenas de pessoas,
oradores elaboram um discurso que ajuda a cujo volume foi responsável pela ocupação de
dar significado ao ato final a que se preten- grande parte de uma avenida da cidade. Na
de o comício. Se este é para dar apoio a um ocasião, o evento foi realizado em cima de uma
candidato, os oradores fazem discursos con- caminhonete pick-up, adaptada com caixas de
tando seus feitos, mostrando a vantagem de som e microfones. Ao lado dela, foi projetado
todos se manterem empenhados em elegê-lo. um telão, pelo qual os presentes puderam ver
Quando o candidato assume a fala, sempre a exibição de um vídeo institucional do candi-
ao final do evento, procura assumir, diante dato, em que apresentava as obras que viabili-
do público, um conjunto de promessas e zou para Boa Esperança. Por conta do espaço
compromissos que venham a dar continuida- reduzido, o palanque, enquanto aglomeração
de ao clima de aliança propiciado pelas falas de políticos que figuravam ou aguardavam o
que o antecederam. momento para falar, não pôde se dar sobre a
Por conta disso, os comícios colocam em pick-up, mas no chão mesmo, ao seu lado. Só
evidência “uma espécie de jogo público entre quando era chamado a falar que o político su-
mostrar-se (ao público) e reconhecer-se (nos bia na caminhonete, de onde discursava. Entre
que falam)” (PALMEIRA; HEREDIA, 2010, os presentes estavam a candidata a deputada
p. 50). Essas duas dimensões são associadas estadual, Geisa Teixeira, os prefeitos de Boa
quando passamos a pensar que o candidato só Esperança (Jair Alves) e de Varginha (Eduardo
se mostra porque sabe que é reconhecido e só é Carvalho), os vereadores de Boa Esperança
reconhecido porque deseja se colocar à mostra. (Tatão e Juarez), o presidente da Câmara de
Para além de um mero jogo de palavras, esta vereadores local (Divino Costa), o vereador
disposição coloca em movimento a intimidade de Varginha (Rogério Bueno) e secretários de
que existe entre palanque e público, que não se Governo das prefeituras da região. Todos fo-
configuram como instâncias separadas, mas em ram referenciados pelo locutor responsável pela
relação constante, já que uma é dependente da organização e distribuição das falas.
outra. Por isso, é correta a afirmação de que “os Em momento oportuno, o prefeito da ci-
comícios se tornam elementos de uma tessitu- dade de Boa Esperança, Jair Alves, subiu no
ra de relações que passa englobar a campanha” palco adaptado e discursou: “O deputado

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Odair trabalha incansavelmente para o Sul que são do lugar. Nesse caso, o candidato acaba
de Minas, temos a obrigação de elegê-lo. É sendo legitimado não por si mesmo, mas por
um deputado que olha para as classes menos aquilo que fez pela cidade, desde que isto seja
favorecidas e está sempre em sintonia com o reconhecido pelo público presente. Se, por um
presidente Lula. Juntos com Odair, na nossa lado, a intenção do telão é mostrar a atividade
administração, vamos assumir todos os com- do deputado, por outro, também torna pos-
promissos que assumimos. Nós podemos e sível que o público no comício dimensione o
queremos mais.” cuidado e compromisso que Odair Cunha tem
Em seguida, o de Varginha subiu na pick-up com a cidade. É essa conduta que, certamente,
para falar: “O que Odair fez por Boa Esperança espera-se de alguém que é do lugar, converten-
fez também por Varginha. O deputado Odair do-o como representante que não foge da ta-
é sinônimo de desenvolvimento para o Sul de refa de trazer melhorias para sua localidade de
Minas.” origem. Nesse sentido, as obras mostradas são
Em seu discurso, Cunha agradeceu a todos uma extensão de seu compromisso, estabeleci-
os presentes e firmou a importância da conti- do com a cidade, e não necessariamente uma
nuidade de seu projeto: forma de capital político visando à agregação
e/ou manutenção de votos. Esse efeito de foca-
Desenvolvemos hoje um trabalho que vai lização e paroquialização se mantem nas falas
além das nossas expectativas. Este número 13, dos prefeitos, que enfatizam que Cunha é um
que elegeu o prefeito Jair, o prefeito Eduardo canalizador de vantagens e, por isso, tem o cré-
Carvalho, e tantas outras lideranças, queremos dito e a confiança deles. Quando os prefeitos
que se repita neste lugar. O nosso projeto é con- falam, o fazem em nome de suas cidades, colo-
sistente e precisa continuar. Honramos cada cando Odair em uma situação que culmina um
voto que nos foi confiado, podemos andar de fluxo de demandas cumpridas e expectativas
cabeça erguida e dizer que fazemos a diferença que podem vir a ser realizadas. Diante disso, o
por onde passamos.   candidato assume que, de fato, é capaz de fazer
aquilo que esperam dele, o que transparece em
Na sequência, falou também da importân- sua fala inicial. Já que tudo leva à crença em sua
cia de eleger Geisa Teixeira para a Assembleia capacidade de realizar projetos e viabilizar re-
Legislativa: “O que estamos fazendo em Boa cursos, que todos veem no telão, e que é refor-
Esperança e no Sul e Sudoeste de Minas, que- çado nas falas dos prefeitos, Cunha não poupa
ro que se repita a nível estadual, com Geisa esforços em se vangloriar, mostrando-se como
Teixeira. Precisamos de um representante na o baluarte das necessidades dos presentes.
Assembleia Legislativa, deputado federal e de- Todavia, o comportamento de Odair
putada estadual trabalhando juntos.” Cunha não deixa de operar em uma lógica de
Nesse comício, Odair Cunha tem a vanta- nacionalização e paroquialização, na qual sua
gem de ser conhecido como alguém que é parte própria conduta de se mostrar como um políti-
da cidade, já que foi criado nela10. Essa situa- co que fala e faz pode ser diluída em um imagi-
ção favorece seu reconhecimento, que se soma nário que aceita e reconhece que uma promessa
à credibilidade diante daquilo que conseguiu feita deve ser prontamente cumprida. É do pa-
por Boa Esperança, e que é exibido em um lanque que esta situação se prolifera, ganhan-
telão e passível de ser reconhecido por todos do eco entre os presentes, que certamente vão

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A produção ritual da candidatura política | 103

comentar com pessoas ausentes no comício um dos parlamentares mais importantes e mais
aquilo que ali se passou e o que Odair Cunha influentes do nosso país”.
mostrou ser capaz de fazer pela cidade, diante Na vez de Emidinho Madeira, este procura
daquilo que provou já ter feito. Isso é corro- elogiar Cunha e apontar suas próprias priori-
borado pelos comentários que se pôde ouvir dades se for eleito: “Ele [Odair Cunha] trans-
ao final do evento, que talvez tenham virado formou nossa cidade. Sempre nos tratou como
“notícia do dia” na manhã seguinte. Além desse irmãos e sempre trouxe diversos recursos para
cenário, o candidato aproveita seu reconheci- Nova Resende. Odair é um homem transpa-
mento e credibilidade emergentes para tentar rente e da verdade, é fácil falar dele.”
favorecer a candidatura de Geisa Teixeira para Em meio a aplausos, por conta da fala de
deputada estadual. Cola a imagem desta à dele, Madeira, Cunha assume a palavra e discursa,
afirmando que a candidata será tão presente enfatizando seu compromisso político de aju-
quanto ele no trabalho de melhorar a região. dar Nova Resende. Além disso, aproveita para
pedir apoio para aquele que o antecedera: “Ele
*** tem sua história e serviço pautados no cidadão.
Com sua eleição, Nova Resende terá um parcei-
Outro exemplo de comício é o realizado ro importante. Com Emidinho na Assembleia
em Nova Rezende. Sob um palanque, monta- de Minas faremos muito mais.”
do na praça central da cidade, na noite do dia Ao fim, as músicas de campanha ganham
27 de setembro (segunda feira), Odair Cunha, lugar, enquanto os presentes se dispersam. Os
junto com o candidato a deputado estadual políticos descem do palanque e cumprimen-
Emidinho Madeira, foram ouvidos por deze- tam os cidadãos que a eles se dirigem.
nas de pessoas, algumas das quais acenando Nesse comício, Odair Cunha tem sua ação
bandeiras com os nomes dos candidatos. Ao referenciada pelos prefeitos, fazendo dele um
lado dos candidatos, somavam-se outras perso- representante das cidades deles, pois atrelado a
nalidades políticas, como o prefeito Ronei, de seus interesses e necessidades. A plateia sente-
Nova Resende; o vice-prefeito Celson; o prefei- -se representada na voz dos oradores e acaba
to Roberto Luciano, de Guaxupé; Claudinei, dando indícios disso, aplaudindo e/ou acenan-
presidente do Sindicato dos Produtores Rurais; do bandeiras. Tal cenário indica que o comício
e os vereadores Geraldo, Jorge, Lazinho e Tid em Nova Rezende gerou um efeito de baixo
Carreiro, todos de Nova Rezende. Após um para cima e da periferia para o centro, já que a
momento em que algumas músicas ligadas à candidatura de Cunha sai fortalecida, pelo re-
campanha eram tocadas e murmúrios entre conhecimento, como fruto de um desejo cole-
os presentes eram ouvidos, as falas começam tivo. Nesse comício, o candidato não procurou
a ganhar espaço. Todas aquelas que antecede- contar seus feitos, já que os participantes do
ram os discursos dos candidatos se constituíam palanque o faziam, restando a ele dizer que está
em falar das atividades realizadas por Odair atento às demandas e que vai continuar traba-
Cunha na região e da vantagem em reelegê- lhando pela cidade e região.
-lo, e eleger o candidato a deputado estadu- Já parte da fala de Emidinho Madeira ope-
al. Por exemplo, a fala de Ronei, prefeito de ra em uma lógica distinta, dentro do efeito
Nova Resende: “Temos as portas abertas nos de cima para baixo e do centro para periferia.
Ministérios. Tudo isso graças ao Odair, que é O candidato a deputado estadual aproveita a

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afamação de Odair Cunha, propalada pelos Quando se aproxima de igrejas e comu-


prefeitos e acentuada pela reação positiva do nidades, o candidato pode ser visto como
público presente, para se atrelar ao candidato alguém que quer delas usufruir apenas para
a deputado federal. Faz isso o elogiando, que, seus interesses políticos pessoais, oferecendo
em sua fala, feita na sequência, reverencia o tra- em troca algum benefício ou favorecimento.
balho de Emidinho Madeira, dizendo que sua Isso geraria um cenário de desconfiança, ain-
presença no meio político vai se converter em da mais quando ele se mostrar como alguém
uma parceria importante que pode trazer mais que assume, intransigentemente, os valores
vantagens para a cidade e a região. Se o can- religiosos com os quais flerta. Desse modo,
didato se compromete em fazer melhorias na o efeito gerado por parte do candidato é re-
cidade, o apoio de Cunha dará a ele legitimi- verso, já que seu esforço para ser assimilado
dade e credibilidade junto ao público presente acaba sendo pautado pela suspeita e/ou des-
no comício, provando que suas promessas não consideração. Quando rejeitado, parece sofrer
se dariam no limbo, uma vez que passíveis de o impacto de um “efeito fariseu”. De acordo
ganharem a ajuda de alguém que já estava sen- com Pierucci (2011, p. 12), tal efeito se dá na
do reconhecido como capaz de fazer cumprir medida em que um candidato produz “uma
promessas estabelecidas. simulação de si como alguém ‘mais santo’ que
o outro”. Agir dessa maneira acaba levando
Participação em cultos religiosos a uma autoinolucação daquele que assim se
revela, gerando uma situação de inconveniên-
Durante o período eleitoral, a frequência cia diante do uso que se faz da religião. Isto
em cultos religiosos costuma ser uma constante é percebido, diga-se de passagem, a partir do
entre candidatos políticos que, por seu vínculo próprio segmento religioso, que rechaça o
com alguma igreja ou comunidade, aproveita o abuso. Nesse caso, apercebido “que sua fé está
momento para estreitar vínculos ou pelo me- sendo exageradamente cortejada para satisfa-
nos não desfazê-los. É também um momento zer a interesses meramente eleitorais daquele
em que a aproximação com lideranças e leigos que o bajula como um bom cristão, só que
renomados de uma organização religiosa é efe- em busca de benefícios próprios nem de longe
tuada por candidatos que querem usufruir do religiosos”, o homem religioso responde com
carisma desses personagens. Essa atitude visa, sua rejeição (PIERUCCI, 2011, p. 13).
por meio de lideranças e leigos, aproximar-se Para que tenha êxito, ou pelo menos para
de fiéis que, por influência desses, possam as- reduzir a possibilidade de rejeição imediata,
similar a candidatura e optar por seu nome na o candidato encontrará na prudência, em sua
hora de votar. Entretanto o sucesso dessa em- relação com igrejas e comunidades, a solução.
preitada não se constitui por um cálculo sim- Essa prudência implica a busca pela aceitação a
ples, em que basta a aproximação na hora de partir de uma postura de boa vontade com os
conseguir votos – em época de eleições, é um valores defendidos pela média dos fiéis, mais
processo extremamente tenso. Isto se aplica, a do que sua pronta defesa intransigente. Esses
meu ver, tanto para candidatos cuja intimida- valores costumam ser reinventados na relação
de com a organização religiosa já é conhecida, do candidato diante da organização religiosa,
como para aqueles que o laço com essa ainda que opera trocas de sentido entre valores reli-
está em configuração. giosos e ações cívicas. Quando isso se dá, não

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é só o candidato que consegue ganhar inteli- intercessão a favor do pregador era proferido.
gibilidade religiosa, mas a própria religião que Quando anunciado o nome de Odair Cunha
passa a ganhar inteligibilidade política. Essa nessa condição, o processo não foi diferente.
sensação de continuum tende a reduzir as ten- Dois coordenadores do movimento colocaram
sões e facilitar a aceitação. Odair Cunha se si- as mãos sobre sua cabeça, que estava de joe-
tua dentro desta perspectiva, não só quando vai lhos, em frente aos presentes, pedindo que “a
a encontros do catolicismo carismático e missas luz do Espírito Santo” iluminasse sua pregação.
católicas, mas também de outras igrejas e co- Esse pedido ganhou o reforço dos demais pre-
munidades religiosas cristãs. Se tal ação não lhe sentes, que também pediram pelo candidato
rendeu votos, é certo que ela minimizou atritos com orações e súplicas. Cunha assume a fala
que poderiam despontar em seu contato com e procura enfatizar a importância que a políti-
o segmento religioso, que poderia ver sua pre- ca tem na resolução dos problemas sociais. Faz
sença como estranha e eleitoreira, tornando a uma menção a uma carta encíclica de Bento
aceitação possível de ser consumada. XVI, cujo tema, disse, trata da “verdade da ca-
A relação de Cunha com a RCC não ces- ridade”. Nesse momento, conforme explanou
sa no período eleitoral. Sua participação em o candidato, a caridade “não é um sentimento
encontros do catolicismo carismático se dá de dó, mas sim uma motivação vinda do pró-
em paralelo às atividades de campanhas nas prio Deus”. Depois, pregou da seguinte forma:
cidades sul-mineiras. Uma dessas participa- “Jesus questionou as estruturas de seu tempo, e
ções acontece na cidade de Varginha, no dia sempre buscou uma sociedade mais justa e fra-
15 de agosto (domingo), onde participou do terna. Nós somos chamados a buscar também
encontro do Ministério Fé e Política da RCC uma sociedade mais humana. É preciso ques-
local, no qual atuou na condição de pregador. tionar as estruturas, e com isso, eu fico mais
O encontro foi realizado na parte da manhã e motivado ainda a ocupar este espaço de missão
contou com a presença de dezenas de pesso- que o Senhor me confiou.”
as, destacando-se dentre elas coordenadores do Quando se direciona para o fim, Odair
catolicismo carismático e vereadores da região. Cunha cita uma frase que computa ao Papa
O início do evento se deu com a fala de uma Paulo VI, que dizia: “se a solidariedade huma-
coordenadora do Ministério Fé e Política local, na é capaz de aliviar a fome do pobre, a política
que enfatizou a importância do ministério na é capaz de eliminar as causas da pobreza”. Com
ação política, cuja atividade estaria permitin- isso, agradece a Deus pela inspiração, conduz
do “levar o Evangelho para muitos lugares”. um momento de oração e passa a palavra para
Nessa fala, a palavra “Evangelho” foi usada de os coordenadores do evento.
modo genérico, ora fazendo menção a questões Sua postura bem pode significar um pro-
ligadas a uma missão religiosa, de levar a “pala- cesso de nacionalização e paroquialização ao
vra de Deus”, ora a questões ligadas ao amor e utilizar um evento do Ministério Fé e Política
compromisso com o próximo. para se fazer presente junto à comunidade ca-
Depois disso, como em todos os eventos da tólica carismática. Pela função de pregador, o
RCC, orações em vários tons ganhavam lugar, candidato se coloca como portador de uma
produzindo um coro que variava entre o unís- missão política, além de se apresentar como
sono e o polifônico11. Antes de cada pregação, alguém em continuidade com os valores liga-
que aos poucos se realizavam, um pedido de dos ao Evangelho e suas interpretações papais.

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Ademais, alguns trechos de sua fala colocam Conclusão


a política como lugar de ação evangélica, no
sentido de buscar uma sociedade marcada pela Este texto procurou analisar como uma
justiça e fraternidade. Ao fazer isso, atinge os candidatura a deputado federal é produzida,
presentes, que também estariam inclinados a levando em conta uma perspectiva ritual, espe-
um comportamento condizente com o evan- cialmente nos termos oferecidos por Tambiah
gelho e que, por isso, lutariam pelo questio- (1996, 1997). Com isso, procurei enfatizar que
namento das estruturas vigentes, podendo as estratégias utilizadas em campanhas políticas
encontrar em Odair Cunha a personificação não se configuram tão somente como fruto de
desses desejos, levando-os a votar no candidato. um cálculo pragmático que envolve um “toma
Entretanto, se sua presença ali, em época de lá, dá cá” entre candidato e eleitor, mas antes
eleição, poderia parecer eleitoreira e interessei- um conjunto de movimentos desenhados pela
ra, o fato de ser apresentado como um pregador presença do postulante a um cargo político
minimiza a tensão e o efeito fariseu passível de nas cidades, por meio de uma série de eventos
gerar impacto em seu comportamento diante visando estimular o imaginário daqueles que
da comunidade carismática. O pregador, nesses deseja conquistar. Se o que se procura numa
momentos de encontro religioso, tem sua pes- campanha eleitoral é conseguir a preferência
soa anulada, já que será o Espírito Santo que do eleitor, atingir seu imaginário, aquilo que o
falará por meio dela. A oração feita pelos coor- candidato faz precisa estar articulado dentro de
denadores e demais presentes prova essa dispo- um processo comunicacional que envolve can-
sição. Desse modo, o pregador tem sua presença didato e eleitor, sem negligenciar o lugar onde
e ato legitimados, convertendo-o em alguém falam, ouvem e sentem. Nesse sentido, a movi-
que fala pela comunidade. Assim, o processo mentação do candidato só surte efeito porque
de focalização e transvaloração ganha espaço. é realizada uma ação ritual no lugar onde está,
Odair Cunha fala uma língua inteligível na justificando condutas e seus desdobramentos,
comunidade, colocando sua ação política mais o que acaba lhe permitindo usar os recursos
como uma missão dada do que uma ação dese- disponíveis no lugar para gerar vantagens para
jada. Logo, antes que uma vontade sua, aquilo sua candidatura e para aquelas que ele se incli-
que ele faz é uma vontade de Deus. Nesse caso, na a apoiar.
o candidato não estaria fugindo do chamado, Destarte, este texto retoma pontos de reflexão
mas se empenhando a realizá-lo em seu máxi- oriundos da antropologia do ritual que, desdo-
mo. Porém não só estaria operando dentro de brados para a política, ajuda a compreendê-la a
uma linha unicamente revelada de modo di- partir de suas lógicas locais, valorizando aquilo
vino: sua ação também se projeta pela ligação que os atores faziam, relativizando as visões es-
com a Igreja Católica, expressa nas citações dos sencialistas e substancialistas sobre o que a políti-
papas e de suas falas. Tal atitude o coloca dentro ca deveria ser. Olhá-la dessa maneira não significa
de um cenário de pertencimento católico igual- que o candidato se rende à lógica do lugar e faz
mente compartilhado pelos presentes, conver- ali a vontade daqueles com os quais flerta no in-
tendo-o em mais um deles, que reconhece a tuito de ganhar seus apoios. O candidato, nessa
importância daquilo que a Igreja Católica, por perspectiva, atravessa ruas e praças tanto quanto
meio de suas lideranças, fala sobre a realidade e esses o atravessam, elaborando referências que di-
a interferência nela por parte do fiel. recionam a campanha e que conformam opções

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A produção ritual da candidatura política | 107

políticas quantificáveis ao final do escrutínio. de estado, por exemplo, nomes ao senado, câmara dos
Olhar a candidatura de Odair Cunha por esta deputados e assembleias legislativas, que teoricamente
ótica engrossa as fileiras de uma perspectiva que estariam vinculados com um mesmo projeto político.
leva a sério o ponto de vista nativo. Em caráter de informação, a coligação da qual fazia
Dentro da perspectiva utilizada, a produ- parte Odair Cunha tinha o nome de Hélio Costa
ção ritual de uma candidatura é marcada pela (PMDB) para governador e os de Fernando Pimentel
improvisação, cujo efeito só existe na medida (PT) e Zito Pereira (PC do B) para o senado.
em que tanto movimenta quanto é movimen- 3. A “dobradinha” é uma ação de articulação entre dois
tada. Isso porque as campanhas não são feitas nomes que concorrerão a cargos semelhantes, porém
na cidade, mas ao longo dela, incorporando-a em esferas distintas, em que um apoia o outro, em
na mesma proporção que é incorporada. Seu uma tentativa de fazer transferir os votos entre si. A
funcionamento não é extracotidiano, diluindo- dobradinha ocorre quando um candidato a deputado
-se no local como um corpo estranho que quer federal faz uma articulação com um candidato a depu-
deixar suas marcas e se fazer reconhecido. Uma tado estadual; quando um candidato a presidente faz
campanha, ao contrário, só se mostra eficaz articulação com um candidato a governador; e quan-
quando se mostra imersa na cidade, compondo do um candidato a senador faz articulação com outro
seu movimento e evoluindo com ela. Na medi- candidato a senador, numa situação em que duas vagas
da em que os candidatos caminham, passam a estão em jogo.
conhecer o lugar, a um só tempo passam a ser 4. O conceito de mancha que utilizo aqui se aproxima
conhecidos por ela. Nesse processo proliferam daquele utilizado por Magnani. Este o definiu como
mediadores e mediações que atravessam pra- “áreas contíguas do espaço urbano, dotadas de equi-
ças, monumentos, objetos, comportamentos e pamentos que marcam seus limites e viabilizam, com-
costumes, que tornam as campanhas políticas petindo ou complementando-se, uma atividade ou
marcadas por uma composição heterogênea e prática predominante” (MAGNANI, 2005, p. 178).
que não pode ser resumida simplesmente a um 5. Ignorei as filiações partidárias desses personagens por
cálculo instrumental. conta de seu não uso quando da nominação dos pre-
sentes pelo “mestre de cerimônia”. Pelo que pude me
Notas informar, a maioria deles era filiada ao PT. O vínculo
partidário, em algumas ocasiões, parece se constituir
1. Odair Cunha se lançou pela primeira vez a deputado como um mero detalhe, recaindo a ênfase mais sobre
federal em 2002, sendo eleito com aproximadamente a pessoa do político. Esse processo, em detrimento de
35 mil votos. Em 2006, sua reeleição é garantida após sua pertença partidária, é amplamente abordado no
a contagem de quase 75 mil votos a seu favor. Em livro de Chaves (2003).
todas essas eleições o candidato esteve filiado ao PT, 6. Odair Cunha tinha essa função do Congresso
partido ao qual se mantinha vinculado em 2010. Nacional quando concorria à reeleição, em 2010.
2. Coligação é o nome que se dá, na época das eleições 7. A referida EFOA é, desde meados dos anos 2000, a
majoritárias e/ou proporcionais, à união de dois ou Universidade Federal de Alfenas, cujos cursos funcio-
mais partidos que apresentam conjuntamente seus nam em outros prédios na cidade.
candidatos para determinado pleito. A intenção des- 8. Conforme as análises de Palmeira e Heredia (2010),
ta articulação é criar um espaço onde as candidaturas os comícios marcam uma separação entre dois públi-
possam se complementar de modo direto ou indireto, cos, o dos políticos e o dos ouvintes. Diferentemente
apresentando em torno de um candidato a governador das reuniões, em que são os candidatos que escutam

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 91-108, 2014


108 | Carlos Eduardo Pinto Procópio

reclamações, reagindo com respostas, nos comícios são in South Asia (Resenha). In: Mana, v. 4, n. 1,
os candidatos que falam, restando ao público a tarefa de p.180-183, 1998.
reagir dentro de um plano cultural, no qual só não lhes MAGNANI, José G. C. Os circuitos dos jovens ur-
é permitido o uso do recurso verbal direto no palanque. banos. In: Tempo Social, v.17, n. 2, p.173-205,
9. Odair Cunha foi criado nessa cidade, onde viveu du- 2005.
rante quase duas décadas, e foi nela que iniciou sua PALMEIRA, Moacir; HEREDIA, Beatriz. Política
militância política. ambígua. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
10.
Segundo sua assessoria, Odair Cunha nasceu em 2010.
Piedade, interior do Estado de São Paulo, mas vi- PEIRANO, Mariza. A análise antropológica dos rituais.
veu sua infância e adolescência em Boa Esperança. In: O dito e o feito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
O candidato ainda viveu em Varginha, onde estudou, 2002.
e em Três Corações, onde participou da Comunidade PIERUCCI, Antônio F. Eleição 2010: desmorali-
Carismática Magnificat. Em 2010 residia em Pouso Alegre. zação eleitoral do moralismo religioso. In: Novos
11. A dissertação de Silveira (2000) apresenta um pano- Estudos Cebrap, n. 89, p. 5-15, 2011.
rama sobre a estrutura dos eventos do catolicismo SILVEIRA, Emerson J. S. da. Tradição e moderni-
carismático. dade na renovação carismática católica: um es-
tudo dos rituais, subjetividades e mito de origem.
Referências bibliográficas Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora/MG,
UFJF, 2000.
BARREIRA, Irlys. Chuva de Papéis. Rio de Janeiro: TAMBIAH, Stanley. Leveling crowds: ethnonationa-
Relume-Dumará, 1998. list conflicts and collective violence in South Asia.
CHAVES, Christina de Alencar. Festas da Política. Berkeley: University of California Press, 1996.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. __________. Conflito etnonacionalista e violência cole-
COMEFORD, John C. Leveling crowds. tiva no sul da Ásia. In: RBCS – Revista Brasileira de
Ethnonationalist conflicts and collective violence Ciências Sociais, n. 34, 1997.

autor Carlos Eduardo Pinto Procópio


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Professor
de Sociologia e Antropologia no Instituto Federal de São Paulo

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

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Na esquina do Bar d’A Lôca: produção de


sexualidades no cruzamento com a produção da
cidade de São Paulo

Bruno Puccinelli
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p109-124 Nenhuma cidade se resume a uma esquina,


nem mesmo a uma rua; e muito menos uma
resumo Sexualidade que produz cidade. Este rua ou esquina podem dar conta de uma cidade
artigo parte de um ponto na cidade de São Paulo inteira. Mas, analiticamente, é possível tratar
para pensar a própria produção da cidade a partir de de uma espacialidade na cidade que contenha
definições sócio-sexuais. Localizado na esquina das e seja contida pela experiência citadina, ou
ruas Frei Caneca e Peixoto Gomide, o Bar d’A Lôca melhor, por uma possibilidade de experiência
surge como aglutinador de identidades sexuais, re- citadina. Na esquina das ruas Frei Caneca e
sumidas no termo gay, assim como ponto epicentral Peixoto Gomide, na cidade de São Paulo, por
de onde se fala do que é o Centro da cidade. Mais exemplo, há uma movimentação que imprime
do que outro dos vários espaços da sociabilidade àquela localidade um cenário ímpar: caminha-
paulistana dita gay, o bar é definidor; assim como das, presença de um grande contingente de
a esquina e a rua, em relação a outras, mapeia São pessoas, falatório, avanço para a rua, extensão
Paulo e altera sua geografia. para os centros das calçadas, extensões semân-
palavras-chave Espaço Citadino; Sexualidade; ticas para um “Centro”1 da cidade.
Centralidade; Rua Frei Caneca; São Paulo O presente artigo apresenta a produção da
cidade de São Paulo pela via da produção de se-
On the Bar d’A Loca’s corner: production xualidades, ou diferenças sociais baseadas em de
of sexualities at the intersection with the identidades sexuais. A pesquisa2 na qual se baseia
production of São Paulo city este texto envolveu diversos níveis de investigação
e de produção de dados, mas irei me ater ao tra-
abstract Sexuality producing city. This paper balho de campo realizado na esquina da Rua Frei
starts from a point in the city of São Paulo to think Caneca com a Rua Peixoto Gomide3. Tal como
the very production of the city from socio-sexual trecho escolhido, essa esquina resume muito do
settings. Located on the corner of Frei Caneca St. observado mais amplamente na região, princi-
and Peixoto Gomide St., the Bar d’A Lôca emerges palmente no que se refere ao contexto de produ-
as unifying sexual identities, summarized in the ção da Rua Frei Caneca como “rua gay”4, ou “a
term gay, as well as epicentral point of speaking of rua gay de São Paulo”5. Não pretendo esmiuçar
what the city center. More than any other of the esse contexto; aponto como marcos importantes
various spaces of sociability gay, the bar is defining, nessa definição o projeto de tornar a rua oficial-
as well as the street corner and the street, in relation mente “gay” e, anterior a isso, a inauguração do
to others, São Paulo maps and alters its geography. Shopping Frei Caneca6. Esses dois pontos mar-
keywords City Space; Sexuality; Centrality; cam uma “oficialização” midiática mais geral
Frei Caneca Street; São Paulo da rua congregando-lhe uma identidade sexual,

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Mapa 1 – A Rua Frei Caneca (em vermelho) em relação a uma região maior da cidade. Destacados alguns pontos relacionados à rua na
discussão que segue no artigo. Fonte: Google, 2013.

ainda que a identificação dessa região por sua fre- caminhadas. Circulam por entre as pessoas,
quência “gay”7 seja mais antiga. mudam os lugares das pessoas, dos bairros, das
No espaço escolhido fica um dos lugares regiões, dos centros. Mudam São Paulo.
mais conhecidos e frequentados da rua nas
noites e aos finais de semana, o Bar d’A Lôca. Sociedade na esquina: convergência
Oficialmente esse espaço de consumo, encon- de caminhos na rua, divergências de
tro, sociabilidade e identidade chama-se To-Ze, sentidos nas identidades
abreviação das primeiras sílabas dos proprietá-
rios. Com o tempo, e uma apropriação específi- “Mas não tem quase ninguém que anda lá pra
ca, passou a ser conhecido como Bar d’A Lôca, baixo. Quer dizer, tem um povo que vai na sau-
fazendo referência à casa noturna mais antiga em na, daí desce, mas é quem está sem grana mesmo,
atividade na região e na Frei Caneca8. Hoje o bar porque tem coisa melhor que isso (a sauna) aqui
mantém a preferência do público que se desloca na rua, não é, gato?” (Márcio, 21 anos, conversa)
para a rua, a qual possui uma dezena de lugares
semelhantes ou de maior prestígio desde o início De onde se parte para falar de uma rua ou
da década de 2000, dentro de um contexto de uma esquina? Não seria essa definição um exage-
alteração comercial e imobiliária da região. ro metodológico para caber numa etnografia, já
Essa ampla, e resumida, descrição apresenta que esta não daria conta nunca da totalidade de
alguns dos lugares e contextos que ajudam a uma rua, por menor que ela fosse? E, neste caso,
compreender a sedimentação das identidades e a Frei Caneca tem um quilômetro e meio de ex-
definições circulantes (e circundantes) da Rua tensão, dezenas de prédios residenciais, comer-
Frei Caneca. Mas essas definições não surgem ciais, hotéis, um shopping, mais prédios sendo
e nem obedecem a uma imposição macrosso- construídos, enfim, uma infinidade de possi-
cial da cidade, da rua e da esquina; circulam bilidades para serem exploradas. Minha opção
por entre as calçadas, os bares, as mesas e as pelo estudo da rua, portanto, se dá em duas

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frentes: tratá-la como agente discursivo, sendo espaço e estranhamento da Frei Caneca. Morei
tomada em sua totalidade no que diz respeito a durante muitos anos numa rua muito próxima
um contexto citadino mais geral e tratar, na rua, à Frei Caneca, ir para lá sempre foi um caminho
de um contexto específico, mais situado, volta- fácil, simples, tranquilo, acessível; mas mesmo
do em parte para a vida noturna. Dessa forma essa certa familiaridade não impediu contextos
é possível vislumbrar a rua, seus lugares e seus completamente inusitados, parte do acompa-
agentes em movimentos para dar a dimensão do nhamento da dinâmica da rua, do espaço urbano
que chamo de aproximação etnográfica proces- público e aberto. Se por um lado me aproximo
sual9. O tratado sobre o campo na esquina segue do campo “de perto e de dentro” (Magnani,
muito da argumentação de Lopes (2013), ao se 2002), é impossível não aventar a necessidade
referir à pesquisa realizada em dois centros urba- de uma posição aproximativa que estranha o
nos localizados em realidades nacionais diversas, comum aos olhos do pesquisador, como aponta
São Paulo (Brasil) e Porto (Portugal): Velho (1978). Este apontamento metodológico
importa tanto no que tange à pesquisa urbana
“É ofício do sociólogo-etnógrafo, por conseguin- quanto às inferências de estudos sobre gênero e
te, transformar a novidade (…), a surpresa e o sexualidade. Neste último ponto, por exemplo, é
choque em novos problemas que a pesquisa ten- mister citar as contribuições de Haraway (1995)
tará aclarar. (…) a imersão de que há pouco falei no que concerne à importância de saberes locais,
levou-me a exercitar o método do andante, muito o que aqui poderiam ser considerados encerrados
próximo do que Mónica de Carvalho apelida de unicamente na experiência individual. Por fim,
‘narrativa itinerante’(...). As narrativas itinerantes se se pensa sobre espaço sob uma forma teóri-
abordarão os terrenos empíricos como configura- ca e metodológica em confluência com gênero
ções (no sentido que Elias lhes confere: redes de e sexualidade é necessário considerar as proposi-
interação e interdependência, das mais simples – ções de Massey (2008) no que tange à produção
encontros, conversas – às mais complexas socieda- do espaço como relação social, ou seja, apenas
des urbanas) e terão omnipresente a preocupação possível dentro de uma relação que também é
de compreender trajetórias de sujeitos no diapasão generificada. Assim, espaço e sexualidade são re-
dos espaços-tempos e cenários de interação, isto é, lacionalmente produzidos ao mesmo tempo.
as singularidades que os contextos estimulam ao Sigo alguns caminhos que chegam ao ou
acionarem certas disposições em detrimento de partem do Bar d’A Lôca., local aglutinador e
outras.” (LOPES,2013, p. 52-53) formador de diferenças, não per se, mas por
um contexto que o elegeu como parte da fau-
A noção de “narrativas itinerantes” parece in- na transitória dita gay na cidade de São Paulo.
teressante para pensar o processo de inserção me- O bar nada mais é do que mais um dos botecos
todológica e analítica e, ainda que dessemelhante, estilo “pé sujo”10 que prosperou com a enorme
como aproximada do que Perlongher (1987) quantidade de pessoas que o frequentam nas
entende como “territorialidade itinerante” ao noites dos finais de semana. Como fica muito
pensar espaços citadinos sem fixá-los. Mas uma próximo a A Lôca, tornou-se o Bar d’A Lôca,
aproximação de pesquisa inclui necessariamente mas não tem relação direta com os proprietá-
uma aproximação pessoal, seja de familiaridade, rios da casa noturna. Quer dizer, é uma espécie
seja de estranhamento. No meu caso, há os dois de “esquenta” para a casa, ponto de encontro,
processos em congruência: reconhecimento do passeio e um dos destinos indispensáveis para

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quem quer apresentar a noite paulistana de um prolongados. Dias e noites quentes, em especial
ponto de vista menos glamouroso. no verão, também foram períodos preferenciais
para idas a campo na rua, principalmente pela
certeza de um contingente maior em relação a
dias mais frios, os quais também foram consi-
derados. É possível considerar que há um pú-
blico mais cotidiano, principalmente formado
por homens de cerca de trinta anos de idade,
morador da região que está mais presente em
quaisquer dias, sejam mais quentes ou frios.
Nestes há também frequentadores de outras
regiões, mas estes são mais frequentes nos dias
de maior movimento, como citado acima. Dei
preferência a esses dias de maior presença de
pessoas na intenção de conversar com homens
Mapa 2 – Detalhe da Rua Frei Caneca (em vermelho) na es- que se definissem como gays e viessem de ou-
quina com a Rua Peixoto Gomide (em azul), destacando alguns tras regiões da cidade para este bar, na calçada.
dos lugares citados no artigo. Fonte: Google, 2013. Interessava-me compreender os trânsitos e en-
tendimentos sobre a cidade e aquela região em
Há três anos o bar passou por uma reforma relação à sua localização espacial e sexual.
que ampliou seu salão interno com a aquisição A estratégia de estar numa esquina também
de um salão ao lado, mas pouco mudaram as ca- não é uma novidade na pesquisa social. Desde
racterísticas gerais do lugar11. Foram colocados o trabalho de William FooteWhyte (“Sociedade
azulejos azuis e brancos, mais mesas e cadeiras, de Esquina”, 2005, inspiração do título dessa
mas a grande maioria das pessoas prefere mesmo sessão) esse meio de produzir dados sobre deter-
ficar do lado de fora, na calçada. Há poucas me- minada realidade inspira novas investigações. No
sas ali, poucas também no salão mais próximo caso desta pesquisa, no entanto, não tem relação
à saída, e essas são as mais disputadas e, depen- com determinados atores sociais específicos, em
dendo da quantidade de público, avançam ao número reduzido, que circulam e ordenam as
espaço da rua. Como quem fica na rua não tem relações a partir da esquina, como no caso de
atendimento dos garçons é necessário que antes Whyte, mas num momento de aglomeração e
vá dentro do bar e pague pela cerveja, podendo lazer. Ainda assim, dadas as especificidades de
trazê-la para a rua. Isso faz com que a circula- cada inserção, há a necessidade de “entrar” e
ção seja intensa e constante até o horário de fe- “sair” dessa “socidade” produzida na esquina, no
chamento, às 01h da madrugada, conforme lei momento do encontro e na espera de amigos.
municipal que impede que bares sem isolamen- Ciente de que minha presença não é in-
to externo e acústica apropriada permaneçam cólume, as idas a campo nessa esquina são
abertos durante toda a noite. acompanhadas de alguns cuidados, como me
Foram feitas diversas idas a campo no Bar portar de forma semelhante a um frequenta-
d’A Lôca durante diferentes períodos do ano, dor comum. Evito anotações em cadernos,
em especial em alguns eventos, como a reali- optando pelo uso de celular como acessório de
zação da Parada do Orgulho LGBT e feriados notas de campo, utilizo de roupa comum, mas

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não muito simples, já que há uma preocupa- O bom é que dá uns boys lindos! E na rua mes-
ção local com a vestimenta, entre cores mais mo, bebendo, não precisa entrar em boate.”
chamativas, camisas de cortes específicos (gola
V, camisas estampadas), calças mais justas, etc. Cássio: “Eu venho no shopping de vez em quan-
Corporalmente há adereços e cortes de roupas do, sábado, encontro o Silas, a gente vem beber,
que não se ajustam bem ao meu tipo, então no encontrar umas gays15aqui, se pá até tem mais
geral posso ser tido como “sóbrio” na vestimen- gente que a gente conhece no bar, quer ver?”
ta. Mas a utilização de uma barba mais cheia é
algo que chama a atenção de alguns frequenta- De fato, na calçada do Bar d’A Lôca havia
dores e pode iniciar trocas de olhares e início de dois amigos de Silas e Cássio, ambos moravam
paquera. Não me furto aos olhares, pois sei que nas proximidades:
isso inicia uma conversa, ainda que não haja
alimentação de expectativas para além da pes- Jorge (27 anos): “Na Frei Caneca, mais em bai-
quisa. É comum que esses rapazes entendam xo, a gente divide”
minimamente meus interesses e não invistam
tanto numa relação afetiva12. Por fim, a presen- Silas: “Frei Caneca o caralho, viado, que a se-
ça maior de homens brancos, assim definidos nhora mora na Paim16! Fala logo que você é tra-
por eles mesmos, coloca em segundo plano vesti para o moço!”
a conversa com homens que se classifiquem
como negros, de uma forma geral, mas mostra Jorge (sem graça, assume morar na Rua Paim):
como região e raça/cor são fatores que, juntos, “Mas é num lugar muito bom, tá!”
indicam uma relação entre Centro e periferia e
centros e periferias, como destacado a seguir. Mateus, 23 anos, companheiro de aparta-
Num fim de tarde de domingo, circulan- mento de Jorge, ri e não comenta nada, mas
do pela Frei Caneca, encontrei Silas (25 anos, Silas insiste:
Jabaquara) e Cássio (22 anos, Jardim Miriam)13
saindo do shopping, após dar informações so- Silas: “Vai, Matt, fala que vocês moram num
bre a região (ambos queriam saber onde era a cortiço!”
sauna 269). Falei que fazia uma pesquisa sobre
a rua e perguntei se poderia conversar um pou- Mateus: “É quitinete com vista para a 09 de
co com eles. Inicialmente reticentes aceitaram Julho, é linda! [risos] Antes até dava medo um
que eu os acompanhasse até próximo da sauna pouco, a gente saía e ficava meio assim, meio
enquanto conversávamos e ambos se defini- com cagaço de ser assaltado, mas faz um tem-
ram como gays ao se referirem à própria sexu- po que tem “coxinha”17 na frente do 14 Bis18.
alidade, bem como afirmaram serem brancos. Apesar que tenho um amigo que mora lá, co-
Como meio metodológico de entender como nheço um outro que mora aqui mais embaixo,
compreendiam a rua e estar na rua pedi que na Frei mesmo, sem zoeira. Ele era vendedor
me indicassem lugares que conhecessem ou na Anjo, você conhece?” (Afirmo que não, ape-
gostassem: sar de ter feito pesquisa no shopping.) “Era um
boy fazível, não magia19. Era vendedor, se acha-
Silas: “Ah, A Lôca, o bar da esquina, às vezes o va, afe! Mas a gente ia lá ferver na loja, tentava
Bar Verde14, é mais barato. Mas por aqui é caro. uns vips, uns esquemas, saca? Era legal, agora

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mudou um pouco a loja, mas a gente passa lá nunca sei o que vai tocar. Às vezes é o máximo,
de vez em quando para conversar com outras mas às vezes é uma merda. O que salva é o povo,
amigas.” tem uns caras gatos, muito gatos, mas acho que
vamos para a Bubu21.”
Eu:“Amigas mulheres?”
Eu: ”E como sabem o que vai tocar na Bubu
Mateus: “Não, amiga viada mesmo! A gente hoje?”
quase não conhece sapatão. Para você ver sapa-
tão tem que ir lá no Tirrenos, aqui no Bar Verde, Cássio: “Tem gente que entrega flyer aqui, mas
aqui no Bar d’A Lôca tem pouco” lá também não muda. Capaz até de irmos para
a Blue22”
No burburinho do Bar d’A Lôca há dois
espaços que as pessoas reconhecem como lés- Eu: “Mais alguma? Nenhuma balada por aqui?”
bicos: o “bar da sinuca” e, em menor inten-
sidade, o Tirrenos, misto de bar e restaurante. Cássio:“Bom, tem a Bofetada23 lá do lado, mas
Digo menor intensidade como meio de “me- lá é meio...”
dir” o entendimento que as pessoas têm de
tal ou qual lugar, já que não se trata aqui de Silas: “Lá é um horror! Só bicha pobre, feia, pare-
um levantamento quantitativo, mas de uma ce que você está na República! E não tem ar con-
percepção de percepções. E como realizar et- dicionado, é tudo na base do ventilador! Não
nografia num ambiente movimentado e na cal- vou lá não!”
çada, espaço de circulação intensa nos horários
priorizados para a pesquisa, é quase uma ação Eu: “Mas em mais nenhum outro lugar por
de inteligibilidade ante o aparente caos foi im- aqui? Augusta?”
possível não perceber um direcionamento de
diversas falas em relação ao “bar da sinuca”, Silas: “Mas na Augusta tem viado24? Só vejo ska-
mais próximo: “É verdade, lá só tem “racha”20 tista, mano, essas coisas. Não, balada de viado
e moleque, desses pivetes que ficam aí na rua!”, não é na Augusta.”
grita um; “Se você fica na rua vai acabar lá, fica
aberto a noite toda, fim de noite total!”, co- Apenas nestes excertos de falas há alguns
menta outro; “Eu achei da hora!”, afirma uma pontos a serem destacados. A quantidade de
mulher. São falas que surgem como somem, lugares elencados sugere uma ligação de proxi-
mas ajudam a formar o espectro de noções so- midade maior entre certos espaços de lazer da
bre os espaços e a rua. cidade que não estão geograficamente aproxi-
Silas e Cássio desistiram de ir à sauna e fica- mados. Blue Space, Bubu Lounge e Bofetada,
ram no próprio bar, com Mateus e Jorge, os quais por exemplo, surgem como espaços possíveis
também se definiram como gays, apesar das pia- de deslocamento num domingo, sendo alguns
das dos amigos. A ideia era beber um pouco, ain- preferíveis a outros. A Lôca, também citada,
da eram 20h, e decidir para onde ir depois: não está entre os lugares de preferência. Essa
parece ser uma ideia amplamente compartilha-
Cássio: “Se a gente encher a cara ainda tem A da entre os frequentadores da rua, da região
Lôca aqui do lado, mas não gosto tanto de lá, e dessa esquina. Não necessariamente sobre

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o Bofetada, mas sobre locais que não vão, ou duro, tentar pegar em mim, caí fora e me toquei
não iriam, por considerar feios, semelhante que rolava bastante disso lá. [risos] Não venho
a lugares localizados na região do Arouche – aqui para passear. Porque, assim, tudo está atre-
República, com gente “cagada”. Estão em jogo lado ao dinheiro, ao poder aquisitivo. Quanto
marcadores como ideias de classe social/poder menor a classe social, mais bicha pco, bicha poc-
aquisitivo, raça/cor e gênero. Quanto mais afe- -poc25, menos educação e cultura. Porque há
minados, mais pobres e escuros, conforme al- gays afetados e gays homens, mas estes são difí-
guns outros interlocutores. ceis de reconhecer que são gays.”
Essa definição e contraposição a tipos e lu-
gares indesejáveis ficou mais clara na conversa Eu: “E como você definiria a Rua Frei Caneca,
com algumas outras pessoas, como Adriano. onde ela fica na cidade?”
Alto, branco, de olhos claros, auto-definido
como gay, Adriano tinha 23 anos e havia se Adriano: “A rua fica no Centro, na velha
formado em Jornalismo na Fundação Cásper Augusta, na baixa Augusta, teoricamente mais
Líbero, no número 900 da Paulista, morava pobre. A Augusta tem ar de Centro, tem men-
com os pais na Bela Vista. Como lugar me- digo, puta, dá medo de ser assaltado mais lá para
lhor para conversarmos escolheu outro bar, o baixo. Já a Frei Caneca é gay, então se você desce
Frey Café & Coisinhas, bastante próximo ao a rua não fica com tanto medo porque gay não é
Shopping Frei Caneca, por ser “mais arruma- violento, você se sente em casa. A rua é tranquila
do”: “o Bar d’A Lôca também é gay, mas é mui- mesmo estando cheia. A Frei Caneca é acolhe-
to ‘cagado’.” dora, você se sente à vontade. Mesmo os fun-
Adriano relaciona o poder aquisitivo a cionários do comércio daqui têm a cabeça mais
uma maior tolerância, informação e “cultura”. aberta de tanto ver gay e a rua se tornou uma
Segundo ele, na região e no shopping era clara a forma do gay ter seu espaço, toda cidade tem
circulação de pessoas com menor poder aquisi- um espaço gay, o de São Paulo, o mais famoso,
tivo e, portanto, menos informação e formação: é aqui, a Frei Caneca. No Centro tinha uma rua
gay antes da Frei Caneca, não lembro o nome,
“Pessoas de menor poder aquisitivo são mais ig- mas a rua gay agora é aqui, porque no Centro
norantes, têm mais preconceito, são muito tadi- isso é minoria, o gay é muito marginalizado e a
nhas, cagadinhas. Mas ainda assim acho que há Frei Caneca é a melhor opção.”
pessoas de menor poder aquisitivo com a mente
mais aberta no Frei Caneca. Mas na minha opi- No excertos destacados das falas de Adriano
nião a pessoa ter mais grana, ser de família, faz a Rua Frei Caneca que surge é identificada, po-
com que seja mais de boa com o fato de ser gay, sitivamente, com alguns lugares, como o Frey,
de ela mesma ser gay. Na verdade o shopping se escolhido por ele para a conversa, o bar Barão
tornou um ‘antro gay’, mas isso é bom, porque da Itararé, localizado na Rua Peixoto Gomide e
as pessoas podem se cumprimentar com beijos, caracterizado por preços mais altos e um públi-
trocar afeto sem maiores problemas. No começo co mais velho. É Centro, baixa Augusta e tem
achei um shopping normal, depois que fui per- em si uma circulação de pessoas de menor po-
cebendo em dois lances de paquera. Um deles der aquisitivo, mais “ignorantes”, “tadinhas”.
foi no banheiro do shopping. Eu estava no mic- Mas, ainda assim, há algo de positivo nessa
tório e o cara do lado começou a mostrar o pau ocupação menos desejável.

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Ideia semelhante me apresentou Fernando, é diferente d’A Lôca, menos exagerado. E bar
mais categórico inclusive na definição de gay mesmo, para mim, só tem o bar d’A Lôca.”
Centro como localidade da Frei Caneca e,
portanto, de pessoas indesejadas. Conheci E a Frei Caneca difere muito da Augusta?
Fernando por indicação de colegas, por ele ir
frequentemente à Frei Caneca, principalmen- “Muito! A Frei Caneca é gay, tem mais opções de
te ao Bar d’A Lôca e à própria A Lôca. Com baladas e coisas mais bonitas, a rua é mais boni-
22 anos de idade, auto-identificado como gay, ta. A Augusta é mais submundo, mais dark, de
descendente nipônico, Fernando residia na construção antiga. Lá circula um pessoal mais...
Penha, bairro da Zona Leste, e trabalhava na indie, rock, over, exagerado. Mas o pessoal das
Avenida Paulista. Por sua sugestão fomos até o duas ruas circula entre elas. Mas é impossível não
Shopping Center 326, que para ele trata-se do saber que a Frei Caneca é gay, isso está em guias
mesmo espaço sobre o qual eu queria conver- turísticos. Aqui é a região gay de São Paulo. Aqui
sar, a região da Frei Caneca. Perguntei-lhe o é Zona Sul, a Paulista é Zona Sul, mas a Frei
que era a Frei Caneca: Caneca é mais Centro. Eu moro na Penha, aqui
é muito mais elitizado que lá, e eu viveria de boa
“Para mim se resume ao shopping. Bar d’A Lôca aqui, até porque no meu bairro eu só moro, não
só se for para encontrar os amigos, não gosto de faço nada por lá, saio mais por aqui. Além daqui
lá. Prefiro o bar Barão da Itararé, é mais tranqui- há gays também no Centro-República, lá tem
lo, dá para ir com o namorado, tem um público uma concentração de gay sujo, se você conversar
diferenciado. No bar d’A Lôca tem muita ploc- muito tempo pode até pegar uma doença, Aids,
-ploc, acho desnecessária essa bichice toda.” por exemplo. Lá as pessoas se vestem de maneira
mais chamativa, mais colorida, são menos ins-
Fernando diz que o shopping tem um his- truídas, tem gente muito magra, tipo com cara
tórico gay e até pessoas do interior do estado de doente mesmo. Na República também está
conheceriam essa fama, mesmo sem nunca te- cheio de travestis e garotos de programa, coisa
rem ido ao local: “lá tem muito gayzinho, mas que não se vê aqui na Paulista.”
é um lugar mais aberto. No shopping sempre
encontro amigos, mas não vou passear lá. Lá é ***
meio despudorado, você vai no banheiro e vê
um pessoal no mictório”. Márcio, autor da fala descrita na epígrafe,
Disse ter ido apenas duas vezes n’A Lôca: está em frente ao Bar d’A Lôca, fuma e bebe
uma cerveja no fim de uma tarde de sábado.
“N’A Lôca é cheio de calopsitas27, gente com o Está sozinho, mas aguarda mais dois amigos,
cabelo colorido. Mas eu curto mesmo é ir na de idade semelhante à sua, 26 anos. Mora com
The Week28 quando tem a festa Gambiarra. Há os pais e um irmão mais novo na Vila Matilde
diferença entre o público de um lugar e de ou- e todos sabem que “eu venho pra cá. Trabalho
tro, na The Week a classe econômica é maior, a semana inteira no banco, ganho meu aqué29,
se percebe pela conversa, também se percebe a eles nem me enchem o saco. Mas já me enche-
formação da pessoa. Na verdade de balada gay ram bastante, inclusive por eu ser gay.” Márcio
na Frei só conheço A Lôca. Tem o Bofetada, mas diz vir com frequência à Frei Caneca a partir
é bar, o clima lá é legal, descontraído, o público da Augusta, mas se utiliza do caminho pela

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Na esquina do Bar d’A Lôca | 117

Augusta – Peixoto Gomide para chegar ao Bar tido como afeminado nas falas de Fernando,
d’A Lôca, por exemplo: por exemplo, existem relacionalmente, a de-
pender de sua localização. Adriano, ao escolher
Márcio: “Na Frei Caneca não tem nada! Se você o Frey como espaço de conversa, coloca outros
desce pela Augusta já é metade da diversão, en- sujeitos circulantes na região em lugar periféri-
contra alguém, é ótimo. Na Frei Caneca você co de seus interesses afetivo-sexuais, mas tam-
não vê ninguém.” bém na periferia da cidade no contexto aqui
abordado. O que a pesquisa infere é a posição
Eu: “Mas nós estamos na Frei Caneca...” de quem fala como mediador de Centros e pe-
riferias no que tange à cidade em confluxo com
Márcio: “Ah, mas é o bar d’A Lôca, é o shopping, sexualidades, trata-se de um processo que ocor-
é isso, é aqui que concentra. Quer dizer, tem re concomitante à elaboração de si.
uma molecada que fica aí na rua, aqui do lado...” Segue a dinâmica da rua, as pessoas passam,
param, conversam umas com as outras. Algumas
Eu: “Na Peixoto Gomide?” seguem outros caminhos, se dirigem para a con-
tinuação da Peixoto Gomide indo no sentido
Márcio: “ É, é bem aí, um povo jogado. Agora do Barão da Itararé, sentam nas calçadas, onde
está de boa, está tranquilo, mas logo eles quase uma centena de rapazes e meninas mui-
chegam.” to jovens já estão. Bebem, riem, andam para a
outra calçada. A circulação parece indicar cami-
Márcio mapeia mentalmente a Frei Caneca, nhos muito diversos, mas a concentração mostra
tirando-a do próprio traçado da rua. Pensar a di- certos centros de interesse e lugares de paragem,
nâmica da Frei Caneca sem considerar as relações como o Bar d’A Lôca. Pode-se entrar nele ou
com outros espaços, outras ruas, outros bairros, não, mas passa-se por ele e, estando lá, define-se
é um equívoco. Ao menos se se pretende pensar quem se é. Estar em outro bar, em outra parte da
na dinâmica que produz uma rua, um espaço esquina pode apresentar outra configuração ou
da cidade como “gay”. O que as falas destacadas mesmo outro mapeamento da cidade.
sugerem é que o sujeito, e o espaço, assim enten-
didos obedecem a legitimações que interditam A rua não fica parada: algumas
acessos a quem não se encaixa. De forma geral, considerações finais
a afeminação eclipsa outros marcadores, fazendo
com que estes orbitem em torno da generificação O tema das legitimações acerca do pertenci-
mais feminina. Ser mais pobre, menos desejável, mento ou não da rua, de quem pode falar sobre
é ser afeminado. Ser mais negro, menos desejá- ela, defini-la, agir em seu nome, fazer parte de
vel, é ser afeminado. Ser de um bairro distante, sua vida, circular por, alicerça as idas a campo e
menos desejável, é ser afeminado. Estar num bar falas com interlocutores. No centro da questão
ao lado, mas conter tais marcadores, é estar na o Centro: a Frei Caneca é central geográfica e
periferia. E estar na periferia, no caso desta análi- simbolicamente. E no centro dos discursos está
se, é estar na região da República. também a definição de uma sexualidade per-
Ser afeminado ou mais masculino não são mitida, mas não permissiva; controlada e bas-
dados prontos, mas produzidos na relação. tante homogênea, assemelhada muito ao que
Seguindo a argumentação de Brah, o sujeito infere Rubin (1993) sobre sexualidades “boas”

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ou “más”. Não creio estar descrevendo novida- leviano afirmar que a programação da cidade
des nesse sentido, mas creio poder trazer à tona por conta da Parada se volta exclusivamente
parte de novas conformações epistêmicas: cida- para os arredores da Paulista e se concentra
de e sexualidade, dois pontos convergentes de na Frei Caneca: há um espraiamento de pos-
compreensão da vida social. sibilidades de consumo e diversão privados na
Assim como nas conversas descritas ante- Zona Oeste e uma ocupação intensa e histórica
riormente as falas de funcionários do Bar d’A na Avenida Vieira de Carvalho, imediações do
Lôca durante a realização da Parada do Orgulho Arouche – República. No entanto, a presença
LGBT de São Paulo dão um pouco do tom de de um grande contingente de pessoas circulan-
ponto de convergência do lugar. Boa parte dos do por entre a Frei Caneca e a Augusta, apesar
bares desse pedaço ostenta bandeiras, balões, de em alguns momentos se assemelhar ao mo-
infláveis, menos o Bar d’A Lôca: “Não preci- vimento da Vieira de Carvalho, se difere dessa
sa”, afirma um garçom, “as pessoas vêm para cá frontalmente no sentido atribuído ao espaço
de qualquer jeito”. Em frente ao bar O Frei em ocupado.
dois anos seguidos foi montado um palco com Isso ficou claro em 2011, quando do encer-
apresentação de drag queens e gogo boys segui- ramento da Parada na Frei Caneca, ao menos
das de música eletrônica. A rua fica tomada na para algumas das pessoas que já não seguiam
esquina, acompanhando também a iniciativa o comboio de trios elétricos e festeiros rumo à
do Bofetada em colocar caixas de som; mas as Praça Franklin Roosevelt. Grupos de seis, sete,
pessoas circulam mesmo no Bar d’A Lôca. quinze pessoas, descem a Frei Caneca para che-
Parte da dinâmica da Rua Frei Caneca tem gar até a Consolação. Alguns já ficam por lá mes-
sua intensidade alterada à época da realização mo, vão para o Frey: “Agora o lance é ficar na
da Parada, visto que esse espaço fica no meio Frei Caneca, ninguém mais vai até a República,
do percurso da manifestação. A cidade fica lá só tem gente feia.”, comenta um rapaz com o
bastante movimentada, mas, certamente, não amigo. Fato é que muito mais gente desce para
é a cidade toda. Ainda assim a maior parte dos a República e arredores - e lota bares, saunas,
participantes do evento que não são da cidade casas noturnas, cinemões, mas, principalmen-
estão nela também para visitarem a cidade. te as ruas – do que permanece na Frei Caneca.
A programação do evento é anterior à data Mas estar na Frei Caneca é estar entre as pessoas
da marcha, mas já na quarta-feira anterior ao bonitas, atraentes, as que interessam.
feriado de Corpus Christi, ponto temporal re- Se por um lado as “narrativas itinerantes”
ferencial de realização da Parada, há uma gran- destacadas oferecem pistas para a compre-
de movimentação de pessoas, festas e eventos ensão da produção de diferenças na cidade,
paralelos no intuito de atrair a público circu- por outro as “territorialidades itinerantes”
lante em São Paulo. Parte desses eventos, para produzidas surgem a partir da intersecção de
muitos dos visitantes, é estar na rua, como diferentes marcadores. Essa última expressão,
passear na Frei Caneca. Há diversos guias para como cunhada por Perlongher, sugere espa-
estrangeiros que indicam um passeio na rua ços na cidade reconhecíveis por determina-
como forma de conhecer a vida gay que vibra das qualidades dos michês que lá trabalham
em São Paulo, desde o shopping, por vezes de- (como trechos de ruas mais “masculinas”,
finido como direcionado ao público gay, até mais “negras”, mais “perigosas”, por exem-
os bares e casas noturnas dos arredores30. Seria plo), se aproxima do que aqui analisamos,

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Na esquina do Bar d’A Lôca | 119

espaços de contraposição quando a pessoa se Vejamos o exemplo das relações construídas


refere a si mesmo como sujeito sexualmente numa espacialidade como uma esquina, o cru-
legítimo. Interessante como a ideia mesma de zamento de duas ruas não muito largas e que
algo periférico, mais perigoso e mais negro é ganham as definições aqui apresentadas a partir
descrito por McClintock (2010) nno contex- de um uso, ocupação e apreensão cujo vetor é
to da Londres do século XIX. Os diários ana- o encontro mediado pelo lazer, consumo e in-
lisados pela autora dão conta de uma cidade teresses afetivo-sexuais. No espaço de alguns
possuindo um quinhão de seu território em metros pode-se encontrar desde uma mancha
algo imaginado a milhares de quilômetros, no gay até uma mancha bicha, viada, “pco”, “ploc-
coração do continente africano, entre popula- -ploc”. Quem fala do Bard’A Lôca e olha para
ções selvagens e bestializadas. Essas são as clas- a esquina oposta, logo à frente, se define como
ses laboriosas moradoras das franjas londrinas, gay, mas não vê ou observa gays. A própria di-
enegrecidas pelo carvão, bestializadas pela so- nâmica desse bar embaralha o que poderia su-
ciedade “central”. Não estão no Centro. gerir uma contraposição fixa: consumidores e
Sexualidade produzindo a cidade. O que passeantes dessas ruas circulam por entre as pes-
parece se destacar mais do lugar e da ênfase soas do Bar d’A Lôca assim como se deslocam
dada à consideração sobre lugares de sociabi- para a outra esquina, seguem até o alongamento
lidade conhecidos e reconhecidos como gays, da Peixoto Gomide à Augusta, vão ao Frey.
ou de presença maciça homossexual, é a pos- Mas nem todos fazem isso: Adriano, no
sibilidade de apreensão social e geográfica de Frey, é categórico ao dizer que não vai ao Bar
São Paulo a partir de uma matriz semântica d’A Lôca, assim como Fernando descreve um
baseada em diferenças. Tais diferenças se ex- desprazer no lugar e na casa noturna que o re-
pressam, primordialmente, num entendimen- ferencia, A Lôca. Ambos, Adriano e Fernando,
to que se tem sobre posturas, comportamentos mostram que são gays, e não outra coisa, por-
e índices de identidades sexuais que circulam que não estão nesses espaços aos quais alocam
em torno de uma ideia geral de homossexuali- um outro entendimento de sexualidade ilegi-
dade masculina, de uma ideia de ser gay. Aqui timada. O espaço que ocupam e demonstram
exprime-se com muita clareza que esse ser gay interesse e suas próprias definições de identida-
é mais bem apreensível analiticamente por um de social ligada às suas sexualidades passam por
estado, por um estar gay: quando falo de mim, um processo de legitimar a si e às suas escolhas
ao me referir ao sujeito que fala de si, me con- ao mesmo tempo que deslegitimam aos outros
traponho ao outro alocado em outro espaço, que parecem não terem feito escolhas seme-
em outro lugar. Narrativas itinerantes surgem lhantes. Essas falas ficam marcadas por uma
alocando territorialidades itinerantes e os lu- ideia de fixidez de espaço e sexualidade que não
gares de identidade podem mudar, apesar de se sustenta na observância da dinâmica local.
parecerem um mesmo espaço ou fixados. Não Além disso, vale salientar, a cidade que sur-
pretendo sugerir que isso seja universal nem no ge é tão múltipla quanto os caminhos possíveis
escopo do apresentado aqui e nem na dinâmica para os lugares descritos, ou seja, obedecem a
de relações e espaços de sociabilidade gay, mas alguns padrões, mas não se encerram numa de-
parece haver um processo mais geral de defi- finição unívoca. Vejamos a ideia de Centro da
nição de si em contraposição a um outro que cidade: estar no Centro pode ser o lugar onde se
semanticamente não está próximo31. está, ao mesmo tempo que o lugar em que não

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se quer estar. Mais uma vez Adriano e Fernando às ocupações de prédios por movimentos so-
encerram a rua e a região numa ideia de Centro ciais, à prostituição de homens e travestis. Por
da cidade que é indesejável, dentre outras coisas, outro lado também se fala de processos pon-
principalmente pelo tipo de pessoa que congre- tuais ou generalizados de “requalificação” ou
ga. Frei Caneca e Bar d’A Lôca têm pessoas que “revitalização” da cidade tendo-se como prin-
não são como eles e são pessoas do Centro. E cipais veículos de entendimento desse processo
essas pessoas encerram em si uma homossexuali- o incremento cultural pela via institucional:
dade fixada na via da feminilidade e da pobreza, reforma e novos usos de edifícios históricos,
do gosto duvidoso e da falta de (in)formação, reformas de praças que geralmente visam a ex-
resumidas pelas expressões nas quais são defini- pulsão de tipos indesejáveis como moradores
das (bicha, viado, “poc-poc”). Não há dúvidas de rua, compra de imóveis tidos como degrada-
de que essas outras pessoas, essas outras homos- dos por preços muito baixos, como os cinemas-
sexualidades, não fazem parte do centro de in- -palácio utilizados como cinemas pornôs, para
teresses e, portanto, não estão no espaço onde a criação de novos centros culturais, eventos
quem fala está, ainda que esteja no Centro. que tragam “outros tipos de pessoas” para o
Outras falas alocam essas pessoas, as do Centro, entendidas como de maior poder aqui-
Centro, e o Centro da cidade, também a uma sitivo e formação, como festas na rua e a Virada
distância de si e congregam uma outra defi- Cultural. Esta última, por exemplo, traz em si
nição ao que entendem por essa centralidade: a marca da ocupação da cidade, ainda que essa
ela é Arouche – República nos sentidos que ocupação se dê essencialmente nas ruas que
encerra, essas pessoas são de lá. Elas vêm para formam esse Centro, histórico e abandonado.
perto, para o Bofetada, por exemplo, mas estão Como o que surge nessas falas não é um
distantes, não são iguais. Gupta & Ferguson Centro geográfico, cuja definição territorial o
(2000) apontam o aspecto de constructo so- definiria, há de se compreender as marcas que
cial do entendimento sobre o espaço, o qual se localizam o Centro oficialmente. A Sé, de onde
torna compreensível pelas relações que abarca todas as numerações das ruas da cidade se ini-
e não como algo em si. Além disso, como essa ciam, marco zero e referência de Centro, some
produção do espaço infere hierarquias e dife- no campo estudado. Mas até a Sé não é epicen-
renciações: “Compreendendo-se a atribuição tro: o definido como Centro se espraia para o
de sentido como uma prática, como se estabe- sul nos limites da Bela Vista, segue a oeste até
lecem os sentidos espaciais? Quem tem o poder as imediações da Santa Cecília, a norte até o
de tornar lugares os espaços? Quem contesta Bom Retiro e os limites do Rio Tietê e a les-
isso? O que está em questão?” (p. 37). te não ultrapassa o Glicério e o Parque Dom
Há de se salientar que a ideia de Centro de Pedro II. Nestes limites, inclusive, a porção les-
São Paulo tem mudado bastante, mas ainda te o Centro é a menor, enquanto a oeste, que
é genericamente definida pela sujeira, perigo engloba Arouche e República, é maior32.
e violência. Imagens veiculadas em grandes Assim também a Frei Caneca congrega e se
veículos de mídia resumem o Centro de São distancia do Centro. E congrega e distancia di-
Paulo à existência da Cracolândia e do tráfico ferentes formas de expressão das sexualidades.
de drogas, aos moradores de rua e mendigos, Mas isso não ocorre sem mediações que hierar-
a trombadinhas e batedores de carteira, ao co- quizem esses distanciamentos, marcados por
mércio popular das ruas 24 de Março e Direita, sentidos simbólicos do que seja ser gay e estar no

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Centro da cidade, ser centro do entendimento capital financeiro em direção à Zona Sul da cidade,
sobre a cidade e a vida e alocar o outro numa por exemplo, ou a identificação dos sujeitos com uma
“periferia” fora de seus próprios interesses. A região mais central em detrimento de outras, mesmo
rua está lá, nos limites da Avenida Paulista e da que próximas. A realidade social descrita e analisada
Rua Caio Prado, paralela à Augusta, no bair- aqui mostra como o Centro da cidade está relacio-
ro da Consolação; mas a rua também não está nado, dentre outros fatores, às centralidades dadas a
lá, muda para a República, para o Centro. É determinadas expressões de sexualidade legitimadas.
Centro e periferia ao mesmo tempo, num espa- 2 Minha dissertação de mestrado, intitulada “Se essa rua
ço de poucos metros. Centraliza e periferiza ao fosse minha: sexualidade e apropriação do espaço na
mesmo tempo. Mais do que um modo de en- ‘rua gay’ de São Paulo”. O trabalho envolveu desde
tender a sociabilidade construída num espaço, idas a campo até a análise de novos projetos imobiliá-
ou dentre espaços e lugares diferentes, como to- rios, principalmente residenciais, e os mapas e indica-
mar a análise a partir de dois bares que parece- ções turísticas que produzem a região e a cidade como
riam diametralmente opostos no que concerne lugares “gays”, “LGBTs” ou mesmo “queers” tendo
às definições sócio-sexuais de seus frequentado- como vértice metodológico a Rua Frei Caneca. A es-
res, o que surge é a dinâmica da diferença na colha da esquina com a Rua Peixoto Gomide em parte
cidade de outro ponto de vista, o ponto de vista diz respeito à sua grande ocupação nas noites e finais
das definições de sexualidades que produzem de semana, como será melhor descrito mais abaixo.
cidades. Sexualidade é boa para pensar espaço. 3 Ambas oficialmente se localizam no bairro da
Consolação, entre a Avenida Paulista e o Centro (ofi-
Notas cial) da cidade.
4 A ideia da Frei Caneca como “rua gay” se tornou mais
1 Utilizo aspas aqui ao me referir ao Centro da cidade relevante em meados de 2008, quando o empresário
entendido como espacialidade oficial no sentido de Douglas Drumond, então proprietário da sauna gay
dar ênfase a como essa ideia é produto das relações “269” e presidente da “Associação GLS Casarão Brasil”, e
delineadas no decorrer do artigo. Como as referências hoje proprietário do “hotel para solteiros” “Chilli Pepper,
ao Centro se dão de forma descontinuada à sua locali- apresentou à imprensa o projeto de oficializá-la como
zação, mas se utilizam amplamente da ideia mais geral “rua gay”, assim como outras ruas temáticas na cidade
de Centro (degradado, sujo, violento, etc), irei seguir (Puccinelli, 2013, p. 120). À época o tema tomou conta
utilizando o termo sem aspas a fim de facilitar a leitu- de veículos direcionados e de atores envolvidos mais dire-
ra indicando casos específicos em que seja necessária tamente com aquela região da cidade, como a Sociedade
uma explicação mais detalhada. Além disso, em di- dos Amigos e Moradores de Cerqueira César (Samorcc)
versos momentos haverá referências a um centro que, na figura de sua então presidenta Célia Marcondes.
em letras minúsculas, se refere a algo que seja central 5 Essa expressão surgiu em algumas matérias que indica-
em falas, discursos e definições, e não a uma espacia- vam a rua como lugar para ser visitado em São Paulo,
lidade da cidade. A ideia apresentada neste artigo de principalmente em guias direcionados a visitantes na
Centro, e Centros, segue muito proximamente a defi- cidade por ocasião da Parada do Orgulho LGBT.
nição de centralidade conforme cunhado por Frúgoli 6 A inauguração do shopping em si, em 2001, não repre-
Jr. (2000), a qual se aproxima de uma definição social senta uma mudança substantiva com relação à definição
de Centro da cidade mais do que um Centro oficial. da identidade da rua, visto que essa já tinha uma mo-
Assim, a ideia de centralidade pensa condições e meios vimentação de pessoas identificadas como “gays” ante-
de produção de Centros, como os movimentos do rior, frequentando a casa noturna A Lôca ou a sauna gay

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122 | Bruno Puccinelli

Labirinttu’s 2, ambas localizadas na Frei Caneca. Mas o homens. Há algumas mesas e cadeiras de ferro e ilu-
shopping representa um incremento imobiliário inicial minação clara e branca de luzes fluorescentes. Não há
para a década de 2000, deslocando a ideia de que uma música e os banheiros são pequenos.
rua já histórica e amplamente ocupada dificilmente te- 11 Nos últimos anos quase todos os bares semelhantes
ria o investimento residencial que se observa atualmen- da Rua Frei Caneca passaram pelo mesmo processo,
te. Além disso, o Shopping Frei Caneca foi palco da mudando sensivelmente a aparência destes lugares.
expulsão de um casal de rapazes que trocavam beijos e 12 Facchini (2008) observa algo semelhante no trânsito
afeto, seguido de protesto intitulado “beijaço” e proces- de mulheres que gostam de mulheres entre o “centro” e
so com base na lei estadual 10.948/01. os “bairros”. No que tange às aproximações afetivo-se-
7 Utilizo o termo gay ciente de que este não en- xuais em campo, sigo de perto as considerações de Braz
cerra o entendimento que se pode ter sobre a(s) (2012) e Kulick (1995), os quais inserem tal dimensão
homossexualidade(s) masculina(s). Gay comumente como parte do campo, da qual qualquer pesquisador
aglutina uma ideia de homem branco, com alto poder deve estar ciente das limitações e possibilidades de in-
aquisitivo e é um termo menos depreciativo em com- teração. O pesquisador, assim como ses interlocutores,
paração com outros, como bicha, viado, etc. Dou pre- também é um ser passível de interesse a outrem.
ferência por utilizá-lo como identificador comum por 13 Jabaquara e Jardim Míriam são dois bairros próximos
este ser amplamente acionado no campo da pesquisa, localizados na Zona Sul da cidade. Ambos são conhe-
mas irei apontar diferenças ou utilizar outras termino- cidos por serem ocupados por classes mais baixas e
logias quando se fizer necessário. Sobre o tema ver Fry pela proximidade com cidades da região metropolita-
(1982) sobre hierarquia e igualdade suposta no termo na, entendidos como bairros periféricos de São Paulo.
entre classes médias urbanas; Carrara & Simões (2005) 14 O Bar Verde fica localizado na Rua Peixoto Gomide,
numa aproximação de cunho histórico da produção esquina oposta à do Bar d’A Lôca. Hoje em dia tem
acadêmica; MacRae (1990), cuja pesquisa inclui a dis- programação de festas que viram a noite, como uma
cussão política do termo “bicha” como meio de afirma- casa noturna, mas antes era apenas bar.
ção; e França (2012) sobre as diferenças de termos em 15 É muito comum em grupos de homens que se definem e
diferentes contextos na cidade de São Paulo. Não irei se tratam como gays, viados ou bichas haver a declinação
grafar o termo com aspas para facilitar a leitura. de palavras masculinas de tratamento para o feminino,
8 A Lôca existe desde 1997 e era conhecida, inicialmen- como no exemplo em que se diz “a gay” e em alguns ou-
te, por uma programação de música eletrônica under- tros exemplos que se seguirão. Como faz parte do léxico
groud e noites de rock. De casa “mix”, com diferentes não irei utilizar sic, visto não se tratar aqui de um erro
tipos de públicos, A Lôca passou a ser mais definida gramatical ou ortográfico. Em campo não foi possível
em geral como casa noturna gay, ainda que não haja observar grandes diferenças no uso desse tratamento en-
uma homogeneidade no público frequentador, como tre pessoas que seriam classificadas por sua classe social,
pode ser observado em outras casas noturnas reconhe- esta recortada aqui principalmente na escolha dos luga-
cidas como direcionada a esse público. res para encontro e lazer junto a outros marcadores.
9 Uma etnografia no entremeio, sem pretender dar con- 16 A Rua Paim faz cruzamento com a Frei Caneca em sua
ta de um passado ideal de construção dos símbolos porção mais central e difere daquela por ter uma concen-
ligados à rua, e à “rua gay”, tampouco de um presente tração maior de cortiços e moradores migrantes nordes-
estático e muito menos da previsão de um futuro. tinos. Atualmente passa por um processo de mudança
10 Bares pouco arrumados, com grandes balcões e oferta residencial muito forte, com a derrubada de vários desses
de salgados, lanches e refeições simples. A maior parte cortiços para a construção de edifícios de apartamentos
dos funcionários, quase a totalidade, é formada por direcionados a pessoas de maior poder aquisitivo.

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Na esquina do Bar d’A Lôca | 123

17 Gíria para policial. 26 O Center 3 é um shopping localizado na Avenida Paulista


18 Um dos edifícios mais conhecidos da Rua Paim, com no quarteirão entre as ruas Augusta e Frei Caneca.
muitas unidades de quitinetes e uma galeria comercial 27 Fernando se refere ao pássaro branco de penugem
no térreo. O 14 Bis é conhecido, ou definido, pela amarelada no topo da cabeça, comparando-o a pessoas
suposta presença maciça de moradoras travestis e de que teriam cabelos descoloridos ou tingidos de cores
tráfico de drogas. Algumas pessoas definiram o prédio chamativas, frequentadoras d’A Lôca.
como invasão por sua aparência desgastada, mas isso 28 Uma grande casa noturna que se define como gay loca-
não corresponde à realidade. lizada no bairro da Lapa, Zona Oeste, e conhecida pela
19 Modo de se referir a algum homem desejável com presença de frequentadores de maior poder aquisitivo.
gradações. “Boy magia” diz mais respeito a um rapaz França (2012) tem uma interessante análise comparati-
muito bonito e atraente, enquanto “fazível” é alguém va entre diferentes festas e casas noturnas de São Paulo
com quem se pode sair, mas sem tanto entusiasmo. que inclui um detalhamento sobre a The Week.
20 Gíria para mulher com tom ofensivo, muitas não gos- 29 “Aqué” significa dinheiro.
tam de ser chamadas assim, preferem “amapô”. 30 Ver principalmente a descrição do mini guia gay pro-
21 Bubu Lounge, casa noturna que se define como gay duzido pela revista londrina Time Out por ocasião da
localizada no bairro de Pinheiros, Zona Oeste da cida- Parada de 2011 em Puccinelli (2013).
de e localidade valorizada. 31 É interessante com muito dessa dinâmica se assemelha,
22 Blue Space, casa noturna que se define como gay e se em parte, ao processo descrito por Barth (1998) sobre
localiza no bairro da Barra Funda, Zona Oeste. fronteiras, pertencimento e produção de identidades e
23 Inaugurado em 2011, o Bofetada Club fica na es- à descrição de Evans-Pritchard (2005) sobre tempo e
quina oposta ao Bar d’A Lôca e é caracterizado por espaço. Seguindo os passos do povo nilota, assumir uma
baixa luz, a presença de casais mais velhos na parte identidade gay que se distancia de uma identidade bi-
térrea, no bar, e pela presença de pessoas mais jovens, cha pode ser comparado ao entendimento da distância
de 18 a 25 anos em média na pista, no piso de cima, nuer em relação aos dinka, ainda que estes estejam mais
dentre homens e mulheres. A casa é bastante abafada próximos de uma tribo nuer do que outra tribo nuer
e atrai um público volumoso e fiel, apesar de várias descrita como mais aproximada. Estar próximo não sig-
falas em campo que o caracterizam como lugar in- nifica estar a poucos metros de distância, mas sim estar
desejável. Após a inauguração do Bofetada outros semelhante à definição que se tem de si como sujeito.
três bares bem ao lado abriram suas portas, sendo 32 Nasci e cresci no bairro da Barra Funda, que hoje em dia
frequentados por gays e lésbicas, mas possuindo um é comumente ligada a uma proximidade com o Centro
maior número destas últimas em relação a outros ba- da cidade, mas nem sempre foi assim. Durante minha
res da região. infância meus pais diziam que teriam que “ir à cidade”
24 Outros entrevistados afirmavam haver um fluxo in- comprar presentes em datas festivas quando queriam se
tenso de gays na Rua Augusta, paralela à Frei Caneca. referir à grande loja de departamentos Mappin, locali-
De fato a Augusta congrega uma ocupação mais inten- zada na Praça Ramos de Azevedo, já fechada. Para eles
sa e diversificada, além de fazer parte de trajetos que não morávamos no Centro ou em suas proximidades e
levam à Frei Caneca e vice-versa. teríamos de nos deslocar até a “cidade”, lugar de compras
25 Tanto “ploc-ploc” quanto “poc-poc” são adjetivos que e preços mais baixos, mas também de perigo e sujeira.
acentuam a afeminação de uma bicha, fazendo refe- Àquela época já existiam as linhas de metrô que ligavam
rência ao som de saltos altos. “PCO” é uma abreviação minha casa ao Centro e mesmo assim a distância estava
de “pão com ovo”, expressão que referencia pobreza e posta; hoje esse entendimento já mudou e a Barra Funda
esse tipo de comida como única opção de alimentação. não surge tão deslocada do Centro da cidade.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 109-124, 2014


124 | Bruno Puccinelli

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autor Bruno Puccinelli


Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
Recebido em 03/04/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 109-124, 2014
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“É gay ou é hetero?” – Notas etnográficas sobre


performatividade nas sociabilidades alternativas

Giórgia Neiva
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p125-139 I accomplished at two nightclubs in the city of


Goiânia, Goiás. In these establishments it is usu-
resumo O objetivo deste trabalho consiste em al the presence of young people self-nominated as
apresentar resultados parciais da etnografia que rea- alternative (native category), ie., not sufficed in ti-
lizei em minha pesquisa de Mestrado, em duas casas ght definitions as to identity and sexuality, covering
noturnas da cidade Goiânia/GO, que comportam jo- subjects from heterosexual, bisexual or homosexual,
vens que se nomeiam como alternativos (categoria na- even those who call themselves no-labels. Thus, such
tiva), ou seja, não se bastam em definições estanques establishments are not identified as GLS (brazilian
quanto à identidade e à sexualidade, abarcando desde acronym for gays, lesbians and friendly) – even
sujeitos heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, though they are not heterosexual environments
até os que se dizem sem rótulos. Desta forma, tais esta- either. So that not only the places are alternative,
belecimentos não são identificados como GLS (gays, but also the people. What also draws attention to
lésbicas e simpatizantes) – mas também não são am- these subjects is their performative character, chal-
bientes heterossexuais. De maneira que não somente lenging the existence of true or false acts of gender,
os lugares são alternativos, mas as pessoas também as- real or distorted, leading to inquire whether hete-
sim se dizem. O que também chama atenção nesses rosexuality is a regulatory fiction. Thus, in this pa-
sujeitos é seu caráter performático, desafiando a exis- per I endorse the importance of performance and
tência de atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou performativity in this segmented market, in which
distorcidos, levando a indagar se a heterossexualidade contemporary processes of circulation of discourses
é uma ficção reguladora. Dessa forma, ressalto neste around sexual identities and categories are defined
artigo a importância da performance e da performati- by a certain sexual fluidity.
vidade neste mercado segmentado, nos quais os pro- keywords Market; Sexuality; Identity;
cessos contemporâneos de circulação de discursos em Performativity; Urban anthropology.
torno das identidades e categorias sexuais se definem
apoiadas em certa fluidez sexual.
palavras-chave Mercado; Sexualidade; Introdução
Identidade; Performatividade; Antropologia urbana.
Neste artigo imprimo alguns aspectos rele-
“Is it gay or straight?” – Ethnographic notes vantes da sociabilidade1 alternativa2 no que se
about performativity among the alternatives refere à performance e à performatividade em
sociabilities gênero e sexualidade, estudada por mim em
pesquisa de Mestrado em Antropologia Social,
abstract The aim of this paper is to present em duas casas noturnas3 da cidade de Goiânia,
partial results of the Master’s research ethnography capital de Goiás, que estão pautadas por maior

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


126 | Giórgia Neiva

fluidez no que diz respeito às categorizações em concedeu informações casuais em momentos


torno da orientação sexual (NEIVA, 2013a; oportunos, por exemplo, com conversas infor-
NEIVA, 2013b). Desta forma, o termo alter- mais na fila de entrada das casas noturnas – mo-
nativo se trata de um conceito que surgiu em mento em que nem sempre foi possível explorar
trabalho de campo pelos/as interlocutores/as dados pessoais desses sujeitos. Em contraparti-
de minha pesquisa, que significa da, nomeio interlocutor/a aquele/a com quem
mantive contato permanente sobre a pesquisa,
[...] aquilo que não se basta em definições estanques e, aqui, insiro idade e profissão ou escolaridade,
quanto à identidade e à sexualidade e se encontra porque isso foi perguntado a todos(as) eles(as).
em ambientes de lazer onde há maior fluidez sexu- Tomo o cuidado, como pode ser notado,
al, abarcando desde sujeitos heterossexuais, bissexu- de utilizar os termos referentes aos sujeitos tan-
ais ou homossexuais, até aqueles que se dizem “sem to no masculino, quanto no feminino, com a
rótulos” ou que circulam por entre as fronteiras das pretensão de não usar o masculino para uni-
categorizações sexuais correntes (NEIVA, 2013a).   versalizar meu discurso e apagar as mulheres
na linguagem. “Para Beauvoir, o ‘sujeito’, na
Vale ressaltar que esta pesquisa me mos- analítica existencial da misoginia, é sempre já
trou que homens que se relacionam afetivo- masculino, fundido com o universal, diferen-
-sexualmente com mulheres, e vice-versa, não ciando-se de um ‘Outro’ feminino que está
necessariamente são heterossexuais, bem como fora das normas universalizantes que consti-
homens que se relacionam afetivo-sexualmente tuem a condição de pessoa, inexoravelmente
com outros homens, ou ainda mulheres que particular, corporificado e condenado à ima-
se relacionam afetivo-sexualmente com outras nência” (BUTLER, 2012, p. 31).
mulheres, não necessariamente são homosse- Por conseguinte, neste artigo defendo a
xuais. Todavia, recorro aos termos homosse- ideia de que os discursos sobre gênero e se-
xual, heterossexual, gay, GLS (gays, lésbicas e xualidade são construções e práticas sociais.
simpatizantes) e HT (heteros) porque são utili- Butler (2012) argumenta que gênero é um ato
zados repetidamente pelos sujeitos da pesquisa. ou uma sequência de atos performáticos que
Contudo, peço ao(à) leitor(a) que coloque es- são discursivamente construídos e que “se os
sas categorias sexuais sob rasura (HALL, 2009), atributos e atos do gênero, as várias maneiras
porque esses termos não podem ser pensados como o corpo mostra ou produz sua signifi-
de maneira estanque e inflexível; porém não é cação cultural, são performativos, então não
possível abandoná-los, uma vez que sem eles há identidade preexistente pela qual um ato
essas experiências vividas nos lugares pesquisa- ou atributo possa ser medido” (p. 201). Nesse
dos não podem ser sequer pensadas. sentido, os ensinamentos da autora ajudam a
Desse modo, os dados4 de pesquisa foram pensar no quanto a ideia de fluidez de gênero e
obtidos por trabalho etnográfico, durante o ano de sexualidade, que se mostrou muito valoriza-
de 2012 e parte considerável de 2013, o que da nos lugares alternativos onde produzi minha
incluiu a feitura de algumas entrevistas semies- etnografia, é também produzida e reproduzida
truturadas com interlocutores e interlocutoras e performativa e discursivamente, materializan-
conversas informais com frequentadores e fre- do corporalidades e estilos.
quentadoras. Chamo/nomeio nesta escrita etno- A heteronormatividade, vista sob este prisma,
gráfica de frequentador/a aquele sujeito que me também é fruto de performatividade, uma vez

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 125-139, 2014


“É Gay ou é Hetero?” | 127

que “não haveria atos de gênero verdadeiros ou enquanto este é elaborado à medida do ato, da
falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma prática daquilo que se pensa. “O resultado pa-
identidade de gênero verdadeira se revelaria uma radoxal desta distinção foi fazer ressurgir, com
ficção reguladora” (BUTLER, 2012, p. 201). novas vestimentas, a velha e surrada dicotomia
Baseada nessas premissas, a questão que permeia entre relações sociais (ou ‘realidade’) e repre-
este artigo é: como são esses comportamentos sentações” (PEIRANO, 2002, p. 21). Ao mito
performáticos entre os sujeitos alternativos e foi delegada a função de representar; enquanto
como se dá a performatividade desses sujeitos? ao rito, a associação com a realidade prática so-
O termo performance tem sido utiliza- cial. Nesse contexto, para Victor Turner (1975)
do em várias áreas, desde Artes (em geral) ritos seriam dramas sociais fixos e rotinizados.
até as Ciências Sociais (CARLSON, 2011). Baseando-se em Turner, Peirano (2002) intro-
Enquanto para a Arte performance equivale a duz o tema da eficácia social e situa a abordagem
um conjunto de exibições de competências es- performativa para análise dos rituais inserindo na
pecíficas, para as Ciências Sociais o termo nos discussão a ideia de que os ritos são elaborados
leva a um padrão de comportamentos cultu- em formas de jogos com a explícita pretensão
ralmente codificados. Vale salientar que, nesse de obter um resultado previsível. Soma-se a isto
último campo, há um reconhecimento de “que o que Cavalcanti (2011, p.18) elaborou sobre
as nossas vidas são estruturadas de acordo com a noção de ritual, ou seja, como “aquela que se
comportamentos estruturados e socialmente refere a um período de tempo que se diferencia
aprovados” (CARLSON, 2011, p. 27). Dessa da experiência cotidiana (ela também passível de
forma, isso “possibilita que todas as atividades ritualização, posto que feita de muitas mediações
humanas possam ser potencialmente consi- simbólicas)”. O ritual se desenrola, necessaria-
deradas como performance ou, pelo menos, mente, em um espaço de tempo em que se assi-
todas as atividades praticadas com consciência nalam os períodos de início, meio e fim, no qual
de si próprias” (CARLSON, 2011, p. 27). a temporalidade é marcada e marcante porque
Para localizar o termo em um viés antro- demarca uma mudança de ocupação de lugar.
pológico, necessariamente recorro aos ensi- De acordo com Peirano (2002), “atos e repre-
namentos de ritual e dramas sociais de Victor sentações são inseparáveis5” (p. 23) e, levando em
Turner (2008), pioneiro nesta área. Isto porque consideração que ritos são comunicações simbó-
é impossível pensar performance sem que se vis- licas construídas culturalmente, o caráter perfor-
lumbre comportamentos ritualizados. Marisa mático é extremamente importante, uma vez que
Peirano (2002), na coletânea organizada por ela é a partir da performance que os participantes ex-
chamada O dito e o feito – Ensaios de antropo- perimentam os eventos. “Em outras palavras, os
logia, articula como o conceito de ritual e seus rituais partilham alguns traços formais e padroni-
desdobramentos contemporâneos se desenvol- zados, mas estes são variáveis, fundados em cons-
veram na história teórica da Antropologia. tructos ideológicos particulares” (PEIRANO,
Neste sentido, a autora desenvolve um 2002, p. 27). Neste ínterim, verbos são performa-
histórico crítico sobre a dicotomia mito e ri- tivos, ou seja, dizer é fazer6 (PEIRANO, 2002).
tual, a partir da qual aquele é pensado na A linguagem é uma prática social (AUSTIN,
Antropologia restrito ao pensamento, ao que 1990; FOUCAULT, 1988, 2010, 2011) e, por-
pode ser pensado, imaginado, isto é, “o mito é tanto, não é possível uma separação entre ela e
a via privilegiada de acesso à mente humana”, o mundo, por assim dizer, uma vez que discurso

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 125-139, 2014


128 | Giórgia Neiva

é prática, isto é, a prática é também constituída envolvem comercialização, propaganda, inves-


pela linguagem que adquirimos e empregamos. timentos, lucros, além de produzirem estilos e
Dessa forma, “rituais são memórias em diferenças, uma vez que música gera e fortalece
ação, codificadas em ações” (SCHECHNER, identidades (NEIVA, 2014).
2012, p. 49) e, paralelamente, performance Dessa maneira, as casas noturnas nas quais
pode ser definido por comportamento ritua- fiz minha pesquisa etnográfica valorizam o rock e
lizado condicionado e/ou permeado pelo jogo o pop como forma de oferecer mais opções para
(SCHECHNER, 2012). Obviamente que jogo o público goiano que aprecia a vida noturna fora
pensado aqui ultrapassa a ideia de esportes e do circuito padrão, posto que o padrão do cená-
brincadeiras, pois trata-se de um conjunto que rio musical goiano é o sertanejo e o pop-balada.
envolve sons e gestos e que pode, facilmente, Contudo, os valores de entrada dessas casas no-
ser entendido por atividades da vida diária. turnas não seguem o mesmo princípio, uma vez
Contudo, “o jogo é mais livre, mais permissivo que a grande maioria do público visitante, pelo
– afrouxando precisamente aquelas áreas onde que observei, pertence à classe social possível de
o ritual está pressionando, flexível onde o ritual ostentar essa possibilidade de lazer, pagar o in-
é rígido” (SCHECHNER, 2012, p. 91). gresso de entrada exigido e consumir os drinks
oferecidos nos cardápios (NEIVA, 2014).
Performance e performatividade nas Quando iniciei meu trabalho de campo, em
sociabilidades alternativas março de 2012, os valores de entrada variavam
entre 10 reais (R$ 10,00) a 30 reais (R$ 30,00).
Antes de mais nada, é preciso dizer que essas Percebia que os dias em que eram cobrados 10 re-
casas estão localizadas no Setor Sul, bairro clas- ais tratavam-se de ocasiões nas quais as casas não
se média da cidade de Goiânia/GO e projetado ofertavam qualquer atração de alta expressão, ou
pelo engenheiro Armando de Godoy, que con- seja, shows de bandas pouco conhecidas ou festas
feriu ao bairro traços tipicamente residenciais, nas quintas-feiras, dia de baixo público devido
concebendo-o sob inspiração dos movimentos ao fato de não ser fim-de-semana, propriamente
das cidades-jardim norte-americanas. Vias ar- dito. No decorrer do trabalho de campo, os valo-
teriais ligam o Setor Sul aos bairros, igualmente res de entrada aumentaram para 20 reais (valor
de classe média, Centro, Jardim Goiás, Setor mínimo) até 80 reais (valor máximo do ingresso).
Universitário e Setor Marista. Sob esse viés, é importante considerar os
Tais lugares comportam público juvenil de aspectos econômicos no que se refere às casas
faixa etária entre 18 a 28 anos, sem distinção noturnas, ainda que seja necessário ponderar os
de sexo e de raça/cor. Ambas as casas noturnas7 descontos dados para quem coloca previamen-
são conhecidas por serem voltadas para o pú- te o nome na lista e/ou tem entrada liberada
blico rocker (aqueles e aquelas que gostam de por meio de eventuais sorteios, isso porque “o
música rock) e pop underground8, ou seja, que se valor das entradas ajuda a compor a imagem de
encontram fora do circuito hegemônico. Tanto que se trata de um lugar cujo acesso depende
o rock quanto o pop são categorias utilizadas de certo padrão pessoal de consumo, estimu-
como referência às mercadorias voltadas para o lando a valorização da boate ou gerando fan-
público juvenil, estando inscritos “no modo de tasias a seu respeito” (FRANÇA, 2012, p. 62).
produção capitalista, [no] setor ideológico e de Com isso, é possível trazer aspectos das in-
lazer” (CHACON, 1982, p. 8). Estes mercados dumentárias utilizadas pelo público visitante

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“É Gay ou é Hetero?” | 129

dessas casas noturnas. Segundo Neiva (2014), do outro lado da rua a observar. Não demorou
as pessoas que frequentam essas duas casas no- muito e exatamente onde eu estava se apro-
turnas se vestem conforme a estética rocker, ou ximaram dois homens de mãos dadas e com
seja, predominantemente com tons escuros e vestimentas estilo roqueiro (blusa de banda
pretos e, na maioria das vezes, as roupas mistu- de rock, jeans surrados, alargadores, piercing,
ram elementos de décadas passadas, sobretudo, cabelos parcialmente raspados e assimétricos,
anos 1970 e 1980. Quando a noite é voltada mas não chegavam a formar um moicano, ta-
para música pop, os tons das roupas variam um tuagens, pulseiras de couro). Eles escoraram
pouco, mas a predominância de cores escuras um dos pés e as costas no muro de um esta-
permanece. Repetitivamente, as mulheres usam belecimento comercial e um deles gritou com
calças jeans, blusas de cor preta, sandálias, tênis tom jocoso: “Viado! Vem cá agora”. O rapaz,
ou botas. Os acessórios incluem o uso de cin- “o viado”, atravessou a rua sorrindo e, conten-
tos e pulseiras de couro, bijuterias diversas. Os tes, os três se abraçaram e se cumprimentaram.
homens usam jeans surrados, camisetas geral- Percebi que eram amigos e que o modo de cha-
mente de cor preta sem estampas ou de bandas mar o colega não passava de uma brincadeira
de rock, tênis surrados ou coturnos. Também, masculina. Voltei a prestar atenção para o ou-
usam bermudas largas e as bijuterias que, quan- tro lado da rua quando este mesmo rapaz que
do usadas, são anéis de caveira, pulseiras de cou- gritou para que o amigo viesse ao seu encontro
ro e conjuntos de argolas. De um modo geral e disparou um arroto altíssimo seguido de um
sem distinção de sexo, os cabelos são grandes ou mais baixo e outro mais comedido. Confesso
com cortes curtos assimétricos, tinturas fortes e que estranhei a atitude, pois considerei-a ex-
uso excessivo de maquiagens que ressaltam os cessivamente “masculina”. Contudo, foi exa-
olhos e as olheiras. Para este público, a estética tamente com este estranhamento que surgiu
inclui a maciça presença de tatuagens, piercing minha pesquisa, pois, naquele instante pensei:
tanto de metal ou de material acrílico florescen- “que jeito diferente de ser gay”! (Dados de meu
te, geralmente usado na língua, na sobrancelha diário de campo, 2012).
e no nariz, e alargadores (nos lóbulos das ore- A questão que me fiz me guiou por muito
lhas) de tamanho mini a médio, também de tempo em meu trabalho de campo: “este pú-
metal ou de acrílico colorido. Percebe-se neste blico tende a ser masculinizado por se tratar de
conjunto, a necessidade de se caracterizarem a uma casa noturna para roqueiros e roqueiras?”.
partir de um modelo de rock. Obviamente, esta questão foi tomando outras
Devo dizer que essas peculiaridades nas ves- formas e se acrescentando às outras perguntas que
timentas me chamaram atenção desde quando surgiram ao longo da pesquisa, mas, para explicitar
comecei meu trabalho de campo. Início de o que tenho a dizer, mantenho-a, por enquanto.
2012, quando iniciei minhas observações para Na verdade, essa cena me fez refletir tam-
explorar o ambiente ainda sem uma questão bém sobre a questão da música no cenário das
definida, fui a uma das casas noturnas em um boates e casas noturnas que carregam explicita-
horário mais cedo que o de sua abertura coti- mente a identidade GLS, uma vez que nelas é
diana para observar de fora da casa a formação mais comum a presença de pop music do circuito
da fila, como as pessoas chegam, com quem mainstream. Um casal gay com as indumentá-
chegam, com quem socializam. Cheguei mi- rias voltadas para a cena rocker me fez estranhar
nutos antes de abri-la para o público e me pus (VELHO, 1997) esta ideia petrificada de que

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130 | Giórgia Neiva

“gay só gosta de pop”. Obviamente, as casas no- as fronteiras musicais também não são tão rí-
turnas em que fiz campo, como já afirmei, não gidas como se propaga. Ademais, esse exemplo
são GLS, são alternativas. Esta alternatividade mostra certa semelhança com a etnografia re-
dá abertura, inclusive, para sair das caricaturas alizada por França (2012, p. 66) com “ursos”,
identitárias no que se referem à sexualidade. que são “reconhecidos como um contraponto
Na fala de Marcos, um interlocutor (28 anos, aos ‘consensos’ na cena gay”. “Urso” é uma
funcionário público): categoria utilizada entre homens gays que são
grandes, pesados, másculos e peludos.
Marcos: Eu pensava assim... poxa, por que tenho
que ser gay como todo gay é? Por que não posso Há um distanciamento do que julgam ser este-
ser mais na minha e curtir coisas diferentes? Por reótipos generalizantes a respeito da homosse-
que não posso ser um gay que gosta pra caram- xualidade e uma concomitante aproximação de
ba de rock? Encontrei aqui isso: a possibilidade gostos e estilos que estariam mais próximos dos
de ser gay roqueiro! Encontrei pessoas parecidas homens héteros. Isso não significa que houves-
comigo, pessoas que não seguem esse formato se um rechaço da homossexualidade em si; pelo
do que é “ser gay” para muitos, entende? contrário, havia quase uma reivindicação pelo
reconhecimento de que pudessem ser gay à sua
Pesquisadora: O que é ser gay para muitos, me ex- maneira (FRANÇA, 2012, p. 251).  
plica? Como é isso de “ser gay como todo gay é”?
Desta forma, as performances dos sujeitos
Marcos: Gay que gosta de “pop Britney Spears”, alternativos são norteadas por estilos de vida e
entende? Que se veste com golinha polo, ajeita- gostos que conferem performatividades que
do, cabelinho nos trinques e purpurinado. Poxa, rompem com o que é padronizado. Não é raro
não sou assim e aqui tenho a possibilidade de ser associar o rock com a heteronormatividade, bem
como sou! Olha pra mim! Cabeludo, barbudo e como o pop com o público homossexual. Sujeitos
com camisa do AC/DC!9 (risos). em casas noturnas alternativas vêm mostrar que
está fórmula não funciona para este público.
Pesquisadora: Entendi! De acordo com Sarah Salih (2012), uma
das importantes contribuições de Judith Butler
Marcos: Eu não tenho nada contra gay purpu- aos estudos de gênero e sexualidade é o de não
rina, entende? Mas, eu não sou assim e quero atribuir às identidades um caráter fixo e essen-
ser respeitado no meu jeito diferente de ser gay! cialista. “O trabalho de Butler descreve os pro-
Aqui eu sou respeitado. Nos lugares alternativos cessos pelos quais a identidade é construída no
há um grande respeito por essa diferença. Acho interior da linguagem e do discurso” (SALIH,
que o pessoal é mais maculelê, mais de boa. Eu 2012, p. 21) e, neste sentido, sexo e gênero são
gosto de futebol, assisto jogos pela TV, adoro efeitos de práticas discursivas performatizadas
vôlei, que tem demais eu gostar de futebol? repetitivamente e “impostas pela sanção social
(MARCOS, 28 anos, funcionário público).   e pelo tabu” (BUTLER, 2011, p.71).
Ou ainda, nas palavras de Vale de Almeida
Essa fala me fez pensar em Freddie (1996), a manutenção desse processo de cons-
Mercury10 – e tantos outros roqueiros(as) –, trução se constitui em constante vigília e dis-
uma vez que é um exemplo que demonstra que puta, isto é, resultado de relações de poder.

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“É Gay ou é Hetero?” | 131

“A própria masculinidade é internamente cons- modo como o corpo é culturalmente apreendido.


tituída por assimetrias (como heterossexual/ Na verdade, se o gênero é o significado cultural
homossexual) e hierarquias (de mais ou me- que o corpo sexuado assume, e se esse significado
nos ‘masculino’), em que se detectam mode- é co-determinado pelos vários atos e pela sua per-
los hegemônicos e subordinados” (VALE DE cepção cultural, então dir-se-ia que, em termos
ALMEIDA, 1996, p. 12). culturais, não é possível reconhecer o sexo como
Em trabalho de campo, foi interessante per- distinto do gênero12. (BUTLER, 2011, p. 76).  
ceber que a masculinidade (e por que não, fe-
minilidade?) é reafirmada a partir do número Em Problemas de Gênero – Feminismo e sub-
de pegações11. Enquanto Geertz (1973) explora versão da identidade, Butler (2012) disserta sobre
a masculinidade na famosa “Briga de Galos” em não ser possível fazer essa distinção entre sexo e
Bali, e Vale de Almeida (1996) versa sobre as gênero ao explicar que “a distinção sexo/gênero e
“Garraiadas”, espécie de touradas portuguesas, a própria categoria sexual parecem pressupor uma
aqui a luta acontece também, mas a competi- generalização do ‘corpo’ que preexiste à aquisição
ção se dá por vias das paqueras e dos flertes; ou de seu significado sexuado” (BUTLER, 2012, p.
seja, quanto mais “se pega”, mais “pegador” se é. 185). Como se fosse possível pensar a linguagem
E utilizando a metáfora do galo, a galinhagem de maneira ontológica em si mesma e o corpo
sempre favoreceu a masculinidade (o mesmo fosse um meio passivo, sem agência, advindo da
não se pode afirmar quando tange à feminili- natureza e anterior ao discurso.
dade, consequentemente). “Essa avaliação só é Nas palavras da autora (2011, p. 77), há
possível ser feita em função de um modelo, e a uma sedimentação nas normas no que se refere
disputa dos atributos e da pertença ou não ao ao gênero que produz uma ideia fictícia de que
modelo provam que este é uma construção ide- sexo é natural, como se houvesse identidades
al” (VALE DE ALMEIDA, 1996, p. 12). “verdadeiras”, por exemplo, homem verdadei-
Para Butler (2011), esse modelo se refere ro, mulher verdadeira, dentre outras “verdades”
a uma ficção culturalmente regulada e regula- (aqui, uso ironicamente as aspas). “Esta é uma
dora, “que são alternadamente corporalizadas sedimentação que, ao longo do tempo, tem
e disfarçadas quando sob pressão” (BUTLER, produzido um conjunto de estilos corpóreos
2011, p. 74). Neste aspecto, não é possível os quais, de uma forma reificada, surgem como
deixar de lado a contribuição de Simone de configuração natural de corpos em sexos que
Beauvoir (1949, p. 47), em O Segundo Sexo, existem numa relação binária um com o outro”
quando afirma que “não se nasce mulher, tor- (BUTLER, 2011, p. 77). Desta maneira, a per-
na-se”. De maneira equivalente, é razoável di- formatividade consiste em repetir e reproduzir
zer que não se nasce homem, torna-se. sistematicamente esse conjunto de estilos cor-
póreos, no qual a matriz embasada numa ficção
Quando Beauvoir afirma que a mulher é uma social por garantir a reprodução (FOUCAULT,
“situação histórica”, ela realça que o corpo é obje- 1988) é a heterossexualidade (o que seria, nesses
to de uma certa construção cultural, não apenas termos, a sexualidade hegemônica) e dela, obvia-
pelas convenções que sancionam e proscrevem mente, surgem as sexualidades marginalizadas.
o modo como alguém representa o seu corpo, o A performatividade que se produz e se
“ato” ou a performance que é o seu corpo, mas reproduz “são os agentes corporalizados, na
também nas convenções tácitas que estruturam o medida em que são dramática e ativamente

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132 | Giórgia Neiva

corporalizados, e, de fato, na medida em que levantavam a questão: “será que é hétero ou gay?”.
vestem certas significações culturais” (BUTLER, Questionei ao Marcos, (interlocutor, 28 anos,
2011, p. 79). É patente afirmar que não se trata funcionário público) sobre essa pergunta girar em
de um ato individual, mas coletivo, posto que torno do binarismo estanque, como se não hou-
esses atos são tangenciados, como foi afirmado vesse outras sexualidades possíveis, ele me respon-
acima, por sanções e prescrições sociais. deu: “é porque entre ser hétero e ser gay há mais
Por conseguinte, em analogia à questão pro- de 50 tons de cinza”. Entendi que não há a elimi-
posta por Vale de Almeida (1995), em Senhores nação de outras sexualidades entre esses dois “ex-
de Si, sobre o que é ser homem, pode-se per- tremos” (que não necessariamente são opostos).
guntar: o que é ser gay? O que é ser hétero? Sob Desta maneira, só o fato de frequentar as
qual critério e ponto de vista? Obviamente, casas noturnas alternativas já transmite a ima-
não tenho pretensão de responder de forma gem de que nada está fechado e estagnado.
pragmática a estas questões aqui, uma vez que Como me disse certa vez Maurício (interlocu-
o próprio campo de pesquisa me mostrou que tor, 23 anos, estudante universitário): “se está
não há um único jeito de sê-los. Contudo, es- na pista, é para negociação. Se veio para cá, é
sas são perguntas que meus interlocutores e uma pessoa no mínimo democrática”. Não foi
minhas interlocutoras costumavam fazer sob raro frequentadoras e frequentadores me pedi-
forma, inclusive, de jogo performático. É o que rem para mediar negociações de flerte sob essa
veremos a seguir, no próximo item. questão, se o sujeito desejado “é ou não hétero”
ou “é ou não gay”. A dúvida proporciona uma
“É gay ou é hétero?” – Jogo do ser ou espécie de brincadeira entre frequentadores/
não ser as. Em algumas poucas ocasiões, topei puxar
papo com os sujeitos para obter essas respostas,
O título desse item não foi escolhido de mesmo porque é interessante para minha pes-
maneira gratuita, posto que “to be or not to be, quisa observar como se dão essas negociações
that’s the question?” (ser ou não ser, eis a ques- de categorias sexuais. Quando topei ser media-
tão?) é uma célebre pergunta feita por William dora, obtive o êxito de ampliar minha rede de
Shakespeare, escritor inglês nascido em 1564. participantes da pesquisa, posto que em todas
Na tragédia literária intitulada Hamlet – Príncipe as conversas a priori me apresentei como pes-
da Dinamarca, o autor empreende temáticas tais quisadora da Universidade Federal de Goiás e
como morte, traição, vingança, reinado, mora- fui bem recebida tanto como tal, quanto como
lidade. Essa frase é dita no terceiro ato, cena 1 intermediária de possíveis flertes.
(na minha edição, na página 48) e aqui tomo Devo dizer que em uma abordagem feita por
de empréstimo em seu sentido metafórico, ob- mim, na tentativa de sanar a dúvida de Solange
viamente, posto que parafraseando tal entendi- (interlocutora, 24 anos, administradora de em-
mento ser ou não ser gay, ser ou não ser hétero, presa) sobre um rapaz por quem ela estava inte-
é a questão – não a que fiz durante o trabalho de ressada, participei de um diálogo que explicito
campo, mas que surgiu neste trabalho etnográfi- abaixo para ilustrar a perspectiva da dúvida.
co entre interlocutores(as) e frequentadoras(es).
Escutava cotidianamente em campo conver- Ricardo: Sou hétero, inclusive, minha namorada
sas entre pessoas que, em atos de flertes (e paque- está aqui. Ela é minha namorada. (Apresentou-
ras), ou de simples diálogos descompromissados, me para ela).

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Pesquisadora: A Márcia (nome fictício) quer sa- Em determinada conversa com um frequen-
ber por estar interessada em você, mas digo a tador, ele me relatou o quanto acha divertido as
ela que você tem namorada. Desculpe-me por pessoas não saberem se ele é “gay, hétero, bi ou
qualquer mal entendido. qualquer coisa do tipo” (Iuri, frequentador) e
que se diverte em quebrar essas ideias fechadas
Ricardo: Nada! Divertido isso se sou hétero ou sobre relacionamentos. A brincadeira consiste
não. Agora até eu estou na dúvida. (risos). em deixar a resposta no ar quando pergunta-
da qual é sua orientação sexual. Esse mesmo
(Neste momento a namorada dele se meteu na frequentador me disse: “por que preciso fechar
conversa) as possibilidades, se posso abrir mais portas?”.
Questionei a que portas ele se referia e, ao rir,
Rosana: Pô, é muito esquisito ouvir essa questão me respondeu: “se posso me divertir com ho-
sobre meu namorado. Não está claro que ele é mens e mulheres, por que vou me definir como
hétero??? Amor, se você gostar de homem tam- gay? Por que vou me definir como hétero?”.
bém pode me dizer, não vou achar ruim, não. O jogo, para além de mera brincadeira, é
elemento importante para performance, posto
Pesquisadora: Espero que você não fique chateada, que “dá às pessoas a chance de experimenta-
pois eu realmente não percebi que ele estava acom- rem temporariamente o tabu, o excessivo e o
panhado. Me desculpe. (Nota do diário de campo: arriscado” (SCHECHNER, 2012, p. 50). Não
não percebi que se tratava de um casal, porque a ouso dizer que essas pessoas performam13 de
aparência versava na ideia de que eram amigos, maneira diferente nas casas noturnas e em suas
pela distância corporal e outros gestos e posturas). vidas cotidianas (uma vez que não as acompa-
nho pessoalmente em suas vidas diárias), mas
Rosana: Nãoooo! Não fique preocupada com afirmo que nestas casas noturnas elas se sentem
isso, é de boa. Apenas fiquei na dúvida também livres para jogar com a performatividade de ser
(risos). Não teria problema em dividi-lo com ou não ser, eis a questão. E mais, o jogo se am-
outro homem. Agora, com sua amiga, não! Diz para na ideia de justamente quebrar com essa
para ela que não. dualidade de ser ou não (“hétero, gay, bi ou
qualquer coisa do tipo”, Iuri, frequentador).
Pesquisadora: Se não se importa, prefiro não As casas noturnas em que realizei campo são
mediar mais essa conversa.   palcos para os sujeitos alternativos vivenciarem
suas alternatividades livres das demandas da vida
Desisti de prosseguir para evitar maiores diária. Vale dizer que esse cenário extrapola o es-
danos nas relações – já que eu também tinha paço físico e adentra a virtualidade, por exem-
que negociar diariamente o campo – e, com plo, páginas criadas na rede social Facebook com
esse exemplo, não mais mediei tais situações. o intuito de obter mais um meio de paqueras,
Quando me foi novamente pedido, devolvi a flertes e pegações. Uma das páginas criadas, em
questão: “importa saber se é gay ou hetero? Por 27 de abril de 2013, tem a seguinte descrição:
que isso é importante?”. Assim, adentrei em
outra perspectiva, posto que percebi, inclusive, Viu uma gatinha ou um gatinho, mas estava
que há certo gozo na dúvida e na busca por muito bêbado pra trocar uma ideia? Se per-
saná-la mediante o desafio do flerte. deu o seu amor na balada, estamos aqui para

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encontrá-lo! Esta página não é propriedade da participar ou se ofender quando a sexualidade


casa noturna XYZ e não pertence aos proprietá- é posta em questão.
rios da casa. (FACEBOOK14, 2013).   Nesta mesma página do Facebook, no dia 20
de maio de 2013, foi perguntado: “Eu queria sa-
Nesta página virtual, com 801 pessoas ca- ber se algum dos Barman’s é hétero!”. Além das
dastradas (última visualização ocorreu no mês brincadeiras surgidas nas respostas ao que fora
de dezembro de 2013), na maioria dos recados postado, essa resposta abaixo mostra que nem
postados consta a pergunta se é hétero ou não, todo mundo se sente à vontade com a dúvida:
ou se é gay ou não. Por exemplo:
Não... São todos umas bichonas, inclusive as
Recado do dia 29 de abril de 2013: garota mo- meninas!!! Preconceito das pessoas acharem que
rena, cabelo curto, não muito alta, blusa preta, porque trabalhamos lá temos que ser “alterna-
sapatilha vermelha. Estava na fila, porém não a tivos” tb... E Klaus (nome fictício), não precisa
encontrei lá dentro. (...) Queria saber se é héte- me surpreender não... Lá do bar tem alguém que
ro, me ajudem!!!!!!! já faz isso! (Post-resposta, FACEBOOK, 2013). 

Recado do dia 01 de maio de 2013: Quero saber Contudo, é óbvio que a pessoa que postou
quem é o gatinho muito parecido com o Bruno isso recebeu uma crítica explícita por não saber
Mars15 (moreninho e de cabelo preto com um to- brincar, ou, na linguagem dos participantes, por
petinho), blusa polo azul marinho e calça jeans ser apelona. Após esse comentário criticado, sur-
que estava ontem na XYZ, espero que seja hétero. giu uma outra resposta feita por um dos barmen
da casa: “Acho que os héteros deveriam ter algu-
Recado do dia 20 de maio de 2013: Tinha uma ma identificação, pois está difícil identificá-los”.
mulher linda na festa 100vergonha com o cabe- Neste jogo de ser ou não ser, alguns sujeitos
lo cheio de tranças! Alguém sabe se ela é bi??? da pesquisa arriscaram dizer como identificam
héteros e gays: pelo modo como conversam
Recado do dia 22 de maio de 2013: Vi ele algu- com amigos e amigas, pelos gestos que são mais
mas vezes no XYZ, mas quero saber se ele é gay, rígidos na heterossexualidade e pela postura,
se tenho chances!   que na heterossexualidade seria mais distante
das pessoas do que na homossexualidade.
É nítido que as fronteiras das sexualidades Butler (2012) articula sobre a construção
entre os participantes assíduos das casas no- do(s) gênero(s) e da(s) sexualidade(s). Para
turnas alternativas e páginas de discussão no a filósofa (2012, p. 194), “esses atos, gestos
Facebook estão borradas e devem, como afirma- e atuações, entendidos em termos gerais, são
do na Introdução deste artigo, ser postas sob performativos, no sentido de que a essência
rasura, conforme sugere Stuart Hall (2009). ou identidade que por outro lado pretendem
A apresentação dessas corporalidades, estilos de expressar são fabricações manufaturadas e sus-
vida, gostos (BOURDIEU, 2007) e performan- tentadas por signos corpóreos e outros meios
ces causam dúvidas e questionamento sobre discursivos”. Ou seja, não há gênero em si,
a(s) sexualidade(s) dos(as) frequentadores(as). marcado por uma ontologia do ser e dado
Se por um lado, há clara demonstração de pra- pela natureza. Neste contexto, se gênero(s) e
zer no jogo, por outro há quem opte por não sexualidade(s) são fabricados, então, é possível

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afirmar que são construídos por função e efeito Celso: São alternativas!
de discursos culturais, sociais e públicos e que
se sustentam por meios performáticos. Pesquisadora: E você, é o quê?
Então, falar de homossexualidade equivale
a desnaturalizar uma série de atos discursiva- Celso: Alternativo também! (risos)
mente construídos e encenados a contrapelo da
matriz heterossexual. Relembrando Beauvoir Pesquisadora: Você fica com mulheres?
(1949), não se nasce masculino ou feminina,
torna-se. Logo, é razoável admitir que sexo e Celso: Fico, ué! Beijar, eu beijo. Rola uns amas-
sexualidade(s) são materialidades possíveis de sos. Transar completo tenho mais dificuldade,
se apreender apenas por meio do discurso. Em mas já fiz pegação com mulheres, mas assim...
certa ocasião de trabalho de campo, fui ques- toques, apenas (CELSO, frequentador, 25 anos,
tionada por Celso (frequentador, 25 anos, es- estudante universitário).  
tudante universitário):
Em pé na fila de entrada, dada noite escutei
Celso: Você acha que ele é hétero? uma conversa entre três colegas que estavam
um pouco à frente de onde me encontrava,
Pesquisadora: Não sei. O que me diz? uma delas – em tom de desabafo – fez a seguin-
te afirmação para as amigas: “não preencho os
Celso: Acho que é, porque ele tem pose de hétero. requisitos para ser sapatão”. Depois de algumas
palavras de consolo, uma das colegas afirmou:
Pesquisadora: Essa pose te garante afirmar isso? “a sua confusão é só porque o mundo aí fora
exige que você seja alguma coisa, mas o mundo
Celso: Acho que sim... Mas se bem que aqui é aqui dentro (em referência à casa noturna) não
tão alternativo que não dá para dizer quem é te exige nada disso. Relaxa e se diverte”.
hétero e quem é gay... De acordo com Salih (2012), não é possível
existir como um agente social fora dos termos
Pesquisadora: O fato de um homem beijar uma mu- do gênero e da sexualidade; de maneira que a
lher, por exemplo, te garante que esse casal é hetero? performatividade se refere a uma tarefa prescri-
tiva que é executada desde sempre. A perfor-
Celso: Aqui? Jamais! Aqui essa garantia não existe!!! matividade dos sujeitos alternativos é posta em
dúvida e em questão porque mescla-se com-
Pesquisadora: Qual a importância, então, se ele portamentos, posturas, gestos, estilos de vidas
é hétero ou se é gay? Se ele for hétero suas chan- e gostos tanto da heterossexualidade quanto da
ces diminuem, é isso? homossexualidade. Por isso que o jogo do ser ou
não ser é uma constante nas noites alternativas.
Celso: Não, porque se está aqui, está no bada- Neste contexto, é impossível não notar que
lo, gata. Está na onda. É divertido olhar para as enquanto as noites pop são voltadas explicita-
pessoas e não saber o que elas são. mente para pegações, nas noites rockers o jogo
do ser ou não ser se faz mais presente. Isso não
Pesquisadora: Hum... entendi. Você não sabe o quer dizer que na rocker não haja pegação. Em
que elas são? todas as noites há. Mas, em festas em que as

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músicas são rock e indie rock, há dúvidas sobre Considerações finais


quem é heterossexual ou quem é homossexual.
Isso porque o rock, para esse público, é máscu- À guisa de conclusão, a etnografia feita no
lo e masculino. Levando em conta que música período de mestrado me mostrou o que Butler
tem gênero e sexualidade (NEIVA, 2014), o (2012, p. 195) tanto ressalta, ou seja, que há uma
rock propicia a dúvida se é gay (ainda que com espécie de ilusão mantida discursivamente com
características masculinizantes) ou se é hétero. um propósito de “regular a sexualidade nos termos
De fato, levando-se em conta que essas casas da estrutura obrigatória da heterossexualidade re-
noturnas alternativas se encontram em mancha produtora”. E vai além quando afirma (op. cit, p.
(MAGNANI, 1996) rocker do Setor Sul, na cida- 195) que se essa verdade (FOUCAULT, 1988) é
de de Goiânia/GO, há outras casas que não são al- fabricada, então, os gêneros e as sexualidades “não
ternativas, mas que estão inseridas no mercado no podem ser nem verdadeiros ou falsos, mas somen-
que tange ao som para roqueiras(os). Então, não te produzidos como efeitos da verdade de um dis-
é incomum frequentadores(as) de outros lugares curso sobre a identidade primária e estável”.
comparecerem às casas alternativas para se diver- Dito isso, é razoável alcançar a ideia de que
tirem com a discotecagem ou show de banda de a aparência, bem como os atos e gestos, são
rock. Por vezes, essas interferências de “outros(as) ilusoriamente fabricados sendo necessário des-
frequentadores(as)” também são motivos de dú- naturalizá-los, inclusive, quanto à falácia biolo-
vida. Todavia, de acordo com Samantha (interlo- gizante de algumas narrativas. Jameson (2006)
cutora, 22 anos, estudante universitária), “mesmo alerta para essa aparência que é reproduzida via
não sendo da casa, se veio pra cá é porque não imitação de algo que se supõe ser o original.
tem preconceito contra a galera daqui”. Em suas palavras, “tanto pastiche quanto pa-
Mas, realmente, só fica quem não tem pre- ródia envolvem imitação ou, melhor ainda, o
conceito. Já presenciei duas ocorrências em que mimetismo de outros estilos, particularmente
dois grupos de pessoas ainda na fila de entrada dos maneirismos e tiques estilísticos de outros
desistiram de entrar na casa pelo que se via dos estilos” (JAMESON, 2006, p. 2).
comportamentos das(os) frequentadores(as) Para o autor (2006), pastiche é uma prática
assíduos(as). Appadurai (2008) conferiu novo neutra, sem o tom satírico que há na paródia.
significado às coisas e às mercadorias quando Apropriando-se desta ideia, Butler (2012, p.
atribuiu a elas vida social em movimento (tam- 198) afirma que “o ‘original’ é uma cópia, e, pior,
bém histórico) e animação. Com isso, este antro- uma cópia inevitavelmente falha, um ideal que
pólogo indiano nos ajuda a pensarmos sobre a ninguém pode incorporar”. Trata-se de uma có-
via de mão dupla que é a relação entre a sociabi- pia performática e dramatizada repetidamente,
lidade humana e as mercadorias, uma vez que os de maneira que esta repetição transmite uma no-
significados das coisas dependem de suas formas, ção falsa de naturalização, que passa como real,
seus usos e suas trajetórias. Dessa forma, ainda de que tal ritual não é culturalmente construído.
que os lugares promovam e vendam a ideia do
alternativo como sinônimo de fluidez erótica e Embora existam corpos individuais que ence-
sexual, os sujeitos continuam fazendo referên- nam essas significações estilizando-se em formas
cia e reverência às categorias sexuais, ainda que, do gênero, essa ação é uma ação pública. Essas
muitas vezes, deslocando os significados que lhes ações têm dimensões temporais e coletivas, e seu
são usualmente atribuídos (NEIVA, 2014). caráter público não deixa de ter consequências;

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na verdade, a performance é realizada com o ob- 2. Opto por usar itálico em categorias êmicas com o in-
jetivo estratégico de manter o gênero em sua es- tuito de diferenciá-las. Obviamente, o uso do itálico se
trutura binária – um objetivo que não pode ser estenderá para palavras estrangeiras.
atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, 3. Tomo o cuidado de não identificar nominalmente
ser compreendido como fundador e consolida- as casas noturnas em que fiz a pesquisa com a explí-
dor do sujeito (BUTLER, 2012, p. 200).   cita intenção de preservá-las. Quando obrigatoria-
mente foi necessário atribuir um nome, usei XYZ.
É mister afirmar que as noções de feminino e Acrescento, também, que uso nomes fictícios para
masculino são também socialmente construídas. interlocutores(as) e frequentadores(as).
Ou melhor, performaticamente construídas. Daí 4. Vale ressaltar que foram asseguradas as prerrogati-
que meus interlocutores e minhas interlocutoras vas previstas no Termo de Consentimento Livre e
ousam identificar heterossexuais e homossexuais Esclarecido, atendendo às exigências da resolução
a partir de gestos, posturas, corporalidades, ten- 196/96 do CONEP que rege o Comitê de Ética em
do em vista que somos desde muito pequenos(as) Pesquisa com seres humanos da UFG. Mesmo para
condicionados(as) a nos comportarmos confor- quem não entrevistei com gravação via áudio, fiz ques-
me a “cor rosa” e a “cor azul” determinam. tão de deixar explícitos os objetivos, os produtos, as
Ocorre que a diversidade e pluralidade huma- garantias, os riscos e os benefícios da pesquisa.
nas são tamanhas que é possível não ser nem um 5. Para Peirano (2002), Marcel Mauss, quando propôs a
nem outro, sair da caixinha rasa que o binarismo teoria da magia, não fazia distinção entre pensamento
propõe. O que meu campo me mostrou é que e prática, uma vez que a eficácia da magia requer a
há essa alternativa. Como me alerta um de meus força do que se pensa, do que se crê.
interlocutores, “afinal, pra que fechar portas?”. 6. Peirano (2002) baseia-se em Austin (1990) no que
tange à “virada linguística”, nascida na Filosofia
Notas Analítica (Russel e Wittgenstein como representan-
tes dessa tradição filosófica) sob a preocupação teó-
1. Emprego o conceito de sociabilidade estabelecido por rica dos atos de fala. Austin (1990, p. 8) perseguiu a
Simmel (1983) e Park (1979), Escola de Chicago. É questão central: “como pode uma sentença ter sig-
com base neste entendimento que o primeiro autor nificado? A problemática da consciência dá, assim,
se aproxima da ideia de sociação, que parte do pressu- lugar à problemática da linguagem e o conceito de
posto de que só há interação quando os sujeitos estão representação é substituídos pelo conceito de sig-
agregados, compartilhando de um mútuo sentimen- nificado”. Neste viés, a linguagem deve ser tratada
to de estarem sociados. Percebe-se que o conceito de como forma de ação e não como representação da
sociabilidade fora desenvolvido a priori sob uma pre- realidade.
ocupação com totalidades e homogeneidades e, conse- 7. Estes lugares estão inseridos na mancha (MAGNANI,
quentemente, sofreu (re)leituras e desdobramentos ao 1996) rock-pop do Setor Sul, Goiânia/GO.
longo do século XX. Sendo assim, estabeleço em mi- 8. Por underground entende-se “uma expressão usada
nha pesquisa uma leitura mais atual sobre sociabilida- para designar práticas culturais que se fazem e acon-
de urbana, apoiada em Frúgoli Jr. (2007), que traduz tecem à margem dos padrões e exigências comerciais”
esse conceito enquanto “possibilidades de construção (OLIVEIRA, 2011, p. 134).
temporária do próprio social entre estranhos ou atores 9. AC/DC é uma banda australiana de hard rock.
sociais de condições diversas, em que a interação em si 10. Freddie Mercury foi um cantor, pianista e compositor
constituiria o principal intuito” (p. 23-24). que ficou mundialmente famoso como vocalista da

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banda britânica de hard rock, chamada Queen, que ele e Performance – Antologia Crítica. Universidade
integrou de 1970 até o ano de sua morte, em 1991. do Minho: Edições Húmus, 2011.
11. Pegação é uma categoria nativa que envolve ficar com ______. Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da
alguém sem que se tenha muita (e às vezes nenhuma) identidade. Tradução de Renato Aguiar. 4. ed. Rio de
conversa prévia, incorrendo quase sempre em sexo, Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2012.
embora não seja 100% necessário ter feito sexo para CARLSON, Marvin. O que é a Performance? In:
ter feito pegação. Macedo, A. G.; Rayner, F. (orgs.). Gênero, Cultura
12. Aqui, Judith Butler (2011) discorda de Gayle Rubin Visual e Performance – Antologia Crítica. Universidade
(1976), The Traffic in Women: Notes on the “Political do Minho: Edições Húmus, 2011.
Economy of Sex”, que propôs o sistema sexo versus CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Ritual,
gênero. Drama e Performance na Cultura Popular: uma con-
13. Schechner (2012) versa a possibilidade de que a união versa entre a antropologia e o teatro. Série Passagens, n.
do ritual e do jogo, os dois elementos para haver per- 12, 18 p.. Fórum de Ciência e Cultura. UFRJ, 2011.
formance, proporciona “às pessoas uma segunda re- CHACON, Paulo. O que é Rock. Coleção Primeiros
alidade, separada da vida cotidiana. Esta realidade é Passos. 3. ed. Editora Brasiliense, 1982.
onde elas podem se tornar outros que não seus eus FRANÇA, Isadora L. Consumindo Lugares, Consumindo
diários” (p. 50). nos Lugares: homossexualidade, consumo e subjetivida-
14. Não vou publicar o endereço da página sob o explícito des na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: EdUERJ,
objetivo de preservá-la, pela possibilidade de identifi- 2012.
cação das pessoas que são cadastradas nela. FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I – A
15. Cantor norte-americano. vontade de saber. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1988.
______. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro/RJ:
Referências bibliográficas Editora Forense Universitária, 2010.
______. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no Collège
ABRAMO, Helena W. Cenas juvenis – punks e darks de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 21.
no espetáculo urbano. Editora Scritta, 1994. ed. São Paulo/Brasil: Editora Loyola, 2011.
APPADURAI, Arjun. A Vida Social das Coisas – FRÚGOLI JR, Heitor. Sociabilidade Urbana. Rio de
as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
Niterói/RJ, Editora da Universidade Federal GEERTZ, Cliford. A Interpretação das Culturas. 1. ed/
Fluminense, 2008. 13. reimp. Rio de Janeiro: LTC, 1973.
AUSTIN, John L. Quando Dizer é Fazer: palavras e HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade.
ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 10. ed. DP&A Editora, 2005.
BEAVOUIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos ______. Quem precisa de identidade? In: Silva, T. T.;
e mitos. v. 1. São Paulo: Nova Fronteira, Hall, S.; Woodward, K. Identidade e diferença: a
1949. perspectiva dos estudos culturais. 9. ed. Petrópolis, RJ:
BOURDIEU, Pierre. A Distinção – Crítica Social do Vozes, 2009.
Julgamento. Porto Alegre/RS: Editora ZOUK, JAMESON, Frederic. Pós-Modernidade e Sociedade de
2007. Consumo. In: Postmodernism or the Cultural Logic
BUTLER, Judith. Atos Performativos e of Late Capitalism. New Left Review, n. 146, agosto de
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autora Giórgia Neiva


Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás e Pesquisadora
do Ser-Tão – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da
Universidade Federal de Goiás (Ser-Tão UFG)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 125-139, 2014


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La violencia invisible. Hechicería, agresión y


persona en los Andes

Nicolás Viotti
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Ciudad Autónoma de Buenos Aires,
Argentina

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p141-157. um contexto relacional, geralmente entendido unica-


mente em função da solidariedade e a ajuda mútua.
resumen La hechicería constituye un elemento palavras-chave Feitiçaria; Socialidade; Pessoa;
central en la socialidad de las poblaciones rurales y Andes Centrais; Argentina.
urbanas del noroeste de Argentina. Este trabajo pre-
tende poner en relación las prácticas de hechicería Invisible violence. Sorcery, aggression and
(o daño) en el horizonte más amplio de un orden personhood in the Andes
socio-cosmológico, que en términos contrastivos,
es propio del mundo andino. Para ello recurre a la abstract Sorcery is a central element in the so-
noción de persona como una llave interpretativa si- ciality of rural and urban populations in northwest-
tuada y comparada para entender el lugar singular ern Argentina. This paper aims to relate sorcery (or
de la práctica de la hechicería y la contra-hechice- daño) in the broader socio-cosmological order that,
ría como modos de producir aflicción o bienestar. in contrastive terms, is proper of the Andean world.
Insiste también en la agresión como parte de una For this, the notion of personhood is used as an in-
trama relacional más amplia, usualmente entendi- terpretive key, an embodied and compared resource
da únicamente a la luz de la solidaridad y la ayuda that allows us to understand the place of sorcery
mutua. and de-sorcery as forms to produce distress or well-
palabras clave Hechicería; Socialidad; Persona; being. It also emphasizes the place of aggression in
Andes Centrales; Argentina. a wider relational context, usually understood solely
on the basis of solidarity and mutual aid.
A violência invisível. Feitiçaria, agressão e keywords Sorcery; Sociality; Personhood;
pessoa nos Andes Central Andes; Argentina.

resumo A feitiçaria é um traço central na socia-


lidade das populações rurais e urbanas no noroeste Introducción
de Argentina. Este trabalho tem como objetivo re-
lacionar as práticas de feitiçaria (ou daño) com a or- El lugar de la hechicería como una práctica
dem sócio-cosmológica que, em termos comparados, de acción intencional entre personas que mani-
resulta própria do mundo Andino. Para isso, o artigo pulan elementos no humanos a la espera de pro-
faz uso da noção de pessoa como uma chave interpre- vocar la enfermedad o incluso la muerte, resulta
tativa localizada e comparada para compreender o lu- una práctica habitual en el área de los Andes
gar da feitiçaria e a contrafeitiçaria no contexto mais Centrales del noroeste de Argentina. Aunque
amplo das perturbações e do bem-estar. Ele também este tema no ha sido demasiado transitado por
enfatiza o lugar da agressão no horizonte amplo de la literatura antropológica contemporánea, la

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142 | Nicolás Viotti

centralidad que tiene en la vida cotidiana lo re- vida que caracterizan marcas de jerarquía social,
viste de una importancia que todavía está a la étnica y espacial, tanto en función de paisajes
espera de análisis sistemáticos. En este trabajo provinciales como regionales.
propongo que la hechicería tiene particular in- En un espacio social donde el catolicismo en-
terés como un recurso analítico de una singu- cantado y las prácticas andinas prehispánicas cons-
lar forma de relación entre personas, cosas y el tituyen más un modo de vida que una religión en
mundo sagrado. Y que esas relaciones confor- su sentido moderno, las acusaciones de hechicería
man un modo diferencial de construcción de la y la posibilidad de que ésta sea una causa de aflic-
persona que debe llamarnos la atención sobre ción real son moneda corriente. La importancia
la distancia socio-cosmológica, siempre relativa de la hechicería domina el mundo íntimo y co-
y situada, que existe con la moderna noción de tidiano. A diferencia de otros ámbitos en donde
individuo y sus concepciones nativas de agen- se mantiene en secreto, en el noroeste argentino
cia social centradas en la autonomía subjetiva y es un tema de conversación recurrente, aun cuan-
en la separación entre cuerpo y alma1. do una buena parte de nuestros interlocutores la
El material proviene del trabajo de campo considera un saber y una práctica “arcaica”, “falsa”
realizado en el noroeste de Argentina con po- y/o “propia de la ignorancia”. Hasta tal punto, que
blación rural y urbana. El foco del trabajo se el lenguaje asociado a la hechicería circula social-
extendió entre la periferia de la ciudad de Salta mente en la vida cotidiana más allá de las proble-
y en los departamentos de Cachi y Rosario de máticas específicas de la acción dañina por medio
Lerma. La mayor parte del trabajo de campo, sin no humanos. Por ejemplo, las expresiones estar
embargo, se desarrolló en la localidad de Campo agarrado y ha caído en desgracia son dos formas
Quijano, Valle de Lerma, al sur-oeste de la ciu- utilizadas tanto en situaciones explícitas de hechi-
dad de Salta2. La población local que fue objeto cería como en otras vinculadas con las relaciones
de este trabajo está dedicada, en su mayoría, a de pareja o la desventura en sentido general res-
actividades vinculadas con la agricultura, la mi- pectivamente, sin relación alguna con la agresión
nería, el trabajo informal y el empleo en el sec- intencional. Estar agarrado se refiere a un estado de
tor público, ubicándose en muchos casos en los dependencia personal y de crisis de la autonomía.
sectores más subordinados de la estructura social Esa expresión es utilizada para referirse tanto a la
de la región. De todas formas, esa población está víctima de la hechicería como a un hombre que
lejos de configurar un orden aislado y estático. abandona o restringe su vida social, generalmen-
Por el contrario, es parte de complejos vínculos te por causa de su esposa o novia. El comentario
con diferentes ámbitos del mundo estatal que de que alguien ha caído en desgracia, si bien puede
promueven un acceso amplio a la burocracia gu- utilizarse para referirse a la acción dañina invisible
bernamental, la educación y al sistema de salud de un tercero, también puede tener que ver con
público. Sin embargo, esa articulación no deja un estado de vulnerabilidad ontológica amplio en
de estar caracterizada por lógicas singulares que el que las enfermedades, la ruina económica o las
suponen modos de entender la vida cotidiana relaciones afectivas se superponen como signos de
con fuerte preeminencia de organizaciones fa- una crisis vital arbitraria.
miliares y vecinales extensas y en donde el mun- La presencia social de la hechicería es tan
do de lo sagrado ocupa un lugar central. Estos significativa que incluso tiene fuerte visibilidad
elementos, a su vez, contribuyen a la construc- en el espacio público. En la concurrida cate-
ción y reproducción de identidades y modos de dral de la ciudad de Salta, edificio neobarroco

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La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes | 143

declarado patrimonio nacional, todavía puede un mismo régimen de subjetivación caracteri-


encontrarse un aviso al lado del recinto con zado por la relacionabilidad.
agua bendita que advierte y recuerda al visitan-
te sobre el uso indebido. La acción intencional La hechicería en los Andes Centrales
dañina con elementos no humanos aparece pú- de Argentina
blicamente tanto en la vida pública como en
la íntima; forma parte de conversaciones, chis- El área de los Andes Centrales actualmente
mes y rumores de la vida social de forma más ocupa el territorio del noroeste argentino. En
o menos explícita, tejiendo vínculos e intrigas términos espaciales está compuesto por las tierras
pero también preocupación y cuidado entre los altas (puna) y formaciones más bajas que confor-
vecinos, los familiares y las amistades. man los valles fértiles. El área es el resultado de
Este trabajo describe el lugar de la hechicería poblamientos sucesivos, conformando un terri-
en la literatura antropológica de la región, mos- torio culturalmente heterogéneo. Ocupada por la
trando una relativa escisión en el tratamiento colonización española poco después de la llegada
de los órdenes sociales y cosmológicos. Con la del imperio inca, el área sufrió intensos proce-
intención de releer esa bibliografía críticamen- sos de cambio social y cultural así como un largo
te, se presenta material etnográfico que permi- proceso de mestizaje. Durante el siglo XX el pro-
te repensar la socio-cosmología diferencial en ceso de ocupación europea se intensificó, sobre
los colectivos de los andes centrales argentinos todo en la zona de los valles fértiles, de la mano
como una operación analítica de contraste. de inmigrantes europeos (italianos y españoles)
Consideramos ese particular régimen de sub- e incluso de población de origen sirio-libanesa.
jetivación en base a una forma de socialidad Como han mostrado Karasik y Benencia (1998),
específica que funciona como contrastive fiction sobretodo en los centros urbanos más grandes,
(STRATHERN, 1988, p. 15-21) del mundo se percibe en las últimas décadas una presencia
ilustrado secular, caracterizado por la imagen significativa de inmigrantes de origen boliviano,
y la autoimagen de la autonomía relativa del un proceso novedoso pero que posee una conti-
cuerpo, el alma, el mundo sagrado y las rela- nuidad con la circulación transfronteriza por la
ciones sociales. Una concepción que corre el región de mucha mayor densidad histórica.
riesgo de extenderse en la propia antropología, A diferencia de otras áreas denominadas “pe-
sosteniendo una escisión entre la hechicería y el riféricas”, la integración de las poblaciones del
orden societal o, en su defecto, la subordinaci- noroeste a diferentes formaciones estatales de la
ón de la hechicería a un proceso prioritario de actual Argentina y a la difusión de valores capi-
“regulación social” que resulta más real y verda- talistas no siguió el camino del genocidio y la
dero. En ese sentido, el trabajo se concentra en desarticulación de las antiguas relaciones entre
el espacio diferencial donde las concepciones y población y territorio, como en el caso clásico de
las prácticas de la hechicería emergen como un las “campañas al desierto” del Estado argentino.
código común e indistinguible de mediación En realidad, como señala Karasik (2005, p. 208),
entre personas, cosas y el mundo sagrado. El en el noroeste el avance estatal se produjo en con-
material presentado quiere también delinear tinuidad con las formas de desposesión y de opre-
como los valores centrados en la solidaridad y sión justificadas en términos de “ancestralidad”,
en la agresión, lejos de ser aspectos contrapues- lo que ayudó a difundir la expansión estatal y
tos, pueden ser pensados como elementos de un régimen con rasgos de subordinación interna

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mucho más dócil que el que se dio con otros gru- encantado dedicado a los santos y la Virgen,
pos nativos del actual territorio argentino. Por articulado con componentes andinos pre-his-
esa razón, la población en cuestión suele iden- pánicos que dan gran centralidad al culto de la
tificarse como “criolla” y, eventualmente, como Pachamama y a la presencia de los antepasados
“indígena”, sobre todo en función de procesos como entidades con agencia social en la vida co-
de etno-génesis más recientes. Como han mos- tidiana y como parte sustancial de complejas re-
trado algunos autores para el área de los Andes des de reciprocidad (MERLINO; RABEY, 1979,
Centrales, la identidad indígena o criolla resulta 1993; VESSURI, 1971). En las últimas décadas
polivalente y situacional justamente porque los se percibe también la presencia emergente del
modos de identificación configuran un continuo evangelismo pentecostal, que aunque minori-
en acción más que una distinción clara y tajante tario conlleva un proceso de demonización de
entre lo indígena y lo criollo (DE LA CADENA, las prácticas religiosas andinas todavía poco ex-
2000). En el caso argentino, Alejandro Isla señala plorado. Asimismo, la difusión del evangelismo
que la identidad en las poblaciones del noroes- cristiano constituye un dispositivo de desiden-
te andino no es un registro homogéneo y puede tificación de los marcadores étnicos en un con-
oscilar entre lo “indio”, lo “gaucho” o lo “español texto de fuerte renegociación de las identidades
cristiano”, pero en un contexto de fuerte identi- “indígenas” que resulta un proceso muy signifi-
ficación con dispositivos nacionales, regionales cativo, pero que en el área ha sido poco analizado
y comunales (ISLA, 2002, p. 12-13; ver tam- (SEGATO, 2007). En general, es significativa la
bién KARASIK, 1994). Más allá de las formas presencia de un catolicismo conservador, centra-
de identificación, existen modos de vida desi- lizador y moralizante que confronta con el avan-
gualmente difundidos que han caracterizado al ce pentecostal más reciente y, desde finales del
mundo andino en contraste con otras áreas y que Siglo XIX, con los modos encantados del catoli-
suponen lógicas socio-cósmicas. La reciprocidad cismo y de la ritualidad andina. Este catolicismo
y el conflicto social, vinculado al parentesco ex- comparte con las miradas seculares la estigmati-
tendido, el compadrazgo y las relaciones entre zación del catolicismo andino, considerado una
vecinos, así como la reciprocidad y el conflicto en “superstición” vinculada a la “ignorancia”.
el orden cósmico, manifiesto en concepciones de En el modo de vida de la población rural y
la causalidad regidas por fuerzas y entidades no de las periferias urbanas de la región, la hechi-
humanas y una vida cotidiana encantada donde cería resulta un lenguaje de aflicción y agresivi-
el horizonte de lo posible va mucho más allá del dad vivo que estructura las relaciones laborales,
mundo físico-natural, constituyen regímenes de familiares y barriales. La práctica de hechicería,
relaciones singulares y contrastivos con la imagen denominada trabajo, travesura, picardía, malhe-
de un mundo regido por la autonomía personal y cho, daño, estar curado o simplemente brujería,
la separación entre sagrado y secular. han llamado la atención de una gran cantidad
Por su parte, la identidad cristiana posee de cronistas y folkloristas quienes, desde una
una prioridad significativa en la región, aunque perspectiva normativa y alejada de la problemá-
los modos de vida que suponen el vínculo con tica nativa, las han considerado “supervivencias”
el mundo sagrado en cuestión resultan diverso. o “manifestaciones falsas”. Esas perspectivas,
Más allá de un catolicismo romanizado, más o si bien muestran una importante cantidad de
menos secular presente en gran parte de la pobla- elementos significativos y todavía útiles para el
ción, es ampliamente difundido un catolicismo análisis, insisten en una perspectiva descriptiva y

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La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes | 145

taxonómica de la hechicería que queda circuns- indicaba que la hechicería, lejos de desapare-
cripta a un “rasgo cultural” y, sobre todo, a una cer, había mutado en función de procesos de
concepción aislada del resto de las relaciones transformación social que conllevaban la crisis
socio-cosmológicas que estructuran el mundo de la jerarquía y la autoridad propias de una
nativo. En sintonía con esas descripciones, algu- lógica tradicional del honor criollo, el orden
nos trabajos inspirados en enfoques cercanos a patriarcal y las relaciones de la hacienda rural
la psiquiatría transcultural han utilizado catego- (VESSURI, 1970, p. 444). Influenciado tam-
rías como la de “sobrenatural” o “místico” para bién por los procesos migración de la poblaci-
referirse a la hechicería, dando por sentada una ón local a las ciudades y los nuevos estilos de
base biológica universal atada al saber biomé- vida, la agresión de hechicería había cambiado.
dico como fundamento último de la aflicción Si había sido originada clásicamente por brujas
(PALMA, 1978; PEREZ DE NUCCI, 1989). que encarnaban un perfil singular identificado
Este tipo de análisis ha sido criticado amplian- con personajes alejados de la vida social, ahora
do el horizonte a su aspecto cosmológico como sus interlocutores la identificaban con los de-
un registro independiente del naturalismo mé- nominados “estudiantes de magia”, figuras con
dico como criterio universal. Así, por ejemplo, prácticas letradas, es decir que aprendían las
Idoyaga Molina (2002) se ha referido al daño técnicas de la hechicería en libros, y compar-
como una noción de padecimiento en el con- tían estilos de vida urbanos más autónomos e
texto más amplio de heterogéneos procesos de individualizados (VESSURI, 1970, p. 52-53).
aflicción-atención que suponen modos de re- Si bien los trabajos contemporáneos son es-
gulación ritual del equilibrio entre lo humano casos, el trabajo historiográfico se ha preguntado
y lo no humano. Idoyaga Molina ha mostrado por el daño en la región. En base a la hipótesis
también como la noción y la experiencia del de Vessuri, la historia cultural ha comenzado a
daño tienen relación con la vida mítico-ritual y mostrar continuidades y discontinuidades con
las tradiciones humorales de raigambre europea las prácticas de daño y contra-daño pasadas.
mediterránea en el horizonte de las concepcio- El mundo colonial ordenado en base a la jerar-
nes y prácticas de aflicción y cura de la poblaci- quía social española que se consolidó durante el
ón criolla (IDOYAGA MOLINA, 2002, 2008). Siglo XVIII se transformó por el desarrollo ca-
Si bien son escasos, se encuentran algunos pitalista, haciendo que la hechicería se adaptara
estudios etnográficos sobre la hechicería en el a un nuevo contexto. A partir de los documen-
horizonte más amplio de las relaciones socio- tos de procesos judiciales por hechicería, las
-cosmológicas en sentido amplio, hecho que crónicas y el material recolectado por folkloris-
coloca a la hechicería en redes de relaciones, tas durante el Siglo XX, Farberman ha realizado
formas de mediación y procesos de transfor- un minucioso análisis sobre la hechicería y el
mación histórica. En base a una etnografía en curanderismo en un contexto de mestizaje cul-
el pueblo de Antajé, provincia de Santiago del tural, diversidad étnica y estricta jerarquía social
Estero, Vessuri señalaba algunos elementos donde la magia funcionaba como un lenguaje
cruciales del lugar de la hechicería en un sis- común. A pesar de subordinar la hechicería a
tema de relaciones sociales del noroeste argen- relaciones sociales y jerarquías de poder en cier-
tino hacia fines de la década de 1960. A partir ta medida funcionales, sobre todo entendiendo
del modelo de honor and shame, típico de las a las acusaciones de hechicería como un modo
sociedades hispano-mediterráneas, Vessuri “minimizar el conflicto social” (FABERMAN,

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146 | Nicolás Viotti

2005, p. 194), su análisis propone un intere- general producido por la acción dañina. La no-
sante contraste con las prácticas de hechicería ción de la persona que la hechicería revela es la
más recientes, mostrando matices dados por los de un entramado de relaciones entre sustancias
efectos de la individuación y la crisis del modelo corporales, anímicas e incluso el nombre, que
colonial (FARBERMAN, 2005). no pueden pensarse en los términos del indivi-
El tema de la hechicería en los Andes del duo autónomo con un cuerpo y un alma inde-
noroeste argentino permanece como una pro- pendientes entre sí sino en el sentido relacional
blemática nativa altamente significativa, pero e integrado descripto en el modelo clásico de la
distante de análisis que lean este tipo de prácticas noción de la persona (MAUSS, 1968 [1938];
en sintonía con las relaciones sociales y cosmo- ver también CARRITHIERS et al., 1985).
lógicas en conjunto. Las áreas de especialización El infortunio personal adquiere un senti-
en la antropología tienden a aislar la problemá- do amplio y extendido, puede también recaer
tica del daño en cuestiones de distinción social, en propiedades como haciendas o vehículos, e
cuestiones terapéuticas o incluso propias de la incluso sobre otros seres vivos como animales.
religiosidad. Creemos que la literatura sobre el El caso de las haciendas es muy habitual y se re-
área, rica en descripciones e hipótesis, requiere conoce por malas cosechas consecutivas o el ata-
relecturas en base al material etnográfico que re- que de plagas. Un mal que cae sobre un vehículo
cuperen el lugar del daño en tanto un proceso puede descomponer repentinamente su funcio-
socio-cosmológico amplio que no dé por dado namiento y afectar el arranque. Incluso puede
el dualismo sagrado/secular ni el que separa lo tener consecuencias más graves como perder la
societal de lo cosmológico. En suma, una mirada dirección, los frenos y producir un accidente.
que entienda a la acción dañina en relación con La acción de daño puede incluir también el
las formas de socialidad de la experiencia coti- control de la voluntad de la víctima, que aca-
diana entre personas, cosas y el mundo sagrado. ba perdida o con sensaciones de confusión en
términos espaciales y/o temporales. Esa pérdida
Hechicería, cuerpo y persona de la autonomía es evidente en la manipulación
de la voluntad y en el hecho de que la víctima
El daño es una categoría que refiere a una pierda las ganas de comer, de relacionarse y, por
situación de aflicción ontológica en donde el lí- ende, de vivir. Así también, ese control de la
mite entre lo físico, lo moral y lo cosmológico voluntad puede destinarse a retener o atraer a
no pueden distinguirse como esferas autónomas una persona amada. En ese caso, la causa de la
(IDOYAGA MOLINA, 2002, 2008). Por esa hechicería, sobre todo en el caso del denomina-
razón, expresiones como estar dañado o tener un do trabajo, puede ser el sentimiento de posesión
trabajo pueden referirse tanto a malestares cor- extremo de un ser amado. El tema requiere un
porales, como a fuertes dolores de cabeza, pérdi- análisis detallado que no podremos desarrollar
das del conocimiento, manifestaciones cutáneas, aquí, pero muestra que para el control de una
estados de debilidad anímica y de la voluntad, persona por un tercero y la acción sobre la vo-
así como a eventos desdichados como despi- luntad no solo son importantes los sentimientos
dos laborales, problemas afectivos o accidentes como la envidia, los celos, la venganza y los ma-
personales. En general, algunas de estas mani- los deseos, sino también el amor desesperado.
festaciones aparecen combinadas y son asocia- El desequilibro general que produce el daño,
das como signos de un estado de desequilibrio la somatización corporal, anímica y moral, es

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La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes | 147

bueno recordarlo, es incluso causa de muerte. de subordinación de género, sino en función de


En cierta ocasión fuimos informados sobre dos una red de relaciones jerárquicas que distribuyen
casos de muerte por hechicería que no había el poder diferencialmente. La capacidad de dañar
sido detectada a tiempo para que un curandero no es solo un efecto de sistemas acusatorios de
pudiese poner en práctica la acción de contra- subordinación, sino una manipulación de poder
-daño. El riesgo de la hechicería hace que las efectivo para quien lo ejerce. Si bien es también
acusaciones o las sospechas recaigan sobre cual- cierto sobre el status social y/o étnico, es menos
quier persona. Aunque existen algunas regula- fácil percibir una regularidad semejante al caso del
ridades en los sistemas acusatorios, el perfil del género. En cierto modo, la práctica del daño atra-
dañador remite a alguien con el conocimiento viesa la estructura social y étnica, lo que no quiere
necesario para realizarlo, por eso el origen del decir que su visibilidad y sus usos sean semejantes
mal suele desagregarse entre un especialista, en y homogéneos. Como muestra Farberman ya para
general curanderos o curanderas que hacen el el mundo colonial, la cultura mestiza difundida
mal o personas con conocimientos suficientes, ampliamente en la plebe y en las elites comparte el
y un demandante que acude al especialista para código de la hechicería (FARBERMAN, 2005, p.
solicitar la acción sobre un tercero. La prioridad 141-143). De todas maneras, y a modo de hipó-
dada a figuras particularmente malignas como tesis, la dificultad de poder reconocer en las acusa-
brujas que dañen por pura maldad resulta poco ciones grupos sociales delimitados tan claramente
común (IDOYAGA MOLINA, 2008), lo que podría mostrar como la hechicería constituye un
parece haber sido más habitual en el pasado lenguaje y una práctica de vínculos de poder pro-
(FARBERMAN, 2005; VESSURI, 1970). Por pia de un mundo relacional más amplio que el de
el contrario, la actual figura del agresor con- las fronteras socio-étnicas.
cuerda con lo descripto por Vessuri en Antajé Nos interesa insistir que más allá del lugar de
durante la década de 1960, es decir que es re- los procesos de identificación del daño, nuestro
currente la referencia a especialistas educados enfoque de la hechicería no se reduce ni a sus sis-
por medio de libros y con rasgos letrados que temas acusatorios y ni a sus “funciones sociales”.
son identificados con la vida urbana-moderna El régimen de relaciones que involucra la acción
(VESSURI, 1970). Estos especialistas suelen ser de daño vincula elementos que van desde las sus-
ambivalentes en las prácticas de daño y contra- tancias corporales y anímicas hasta las relacio-
-daño, a su vez poseen una demanda que paga nes interpersonales, estableciendo una trama de
en bienes o dinero, mostrando un verdadero dependencia mutua en donde un desequilibrio
circuito de consultas ampliado que constituyen en uno de sus extremos pude desencadenar un
una clientela que excede las fronteras locales. proceso de aflicción denominado “estar daña-
La acusación a personas con un status de géne- do”. Tal como señala Favret-Saada, ese estatuto
ro, social o étnico subordinado es un tema com- ontológico moviliza una serie de elementos que
plejo y solo resulta cierto parcialmente. De lo que constituyen un “sistema de la hechicería” con lí-
se deduce que las prácticas de daño son mucho mites difusos pero no infinitos en donde las acu-
más que modos de distinción. Si bien la mayoría saciones son solo una parte de una trama más
de nuestros datos muestran la prioridad de muje- compleja (FAVRET-SAADA, 2009).
res en las acusaciones de hechicería creemos que Los aspectos más íntimos de ese sistema apa-
la prioridad dada a las mujeres como causantes recen en un cuidado particular dedicado a los
del daño no puede leerse solamente en términos residuos corporales como la saliva, las uñas o el

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cabello. Pero también existe un riesgo en el nom- sino como partes de una unidad extensa que no
bre, las fotografías y el rastro (huella) de las per- se reduce a la concepción del individuo que posee
sonas. El riesgo que esos objetos revisten para su un cuerpo, un nombre y un alma en tanto partes
poseedor tiene que ver con la posibilidad de que de un entidad más o menos autónoma. En este
puedan ser utilizados para la acción dañina. Esta caso, tanto las sustancias corporales, el nombre
funciona por una relación de extensibilidad con y la ropa configuran un entramado de relaciones
las partes de la persona, cada una de esas partes que extienden a la constelación de la persona a
es una extensión de la totalidad de la persona. partir de atributos compartidos.
O, mejor dicho, no funcionan como “símbolos”, Un elemento central en esa unidad es la noci-
“metáforas” o incluso “metonimias” de la perso- ón de espíritu, tanto como elemento distintivo de
na, sino que las partes y el todo no se distinguen lo humano como aspecto vinculante con el mun-
como totalmente independientes y autónomas. do sagrado que está poblado de entidades malig-
Por esa razón, dejar uñas o cabello descuidados nas y benéficas bajo la acción todopoderosa, pero
le permite al agresor utilizarlas. Actuando sobre ausente, del dios católico. El pedido de acción
ellas se actúa sobre la persona como un todo dañina se hace a entidades no-humanas malignas
práctico. Ese aspecto corporal se extiende a los como demonios o, generalmente, muertos. Por
objetos íntimos, como la ropa o las herramientas el contrario, la acción benéfica de contra-daño
de trabajo. La breve historia de Rubén, que tra- requiere la intervención de santos del panteón
baja como curandero en una zona periférica de católico. Estas entidades funcionan como agen-
la ciudad de Salta, puede ser ilustrativa. Rubén tes aliados en el mundo espiritual y asistentes del
nos contaba que en una oportunidad habían curandero, quien debe invocarlos y hacer los pe-
querido hacerle un daño para matarlo porque él didos correspondientes ofreciéndoles oraciones,
había hecho muchos contra-daños para ayudar a hojas de coca y velas que se colocan cerca de las
la gente. Como consecuencia, había terminado imágenes correspondientes a las que el especialis-
internado por un “accidente cerebro vascular”, ta rinde especial culto personal. De esa manera
según los médicos, pero Rubén sabía en el fon- los curanderos trabajan siempre asociados con la
do que era consecuencia de un mal que le habí- Virgen, San Antonio, Jesús o incluso, más recien-
an echado. Al regresar a su casa, descubrió que le temente, santos no oficiales del catolicismo que
habían robado ropa suya, y se preocupó porque en Argentina conforman un particular panteón
él sabía que ello implicaba que podían matarlo difundido a nivel nacional, como San La Muerte
definitivamente. Rubén actuó rápido. Se fue al o el Gaucho Gil, entre otros (CAROZZI, 2006).
cementerio y empezó a caminar buscando hasta
que descubrió una tumba abierta con su ropa La persona débil y la sustracción de la vida
adentro, con todo listo para iniciar el trabajo: “vi
la fosa con todo, con la ropa mía adentro, toda El tema de lo anímico es central tanto en
acomodada. Incluso le habían puesto mi nombre la acción dañina como en las técnicas y con-
a la fosa”. La utilización de la ropa y el recurso cepciones del contra-daño. Se dice que una per-
del nombre escrito muestran una concepción de sona con espíritu fuerte es menos vulnerable a
la corporalidad extensiva sobre otras sustancias o la hechicería y que la que tiene un espíritu dé-
elementos. El ejemplo del vestuario o del nombre bil, como por ejemplo los niños, es más frágil.
son muy significativos, ya que estos no funcionan Mencionamos más arriba como el impacto del
como la representación o símbolo de la persona, daño en un animal o una persona débil podría

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ser como consecuencia de un “rebote” en un poder. ¿Por qué? Porque estoy al mismo nivel de
blanco lo suficientemente fuerte como para cualquier otro ¿Si? No es que soy más que otro,
desviar la agresión en una entidad cercana más pero tampoco soy menos. No soy menos que na-
débil. Abundan relatos sobre mascotas o incluso die. No soy más ni soy menos, entonces nadie me
plantas que mueren por absorber el daño desti- puede obligar. Si voy hacia algún lado voy porque
nado a un blanco cercano. Los animales daña- yo quiero, no porque me llevan.  
dos suelen morir y, en general, funcionan como
protectores de sus dueños. Los relatos sobre Haydé, una ama de casa de Campo Quijano,
daños destinados a una persona que, por equi- nos contaba que había visto una imagen del padre
vocación o por error, alcanzaron a sus mascotas, de su hijo en la casa de una curandera de la zona,
se refieren siempre a que el animal funcionó donde fue acompañando a una vecina de nombre
como un escudo entre la acción dañina y la per- Daniela que había sido diagnosticada como daña-
sona. Una señora conocida como curandera in- da. La foto estaba llena de alfileres en los ojos, la
sistía en que “hay que tener siempre un perro o boca y la cabeza. En esa época, recuerda Haydé,
un gato, porque si te hacen un daño y sos fuerte el padre de su hijo había empezado a tener fuer-
le cae al animal o a la persona más débil”. tes dolores de cabeza y se tiraba en la cama por
Si el cuerpo, las sustancias corporales, el nom- muchas horas sin ganas de hacer nada. Luego de
bre y/o la ropa son los vehículos del daño, su blan- algunas consultas con médicos psiquiatras con
co es una entidad integrada compuesta por esas diagnósticos de depresión, una curandera sugi-
partes más el espíritu o el alma. En realidad todos rió que alguien lo había brujeado. Inicialmente
esos elementos están enlazados por una concepci- Haydé fue sospechosa de haber sido la causante.
ón anímica que los atraviesa y que les da una uni- Enojada, ella sospechaba de una vecina que había
dad entendida en términos de fuerza/debilidad. estado saliendo con su ex marido. Al reconocer
Durante una charla informal con Delfor, la fotografía del padre de su hijo en la casa de la
un muchacho que daba clases de quechua y curandera le comentó: “¿sabes dónde está tu foto?
participaba de organizaciones culturales indi- Si queres ir a verla, ándate ahí a la señora de don
genistas cerca de Campo Quijano, nos contó Alejo y ahí vas a sacar quien te hizo el daño”. Lo
entusiasmado detalles de los riesgos de un tra- singular del caso es que el trabajo no solo en-
bajo en las relaciones amorosas3. Señalaba que fermó al padre de su hijo, sino al hijo también.
este tipo de acciones eran efectivas en función Como nos decía Haydé: “El se ha enfermado y
de la fuerza de cada uno y que si uno era una después le ha agarrado al Rodrigo, que tenía un
persona fuerte, no tenía que tener miedo: año y ocho meses. Porque él estaba débil, porque
él también estaba de espíritu débil. La curandera
Va a depender de la persona, pero si la persona le había dicho que tenía el espíritu débil como la
es fuerte no se lo puede traer con nada. Existe un nena, como la Daniela”.
potencial en el ser humano que si uno sabe descu- El tema del espíritu débil o la falta de fuerza
brirlo… nadie puede manejarlo. A mi me han he- remite a una condición ontológica donde lo aní-
cho un trabajo también. Hay personas que pueden mico se articula con el resto de las sustancias y
actuar haciendo males, maleficios a otros. A mi me elementos que integran a la persona. Resulta cen-
han atacado a esos niveles también, pero a mí no tral la idea de la absorción de la sustancia vital. Es
me ha hecho ningún efecto. Porque depende del muy habitual que las descripciones sobre alguien
estado interno de uno, de que uno encuentre su dañado sean las de alguien que se va secando o

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alguien a quien le sacan la voluntad a través de la sustancias corporales existe en otras instancias de
sustracción de la fuerza vital, entendida algunas la cosmología andina como extracción de fuer-
veces solo en términos anímicos o en una combi- za vital. Más allá del ejemplo del “feto agresivo”
nación entre lo anímico y los fluidos corporales. analizado por Platt en el nivel de la persona y el
Entiendo que la noción de cuerpo y perso- cuerpo, como extracción de la sangre o la grasa,
na resultan categorías analíticas que si bien han aparece en las relaciones con el orden ecológico.
rendido importantes estudios en la antropología Así, la extracción resulta riesgosa y amenazante
contemporánea, no han tenido en el área andina en relación con los recursos del medioambiente.
un impacto semejante al que adquirió en la et- Por ejemplo, Taussig indica que la explotación
nografía de otras regiones. Encontramos una ex- minera desproporcionada es un hecho que pue-
cepción en el trabajo de Platt sobre la noción de de ser vivido como extracción de la fuerza vital
persona en relación con las prácticas de concep- de la tierra y sus minerales, considerados “vivos,
ción y alumbramiento entre quechua hablantes resplandecientes y con movimiento, color y so-
de Bolivia (PLATT, 2001). En ese trabajo Platt nido” (TAUSSIG, 1980, p. 147).
señala que el crecimiento del feto tiene que ver En tanto parte de una entramado de rela-
con la absorción de sangre de la madre. Por ello ciones que homologan lo anímico con lo cor-
las mujeres embarazadas suponen un desequili- poral, el espíritu de la persona puede entonces
brio en su persona. El embarazo y el parto de- ser manipulado tanto en sentido benéfico
penden de una red de relaciones compuesta de como maléfico. La alianza con entidades ne-
parientes y vecinos pero también de una doble gativas como muertos o demonios actúa como
amenaza no-humana. La del propio feto, vi- vehículo de un proceso de extracción y succión
vido como un elemento agresivo que debe ser de la fuerza vital de la persona. Luego de un
expulsado, y la amenaza de entidades malignas diagnóstico de daño, realizado por medio de
que provienen de fetos abortados o q’ara wawas velas, agua o aceite en presencia de la víctima
(bebés desnudos) que ponen en riesgo su vida y la correspondiente identificación del agresor,
con ataques a su vientre en búsqueda de sangre. se recurre a las entidades positivas que asistan
Como podemos observar, en el ejemplo descrip- en la restitución de la fuerza vital. En el plano
to por Platt la persona se construye en un en- espiritual se manifiestan valores que remiten
tramado de vínculos entre sustancias corporales, tanto a la lógica de la agresión como a la soli-
entidades y fuerzas no humanas que muestran daridad, ambas suponen alianzas consolidadas
un orden relacional estructurado por la agresivi- en regímenes de intercambio de ofrendas de
dad vivida como succión de una sustancia vital. comida, oraciones, agua bendita o velas en días
Los relatos sobre el daño y las metáforas para ritualmente pautados que mantienen el víncu-
describirlo recurrían a la misma imagen de la lo con el especialista. Un vínculo que, en últi-
extracción de la vida, como muestran las ideas ma instancia, funciona como mediador entre
del dañado como “alguien que se está secando” las entidades maléficas y el agresor, así como
o “alguien a quien le están sacando la vida”. entre las entidades benéficas y la víctima.
En cierto modo, la lógica del daño puede ser Ese vínculo es, sin embargo, aun más com-
pensada desde este prisma ya que vincula el plejo. También se establece un lazo entre el espe-
cuerpo y las sustancias corporales con un mundo cialista que prepara el daño y el que lo deshace.
relacional en donde la agresión supone la absor- Hacer daño supone un riesgo real para el que
ción de una fuerza vital. La idea de absorción de lo realiza, ya que la acción de contra-daño, si es

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efectiva trae aparejada un efecto de reflejo sobre FAVRET-SAADA, 1977, 1989, p. 42;
el dañador. La pérdida de fuerza vital y/o even- STEWART; STEWART, 2004, p. 155). Lejos
tualmente la muerte pasa entonces de la víctima de ser un dispositivo de disolución o regulación
al causante. Este efecto de reflejo vincula a los social, creemos que la hechicería es mejor enten-
especialistas de forma tal que moviliza procesos dida como productor y reproductor de relacio-
de justificación moral sobre sus propios valores y nes sociales agonísticas. No solo entre entidades
los límites de su accionar. También produce un sagradas, especialistas y consultantes, sino entre
miedo concreto a que la acción tenga consecuen- vecinos, familiares y amantes, mostrando la
cias personales. Una curandera de la periferia de contracara de las relaciones de solidaridad entre
la ciudad de Salta llamada Beatriz nos contaba ellos. En lo que sigue, queremos mostrar algunos
que ella solo actuaba cuando ello implicaba nada relatos que ponen de manifiesto la centralidad
más que una acción de contra-daño, o sea “hacer de las relaciones interpersonales cercanas como
exactamente lo que ellos hicieron pero nunca lle- un rasgo dominante de las acusaciones de daño.
gando a causar la muerte”. Si bien sabía cómo Si bien es cierto que la desconfianza y el temor
hacerlo, no solo no hacía daños porque tenía “vo- a la hechicería marca uno de los límites de la
tos antes Dios de no hacer el mal”, sino porque solidaridad, al mismo tiempo ordena toda otra
la gente que lo hace corre un gran riesgo: “si lo red de intercambios que solo existen en función
haces terminas mal. Te vuelve el mal. ¿Cuántas de una concepción relacional de la vida social.
personas que han hecho estas cosas generalmente En cierta ocasión, mientras deambulábamos
mueren quemados, tienen muerte trágicas?”. durante la hora de la siesta por el pueblo y bus-
Los atributos de la persona entendida cábamos un poco de sombra para protegernos
como fuerte/débil y la acción dañina como del sol y del calor apareció Mauro, un adoles-
extracción de fuerza vital muestran un orden cente que estaba muy interesado en saber que
de relaciones centradas en la corporalidad, los hacíamos por allí. Cuando le contamos que es-
objetos, el nombre y el alma que se vincula con tábamos esperando a una persona para que nos
el mundo sagrado. Sin embargo, la hechicería contara sobre un caso de daño que nos interesaba
cumple también un papel central en los vín- conocer para un libro que estábamos por escribir,
culos interpersonales, produciendo y reprodu- comenzó a contarnos una historia que creo resul-
ciendo modos de reciprocidad agonísticos que ta muy significativa. Mauro vivía con su abuela
van más allá de los dispositivos de acusación y en Campo Quijano y era guitarrista, también
de diferenciación. tenía una banda que tocaba rock y folklore con
otros dos amigos. En cierto momento empezó a
El daño como lenguaje interpersonal sentirse mal, caído, “como cansado todo el día”.
No tenía ganas de comer, ni de levantarse. Su
La amenaza de daño proviene de perso- abuela estaba preocupada y lo llevó a ver al mé-
nas cercanas que son parte del trato cotidiano. dico. Este le dijo que estaba deprimido y le re-
De manera similar a otros contextos donde la comendó hacer psicoterapia, pero Mauro no fue
hechicería resulta relevante, las acusaciones son porque decía que “el psicólogo es para los locos, si
entre personas allegadas relativamente cerca- se les ocurre te internan y te dejan ahí abandonado
nas en el espacio cotidiano y en donde las re- en el hospital psiquiátrico”. El miedo de Mauro
laciones sociales son estrechas (DOUGLAS, no evitó que consultara con otro médico, por
1970; EVANS PRITCHARD, 1976 [1937]; insistencia de su abuela, que le recetó vitaminas.

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Pero con el tiempo su situación empeoró, así que daño. En otra ocasión, un taxista de la ciudad
fue a consultar a un curandero del pueblo. En su de Salta llamado José nos contaba su propia
primer consulta el curandero encendió una vela y experiencia como víctima de un trabajo coloca-
ahí mismo, en la llama, vio que le habían hecho do por su cuñada en su vehículo. En muchos
un trabajo. El curandero le dijo que sabía quien casos las relaciones intrafamiliares conflictivas
se lo había hecho y que lo había hecho con un se manifiestan en la práctica de la hechicería.
curandero que era muy poderoso y que era difícil Si bien en algunos casos la acción dañina puede
de sacar. Le dijo que era un muchacho bajo, con ser ejecutada por la propia esposa o el marido,
el pelo largo y una cicatriz en una mano. Mauro en general son atribuidas a la los parientes polí-
reconoció al instante a uno de sus mejores amigos ticos no consanguíneos como cuñados, cuñadas,
del grupo de música y dijo que no lo podía creer. suegros o suegras. En la historia que José nos
Al parecer este amigo estaba con envidia porque a contó, su cuñada lo envidiaba por tener un vehí-
Mauro lo habían invitado a tocar con otra gente, culo nuevo. Según una curandera de la periferia
últimamente le estaba yendo bien con la guitarra de Salta a la que José consultó, esa fue la razón
y recientemente se había podido comprar algunos de un fuerte trabajo que fue arrojado en su taxi.
equipos nuevos. En este relato el agresor resulta Al igual que en las otras historias, los síntomas
ser una persona muy allegada llevada por la envi- fueron el sueño, el desgano, la falta de apetito y
dia del “éxito” de su compañero. la baja presión. En el caso de José esas sensacio-
En sintonía con el tema de la envidia por nes ocurrían justamente en el horario de trabajo,
el éxito entendido tanto en términos económi- mientras se encontraba dentro de su vehículo:
cos como morales que muestra la historia de
Mauro, otro relato pone el origen de la agre- Por cualquier lado por donde estuviera yendo,
sión en causas similares. Franco, un vecino de me agarraba sueño. Paraba el auto, me bajaba y
Campo Quijano que tenía un negocio en la se me pasaba. Después subía y me tomaba la pre-
ciudad que funcionaba bastante bien, nos con- sión y bajaba a 8.5, clavadito. Al otro día lo mis-
taba que luego de sentirse cansado y débil du- mo, yo tengo 12 y medio como normal. Me he
rante meses, resolvió consultar a un curandero hecho estudios, tomografías, me he hecho todo.
en el pueblo. Luego de sahumarlo y hacerle Fui al médico porque no sabía por qué me baja-
sostener y guardar un pedazo de azufre en el ba la presión de golpe. El médico me ha hecho
bolsillo de su camisa, le dijo que tenía un traba- todos los análisis, estudios. Y el médico me dijo:
jo hecho por alguien muy cercano que le quería no tenes nada! Yo no te puedo ver porque no te-
hacer mal. El azufre arrojado al fuego había ad- nes nada. Y ahí me he ido a ver a la señora ésta, a
quirido la forma de una serpiente, hecho que la Beatriz. Ella ha abierto la puerta del auto y casi
no solo funcionaba como recurso terapéutico se va para atrás. Me dice: acá te lo han hecho. Yo
por medio de la purificación del fuego, sino he corrido los asientos para buscar ahí y no había
que también mostraba el diagnóstico positivo nada, pero dijo: acá te lo han tirado. Y era para
de hechicería y el modo en que la misma había que me mate en la ruta, porque yo viajaba mu-
sido realizada. El causante había sido su socio, cho. Mi cuñada me tenía envidia porque tenía
que había utilizado una serpiente en la acción un auto nuevo y ella tenía un Fiat viejo.  
dañina y quería quedarse con el negocio.
Un tercer relato puede complementar el El tema del éxito entre pares y el sentimien-
tema de la envidia y el éxito como causa del to de envidia o ambición desmedida muestra

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La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes | 153

evidentemente la desconfianza a los procesos una situación histórica novedosa marcada por
de individuación y acumulación por fuera de la lógica de la acumulación capitalista. Esta fi-
la lógica de la reciprocidad. El destacarse so- gura mítica resulta una encarnación demoníaca
cial o económicamente obliga a una negocia- que pacta con personas poderosas o adinera-
ción moral en donde la amenaza de envidia y das garantizándoles éxito social y económico a
daño son una posibilidad real. Un curandero de cambio del sacrificio de víctimas que suelen ser
Campo Quijano nos contaba que había cada parte de la población más subordinada en la es-
vez más trabajos en el último tiempo y que él tructura social y étnica de la región del noroes-
tenía que intervenir porque las personas podía te. El problema de analizar el daño en términos
morirse sin siquiera darse cuenta de lo que les semejantes nos obligaría a suponer que las situ-
habían hecho. Ese mismo curandero se refería aciones de éxito personal son moralmente ne-
a lo que percibía como un momento de mucha gativas y condenadas por la agresión, un hecho
actividad de hechicería como consecuencia de que podría ser parcialmente cierto si las razones
un momento de mucha maldad y también de de la agresión no fueran mucho más allá de situ-
la envidia que causa de la ambición desmedida. aciones de envidia por éxito social o económico.
Su diagnóstico, evidentemente, tenía connota- El entramado de las relaciones cotidianas
ciones morales que idealizaban un pasado con nos muestra que debemos ser cautelosos en no
menos hechicería que era propio de un mundo reducir una práctica habitual extendida en las re-
menos agitado y con menos ambición personal. laciones de afinidad, familiares y vecinales a su
El tema de las acusaciones de hechicería función socio-estructural. Tanto en el sentido de
leídas como regulador social de procesos de regular las relaciones “hacia arriba”, en la acusa-
individuación y de éxito económico en un ción de poderosos, ricos o “exitosos” como en la
contexto relacional o como epifenómeno “sim- de regular las relaciones “hacia abajo”, en las acu-
bólico” de un proceso de cambio social explica saciones a la población identificada socialmente
solo en parte la centralidad de estos ejemplos. como “pobre” o étnicamente con lo “india”4..
No explican porque el daño se convierte en un En base a nuestro material, deberíamos
lenguaje socialmente aceptado, ni todos los decir que si bien la acusación de hechicería se
otros casos en donde la hechicería es un modo vincula en muchos casos con procesos de éxito
de conocimiento en donde la igualación y la social y acumulación económica, en realidad lo
regulación social no son relevantes. hace mucho más allá de ellos, ordenando un
Por otro lado, es innegable el lugar de los lenguaje de relaciones que tienen que ver con
procesos de cambio social como productor de otras lógicas de socialidad agresiva atravesadas
nuevos conflictos intersubjetivos y la moviliza- por las relaciones cotidianas y/o intrafamiliares
ción de recursos cosmológicos propios de ese más habituales. Más allá de la envidia por el
mundo en la re-significación de esos hechos éxito o la posesión de bienes materiales, mu-
vinculados sin duda a un proceso de transfor- chas disputas que incluyen la hechicería tie-
mación de larga duración. En cierta medida el nen que ver con conflictos de status, afecto o
tema de daño podría ser pensado en sintonía conflicto de opiniones. Es significativo que
con los trabajos sobre el mito de El Familiar. Taussig, quien ha analizado con detalle los vín-
Como muestran Isla (1999) o Vessuri (1971, culos entre cosmología y cambio social en rela-
p. 58), en los Andes argentinos la mitología de ción con la lógica de la mercancía en los Andes
El Familiar recrea un elemento mítico dado en Centrales bolivianos, señale que la acusación de

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hechicería no debería pensarse solamente como su empleo en la minera Borax Argentina. Según
manifestación de relaciones sociales de desi- el especialista era una trabajo difícil de sacar, y
gualdad, mostrando que la hechicería andina Franco refiere que la familia no ayudaba. Si bien
es inmanente a las relaciones sociales y que por Franco estaba seguro de la causa de la desventura
lo tanto es también un modo de conocimiento de su padre, el problema era con su madre. Ella
y siempre mucho más que un síntoma de rela- no creía en esas cosas y no había apoyado el proce-
ciones de poder (TAUSSIG, 1980, p. 110; ver so de contra-daño. A diferencia de su madre, que
también FAVRET-SAADA, 1977, 2009). era católica como él pero no creía en los curande-
La historia de Franco antes referida tie- ros, Franco insistía en que estaba seguro que Dios
ne una continuación que muestra algo de esa tuvo interceptores y que los curanderos tenían esa
complejidad. En la misma sesión en que tuvo función y un don para ayudar a las personas.
su diagnóstico de daño, el curandero también le La historia de Franco muestra que su padre
sugirió que su padre también había sido vícti- había sido, simplemente, víctima de una mujer
ma de un trabajo. Hacía muchos años, cuando enojada. Las acusaciones de hechicería, enton-
Franco era niño, su padre había tenido una ha- ces, muestran causas divergentes de la envidia
cienda próspera en la zona que vendía verduras por el progreso económico o el éxito social,
y hortalizas. Pero la finca se había parado por- como por ejemplo el amor no correspondido.
que hubo algunas malas cosechas y hubo que Un relato más, dado por una anciana de
venderla. El curandero le aseguró que en esa Campo Quijano que había vivido buena parte
época su padre había sido curado y que todavía de su vida en una finca de la zona y hablaba el
tenía un daño hecho por una mujer que lo de- castellano con fuertes marcas del quecha, nos
seaba y como él no había querido quedarse con permite entender mejor un proceso de hechi-
él, ella se vengó con un trabajo. Según Franco: cería semejante al del padre de Franco. Ella
recordaba haber sido víctima de un trabajo
El curandero me dijo que mi papá estaba curado muchos años atrás que empezó con un fuerte
de una mujer, que esta le había hechos males dolor en la pierna y una marca negra en la zona
de los cuales él tenía que recuperarse, porque si del dolor. El curandero marcó un papel con un
no cada vez iba a tener menos. Bueno, ahora ya lápiz y puso un vaso con agua encima, al rato
no tenemos la finca, vendimos la finca. Igual mi le mostró a la persona que había encargado el
papá tenía un trabajo espectacular en la minera daño, y que la vio tan clara “como si fuera una
Borax Argentina, ahí él era uno de los primeros foto”. Era su cuñada, que vivía con su hermano
obreros que inicio la mina con bombas explosi- y su madre. Luego de la muerte de su madre y
vas, que explotaba el mineral. Y bueno es incre- la de su hermano, con fuertes sospechas de ser
íble que ahora ya no trabaje.   consecuencia de un daño encargado por la mis-
ma mujer, la anciana contó que esta mujer se
La historia de Franco sobre su padre iba mu- desentendió con ella por una discusión familiar
cho más allá de esa desventura en la finca. Poco y que por esa razón le hizo un trabajo.
tiempo después de la consulta, su padre fue víc- Como vemos, las acusaciones del daño supo-
tima de una puñalada en un intento de robo, de nen mucho más que un dispositivo de distinci-
un accidente de tránsito mientras andaba en bi- ón social o étnica con colectivos subordinados
cicleta y de una cirugía de urgencia que el curan- o en función de procesos de individuación y
dero predijo. Luego de la cirugía también perdió autonomización social activados por la envidia

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a las personas exitosas o la estigmatización de se articulan como un lenguaje inmanente a las


personas consideradas moralmente inferiores. relaciones sociales.
No solo suponen una trama de relaciones que Por otro lado, la hechicería también encarna
tienen que ver con la corporalidad, la persona y formas invisibles de violencia intersubjetiva que
el mundo espiritual, sino que se articula como matizan la imagen dominante de la solidaridad
una forma de lenguaje intersubjetivo del con- andina que proyecta una vida social libre de con-
flicto cotidiano entre personas afines. flictos. Esa articulación entre la reciprocidad y la
agresión llamó la atención de algunos analistas
Una socio-cosmología de la agresión que se restringieron a su dimensión puramente
invisible societal. Con foco en la población aymara boli-
viana, Xavier Albó se refirió a esa complementa-
En la región de los Andes Centrales de riedad como “paradojal”, señalando que:
Argentina el daño constituye un modo de re-
lación que funciona tanto como eje del cuerpo La presión positiva y negativa ejercida por el
y la persona (sustancias corporales y espíritu) grupo, junto con otros factores que varían según
como del entramado de relaciones más exten- las circunstancias, determinan con frecuencia
sas (otras personas, entidades sagradas). Es un que esta identidad del individuo frente al grupo
espacio de reconfiguración de la persona y su se manifieste bajo la figura de mutua descon-
entorno que vincula aspectos morales, sagrados fianza y envidias; eventualmente también bajo
y corporales en una concepción integrada que la forma de agresividad mas o menos reprimi-
difiere del modelo dualista que caracteriza las da que en algunos casos puede llegar a salir a
versiones eruditas del individuo como un com- la superficie, en forma de pleitos, demandas, o
puesto de cuerpo y espíritu-mente en tanto incluso violencia (ALBO, 2002, p. 15).  
elementos independientes. Pero difiere tambi-
én de la concepción puramente interaccionista En la región andina argentina, algunos
de individuos autónomos en relaciones relati- trabajos han ahondado en esta lectura. Por
vamente independientes entre si, mostrando ejemplo, Isla (2002, p.15) llama a considerar
influencias mutuas y límites difusos entre ellos integradamente tanto la persistencia de prác-
como con las entidades o fuerzas sagradas. ticas vinculadas con la reciprocidad andina, de
La hechicería es una práctica habitual en una sociabilidad intensa atravesada por víncu-
la población rural y urbana que ocupa un lu- los de parentesco y de familiarización, como
gar central en las zonas más subordinadas de los conflictos políticos que afloran en la puja
las relaciones sociales, étnicas y religiosas de la de facciones y en el interior de las familias.
región, pero que también se extiende más allá Las formas clásicas de analizar esta relación
de ese espacio social, étnico y religioso. Sin em- entre hechicería y conflictividad social postula-
bargo, intentamos mostrar como su presencia ron que esta última era un sustrato de la prime-
en la vida cotidiana es mucho más que un efec- ra. De ese modo, la hechicería fue leída como
to de esas relaciones de subordinación o ascen- manifestación funcional o epifenómeno de un
so social, constituyendo una trama en la que conflicto social dado. Según Favret-Saada el
las relaciones de distinción social son solo una funcionalismo implícito de tales análisis, centra-
parte de un proceso más complejo en donde la do únicamente en las acusaciones de hechicería,
corporalidad, la persona y el mundo sagrado debe ser releído en una clave diferente donde la

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agresión por hechicería no solo no sea reducida 2. El trabajo de campo se realizó en dos visitas durante 2003
a los sistemas de acusación y distinción social y tuvo financiamiento del Consejo de Investigaciones
(FAVRET-SAADA, 2009, p. 147), sino que sea Científicas y Técnicas (CONICET) y la Agencia de
homologada a la agresión social en un mismo Promoción Científica y Tecnológica (APCyT). La estancia
nivel analítico (FAVRET-SAADA, 1977). en Campo Quijano y la red de personas que nos permitie-
Si consideramos esa extensión entre lo socio- ron realizar esta investigación hubieran sido imposibles sin
-cosmológico como parte de un mismo conti- la amabilidad y generosidad de la familia Torres.
nuo, creemos que algo puede decirse sobre los 3. Referencias a los estados “internos” y a nociones vin-
valores que ordenan esos regímenes de produc- culadas con la “energía” resultaban habituales entre
ción de subjetividad. Los principios relaciona- activistas indigenistas que articulaban aspectos de los
les resultan significativos desde una perspectiva modos de vida andinos con un lenguaje cercano a la
amplia, la hechicería muestra modalidades de la espiritualidad Nueva Era.
agresión y el conflicto intrafamiliar y vecinal que 4. No reducir el daño a sus funciones de delimitación social o
subrayan un elemento beligerante en la vida coti- étnica no significa negarle de plano ese lugar. En al menos
diana que bien podría leerse en continuidad con dos relatos hemos detectado la referencia a “inmigrantes
el análisis sobre el faccionalismo político estruc- bolivianos” como particularmente peligrosos y causantes
turado en base al parentesco y las relaciones so- de hechicería. Una imagen que sin duda se monta sobre
ciales extensivas que señala la literatura del área. una operación de diferenciación socio-étnica vinculada a
Avanzar en la indagación sobre como la agre- la imagen de lo “boliviano” como más cercano a lo “indí-
sividad andina permite complejizar la imagen gena” y, por ende, a un modo relacional de lo “sagrado”.
dominante de la solidaridad social mostrando
como ambos valores, paralelos y simultáneos, Referencias bibliográficas
constituyen un orden relacional, puede encon-
trar en la violencia invisible que el daño pone de ALBÓ, Xavier. Identidad étnica y política. La Paz: CIPCA,
manifiesto una pista de trabajo que extienda las 2002.
relaciones sociales a los modos de vínculo más CAROZZI, María J. Antiguos difuntos y difuntos nue-
amplios con lo no humano. Sugerimos entonces vos. Las canonizaciones populares en la década del ’90.
que si el faccionalismo social constituye un ele- In: Míguez, D.; Semán, P. (eds.), Entre santos, cumbias
mento constitutivo de las relaciones societales, y piquetes. Las culturas populares en la Argentina recien-
la agresión invisible que encarna el daño puede te, Buenos Aires: Biblos. 2006. p. 99-125.
pensarse también como homologable en un CARRITHERS, Michael; COLLINS, Steven; LUKES, Steven
continuo más amplio que considere los aspectos (orgs). The category of the person: anthropology, philosophy, his-
sociales y cosmológicos en un horizonte común. tory. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
DE LA CADENA, Marisol. Indigenous Mestizos:
Notas The Politics of Race and Culture in Cuzco, Peru,
1919–1991. Durham, NC: Duke University
1. Algunas ideas presentadas aquí fueron discutidas en Press, 2000.
el Grupo de Trabajo Antropologia da Feitiçaria, du- DOUGLAS, Mary. Witchcraft Conffesions and Accusations.
rante la IX Reunión de Antropología del Mercosur. London: Tavistock, 1970.
Agradezco a los participantes y organizadores de ese EVANS-PRITCHARD, Edward E. Witchcraft, oracles
espacio por sus comentarios. Agradezco también a los and magic among the Azande. Oxford: Clarendon
evaluadores anónimos por la revisión y las sugerencias. Press, 1976 [1937].

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 141-157, 2014


La violencia invisible. Hechicería, agresión y persona en los Andes | 157

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autor Nicolás Viotti


Investigador Asistente del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas (CONICET)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 141-157, 2014


artes
da vida
161

A vida como luta

Jorge Luan Teixeira


Museu Nacional, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p161-168 obter progresso, melhorar de condição – o que


ou permite sair da condição de morador, ou a
Se um conceito pudesse condensar a visão que torna mais confortável. (3) Os moradores lu-
os moradores das fazendas de Catarina, no Sertão tam com os animais: com o “gado” (bovinos)
dos Inhamuns (CE), têm da própria condição e e/ou com a “criação” (ovinos e caprinos). Se a
trabalho, esse conceito seria luta. Ainda que se luta é “com” é porque é a partir dessa forma de
trate de uma noção muito ampla, é possível pen- combate e esforço que o morador trabalha pela
sar em pelo menos quatro usos relacionados dela. própria melhora: ao lutarem com os animais,
(1) A vida é a própria luta, viver é lutar con- os moradores obtém um ganho maior, sendo
tra condições vistas como precárias, é enfren- remunerados ou na “sorte” (uma porcentagem
tar o sofrimento, as Secas, os revezes e persistir. dos bichos nascidos), ou em dinheiro. A luta,
(2) Lutar é também ter coragem e disposição entretanto, também é contra os animais, pois
para trabalhar duro, suportando o desgaste e o os “bicho bruto”, ao contrário do ser humano,
cansaço ocasionados pela peleja. Aqui, como não são dotados de “entendimento” (razão) e,
no primeiro sentido, lutar dignifica o traba- por isso, escapam à agência dos homens, nem
lhador, é duplamente produtivo: o que está em sempre se submetem à sua vontade. (4) Os
jogo, além da produção econômica, é a produ- moradores não lutam sozinhos, mas com os
ção da pessoa moral. Quando se vive “na terra parentes, com os vizinhos, com outros mora-
dos outros” – isto é, quando não se é o dono dores e mesmo com os patrões, os donos da
da propriedade em que se vive e trabalha – lu- terra. Há tanto “gente boa” para se lutar quan-
tar também está relacionado ao empenho para to “gente ruim”.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


162 | Jorge Luan Teixeira

As fotografias aqui apresentadas foram fei- do conceito de luta numa tentativa de interpre-
tas durante o ano de 2013. Elas fazem parte tação e exposição por meio da imagem fotográ-
de um ensaio maior que integra a minha dis- fica. Assim sendo, as fotografias não compõem
sertação de mestrado, que tratou da relação de uma narrativa sequencial, mas apresentam situ-
morada em Catarina e da mobilidade dos mo- ações diversas em que a noção de luta está em
radores. As imagens exploram os significados jogo para esses trabalhadores.

autor Jorge Luan Teixeira


Doutorando em Antropologia Social / Museu Nacional, RJ

Recebido em 14/04/2014
Aceito para publicação em 12/09/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 161-168, 2014


A vida como luta | 163

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A vida como luta | 165

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cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 161-168, 2014


A vida como luta | 167

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168 | Jorge Luan Teixeira

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entrevista
171

Entrevista com Carlo Severi

entrevistador:Edson Tosta Matarezio Filho


tradução: Ana Caroline Amorim Oliveira, Edson Tosta Matarezio Filho,
Juliano Bonamigo, Lucas Barbosa Carvalho e Morgane Avery.
revisão: Ana Caroline Amorim Oliveira, Edson Tosta Matarezio Filho,
Juliano Bonamigo, Renata Freitas Machado, Thaiana Balbino
Santos e Thiago Haruo Santos.

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p171-183 antropologia, entre psicanálise e antropolo-


gia, entre leis universais e particularidades
Esta entrevista, concedida pelo Prof. Carlo etnográficas, possibilidades de tradução, ín-
Severi a mim, aconteceu no âmbito da produ- dios na universidade.
ção do documentário O que Lévi-Strauss deve aos Severi comenta também sobre sua relação
Ameríndios, lançado em 2013. Por uma sugestão com o mestre francês, principalmente na épo-
do Prof. Carlos Fausto, entrei em contato com ca de seu trabalho de campo com os Kuna,
Severi, que estava no Rio de Janeiro naquele mo- do Panamá, em finais dos anos 1970 e início
mento e logo se entusiasmou com o projeto, cujo dos 1980. Neste período, ele estuda os can-
objetivo era produzir um filme de divulgação tos xamânicos de cura entre os Kuna, cantos
científica sobre algumas ideias de Lévi-Strauss. estes que estão na base do célebre artigo de
Contudo o foco deste filme didático era Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. O que
não somente reunir opiniões sobre concei- o antropólogo descobrirá em campo, contu-
tos difíceis do estruturalismo colhidas dos do, questionará a comparação feita por Lévi-
maiores especialistas na obra lévi-straus- Strauss no artigo entre o xamã e o psicanalista.
siana, mas atingir esses conceitos pelo viés Carlo Severi é atualmente diretor de estu-
da influência indígena sobre Lévi-Strauss, dos da cátedra “Antropologia da Memória”,
o que tornava o desafio mais interessante. na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Achei excelente a oportunidade de conversar (EHESS – Paris), e diretor de pesquisas no
com um ex-aluno do antropólogo francês – Centre National de la Recherche Scientifique
seu orientador de tese “não-oficial”, o oficial (CNRS). Dentre seus temas de estudo, pre-
foi o etnopsicanalista Georges Devereux – sentes em diversos artigos e livros, destacam-
para abordar questões pertinentes ao tema -se os dos rituais, da memória e das imagens.
do filme. Assim, o que o leitor encontrará Escreveu com Michael Houseman uma das
nas páginas que seguem de conversa com obras mais relevantes sobre a análise de rituais
Severi é uma entrevista focada em suas apre- na Antropologia, Naven, ou le donner à voir.
ciações sobre termos como estrutura, relação Essai d’interprétation de l’action rituelle (1994).
entre natureza e cultura, oposições binárias Muitos de seus textos, incluindo traduções em
etc. Mas não só isso; os temas relacionados português, estão disponíveis em seu site carlo-
a Lévi-Strauss são inúmeros e a conversa severi.net, juntamente com informações sobre
se espraia para a relação entre filosofia e o autor.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


172 | Entrevista com Carlo Severi

Como foi seu primeiro contato com Lévi- esta maneira de opor as coisas estava também
Strauss? Conte a impressão que mais lhe marcou no objeto que ele estudava. Quer dizer que, de
quando o conheceu. fato, era antes um estilo de pensamento ame-
CS: Eu o conheci em 1979, mas tive um ríndio, que podemos ver hoje, que deixou uma
primeiro contato em 1977, quando ele acom- marca profunda em seu próprio pensamento.
panhou meu trabalho de campo. A primeira Então, quando Lévi-Strauss fala de um tipo de
coisa que eu gostaria de dizer sobre Lévi-Strauss pensamento ameríndio que ocupa seu espírito,
é que, quando éramos estudantes, imaginava- que ele deixa de alguma forma funcionar em
-se — acho que ainda imaginam — que era seu espírito, quando se consagra à análise das
um homem sobretudo apaixonado pela teoria, mitologias do continente [americano], de fato,
pelo pensamento e pela investigação filosófica. há qualquer coisa de verdadeiro lá. Ou seja, ele
De fato, era alguém que à primeira vista não sentiu profundamente uma fascinação por esse
aceitava absolutamente que seus alunos falas- tipo de pensamento e tornou-se de certa ma-
sem sobre estrutura, oposições binárias e coi- neira alguém que o retoma.
sas assim. Ele tornava-se extremamente frio e
mudava o tema da conversa. Por outro lado, Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria
se alguém — e foi o meu caso — lhe escre- de comentar sobre esse encontro de pensamentos?
vesse ou fosse vê-lo e pedisse um encontro Alguma coisa mais específica que ele tenha desen-
sobre um problema empírico bem pequeno e volvido nesse sentido?
específico — não pequeno, mas específico — e CS: Eu diria que certamente existiu esta in-
complicado, então ele poderia ter uma reação fluência, mas também sempre houve por parte
de verdadeiro entusiasmo. Eis alguém que era dele uma preocupação de ter uma apreensão
apaixonado pelo detalhe, apaixonado pela ob- do todo. Esta, ele reivindicava como um pa-
servação e que exigia por parte dos jovens dos trimônio do antropólogo. Então, desse ponto
quais ele acompanhava a pesquisa uma atenção de vista, Lévi-Strauss, de um modo completa-
meticulosa para a etnografia. Por isso, natu- mente consciente, empreendia talvez uma es-
ralmente, foi uma grande surpresa para mim, pécie de mimese do pensamento ameríndio, é
que vinha de uma faculdade de filosofia e que claro, mas também reivindicava uma distância.
pensava achar um professor que só falaria de Isso está menos em voga hoje em dia, mas, em
oposições binárias ou da relação entre natureza todo caso, é algo que é preciso enfatizar. Há
e cultura. uma ambição de generalização em Lévi-Strauss
que não exclui de forma alguma a atenção à
Oposições estas, como a relação entre natureza etnografia, mas que permanece apesar de tudo
e cultura, que foram bastante criticadas, não é? como fonte de seu pensamento.
CS: É absolutamente certo que todos os
que colocaram em questão o pensamento lévi- Mas há um limite de tradução entre os dois
-straussiano e sobretudo o caráter às vezes esque- pensamentos, não é? Eu tenho a impressão de
mático dessas oposições — Natureza e Cultura, que quando Lévi-Strauss fala de um “conjunto
pensamento selvagem e pensamento científico, de livros e ideias que passaram através” dele, dos
o Ocidente e tudo o que não é o Ocidente quais ele foi uma “espécie de suporte anônimo”,1
etc. — todos aqueles que o criticaram, às ve- de que os mitos se pensavam na cabeça dele, pa-
zes com razão, certamente não perceberam que rece algo muito próximo da imagem que ele faz

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 171-183, 2014


Entrevista com Carlo Severi | 173

também dos mitos se pensando entre si. Parece Você mencionou Rousseau; considerando o
algo que evoca os universais do espírito huma- pensamento filosófico pode-se dizer então que,
no, mas, ao mesmo tempo, como você disse, ele com Lévi-Strauss, pela primeira vez na história
tem uma atenção tão grande pelos detalhes, e às do pensamento, digamos, “universal”, o pensa-
vezes esta atenção é negligenciada na leitura da mento indígena é colocado para dialogar em pé
obra dele. de igualdade com o filosófico? Isso seria um divisor
CS: Sim, mas não sei se eu colocaria as de águas, a fundação de uma antropologia total-
coisas desta forma. Os problemas de tradução mente original? Com as Mitológicas, com toda
do pensamento lévi-straussiano se apresenta- essa reflexão...
ram de modo concreto, principalmente no CS: Sim, não tenho certeza de que possa-
mundo anglo-saxão, o mundo inglês, onde mos realmente encontrar em Rousseau um diá-
temos uma dificuldade de compreender sua logo direto e um reconhecimento da dignidade
mensagem e em que foi criticado de maneira do “pensamento selvagem”. O que podemos
bastante fértil. Estou pensando em antropó- encontrar nele é a liberdade de pensar o ser hu-
logos como James Leach e Rodney Needham. mano em termos gerais, isso sim. Como você
E penso que o fenômeno inverso é produzi- vê, sempre há, de uma parte, a análise específi-
do na escola brasileira de Ciências Sociais, na ca do mundo ameríndio, mas de outra também
qual, ao contrário, foram sensíveis a vários há uma ambição generalizante. Enquanto algo
aspectos de seu pensamento. Portanto há, geral é hoje em dia frequentemente pensado
de alguma maneira, se você quiser, antes dos como estrangeiro à realidade, etnocêntrico às
ameríndios, relações com universos culturais vezes. De fato, a escolha de pensar... a escolha
que são diferentes da tradição francesa, mas de generalizar é também uma liberação para
que se mostraram ou resistentes ou bastante o exercício do pensamento. Porque se você
sensíveis a seu pensamento. É evidente que a deve pensar as coisas de tipo geral, deve incluir
obra de Lévi-Strauss mergulha suas raízes em muitos materiais que vão além da tradição oci-
uma tradição muito francesa e que é certa- dental, se você tem como projeto pensar algo
mente Jean-Jacques Rousseau o personagem a propósito do humano em geral. Então, esta
que mais a influenciou. Mas, por outro lado, ambição de generalizar não é algo em Lévi-
ele foi objeto de uma influência, e é certa- Strauss que seja contraditório com sua fide-
mente em Boas e na tradição morfológica lidade à etnografia, muito pelo contrário, é a
alemã que é preciso procurar a fonte desses mesma lógica.
grandes projetos de antropologia geral que
sempre defendeu. Não seriam, então, dois Lévi-Strauss, um
Como você pode ver, tento contextualizar mais próximo de leis universais e outro atento às
um pouco essa comunicação com os ame- especificidades da etnografia?
ríndios, que tem sua realidade, mas que foi CS: Eu diria que é o mesmo Lévi-Strauss,
também filtrada pelo trabalho de outros in- que são duas ambições que se encontram
telectuais tanto na América como na Europa. igualmente em posição de raízes de seu pen-
Então, o que você está tentando mostrar é algo samento. Hoje tendemos sempre a suspeitar
bastante singular em Lévi-Strauss, mas que da ambição generalista da antropologia como
também talvez precise ser recolocado em uma uma maneira de, eventualmente, assumir o
situação mais complexa. risco de trair a realidade imediata, ou seja, a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 171-183, 2014


174 | Entrevista com Carlo Severi

apreensão detalhada das coisas. Mas ele tentou influenciou profundamente Lévi-Strauss.
fazer as duas coisas. Essa é a sua originalidade. Tivemos ocasião de falar várias vezes disso,
E também talvez seja essa a sua herança in- porque, quando eu era um jovem antropólo-
telectual mais importante. Então, como você go, escrevi um ensaio sobre o conceito de es-
vê, tentei um pouco mostrar um diálogo com trutura, argumentando que, na verdade, ele
sua perspectiva, ressaltando que há, mesmo é muito próximo ao conceito de forma origi-
assim, ainda sempre um outro aspecto, que nária que Goethe havia proposto nos escri-
é essa ideia de um pensamento livre, porque tos botânicos e de anatomia. A ideia de uma
contém o desafio de dizer algo comum à hu- forma que contenha não só uma manifesta-
manidade inteira. E isso é uma liberdade, não ção oriunda no tempo, por exemplo, uma
apenas um risco ou um limite no pensamento planta, mas também que contenha todas as
estrutural. plantas possíveis. Você vê que no conceito de
estrutura há, ao mesmo tempo, essa ideia de
Com relação a alguns antropólogos, como que podemos organizar os dados por meio
Anne-Christine Taylor, que diz que os “con- desse conceito, mas também é tão geral, que
ceitos da antropologia estrutural” teriam seus permite pensar as transformações que a rea-
fundamentos genealógicos no encontro de Lévi- lidade não contém, coisas latentes, por assim
Strauss com os índios2, o que o senhor pensa desta dizer. Um mito abarca os desenvolvimentos
proposição? latentes que podem se realizar em uma parte
CS: Eu estou de acordo. Como já lhe ou em outra do continente ameríndio. Há
disse, Lévi-Strauss, tendo trabalhado de geralmente essa ideia em Lévi-Strauss e ela
maneira intensa em materiais ameríndios e não é ameríndia, é uma ideia europeia que
sobretudo o mito, às vezes corre o risco de ecoa com a morfologia própria da tradição
atribuir coisas próprias do pensamento, da dos índios da América. De fato, existem
tradição mitológica ameríndia, à humani- duas raízes para isso, uma com certa tradição
dade inteira. Portanto, por exemplo, nossos intelectual europeia e um reconhecimento
amigos africanistas tiveram, frequentemen- de uma possível explicação do pensamen-
te, dificuldades em admitir que a mitologia to ameríndio a partir daí. Então, acho que
africana possa ser tratada verdadeiramente você tem razão de destacar esta espécie de
da mesma maneira que Lévi-Strauss propôs mimetismo entre os ameríndios e o pensa-
para o pensamento, para a mitologia ame- mento estrutural que Anne-Cristine Taylor
ríndia. Não estou dizendo que não houve escreveu. Mas penso também que podemos
tentativa – claro que houve –, mas, no final ressituar esse mimetismo — que é um mime-
das contas, efetivamente, as coisas são me- tismo de alguém que está em diálogo direto
nos evidentes, para os africanistas em parti- com os materiais e que procura explicá-los,
cular, mesmo que se possa pensar também em uma tradição intelectual que vem de lon-
a Oceania. Porém, ao mesmo tempo, não ge, que vem também da Europa. Por isso,
devemos esquecer que as raízes históricas por assim dizer, tem um único Lévi-Strauss,
do pensamento estrutural são parte de uma mas há várias tradições em seu pensamento.
tradição, o pensamento morfológico alemão Então, eu diria sobretudo dessa maneira: an-
do século XIX. É certo que um grande poeta tes de dizer que há dois Lévi-Strauss, há um
como Goethe, também um grande pensador, só Lévi-Strauss no qual esse encontro se dá.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 171-183, 2014


Entrevista com Carlo Severi | 175

É curioso, ouvindo o senhor falar, eu percebo sociedades ameríndias. Posto isso, já que
o contrário do que propus. É como se fosse uma você quer que discutamos esse assunto, não
lévi-straussianização do pensamento ameríndio. penso que se possa falar de filosofia amerín-
CS: Não! As duas coisas estão lá! dia da mesma maneira que se possa falar de
filosofia na Europa. Há uma falta de media-
É como se houvesse uma espécie de afinidade ção aí, na minha opinião, um pouco rápida.
eletiva entre o que ele percebe nos índios e certa Poderíamos dizer, ao contrário, algo talvez
parte da formação dele. mais interessante, mais lévi-straussiano. O
CS: Necessariamente, Lévi-Strauss foi que poderíamos dizer é que a filosofia, toda a
formado na Europa, fez escolhas, optou por filosofia europeia em princípio, não passa de
uma tradição que era aliás muito estran- um exemplo de um grande ecossistema inte-
geira à tradição francesa especificamente. lectual de pensamento que atravessa todas as
Portanto, foi com Boas que aprendeu tudo culturas do planeta. Portanto, é uma forma
isso na antropologia norte-americana. Foi organizada de uma ecologia do espírito que é
Boas quem trouxe à terra americana esta tra- um fenômeno de espécie.
dição, ele fez uma tese sobre o pensamento Então, diria antes o inverso – estou ten-
de Goethe. Era alguém que já tinha assimi- tando de novo inscrever-me em um diálogo
lado esta maneira de pensar e que a levou à com o que você faz. Na minha opinião, esta
América. Então, ele fez o papel de ancestral, não é a maneira lévi-straussiana de dizer as
de fundador de uma nova antropologia no coisas. Eu colocaria antes que a filosofia eu-
continente, ninguém viu o que havia por trás ropeia não é mais do que uma instância, um
dele, mas Lévi-Strauss percebeu muito bem. exemplo de um ecossistema de pensamento
Não se trata de negar que haja um contato que atravessa todas as outras culturas e que
direto com materiais ameríndios, claro que é dessa maneira que se deve compreender o
há. Mas vejo as coisas de maneira, talvez, Ocidente, como uma cultura entre outras,
mais complexa. Quer dizer: é uma das fon- e não atribuir aos ameríndios o exercício
tes — há outras em sua obra. É verdade que típico, estabelecido há dois mil e quinhen-
ele fez entrar na cultura europeia formas de tos anos, de uma disciplina específica que se
racionalidade que descobriu entre os índios chama filosofia, que tem problemas especí-
da América, mas foi um certo itinerário in- ficos debatidos em instituições, com media-
telectual que lhe permitiu compreender isso. ções culturais próprias ao Ocidente. É antes
Portanto não se trata de decidir se é Lévi- o inverso que se deveria dizer: quando os
strauss que lévi-straussiza os ameríndios, ou europeus fundam a filosofia, eles retomam,
se são os ameríndios que deram elementos sob uma forma específica, uma atividade de
a Lévi-Strauss. Os dois fenômenos ocorrem. espécie que é a criação de uma conceitualiza-
E penso que ele tem sempre um equilíbrio ção do mundo exterior e, me parece, de uma
tal em sua obra, que deixa falar os amerín- subjetividade.
dios em seu trabalho. Então, historicamen-
te, foi uma espécie de grande abertura que Como ele próprio diz que tem “três aman-
ele provocou na cultura europeia, que pôde tes”, que são a psicanálise, a geologia e o marxis-
pela primeira vez escutar, por assim dizer, mo, o pensamento ameríndio seria uma quarta
perceber essa lógica em funcionamento nas “amante”?

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 171-183, 2014


176 | Entrevista com Carlo Severi

CS: Bem, no que diz respeito à psicanálise, durante quase trinta anos. Lévi-Strauss não
as coisas param rapidamente e estou bem se- era disso, não era um admirador de Lacan, tal
guro em dizê-lo, já que sempre trabalhei tanto como o conheci, mas não se pode dizer que
com Lévi-Strauss quanto com um psicanalista, não entendia. Ele sabia muito bem do que se
Georges Devereux, que foi meu orientador de tratava. Mas – e é preciso dizer as coisas como
estudos oficial, enquanto Lévi-Strauss era meu elas são — não havia uma posição homogênea,
não-oficial, por assim dizer. Este cessa toda re- como eu acreditava quando era estudante, que
lação com a psicanálise muito cedo, no final pusesse gente como Althusser, Lacan e Lévi-
dos anos 1950. Portanto, quando atribuímos Strauss em um grande movimento geral, em
a ele uma simpatia pela psicanálise, na ver- uma espécie de grande coordenação de três
dade estamos tomando as coisas de maneira perspectivas. Foi exatamente o contrário, na
demasiadamente superficial. Eu vim de uma realidade. O que acontecia é que todo mundo
formação psicanalítica, minha tese era sobre aprendeu muito de Lévi-Strauss, ao menos em
o conceito e sobre a etnografia que temos, Paris, e sempre se reservou para ele um papel,
que diz respeito à eficácia simbólica, portan- realmente, de ancestral de algum estilo de pen-
to a comunicação entre o corpo e o espírito. samento. Mas não é por isso que ele se deixava
É um dos ensaios nos quais Lévi-Strauss fala colocar no mesmo pacote, junto de um certo
explicitamente de psicanálise e expõe suas pró- número de seus contemporâneos. Em absolu-
prias ideias sobre o inconsciente. Quando o to! Provavelmente, uma das primeiras coisas
conheci, era um homem discretamente hostil que descobri é que, na esfera privada, era mui-
à psicanálise. Portanto, não é nada daquilo que to intransigente e, aliás, mais tarde, também
imaginamos hoje, ou seja, alguém que estava em público, sobre um certo número de coisas
em uma posição incondicional sobre a prática e que as pessoas assimilavam de bom grado a um
as teorias psicanalíticas. Ele amava Freud, com grande movimento do estruturalismo. Ele não
certeza, mas odiava Lacan. E, como você vê, gostava absolutamente que seu pensamento
tento dar-lhe uma imagem um pouco mais re- fosse associado de maneira apressada a toda
alista do que era este homem. Ele odiava Lacan uma série de coisas. Sustentava mesmo assim
e era também muito desconfiado em relação à um certo rigor na definição do projeto de an-
psicanálise mais tradicional. Logo, esse campo tropologia, e penso que é um de seus grandes
do saber foi uma decepção para ele. O marxis- méritos também. No fundo, poderia ter sido
mo também, o marxismo... mais flexível e isso lhe daria ainda mais reno-
me, ainda mais público, mas ao contrário, isso
Ele comentava que apesar de Lacan dizer que ele não fez. Para ele importavam os limites do
tinha um débito grande com ele, não entendia o empreendimento antropológico como uma das
que Lacan escrevia3. formas de manter sua capacidade de descober-
CS: De fato, ambos se frequentavam mui- ta. Por isso, permaneceu um homem muito
to e se conheciam bem. Quando Lévi-Strauss singular e, no fundo, muito solitário.
dizia que não compreendia, a partir de um
certo momento, o que Lacan escrevia, era uma Você ia falar sobre a influência do marxismo,
maneira de não participar dessa espécie de fas- e acabei te interrompendo.
cinação e desse papel quase enfeitiçador que CS: Ah! A influência do marxismo, mais
teve a figura de Lacan sobre a cultura parisiense uma vez, é um pouco como em relação à obra

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Entrevista com Carlo Severi | 177

de Freud. Lévi-Strauss admirava Freud pelo outros, por seu ensaio sobre a “eficácia sim-
que ele era, ou seja, um grande positivista. bólica”. Já tinha escrito minha primeira dis-
Como não se quer ver hoje em dia, mas de fato sertação sobre isso pela Faculdade de Milão,
era isso, foi um evolucionista e um positivista. orientada por um psicanalista, Franco Fornari,
E, no fundo, o que amava muito em Marx era que era na época o presidente da Sociedade
a ambição científica. Disse muito claramente Psicanalítica Italiana. Resisti um pouco em in-
que Marx e o marxismo eram coisas comple- terpretar as coisas de longe assim, essa assimi-
tamente diferentes, que o comunismo inter- lação que Lévi-Strauss tinha feito, de maneira
nacional não tinha sua simpatia. É antes um fascinante entre o trabalho do xamã e o do psi-
homem que se situava em uma posição mode- canalista ocidental. Então, simplesmente, fui
rada, mas com uma certa simpatia pela direita. para os Kuna, passei o verão de 1977 com eles
Bem, é preciso dizer as coisas como elas são. e devo dizer que descobri – aliás como outros,
A geologia, ao contrário, penso que você está não estou sozinho – que o canto xamânico
completamente com razão, era um entusiasta que Lévi-Strauss estudou e que utilizou para
da geologia e deste tipo de ciência natural, que fazer essa comparação entre o psicanalista e o
efetivamente era muito próxima da morfologia xamã, era cantado em uma variação de Kuna
alemã, e portanto, um pensamento da forma, que ninguém compreende se não é iniciado.
que se escalona sobre uma temporalidade quase Então, sua explicação foi inteiramente fun-
inimaginável. E tinha essa fascinação pelas dis- dada sobre a veiculação do sentido entre o
tâncias temporais quase infinitas. Havia, talvez, xamã e a mulher que dava à luz, como você
em sua obra, algo que estudei no pensamento deve saber, e descobri simplesmente que lá,
morfológico, uma fascinação por aquilo que os com uma enorme probabilidade, a mulher em
evolucionistas do século XIX chamaram de a questão não compreendia praticamente nada
“Profecia do Passado”. Ou seja, a aplicação de do que o xamã lhe dizia. Veja, era embaraçoso.
um método profético não mais no futuro, mas E a primeira coisa que fiz [ao voltar do cam-
às origens da humanidade – acho que ele sem- po] foi escrever para Lévi-Strauss uma carta
pre teve uma grande admiração por esse pro- muito longa, na qual lhe contei um pouco do
jeto, muito visível em alguns de seus escritos. que tinha visto em campo e toda uma série
Portanto, em meio a tudo isso, se encontra um de detalhes, pois eu havia estudado seu texto,
grande fascínio intelectual pelo pensamento não apenas seu ensaio; ido à Suécia procurar
ameríndio. Isso, sim, penso ser perfeitamente as edições Kuna e inglesa do canto que havia
verdadeiro. sido publicado. Eu já tinha inclusive traduzido
e publicado esses textos. Depois, quando esti-
Severi, você gostaria de comentar alguma ve com os Kuna, vi que as coisas se passavam
coisa mais relacionada ao seu trabalho de campo assim e é por isso que ele aceitou seguir meu
com os Kuna4, com seu debate com Lévi-Strauss trabalho.
em relação à eficácia do simbólico? Aliás, era um problema empírico emba-
CS: Veja, isso é um grande tema. Posso raçoso, que certamente teve consequências
simplesmente lhe dizer que antes de ver Lévi- sobre suas teorias, e é por isso que o que fiz
Strauss pela primeira vez, eu lhe escrevi uma lhe interessou. Assim, aceitou acompanhar
longa carta. Então, o que estava acontecen- meu trabalho até sua morte. Permaneci sem-
do era que eu estava fascinado, como muitos pre como alguém que ia vê-lo, e lhe contava

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178 | Entrevista com Carlo Severi

o que passava pela minha cabeça para saber daquela do grande teórico sempre perdido em
o que ele pensava. Nesse sentido, acho real- seus pensamentos, não era assim. Foi um gran-
mente que teve um papel de mestre em tudo de teórico, eu penso, que, ao mesmo tempo,
o que pude fazer. Mas é também por isso que era muito consciente de que a organização de
eu tinha vontade de falar de forma realista. O uma forma específica de pensar sobre um tema
que quero sublinhar é que Lévi-Strauss teve podia abrir a via à compreensão de fenômenos
um interesse extraordinário por este problema gerais. A verdade é essa.
e foi extremamente fiel, no sentido em que Portanto, não são dois Lévi-Strauss. Só há
ele poderia ter ignorado, por exemplo, o que um, mas há uma relação entre essas duas es-
eu fazia e me deixar de lado, mas, ao contrá- tratégias que faz o essencial de sua obra, mui-
rio, disse: “eis alguém que encontrou um de- to mais do que o termo estruturalismo. Isso é
talhe interessante que pode mudar as coisas”, realmente o que posso dizer. Quer dizer que
e ocupou-se desse assunto comigo. Então, ele acreditava firmemente que, a partir de um
esta é a razão pela qual conheci Lévi-Strauss, detalhe interessante, pode-se procurar o se-
pois, como estudante de filosofia em Milão, gredo de uma lei geral. E é, no fundo, o que
na Itália, eu lhe escrevi uma grande carta para eu mais admirava nele, enquanto homem e
explicar que ele tinha se enganado mais ou em sua obra. Era sua capacidade de perceber
menos sobre tudo [risos]. [E Lévi-Strauss res- fenômenos isolados que podem abrir a pos-
pondeu:] “Talvez possamos falar sobre isso. sibilidade de generalização, uma vez que sua
Você não é etnólogo ainda, vire etnológo. Se complexidade específica fosse compreendida.
você quer se tornar etnólogo, vou lhe ajudar”. Veja, no fundo, ele seguia a grande instrução
E foi o que fez. Ao seu lado, encontrei um de Goethe, quer dizer, frente à multiplicidade
assunto absolutamente interessante, ao qual inimaginável de fenômenos da natureza ou do
dediquei alguns anos de trabalho. pensamento, “procure o exemplo mais simples
Ele recebeu dezenas de pedidos de orienta- e descreva cuidadosamente sua complexidade
ções de tese sobre o conceito de oposição biná- específica”. Eis, por assim dizer, em todo caso,
ria, ou de Natureza e Cultura, o pensamento. o estilo intelectual que encontrou, talvez tam-
E recusou todos! Não só porque não tinha bém entre os ameríndios.
muito tempo, ele tinha poucos estudantes, e
quando o conheci, ele estava quase se aposen- E o fato de você perceber que a paciente do
tando. Enfim, estava no fim de sua carreira. xamã kuna não entendia o que era cantado põe
A aposentadoria veio talvez seis ou sete anos em xeque a comparação que Lévi-Strauss fez entre
mais tarde. Mas ainda dirigia o Laboratório o xamã e o psicanalista5?
de Antropologia Social, que havia fundado. CS: Fiz a mesma pergunta e ele me res-
Portanto, Levi-Strauss era esse homem, quer pondeu. Eu preparava minha defesa de tese,
dizer, alguém que ostentava certa alergia pelas de modo que deveríamos nos encontrar al-
teorias e pela filosofia. Não queria ouvir fa- guns dias depois para a banca. E me respon-
lar de filosofia. Mas, ao mesmo tempo, podia deu: “escute, isso quer dizer que o xamanismo
passar uma hora ou duas com um estudante é ainda mais parecido com a psicanálise do
para ver como organizava sua etnografia. Isso, que eu pensava” [risos]. Então, a partir des-
sim, era apaixonado por esse gênero de coisas. se momento, era naturalmente um paradoxo:
E é bom que se tenha uma imagem diferente o que ele quis dizer é que elas não pareciam

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Entrevista com Carlo Severi | 179

nem um pouco. Mas, menos nos termos pelos – talvez até mesmo a ignorassem – foram os
quais ele via as coisas em 1949, quando publi- dois antropólogos suécos que publicaram o
cou o ensaio “A eficácia simbólica”. O homem texto: Nils Holmer e Henri Wassen. Portanto,
com que falei era alguém que pensava que a desse ponto de vista, o problema se coloca
psicanálise, no fundo, era um fracasso cientí- muito antes da intervenção levi-straussiana:
fico. Ele me respondeu com uma espécie de ele se coloca no momento em que se constitui
“se é magia, isso quer dizer que é ainda mais o documento, quer dizer, na passagem – que
parecido com a psicanálise do que eu pensava não contarei, porque é um pouco audaciosa
em 1949”. Mas essa era sua opinião em 1981, e complicada – do texto “Muigas” ao Museu
quando defendi minha tese. Portanto, penso Etnográfico de Göteborg, onde foi publicado
que essa é também uma maneira de contribuir o canto Kuna em questão. Com efeito, esse
com um certo realismo na descrição de Lévi- texto chegou pelo correio na Suécia e foi um
Strauss enquanto intelectual, quer dizer, temos jovem dessa etnia, Guillermo Hayans, que era
tendência a associá-lo à empreitada psicanalíti- carteiro deles, que o transcreveu e enviou esse
ca e a certos movimentos do pensamento pós- pequeno caderno – aliás com versão pictográ-
-estruturalista, por exemplo. Lévi-Strauss não fica também – aos dois cientistas suecos que,
era isso. Era um positivista, um cientista, ali- em seguida, o publicaram. É uma história bas-
ás, e que pensava a psicanálise nos anos 1980 tante romanesca, na verdade. Portanto, nin-
como uma decepção. guém no campo havia recolhido esse texto e
feito a simples operação que fiz – mas não sou
Conhecer o xamanismo talvez tenha suscitado o único –, que consistia em gravar uma parte
isso nele, não? O xamanismo talvez tenha gerado e depois pedir às pessoas para traduzi-lo. As
esta decepção? pessoas me diziam: “mas não se compreende
CS: Eu não sei! Isso eu não sei! Ao con- nada, não sabemos o que é.” Veja, essa opera-
trário, o xamanismo é um fenômeno prodi- ção tem consequências teóricas, compreende?
giosamente interessante, e que pode, aliás, Quer dizer, era isso o importante para Lévi-
fazer eco com a psicanálise, mas por outras Strauss: ele sentia que era preciso tirar con-
vias, não necessariamente por essa. Veja, en- sequências disso e que não era simplesmente
contrei muitas pessoas em minha vida que um pretexto para começar uma polêmica ou,
me disseram: “mesmo que isso não funcio- ao contrário, para negar a realidade e guardar
ne assim entre os Kuna, pode funcionar em o conceito de eficácia simbólica, como alguns
outra parte”, e que não querem renunciar ao de meus colegas tentaram fazer.
conceito de “eficácia simbólica”. Mesmo que
se olhe com cuidado, em todo caso, é preciso Isso é uma coisa até que recorrente na antro-
reformulá-lo caso queiramos considerar essa pologia, não é? Descobre-se que a eficácia simbó-
dificuldade empírica, bastante real. Agora, lica que foi “descoberta” nos Kuna não existe dessa
podemos ler esse texto e outros. Publiquei um forma entre eles. Como acontece nos estudos do
canto Kuna, podemos ver se se parece ou não parentesco, por exemplo. Descobre-se que o que
com a língua cotidiana. Em 1949, certamente chamamos hoje de “dravidianato” não existe nos
não; quiseram criticar Lévi-Strauss por isso. povos dravidianos, mas que há em outros lugares.
Mas atenção: ele trabalhava sobre fontes. E CS: Essa é uma boa ideia. Não é impossí-
aqueles que não mencionaram essa diferença vel que tenha formas de eficácia simbólica que

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180 | Entrevista com Carlo Severi

existam além desse caso e se encontram em ou- isso aconteceu em parte… mas é verdade que
tro lugar além dos Kuna. Aliás, não vamos fa- na época era de toda maneira um fenômeno
lar disso por mais tempo, mas de fato penso ter raro. Parece-me que cabe, sobretudo a nós,
encontrado um tipo de interpretação daquilo iniciarmos um diálogo com os jovens intelec-
que se passa entre os Kuna. Dediquei uns trin- tuais e ter trocas, tanto quanto possíveis, de
ta anos, escrevi sobre e penso ter encontrado nosso lado, com eles. Com certeza, é ao mes-
uma solução possível a esse problema. Mas mo tempo um embate social, mas também
você tem razão, é um fenômeno geral. Quer intelectual muito importante. Você sabe, fui
dizer, a Antropologia é feita de tal maneira membro da banca de um jovem Kuna, que
que generalizamos a partir de casos geográfi- se tornou antropólogo. Ele não é o único,
cos precisos, portanto os conceitos que utili- aliás, há outros. Eu me dei conta de que em
zamos têm sempre uma espécie de “campo de sua dissertação há, ao mesmo tempo, uma
origem”. Na medida em que tentamos genera- maturidade antropológica absolutamente
lizar, nos damos conta de que eles podem ou impecável particularmente do ponto de vis-
não valer em tal ou tal campo, seja devido a ta etnolinguístico – é alguém muito forte,
razões geográficas, seja por razões conceituais. que trabalhou justamente sobre a mitologia
Daí a possibilidade de que algo que foi pen- Kuna. E de maneira completamente cons-
sado ou que acreditamos ter visto em alguma ciente, esse jovem intelectual restitui o que
parte possa se revelar válido de maneira con- a antropologia pode lhe dar, mas não cessa
ceitual e não geográfica, salvo no campo de aí. Ele coloca paralelamente uma descrição
origem do conceito. Efetivamente, isso pode e interpretação perfeitamente satisfatórias do
ser algo próprio da Antropologia. Em todo ponto de vista de um antropólogo à manei-
caso, é um fenômeno típico. ra de interpretar de seu mestre Kuna. Quer
dizer que produziu, assim, um texto muito
Atualmente, há muitos indígenas ingressando novo, que interpreta sua própria cultura uti-
na universidade e mesmo em cursos de pós-gra- lizando-a, apropriando-se de uma técnica de
duação. Existem cursos de formação de professo- transcrição, de uma análise da gramática, dos
res indígenas das mais diversas áreas e também conceitos que aprendeu na escola dos antro-
em antropologia. Como o senhor vê esse possível pólogos. Mas tampouco renuncia em perse-
encontro de intelectuais indígenas com a obra de guir a análise, mostrando a seu mestre Kuna
Lévi-Strauss? que ele também é completamente capaz de
CS: Isso é algo muito importante. A rea- fazer como ele. Ou seja, uma interpretação
propriação por parte dos jovens intelectuais que escapa aos nossos instrumentos concei-
que vêm dessas regiões do mundo é um fe- tuais e que, ao contrário, nos dá uma ima-
nômeno muito importante. Eu diria mesmo gem muito bela de como funciona a tradição
que, em última instância, cabe a eles decidir Kuna hoje em dia. Tradição extremamente
se o que os antropólogos fizeram é válido ou refinada, articulada, sofisticada e portadora
não. Penso que Lévi-Strauss estaria muito or- precisamente desse pensamento ameríndio
gulhoso disso. Talvez é uma das coisas que sobre o qual falamos. A tradição Kuna dá um
teria sentido mais intimamente. Não é com- exemplo admirável desse exercício do pensar
pletamente um fenômeno recente. Nos anos ameríndio. E se tivéssemos que desmentir o
entre 1930 e 1950, na América do Norte, que dissemos antes, se pudéssemos procurar

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Entrevista com Carlo Severi | 181

os filósofos entre os ameríndios, talvez os encontrar uma maneira de construir um olhar


encontrássemos entre os Kuna. Quer dizer, antropológico sobre si mesma. É ainda alguma
entre eles há uma população intelectual, coisa que Lévi-Strauss teria verdadeiramente
consciente de seu saber. Tradicionalmente, amado muito.
você tem xamãs que se visitam uns aos ou-
tros, que confrontam, que comparam versões E podemos dizer que os xamãs são os intelec-
de tal ou tal canto xamânico, que os estudam tuais indígenas?
juntos. Portanto, você tem uma espécie de CS: Mas não somente os xamãs, porque de
tradição de reflexão e transmissão do saber fato, entre os Kuna, há vários tipos de intelec-
que faz dessa população um exemplo admi- tuais. Os chefes o são, trata-se justamente dos
rável da tradição ameríndia. E dentre estes especialistas em mitologia, capazes de enunciar
jovens intelectuais – ele se chama Abadio durante horas cantos mitológicos, e também
Green Stocel, é preciso que eu diga seu nome existem os especialistas da iniciação feminina,
– vejo talvez um exemplo do que você pro- que são os especialistas do canto. Portanto, há
cura, mas, desta vez, feito por um ameríndio, nessa cultura uma passagem da ação ritual ao
isto é, uma reflexão paralela entre os méto- estabelecimento dos cantos que descrevem os
dos de análise estrutural da mitologia e uma rituais, o que é um pouco como uma passagem
maneira ameríndia de pensar sua própria he- para uma literatura, no fundo.
rança mitológica.
Os cantores, o que você chama de
Antropologia Kuna. “eu-memória”?
CS: Antropologia Kuna. No fundo, é uma CS: Sim, sim, é isso. Estas são as pesso-
antropologia Kuna que me interessa particular- as que assumem seus papéis de memória da
mente. Como lhe disse, não é o primeiro an- tradição. Abadio Green é um dos jovens que
tropólogo Kuna, já que tinha Arnulfo Prestan e assume, ao mesmo tempo, o papel de antro-
Victoriano Smith. E antes deles, havia pessoas pólogo perfeitamente consagrado por nossos
que trabalhavam com os suecos, que é preciso rituais científicos, mas que não renuncia em
citar como as fontes reais da antropologia que ser também aluno de seu mestre Kuna e de
se pôde fazer entre essa etnia a partir dos anos toda essa tradição. Portanto, há um desafio
20 do século passado. Portanto, Rubém Péres que é importante não somente para as culturas
Kantule, que trabalhou muito com os antro- ameríndias hoje, mas também para a própria
pólogos e Guillermo Hayans, que é justamente antropologia. Então, penso que atualmente
o carteiro que enviou o texto de certos cantos devemos trabalhar com os jovens intelectuais,
xamânicos para a Suécia. Dessa forma, há entre e isso é um desafio tanto para eles quanto para
os Kuna quase uma tradição dessa capacidade nós. É provavelmente uma das coisas que fa-
reflexiva que permite ter um olhar antropológi- rão talvez o futuro da antropologia: de passar
co sobre sua própria cultura e que não é o único desta situação de eco, do pensamento ame-
caso possível. Isso existe hoje em dia justamen- ríndio que revive no trabalho intelectual de
te em outros lugares, mas é mesmo assim uma Lévi-Strauss a um sistema de troca bem real,
das grandes singularidades, eu penso, a partir organizado e levado a cabo pelos intelectuais
do início do século XX, sobre a cultura Kuna, ameríndios que tomam a palavra. A propósi-
que soube, ao mesmo tempo, preservar-se e to desse famoso pensamento ameríndio que

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182 | Entrevista com Carlo Severi

Lévi-Strauss entreviu nesses documentos, do do pensamento; desde que se começa a pensar,


qual ele pôde explorar a lógica de uma manei- todo o pensamento está lá, e desde que se come-
ra totalmente teórica ou quase. Trata-se de um ça a falar, toda a língua está lá. Portanto, deste
tempo para organizar a troca e torná-la mais ponto de vista, é preciso reconhecer a comple-
complexa, sem dúvida, menos mágica, menos xidade de todas as línguas e saber descrever sua
mimética e conflituosa, porém bem real, des- especificidade, mas é necessário também saber
cendendo da própria prática da antropologia que não há uma língua intraduzível, todas o são
de hoje. traduzíveis. Por conseguinte, pode-se procurar
mais além de sua própria identidade local, e
Você vê, então, uma filosofia por vir ainda, é possível pensar alguma coisa de geral, como
desse encontro e dessa apropriação indígena? Rousseau e Lévi-Strauss pensaram. É isso o que
CS: Sim, tenho uma filosofia disso, você penso, e é a partir dessa ideia que podemos nos
tem razão. Penso que a filosofia da antropologia apresentar a esse diálogo, enquanto antropólo-
deve ser simplesmente um ideal de tradutibili- gos, com os jovens intelectuais que emergem
dade. Isto é, o que deve ser possível é trabalhar hoje em dia no Brasil e têm já uma história nas
a partir de uma premissa geral, todas as lín- culturas do continente. Ao mesmo tempo, há
guas são diferentes, mas todas são traduzíveis. que se restituir com rigor e completude a lógica
Portanto, não se pode nem se encerrar na dife- do pensamento ameríndio, mas também saber
rença, nem afirmar uma generalização que seria que este pode entrar em contato com outros e
uma extensão do pensamento ocidental. Então, o que é preciso trabalhar são os paradigmas de
é preciso reconhecer a diferença e ter uma am- tradutibilidade. No fundo, quanto a isso, penso
bição de tradutibilidade, é essa a filosofia que que ainda somos lévi-straussianos. Talvez sem
devemos ter, a meu ver. Quer dizer, o que posso sermos inteiramente estruturalistas, mas con-
tirar do ensinamento de Lévi-Strauss e de sua tinuamos ainda lévi-straussianos para além do
comunicação com o pensamento ameríndio é estruturalismo.
precisamente isso, que todas as línguas são di-
ferentes e é preciso sempre reconhecer, como já Muito bom, acho que é isso.
dizia Boas, o gênio de uma língua, ou seja, a CS: Ok!
lógica que opera em seu interior. Como diziam
os morfólogos alemães, não há a infância de Para não se cansar muito, não vou ficar explo-
uma língua, todas são adultas, por assim dizer, rando o senhor.
porque tal como aparece, ela domina comple- CS: Seria um depoimento de apenas cinco
tamente uma lógica própria. Portanto, não há minutos.
língua primitiva. É algo que um grande teóri-
co alemão, Semper, deu como exemplo para Pelo que marcou aqui, uma hora e vinte.
a arte. Ele dizia “as técnicas de expressão têm [Entrevistador e entrevistado riem]
uma evolução. A arte não tem evolução. A arte é
perfeita desde a pré-história”. Por que ele tinha Notas
essa ideia? Porque uma obra de arte é a inven-
ção de uma relação entre as técnicas, e isso é 1. Entrevista concedida a Didier Eribon, publicada em
um puro produto do pensamento. E não existe De perto e de Longe, Ed. Cosac & Naify, São Paulo,
história do pensamento, não existe a infância 2005.

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Entrevista com Carlo Severi | 183

2. TAYLOR, Anne-Christine. Dom quixote na amé- 4. Povo de língua chibchan, habitante do Panamá e da
rica: Claude Lévi-Strauss e a antropologia ameri- Colômbia.
canista. In: Sociologia & Antropologia, v. 01.02, p. 5. Lévi-Strauss estabelece esta comparação no texto
77-90, 2011. “A eficácia simbólica” (1949), que se encontra no livro
3. Mencionado na mesma entrevista a Didier Eribon ci- Antropologia Estrutural, Ed. Cosac & Naify, São Paulo,
tada na nota 1. 2008.

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traduções
187

Mitos e mitopoiese1

autor: Peter Gow


University of St. Andrews, Escócia
tradução: Henrique Pougy
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
revisão técnica: Renato Sztutman
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p187-210 literatura sobre os povos indígenas amazônicos,


concentrada em grande parte no significado dos
Neste capítulo, discuto a mitologia Piro mitos ou em sua conexão com rituais. Houve
em linhas gerais, a fim de mostrar como aque- exceções notáveis, principalmente provenien-
le evento específico no qual Artemio contou- tes da tradição norte-americana de análise do
-me o mito do “Homem que foi para baixo da discurso, tais como Basso (1985; 1987), Urban
Terra” encaixa-se no quadro geral de como os (1991; 1996a), Hill (1993) e Graham (1995).
Piro narram mitos e por que o fazem. Mostro Contudo, por mais impressionantes que sejam
como esses estão conectados com gwashata, esses estudos, todos veem a narração mítica
o “bem-viver”, e em particular com a relação como um exemplo da constituição da cultura
entre avós e netos corresidentes. Em seguida, por meio da linguagem, ao invés de uma forma
mostro que os Piro contam e escutam mitos distinta de ação social conectada de formas es-
porque são interessantes. Se o Capítulo 2 foi pecificáveis a outros modos de ação social, que
um exemplo da análise estrutural lévi-straus- é o que me interessa aqui.2 Eu mesmo só come-
siana, aqui pretendo explorar a etnografia cei a abordar essa questão quando desenvolvi a
das narrativas míticas tal como as experien- análise sobre o porquê de Sebastián ter contado
ciei durante meu trabalho de campo. É por- seu mito a Matteson e motivo de Artemio ter
tanto neste capítulo que realmente inicio o me contado sua versão. Uma vez satisfeito com
trabalho, delineado na Introdução, de tentar esse argumento, conforme detalhado no capí-
unir as tradições intelectuais de Malinowski e tulo anterior, uma questão ainda maior surgiu
Lévi-Strauss. no horizonte: por que as pessoas Piro contam
Ao comentar a obra de Gregory Schrempp, mitos umas às outras e por que os escutam?
Sahlins nota que “grandes questões cosmoló- Conforme discuti no Capítulo 2, uma das
gicas podem ser encontradas até em pequenos características mais intrigantes das versões do
contos folclóricos”, e que é isso que Lévi- mito sobre as queixadas é sua variabilidade,
Strauss está fazendo (veja SCHREMPP, 1992, especialmente as diferenças notáveis entre as
p. ix). Também os Piro devem encontrar gran- duas versões de Sebastián. Variações como estas
des questões cosmológicas em seus mitos, mas são justamente as que foram de grande utilida-
como isso se conecta as suas motivações para de ao trabalho de Lévi-Strauss. Neste capítulo,
ouvi-los e contá-los? Evidentemente, trata-se exploro a narração de mitos no mundo vivido
aqui de uma questão malinowskiana, que re- piro, de forma a mostrar como estas variações
cebeu surpreendentemente pouca atenção na vêm a existir. Argumento que a variação é uma

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


188 | Peter Gow

característica geral das narrativas míticas piro, os Kalapalo do Brasil Central, os narradores
ocorrendo até mesmo ao longo da vida do nar- piro também precisam que um ouvinte respon-
rador, mas que certas formas dessas variações da constantemente com interjeições tais como
estão ligadas a mudanças específicas no mundo “¡Gaa!”, “Ah!” ou “¿Gowa?”, “É mesmo?”, ou
vivido piro. seus equivalentes em outras línguas faladas
localmente.
Histórias dos antigos3 Há muitas “histórias dos antigos”.
Enquanto alguns piro afirmam conhecer várias
Para os Piro, a narração mítica é uma ativi- delas, ou considera-se que conheçam muitas,
dade dotada de características próprias. Mitos ninguém jamais alegou-me conhecer todas.
são tsrunnini ginkakle, “histórias dos antigos”, Algumas são amplamente conhecidas e con-
geralmente contados pelas pessoas mais velhas tadas com frequência, ao passo que outras são
às mais novas, em momentos de descanso na apenas por alguns. Não parece haver qualquer
intimidade dos arredores da casa. Conforme noção de um cânone, ou ainda de limites preci-
minha experiência, são mais frequentemente sos para o que é considerado uma “história dos
contados em noites calmas, depois de as pes- antigos”. O critério de definição é que aquele
soas comerem e antes de se sentirem tomadas que conta uma dessas afirma tê-la ouvido an-
pelo sono. Como me foi dito, os avós costu- teriormente como uma “história dos antigos”.
mam contar essas histórias aos seus netos. Para Há, entretanto, uma percepção bem defini-
os Piro, esse cenário específico para a narra- da de que são histórias piro, e que a fonte de um
ção de “histórias dos antigos” tem um sentido contador sempre foi uma pessoa piro. Apesar
pragmático evidente: mitos são contados por da extensão e profundidade temporal dos casa-
pessoas que os conhecem bem a pessoas que mentos entre os Piro e outros grupos étnicos,
não os conhecem, nos momentos em que não especialmente os Campa, Machiguenga e moza
há muito mais o que se fazer4. gente,5 e do multilinguismo corrente na área,
Essas histórias são contadas pelos mais ve- somente meus informantes piro contaram-me
lhos a seus netos porque são interessantes. “histórias dos antigos Piro”. Já meus informan-
Nunca me foi dito que é preciso que elas sejam tes Campa nunca me narraram mitos, embora
narradas às crianças, e contá-las não é giykota, respondessem de bom grado a questões sobre
“aconselhar” (em espanhol do Ucayali, aconse- mitos Campa que eu havia lido na literatura.6
jar), isto é, a explicação discursiva de valores Os únicos mitos não-piro que ouvi vieram de
morais manifestamente direcionada a crianças dois homens caracterizados como “brancos”:
e jovens adultos. Até onde sei, o que motiva a um deles contou mitos de sua região natal,
narração é simplesmente o fato de que as histó- Juanjuí no rio Huallaga, ao norte da Amazônia
rias são interessantes: quem conta tem vontade Peruana, enquanto o outro contou histórias
de fazê-lo, e quem escuta quer ouvir. Muitas que aprendera com pessoas machiguenga. Em
vezes, o estímulo vem das próprias crianças: ambos os casos, as origens dos mitos foram cui-
aos 12 anos, o filho de Artemio, Denis, disse- dadosamente especificadas.
-me que visitava sua avó amiúde “para ver o Tsunnini ginkakles, as “histórias dos an-
que ela vai me contar”. Além disso, o interes- tigos”, são aquelas que foram contadas pelos
se do ouvinte é crucial à fluidez da narrativa. tsrunni, os “antigos”. Esse termo, que literal-
Assim como argumentou Basso (1985) sobre mente significa “os velhos que agora estão

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Mitos e mitopoiese | 189

infelizmente mortos”, refere-se às gerações an- a demônios da floresta ou Incas do que aos Piro
cestrais de gente piro que, devido à passagem de outrora.7 Tudo o que resta dos “antigos” é
do tempo, atualmente escapam à memória dos aquilo que os Piro vivos de hoje sabem sobre
vivos. Assim como os Piro contemporâneos, eles.8 Esse conhecimento toma três formas
eles foram yine, “humanos, gente piro”, mas principais. Em primeiro lugar, há a “língua dos
eram muito diferentes da “gente de hoje em antigos”, que só é ouvida no Baixo Urubamba
dia”. Viviam nas florestas, usavam utensílios de em canções xamânicas,9 assim como nas vozes
pedra, teciam suas próprias túnicas e saias de de visitantes ocasionais vindos das comunida-
algodão, e falavam outro tipo de língua piro. des falantes de Piro nos rios Manú e Yaco, res-
Ainda que todos os tsrunni falassem a mesma pectivamente a sudeste e a leste. Especialmente
língua, viviam em grupos geograficamente do povo Yaco, diz-se que “eles falam a língua
isolados (em piro, neru), recusando de manei- dos antigos, eles falam sapna em lugar de pa-
ra ciumenta a se casar entre si e em conflitos ranta (bananeira) e gaxa ao invés de wixa (nós,
constantes uns com os outros. E contavam es- nosso), assim como os antigos”.10 No entanto,
sas histórias. o fato de que essas pessoas falem a “língua dos
Como me disseram nos anos 1980, o mun- antigos” não significa que sejam “mais Piro”
do dos tsrunni chegou ao fim quando foram do que os Piro do Urubamba. Pelo contrário,
escravizados pelos patrões nos tempos da conforme também me disseram sobre os povos
borracha, devido ao seu intenso desejo pelas Manú e Yaco, “não são Piro de verdade como
“coisas boas” (gejnu) destes brancos. Uma vez nós, eles são outra gente. Eles falam diferente”.
escravizados, casaram-se com outros grupos A segunda forma de conhecimento sobre os
piro, além de Campa, Machiguenga, moza gen- “antigos” é a narração de tsurunni pirana, his-
te e outros povos. Nos anos 1980, a memória tórias “sobre11 os antigos”. Trata-se de histórias
desse período encontrava-se à beira do esque- sobre os costumes dos “antigos” aprendidas
cimento, pois pertencia ao mundo dos genito- com os parentes mais velhos. Usualmente têm
res mortos dos mais velhos ainda vivos. Como a forma de observações feitas na vida cotidiana,
discuti longamente alhures (GOW, 1991), foi tais como “Os antigos fariam assim, mas nós
por meio desses eventos de escravização e in- não fazemos mais isso, fazemos diferente ago-
tercasamentos que a vida dos Piro contempo- ra” (ver GOW, 1991, p. 63-4; MATTESON,
râneos originou-se nas novas aldeias que então 1965, p. 138-55 para exemplos). Os persona-
passaram a habitar, e foi a partir dessa época gens dessas histórias não são nomeados, e elas
que traçaram os laços de parentesco que os co- tendem a ter uma estrutura narrativa menos
nectaram e os conectam ainda hoje. Antes des- elaborada. São descrições de formas genéricas
se período imperava o mundo dos tsurunni, os de comportamento.
“antigos” anônimos. A terceira forma de conhecimento sobre os
No mundo contemporâneo, dado que to- “antigos” consiste nas “histórias dos antigos”,
das as posses são destruídas após a morte, não isto é, aquelas histórias que se afirma terem sido
restam monumentos ou objetos dos “antigos”. contadas pelos antigos. Assim como as versões
Até mesmo aqueles vestígios mais evidentes, do mito que venho discutindo nos capítulos
tais como a cerâmica, ou os machados de pedra anteriores, estas histórias são fortemente narra-
encontrados nas roças, são ambivalentes: meus tivas e geralmente têm seus personagens nome-
informantes eram mais propensos a associá-los ados. Diferentemente daquilo que se passa com

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as “histórias sobre os antigos”, os mundos nelas especificar – quem contou ao falante sobre o
descritos são muito mais radicalmente outros evento: o foco está no falante ter ou não expe-
em relação ao mundo de hoje. Ao passo que o rienciado o evento pessoalmente. Essa mesma
mundo em que os antigos viviam era similar a regra faz-se presente no espanhol do Ucayali:
esse, no qual as pessoas apenas agiam de forma dice, “dizem que”, é seu equivalente. Quando
diferente, aqueles descritos nas histórias dos o falante deseja enfatizar que sua afirmação
antigos caracterizam-se por sua maior alterida- foi realmente proferida por uma pessoa deter-
de. Nesses mundos, humanos tanto se casavam minada, o verbo china, “dizer, pronunciar”, é
com animais quanto se transformavam neles, empregado. No espanhol do Ucayali, o equiva-
viajavam ao submundo e ao céu, e coisas afins. lente é o verbo contar.
As narrativas de experiências pessoais dire-
Maneiras piro de narrar tas são as histórias com mais elevado grau de
certeza. Nelas, o narrador é a testemunha viva
Como descrevi acima e discuti longamen- dos eventos descritos, cujas decorrências mais
te em outros lugares (GOW, 1990a; 1991), amplas podem ser conhecidas pelos ouvintes
os Piro dão imenso valor à experiência pessoal por sua própria experiência.12 Em contraste,
direta. Nshinikanchi, “memória, amor, respei- de todas as narrativas os mitos são as menos
to”, um aspecto central da concepção de pessoa confiáveis, pois (por definição) ninguém teste-
Piro, é gerado por meio da experiência direta munhou os eventos nelas narrados. São ainda
dos atos de amor e da lembrança dos outros mais incertos do que os rumores sobre eventos
durante a vida cotidiana, enquanto que gwa- distantes, visto que esses ao menos emanam de
shata, um valor-chave no mundo vivido piro, alguma testemunha viva, ainda que desconhe-
depende da experiência pessoal de bem-estar e cida. Frequentemente, os narradores terminam
tranquilidade no dia a dia de uma boa aldeia. uma narrativa mítica questionando retorica-
Essa mesma centralidade da experiência dire- mente sua veracidade, dizendo coisas como “É
ta é encontrada nas maneiras piro de narrar e isso que contavam os antigos. Talvez seja men-
conversar, nas quais é colocada grande ênfase tira. Eu não sei, mas é isso que eles contavam”.
no fato de o falante ter ou não experienciado De minha parte, nunca ouvi um Piro alegar
pessoalmente aquilo que descreve. enquanto narrava um mito – como muitas ve-
Na língua Piro, qualquer descrição que não zes se declara sobre as narrativas de experiências
seja reivindicada como uma experiência direta pessoais diretas – “¡Galikakni!”, “isto é verda-
ou opinião pessoal deve obrigatoriamente car- de!” (no espanhol do Ucayali, “¡Verdad es!”).
regar o segmento “citacional” – gima. Assim, O caráter dúbio dos mitos reside justamente
quando uma pessoa diz “Giyagni rapokatka”, nessa cuidadosa recusa em se reivindicar qual-
“então ele veio”, o falante está alegando ter quer testemunha dos eventos narrados, seja ela
experiência pessoal direta desse ato. Se este uma pessoa conhecida, seja mesmo alguém que
não for o caso, se, por exemplo, o falante está possa vir a sê-lo.
simplesmente reportando o que outra pessoa É tentador ver nesta falta de convicção sobre
viu, ele ou ela deverá então dizer “Giyagimni os mitos um produto da história recente desse
rapokatka”, ou variantes dessa frase que signi- povo. Talvez ela seja o resultado da pressão ide-
fica “dizem que então ele veio”. O segmento ológica intensa feita pelos missionários católi-
citacional não especifica – tampouco necessita cos e protestantes e pelo Estado peruano, além

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de mais de um século de contato próximo com para a análise de Lévi-Strauss. Reiterando sua
os patrões brancos. Com efeito, essa era minha posição, o autor escreve: “Por mais distante que
própria concepção sobre o fenômeno, tal como retrocedamos, um mito é somente conhecido
testemunha minha reação à pergunta, feita por como algo ouvido e repetido” (1998, p. 189).
Artemio na noite de 15 de janeiro de 1982, em Com efeito, para os Piro, um mito refere-se a
relação à história de sua mãe sobre a lua, quan- um conjunto de agentes e eventos em relação
do ele me disse: “Mas se os homens já foram aos quais nenhuma testemunha conhecida, ou
para lá, e viram que é só pedra, o que pensar sequer passível de ser conhecida, é postulada.
daquela crença? Será que é só uma mentira?”. Ele existe somente como uma história conta-
De fato, refletindo agora, percebo que esses da por gerações, como tsrunnini ginkakle, uma
comentários eram comuns, ocorrendo mesmo “história dos antigos”.
quando eu não tinha oferecido qualquer con- Há ainda outra característica da narração
traevidência às alegações míticas. Além disso, piro, também relacionada ao segmento cita-
provar que tais expressões de dúvida são um cional: trata-se da marcação de autoridade ou
produto histórico recente seria impossível, fonte da narrativa por meio do verbo ginkaka,
dada a falta de documentação histórica sobre “contar, narrar”. Nessas elaboradas narrativas
as convenções narrativas piro anteriores a tais de “segunda mão”14, aquele que conta invaria-
influências. velmente identifica a fonte da história, isto é,
Entretanto, certas evidências comparativas a pessoa de quem ela foi uma experiência pes-
apontam fortemente contra uma conclusão soal direta. Vejamos, por exemplo, a conclusão
como essa. Uma mesma hierarquia de con- de uma narrativa mitológica: “Seyoka. Najirni
fiança narrativa é encontrada entre falantes de ginkakleni. Nyokaka”, “Está terminado. Essa é
línguas aparentadas na região do alto Xingu, a história da minha falecida avó. Eu a expus”
no Brasil Central, os Waurá, Mehinaku e (MATTESON, 1965, p. 215).
Yawalapití, cuja experiência com missionários As fontes de tais narrativas são quase inva-
foi reduzida, e onde os forasteiros se esforça- riavelmente parentes15 ascendentes próximos,
ram por incentivar o conhecimento mitoló- como os pais ou avós – o que vale tanto para
gico, ao invés de o debilitarem (IRELAND, as narrativas históricas quanto para as narrati-
1988; GREGOR, 1977; VIVEIROS DE vas mitológicas.16 Na ausência de experiência
CASTRO, 1977).13 Ademais, isso tem sido tão pessoal direta, a marcação da fonte estabelece
consistentemente registrado ao longo de toda a veracidade provável da narrativa, e o faz por
a Amazônia, nos cenários mais diversos – por referi-la a laços de parentes próximos. Como
exemplo, Basso (1985) para os Kalapalo, Reeve discuti em Of Mixed Blood, estes parentes pró-
(1988) para os Canelos Quichua, Roe (1988) ximos são constituídos como “verdadeiros”17
para os Shipibo-Conibo e Vanessa Lea (co- por meio de interações densamente vividas,
municação pessoal) para os Kayapó –, que se e não surpreende que sejam marcados como
pode dizer que esta é, quase certamente, uma fontes privilegiadas de histórias interessantes,
característica sui generis do estilo narrativo da ainda que inverificáveis. Já quando a fonte é
Amazônia indígena. Assim como nesses outros marcada como um parente distante, ou até
casos amazônicos, o modo com que os Piro ex- mesmo como alguém que não seja parente do
perienciam os mitos enquadra-se bem em um narrador e tampouco dos ouvintes, há uma
dos aspectos da forma mitológica que é central probabilidade muito maior de a narrativa ser

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abertamente questionada. Nesses casos, um contam mitos e o fazem apenas em determina-


ouvinte, referindo-se à fonte, soltará comen- dos contextos sociais. Apenas os relativamente
tários do tipo “¡Kayloklewakleru wa wale!”, idosos contam mitos em um sentido pleno, e
“como ele é mentiroso!”. Na medida em que os os contam preferencialmente a seus parentes
Piro não têm uma categoria para histórias fic- mais novos, especialmente seus netos.
cionais, histórias que se apoiam na credulidade É difícil descobrir se as pessoas realmente
dos ouvintes são por sua vez uma importante conhecem mitos ou não, devido à extrema
forma de entretenimento, pois gaylota, “men- relutância da maioria delas em contá-los.
tir”, é uma arte verbal importante e altamente Grosso modo, quem tem menos de 25 anos
desenvolvida. Durante a narração de mitos, a simplesmente não conta mitos, e nega conhe-
fonte da história de um narrador nunca é ques- cê-los. Pessoas entre essa idade e o começo da
tionada, pois parentes ascendentes verdadeiros meia-idade normalmente recusam-se a contá-
tendem a não ser acusados de mentir por uma -los quando requisitadas, mas ocasionalmente
questão de respeito. Aqui, a acusação é direcio- narram segmentos curtos de narrativas míti-
nada aos próprios antigos. cas, se as circunstâncias pedirem. Já a partir da
Dentre as formas narrativas Piro, o mito é meia-idade, principalmente acima dos 45 anos,
aquela de caráter mais insistentemente narrati- passam a narrar mitos com uma confiança cres-
vo. Com frequência, o narrador refere-se a três cente. Todos os Piro estão de acordo sobre isto:
diferentes níveis narrativos na mesma história: se eu perguntasse sobre mitos, eles diriam “Vá
à sua própria narração (“Agora vou contar-lhes perguntar aos velhos, eles que sabem dessas
sobre Tsla”), à narração de sua fonte (“Minha coisas”.
avó me contou isso...”) e às narrações dos an- Inicialmente, pensei estar ouvindo as notas
tigos (“Isso é o que os antigos contavam...”). finais de uma tradição moribunda: a mitologia
Essa referência constante ao ato de narrar tem piro parecia estar desaparecendo juntamente
o efeito de acentuar a distância dos eventos com muitos dos outros costumes dos “anti-
narrados da experiência vivida daquele que os gos”.18 Contudo – e só me dei conta disto du-
conta, mas também foca a atenção em um tipo rante meu trabalho de campo mais recente, em
específico de experiência: aquele de escutar as 1988 – a negação do conhecimento dos mitos
próprias narrativas. Seria errôneo dizer que os por parte dos jovens não pode ser tomada como
mitos existem fora da experiência vivida, pois uma evidência de que eles não conhecem ou
estão fundados justamente na experiência de não se preocupam com os mitos e que, conse-
escutá-los sendo contados. quentemente, nunca os contarão. Trata-se, em
vez disso, de uma simples recusa em narrá-los.
Contando “histórias dos antigos” Isso se torna claro no caso daqueles que estão
se iniciando nas narrativas míticas. Por exem-
Essa natureza insistentemente narrativa dos plo, quando estávamos discutindo sobre uma
mitos, que enfatiza sua desconexão de toda canção que eu havia gravado em um vilarejo
experiência vivida a não ser aquela de tê-los distante, Julia, uma mulher de trinta e poucos
escutado alguma vez de parentes ascendentes anos, espontaneamente narrou o seguinte mito
verdadeiros, pode ser explorada no contexto curto para mim. A canção era Mapchiri Wgene
de quem conta e quem não conta “histórias Jeji Shikale, “Canção do filho da Anaconda”,19
dos antigos”. Somente certos tipos de pessoas e Julia explicou-a brevemente, como segue:

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Uma anaconda se casou com uma menina hu- aos seus quarenta e poucos anos, narrava mitos
mana. Eles tiveram um bebê. Um dia, a avó para mim de forma relativamente completa,
estava dormindo com o bebê em uma rede. nomeando os personagens e as localidades, mas
Quando ela acordou, olhou para baixo e viu a ainda fazendo menção às narrações anteriores
criança com uma anaconda enrolada em cima feitas por sua avó e frequentemente sugerindo
dela. Ela empurrou o bebê no fogo e o queimou. que eu fosse perguntar a sua sogra, Clotilde
Quando a mãe dele chegou, ela disse “Por que Gordón, para obter relatos completos.
você queimou meu bebê?”. E a avó disse “Esse aí Seis anos mais tarde, em 1988, Sara esta-
não é humano, é uma anaconda!”. Então veio o va mais disposta a narrar mitos na forma de
pai anaconda e levou seu filho, porque elas não segmentos curtos, embora ainda se referindo
cuidaram dele. A anaconda, por vingança, fez o à sua mãe como uma fonte melhor. A essa al-
rio destruir a aldeia em que essas pessoas viviam tura Antonio já estava disposto a narrar mitos
– ele destruiu a aldeia completamente. É daí que sem qualquer referência a uma fonte anterior
vem essa canção.   que não fossem os próprios antigos. Suas nar-
rativas já eram mais completas e coerentes, re-
Informantes mais velhos narraram o mesmo pletas de detalhes omitidos anteriormente, e
mito como uma história longa, nomeando os ele não sugeria que eu procurasse outras fon-
personagens centrais (as mulheres Kochmaloto tes. Assim como Sara, Antonio também esta-
e outros) e continuando a história após a en- va seis anos mais velho, porém havia ocorrido
chente (veja a discussão abaixo e no capítulo uma mudança ainda mais importante em sua
5). Julia, por sua vez, simplesmente esboçou o vida, pois ele tinha se tornado um dos Piro
mito para mim, restringindo-se à parte imedia- mais velhos ainda ativos em Santa Clara. Sua
tamente relevante. sogra estava quase permanentemente doen-
Ainda que ausente na narração de Julia te, raramente fazendo algo. Além disso, em
(talvez porque ela estivesse inebriada na oca- 1988, Antonio narrava para uma audiência
sião), a marcação da fonte é quase invariavel- diferente, pois naquele momento de sua vida
mente presente em outras narrações de pessoas já tinha vários netos com idade suficiente
de meia-idade. Geralmente se conta a história para permanecerem sentados escutando en-
enfatizando quem a contou àquele que narra quanto ele falava. Da mesma maneira como
e, se essa pessoa está viva, remete-se o ouvinte sua sogra tinha sido anteriormente, Antonio
diretamente ao narrador original. Por exemplo, tornara-se uma autoridade em mitos por ser
em 1982, Artemio, aos seus trinta e poucos a mais velha testemunha ainda viva e ativa
anos, tendia a contar versões muito curtas de de eventos de narração prévios e autorizados.
mitos tal como contados a ele por sua mãe, Ele podia narrar as histórias integralmente
e então sugeria que eu fosse perguntar a ela. porque era o único que as tinha ouvido de
Contudo, quando estava especialmente inte- pessoas mortas há muito tempo, pessoas que,
ressado, como no caso de “Um homem que foi muitas vezes, os mais jovens não chegaram a
para baixo da terra”, podia narrar “histórias dos conhecer. Estes, por sua vez, são geralmente
antigos” bastante completas.20 Sua irmã caçula, inibidos de narrar mitos – além de se senti-
Sara, aos 20 anos, negava absolutamente co- rem aliviados por não terem de fazê-lo – pela
nhecer mitos, e remetia-me diretamente à sua presença dos mais velhos, que são tidos por
mãe. Em contraste, o cunhado deles, Antonio, conhecê-los melhor.21

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Designo aqui essa passagem para uma nar- Não conseguiam pegá-lo. Só quando chegaram
ração de mitos de modo totalmente confiante ao rio Mishagua que o alcançaram. Tsla saiu do
como mitopoiese [doravante mitopoiese], isto é, peixe. Lá vivia Kamayaka – tem uma montanha
a fabricação de mitos.22 Conforme as pessoas ali abaixo da foz do Misagua, agora ela já está
envelhecem e tornam-se as mais velhas auto- toda erodida, mas essa era a casa de Kamayaka.
ridades vivas nos costumes dos antigos, elas Lá eles viveram. Mas o pássaro manipawro can-
se tornam mitopoiéticas: contam “histórias tou ali. Isso é um mau presságio, prevê a morte.
dos antigos” referindo-se somente a sua pró- Então Tsla e os Muchkajine partiram para mui-
pria autoridade e à dos antigos. E ao fazê-lo, to longe, rio abaixo.  
suas narrações expandem-se em profundidade
e complexidade, trazendo mais detalhes e es- Em sua primeira narração, Antonio havia
tabelecendo mais conexões. Ao tornarem-se me contado um segmento de narrativa como
mitopoiéticas, ficam mais à vontade contando introdução a “O nascimento de Tsla”, e, nes-
histórias e são, em suma, melhores narradoras. sa ocasião, sua versão era bem diferente. Na
Segue um exemplo. A primeira vez em que primeira versão, é Tsla quem está construin-
Antonio contou-me os mitos “O nascimento de do a barragem no Pongo; e é Kamayaka, um
Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”, em 1982, dos irmãos de Tsla, quem é engolido, e quem
suas versões eram muito mais curtas e menos engole, por sua vez, é outro bagre gigante,
complexas do que as de sete anos mais tarde.23 kutsalo (no espanhol do Ucayali, saltón; Lat.
A segunda versão de Antonio de “O nascimen- Brachyplatysoma filamentosum).25 Por fim, era
to de Tsla” incluía um longo relato de Tsla e de um “passarinho” não especificado (não o mani-
seus irmãos, os Muchkajine, fazendo uma ca- pawro) quem predizia a morte. A primeira ver-
noa, uma roça e uma casa, relato este que es- são de Antonio é a única que eu conheço que
tava totalmente ausente na versão anterior (ver diz que Kamayaka foi engolido, e sua segunda
Capítulo 4). Nessa versão ele também avançou versão está de acordo com a maioria das ou-
na narrativa, incluindo o mito “Tsla engolido tras versões ao dizer que Tsla foi engolido por
por um bagre gigante”. Depois que Tsla e os uma wakawa. A maior parte das versões que
Muchkajine mataram seus tios jaguares para conheço afirma consistentemente que eram os
vingar a morte de sua mãe, Antonio prosseguiu: Incas quem estavam construindo a barragem
no Pongo de Mainique, e que foi o pássaro
Então Tsla disse “O que faremos agora? Vamos maknawlo quem cantou ominosamente.
trabalhar para Kamayaka”. Kamayaka era o Como lidar com essas mudanças? Partindo
cunhado de Tsla. Ele estava construindo uma de um dos insights centrais de Lévi-Strauss, de
represa no Pongo de Mainique. Kamayaka fez que não há versão original de um mito e que,
Tsla e os Muchkajine o ajudarem. Eles trabalha- portanto, qualquer versão é uma “boa versão”,
ram o dia todo. Tsla ficou cansado de trabalhar. podemos então nos livrar da ideia de que as
Fez então que um wakawa (um bagre gigante, diferenças entre as duas versões refletem uma
Lat. Paulicea lutkeni)24 o engolisse. Desceu o maior ou menor fidelidade a um original que
rio na barriga do wakawa. Kamayaka tinha um Antonio escutara há muito tempo de sua avó (a
papagaio, que gritou “O wakawa engoliu Tsla! autoridade citada na primeira versão). Pois, no
O wakawa engoliu Tsla!”. Os Muchkajine segui- mínimo, não temos ideia de como era a versão
ram o wakawa rio abaixo, tentando agarrar Tsla. desta senhora, uma vez que Antonio é nossa

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Mitos e mitopoiese | 195

única autoridade sobre isso. Aliás, é provável 1982 e 1988, além de seus seis anos a mais de
que a versão original de Antonio também tenha vida. Em 1988, Antonio tinha vários netos
sido múltipla, pois sua avó presumivelmente a morando com ele com idade suficiente para
contou tão frequentemente e mudou-a tanto ouvir suas histórias. Tinha assim uma audi-
quanto ele. Além do mais, em ambas as ocasi- ência composta por parentes que mantinham
ões nas quais me narrou essa história, Antonio com ele a mesma relação que mantivera outro-
claramente experienciou a si mesmo como ra com sua própria fonte de narrativas míticas,
contando a “história dos antigos” sobre “Tsla/ sua avó. Esse fato da vida doméstica – que os
Kamayaka engolido por um wakawa/ katsalo”. Piro consistentemente me relataram como sen-
Parece-me que a única hipótese correta é do a cena típica da narração de “histórias dos
que estamos diante de uma importante carac- antigos” – tem para essas pessoas uma resso-
terística dos mitos e da mitopoiese piro: isto é, nância específica: trata-se da extensão temporal
conforme envelhecem, as pessoas contam mitos máxima das relações de parentesco.
de forma cada vez mais confiante e complexa Vejamos como parece o mundo aos ou-
e o fazem ao transformarem espontaneamente vintes (as crianças piro) e aos contadores de
tanto as versões que ouviram há muito tempo mitos (os velhos piro). As crianças com idade
como também suas próprias versões anteriores. suficiente para escutar mitos são aquelas que
Isso sugere que o processo da mitopoiese, ocor- desenvolveram nishinikanchi, “mente, memó-
rido no curso da vida de uma pessoa, ainda que ria, amor etc.”. Como discuti em outras oca-
experienciado como uma fidelidade cada vez siões (GOW, 1991; 1996), elas o desenvolvem
maior a uma fonte antiga, é, na realidade, a gê- ao demonstrar sua consideração àqueles que as
nese contínua de novas versões de mitos. Como alimentaram dirigindo-se a essas pessoas por
observou Lévi-Strauss, “o pensamento mítico meio de termos de parentesco. Em Piro, esses
opera essencialmente por meio de um processo termos são mama, “mamãe”, papa, “papai”, jiro,
de transformação. Mal um mito vem a ser, ele já “vovó”, totu, “vovô”, shapa, “titia”, koko, “tio”
é modificado por uma mudança de narrador...” e yeye, “irmão/irmã mais velho(a)”. Como os
(1981, p. 675). Lévi-Strauss refere-se às mudan- Piro afirmam, o uso desses termos pela criança
ças nos narradores conforme os mitos caminham é espontâneo e marca o início do nshinikanchi.
de uma sociedade à outra. Sugiro que podemos Esse é o primeiro uso socialmente relevante da
ver aqui uma versão microscópica do mesmo linguagem pela criança e permanece importan-
processo: o mito transforma-se à medida que te ao longo da vida, na forma da asserção de
também o narrador se transforma com a idade. relações de parentesco com outros. As relações
Este é o processo da mitopoiese.26 Já vimos um de parentesco iniciam-se quando os mais ve-
exemplo disso no último capítulo, com as duas lhos dão comida às crianças para satisfazer sua
versões de Sebastián do mito sobre os queixadas, fome, mas só são confirmadas como tais pela
e podemos vê-lo agora como uma característica criança. Para os Piro, são as crianças, e não os
generalizada da narrativa mítica piro. adultos, quem fabricam as relações de parentes-
co por meio da linguagem.
Envelhecimento, mitopoiese e mitos Os velhos piro estão no extremo oposto
desse processo. À medida que a morte leva do
Houve uma grande mudança nas circuns- mundo seus parentes mais velhos, eles deixam
tâncias de vida de Antonio no período entre aos poucos e inevitavelmente de usar todos os

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termos de parentesco exceto um, shte ou wiwi, ao redor dessas pessoas mais velhas e intransi-
“parente mais jovem”. Este mesmo termo é gentes, para serem então radicalmente transfor-
também a recíproca de todos os termos de pa- madas ou abandonadas quando elas finalmente
rentesco que a criança emprega.27 Com o tem- morrem.
po, torna-se o único termo de parentesco que É nessas aldeias que as crianças crescem
os velhos usam, e seu universo social torna-se e começam a se dirigir aos mais velhos por
um mundo indiferenciado de “parentes mais termos de parentesco. Mas elas nunca usarão
jovens”. Seus parentes mais velhos, esses de fato termos de parentesco para os parentes mortos
diferenciados, estão agora mortos e, por conse- de seus avós, pois, estando essa gente morta,
quência, não se fala mais com eles. Os velhos as crianças não têm e não terão qualquer
tornam-se, como eles mesmos dizem, “órfãos”, experiência pessoal direta deles. De seu ponto
sem pais ou outros parentes mais velhos e, por- de vista, os parentes mortos de seus avós não são
tanto “sozinhos”. parentes, mas, sim, “pessoas mortas há muito
Não somente eles estão sozinhos, como tempo”,28 tsrunni. Ou seja, são os “antigos”. De
também perderam sua relação primária com a fato, não há termos de parentesco ascendentes
linguagem. Seus parentes mais velhos, já mor- além de avós. Bisavós, caso forem conhecidos
tos, não podem mais ser interpelados. Eles po- pela criança e ainda estiverem vivos, são cha-
dem somente ser referidos por meio de termos mados pelos mesmos termos de parentesco
de parentesco, tais como najiro, “minha avó”, que os avós. Caso contrário, não são chamados
ou naxiru, “meu avô”, aos quais o sufixo -ni, por nada além de tsrunni. Seria tecnicamente
“desafortunado, que agora está morto” deve ser possível dizer, por exemplo, “a avó de minha
afixado, resultando em najirni e naxirni. Uma avó” (em Piro, najiro tajirni, no espanhol do
vez que estão mortas, nenhuma relação social Ucayali, la finada abuela de mi abuela),29 mas
significativa com essas pessoas é possível. É nunca ouvi alguém dizê-lo. Dada a importân-
justamente isso o que marca esse sufixo, e não cia que tem a experiência pessoal vivida para os
sua não existência. Elas definitivamente exis- Piro, tal personagem seria, de fato, uma figura
tem, mas agora na forma de pessoas mortas, excepcionalmente abstrata.30
abarrotando a floresta com sua presença malig- Avós e netos Piro defrontam-se nos pontos
na. Qualquer relação com elas é assiduamente extremos do ciclo de vida em seu mundo vivi-
evitada. do: trata-se daqueles perto do fim dos proces-
Como discuti longamente em Of Mixed sos de nshinikanchi, e daqueles em seu início. À
Blood, os Piro experienciam a vida como um medida que se aproximam da morte, os velhos
processo contínuo de construção de aldeias, estão “cansados de viver” e prestes a se tornar
nas quais se pode “viver bem”, e de fuga das outra coisa, gente morta. Seus amados parentes
casas e aldeias antigas onde os mortos viveram, mais velhos, entre os quais passaram suas vidas,
locais que são então retomados pela floresta. já estão agora mortos e são tsrunni, “antigos”,
Mas à medida que as pessoas envelhecem, elas para seus parentes mais jovens. Como Antonio
se tornam relutantes em se mudar para longe, uma vez me disse, planejando o futuro de
dizendo que sabem “onde querem morrer”. Santa Clara, “Os netos de nossos netos... serão
Cansadas de viver e de perambularem por aí, um tipo diferente de gente... Quem sabe como
elas querem morrer onde moram. Conforme o vão ser? Já estaremos mortos há tanto tempo,
tempo passa, as aldeias piro tendem a coalescer nunca os veremos...”.31

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Por que esse processo deve ser acompanha- está assentado em “histórias dos antigos”. Mas
do pela mitopoiese, uma facilidade crescente isso tem um significado ainda maior. A corre-
para contar “histórias dos antigos”? Penso que o sidência de avós e netos é um dos aspectos de
indício chave para responder a essa questão en- gwashata, “bem-viver”. Como eu disse, é justa-
contra-se no abandono dos marcadores de fon- mente na relação entre esses dois tipos de pa-
te ligados a quaisquer eventos de narração que rentes que a extensão temporal do parentesco é
não sejam aqueles dos “antigos” eles mesmos. mais marcada. Dessa forma, é por meio dessa
Do ponto de vista dos narradores mitopoiéticos, relação que os Piro tornam-se mitopoiéticos e,
há uma grande diferença entre uma avó mor- consequentemente, contam mitos. Os mitos,
ta e os “antigos”, que nunca foram conhecidos por mais que possam narrar qualquer outra
pessoalmente. Mas esses narradores estão con- coisa, definitivamente não são sobre gwashata,
tando suas histórias a seus netos, e sabem que, “bem-viver”, pois recontam os feitos estranhos
ao lembrarem de seus parentes, do ponto de e alheios dos seres de “há muito tempo”.
vista de seus pequenos ouvintes, seus próprios As “histórias dos antigos” confrontam os
avós e os “antigos” tratam-se da mesma coisa. Piro, enquanto seus contadores e ouvintes,
Eles passaram a compreender o que é ser uma com mundos alternativos que lhes são ao mes-
pessoa velha, um avô e, portanto, chegaram mo tempo outros e familiares. Por exemplo,
a uma formulação radicalmente nova do que “Tsla engolido por um bagre gigante” refere-se
são os “antigos”. Uma vez alcançada tal com- diretamente a características do mundo ime-
preensão da profundidade do tempo vivido, os diatamente conhecido pelos Piro, tais como a
velhos Piro têm um ponto de vista privilegiado corrente do rio Urubamba e o bagre wakawa,
para compreender as “histórias dos antigos”. a atividade da pesca ou ainda o chamado de
Por definição, essas são as coisas mais antigas pássaros agourentos. Mais remotamente, na fi-
no mundo vivido piro, pois não há nada mais gura dos Muchkajine, esse mito refere-se aos
velho do que elas: até mesmo as coisas criadas kajine, a “gente branca”, que têm um papel
nos mitos são necessariamente posteriores aos crucial na vida dos Piro. Mas refere-se também
eventos narrados. Essas histórias descrevem a entidades e ações que seriam de outra forma
eventos primordiais, muchikawpotgimni, “há desconhecidas, tais como Tsla e sua habilida-
muito tempo atrás, diz-se”. Assim, se os “anti- de miraculosa de ser engolido por um bagre
gos” jazem no limiar do horizonte temporal do gigante e sobreviver. Essas coisas são conheci-
parentesco, os eventos das “histórias dos anti- das pelos Piro somente por meio de narrativas
gos” encontram-se muito além deste. míticas. O mesmo é verdadeiro para todas as
“Histórias dos antigos” são também coi- “histórias dos antigos”, que têm sempre um pé
sas que despertam o interesse direto daquelas firmemente assentado no mundo fenomenal
crianças que agora estão povoando o mundo, imediato dos Piro, e o outro em mundos bi-
e cujo nshinikanchi está entre as coisas mais zarros e exóticos, caracterizados por diferentes
novas neste mundo. Os avós, como as pessoas formas de agentes e ações.
vivas mais velhas acessíveis a uma criança Piro, Essa característica das narrativas míticas
são as preferidas fontes de conhecimento so- talvez explique o interesse tanto por parte de
bre a profundidade temporal do mundo em seus narradores idosos quanto de seus jovens
geral. São os avós que mais sabem sobre mu- ouvintes, e por extensão para qualquer um que
chikawpotgimni, e seu conhecimento dessa era se encontre entre eles no processo de fabricação

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do parentesco. São contadas e ouvidas em uma para com esse “agora” – e o muchikawpotgimni,
casa situada em uma aldeia, a porção mais ínti- ou o “há muito tempo, diz-se...”, tempo dos
ma e familiar do mundo conhecido. Contudo eventos dos quais fala o mito. Todas as relações
conectam as características concretas desse estabelecidas pela narrativa mítica entre o co-
mundo a poderes outros e desconhecidos do nhecido e o incognoscível, sobre as quais ela
“diz-se que há muito, muito tempo...”. Pelo versa, são assim condensadas e exemplificadas
fato de se referirem às características mais evi- por esta relação específica, aquela entre o tem-
dentes do mundo vivido imediato, as narrativas po vivido conhecível e o tempo que jaz além
míticas dificilmente seriam de algum interesse da compreensão das pessoas vivas. As narrati-
aos Piro, tanto jovens quanto velhos. Mas ao vas míticas geram essa forma temporal, o “há
então apresentarem essas mesmas característi- muito tempo, diz-se...”, ao mesmo tempo em
cas conhecidas e evidentes como radicalmente que lhe fornecem um conteúdo, povoando-a e
contingentes à presença de eventos e agentes preenchendo-a com eventos. Elas prestam tes-
já há muito distantes, elas geram um interesse temunho aos mesmos eventos que narram.
contínuo para o povo piro, que não cansa de Outro sentido dessa característica das nar-
ouvi-las ou de contá-las. As narrativas míticas rativas míticas pode ser alcançado pela conside-
tornam-se, por assim dizer, profundamente in- ração de dois mitos que contei às crianças piro.
teressantes para os Piro ao conectarem o que As crianças também me pediram que contasse
é concretamente conhecível ao que é por eles histórias: “¿Qué me cuentas?”, “O que você me
concretamente incognoscível. Assim, as narra- conta?”, elas perguntavam. Em uma ocasião,
tivas míticas asseveram que esse passado incog- respondi ao pedido contando “Joãozinho e
noscível só pode vir a ser conhecido por meio Maria”, a primeira história que me veio à men-
destas histórias: elas são as únicas testemunhas te. Foi um fracasso total. Tentei redimir mi-
das origens do mundo em que vivem os Piro. nha reputação como um contador de histórias
Narrativas míticas têm uma espécie de au- narrando o mito kayapó da origem do fogo,
tonomia, de pura narratividade, que as permite vagamente lembrado da literatura (ver LÉVI-
gerar conexões entre aquilo que é conhecido e STRAUSS, 1970; TURNER [n.d.] e 1985).
aquilo que seria, de outra forma, incognoscí- Com isso, obtive muito mais sucesso. Apesar
vel. E a chave para compreender isso está em de todos meus esforços para dar a “Joãozinho
sua relação com o tempo. Os mitos são sempre e Maria” uma cor local, esse mito não fez mui-
contados no a xani, “agora”: “Agora vou con- to sentido às crianças piro: elas são deixadas
tar para vocês o que contavam os antigos...”. sozinhas, tomando conta de si mesmas, por
Como demonstrei, narradores e ouvintes es- várias horas ao longo do dia e nunca sonha-
tão, cada um deles, em uma relação distinta riam em responder a isso perambulando para
para com esse “agora”, pois este é ao mesmo longe dentro da floresta. A floresta é, de fato,
tempo a velhice dos primeiros e a infância dos repleta de seres malignos que vivem em belas
últimos. Essa relação diferencial com o “ago- casas, mas que atacam as crianças diretamente,
ra” da narração, subordinada ao quadro tem- por meio de feitiços, e não se valendo de com-
poral do ciclo de vida, permite às narrativas plexos subterfúgios. O mito kayapó fez muito
míticas estabelecer um segundo diferencial, mais sentido para elas, apesar de suas extremas
aquele entre o “agora” do evento narrativo – inversões do mito piro da origem do fogo e
e das diferentes relações de seus participantes de outros mitos piro. Pois esse mito lida com

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um mundo que é ao mesmo tempo familiar e primeiro mito na coleção de Ricardo Alvarez,
inteligível às crianças piro, um mundo repleto Los Piro (1960), e uma de suas versões aparece
de araras, jaguares, fogueiras, e daí em diante. na primeira coleção de mitos Piro (1951) de
Ele relaciona o conhecido ao incognoscível por Matteson. A primeira vez que o escutei foi pela
meios pouco familiares, contudo inteligíveis, e voz do líder piro Moisés Miqueas, em Sepahua.
as crianças pediram para ouvi-lo várias vezes. Estávamos sentados na casa de sua irmã, e ele
Por contraste, minha tentativa com “Joãozinho me dizia, em espanhol, sobre seu trabalho como
e Maria”, uma “história dos antigos” dos grin- um guia de viagens fluviais, passando pelo
gos, confusamente relacionava o desconhecido Pongo de Mainique. Descrevia-me as bizarrices
ao incognoscível, e o fez de forma consideravel- dos gringos que o contratavam. Enquanto me
mente ininteligível. Não foi interessante para contava isso, sua irmã estava conversando em
meus jovens ouvintes, e eles nunca me pediram Piro com algumas parentes. Quando comen-
para repeti-la. tei a Moisés sobre alguma coisa que uma das
mulheres disse, me olhou com surpresa e disse:
Os mitos que as pessoas contam “Então agora você entende nossa língua!”. Em
seguida narrou a história de “Tsla engolido por
Por que os Piro contam mitos específicos em um bagre gigante”. Depois de contar-me que
contextos específicos? Quais são as deixas que Tsla e os Muchkajine partiram rio abaixo para
os fazem contar esse mito em lugar de qualquer um destino desconhecido, terminou a história
outro? Não tenho acesso à experiência primária como segue: “Depois que Tsla e os Muchkajine
da narração de mitos piro, aquela entre avós partiram, os patrões brancos vieram, então vie-
e netos: sempre que estive presente, os adul- ram os espanhóis, e então fizemos a comunidad
tos, por respeito, direcionavam sua narração a nativa de Sepahua, e é assim que isso veio a ser
mim. Contudo há certos traços interessantes como é hoje”. Esse relato é uma versão mui-
do modo como os mitos me foram contados to condensada das narrativas históricas piro. A
que confirmam e estendem minha análise aqui. extensão temporal básica dessas narrativas his-
Já sugeri certos aspectos dessa questão em rela- tóricas tem início, como indiquei acima, com
ção à narração de Artemio de “Um homem que a escravização dos “antigos” pelos patrões nos
foi para baixo da terra”, mas pretendo explo- “tempos da borracha”. Esse período foi sucedi-
rar neste momento outras características dessa do pelos “tempos da hacienda” (omitido no re-
prática. Como disse, “Um homem que foi para sumo de Moisés), que por sua vez terminaram
baixo da terra” me foi contado somente aquela com a chegada dos gringos. No caso específico
vez, por Artemio. Certos mitos eram contados de Sepahua, esses tempos têm fim com a chega-
a mim mais frequentemente – um deles, espe- da dos padres ou “espanhóis”, padres dominica-
cificamente, foi contado muitas vezes – ao pas- nos vindos da Espanha. No período seguinte,
so que outros nunca me foram contados. os Piro e outros povos indígenas estabeleceram
“Tsla engolido por um Bagre Gigante” foi o as comunidades nativas, comunidades legal-
primeiro mito que me contaram na vida, e tam- mente reconhecidas e donatárias de terra (ver
bém o primeiro contado a mim por Antonio (a GOW, 1991 para uma discussão mais ampla
pessoa que mais me narrou mitos), ainda que sobre a narração histórica piro).
desta vez ele o tenha contado como “Kamayaka O fato de Moisés ter podido ligar esta his-
engolido por um katsalo”. Esse é também o tória a esse mito ajuda a explicar por que ele

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me foi contado tão frequentemente: “Tsla en- uma forte suspeita de que esperavam que eu, ou
golido por um Bagre Gigante” é o “mito da algum outro branco, talvez pudesse contar isso
história” piro. Como mostrei detalhadamente a eles. Sempre que me narravam esse mito ha-
em Of Mixed Blood, os Piro e outros povos in- via alguns risos nervosos quando pela primeira
dígenas do baixo Urubamba veem sua história vez os Muchkajine eram mencionados. Trata-se
como a formação de suas relações de parentes- dos irmãos mais novos de Tsla, nascidos como
co contemporâneas, ao decorrer do ciclo das ele do útero desmembrado de sua mãe, e atuam
gerações. E veem esse processo como tendo nos mitos como seus assistentes e a sua audi-
ocorrido por conta das relações transformado- ência. Muchkajine significa, além disso, “bran-
ras que estabeleceram com diferentes tipos de cos de há muito tempo” (muchi- + kajine: “há
brancos, tais como os patrões da borracha, seu muito tempo” + “brancos”), o que explica os
antigo “chefão” Pancho Vargas, missionários risos nervosos quando esses personagens eram
dominicanos e do SIL,32 além de funcionários mencionados: de alguma maneira que nunca
do estado peruano. Além disso, essa história é me foi explicitada, os Muchkajine são a origem
pensada em termos do rio Urubamba, pois é mítica dos diversos tipos de gente branca, tanto
ao longo e principalmente a montante desse históricos quanto contemporâneos. Contudo,
rio que esses diferentes tipos de gente branca apesar do leve desconforto causado, é por isso
chegaram.33 que versões de “Tsla engolido por um Bagre
É disso que trata “Tsla engolido por um Gigante” foram tão facilmente eliciadas por
bagre gigante”. Esse mito versa sobre uma mim. Pois esse mito lida muito diretamente
tentativa frustrada de represar o rio Urubamba com um problema evocado pela minha mera
na altura do Pongo de Mainique, o mais presença, na medida em que eu, assim como
extremo limite a montante daquilo que os Piro a maioria dos “brancos”, tinha vindo de “rio-
reconhecem como seu mundo: como me dis- -abaixo/ do exterior”, isto é, o destino de Tsla e
seram, os “Piro antigos” nunca viveram acima dos Muchkajine.
do Pongo. Depois dessas grandes corredei- Parece-me claro que no momento em que,
ras está o alto Urubamba, território do povo no decorrer de sua relação com um branco, os
Machiguenga,34 e além dele encontra-se a terra Piro chegam ao ponto de começar a introduzir
dos shishakone, os “andinos” e Gigkane, os conhecimentos mitológicos na conversa, “Tsla
Incas.35 Semelhantemente, Tsla e seus irmãos engolido por um bagre gigante” vem mais fa-
partem rio abaixo, para um destino não espe- cilmente à mente. Pois esse mito, ao lidar com
cificado. Ao fazê-lo, acabam ultrapassando os os limites espaciais do mundo vivido dos “Piro
limites à jusante do mundo vivido Piro, o alto antigos”, versa também sobre as condições pré-
Ucayali e as aldeias do povo Conibo, desapare- vias das relações dos Piro com os brancos em
cendo no “exterior”, nos misteriosos mundos geral. Na medida em que qualquer relação dada
rio-abaixo do Brasil, Europa e Estados Unidos. entre um Piro e um branco pode ser pensada a
A “terra da morte” da qual Tsla e seus irmãos um só tempo como o prolongamento e a pro-
fogem ao escutar o canto do pássaro é o mundo jeção contínua da história desse povo (no sen-
vivido Piro. tido em que ela foi definida acima), esse mito
O que foi feito de Tsla e os Muchkajine nin- em particular é o mais “interessante” para se
guém sabe, e nenhum Piro estava disposto a contar, uma vez que é o ponto mais apropriado
especular sobre o assunto para mim.36 Tenho para se começar a narrar mitos para os brancos.

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Além disso, em nenhuma das vezes em que me predador poderoso e temido (jaguar ou ana-
contaram esse mito a situação foi marcada pela conda) e progridem narrando as desastrosas
mesma intensa sensação de expectativa que se consequências destas relações de afinidade
fazia presente na conversa que levou Artemio e as aventuras subsequentes de um grupo de
a me contar “Um homem que foi para baixo germanos (Tsla e os Muchkajine ou as irmãs
da terra”, expectativa essa que sugeri ter pos- Kochmaloto). Esses mitos serão discutidos em
sivelmente marcado a narração de “O sol”, detalhes nos próximos capítulos, não obstante,
feita por Sebastián a Matteson. Nas vezes em pode-se notar desde já que não deve ser fortui-
que me contaram “Tsla engolido por um bagre to que esses “mitos dos mitos” piro girem em
gigante”, o tom emocional era bem diferente, torno das relações entre avós e netos: é a avó ja-
pois essa história concernia àquilo que os Piro guar de Tsla quem salva o útero contendo Tsla
podiam, sem qualquer problema, saber em re- e seus irmãos mais novos de ser comido por
lação a um gringo: uma “história dos antigos” seus próprios filhos,37 e é a avó humana quem
sobre o rio ao longo do qual os próprios antigos joga seu neto anaconda no fogo, provocando a
viveram, assim como os Piro vivem até hoje. enchente. Portanto, estas histórias evocam di-
Se “Tsla engolido por um bagre gigante” retamente a mesma relação na qual os mitos
tinha grandes chances de ser o primeiro mito são caracteristicamente contados.
a me ser contado, também era provável que Os “mitos dos mitos” Piro, tal como “Tsla
logo depois fosse seguido de “O nascimento engolido por um bagre gigante”, variam quan-
de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”. Esses do mudam de narrador a narrador e também ao
eram os mitos mais frequentemente contados longo do curso da vida de um mesmo narrador,
a mim, e sua proeminência tanto nas coleções como mostrei aqui. Não obstante, todas as ver-
de Alvarez e Matteson quanto nas descrições sões que conheço deste tipo de mito são dotadas
de Matteson da cultura Piro confirmam seu de uma notável consistência, sejam elas per-
lugar central em sua mitologia, ao menos da tencentes ao arquivo documental, sejam aque-
perspectiva de um ouvinte estrangeiro branco las que me foram contadas diretamente. Mitos
(ver ALVAREZ, 1960; MATTESON 1951, como esses não apresentam as mesmas variações
1954, 1955). Quando pedia a informantes que dramáticas que vimos para a narrativa mítica
eu conhecia bem para me contarem “histórias sobre os queixadas. Isso sugere que há uma con-
dos antigos”, era com essas histórias que eles tinuidade básica na forma com que essas narrati-
começavam mais frequentemente suas narra- vas estão relacionadas com o mundo, ao mesmo
ções. Tudo indica que, quando a deixa que leva tempo em que indica que não estão sendo afeta-
à narração de um mito é o termo “história dos das pelas mesmas mudanças históricas que afe-
antigos”, são os mitos “O nascimento de Tsla” taram as narrativas míticas sobre os queixadas.
e “As mulheres Kochmaloto” que primeiro vêm Essa outra característica será discutida na Parte
à mente. Dessa maneira, eles parecem ser as II, fazendo referência aos “mitos dos mitos”, e na
instanciações chave do mito para os Piro: são Parte III me voltarei ao “mito da história”.
“histórias dos antigos” par excellence.
“O nascimento de Tsla” e “As mulheres Mitos esquecidos
Kochmaloto” são mitos notavelmente seme-
lhantes em muitos aspectos: ambos iniciam- Há ainda outra categoria que compreen-
-se com uma mulher engravidada por um de aqueles mitos que as pessoas não são mais

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capazes de contar porque afirmam tê-los esque- eram gente. Assim também era lua. Lua cos-
cido. Por exemplo, estimulado pelos impor- tumava descer aqui para a terra. Uma menina,
tantes estudos sobre as máscaras piro pagotko que não dormia com homens daqui, dormiu
ou pagota realizados pelo antropólogo suíço com lua. Ela pintou o rosto dele com huito.
Baer (1974, 1976-77), em 1988 pedi para Por essa razão, ele tem marcas pretas quanto
Antonio contar-me uma “história dos antigos” está cheio”. A incapacidade de Antonio em me
sobre elas. Nos anos 1980, minhas questões contar esse mito outra vez seis anos mais tarde
tiveram como resposta apenas um aborreci- não pode ser explicada por um simples abor-
mento educado da parte de meus informantes; recimento com minhas perguntas, ou mesmo
contudo, levando em consideração o material com o próprio ato de narrar mitos. Em 1988,
de Baer, acredito que existiram importantes ele me contou muitos mitos e estava muito
conexões entre esse mito e os processos de animado ao narrá-los. Eram justamente as
fabricação e uso da cerâmica.38 Pouco tempo narrativas míticas sobre a lua e sobre pagota,
antes Antonio havia me contado três longos não as narrativas míticas em geral, que ele não
mitos piro, incluindo um completamente podia contar e que tinha “esquecido”.
novo para mim. Pensando que esta era uma Encontramo-nos diante da dinâmica tem-
situação propícia, perguntei a ele sobre pago- poral da mitopoiese. Da mesma maneira que o
tko. Antonio então começou a dizer, hesitante, processo mitopoiético leva a uma expansão das
“Pagota é um demônio com um nariz grande. narrativas míticas, na forma de uma memória
Ele vive na floresta, e é um dono dos animais... aparentemente mais profunda dos eventos de
Na verdade, não conheço essa história muito narração passados, os narradores tornam-se
bem... faz tanto tempo desde que minha mãe também mais conscientes das falhas de memó-
contou-a para mim, que não me lembro mais ria. Contudo, tais lapsos mnemônicos não pa-
direito”. E prontamente abandonou a tentativa recem incomodá-los, pois o que está em jogo
de narrá-la. De maneira similar, quando aqui não é a memorização, mas o interesse.
comecei a perceber a significância do relato Os narradores piro não estão empenhados em
de Artemio sobre a lua, tentei fazer que as transmitir um cânone de histórias, e, portanto,
pessoas me contassem “histórias dos antigos” não têm qualquer interesse abstrato em recon-
sobre esse corpo celeste, algumas das quais tar todos os mitos que já ouviram. Só contam
já conhecia de versões publicadas.39 Não me aqueles nos quais tanto eles quanto seus ouvin-
contaram nenhuma, todos afirmando sua ig- tes veem agora algum interesse.
norância. Na mesma ocasião discutida acima, Há ainda outra questão aqui. Assim como
pedi para Antonio me contar sobre a lua. Ele a mitopoiese pode gerar versões mais comple-
se recusou, dizendo que não conhecia a histó- xas e elaboradas de narrativas míticas confor-
ria. Contudo depois descobri em minhas ano- me o narrador envelhece, também pode levar
tações que – algo completamente esquecido as narrativas míticas a desaparecerem e serem
por mim e presumivelmente também por ele esquecidas, na medida em que tanto os narra-
– Antonio tinha de fato me contado uma ver- dores quanto seus ouvintes perdem o interesse
são simplificada do mito da lua em 1982, no nelas. Vimos um exemplo de tal transforma-
único relato da origem das estrelas que já ouvi ção no desaparecimento do tema da jornada
da boca de um Piro. Segundo minhas notas, de canoa do sol, ocorrido entre a primeira e a
ele narrou: “Meus avós diziam que as estrelas segunda versões registradas da narrativa mítica

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Mitos e mitopoiese | 203

de Sebastián sobre o mundo subterrâneo dos Em 1995, perguntei a Sara Fasabi sobre esse
queixadas. O esquecimento de Antonio da nar- assunto enquanto ela fazia enfeites de miçan-
rativa mítica sobre a lua fornece ainda outro gas para mim. Ela rapidamente reconheceu o
exemplo. problema, dizendo-me que não conhecia a res-
A categoria das “histórias dos antigos es- posta e que consultaria então sua mãe. No dia
quecidas” é claramente formulada pelos Piro, seguinte, enquanto a velha Clotilde ensinava
mas, evidentemente, essa categoria tornou-se um novo grafismo à sua filha, lhe perguntamos.
saliente para mim precisamente naquelas situ- Ela demorou alguns instantes para entender a
ações nas quais queria que as pessoas me con- questão e então, percebendo o que queríamos
tassem mitos específicos. Eu sabia da existência saber, disse-nos com entusiasmo:
desses mitos porque os havia lido na literatura
sobre a mitologia piro, e geralmente ficava de- Ah, agora eu entendi! Os antigos talvez contas-
sapontado quando as pessoas não conseguiam sem histórias sobre os motivos gráficos dos en-
contá-los para mim. Contudo, é possível que feites de miçangas, mas não sei nada sobre essas
essa categoria das “histórias dos antigos esque- coisas, não. Só faço os motivos que vi minha
cidas” possa ter uma significação mais positiva, avó fazer quando eu era menina. Quem sabe o
tanto para os Piro quanto para minha análise. que os antigos podem ter contado sobre eles? Eu
Será possível que a categoria de “mitos esque- não faço ideia.
cidos” também inclua mitos que nunca foram
contados ou escutados, mas que fazem uma Há muito tempo, os grandes barcos fluviais cos-
espécie de sentido lógico para os Piro? Nesse tumavam vir até aqui em cima, carregados com
sentido, as pessoas estariam dispostas a postu- contas de vidro brancas, vermelhas e pretas, e
lar sua existência, mas afirmariam que foram os brancos que já morreram (kajinni) trocavam-
esquecidos. -nas por fruta de tsopi40. Então os Piro faziam
Sugiro isso porque, em 1995, Clotilde um kigimawlo (ritual de iniciação feminino)
Gordón me contou sobre a natureza “esqueci- com muitas miçangas.  
da” de um mito que estou razoavelmente certo
de nunca ter existido: “o mito Piro da origem Talvez há muito tempo houvesse uma his-
dos grafismos”. Ao analisar os dados coletados tória dos antigos sobre a origem dos motivos
no início dos anos 1980 e especialmente em gráficos, mas a velha Clotilde não podia recor-
1988 sobre yonchi, “grafismos”, estava frustra- dá-la. Como nos disse, nunca a havia escutado,
do pela ausência, tanto em meu material quan- portanto não a conhecia. Não obstante, em se-
to na literatura, de uma narrativa mítica que guida a velha Clotilde deslocou seu relato para
desse conta de suas origens. Isso contrastava uma narrativa de experiência pessoal direta so-
fortemente com a situação entre os vizinhos ao bre uma mudança que a interessava sobrema-
norte, o povo Shipibo-Conibo (BERTRAND- neira: o progressivo declínio na disponibilidade
ROUSSEAU, 1983; GERBHART-SAYER, de contas desde que era jovem. A essa altura, era
1984). Durante o processo de análise conven- a mais velha autoridade viva nos costumes dos
ci-me de que não existia um mito de origem antigos Piro na área de Santa Clara: como nos
dos yonchi, mas não podia ter certeza disso. disse, os antigos provavelmente contaram his-
Pareceu-me uma estranha lacuna na mitologia tórias sobre os motivos gráficos, mas Clotilde
piro, porém uma lacuna real. nunca tinha ouvido sua avó contá-las e por isso

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não as conhecia. Assim, se tal mito alguma vez e que é portanto totalmente novo, pois não há
existiu, não foi interessante o suficiente para ser meio de assegurar-se de que sua ausência em
lembrado ou repetido. Isso me leva à forte sus- coleções de narrativas míticas anteriores não se
peita de que minha análise está correta, e que deve ao fato de simplesmente não ter sido co-
os Piro nunca chegaram a contar esse mito, ou letado. Tampouco podemos esperar ajuda por
ao menos não contaram qualquer mito deste parte de nossos informantes, pois eles dificil-
tipo por um longo tempo. Dada minha descri- mente contariam um mito que experienciaram
ção da mitopoiese piro, que melhor definição subjetivamente como novo. Não obstante, pa-
de um mito não existente alguém poderia for- rece-me que a categoria de “mitos esquecidos”
necer do que a afirmação por uma velha de que aponta para uma fonte potencial de novos mi-
sua avó nunca o contou para ela? tos. Se a categoria de “mitos esquecidos” toma
Uma narrativa mitológica sobre a origem forma à medida que o mundo muda, e conse-
dos motivos gráficos pode não ser de interesse quentemente à medida que muda também o
da velha Clotilde, ou de qualquer outro Piro, interesse das pessoas, deve haver uma categoria
contudo, ela é, inevitavelmente, de interes- correspondente, ainda que não marcada, para
se de analistas. Parece-me que um velho Piro “mitos potenciais” da qual podem surgir novas
poderia, se considerasse a questão interessante, narrativas míticas. Os principais candidatos a
contar uma narrativa sobre isso. Ou então, caso isso seriam mitos ou outras histórias contados
ele de fato considerasse a questão de interesse por povos vizinhos e escutados pelos Piro, pois
suficiente, poderia também, dada a natureza esses poderiam, nas circunstâncias certas, ser
da mitopoiese, inventar espontaneamente essa lembrados erroneamente como “histórias dos
narrativa mítica por meio da transformação de Piro antigos”. É possível que sejam desta or-
outros mitos: na Parte II, mostro como os “mi- dem algumas das narrativas míticas que cons-
tos dos mitos”, ao lidarem com motivos grá- tam no arquivo publicado, ou mesmo algumas
ficos, poderiam ser bons candidatos para uma dentre as quais pude escutar.
história destas. Isso sugere que a relação entre Evidentemente, dada a natureza do arquivo
as narrativas míticas e o mundo é governada disponível, haveria dificuldade em identificar
pelo interesse desse povo, mas também que tais processos, tanto por meio do trabalho de
esse interesse é uma forma de investimento. campo quanto por pesquisa histórica. Contudo
Somente certas características do mundo, além podemos identificar um fragmento de evidên-
de determinadas narrativas míticas, são inves- cia confirmatória, presente num subgênero das
tidas com esse tipo de interesse que as torna “histórias dos antigos” piro: os contos sobre
significativas para os Piro, seja como ouvintes, Shanirawa. Trata-se de um bufão, cujas histó-
seja como narradores. rias são intencionalmente divertidas, pois são
Por detrás do problema dos “mitos esqueci- baseadas em seus constantes enganos sobre coi-
dos” jaz uma questão metodológica de algum sas simples. Por exemplo, Shanirawa confunde
peso, pois, metodologicamente, somos cegos bosta de anta com veneno de peixe, e sua al-
aos processos mitopoiéticos na medida em que deia natal com a dos Giyakleshimane, o “povo
eles geram mitos totalmente novos por meio dos peixes miraculosos”. Não obstante, todas
da transformação radical de outros mitos. De as “histórias sobre Shanirawa” parecem ser ba-
forma alguma poderemos dizer que determi- seadas em importantes mitos yaminahua, tal
nado mito nunca foi contado anteriormente, como os mitos de origem do veneno de peixe

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Mitos e mitopoiese | 205

e dos alucinógenos. Cecilia McCallum infor- temporal interna a suas próprias vidas. Além
mou-me (comunicação pessoal) que o nome disso, essas histórias evocam uma característi-
piro Shanirawa provavelmente deriva do termo ca central desta temporalidade, o contato do-
pano Chanidawa, “inimigo/estrangeiro mor- méstico íntimo dos avós com seus netos. Dessa
to”.41 Os contos de Shanirawa podem bem ser maneira, as “histórias dos antigos” podem
um modo pelo qual “mitos potenciais” estão ser pensadas como estruturas de significação,
sendo importados de povos vizinhos falantes apontando para longe dos seguros arredores
de línguas pano. domésticos, de modo a chamar a atenção para
Assinalo esta possibilidade com o intuito características importantes do mundo piro. É
de dissipar de uma vez por todas uma pos- este processo que torna os mitos interessantes
sível má interpretação de minha análise. A para os Piro, pois, como notou Sahlins, “in-
metodologia que adotei aqui significa, inevi- teresse é o valor que algo tem para alguém”
tavelmente, que devo seguir as transformações (1981, p. 68).
ocorridas nas narrativas míticas conhecidas ao Como afirmei antes, as histórias dos antigos
longo do tempo, e também seguir aquelas já nunca me foram contadas no mesmo tipo de
conhecidas em suas trajetórias em direção ao cenário no qual os Piro normalmente as con-
esquecimento. De modo algum, penso que seja tam e escutam. Contudo, há uma importante
apenas isso o que esteja ocorrendo com os Piro característica das pessoas que, como Artemio
ou com sua mitologia; decerto não acredito naquela noite,42 contaram-me mitos, caracte-
que essa esteja embarcando em uma viagem só rística que está relacionada a um aspecto chave
de ida para o esquecimento. Isto seria apenas das “histórias dos antigos” na experiência piro.
um mal-entendido gerado pela metodologia Pois as pessoas que mais frequentemente me
adotada aqui. Acredito que minha análise da narraram mitos foram homens que eram, real
mitopoiese, se conduzida em outra direção, ou potencialmente, gitsrukaachi, “pessoas im-
poderia potencialmente desvelar a criatividade portantes, grandes”, em outras palavras, líderes
histórica das narrativas míticas piro, na medida de aldeia. Essa palavra compartilha o mesmo
em que as histórias dos antigos são inventadas radical tsru “grande, velho”, com tsrune “ve-
não menos do que transformadas ou tornadas lhos” e tsrunni, “antigos”. A palavra gitsrukaachi
imemoráveis. é a forma possessiva de tsru, e a forma na pri-
meira pessoa do plural (wutsrukatenni, “nossos
Velhos, líderes de aldeia e brancos velhos que agora infelizmente estão mortos”) é
corresidentes por sua vez usada para referir-se a todos os ve-
lhos Piro que já morreram e que são lembrados
Como estamos agora em posição de com- pessoalmente: no espanhol do Ucayali, as pes-
preender, mitos como “Um homem que foi soas dizem los finados nuestros abuelos, “nossos
para baixo da terra” são um tipo específico de falecidos avós”. É precisamente essa categoria
histórias para os Piro, aquelas que teriam sido de pessoas que constitui as fontes privilegiadas
contadas pelos antigos anônimos, mortos já há de mitos para os adultos vivos.
muito tempo. São contadas hoje porque são in- Líderes de aldeia tais como Artemio são, nes-
teressantes, e porque o processo de aprender a se sentido, prematuramente tsrune, “velhos”.43
contá-las articula aspectos importantes da for- Como discutido em outro lugar (1991, pp.
ma como os Piro experienciam a transformação 205-11), um aspecto central de ser um líder de

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aldeia é a boa oratória. Líderes de aldeia também que os Piro experienciam ambos os mitos como
são aqueles que tomam a iniciativa em expandir complementares. Retomarei esta questão no
suas aldeias ao integrar os recém-chegados. Isto Capítulo 9. De modo a chegar a tal conclusão,
é em parte o que Artemio estava fazendo quan- precisamos, por assim dizer, penetrar as relações
do, naquela noite, me contou “Um homem que internas do mundo vivido piro, acompanhan-
foi para baixo da terra”: tentava mostrar-se um do esses mitos do mito, que são “O nascimento
bom líder ao contar-me uma “história dos anti- de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”. Pois essas
gos”, e demonstrando, por meio da habilidade narrativas nos conduzirão mais intensamente a
em contar essas histórias, que ele era efetiva- alguns aspectos do mundo vivido piro que já
mente um bom gitsrukaachi Piro. apareceram aqui: motivos gráficos, vestimentas,
Se missionários e antropólogos, na quali- experiência alucinatória, xamanismo e o ritual
dade de forasteiros, inevitavelmente devem ter de iniciação feminino. Isso nos trará eventual-
falado principalmente com líderes de aldeia mente para aquele outro mito contado na noite
como Artemio, e se devem ter sido justamen- de 15 de janeiro de 1982, aquele sobre a lua. Se
te essas as pessoas mais dispostas a lhes contar soubéssemos por que Artemio estava interessado
mitos, então isso significa que é provável que na questão de se os norte-americanos estiveram
o arquivo histórico de mitos piro espelhe esse ou não na lua, estaríamos em uma posição mui-
fato. Já demonstrei que isto é verdadeiro para to melhor para compreender por que aquela his-
a narrativa mítica “Tsla engolido por um ba- tória que sua mãe lhe contou deve tê-lo levado
gre gigante”, e a proeminência da mitologia a me contar “Um homem que foi para baixo da
sobre Tsla nas coleções de Matteson (1951) e terra”.
Ricardo Alvarez (1960) sugere que esses tipos
de narrativas míticas também foram específica Notas
e preferencialmente contados por seus infor-
mantes. Por contraste, “Um homem que foi 1. [N.T.] Este texto corresponde ao capítulo 3 do livro
para baixo da terra”, juntamente com o mito An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford
sobre o lar dos queixadas no submundo, pa- University Press, 2001. Para não interferir no curso
recem não ser contados muito frequentemen- do texto, resolvemos não suprimir as referências aos
te. Contudo, como notei no Capítulo 2, esse demais capítulos, o que exige que o leitor mais inte-
mito aponta para alguns aspectos interessantes ressado as busque na obra original, ainda inédita em
presentes na relação entre narrador e ouvinte, português.
pois muitas de suas narrações conhecidas, além 2. Como esclarecem Basso (1987) e Urban (1991), a
da narrativa mítica em si, parecem trazer um abordagem discurso-centrada à cultura [discourse-cen-
interesse intrínseco para o narrador quando ele tered approach to culture] está completamente inserida
o narra para gringos. no projeto da antropologia culturalista boasiana, e é
Haveria uma conexão especial entre “Tsla um de seus campos mais férteis. Dessa forma, deve
engolido por um bagre gigante”, essa narrativa pouco à tradição sociológica europeia que levou aos
mítica que é tão facilmente contada para os bran- trabalhos de Malinowski e Lévi-Strauss.
cos, e as variantes de “um homem que foi para 3. [N.T.] No original, “Ancient People’s Stories”. O ter-
baixo da terra”, a narrativa mítica que parece co- mo “stories” foi traduzido por “histórias”. A decisão se
locar em relação os conhecimentos dos “antigos” justifica devido ao fato do termo “estória” ter caído em
e dos gringos? Acredito que esta conexão existe e desuso em português, de modo que seu emprego atual

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reforça o traço semântico original de “narrativa sem fragmentos de vasos como componentes na produção
valor de verdade, ficcional”. Como afirma Peter Gow de cerâmica, pelo que sei elas não procuravam sítios
na página 8 deste capítulo, não há entre os Piro qual- arqueológicos para encontrá-los. Usavam somente
quer categoria para narrativas ficcionais, de modo que vasos e panelas recém-quebrados para este propósito.
a opção pelo termo “histórias”, no plural e com letra Nisto, diferem dos Shipibo-Conibo (ROE, 1982).
inicial minúscula (de modo a diferenciá-lo de História 8. Evidentemente, os “antigos” presumivelmente ainda
– a ciência ocidental, não raro ligada à noção de pro- existem na forma de pessoas mortas na floresta, mas
gresso – e a aproximá-lo da concepção de historicida- ninguém discutiu isso comigo.
des múltiplas) adequa-se melhor às concepções piro 9. Ver Capítulo 5 para uma discussão das letras das can-
e à questão central da obra de Gow aqui traduzida, ções xamânicas.
nomeadamente a busca por uma historicidade própria 10. Ao menos em relação a sapna, isso é verdadeiro para
à mitologia piro. o povo Piro-Manitineri brasileiro do rio Yaco, alguns
4. Matteson (1954, p. 68) e Ricardo Alvarez (1970, p. dos quais encontrei em Rio Branco (Acre) em 1987 e
67) mencionam uma forma extinta de drama denomi- 1990.
nada yimlu, na qual os velhos encenavam os diferentes 11. [N.T.] Assinalo aqui o contraste entre “ancient people’s
personagens de um mito. Matteson menciona que, stories”, ou “histórias dos antigos”, em que a preposi-
nos anos 1950, ela já não tinha sido realizada havia ção deve ser entendida em seu sentido possessivo – ou
muitos anos. Meus informantes nos anos 1980 nun- seja, trata-se das histórias que os antigos tinham, isto é,
ca tinham ouvido falar dela. O termo yimlu significa que contavam –, e “stories about ancient people”, isto
“imitação”. Presumivelmente, mesmo quando ela era é, histórias que, contadas pelos Piro de hoje em dia,
realizada, yimlu não era a forma principal de contar versam sobre os antigos.
mitos. 12. É claro, um narrador pode também simplesmente
5. Moza gente são pessoas identificadas no baixo Urubamba estar mentindo (piro, gaylota; espanhol do Ucayali,
como originárias de áreas ao norte da Amazônia engañar). Essa é uma importante arte verbal entre os
peruana, ou seus descendentes, e normalmente são Piro (cf. BASSO, 1987, sobre os Kalapalo).
falantes nativos de quéchua ou espanhol do Ucayali. 13. O relato de Ireland sobre os Waurá é particularmente
Indivíduos moza gente podem ser definidos – ou ain- revelador nesse sentido: os Waurá consideram que os
da definir a si mesmos – mais especificamente como mitos são os melhores exemplares de qualquer histó-
Lamista, Cocama, Jabero, Napo Quechua etc. Eles ria, mas desaprovam afirmar sua veracidade porque,
nunca são considerados gente blanca, “brancos” (vide por definição, nenhum narrador vivo ou qualquer ou-
GOW, 1991; 1993). tra pessoa conhecida pode ter testemunhado os even-
6. A maioria de meus informantes Campa eram jovens tos a que eles se referem.
adultos, e minha única informante próxima mais 14. [N.T.] Isto é, que foram “transmitidas”, que não foram
velha passou a maior parte de sua vida jovem como “criadas” ou “experienciadas” pelo próprio narrador.
uma escrava doméstica na casa de um patrão branco. 15.[N.R.] Traduz-se aqui “kin” por “parente”. Note-se,
Também é possível que essas pessoas sintam-se inibi- no entanto, que em inglês o campo semântico de
das a contar esses mitos em territórios tidos definiti- “kin” é mais restrito do que o de “parente” em portu-
vamente como “terra dos Piro antigos”, não “terra dos guês, visto que se o primeiro designa mais especifica-
Campa antigos”. mente os “parentes por consanguinidade”, o último
7. De qualquer forma, não estavam muito interessados abrange também as relações de afinidade, o que no
neles, ou também os temiam ativamente. Além dis- inglês compreende a ideia contida na palavra “relati-
so, ao passo em que as mulheres piro usavam velhos ve”. Louis Dumont apresenta discussão aprofundada

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sobre essa questão em Groupes de Filiation et Alliance 26. Goody (1987) chega a uma conclusão muito similar
de mariage: introduction a deux théories d’anthropologie em suas reflexões sobre o relato de Stanner sobre uma
sociale (Paris, Gallimard, 1997). Gow fornece uma sociedade aborígene australiana.
breve descrição do sistema de denominações piro 27. Essas mesmas relações permanecem verdadeiras no
das relações de parentesco presentes no processo emprego local do espanhol Ucayali, no qual todos os
mitopoiético. parentes mais novos são interpelados como papito, se
16. Para uma discussão sobre as narrativas históricas Piro, homem, ou mamita, se mulher.
vide Gow (1990a, 1991). 28. [N.T.] No original, “old dead people”.
17. [N.T.] No original, “real”. Optei por empregar a palavra 29. Nunca escutei bisabuelo/bisabuela, os termos em espa-
“verdadeiro” devido a seu uso mais corrente na antropolo- nhol para bisavô/bisavó, serem empregados por gente
gia brasileira: “parente verdadeiro” ou “parente mesmo”. local no baixo Urubamba.
18.Essa é uma das piores facetas da observação parti- 30. Isso pode dar conta do caráter de descrição genérica
cipante como método: a tendência a extrapolar, a das histórias “sobre os antigos”: talvez originalmente
partir de uma situação imediata, para processos de contadas como histórias sobre parentes mais velhos
transformação histórica de longo termo. Boa parte narradas por pessoas já mortas, elas tornam-se cada
da literatura sobre “aculturação” foi marcada por vez mais anônimas e menos narrativas à medida que
essa tendência, o que dá a ela um tom ao mesmo são repetidas ao longo do tempo e os personagens ori-
tempo melancólico e melodramático, verdadeira he- ginais progressivamente escapam à memória.
rança de certas correntes do romantismo alemão (ver 31. Usei a forma completa dessa afirmação como a epígra-
SAHLINS, 1995). fe de Of Mixed Blood (1991, p.xii).
19. Ver a discussão sobre essa canção no Capítulo 6. 32. [N.T.] Summer Institute of Linguistics.
20. Para outros mitos contados por Artemio, ver também 33. Os dominicanos, singularmente, “vieram rio-abaixo”,
os Capítulo 4 e 8. de sua base em Cusco para longe em direção ao sul nas
21. Planejei a investigar mais a fundo essa questão em cabeceiras do rio Urubamba. Os missionários do SIL
1995, mas fui impedido pelas circunstâncias. Além da “vieram rio-acima” de sua base perto de Pucalpa, assim
morte de Artemio, Antonio também havia se afastado como os outros brancos.
de Sepahua. Sara, nesse período aos 38 anos de idade, 34.Os Piro me disseram que “a terra dos Machiguenga”
na realidade não narrava qualquer mito, mas estava encontra-se além do Pongo, no alto Urubamba, ape-
muito mais disposta a contar “histórias sobre os anti- sar de que muitas dessas pessoas hoje vivem abaixo
gos” do que antes. dele.
22. Meu uso deste conceito deriva do importante estu- 35. Moisés explicou-me que os Incas não morreram, estão
do de Mimica sobre o povo Iqwaye de Papua Nova- na verdade vivendo dentro das montanhas nos Andes.
Guiné (1988). Meu uso aqui é levemente diferente, Diferentemente da maioria dos Piro, que têm aversão
uma vez que foco o próprio ato de narrar os mitos, aos Andes e que não estão particularmente interes-
ao invés das pré-condições gerais de tais narrativas. A sados nos Incas, Moisés viajava frequentemente para
adaptação é justificada pela natureza extremamente Cusco.
“exotérica” das narrativas míticas piro, se comparada 36. Veja, contudo, “The World on the Other Side”, de
com as dos Iqwaye. Zacaría Zumaeta (MATTESON 1965, p. 210–15, e a
23. Veja os textos no Apêndice de Mitos, e a discussão discussão a seguir, no Capítulo 7).
desses mitos nos capítulos 4 e 5. 37. [N.T.] Também eles jaguares.
24. [N.T.] No Brasil, também conhecido por jaú. 38. Eu tinha, a essa altura, falhado em fazer a conexão en-
25. [N.T.] Também conhecido no Brasil como piraíba. tre essa narrativa mítica e o tema dos queixadas.

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39. Vide a discussão no Capítulo 6. Por respeito pelo que GOW, Peter. Of mixed blood: Kinship and history in
ele tinha me contado anteriormente, não perguntei Peruvian Amazonia. Oxford Studies in Social and
nada a Artemio. Cultural Anthropology. Oxford: Oxford University
40. Uma fruta leguminosa, chamada guaba em espanhol Press, 1991.
Ucayali (Lat. Inga Edulis). Tem um bagaço doce ao redor GRAHAM, Laura. Performing dreams: discourses of
das sementes pretas que ficam dentro de uma longa e dura Immortality among the Xavante of Central Brazil.
vagem verde. [N.T.] No Brasil, é conhecida como ingá. Austin: University of Texas Press, 1995.
41. [N.T.] Aqui a tradução se torna especialmente comple- GREGOR, Thomas. Mehinaku: the drama of daily life
xa devido à polissemia do termo “lie”, que pode signi- on a Brazilian Indian village. Chicago and London:
ficar tanto “mentir” quanto “deitar” e, por extensão ao University of Chicago Press, 1977.
segundo, também “morrer”, como na expressão “here HILL, J. D. Keepers of the Sacred Chants: the poetics of
lies...”. Optamos pelo último devido a seu sentido béli- ritual power on an Amazonian society. Tucson and
co mais facilmente associável à ideia de inimigo. London: University of Arizona Press, 1993.
42.
[N.T.] Noite de 15 de janeiro de 1982, na qual IRELAND, Emilienne. Cerebral savage — The white
Artemio contou a Peter Gow o mito “O homem que me as symbol of cleverness and savagery in Waurá
foi para baixo da terra”. É com este evento de narração myth. In: HILL, J. (ed.) Rethinking history and myth:
que o autor inicia o livro. Indigenous South American perspectives on the past.
43. Artemio me contou uma vez que ele na verdade não Urbana, University of Illinois Press, 1988.
deveria ser o chefe [headman] de Santa Clara, afirman- LÉVI-STRAUSS, The naked man. London: Jonahtan
do que “Meu pai deveria ser o chefe aqui, sendo o Cape, 1981.
mais velho de nós. Mas ele não sabe ler ou escrever, _____________. The raw and the cooked. London:
então eles me fizeram chefe no lugar dele”. Jonahtan Cape, 1970.
MATTESON, Esther. Piro myths. In: Kroeber
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BASSO, Ellen. A musical view of the universe. Kalapalo Anthropological Society Papers, v. 10, p. 25-99, 1954.
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BAER, Gerhard. The Pahotko-masks of the Piro (Eastern de Americanistas, I: 55-62. São Paulo, Brasil, 1955.
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210 | Peter Gow

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the structure of myth. In: Urton, G. (ed.), Animal Rio de Janeiro, Brasil, 1977.

traduzido de
GOW, Peter. “Myths And Mythopoiesis”. In: ____. An Amazonian Myth and its
History. Oxford: Oxford University Press, 2001.

tradutor Henrique Pougy


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP).

revisor Renato Sztutman


Professor no Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo (DA/
USP).

Recebido em 06/09/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

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especial
213

A relação afroindígena1

Marcio Goldman
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p213-222 Manha e do Umbandaum: Grupo Afroindígena


de Antropologia Cultural, sediados na pequena
Há mais de dez anos, uma estudante de cidade de Caravelas, no extremo-sul baiano,
Mestrado em antropologia social defendeu estariam “realmente” querendo dizer ao se afir-
uma dissertação sobre um grupo de pessoas do marem afroindígenas, a antropóloga preferiu
extremo-sul baiano que não apenas se pensam seguir de modo detalhado e profundo o que
(no sentido forte da palavra) como “afroindí- eles efetivamente dizem, fazem e pensam a res-
genas”, como desenvolvem uma série de com- peito de si mesmos, dos outros e dos mundos
plexas reflexões sobre essa expressão e sobre a de que participam.
sua própria situação no mundo. Mesmo reco- Ela pôde aprender, assim, que “afroindíge-
nhecendo a qualidade da dissertação, os exa- na” quer dizer muitas coisas, “uma origem mí-
minadores levantaram dúvidas sobre o alcance tica, um modo de descendência e uma forma
do termo e sobre a natureza das reflexões do de expressão artística” (MELLO, 2003, p. 73).
grupo. Por um lado, argumentando com o ca- Que não se trata de uma simples “justaposi-
ráter apenas “local” do processo estudado, sua ção de duas influências ou formas de expressão
suposta incapacidade de produzir efeitos mais […] distintas e irredutíveis”, mas de “uma ter-
“globais”. Por outro, com toda a delicadeza, su- ceira forma, com características próprias”. Que
gerindo que a autora teria projetado suas pró- a “relação que o grupo estabelece entre afros e
prias ideias no discurso do grupo estudado. indígenas é não apenas uma relação de proximi-
De fato, nem o material etnográfico, nem dade entre dois mundos paralelos”, mas “uma
a análise de Cecília Mello (ver, também, fusão ou intersecção entre esses dois mundos”
MELLO 2003 e 2010) se acomodavam bem (MELLO, 2003, p. 96). Finalmente, que o
a um certo clichê que ainda domina o pensa- conceito foi elaborado com as mesmas técnicas
mento antropológico, mas que parece cada vez utilizadas na elaboração de obras de arte. Em
mais difícil de ser sustentado: a certeza de que suma, que ele mesmo é “uma ‘técnica de rea-
não temos nada de importante a aprender com proveitamento ou de reatualização por brico-
as pessoas com quem convivemos durante nos- lage” (MELLO, 2003, p. 102) das experiências
sas pesquisas. E isso seja porque elas realmente históricas vividas de diferentes maneiras pelos
não seriam capazes de nos ensinar nada, seja membros do grupo como afros e como indí-
porque aquilo que eventualmente nos ensinam genas. Observando que o conceito é sempre
é de curto alcance, limitado ao contexto paro- “acionado em relação a determinadas circuns-
quial em que vivem. tâncias e se refere a uma forma de expressão ou
No entanto, em lugar de pretender “revelar” linguagem e não a uma identidade ou essên-
o que seus amigos do Movimento Cultural Arte cia” (donde “seu potencial crítico e político”)

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214 | Marcio Goldman

(MELLO, 2003, p. 102), Cecília Mello con- em um encontro da ANPOCS – em uma des-
clui que “não é algo da ordem da identidade sas conversas informais de onde sempre saem
nem mesmo do pertencimento, mas da ordem as melhores coisas desses encontros algumas
do devir, do que se torna, do que se transforma pessoas concordaram em torno da necessidade
em outra coisa diferente do que se era e que, de de criar uma rede de intercâmbio intelectual e
algum modo, conserva uma memória do que se acadêmico que atravessasse as usuais divisões
foi” (MELLO, 2003, p. 95). subdisciplinares.
Em certo sentido, o desafio colocado pela A partir daí, em 1998, 2001, 2004, 2006,
exploração antropológica dessa noção que apa- 2008, 2009, 2011 e 2012, tivemos Grupos
rece ou reaparece, hoje, em tantas partes, não de Trabalho e Mesas Redondas em encontros
é mais do que a tentativa de elaborar em cha- da ABA e da ANPOCS. A partir de 2004, no
ve acadêmica aquilo que os militantes afroin- âmbito do PPGAS-Museu Nacional-UFRJ, o
dígenas do Artemanha e do Umbandaum, de NuTI (Núcleo de Transformações Indígenas)
Caravelas, explicaram para Cecília em chave começou a se expandir para formar a Rede
existencial. O que significa também, acrescen- Abaeté e o NAnSi (Núcleo de Antropologia
temos, que, ao menos para os textos aqui reu- Simétrica). Mais de uma centena de encon-
nidos, o termo “afroindígena” tem justamente tros foram realizados nas chamadas “Sextas na
uma origem afroindígena, elaborado por pes- Quinta”, no Museu Nacional. Em todas essas
soas que gostam de pensar a si mesmas como ocasiões, pesquisadores trabalhando com socie-
afroindígenas2. dades indígenas ou com coletivos afro-ameri-
canos (bem como com outros temas) se viram
*** na situação de ter que falar uns com os outros
– articulação que, sem dúvida, vem revelando
É claro, entretanto, que nem tudo começou seus efeitos, nas dissertações e teses defendidas
aí e que a sensibilidade de Cecília para o que nos últimos anos.
presenciou e escutou tinha seus condicionantes. Em 2010, a americanista Marina Vanzolini,
Afinal, como escreveu Guimarães Rosa (1967) supervisionada pelo afro-brasilianista Marcio
no segundo capítulo do quarto prefácio de Goldman, começou a desenvolver o projeto
Tutaméia (“Sobre a escova e a dúvida”), “tudo “A Feitiçaria nas Religiões de Matriz Africana
se finge primeiro; germina autêntico é depois”. e nas Terras Baixas Sul-Americanas: um Estudo
As “origens” desse interesse afroindígena Comparativo”, que propunha a incorporação
poderiam ser remetidas a muitos acontecimen- do material ameríndio, tendo como foco a
tos, pequenos e grandes. Aos últimos já retor- feitiçaria, à cadeia de transformações lógicas e
narei. Quanto aos primeiros, quem sabe se tudo espaço-temporais estabelecida entre as religiões
não começou – para nós, bem entendido –, no de matriz africana. Projeto no qual foi substi-
longínquo ano de 1984 quando o americanista tuída pelo afro-brasilianista Gabriel Banaggia,
Eduardo Viveiros de Castro orientou a disser- que, de algum modo, tenta recolocar a questão
tação de mestrado do afro-brasilianista Marcio a partir do ponto de vista oposto: como pensar
Goldman, em que as oposições entre posses- o material afro-brasileiro no contexto de teo-
são e sacrifício, por um lado, e xamanismo e rias que foram propostas nos últimos anos para
totemismo, por outro, desempenhavam papel o universo ameríndio – questão já presente em
central. Ou, já bem depois, em 1997, quando, sua tese de doutorado (BANAGGIA, 2013),

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A relação afroindígena | 215

assim como nas de Barbosa Neto (2012), Como já observava Roger Bastide em 1973,
Siqueira (2012), Soares (2014) e Flaksman “os antropólogos se interessaram sobretudo pe-
(2014). O que talvez nos permitisse presun- los fenômenos de adaptação dos candomblés
çosamente dizer que nós também vínhamos africanos à sociedade dos brancos e à cultura
tentando estabelecer nossa própria relação luso-católica” (BASTIDE, 1976, p. 32; ver
afroindígena… também BASTIDE, 1974). O que quer dizer,
De qualquer modo, em todas essas situa- por um lado, que não se escreveu muito sobre
ções, ocasiões e instâncias, o objetivo sempre o que Bastide chama de “encontro e casamento
foi colocar em diálogo produções etnográficas dos Deuses africanos e dos Espíritos indígenas
e reflexões teóricas oriundas de dois domínios no Brasil”. Mas, quer dizer, sobretudo, que
tradicionalmente separados da antropologia, a aquilo que foi escrito, o foi, em geral, a partir
chamada etnologia dos índios sul-americanos e de um ponto de vista que subordinava a rela-
a antropologia dos coletivos afro-brasileiros ou ção afroindígena a um terceiro elemento que
afro-americanos, na esperança de que, por meio estruturava o campo de investigação: o “branco
desse diálogo, fosse possível trazer à luz novas co- europeu”. Ou, se preferirmos, o ponto de vis-
nexões – e novas distinções – entre esses campos. ta do Estado com seus problemas de “nation
building”, em que a única identidade legítima,
*** evidentemente, é a identidade nacional.
O branqueamento ou a estatização da
Os grandes acontecimentos são conhecidos relação afroindígena não marca apenas as
por todos. Ainda que os números sejam algo investigações acadêmicas. Como se sabe, no
controversos, não é nada improvável que ao caso brasileiro, assim como em muitos outros,
longo de cerca de 300 anos, quase 10 milhões o encontro e a relação afroindígena, devida-
de pessoas tenham sido embarcadas à força mente submetidos “à sociedade dos brancos”,
da África para as Américas, na maior migra- foram pensadas com base naquilo que se con-
ção transoceânica da história. Desses, uns 4 vencionou chamar “mito das três raças”. Relato
milhões chegaram ao que hoje chamamos de que elabora, justamente, a “contribuição” de
Brasil — onde, sabemos, já viviam milhões de cada uma dessas “raças” para a constituição da
indígenas, vítimas de um genocídio que, nun- “nação brasileira” em um processo evidente-
ca é demasiado lembrar, ao lado da diáspora mente encabeçado pelos brancos.
africana sustenta a constituição do mundo Se os afroindígenas de Caravelas estão ten-
moderno. Nessa história, que é a de todos nós, tando se livrar desse mito, é porque bem sa-
coexistem poderes mortais de aniquilação e po- bem que os mitos das classes dominantes têm o
tências vitais de criatividade. mau costume de produzir efeitos muito reais. É
Nesse sentido, não é exagerado afirmar nesse sentido que sua elaboração do afroindige-
que o encontro entre “afros” e “indígenas” nismo possui uma dimensão mítica (MELLO,
nas Américas é o resultado do maior processo 2003, p. 73 – ver acima). Pois o mito, como
de desterritorialização e reterritorialização da lembram Deleuze e Guattari (1972, p. 185),
história da humanidade. Por isso, não deixa não é “uma representação transposta ou mes-
de ser curioso e espantoso que tenha recebi- mo invertida das relações reais em extensão”;
do tão pouca atenção — e isso de dois modos ao contrário, ele “determina, conforme o pen-
complementares. samento e a prática indígenas, as condições

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intensivas do sistema”: o mito “não é expres- as imagens que não gostaríamos que o termo
sivo, mas condicionante”. E a criação de novas afroindígena evocasse, os clichês que não gos-
condições e condicionantes inevitavelmente faz taríamos que ele desencadeasse. Porque não se
parte de toda luta política. trata de pensar o que poderíamos chamar, em
A nós, por nossa vez, caberia acompanhar sentido forte, a relação afroindígena nem de um
esse movimento e libertar a relação afroindíge- ponto de vista genético (no sentido amplo do
na da dominação e do ofuscamento produzido termo), nem a partir de um modelo tipológico.
pela presença dessa variável “maior”, os “bran- Não se trata de gênese porque não se trata de
cos”. O que significa tentar praticar aquilo determinar o que seria afro, o que seria indíge-
que, seguindo o exemplo do autor de teatro na e o que seria resultado de sua mistura — ou,
Carmelo Bene, Deleuze denomina operação eventualmente, o que não seria nem uma coisa
de “minoração” (DELEUZE; BENE, 1979): a nem outra. E isso seja em um sentido propria-
subtração da variável majoritária dominante de mente biológico ou genealógico, seja em sen-
uma trama faz com que esta possa se desen- tidos cultural, social etc. Não se trata de um
volver de um modo completamente diferente, problema de identidade.
atualizando as virtualidades bloqueadas pela Não é incomum, contudo, que ao evitar o
variável dominante e permitindo reescrever fogo da gênese os antropólogos caiam na frigi-
toda a trama. deira da tipologia onde, fingindo fazer abstra-
Porque, afinal, talvez seja por isso que a pro- ção das conexões genéticas, acaba se chegando
ximidade física entre ameríndios e afro-ameri- exatamente no mesmo lugar. Estabelecer um
canos – o fato inelutável de que, ao longo dos tipo (ideal ou não, pouco importa) afro puro,
séculos, e ainda hoje, eles não puderam deixar um tipo indígena puro, e quantos tipos inter-
de estabelecer e de pensar suas relações – esteja mediários forem, não é, de modo algum, o
acompanhada de um afastamento teórico que nosso propósito. Nem os modelos historicistas,
faz com que delas não saibamos quase nada. explícitos ou disfarçados, nem os estrutural-
Afastamento que faz com que suas sociedades, funcionalistas (idem) nos parecem possuir
culturas, cosmopolíticas raramente tenham qualquer utilidade aqui. Trata-se, na verdade, de
sido estudadas e analisadas em conjunto, prefe- identificar e contrastar não aspectos históricos,
rindo-se, em geral, aproximações teóricas com sociais, ou culturais em si, mas princípios e
a Melanésia, a Sibéria ou mesmo com a própria funcionamentos que podem ser denominados
África. O que muitas etnografias recentes vêm ameríndios e afro-americanos em função das
mostrando é que a riqueza com a qual a relação condições objetivas de seu encontro. Pois o que
afroindígena vem sendo pensada pelos cole- se deve comparar não são traços, aspectos ou
tivos nela interessados não encontra nenhum agrupamentos culturais, mas os princípios a
paralelo digno na reflexão acadêmica. eles imanentes.
Observemos, igualmente, que esse enfoque
*** privilegiando comparações e interações afro-
-indígenas poderia, também, conduzir à pro-
Aqui, como costuma dizer Isabelle Stengers dução de contribuições inovadoras ao campo
(2007, p. 45), é preciso ir mais devagar e co- das chamadas “relações interétnicas”. Sabe-se
meçar por sublinhar os riscos desse empre- bem como a história de diversos países ame-
endimento, deixando claro desde o começo ricanos foi contada, em uma chave ideológica,

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A relação afroindígena | 217

com ênfase sobre o encontro das “três raças” Tentando escapar do clichê antropológico
que teriam harmoniosamente constituído a na- que quer nos prender à mera determinação
ção. É supérfluo denunciar o caráter mistifica- de variedades culturais e universais humanos,
dor desse tipo de narrativa, mas talvez valha a o que se visa é o mapeamento das premissas
pena assinalar que ela reelabora um fenômeno epistemológicas, ontológicas, cosmopolíticas
que indubitavelmente não pôde deixar de ter imanentes aos discursos nativos, o que, de ime-
ocorrido. Como escreveu Roger Bastide, “não diato, revela que não há nenhuma razão para
são as civilizações que estão em contato, mas confinar o procedimento a uma área etnográ-
os homens”, e cabe a nós tentar descobrir e fica ou a um “tipo” de sociedade. Trata-se de
pensar o que aconteceu e ainda acontece nesses explorar – à luz de contribuições teóricas re-
encontros. Por outro lado, nunca se enfatizou centes em torno da “antropologia simétrica” e
suficientemente que a natureza das relações dos “grandes divisores” – a questão da poten-
que unem os vértices do triângulo das “três ra- cialidade teórica e/ou heurística dessas distin-
ças” não pode ser a mesma, caso se considere ções entre sociedades, e a de sua superação. E
as relações entre dominantes e dominados ou trata-se em seguida de estimular um diálogo
apenas aquelas entre os segundos3. que, retomando a melhor tradição antropoló-
Ora, essas relações ocorrem entre elabo- gica, confronte as contribuições específicas das
rações que se situam em diversas dimensões: pesquisas realizadas em sociedades “indígenas”
sociológicas, mitológicas, religiosas, epistemo- e “complexas”, a fim de que possam se fecundar
lógicas, ontológicas, cosmopolíticas. E é cla- reciprocamente, escapando do aprisionamento
ro que trabalhos específicos podem tematizar em círculos restritos de especialistas e das ex-
uma ou várias dessas dimensões, isoladamente cessivas concessões aos clichês dominantes.
ou em conjunto. Trata-se, em última instância, Isso significa, sobretudo, evitar o risco de
de extrair consequências teórico-experimen- simplesmente reproduzir, num estilo, talvez,
tais efetivas das críticas antropológicas que, mais sofisticado, os clássicos debates em tor-
ao longo dos últimos cem anos, vêm insis- no do chamado sincretismo religioso e, assim,
tindo na impossibilidade de determinação de isolar traços de culturas originais puras que te-
qualquer “grande divisor” capaz de distinguir riam se mesclado, formando cada manifestação
substantivamente os coletivos humanos entre sociocultural específica. Ao contrário, o ponto
si. Impossibilidade tanto mais evidente quan- é a delimitação e o contraste de princípios cos-
to as transformações empíricas em curso na mológicos ameríndios e afro-brasileiros, sem
paisagem sociocultural do planeta mostram a perder de vista nem sua especificidade, nem as
aceleração simultânea dos processos aparente- condições históricas de seu encontro.
mente contraditórios de convergência e diver- Se quiséssemos seguir um modelo, podería-
gência, mimetismo e diferenciação, dissolução mos denominá-lo, talvez, transformacional, em
e endurecimento das fronteiras (tanto objetivas um sentido análogo, mas não idêntico, ao que o
como subjetivas) entre os coletivos. Estas difi- termo possui nas Mitológicas, em que Lévi-Strauss
culdades devem ser levadas a sério, permitindo (1964-1971) não descarta as conexões históricas,
a elaboração de abordagens alternativas que genéticas e mesmo tipológicas entre amerín-
afirmem a fecundidade epistemológica de tais dios, mas desenvolve um procedimento que visa
impasses e os situem no coração da produção contornar e superar essas obviedades. Seguindo
antropológica. exemplos mais recentes, como o de Marilyn

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Strathern (1988) na Melanésia, talvez seja possí- permite desde já entrever ao menos três tipos
vel tratar desse modo materiais afro-americanos de elaboração. Em primeiro lugar, contextos
em conexão com materiais ameríndios. nos quais os próprios coletivos se definem,
Por outro lado, essas “transformações” tam- mais ou menos diretamente, como afroindí-
bém devem ser pensadas no sentido deleuziano genas. Este é, já vimos, o caso do grupo estu-
sugerido acima (o de um procedimento de mi- dado por Cecília Mello, mas também, de uma
noração por extração do elemento dominante) forma completamente transformada, aquele
e em um sentido guattariano, porque as cone- apresentado por Rafael Santos (ver também
xões que se pretende estabelecer não são nem SANTOS, 2010). No primeiro caso, um gru-
horizontais, nem verticais, mas transversais. Ou po de pessoas tradicionalmente classificadas
seja, não se trata de encarar as variações nem como “afro” estabelece uma relação com as
como variedades irredutíveis umas às outras, virtualidades “indígenas” que atravessam sua
nem como emanações de um universal qual- existência; no segundo, um grupo classificado,
quer conectando entidades homogêneas: as e mesmo autoclassificado, como indígena traça
conexões se dão entre heterogêneos enquanto uma conexão e incorpora de modo particular
heterogêneos. E é por isso que quando esses ele- uma série de práticas muito reais em geral ti-
mentos se encontram concretamente, eles sem- das como “afro”, rearticulando de alguma for-
pre determinam, como lembra Cecília Mello, o ma as fronteiras entre o “afro” e o “indígena”.
processo que Guattari denomina heterogênese, Coletivos como o que Cecília Mello estudou
uma relação de diferenças enquanto diferenças. estão, hoje, espalhados por toda a parte (ver,
Trata-se, pois, de proceder a um confronto por exemplo, FLORES, 2013); processos de
entre cosmopolíticas e coletivos em princípio interação entre indígenas e religiões de matriz
heterogêneos que poderia servir para seu escla- africana aparecem, hoje, em inúmeros contex-
recimento mútuo, evitando o evolucionismo tos empíricos ainda muito pouco estudados
no plano histórico, o dualismo no plano onto- (ver, por exemplo, COUTO, 2008; LIMA,
lógico e o maniqueísmo no plano ético. O pro- 2013; MACÊDO, 2007; UBINGER, 2012).
cedimento não é, portanto, do concreto para o Em segundo lugar, temos as situações em
abstrato, como o bom senso sugeriria. Ao con- que coletivos autodefinidos como ameríndios e
trário, trata-se de começar em um plano bem coletivos autodefinidos como afro-americanos
abstrato, um pouco como naquilo que Deleuze se encontram e interagem efetivamente – mes-
e Guattari (1980, p. 501) chamam “método di- mo que, como costuma acontecer frequente-
ferencial”, que procede das distinções abstratas mente, esses encontros e interações possam ser
para as misturas concretas. Ou seja, é preciso tão codificados que correm o risco de passar
distinguir analiticamente bem para melhor en- desapercebidos. Este é, parece-me, o caso apre-
tender as alianças e os agenciamentos efetivos sentado por Julia Sauma (ver também SAUMA,
que produzem as misturas concretas. 2013 — além de Félix, 2011), o qual, ainda
que a autora esteja apenas começando a elabo-
*** rar esse encontro e essa interação, revela todo
um potencial dos estudos quilombolas ainda
É preciso, pois, proceder com cautela, mas muito longe de ter sido explorado.
o esforço para colocar em diálogo materiais Os ensaios de Marina Vanzolini, o de
ameríndios e afro-americanos tão heterogêneos Edgar Rodrigues Barbosa Neto, com quem a

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A relação afroindígena | 219

primeira dialoga diretamente, bem como aque- estudos possa servir de “contrafeitiço” para ou-
le de Valéria Macedo e Renato Sztutman, reve- tros clichês e fantasmas que, sem dúvida, tam-
lam uma outra possibilidade. Aquela em que bém existem no campo da chamada etnologia
é o analista que se faz, de diferentes maneiras, indígena.
afroindígena, promovendo, e mesmo forçando, É exatamente o que faz o texto de Valéria
passagens entre materiais tradicionalmente des- Macedo e Renato Sztutman (ver também
tinados à incomunicabilidade, devidamente fe- MACEDO, 2010; SZTUTMAN, 2012), que,
chados em seus nichos acadêmicos de proteção. de algum modo, molariza o procedimento su-
Marina Vanzolini (ver também gerido por Barbosa Neto. A partir de um cru-
VANZOLINI, 2006, 2010) justapõe, assim, zamento de noções guarani e afro-brasileiras
por um lado, o feitiço xinguano e o feitiço tal que poderiam, grosso modo, ser traduzidas por
qual aparecem nas religiões de matriz africana, “força”, os autores demonstram como estudos
e, por outro, o xamanismo ameríndio e a noção sobre a noção de pessoa oriundos do segun-
afro-brasileira de axé, demonstrando a fecun- do campo permitem uma releitura criativa do
didade de um tipo de operação estranhamente que foi etnografado no primeiro (e vice-versa,
ausente em nossa antropologia até hoje. Não é evidentemente).
difícil imaginar como o mesmo procedimen- Para concluir e permitir que o leitor vá di-
to poderia enriquecer debates tão tradicionais reto ao que interessa – o material etnográfico
quanto aqueles confrontando temáticas clas- analisado nos ensaios que se seguem –, eu diria
sicamente tidas como “indígenas” (totemis- apenas que creio que a relação afroindígena tem
mo, xamanismo, multiplicidade horizontal um alto potencial de desestabilização do nosso
de espíritos…) e temáticas em geral conside- pensamento, e que, por isso mesmo, poderia
radas “afro-americanas” (sacrifício, possessão, estar no coração de uma antropologia que eu
panteões hierarquizados de divindades e assim chamaria “de esquerda”, no sentido proposto
por diante) e que, no entanto, todos sabemos por Gilles Deleuze (2004) em sua conhecida
que podem ser encontradas, segundo distintas entrevista a Claire Parnet. Uma antropologia
transformações, dos dois lados do divisor. que se concentra nas diferenças enquanto tais,
O ensaio de Edgar Rodrigues Barbosa Neto que leva efetivamente a sério e parte do que as
(ver também Barbosa Neto 2012) nos ensina, pessoas pensam e que aposta que são apenas
como explica o autor, de que modo uma com- os problemas que elas levantam que permitem
paração mais implícita do que explícita (que manter-se em movimento, escapar dos clichês
ele denomina “molecular”) pode ajudar a livrar que nos assolam e, assim, pensar diferente.
um campo de estudos dos clichês e fantasmas
que o assolam. O esforço dos etnólogos em Notas
pensar os indígenas de um ponto de vista que
não é o do Estado revela que o mesmo pode ser 1. Este texto foi apresentado no evento “Olhares
ao menos tentado no campo afro-americano, Cruzados - Ensaios de Antropologia Afro-
aparentemente mais suscetível a esse tipo de Indígena”, do Ciclo “Sextas do Mês”, do Programa
captura feiticeira, como a denomina o autor. de Pós-Graduação em Antropologia Social da
O “contrafeitiço” etnológico ao enfeitiçamento Universidade de São Paulo, em 9 de maio de 2014,
sociológico dos estudos afro-brasileiros sugere, do qual participei com Julia Sauma e Marina
por sua vez, a possibilidade de que algo nesses Vanzolini, que, em diferentes momentos, já haviam

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220 | Marcio Goldman

trabalhado comigo. Eu gostaria de agradecer, em imanentes de outra cultura, são capazes de traçar
especial, a Adriana Queiroz Testa, pelo convite e espaços de interseção em que as chamadas relações
pela organização do evento. Pouco depois, Luisa interétnicas não são redutíveis nem à ignorância re-
Girardi – a quem também agradeço – teve a ideia cíproca, nem à violência aberta, e nem à fusão ho-
de reunir as apresentações em uma seção especial mogeneizadora. E é isso o que permite a Losonczy
do Cadernos de Campo. Às nossas apresentações, propor um retorno ao tema do sincretismo, desde
acrescentamos contribuições que Edgar Rodrigues que encarado como “figura política” (LOSONCZY,
Barbosa Neto, Rafael Barbi Costa e Santos, 1997, p. 402-406).
Valéria Macedo e Renato Sztutman haviam apre-
sentado no Seminário Temático “Novos Modelos Referências bibliográficas
Comparativos: Investigações Sobre Coletivos Afro-
Indígenas”, coordenado por Beatriz Perrone Moisés BANAGGIA, Gabriel. As Forças do Jarê: Movimento
e por mim nos Encontros da ANPOCS de 2011 e Criatividade na Religião de Matriz Africana da
e 2012. Além de um texto de Cecília Campello Chapada Diamantina. Tese de Doutorado – Museu
do Amaral Mello, cuja dissertação de Mestrado, Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.
como veremos, está, de algum modo, na origem BARBOSA NETO, Edgar R. A máquina do mundo: va-
desse interesse afroindígena. Finalmente, gostaria riações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros.
de agradecer, e muito, aos comentários de Gabriel Tese de Doutorado – Museu Nacional, UFRJ, Rio de
Banaggia. Janeiro, 2012.
2. É por isso, também, que decidimos não respeitar a BASTIDE, Roger. As Américas negras. São Paulo: EDUSP,
convenção ortográfica e grafar “afroindígena” em lugar 1974 [1967].
de “afro-indígena”. A subtração do hífen visa assinalar, ______. La rencontre des Dieux africains et des Esprits
como sugerem os amigos de Cecília em Caravelas, que indiens. In: AfroAsia, v. 12, p. 31-45, 1976 [1973].
se trata de um processo de variação contínua, oscilan- COUTO, Patrícia N. de A. Morada dos encantados: iden-
do entre os limites puramente teóricos da oposição tidade e religiosidade entre os tupinambá da Serra do
e da identificação. Ao mesmo tempo, sugere que os Padeiro – Buerarema, BA. Dissertação de Mestrado –
campos disciplinares especializados no tratamento de Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA,
cada um dos termos separados pelo hífen teriam mui- Salvador, 2008. Salvador.
to o que aprender com isso. DELEUZE, Gilles; BENE, Carmelo. Superpositions.
3. Nesse sentido, se há um exemplo a seguir, este é, Paris: Minuit, 1979.
sem sombra de dúvida, o grande livro de Anne- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe:
Marie Losonczy (1997). Nele, a autora propõe uma capitalisme et schizofrénie. Paris: Minuit, 1972.
“antropologia do interétnico”, capaz de pensar a ______. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
relação entre os afro-colombianos e os indígenas DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’Abécédaire de
Emberá da região do Chocó, no Pacífico colombia- Gilles Deleuze (DVD produzido e dirigido por Pierre-
no, de um modo que não a reduza a simples reação André Boutang), 2004.
à dominação branca, nem ao mero contraste entre FÉLIX, Camila C. “Eles são cristãos como nós”: humanos e
duas identidades – não importa se tidas como “pri- encantados numa comunidade quilombola amazônica.
mordiais” ou como constituídas por “contraste”. Ao Dissertação de Mestrado - Instituto de Filosofia e Ciências
contrário, tratar-se-ia de pensar situações como essas Sociais (IFCS), UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.
a partir das alteridades imanentes que cada cultura FLAKSMAN, Clara M. Narrativas, relações e ema-
já comporta e que, relacionadas com as alteridades ranhados: Os enredos do candomblé no Terreiro do

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


A relação afroindígena | 221

Gantois, Salvador, Bahia. Tese de Doutorado - Museu SANTOS, Rafael B. C. e. A cultura, o segredo e o índio:
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FLORES, Luiza. Os comanches e o prenúncio da guerra: das Missões/MG. Dissertação de mestrado - Faculdade
Um estudo etnográ!co com uma Tribo Carnavalesca de de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo
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MACÊDO, Ulla. A “dona do corpo”: um olhar sobre a re- Berkeley: University of California Press, 1988.
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de Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências lítica ameríndia e seus personagens. São Paulo: EDUSP,
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MELLO, Cecília C. do A. Obras de arte e conceitos: cultura UBINGER, Helen C. Os tupinambá da Serra do Padeiro:
e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-indíge- religiosidade e territorialidade na luta pela terra indígena.
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Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2003. Humanas, UFBA, Salvador, 2012.
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Rio de Janeiro, 2010. ______. A flecha do ciúme: o parentesco e seu avesso segundo
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Janeiro: José Olympio, 1967. Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

autor Marcio Goldman


Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; bolsista do CNPq e da
FAPERJ. Autor de Razão e Diferença: Afetividade, Racionalidade e Relativismo
no Pensamento de Lévy-Bruhl (Rio de Janeiro: UFRJ/Grypho, 1994), Alguma
Antropologia (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999), Como Funciona a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


222 | Marcio Goldman

Democracia: Uma Teoria Etnográfica da Política (Rio de Janeiro: 7 Letras,


2006) e How Democracy Works: An Ethnographic Theory of Politics (Londres,
2013). Em colaboração com Moacir Palmeira, organizou Antropologia, Voto e
Representação Política (Rio de Janeiro: Contra Capa, 1996); em colaboração
com Miriam Hartung, organizou o Dossiê Políticas e Subjetividades nos “Novos
Movimentos Culturais” (Florianópolis: Ilha. Revista de Antropologia, 2009); e,
em colaboração com Mãe Hilsa Mukalê, editou Do Lado do Tempo. O Terreiro de
Matamba Tombenci Neto (Ilhéus, Bahia) - Histórias Contadas a Marcio Goldman
(Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2011).

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


223

Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a


gente é”1

Cecília Campello do Amaral Mello


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p223-239 palavras-chave Afroindígena; Movimentos


culturais; Subjetividade; Heterogênese; Devir;
resumo Fruto de uma releitura do material Bahia.
etnográfico sobre a atuação de um movimento
cultural do extremo sul baiano, este artigo pre- Becoming-afroindigenous: “so let’s do what
tende discutir a noção de afroindígena tal como we are”
concebida pelo grupo, a partir de uma perspec-
tiva pragmática. O exercício aqui proposto não abstract As a result of a reinterpretation of eth-
é enquadrá-lo em categorias já conhecidas ou nographic material on a cultural movement from the
familiares, mas buscar analisá-lo mantendo in- extreme south of Bahia, this article discusses the no-
tacta uma certa “rugosidade” característica dos tion of afroindígena, from a pragmatic perspective.
modos de fazer e pensar ao qual está associado. The exercise proposed here is not to fit it into known
Para o grupo, o conceito de afroindígena não categories, but seek to analyze it while preserving the
seria um modelo, a partir do qual seria possível group’s characteristic ways of doing and thinking. The
identificar uma etnia ou reconhecer um concept of afroindígena would not be a model from
grupo em uma base natural de identificação. which it would be possible to recognize a ethnic group
Afroindígena não é tampouco algo da ordem on a natural basis for identification. Afroindígena is
da identidade, nem mesmo do pertencimento. neither something of the order of identity, even of be-
O conceito de afroindígena seria da ordem do de- longing. The concept of afroindígena would be of the
vir, funcionando, por um lado, como um meio, order of becoming, as a means traversed by ideas, po-
um intercessor por onde passam ideias, ações po- litical actions, works of art and beings of the cosmos
líticas, obras de arte e seres do cosmos, e, por ou- and, secondly, as an unfinished product or interim ef-
tro lado, como um produto inacabado ou efeito fect of encounters that involve flows of “history” and
provisório de encontros singulares que envolve- “memory”; people and techniques; a relationship of
riam fluxos de “história” e “memória”; pessoas e alliance between African and indigenous ancestors
técnicas; uma relação de aliança entre antepassa- and the creation of sculptures, understood here as a
dos africanos e indígenas e a criação de esculturas, process of self-modeling subjectivities.
aqui entendida como um processo automodela- keywords Afroindigenous; Cultural move-
dor de subjetividades. ments; Subjectivity; Heterogenesis; Becoming; Bahia.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


224 | Cecília Campello do Amaral Mello

Artista2 palmeira, vinha em seguida, acompanhado por


índios portando saias, caneleiras e braçadeiras
arte isso de palha de taboa, além de cocares de folhas,
arte manha arco-e-flechas e pinturas corporais.
artista façanha Aos índios seguia-se a bateria, composta
de teia de aranha por meninos jovens, vestindo uma bata feita
assanha cromossomicamente a partir de técnica de reaproveitamento: sacos
as garras do amor de plástico entrelaçados pintados de preto com
da fome, da guerra aplique de tecido amarelo na gola. Os instru-
luta que brinca mentos multicoloridos haviam sido feitos pelos
artista é isto próprios jovens, com latas e tubos de PVC de
arte de aranha diferentes tamanhos, cobertos por pratos e pa-
manha de isca nelas. Atrás da bateria, a grande cobra: cinco
belisca, petisca homens e um menino com um lençol cor-de-
a arte engole o artista   -rosa enrolado da cintura para baixo evoluíam
sob um pano pintado como cobra-coral, cola-
O bloco saiu ao entardecer, quando uma do a uma cabeça com grandes dentes à mostra
luz amarelo-ouro tomou a avenida principal feitos de papelão. Ao lado da cobra, um jovem
da cidade. À frente do cortejo, Zumbi, com vestindo apenas uma tanga diminuta e argo-
um escudo e uma lança, acompanhado por um las nos pés, enlaçado por uma cobra feita de
grupo de jovens princesas africanas de expres- pano: era Oxumaré. A grande cobra, inspirada
são séria, evoluindo em uma dança cadencia- nos dragões do ano-novo chinês, soltava uma
da. Em torno das princesas, algumas mulheres fumaça vermelha e seguiu o desfile todo desa-
mais velhas, vestidas com roupas brancas fei- fiando e dançando com Oxumaré.
tas de panos e lençóis amarrados com cordões No fim do bloco, após a ala das batas, dan-
feitos de isopor. Um capataz com espingarda, çavam algumas mães com crianças de colo ou
botas e olhar ameaçador seguia os passos de ainda sem idade para desfilarem sozinhas, todas
Zumbi. vestidas com saia e bustiê branco e pintadas com
Logo atrás, um elefante branco imponen- tinta branca. Logo atrás, vinham as crianças
te feito com técnica de papietagem, símbolo maiores, vestidas de vermelho e verde: eram os
“da África e das obras da prefeitura que são escravos que trabalhavam nos cafezais da região.
verdadeiros elefantes brancos, não servem de Todas traziam elaboradas tranças nos cabelos,
nada para a maior parte da população”. Em mas tiveram que cobri-las com um lenço: ter a
cima do elefante, destacava-se a rainha Anne, beleza tolhida faz parte da condição de escravo.
corpo pintado de branco, seios nus, portando A última ala era composta pelos jovens do
uma coroa feita de um cano de plástico san- grupo, jogando capoeira e maculelê. Embora
fonado amarelo e palha e carregando um es- seja chamado de “bloco” e saia no carnaval,
tandarte com motivos coloridos onde se lia: os integrantes do Umbandaum não definem
Umbandaum, o nome do bloco, emprestado do o desfile como um “bloco de carnaval” co-
disco Um Banda Um, de Gilberto Gil, lançado mum ou um “bloco de rua”. Ele é o momento
em 1982. Oxóssi, orixá guerreiro das matas, de apresentação pública do trabalho artísti-
adornado com longas folhas de samambaia e co desenvolvido pelo grupo ao longo do ano

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 223-239, 2014


Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é” | 225

anterior e uma forma de manifestação política em que vai sair. A estratégia de “tomar a rua” a
que encena por meio de uma expressão pro- qualquer instante é uma forma do grupo ocupar
priamente artística a pouco conhecida história o espaço público da cidade e ser conhecido e re-
dos afroindígenas. conhecido – “a rua é pública”. A apresentação é
No meio do bloco, uma ala visualmente entendida como uma forma de se manifestar pú-
destoante das demais: a ala das pessoas que blica e politicamente, “como se fosse uma passe-
os integrantes do movimento definem como ata”. Desde as primeiras performances do grupo,
“de fora”, tais como turistas, moradores da mantém-se o costume de “se apresentar quando
Rua3, pesquisadores de passagem pela cidade4 eles [os moradores do centro, a elite da cidade]
e demais simpatizantes do movimento. Alguns menos esperam”. Embora respeitem os outros
membros-fundadores antigos e colaboradores grupos (como as escolas de samba) que even-
eventuais também desfilam nessa ala, indican- tualmente estiverem na frente, o Umbandaum
do que a classificação nativa “de fora” refere- prefere ter que fazer um trajeto diferente a se
-se antes a graus de afastamento relativos do submeter à organização oficial do carnaval.
núcleo central do movimento do que a uma O desfile do Umbandaum é apresentado
simples divisão binária dentro/fora. Aí encon- como um teatro-performance, em que os com-
tramos tanto aqueles que já tiveram algum tipo ponentes incorporam personagens e traduzem
participação no movimento, como os que não suas características por meio de expressões fa-
possuem qualquer tipo de relação prévia com ciais e corporais. Em alguns casos a “incorpo-
o grupo, mas que decidiram sair no bloco du- ração” é tão perfeita que diz-se haver possessão
rante o carnaval e para tanto adquiriram uma ou irradiação (ver MELLO, 2013). Assim, por
bata5. O fato dessa ala enredar as pessoas lite- exemplo, evita-se incorporar o seu próprio ori-
ralmente para dentro do bloco, faz com que xá pessoal, sob pena de “instigá-lo” a querer se
ela funcione como um dos centros de atração, manifestar. Zumbi, ao mesmo tempo em que é
contágio ou irradiação do grupo na relação atormentado pelo capataz que o persegue, rece-
com o seu fora. A cobra grande evolui, provoca be a proteção dos orixás que o circundam. As
e circunda seus integrantes, ameaça engoli-los crianças expressam tristeza e cansaço ao ence-
e os irradia com o axé do caboclo Cobra Coral. narem o fardo do trabalho escravo nas lavouras
Naquele ano de 2002, foram feitas bonitas de café, mas estão protegidas pelo caboclo co-
batas amarelas e pretas estampadas com moti- bra coral, trabalhador incansável.
vos tribais, onde lia-se: Castro Alves: da África à Personagens históricos e orixás caminham
Bahia – o tema do carnaval definido pelo mo- lado a lado e interagem entre si; objetos na-
vimento – e Umbandaum: Grupo Afroindígena turais (como urucum, cipós, palhas e folhas)
de Antropologia Cultural, autodefinição do gru- misturam-se ao que o grupo denomina como
po, enigmática à primeira vista e objeto das dis- “o natural da indústria” (plástico, PVC, tecido
cussões propostas a seguir. TNT); artesanato em taboa mistura-se a técni-
O bloco sai da frente do Dandara, espaço de cas de costura em overlock; pinturas indígenas
ensaios e shows organizados pelo Movimento aliam-se a tecidos estampados com silk-screen;
Cultural Arte Manha, e toma o rumo do cen- o próprio nome do bloco é um misto de ho-
tro histórico da cidade sem aviso prévio. O menagem a um dos maiores artistas da MPB
Umbandaum se recusa a notificar a Secretaria de e à religião umbanda, ela mesma produto e ló-
Turismo e Cultura da Prefeitura sobre o horário cus de uma fusão bastante original; esculturas

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 223-239, 2014


226 | Cecília Campello do Amaral Mello

humanas (como a cobra grande) alinham-se a Trata-se aqui de tirar algumas consequên-
esculturas em papel machê; o elefante branco é cias dessa proposta de “provocar discussão”.
a um só tempo animal-símbolo do continen- Como o grupo, também acredito que pensar
te africano e emblema do poderio das grandes (ou criar) não é algo natural ou induzido por
construtoras na macropolítica brasileira. uma boa vontade, pela “verdade” ou pela “au-
O bloco em marcha apresenta todos esses tenticidade”. Provocar discussão tem a ver com
elementos à primeira vista díspares como uma o efeito que a arte suscita naquele que a produz
totalidade sincrônica tão bem desenhada, que e naquele que a recebe ou é obrigado a recebê-
seu efeito no espectador é o de desestabilizar -la (caso dos moradores da “Rua” sendo inva-
quaisquer esquemas prévios que busquem algo didos ou contagiados pelo bloco). Este efeito é
como uma “autenticidade”, tornando indiscer- sempre, em certa medida, fortuito e incomen-
nível ou vã quaisquer tentativas de delimitação surável, já que não se dá entre a intencionalida-
de supostas fronteiras entre “mito” e “história”, de de um sujeito “emissor” de uma mensagem
“invenção” e “verdade”, “moderno” e “tradi- e um suposto “receptor”. Daí a precariedade
cional”6. O bloco funciona assim mesmo: em da ideia de conscientização, diagnosticada pelo
bloco. Suas partes não podem ser separadas grupo. As únicas relações possíveis são, por um
analiticamente nem remetidas a supostas ori- lado, a do artista com sua própria obra e, por
gens mais ou menos autênticas; funciona como outro lado, da obra, ou dos afectos e perceptos
um todo e a condição para tal é simplesmente distribuídos por ela, com essa multiplicidade
pôr-se em movimento. chamada público; nunca do artista diretamen-
Além de celebrar o carnaval e encenar o que te com o público, por mais que o autor seja ele
poderíamos chamar de uma versão recalcada mesmo sua obra, como é o caso das performan-
da (ou pela) história, o bloco é uma forma de ces do grupo.
manifestação, isto é, de afirmação pública da A intenção do artista – se é que isso existe
autonomia e da capacidade crítica e inventiva de forma consciente – não se dirige a um públi-
do modo de vida de um segmento sempre visto co. O artista é muitas vezes surpreendido pelas
como estando à margem da “boa sociedade”. mais diversas interpretações de sua obra, em
Segundo seus integrantes, as performances do que podem ser lidas coisas inimagináveis por
Umbandaum produzem um efeito de perturba- ele, louváveis ou deploráveis. Assim, o que há é
ção dos setores mais conservadores e/ou racis- a relação artista-obra e uma esperança, ou me-
tas da cidade, ou, como prefere Dó Galdino lhor, uma confiança de que ela provoque algo.
– um dos principais artistas do grupo – o bloco A discussão que o grupo enseja provocar por
e as performances do grupo logram provocar onde passa poderia ser desdobrada no plano in-
discussão: telectual/conceitual para discutirmos a noção
de afroindígena. Neste caso, a pergunta não
A arte é um caminho para a autoafirmação do seria de ordem ontológica ou semântica (o que
ser humano, dele mostrar sua capacidade. A arte é ser afroindígena, ou o que significa ser afroin-
tem essa possibilidade revolucionária: quem ia dígena), mas pragmática: como isso funciona7?
saber que o 13 de maio é a falsa abolição se o Como funciona essa multiplicidade composta
movimento não tivesse lançado essa questão? pelo encontro singular de termos tão hetero-
Não é tanto conscientizar, mas principalmente gêneos? Quais territórios constituiu e constitui
provocar discussão. em seu contínuo processo de heterogênese8?

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 223-239, 2014


Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é” | 227

Para o grupo, o conceito de afroindígena não povos originalmente “puros”, mas como grupos
diz respeito à ideia de raça tomada como uma que já estariam de algum modo em contato e,
expressão de um fenótipo, fundada em diferen- portanto, misturados, antes e após a conquista
ças naturais. Não se trata de um modelo, a par- das Américas; e, por fim, (4) o processo artísti-
tir do qual seria possível identificar uma etnia co de criação de esculturas em madeira morta,
ou classificar ou reconhecer um grupo em uma movimento que integra os três planos anteriores
base natural de identificação. Afroindígena não e “abre o canal”, como lá se diz, que produz a
é tampouco algo da ordem da identidade (ou fusão entre pensamento, desejo e ação, mate-
da identificação), nem mesmo do pertenci- rializando-se nas esculturas propriamente ditas.
mento (SERRES, 1997), produto de uma série Interessa-nos aqui descrever esses fluxos que
de “influências” que poderiam ser remetidas atravessaram o movimento e o que foi feito de-
a origens bem delineadas ou “autênticas” e a les, isto é, qual seu efeito no processo de hetero-
um processo de “imitação” das técnicas ou de gênese do grupo. Cada um desses planos atuou
“identificação” com uma matriz original. e atua segundo uma lógica intensiva e não-de-
Como afirma Dó Galdino, “afroindígena terminista que constituiu e constitui os proces-
é uma linguagem”, um meio para se expressar sos de “se pôr a ser” do grupo. O conceito de
algo, uma forma de manifestação nos múltiplos afroindígena seria, portanto, da ordem do devir,
sentidos embutidos neste termo: manifestação daquilo que se torna, do que se transforma em
enquanto expressão ou revelação de um pensa- outra coisa diferente do que se era e que, no
mento, de uma ideia, de uma criação artística; entanto, “não produz outra coisa senão a si mes-
manifestação enquanto ato político de se fazer mo” (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 291).
reconhecer em público e manifestação como
incorporação, meio pelo qual uma entidade Devir-negro
espiritual se dá a conhecer no mundo sensível.
Se a noção de afroindígena é, por um lado, Mesmo os negros, diziam os Panteras Negras,
um meio, um intercessor por onde passam têm que entrar num devir-negro.9  
ideias, ações políticas, obras de arte e seres do
cosmos, ela também pode ser lida, por outro Quando completou 18 anos, Jamilton
lado, como um produto inacabado ou efeito Galdino Santana, um dos fundadores do movi-
provisório de encontros singulares que envol- mento cultural em Caravelas, foi para Salvador
veriam, no mínimo, quatro planos: (1) fluxos para prestar serviço militar. Lá, conheceu um
de “história” e “memória”, ou, posto de outra modo de vida contracultural, descobriu que era
forma, de acontecimentos molares e molecu- negro e que vivia numa ditadura. Diz sua tia
lares que marcaram a vida dos integrantes do Val, com quem Jaco, como é mais conhecido,
movimento em seu processo de devir-negro, foi morar:
devir-índio e devir-afroindígena; (2) pessoas e
técnicas com quem cruzaram em sua trajetória, Jamilton ficou uns 2 anos. Conheceu toda a ma-
dos quais retiraram ou “resgataram” algo, como lucada que frequentava lá em casa. Ele veio a
os artistas populares e foliões que fazem o Bloco conhecer outra visão, começou a fazer entalhes.
de Índio e o Bloco das Nagôs; (3) uma relação Os primeiros quadros. Eu fazia ioga, meditação.
de aliança entre seus antepassados africanos Tinha shows de artistas que ele nunca tinha
e indígenas, entendidos não como polos ou visto, Gilberto Gil, Rita Lee, Novos Baianos,

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228 | Cecília Campello do Amaral Mello

conheceu tudo lá. Apesar de que, na vida deles, Arte Manha. O Umbandaum foi inventado
a mãe dele encaminhou eles para a vida cultu- em 1988, seguindo um modelo muito seme-
ral. A mãe deles movimentava o carnaval, bloco lhante aos blocos afro de Salvador10, cujo de-
de índio em Caravelas. Tava no sangue dele. E senvolvimento foi testemunhado pelos dois
Jaco fazia poesia, cada poesia linda... Conheceu dos fundadores do movimento. Tanto Jaco
os poetas da praça em Salvador, um movimento como Itamar saborearam uma época febril, de
que se reunia na praça da Piedade. E ali era pro- efervescência política e cultural, que, segundo
testo, era o momento de passar os panfletos, de eles, provocou uma mudança radical em suas
avisar das reuniões da UNE na casa de fulano, vidas. Estamos falando do início dos anos
na porta da reitoria, polícia botando cachorro 1980: época da chamada redemocratização po-
atrás e a gente corria.   lítica do país, do fortalecimento dos movimen-
tos negros, da reafricanização do carnaval de
O cotidiano de Jaco em Salvador se divi- Salvador (RISÉRIO, 1981, 1995) e, na cidade
dia entre duas vidas completamente diferentes: de Caravelas, da influência da teologia da liber-
a vida da caserna e a vida dos meios políticos tação nas pastorais da juventude católica e da
e artísticos alternativos. Como recruta, Jaco visibilidade de indivíduos e grupos adeptos de
acordava de madrugada, participava de treinos, um estilo de vida alternativo ou contracultural.
repetia frases fascistas e aprendia a matar. À Foi em Salvador que descobriram-se negros.
noite, escondido, arranhava poesias nos armá- Diz Jaco: “eu não sabia que eu era negro, não.
rios de ferro dos alojamentos. Nas horas de fol- Em Caravelas me sentia igual a todo mundo,
ga, Jaco corria para a casa da tia Val. No início, era moreno. Fui descobrir esse lance da discri-
aquele jovem soldado que chegava à noite no minação e do movimento negro em Salvador”.
meio das festas repletas de artistas e revolucio- Conheceram uma versão diferente da histó-
nários provocou alguns mal entendidos, hoje ria do Brasil que lhes ensinaram no colégio.
risíveis, à época nem tanto. Precavido, passou Descobriram um continente chamado África.
a andar com um saco de estopa e, ao deixar o Assistiram aos afoxés e aprenderam danças
quartel, costumava entrar num bar, tirar o uni- afro. Conheceram mais de perto a ditadura,
forme e vestir uma bata africana, indumentária palavra então não pronunciada em Caravelas,
mais apropriada ao ambiente em que circulava. mas presente na censura imposta pelo diretor
Jaco observava os movimentos políticos, da escola aos jornais de poesias que editavam.
artísticos ao mesmo tempo em que experimen- Conheceram intelectuais, políticos, artistas e
tava na pele “as coisas como eram no quartel. contraculturais em geral na casa da tia Val, que
Isso tudo começou a tocar na mente e no cora- reunia todos os “loucos” de Salvador. Tiveram
ção dele, ele se chocava mesmo” (Val). Salvador notícias dos movimentos negros nos EUA, do
também atraiu Itamar dos Anjos, amigo de apartheid na África do Sul, do black power.
infância de Jaco, um jovem de uma região de Deixaram de lado suas roupas de meninos do
Caravelas conhecida como Avenida, e que, interior, vestiram batas, trançaram seus cabe-
como ele, tinha dotes artísticos e vontade de los, fizeram dreadlocks. E voltaram a Caravelas
conhecer o mundo. Alguns anos mais tarde, com a certeza de serem belos e cultos e com o
os dois integrariam o grupo de teatro Avesso coração tomado por ideias revolucionárias.
em Cena e criariam o bloco Umbandaum, em- A viagem a Salvador foi o primeiro aconteci-
briões do que hoje é o Movimento Cultural mento que deu novos contornos à subjetividade

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Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é” | 229

de Jaco e Itamar, dois agentes centrais do movi- dos pataxó da Barra Velha ou dos tupinambá
mento. Essa viagem produziu um processo de de Olivença, grupos indígenas do extremo-sul
desterritorialização que fez brotar o desejo de e do sul baianos. O visitante de fora pergunta:
constituir em Caravelas um bloco como aque- “mas são ou não são índios?” Antes de tomar
les que os haviam emocionado. A estes encon- as ruas, o bloco se reúne num canto da casa
tros somam-se outros, com universitários que de alguém e Piaba pede licença aos caboclos,
passavam por Caravelas via Projeto Rondon, aos encantados e demais entidades indígenas
jovens professores, funcionários públicos e ban- para a realização da brincadeira. O pedido de
cários, figuras oriundas de um meio urbano, licença é também um pedido de proteção e
universitário e politizado, cujas ideas, terríveis uma expressão de respeito. Apesar disso, é co-
e encantadoras, em parte entraram no reper- mum que algumas mulheres caiam durante o
tório de concepções mais ou menos explícitas percurso pela cidade, isto é, que os caboclos se
que norteiam a atuação do movimento. Desses manifestem.
encontros múltiplos11 nasceu o Umbandaum e, É noite de lua e o Bloco de Índio está fa-
um pouco mais tarde, o movimento cultural zendo a aruanda na quadra a céu aberto do
Arte Manha. Movimento Cultural. Dona Tata, uma vizinha
branca, idosa e beata católica que mora a pou-
Devir-índio, devir-afroindígena cos passos do sítio-sede do movimento, obser-
va a roda e é repentinamente tomada por um
O virtual é a insistência do que não está dado.12  caboclo. Sua presença é saudada, mas Dona
Tata/o caboclo é logo levada/o para um canto.
Os relatos sobre a existência de blocos de Movem seus braços para baixo e chamam-na
índio em Caravelas datam da década de 1950. pelo seu nome, retirando-a do transe.
A participação nos blocos de índio é lembrada Embora dona Tata frequente apenas a igreja
nostalgicamente por Dó, Preto e Jaco, irmãos Católica, soube mais tarde que ela já “foi do
e criadores do movimento cultural. A falecida santo”, mas o terreiro que frequentava fechou.
mãe Dona Benedita – tida como uma grande Segundo sua filha, “mamãe não pode ouvir um
“festeira” da Avenida – liderava a organização tambor que logo cai”. O caboclo foi rapida-
do bloco e levava todos os filhos para desfilar mente despachado, em consideração à saúde
quando eram crianças, com ornamentos e pin- de dona Tata, que poderia não suportar o ar-
turas de índio. Piaba, que sempre saiu nos “ín- rebatamento. Embora se tomem todas as pre-
dios”, é hoje quem “põe o bloco” na rua. cauções para que os caboclos fiquem afastados
O Bloco de Índio Tupinambá faz sua e apenas protejam a festa, eles são intimamen-
“brincadeira” todos os anos no carnaval. No te desejados por todos: quando um aparece, é
bloco saem mulheres e homens pintados de saudado; algumas pessoas aproveitam para se
urucum, vestidos com saias de taboa cuida- consultar, mas, de um modo geral, é rapida-
dosamente elaboradas e com blusas vermelhas mente despachado. A aparição de um caboclo
doadas por vereadores e/ou candidatos. Eles durante o bloco de índio é reveladora de que
fazem a roda, a aruanda ou brincadeira e des- o local onde o bloco está – naquela noite, a
filam traçando círculos e cantando pontos de sede do movimento cultural – tem muito axé,
caboclo pelas ruas da cidade. O efeito é algo muita energia; é isso o que faz os caboclos não
perturbador: visualmente não diferem muito resistirem e descerem para participar da festa.

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230 | Cecília Campello do Amaral Mello

É também indicativa de que o bloco está forte, de mais expressivo no nosso trabalho. Aparece
cantando e dançando bonito. pela nossa raiz aqui, nessa região é mais forte o
A maior parte dos participantes do bloco índio. Então a gente denominou afroindígena.
de índio tem ou tiveram uma relação com a As influências se juntaram e você não tem mais
umbanda ou o candomblé, em maior ou me- como falar só de afro.  
nor grau: alguns são filhos ou filhas de santo,
outros apenas participam das festas nos terrei- Essa descoberta só veio à tona e se tor-
ros. O nome Tupinambá é uma homenagem nou visível nos trabalhos “depois de prontos”.
aos caboclos, os orixás indígenas, os chama- A herança indígena surgiu inesperadamente,
dos “donos da terra”13. Tupinambá é também independente da vontade deles, é algo que pos-
um ponto de macumba, que chama os caboclos. suíam até então sem saber, que traziam dentro
O fato dos caboclos manifestarem no Bloco de de si e que encontrou seu lugar de expressão na
Índio evidencia que os índios do bloco não são criação artística:
meras representações teatralizadas dos caboclos
tupinambá: são eles próprios, os índios tupi- Quando a gente ia fazer um corte de cabelo,
nambá que decidem vir participar da festa e a gente via: “isso não é negro, isso aí é índio”.
assim o fazem incorporando-se eventualmente Até que a gente fazia um esforço de ser só afro,
em algum dos índios do bloco ou em alguém do um pouco ingênuo, entende? Mas saía índio. A
público. Há, portanto, uma zona de indiscer- gente tocava tambor com um corte de cabelo
nabilidade (ou de continuidade cosmológica) diferente. Metia a navalha no cabelo de todo
entre os índios do Bloco de Índio e os espíritos mundo, mas ficava tudo tupinambá. Caramba!
dos índios tupinambá que habitavam a região, Então vamos fazer o que a gente é! A gente, en-
que se evidencia na recorrente identificação tão, sentiu a necessidade de rever os nossos indí-
discursiva entre ambos e na perturbação visual genas, dar mais importância a eles.  
que produzem no público ao desfilar: “mas são
ou não são índios?”. Os índios respondem com No entanto, afroindígena não é apenas a
uma sonora gargalhada. justaposição de dois polos ou de duas formas
Como vimos, no início o movimento cultu- de expressão – africana e indígena – distintas
ral se definia como um “grupo afro” e se agen- e irredutíveis entre si. Afroindígena seria uma
ciou com as emanações discursivas e estéticas terceira forma, com características próprias que
do processo de “reafricanização” do carnaval de revelam um processo de aliança ou uma entre-
Salvador. Porém, num determinado momen- -captura entre negros e índios tendo como
to da sua trajetória, surgiu um novo elemento marco o início do processo de colonização.
que redefiniu a forma como os integrantes do Observemos as palavras de Preto:
grupo se veem: o componente indígena, que
surgiu de uma espécie de revelação oriunda da Eu creio que tenho um pouco de sangue índio.
produção artística do grupo. Dó explica: Eu sou meio índio, eu sinto. Porque o Brasil
foi descoberto em Porto Seguro e a maioria da
Toda vez que começamos a fazer o nosso traba- raça aqui é indígena. Todo mundo que nasceu
lho, não deixamos nunca de expressar os traços na Bahia, de Ilhéus para cá, tem um pouco de
indígenas. Por mais que a gente se esforce em sangue indígena. Meu pai tem uma mistura, é
ser apenas afro, os traços indígenas são o que há meio caboclo; minha mãe é mistura de índio

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Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é” | 231

com negro. Eu sou meio indígena, sou caboclo. de proximidade com a África: “são índios afri-
Minha mãe gostava muito de índio, colocava canos, afroindígenas”.
o [bloco de] índio assim na rua. Eu sinto que A relação que o grupo estabelece entre afro
tenho um sangue um pouco assim de índio e e indígena não é meramente de proximidade
acho que tenho uma mistura, através de ser ín- ou justaposição entre dois mundos paralelos;
dio e ser negro: índio-afro. Tem um pouco san- tampouco trata-se de uma fusão entre esses
gue de índio e sangue de África. Essa história dois mundos que os tornaria indiscerníveis
de Caravelas é como Salvador, onde descia os ou indiferenciados. A semelhança entre orna-
navios negreiros para vender os negros. É aí que mentos, máscaras e adereços sul-americanos e
mistura o negro e o índio.   africanos aponta para a percepção de um en-
contro – real ou virtual, pouco importa – entre
Afroindígena, segundo esta chave de leitura, índios e africanos. Esta relação entre grupos
seria uma forma de aliança, que se constituiu africanos e grupos indígenas é entendida como
no processo histórico de colonização das terras anterior. Anterior no sentido literal, na medida
que vieram a se chamar Brasil, quando houve o em que afirmam que os índios do litoral teriam
encontro entre os povos que aqui viviam com tido efetivamente algum tipo de contato com
os povos africanos escravizados. Há uma suti- a África antes da conquista e daí derivaria sua
leza aí: uma pessoa ou grupo afroindígena seria diferença em relação aos índios do interior, da
descendente desta aliança entre negros e índios Amazônia, estes tidos como mais parecidos
e não dos negros, de um lado, e dos índios, com os “índios andinos”. Anterior também
de outro, tomados como polos primeiros e ou no sentido de que “Brasil e África já foram um
matrizes originais. No caso da família Galdino só continente” e aí os sentidos cronológico e
Santana: de um lado seus membros identificam mitológico se misturam, permitindo-nos falar
uma marca “mais negra” da mãe e uma marca numa relação atemporal entre esses grupos.
“mais indígena” do pai, mas nenhum dos dois Por fim, é importante ressaltar que, do pon-
é definido como exclusivamente negro ou indí- to de vista do grupo, essa relação prévia que se
gena, mas sim como descendentes de fluxos já estabelece entre negros e índios traduziria uma
misturados desde o início. analogia estrutural entre negros e índios no pre-
Por outro lado, afroindígena aponta para sente: “os afroindígenas são os grupos historica-
uma relação virtual entre negros africanos e ín- mente excluídos”, afirmam.
dios sul-americanos entendida como anterior à
conquista europeia. Um dos artistas mostrou- Arte afroindígena e afroindígena
-me um livro de ilustrações feito por Noêmia como arte
Mourão, que retrata máscaras e adereços in-
dígenas. Estava impressionado com a seme- Pegar um povo em “flagrante delito fabular” é,
lhança da ornamentação indígena e a africana. de certa maneira, isto: pegar o povo (minoria
Apontando para um manto de palha indígena, criadora) no salto (devir-minoritário) de uma
disse: “olha esse, como parece Omolu! Olha criação14.  
esse, como lembra Oxóssi!”. Revelou-se tam-
bém intrigado com pranchas de Debret que Se, para o grupo a arte é mais do que uma
retratam índios que lhe pareciam muito seme- narrativa sobre um mundo tido como dado,
lhantes aos africanos, denotando uma relação constituindo-se num dispositivo capaz de

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desencadear encontros potencialmente trans- de perigoso manuseio. Diz Preto, um dos


formadores, caberia indagar: como e em quais escultores:
direções se processa esta transformação? Como
ela ganha consistência a partir das ações mais vi- Eu penso assim: estou ressuscitando a natureza.
síveis ou “tangíveis” do grupo em seu fazer artís- Ela está morta. É uma nova vida e todos vão olhar
tico, mas também numa direção pré-individual, para ela, vão prestigiar, elogiar aquela madeira.
molecular? Por outro lado, quais seriam seus Imagina se ela tivesse lá no mato? Ninguém ia
efeitos políticos molares, no que tange às tensões olhar para ela. A gente traz do mato para a cida-
e assujeitamentos a que estão submetidos e aos de e ela está sendo prestigiada. Eu acho que essa
objetivos de autonomia definidores do grupo? madeira ainda vai rir muito com a gente.
Em primeiro lugar, o processo propriamen-
te artístico de criação dos móveis e esculturas, A relação que se estabelece com a matéria-
segundo os artistas do movimento, funciona -prima não é simplesmente utilitária; a madeira
por meio da busca sistemática de uma espécie é percebida como um ser animado e a relação
de revelação da forma que se supõe oculta ou do artista com ela é uma relação de respeito
em potência na madeira bruta. Um tipo de di- e reconhecimento mútuo. Afirma um dos
álogo se estabelece com o material durante o artistas:
processo criativo no momento em que o artista
observa a forma da madeira e tenta auscultar É ótimo isso, você ressuscitar quem está morto.
ou decifrar seu sentido implícito, a forma que Ela vai agradecer a gente de um jeito que a gente
“a natureza está dando” e que precisa ser revela- não vai ver, mas eu sinto assim, esse trabalho, a
da. Diz um dos escultores: madeira, ela olha pra mim e fala assim: “obri-
gada, muito obrigada por você ter me trazido
Se você cai numa forma natural de uma ma- para aqui”. Eu gosto deste trabalho, porque eu
deira, de um galho ou uma raiz, você tem que trouxe uma vida; trouxe ela aqui para a cidade,
primeiro observar e começar a desenhar isso em ela estava morrendo e eu trouxe, estou recriando
mente, memorizar, gravar para não perder os ela e todo o mundo está vendo.  
traços naturais que ela já tem. Senão você cor-
re o risco de atropelar o que a própria natureza Ao mesmo tempo em que é afetado pelo
deixou. material, o artista põe em marcha sua imagi-
nação, submetendo o material que ora está
Por outro lado, o trabalho artístico sobre sendo esculpido à inspiração que nasce no
uma madeira que estava jogada fora é entendi- próprio momento em que é manipulado e ca-
do como o meio pelo qual se atribui uma nova vado. A criação, portanto, não é o resultado
vida à madeira, ressucitando-a. A motossera é de um projeto previamente definido; é, an-
utilizada aqui com uma finalidade inusitada, tes, o produto da relação que se estabelece no
como um formão elétrico de grandes pro- momento em que as ideias e habilidades do
porções: com ela, retira-se a parte “podre” da artista se encontram com a forma da madeira,
madeira a golpes milimetricamente controla- isto é, com a agência específica do material.
dos, uma operação que demanda apuro téc- Segundo os escultores, o tempo da criação ar-
nico para “domar” a máquina e certa dose de tística de reaproveitamento é incomensurável,
coragem, já que trata-se de um instrumento pois é possível que o artista observe por anos a

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fio uma raiz e não enxergue sua forma natural, (GUATTARI, 1990), que coloca o artista em
até que, certo dia, venha um desenho na men- contato com sua própria sensibilidade, per-
te, uma espécie de epifania, que lhe revele sua cepção, história, relações sociais, fantasmas
forma implícita e o leve a trabalhar febrilmen- etc. O artista não esculpe o que quer sobre a
te por dias a fio até a finalização da obra. Nas raiz envelhecida que encontra jogada na beira
palavras de Dó: do mangue. Não há um projeto prévio, tam-
pouco contingência total: há, antes, um jogo
Essa outra escultura quase vira uma cabeceira lúdico entre a arte do escultor e as manhas do
de cama. Eu não enxergava em nenhum instan- material. O artista
te um corpo humano, só enxergava um pé de
mesa, era um absurdo! Então eu vim desenhan- não fala apenas com as coisas, mas através das
do, desenhando... Ia ser uma mulher, mais vi coisas: narrando, através das escolhas que faz
que tinha algo muito mais rústico, aí exagerei e entre possíveis limitados, o caráter e a vida de
fiz um homem, um bailarino. Chegou um ins- seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o
tante, eu comecei a observar o movimento de bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si
um corpo humano. Então aquilo explodiu de (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 35)15.
uma vez. Eu pensei, que forma humana estava
me inspirando? Aí pensei no orixá. Qual orixá? Além de funcionarem como catalisador
Você se faz um monte de pergunta, começa a de processos infra-pessoais de autopoiesis16, os
questionar um monte de coisas. Não é muito fá- objetos de arte produzidos pelos escultores do
cil. Dá uma piração arretada! Tem o trabalho de grupo exprimem a recomposição de territórios
pesquisa de orixá, tem que conciliar a forma na- existenciais outros, distintos daqueles a que
tural com o elemento que você quer trabalhar. estariam destinados, se não lhes fosse possível
O orixá veio, porque encontrei uma forma hu- traçar linhas de fuga por meio da arte. O artis-
mana e aí tive que procurar o mito que se iden- ta, ao entrar em contato com sua interioridade,
tificava melhor com o tronco. Aí veio Oxumaré, se reapropria de componentes de sua subjeti-
porque o tronco é bem sinuoso e Oxumaré tem vidade e, desse modo, produz um processo de
como simbologia a cobra. singularização, isto é, um processo automode-
lador, em que constrói suas próprias referências
Esse encontro entre a concretude da ma- práticas e teóricas, suas próprias cartografias17
téria-prima e a imaginação do artista engen- (GUATTARI, 1986, p. 33).
dra uma espécie de ciclo: ora o artista é um No entanto, na medida em que a subjeti-
agente que esculpe a madeira, ora o produto vidade é parte constitutiva de todo processo
daquilo que o artista produz o transforma em de produção social e material, ela é inevitavel-
“paciente em relação à agência que ele exer- mente agenciada pelas “concatenações de rela-
ce” (GELL, 1998, p. 45). Isto é, a agência ções sociais, econômicas, maquínicas”, sendo
exercida pelo artista o afeta reciprocamen- “aberta a todas as determinações sócio-antro-
te. Temos aí um processo de criação artís- pológicas, econômicas etc.” (GUATTARI;
tica que é, ao mesmo tempo, um processo ROLNIK, 1986, p. 68). Daí a tensão perma-
de automodelização da subjetividade, uma nente, no âmbito da subjetividade dos agentes
vez que o diálogo com a madeira funciona do movimento cultural, entre singularidade e
como uma espécie de catalisador existencial individualização, isto é entre a tentativa de se

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produzir formas de subjetivação mais autôno- decomposto em vários ângulos, tornando indis-
mas e originais e o processo geral de serializa- cernível uma só expressão. O abdômen e o braço
ção da subjetividade que caracteriza a sociedade traduziriam uma influência “realista”, pois um
que Guattari denominou capitalística, na qual antigo capoeirista da cidade posou para Dó. A
estamos inseridos18. escultura produz no espectador uma espécie de
Ribeiro (2014, p. 80) descreve este processo ilusão de ótica: à primeira vista, não se nota que o
de serialização como um corte, uma separação bailarino só tem um braço e uma perna. Devido
entre um corpo e sua potência: ao efeito de movimento que o artista conseguiu
imprimir à escultura, tem-se a sensação de que
Faz parte de toda rede de atualização, da forma- ele possui todos os membros intactos.
-Estado, da axiomática capitalista e dos micro- Eis a forma como este processo é descrito:
fascismos que nos assolam cotidianamente nos
separar daquilo que podemos. Separar-nos de O bailarino russo teve as duas pernas amputadas
nossa potência, nos determinar funções e enca- e continuou fazendo todo o trabalho de perfor-
minhamentos normais demais. Assim, separam- mance. E aquilo demonstrou para mim uma
-nos da virtualidade que insiste em abrir um força interior imensa. Você ter a tua forma toda
campo de possibilidades, para além daquelas natural e, de repente, se deparar com um aciden-
enquadradas para se atualizarem.   te e conseguir forças para continuar numa área
que depende totalmente das pernas, dos mem-
O processo de criação da escultura Bailarino bros que você usa para trabalhar. E você buscar
Russo seria um exemplo de exercício de combate força nos outros membros – ele perdeu as pernas
a este corte, uma espécie de “antídoto” à sepa- e foi buscar a força nos braços. A escultura não
ração entre um corpo e sua potência, fornecen- tem uma perna e um braço e foi inspirada nessa
do uma “liga” para unir o que o mundo quer questão. Então, o dançarino, esse ser humano
separar (pensamento, desejo e ação), por meio que tem uma dificuldade perante essa situação
da linha de fuga traçada ou atualizada durante toda, encontrou na arte a solução. Oxumaré
o processo de expressão criativa. O pedaço de que é a questão de religiosidade e de humanis-
madeira de reaproveitamento levava Dó a en- mo nessa questão toda, que é delicada. Os exus
xergar apenas um pé de cama com um abajur na mitologia africana são elementos que vêm
acoplado à cabeceira. Até que um dia, assistindo dar proteção aos seres discriminados, desprote-
à televisão, viu uma apresentação de um bailari- gidos, como crianças menores, homossexuais,
no russo que teve suas pernas amputadas e que, mendigos. O Exu é um garoto avante dentro da
ao contrário de todas as expectativas, foi capaz mitologia africana. Às vezes pregam, dependen-
de continuar seu trabalho de dança, executando do da circunstância, que ele pode fazer um mal,
os movimentos somente com a força dos bra- mas em situação de combate, como proteção.
ços. Aquilo afetou intensamente Dó e o levou Mas é um orixá que vem a dar proteção para
a trabalhar febrilmente numa escultura, deno- os excluídos, os desprotegidos. A capoeira tem
minada Bailarino Russo. Trata-se de uma escul- toda essa questão também de força interior que
tura impactante e de grandes proporções, de os negros buscaram para sair de uma situação
um homem fazendo um movimento de torção de guerrilha. Os negros descobriram uma for-
do corpo, como se jogasse capoeira ou danças- ça interna que era uma arma, a capoeira inicial.
se. O rosto tem uma influência “cubista” – foi Transformar sua capacidade física, misturando

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com os movimentos do balé rudimentar que algo que ela não tem, algo que não tá dentro
eles tinham e começaram a inserir golpes dentro daquelas possibilidades.
da dança, para transformá-la numa arte marcial -E se você cismar que quer porque quer um for-
para combater os feitores em guerrilha. E, ao mato tal?
meu ver, uma força interior, uma estratégia in- - Não se faz o que se quer com a madeira. Se você re-
teligentíssima para sobreviver na época, quando solver que quer fazer uma escultura toda vazada, pode
não tinha capacidade de adquirir outras ferra- ser que a madeira não resista, que ela rache ou quebre.
mentas. A ferramenta que eles encontraram era - E como faz pra saber se vai dar para fazer o que
o corpo humano, o corpo físico. E batalharam está na sua cabeça?
um bom tempo com essa arma.   - É que nem com as pessoas: uma questão de
intimidade. De conhecer o outro, o jeito de ser
Embora à primeira vista desconexos, há do outro, as manias do outro. E isso só com o
uma evidente analogia entre a madeira morta tempo. Tem que conviver, testar, ver os limites,
que ganha nova vida a partir do trabalho de as possibilidades. Experimentar, arriscar. Tem
reaproveitamento, o bailarino russo com sua que estar atento às tramas e nós da madeira.
forma natural desfigurada que reafirma sua - E quando se descobre que as possibilida-
vontade de dançar, o escravo capoeirista que des daquela madeira são muito limitadas?
transforma uma dança numa estratégia de re- - Quando o artista não se emociona mais com
sistência e o próprio trabalho do movimen- aquela madeira, é hora de deixá-la pra trás.
to cultural afroindígena, que a todo tempo Hora de parar, ficar quieto, observar ao redor.
afirma a vontade de constituir sua existência Às vezes ele está caminhando e topa de repente
como alternativa aos modos dominantes de com uma bela madeira nova. Às vezes, ele tem
subjetivação. A descrição da elaboração da que partir em longas expedições até encontrá-
escultura Bailarino Russo revela uma com- -la. Mas ele só tem como saber que é aque-
posição singular, que estabelece conexões la madeira que procurava depois de arriscar
lógicas até então insuspeitas entre seus ele- conhecê-la. Como eu disse, é tudo uma ques-
mentos, traduzindo, a um só tempo, a pers- tão de tempo, mas também de intimidade. Só
pectiva ética e estética que os integrantes do ganhando intimidade com a madeira que ela
movimento cultural têm sobre o mundo em vai mostrar todas as possibilidades que contém
que vivem e criam. dentro de si, as tramas escondidas. Ele pode
encontrar coisas maravilhosas e é claro que
Considerações finais vai topar com entraves e limites. Mas se tiver
medo e evitar ser íntimo, simplesmente nunca
Afirma Jaco19: vai saber se encontrou o que procurava. Arrisca
jogar fora a madeira certa ou perder muito
- Uma coisa que eu aprendi é que todo mundo tempo com a errada.
tem algo pra dar, alguns mais, outros menos. - Então se é certo que a madeira é a matéria-
Aprendi a não esperar das pessoas uma coisa di- -prima do artista, o artista também é matéria-
ferente do que elas podem dar. Você tem que -prima da madeira...
captar o que é que cada um tem pra oferecer. E - Sim, o artista tem que se deixar entalhar pela
pegar, receber. É que nem quando faço escultura madeira. Você vai sentindo, conhecendo os nós,
com madeira: você não pode querer tirar dela ganhando intimidade e o resultado nunca é

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exatamente como você imaginou. Não é nem afroindígena foi forjado segundo a mesma lógi-
mais você, nem a madeira. É uma outra coisa. ca que orienta a técnica de reaproveitamento da
- E o que é essa outra coisa? madeira morta, matéria dotada de uma anima
- Essa outra coisa é o novo.   que no limite nunca se extingue: afroindígena
é uma espécie de reatualização por bricola-
A proposta aqui em jogo foi a de uma gem dos fluxos de acontecimentos molares e
discussão em torno do conceito de afroindí- moleculares que definem a trajetória do gru-
gena, tal como concebido pelos artistas do po, articulados ao processo de dupla-captura
Movimento Cultural Arte Manha, situado (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 17) entre
em Caravelas, cidade do extremo sul baiano. índios e negros, produzido a partir de um en-
Busquei traçar suas linhas de composição, contro entendido como atemporal entre povos
narrando os percursos delineados pelo movi- que lograram traçar linhas de fuga no processo
mento e seus integrantes ao longo de sua traje- de enfrentamento à espoliação a que foram – e
tória, nos quais multiplicam-se encontros com são – submetidos.
fluxos minoritários e embates frente aos fluxos A arte afroindígena é uma destas linhas
majoritários que atravessam seu processo de traçadas pelos integrantes do grupo no sen-
“se pôr a ser”. tido de dar consistência a um território exis-
O bloco Umbandaum invade o centro tencial que, embora não isento de tensões
histórico da cidade e, com sua narrativa hete- permanentes, conjura o risco sempre presente
róclita que sustenta em um mesmo plano de de captura da autonomia criativa do grupo
imanência mito, história, crítica social, festa, em geral e de seus integrantes em particu-
manifestação política e alegorias ecléticas, pro- lar. Ao provocar a discussão, isto é, instigar as
voca algo nos moradores da “Rua”, a elite da pessoas a pensar, a arte produzida pelo grupo
cidade. Este algo é em grande medida impre- funciona como um catalisador existencial que
visível: há quem irá se “contagiar” pelo mo- afeta tanto os fluxos que vem “de fora”, isto é,
vimento, há quem se manterá à distância do os fluxos majoritários com que lidam cotidia-
grupo; mas de algum modo todos são afetados namente, quanto “o fora dentro da gente”, a
pela passagem do bloco. relação de si para si, atuando na produção de
Do encontro com os movimentos ne- uma subjetividade pré-individual e de grupo
gro, estudantil, artístico e contracultural na que busca fugir ou escapar aos modos de sub-
Salvador de inícios dos anos 1980, os jovens jetivação dominantes e, assim, ser capaz de
do Umbandaum entraram num devir-negro; criar o novo.
do encontro com um virtual que se manifes-
ta à sua revelia, por meio das possessões por Notas
caboclos durante a passagem do Bloco de
Índio Tupinambá e da aparição não inten- 1. As discussões ora apresentadas neste artigo são fru-
cional de formas indígenas em suas criações to de uma releitura do material etnográfico que deu
artísticas, os integrantes do movimento cul- origem as minhas dissertação de mestrado e tese de
tural entram num devir-índio e, daí, num doutorado, defendidas no PPGAS-MN-UFRJ, res-
devir-afroindígena. pectivamente, em 2003 e 2010, sob orientação do
Analisando seu processo de criação de Prof. Marcio Goldman, a quem sou profundamente
esculturas, observa-se que o conceito de grata pela generosidade intelectual com que pontuou

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todo o processo. Agradeço, em particular, as sugestões das micromultiplicidades, das micromáquinas, das
ao presente artigo. O grupo estudado poderia ser de- máquinas desejantes, das formações moleculares. [...]
finido como um dos muitos “novos movimentos cul- A única questão é como isso funciona, com intensi-
turais” (GOLDMAN, 2009) que emergiram na cena dades, fluxos, processos, objetos parciais, todas coi-
política contemporânea articulando de forma singular sas que não querem dizer nada”. (Deleuze, 1992, p.
uma atuação política indissociável de um processo de 33-34).
criação cultural ou artística. O exercício aqui proposto 8. Heterogênese é aqui entendida no sentido dado
não é enquadrá-los em categorias já conhecidas ou fa- por Felix Guattari (1990), como o processo contí-
miliares, mas buscar analisá-los mantendo intacta uma nuo de ressingularização de grupos e subjetividades.
certa “rugosidade” característica de seus modos de fa- Subjetividades e não indivíduos, pois este estaria em
zer e pensar. O grupo estudado atua há 25 anos na posição “terminal” em relação aos vetores de subjeti-
cidade de Caravelas, extremo sul baiano, e se organiza vação: “A interioridade se instaura no cruzamento de
enquanto movimento cultural, articulando pessoas li- múltiplos componentes relativamente autônomos uns
gadas por laços de parentesco, vizinhança e amizade em relação aos outros e, se for o caso, francamente
em torno de uma produção artística – dança, música, discordantes” (GUATTARI, 1990, p. 18).
teatro, performance, escultura e, mais recentemente, 9. Deleuze; Guattari (1980, p.357).
vídeo – que se entende inseparável de um fazer po- 10. Sobre este tema, ver Cunha (1991; 2000); e Agier
lítico e da produção de subjetividades que se querem (2000).
dissonantes. 11. Para uma instigante tese que explora o conceito de en-
2. Poesia de Napoleão Herval Silva (1989). contro em relação a um movimento cultural negro do
3. Como é chamado o centro histórico de Caravelas, sul Bahia, ver Silva (2004).
onde vive a classe média e a “elite” caravelense. 12. Zourabichvili (2003, p.89).
4. Caravelas (BA), por ser o porto mais próximo do 13. Para uma análise detalhada da figura do caboclo no
Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, atrai há candomblé da Bahia, ver Santos (1992; 1995). Sobre
décadas pesquisadores das áreas das ciências naturais como a imagem do “índio” é construída e experimen-
que estudam a fauna e os ecossistemas marinhos. tada por meio dos diferentes sentidos atribuídos ao
5. Nesse sentido, as batas funcionam também como caboclo numa área de baixa renda de Salvador, ver
forma de levantamento de fundos para arcar com os McCallum (1997). Sobre o processo de africanização
custos do desfile do Umbandaum. dos blocos de índio, ver Risério (1981) e Agier (2000).
6. Para uma discussão sobre invenção da tradição na 14. Ribeiro (2014, p. 95).
Antropologia, ver Briggs (1996) e Mello (2003). 15.Em sua clássica análise sobre a bricolagem, Lévi-
7. Inspiramo-nos aqui em Deleuze (1992, p.33), “so- Strauss estabelece uma analogia entre o trabalho do
mos puramente funcionalistas: o que nos interessa é bricoleur e a lógica que rege o pensamento mítico.
como alguma coisa anda, funciona, qual é a máqui- O bricoleur é aquele que reaproveita elementos de an-
na”. Trata-se, portanto, de contribuir para responder tigos conjuntos, peças com uma forma pré-moldada,
não o que isso é ou o que isso quer dizer, mas como mas não totalmente acabadas, “que podem sempre
funciona. Segundo Deleuze, “o que explica o fracas- servir” (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 31). São elemen-
so do funcionalismo é que tentaram instaurá-lo em tos semiparticularizados, “cada elemento representa
domínios que não são os seus – grandes conjuntos um conjunto de relações ao mesmo tempo concre-
estruturados: estes não podem formar-se, não podem tas e virtuais; são operadores, porém, utilizáveis em
ser formados da mesma maneira que funcionam. Em função de quaisquer operações dentro de um tipo”
compensação, o funcionalismo impera no mundo (Lévi-Strauss, p.31). Da mesma forma, o pensamento

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mítico se exprime a partir de um repertório de com- ______. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed.
posição heteróclita, extenso, porém limitado. O 34, 1992 [1990].
pensamento mítico seria, portanto, uma espécie de GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological theory.
bricolagem intelectual (LÉVI-STRAUSS, 1962, Oxford: Clarendon Press, 1998.
p.30). GOLDMAN, Marcio. Introdução: Políticas e
16. Varela, Fernando (1989) apud Guattari (2012). Subjetividades nos “Novos Movimentos Culturais”.
17.
A singularização designa “processos disruptores no Ilha – Revista de Antropologia da UFSC, Florianópolis,
campo da produção do desejo: trata-se dos movimen- v.9, n. 1 e 2, p. 9-22, 2007.
tos de protesto do inconsciente contra a subjetividade GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica.
capitalística, através da afirmação de outras maneiras Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
de ser, outras sensibilidades, outra percepção etc.”. GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus,
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 45). 1990.
18. Como afirmam Guattari e Rolnik, “é num só movi- ______. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo:
mento que nascem os indivíduos e morrem os poten- Ed. 34, 2012.
ciais de singularização”. “Há sempre algo de precário, LATOUR, Bruno. Petite Réflexion sur le culte moderne des
de frágil nos processos de singularização. Eles estão dieux faitiches. Collection Les Empêcheurs de Penser
sempre correndo o risco de serem recuperados, tanto en Rond. Paris: Synthélabo Groupe, 1996.
por uma institucionalização quanto por um devir gru- LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris: Plon,
pelho” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 53). 1990 [1962].
19. Uma análise mais detida do diálogo que se segue en- LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. O Pensamento Selvagem.
contra-se em Mello (2010). Campinas (SP): Papirus, 1997.
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Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a gente é” | 239

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autora Cecília Campello do Amaral Mello


Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e Pesquisadora do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

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Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de


São João das Missões/MG

Rafael Barbi Costa e Santos


Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p241-255 implicit in the projects and the one that emerges
from within the group. I start form the descrip-
resumo Este artigo parte de uma reflexão em tions Xakriabá as “acculturated Indians”, present
torno dos projetos de cultura entre os Xakriabá de in the first reports of indigenists and research-
São João das Missões, Minas Gerais, derivando ers about the Xakriabá, placing it in opposition
aspectos de seu mundo vivido em torno dos con- to their notion índio misturado (mixed Indian),
frontos entre a ideia de cultura implícita nos pro- which emerges from the composition of contem-
jetos e aquela que se desenha em meio ao grupo. porary Xakriabá. I also argue that the projects of
Parto das descrições dos Xakriabá enquanto “índios culture organized around creative dimensions of
aculturados” presentes nos primeiros relatórios de the relationship of living Xakriabá with the anti-
indigenistas e pesquisadores acerca desse povo, gos (ancient ones) and other indigenous peoples.
colocando-a em contraponto à noção xakriabá de Finally, I seek to discuss issues surrounding the
índio misturado, que emerge da composição dos segredo (secret), concept that defines the intensive
Xakriabá contemporâneos. Argumento também relations between the Xakriabá and the encanta-
que os projetos de cultura se articulam em torno de dos (enchanted) and other agents, and explicit
dimensões criativas da relação dos Xakriabá vivos why this constitutes a dimension kept apart from
com os antigos e outros povos indígenas. Por fim, the culture projects.
procuro discutir questões em torno do segredo, con- keywords Xakriabá; Mixture; Culture;
ceito que define as relações intensivas dos Xakriabá Creativity; Cosmology; Afroindigenous; Religion;
com os encantados e outros agentes, e explicito por Minas Gerais.
que este aspecto constitui uma dimensão à parte dos
projetos de cultura.
palavras-chave Xakriabá; Mistura; Cultura; Projetos de Cultura
Criatividade; Cosmologia; Afroindígena; Religião;
Minas Gerais. Em 2005, quando pisei pela primeira vez
na Terra Indígena Xakriabá, eu não sabia muito
About culture and secret among the Xakriabá bem o que esperar. Entendia que eles estavam
of São João das Missões/MG num contexto de povos indígenas ditos
“emergentes”, mas isso não explicava muito
abstract This article starts from a reflec- sobre quem eram ou que faziam. A pesquisa
tion on the projetos de cultura (culture projects) na qual eu me inserira se dedicava a explorar,
among Xakriabá of São João das Missões, Minas por meio de um survey, o universo da produ-
Gerais, deriving aspects of their lived world ção e do consumo xakriabá – naquela época,
around the clashes between the idea of culture
​​ em transformação acelerada com a chegada da

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


242 | Rafael Barbi Costa e Santos

eletricidade e uma grande injeção de dinheiro indígena, o que suscita discussão e elaboração
vinda de aposentadorias e salários. em torno do tema da “cultura xakriabá”. Os
A pesquisa terminou no final do mesmo mesmos professores que buscam acesso a esse
ano, mas abriu caminho para outras interações conhecimento acadêmico também trabalham
junto aos Xakriabá, em projetos das associações e pesquisam em torno dos diversos projetos de
indígenas e por meio dos programas de educa- cultura como parte de seu percurso acadêmico.
ção indígena em Minas Gerais. Dentre a mirí- A decisão de pesquisar o que ocorria em
ade de iniciativas financiadas por ONGs e pelo torno da Casa de Cultura partiu da pretensão
Estado, me chamou a atenção o projeto Casa de delinear o que seria um “conceito de cultu-
de Cultura Xakriabá. ra” xakriabá, de saber o que a construção desse
Financiado pelo Istituto Sindacale Per la conceito implicava. Entendo que a cultura de
Cooperazione e lo Sviluppo (ISCOS) e pela que os Xakriabá falam é construída no âmbito
Província de Modena (Itália), o projeto era con- de sua interação com diversos atores e agên-
duzido pelas Associações Indígenas Xakriabá em cias. Não creio que haja um consenso entre os
parceria com a Universidade Federal de Minas Xakriabá em torno do que cultura significa, de
Gerais (UFMG). A ideia era construir um es- modo que preferi me debruçar sobre alguns
paço que funcionasse como oficina, espaço para elementos de seu pensamento e tentar traçar as
reuniões, festas e museu – um centro de visita- relações destes com cultura.
ção onde estaria representada a “cultura xakria- Os Xakriabá envolvidos na Casa de Cultura,
bá”. À implantação da Casa de Cultura Xakriabá com os quais desenvolvi relações de amiza-
se seguiu a aprovação de diversos projetos de cul- de, sabiam que, de fato, eu estava lá para fa-
tura, com o objetivo de financiar a fabricação de zer pesquisa e pareciam interessados no que eu
cerâmica e adornos, a instalação de uma rádio, investigava. Enquanto alunos da Licenciatura
a realização de encontros com pessoas experien- Indígena eles compartilhavam comigo a ne-
tes em diversas práticas xakriabá e também um cessidade de fazer pesquisa. Conversei com eles
intercâmbio com os Xerente que teria o objetivo abertamente acerca dos assuntos que conside-
de promover a recuperação da língua Xakriabá. ravam relevantes e sobre a finalidade do meu
Cultura, aliás, era uma palavra evocada com trabalho. De certa forma, muitas questões que
frequência nas reuniões a respeito de projetos, investiguei também são deles.
fossem elas a respeito do cercamento de nas-
centes ou da implantação de projetos de agri- O índio: mistura e aculturação
cultura familiar. Lideranças xakriabá recorriam
à cultura para falar a respeito de diferenças Os Xakriabá habitam o norte de Minas
bem como fazer demarcações políticas. Além Gerais, e suas terras estão situadas na margem
disso, cultura também foi um a palavra usa- oeste do rio São Francisco, no município de
da para desqualificar o grupo, muito referido São João das Missões. São cerca de 8 mil in-
na documentação da própria FUNAI como dígenas, divididos em mais de trinta aldeias e
“aculturado”. diversos grupos de parentesco. Como grande
Além disso, dentro dos cursos de Formação parte dos povos indígenas em Minas Gerais, os
Intercultural de Educadores Indígenas na Xakriabá possuem um longo contato com não-
UFMG, diversos xakriabá vêm tendo acesso -índios – que, no seu caso, implica articulações
às bibliografias da antropologia e etnologia com a política regional, viagens em busca de

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 241-255, 2014


Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG | 243

trabalho temporário e um regime de casamen- agradecidos e resolveram dar para ele a índia
to que frequentemente inclui pessoas “de fora” mais bonita que tinha. Era a Princesa Isabel. Aí
dos grupos locais. D. Pedro ficou dono desta terra. Ele virou para
Essas relações não são algo extraordinário os índios e falou: então vocês ficam aí, tomando
ao grupo. O contato com os colonizadores conta desta terra, que eu vou fazer uma viagem.
no século XVII produziu conflitos e alianças Os índios não sabiam trabalhar. Viviam só ca-
que resultaram no estabelecimento do gru- çando e pescando. Então D. Pedro foi pra África
po em terras “doadas” pelo Mestre de Campo e falou com os africanos: eu tenho uma terra,
Januário Cardoso. Séculos mais tarde, já redu- mas não tenho ninguém pra trabalhar. Vocês
zidos e convertidos ao catolicismo, os Xakriabá querem ir trabalhar lá? E trouxe eles pra cá. Aí
ainda celebraram uma série de casamentos com foi que começou a misturar, por que as índias
os migrantes conhecidos localmente por “baia- só queria casar com eles. Por que os índios não
nos”. Chamados por seus vizinhos de caboclos, gostavam de trabalhar, e os pretos trabalhavam
gamelas (entre outros nomes) os habitantes do muito, então já podiam comprar uma coisinha,
Terreno dos Caboclos da Missão do Senhor São um vestidinho pra dar pra mulher. Assim que
João, nome pelo qual suas terras eram conhe- começou esta mistura. Então hoje, aqui, todo
cidas, preferiram se referir a si mesmos como mundo trabalha. Eles falam que não trabalha,
“herdeiros” e “sucessores dos índios de São João mas trabalha sim” (SANTOS, 1997, p. 38)1.  
das Missões” numa certidão da década de 1930
(SANTOS, 1997, p. 34). No início de 1970 os Xakriabá foram re-
Essa relação de “herança” da terra sempre conhecidos como povo indígena pelo Estado
esteve permeada por outras implicações além brasileiro. Re-conhecidos de fato, uma vez que
de questões de usufruto e legalidade. Nas até a metade do século XIX não havia qual-
narrativas xakriabá, a origem do Terreno dos quer dúvida de que os moradores da Missão
Caboclos da Missão do Senhor São João mui- do Senhor São João eram índios – ainda que
tas vezes se confunde com a origem do próprio índios misturados2. O pleito do reconhecimen-
povo, como no seguinte relato mítico: to se deu num contexto de disputa de terras.
A RURALMINAS, órgão fundiário do Estado
Quando D. Pedro II chegou aqui, só existiam os de Minas Gerais, deu início a um projeto de
índios, nós. Aí os índios, vendo aquele homem desenvolvimento agrícola na região em meados
diferente – que nunca tinha visto o branco – re- de 1960. A possibilidade de inclusão das ter-
solveu matar ele. Chegou pra D. Pedro e falou: ras dos Xakriabá no projeto, tidas pelo Estado
nós vamos te matar. Aí, tinha uma ave, muito como “devolutas”, despertou o interesse de
grande, que colocava medo nos índios, pegava grandes proprietários de terra locais. Durante
as crianças. Quando ela vinha, os índios escon- esse tempo, os Xakriabá assistiram à fragmen-
diam as crianças debaixo de um balaio. Aí D. tação de suas terras por meio de uma série de
Pedro, reparando isso, virou pros índios e falou: ações arbitrárias e violentas que, em grande
vamos fazer um trato. Se eu acabar com esse pás- medida, eram apoiadas por autoridades locais.
saro, então vocês não me matam. Ele tinha um Foi nesse contexto que os Xakriabá busca-
trabuco. Os índios não conheciam. Quando o ram a ajuda da FUNAI. As viagens ao órgão
pássaro voltou, D. Pedro deu um tiro, pam! Foi indigenista foram orquestradas por Manoel
igual um barulho de trovão. Os índios ficaram Gomes de Oliveira, o “Rodrigo”. Rodrigo

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244 | Rafael Barbi Costa e Santos

tinha um perfil muito comum entre as lideran- Senhor São João e muita esperança de que um
ças xakriabá: havia trabalhado fora da terra e antropólogo perito saberia fazer tal triagem.
vivido muito longe e por isso mesmo dominava Auxiliar e tutelar os “misturados” e “acultura-
códigos e práticas estranhos ao grupo. Viagens dos” teria, em última instância, um impacto
longas feitas por lideranças em busca de “provi- sobre a própria ideia do que seriam “índios”.
dências” não são estranhas ao grupo. Durante A solução encontrada pela Procuradoria
o século XIX há evidências de duas dessas jor- Jurídica da FUNAI para justificar a atuação
nadas: ao Rio de Janeiro para se queixar ao junto aos Xakriabá foi apelar para uma impre-
Imperador D. Pedro II e a Ouro Preto para efe- cisão na lei, inferindo que “[...] Não distingue,
tuar o registro das terras da Missão (SANTOS, portanto, a Carta Magna, o silvícola isolado
1997, p. 18). do aculturado” (OLIVEIRA apud SANTOS,
A ideia de mistura, presente nas narrativas 1997, p. 91). E assim os Xakriabá adentra-
Xakriabá, somou-se à de “aculturação” sob a ram a lista dos povos indígenas reconhecidos
intervenção da FUNAI. Relatórios de técnicos pelo Estado brasileiro sob a condição de “ín-
do órgão frequentemente questionavam a con- dios aculturados”. Não obstante, os próprios
dição indígena do grupo frente à ausência de Xakriabá acabaram por se reconhecer nessa
ornamentos, arcos e flechas, e uma língua pró- condição. Em reuniões de projetos, aulas, dis-
pria entre os Xakriabá. Por ocasião da primeira cursos políticos e músicas, a ideia da “perda da
visita à FUNAI, feita por Rodrigo e outros, a cultura” é suscitada e debatida.
atitude do órgão foi pedir que retornassem com
provas materiais que comprovassem sua origem A cultura: antigos e finados
indígena, tais como ‘objetos sagrados’, peças de
artesanato e cacos de cerâmica” (SANTOS, “Agricultura não é cultura, não!”, bradou S.
1997, p. 86). Emílio durante uma oficina de capacitação em
Rodrigo atendeu ao pleito da FUNAI, le- Economia Solidária. E continuou:
vando consigo as peças que supostamente
comprovariam o status indígena dos Xakriabá. Agricultura é um e cultura são outro, agricultura
Além disso, ele também levou consigo Lucido, é o plantio, cultura é a descendência, os trabalho
conhecido como Lucidão. Era um habitante da é diferente. A Cultura tá aqui [apontou para as
aldeia Barreiro Preto, conhecido por ser, nas pinturas em seus braços], é o fruto da natureza
palavras dos Xakriabá, um índio ou caboclo que faz isso aqui. E agricultura é trabalho! […]
apurado e por uma descomunal habilidade nos Cultura é sistema: vocês têm uma cultura, eu te-
assuntos relativos ao mato: andava descalço ig- nho outra. Nós não somos uma cultura só não,
norando quaisquer adversidades, não montava eu sou índio e vocês é branco! Estamos feito dois
a cavalo e caçava sem o uso de armas de fogo. doidos aqui conversando. […] Agricultura, nós
Lucido era apresentado à FUNAI como “um aprendemos com o branco, porque a gente não
índio mesmo”3. tinha agricultura. Agora, cultura, a gente tem
Ainda assim, o órgão indigenista tinha uma parte aqui que os brancos é que aprende-
muitas dúvidas em relação à questão xakriabá. ram com a gente.  
Houve uma tentativa de separar os “verdadei-
ros” indígenas das outras famílias que habi- Habitante da Aldeia Pedra Redonda, S.
tavam o Terreno dos Caboclos da Missão do Emílio sempre foi uma das lideranças mais

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 241-255, 2014


Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG | 245

fortes na parte da cultura. É considerado o de cultura, tão carregada de ambiguidades


primeiro a voltar a fazer adornos de madeira quanto aquela cara à ciência antropológica.
e osso, e quase todos os artesãos que exercem Considerar esse um processo inautêntico pelo
esse ofício fazem contato com ele ou com al- fato de ele se dar no contato com agentes exó-
guns de seus aprendizes. Junto com Edivaldo, genos seria algo injusto, uma vez que o con-
jovem liderança da aldeia Sumaré, Emílio ceito antropológico de cultura é relacional
foi um dos idealizadores da Casa de Cultura em sua essência.
Xakriabá. Com frequência também fazia as ve- Então, eu queria saber o que era cultura
zes de pajé, uma liderança de questões rituais para os Xakriabá, ou, pelo menos, o que era
e religiosas. essa cultura que desejavam retomar. E a ideia
Durante muito tempo considerei a fala de de retomada não era nova: os Xakriabá costu-
Emílio como um uso equivocado de ideias mavam usar esse nome para se referirem à luta
que ele ganhara por meio de seu extenso con- pelas terras que lhes foram expropriadas. Falar
tato com diferentes agentes dentro da Terra em uma retomada da cultura implicava simul-
Indígena e fora dela. E, no entanto, uma lei- taneamente tomar de volta algo que lhes havia
tura mais cuidadosa dos Xakriabá me revelou sido tirado e continuar com algo que havia sido
que ele não estava errado de maneira alguma: interrompido.
se havia algum equívoco, este seria a consequ- E onde a cultura foi interrompida? As nar-
ência de uma mútua incompreensão. Afinal de rativas xakriabá trazem a questão da mistura,
contas, se Emílio desconhecia que o sentido da mas essa não era a causa apontada para a perda
palavra “cultura” advinha justamente da ideia da cultura. O que se afirmava muitas vezes era
de cultivo, eu também era completamente ig- que os índios de Missões haviam deixado de
norante a respeito dos Xakriabá. falar sua língua, de se pintar e usar seus ador-
A fala de Emílio foi o que abriu caminho nos por vergonha. Esses índios do passado,
para que eu pudesse pensar nas implicações do referidos como os antigos, são representados
crescente movimento de “retomada da cultura” em pinturas e desenhos dos Xakriabá como
entre os Xakriabá, do qual a Casa de Cultura “índios hiper-reais” (cf. RAMOS, 1995) ou,
era o maior expoente. Antes, eu buscava enten- em termos xakriabá, apurados: trajando roupas
der como os Xakriabá estavam se apropriando de palha, cobertos de adornos de penas, com
do conceito de cultura, mas para dar seguimen- lábios e orelhas perfurados, corpos pintados e
to à empreitada foi necessário compreender o portando objetos como arcos, flechas, cachim-
que é cultura para eles. bos e maracás4.
Nesse sentido, se algumas ideias de Roy Os antigos parecem ser compreendidos
Wagner (1981) foram essenciais para tra- como os índios que os Xakriabá um dia foram.
tar esse problema não é porque os Xakriabá São parentes distantes no tempo, fora do al-
estivessem “inventando” sua cultura, já que cance da memória genealógica dos índios, cujo
eles falavam no processo em um sentido contato com os Xakriabá atuais é estabelecido
contrário, tratando-o como uma retomada. por meio de algumas narrativas míticas e dos
O tratamento relacional dado por Wagner à presentes dos antigos – o que remete à relação
noção de cultura é que tornou possível pen- entre os tsrunni e os Piro, como descrita por
sar o problema de outra maneira. O que esta- Gow (1997, p. 44). Os presentes constituem o
vam fazendo era inventar uma noção própria legado deixado pelos antigos, principalmente

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 241-255, 2014


246 | Rafael Barbi Costa e Santos

sob a forma de vestígios arqueológicos: pintu- Enquanto um antigo e encantado, a Iaiá


ras rupestres, panelas, potes, lâminas e pontas é tomada como um ícone privilegiado dos
de pedra, cachimbos e outros objetos encon- Xakriabá, algo que reconhecem como inte-
trados com frequência na terra indígena e suas grante de sua cultura. Ela é parte de uma das
imediações. Padrões de pintura corporal e obje- narrativas mais conhecidas, é uma figura que
tos de cerâmica feitos na atualidade encontram demarca a alteridade dos Xakriabá e de sua ter-
inspiração nos vestígios dos antigos5. ra, uma entidade poderosa do Toré e do traba-
Algumas narrativas míticas imortalizam os lho de mesa, além de uma ancestral comum8.
antigos na condição de encantados. A mais cé- A atualização dos antigos também se dá
lebre dessas narrativas é a da Onça Cabocla, a mediante a constatação e afirmação nativa
qual me foi contada não menos que dez vezes, de um parentesco entre os Xavante, Xerente
em ocasiões diferentes, por pessoas diferentes. e Xakriabá. Xavante e Xerente possuem sua
A Onça Cabocla era uma moça, descrita como língua, mitos, seus objetos de arte e seus ritu-
uma “índia” ou uma “cabocla bem apurada”, ais, como possuíam os antigos. Recentemente,
que andava junto à irmã. Quando avistaram durante uma aula da Formação Intercultural
algumas cabeças de gado, ela disse à irmã que de Educadores Indígenas, uma professora pe-
“viraria numa onça” para matar uma novilha e diu que os alunos representassem em cartazes
lhe pediu que colocasse um punhado de mato seu território do passado, seu “território míti-
em sua boca assim que ela voltasse, para desen- co”. Prontamente, um grupo de jovens alunos
cantar – em algumas versões é um punhado de Xakriabá desenhou um diagrama que mos-
cama-de-gato ou um cachimbo. A Onça matou trava o parentesco entre os três povos indíge-
a novilha e bebeu seu sangue, mas, quando vol- nas, atestando que antes “eram um povo só”.
tou, acabou assustando a irmã, que correu com Disseram então que os Xakriabá haviam per-
os objetos do feitiço. Assim, ela permaneceu dido muitos de seus mitos e contaram o mito
encantada6. de origem xavante e, em seguida, o da Onça
A Onça Cabocla é mais conhecida por Iaiá Cabocla. Essa relação não está impregnada por
Cabocla ou, simplesmente Iaiá, e é referida por uma espécie de evolucionismo que situaria os
alguns Xakriabá como “a avó de todos nós” – povos parentes no passado; trata-se, antes, de
iaiá é a maneira a qual os xakriabá se referem um reconhecimento de que Xavante e Xerente
afetuosamente às mulheres mais velhas. Como detêm conhecimentos similares àqueles que os
no caso dos outros encantados, sua ligação com Xakriabá atribuem aos antigos.
a terra que os Xakriabá habitam é imanente, A reconexão com o mundo dos antigos é
anterior, reconhecida por índios e não-índios. operada por meio da captura dos elementos
É comum ver figuras de barro e desenhos que dos presentes, dos rituais e dos mitos. No en-
representam a Onça nas paredes da casa, às ve- tanto, os projetos de cultura tematizam princi-
zes ao lado de imagens e quadros de santos. S. palmente o primeiro elemento, dando ênfase
Chico de Bião, morador da aldeia Sumaré, con- para a produção da arte xakriabá. Os rituais e
ta que aqueles que adentravam o Terreno dos mitos parecem relegados ao domínio do que é
Caboclos para comerciar costumavam deixar chamado de segredo.
uma oferenda para ela, em fumo ou cachaça, Outras práticas, também entendidas pelos
como forma de pedir passagem e segurança en- Xakriabá como da cultura não são atribuídas
quanto estivessem lá7. aos antigos – pelo menos não àqueles índios

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Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG | 247

hiper-reais do passado – mas percebidas como pelo trabalho temporário (eletrodomésticos e


algo mais recente, e já misturado, embora não motocicletas) são apontados pelos moradores
menos importante. São elas a fabricação de ra- de cidades vizinhas como evidências de que os
padura, as técnicas necessárias para se construir Xakriabá não seriam mais índios.
e guiar carros de boi, as festas e rituais religio- E, no entanto, embora o fenômeno do tra-
sos de fundo declaradamente cristão, o jogo de balho temporário tenha se intensificado nos
loas, entre outras. Em certo sentido, poderiam últimos dez anos, ele não é novo e tem conso-
ser pensadas sob o nome de presentes dos fina- nância com as viagens feitas pelos diversos che-
dos, no sentido de que são percebidas como o fes para “buscar providências”. É raro, entre os
legado dos parentes mais velhos e daqueles que Xakriabá, conhecer uma liderança que nunca
se foram, mas ainda estão ao alcance da memó- trabalhou fora da terra. Esse trânsito implica o
ria genealógica xakriabá. domínio de códigos externos aos xakriabá e por
O universo dos antigos e dos finados se co- isso é de grande valor9.
necta em muitos pontos. A arte cerâmica, por
exemplo, é percebida como algo que os antigos Cultivando, “culturando”
faziam e é também lembrada como uma práti-
ca que os mais velhos exerciam com maestria e E se agricultura não é cultura, o que poderia
que poucos dominam nos dias de hoje. De fato, ser? No momento em que Emílio atesta que
potes e panelas feitos no Terreno dos Caboclos os antigos não sabiam o que era agricultura, ele
eram vendidos por eles nas feiras regionais, e não afirma que eles não sabiam plantar. Em sua
toda sorte de vestígios cerâmicos, de urnas fu- fala havia outras relações implícitas que mere-
nerárias a cachimbos, pode ser encontrada com cem desenvolvimento.
facilidade dentro da terra indígena. Dentre os mais velhos com quem mantive
As mudanças aceleradas na vida dos conversas está D. Olava, habitante da aldeia
Xakriabá têm produzido uma percepção de que Sumaré. Sua família, como grande parte das
esses elementos do mundo dos finados merecem que moram naquela aldeia, não tem origem no
uma atenção especial. A primazia do trabalho Terreno dos Caboclos, e veio de outras áreas e
temporário realizado fora da terra indígena na estabeleceu relações com os moradores de lá –
vida dos homens e a crescente modernização tornando-se, eles também, herdeiros. Ela con-
da Terra Indígena Xakriabá (TIX) constituem, ta que seu pai, o finado Manel, foi convidado
para os Xakriabá, o risco de “perder mais cul- por Gerônimo, antigo e renomado chefe dos
tura”. Nas palavras de uma liderança, existe: caboclos, para “ensinar os índios a trabalhar”.
“[…] esse problema da perda da nossa cultura, “Para o Gerônimo, nós era feito parente. […]
que ocorre porque nossos parentes se mudam e Naquele tempo os índio não plantava direto,
vão pra fora. Passam temporadas maiores fora vivia pegando coisa nas matas, comia o sonhim
da área e quando voltam são diferentes”. assado, sem sal.” Essa narrativa é compartilha-
A intensidade das relações dos Xakriabá da por Emílio quando diz que o que a geração
com os não-índios se cristaliza em suas fre- de seus avós “fazia era caçar”.
quentes incursões para outros lugares, seja em Essas narrativas, e muitas outras, corrobo-
busca de trabalho, seja “para conhecer o mun- ram a história contada por S. Laurindo, no qual
do”. As viagens frequentes, os muitos parentes os índios só sabiam caçar e pescar e por isso
que residem fora da TIX e os bens conseguidos D. Pedro trouxe os africanos para ensiná-los

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a trabalhar. E trabalho seria, a rigor, o ato de As narrativas dos mais velhos sobre a pre-
plantar uma roça. Nas palavras de Emílio: ferência dos antigos pela caça e coleta contras-
tam com o que eles mesmos falam sobre o seu
A comida deles é, mais era: mele de abeia, fei- tempo e o de seus pais. Emílio, como muitos
to o aruá, com a carne de bicho do mato – de outros de sua geração, conta que “foi criado no
meleta, de tatu, de anta, de ema. Quando en- cabo da enxada”, num tempo que foi de fartura
tão, tinha muita modossamba, jataí, munduri; e de roças muito produtivas, contrastando com
o urucu, marmelada. Tudo era comida dos ín- o plantio escasso da atualidade.
dios: raiz de imbu. […] Porque eles não usavam Os Xakriabá possuem uma atitude de pro-
plantar roça, quando foi no tempo que eles não digalidade frente à comida. Os parentes de
usavam ferramenta pra trabalhar. Isso também é uma família extensa ajudam-se mutuamente na
uma tia minha; ela contou: nas ocasião das fes- questão alimentar e é comum que cunhados,
tas da religião, eles pegavo jatobá, pisavo, tiravo irmãos e primos mais jovens apareçam à casa
fubá dele, fazia biscoito pra cumê (XAKRIABÁ, de alguém para almoçar ou jantar. Entendendo
2005, p. 43).   que habitam uma região inserida no Polígono
das Secas, onde a comida pode escassear em al-
A reunião na qual a fala de Emílio aconteceu gumas épocas do ano, essa atitude é crucial para
era parte do projeto Educação e Alternativas a manutenção do grupo. Como eles mesmos
de Produção. Financiado pelo Ministério do dizem “um tem, o outro não tem, mas todo
Desenvolvimento Agrário, o projeto tinha o mundo tem” (CORREIA DA SILVA, 2011).
objetivo de atender às demandas Xakriabá em A escassez, no entanto, não faz com que se
torno da questão do aumento da produção. A coma moderadamente, e a prodigalidade vai
diminuição no plantio das roças era constatada além da lógica da dádiva. Como notado por
pelas lideranças que atribuíam o fato à intensifi- Fernandes (2008), enquanto houver alimento,
cação do trabalho sazonal nas lavouras de cana, come-se muito e de maneira farta. A fartura
à entrada massiva do gado e à inconstância do produzida pelo Terreno do Senhor São João,
regime de chuvas. Os jovens diziam que o tra- tão citada no trabalho de Santos, está expres-
balho na roça não poderia ser enfatizado por sa para além da disponibilidade de comida.
não gerar dinheiro, o que preocupava os mais A união na comidaria, levantada por Correia
velhos. O tratamento dos dados da pesquisa (2011), nos dá pistas de relações orientadas
“Conhecendo a Economia Xakriabá”, propos- pela comensalidade10.
ta pelo cacique Domingos Nunes de Oliveira Produzir roça é produzir gente, para além
realizada em parceria com a UFMG, confirma- da ideia de nutrir e alimentar. A partir das
va que os Xakriabá vinham adquirindo os ali- diversas relações de parentesco é que se divi-
mentos de fora da Terra Indígena e fabricando diam os roçados e se organizavam as sucessi-
pouca farinha de mandioca – um dos principais vas etapas de trabalho. As roças são o ambiente
alimentos de sua dieta. No entanto, nada dis- privilegiado para a produção da pessoa e das
so indicava uma situação de penúria, mas uma relações xakriabá. Os diversos lamentos acerca
mudança na relação com a comida: antes plan- da redução drástica do plantio se ligavam com
tada, agora comprada. A questão colocada nas outras falas a respeito das mudanças aceleradas,
entrelinhas era que o plantio de roças implicava ou descontroladas, segundo alguns, e traziam
muito mais do que produzir para comer. uma problemática essencial: as roças eram

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estruturadas em torno das relações e também baiano. Em linhas gerais, caboclo designa um
responsáveis por sua estruturação. Xakriabá cuja ancestralidade remete aos habi-
A atividade agrícola implica o conhecimen- tantes mais antigos do Terreno dos Caboclos.
to da terra, o domínio de determinadas téc- Baiano, por outro lado, indica aqueles descen-
nicas e a divisão do trabalho entre homens e dentes de famílias que chegaram ao Terreno des-
mulheres, crianças e adultos, sogros e genros. de o final do século XIX e foram incorporadas
As roças eram uma forma de estruturar a vida mediante regimes de casamento e compadrio.
que permeava a todos, sem exceção. Na medida Mariz e Paraíso tratam essa divisão nos ter-
em que no “começo pensada como uma atuali- mos de “identidades contrastivas”. Mariz per-
zação das relações do grupo. Entre as cercas de cebe que os termos são opostos e que designam
feijão andu e as roças de mandioca, cultivava-se uma divisão no grupo. Paraíso escreve que os
simultaneamente a comida e o socius xakriabá11. baianos não compartilhariam de elementos
Além disso, as roças evidenciam um domí- Xakriabá importantes, como o culto à Onça
nio antrópico, propriamente humano, em opo- Cabocla ou a crença nos encantados. Santos vai
sição ao mato. O mato e a noite privilegiam os além, entendendo que estas não seriam catego-
bichos, inclusive os bichos encantados. Faustina, rias simplesmente opostas, já que ambas seriam
moradora do Barreiro Preto, narrou um caso percebidas como “de dentro”, internas ao gru-
que ilustra bem essa relação. Toda sua vida foi po. A autora prefere então pensar que baiano e
construída em torno do trabalho na roça e a caboclo estariam organizadas segundo o modelo
maioria das longas conversas que mantive com de “englobamento de contrários” proposto por
ela acabavam desembocando nesse assunto. Louis Dumont, na qual a categoria caboclo en-
Faustina contou que às vezes ela e o ma- globaria a de baiano (SANTOS, 1997, p. 175).
rido abriam uma roça perto de casa e outra Minha experiência junto aos Xakriabá de-
longe. Trabalhavam primeiro na mais distante monstrou que além dessas categorias não opera-
e, quando chegavam em casa, trabalhavam na rem por oposição, não são cristalizadas ou bem
roça próxima nas noites de lua cheia. Certa vez, delimitadas. Baiano geralmente tem um caráter
um tio de seu marido chegou à casa deles para pejorativo por implicar uma não-indianidade
ajudar. Durante à noite, insone, ele levantou do sujeito e de seu grupo de parentes e pode
para “fazer a coivara”. Enquanto o mato quei- ser usada dessa forma. No entanto, muitos se
mava, uma luz muito forte, como o fogo, ris- pensam ou são descritos como meio baiano ou
cou o céu e queimou “um pau de aroeira” de meio caboclo, de modo que a oposição entre as
uma só vez. Ela, o marido e o tio deste ficaram duas categorias é sempre relativa e relacional:
bastante assustados e suspenderam o trabalho baiano pode ser sempre o outro.
noturno. “À noite quem trabalha são os bichos” O ponto a que quero chegar é que não pare-
disse Faustina diante disso. ce haver uma distinção entre baianos e caboclos
no tocante às relações com os encantados. Ao
Baianos e caboclos: contraste e contrário, os Xakriabá parecem unidos em tor-
englobamento no de seus pressupostos cosmológicos e o que
neles está implicado. A quase totalidade das
Mariz (1982), Paraíso (1987) e Santos informações que recolhi acerca dos encantados
(1997) falam a respeito de uma divisão interna veio de moradores de aldeias cujos habitantes
dos Xakriabá, expressa nas categorias caboclo e são descritos como majoritariamente baianos.

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O segredo: forma e fuga comunicar com ela, falava numa língua que nin-
guém entendia. Muitos acreditam que essa seria
No processo de retomada da cultura xakria- a língua dos antigos “a qual, após muitos anos de
bá, existe um conjunto de elementos que pa- contato, passou a ser utilizada apenas nos rituais”
rece escapar à lógica dos projetos. Refiro-me (MARIZ, 1982, p. 32)14.
às relações intensas com os encantados, o uso Alguns Xakriabá dizem que os grandes pajés
ritual de plantas psicoativas, os processos de como o finado Estevão não existem mais, e que
cura xamânica, a feitiçaria e a transformação. não há quem possa invocar a Onça Cabocla e
Muitos desses elementos são referidos pelos falar com ela. É o caso de Salvino, artesão do
Xakriabá como segredo ou segredo de índios. Morro Falhado, que atesta que “hoje, os povos
Alguns aspectos do segredo possuem uma daqui não sabem mais dessas coisas não. Isso
forte ligação com os presentes dos antigos. O acabou!”. Quando falei que ainda haviam pajés
Toré, por exemplo, se consolidou a partir da des- e curadores, ele disse que não eram iguais aos
coberta de tralhas dos antigos que haviam sido de antigamente.
escondidas nas grutas. Rodrigão foi um dos res-
ponsáveis pela descoberta das coisas de trabalho É que os índios foram misturando com os po-
junto com D. Anália, filha do importante chefe vos de fora. De primeiro os povos eram mais
Zé Gomes, que passou então a ser conhecida aprumados, aí foi chegando essas coisas mais
como “a Madrinha do Toré”. D. Anália conta novatas, os trabalhos foram acabando. Foi coisa
que o Toré “é uma parte de segredo. Desde os também desses fazendeiros, desse povo que veio
antigos” (SANTOS, 1997, p. 191)12. Praticado invadindo. De primeiro as pessoas não conse-
por batalhões na região das aldeias Brejo do Mata guiam entrar aqui fácil assim não. Os trabalhos
Fome, Embaúba e Riachinho, o Toré é marcado não deixavam: era gente que ficava perdido,
pela ingestão da infusão de entrecasca da jurema era carro que quebrava. […] Esse povo, como
(Mimosa nigra) e que tem como objetivo o con- Estevão, ia é fazer trabalho nas matas. Eles iam
tato com as entidades conhecidas como encanta- para o mato, tomavam preparado de planta para
dos, principalmente a Iaiá Cabocla. Esta é uma concentrar, fazer os trabalhos. […] Fazer um
entidade protetora, mas perigosa. A Iaiá sempre trabalho desses e chega aquela cobrona e enro-
sabe quando alguém duvida de seu poder ou fala la em você todo, imagina? […] Mas você sabe
mal dela, tem a capacidade de virar em qualquer que era a Iaiá, certo? Ela tem forma de muitos
coisa e também de ficar invisível, pode matar bichos […] Meu pai já viu ela, aquela indiazona
o gado de seus desafetos para se alimentar do toda, ela era alta. Apareceu para ele em cima da
sangue das reses. Apenas pajés muito poderosos cerca, lá pro lado do Sapé. Olhou para ele e foi
podem contatá-la, como acontece no Toré13. para dentro do mato. De primeiro ela passava
Abundam as narrativas que contam acerca de por aqui, assobiando. Ela tinha um assobiado
pessoas que desafiaram a Iaiá e pagaram por isso. fininho, e quando ela passava os cachorros iam
Nesses casos, o finado Estevão Gomes é lembran- latindo. Ela passava pelos quintais afora.  
do como o homem responsável por controlá-la.
Estevão era um célebre curador, apontado por al- Não obstante, a Iaiá é invocada em uma sé-
guns com o bisavô de D. Anália. Descrito como rie de trabalhos, seja no Toré ou no trabalho
“um caboclo bem apurado”, o finado Estevão era de mesa, nos quais fala e responde uma série
aquele que “falava a língua” da Iaiá, já que ao se de perguntas. Fernandes, em seu campo na

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aldeia Caatinguinha, teve como informante S. narrativas a transformação geralmente se dá no


Evaristo, pajé e liderança daquela aldeia. Ele mato, para onde se havia fugido. Transformados
afirmou ter o poder para encontrar e conversar em casa de cupim, cachorro ou pau seco, eles
com a Onça, e que, embora ela seja invisível, podiam enganar as autoridades durante dias.
pode aparecer em uma fotografia ao lado dele Seu Estácio, liderança da aldeia Caatinguinha,
enquanto realiza o trabalho de mesa. conta a história de João e Maria: um casal que se
O acesso aos pajés é irrestrito e mesmo pes- une contra o desejo dos pais da noiva. Estes pe-
soas de fora da Terra Indígena vêm consultá-los. dem que o noivo complete tarefas sobre-huma-
No entanto, o Toré é um tipo de trabalho so- nas para conseguir a mão da filha – desmontar
bre o qual pouco se fala. Ainda que tenha uma morros, cortar uma árvore de fogo – que ele é
conexão forte com os antigos, o Toré é segredo, incapaz de realizar. A noiva, Maria, acaba fazen-
sobre o qual só se pode versar com restrições15. do as tarefas por ele, sem que seus pais saibam.
As ideias de encanto e de encantado são Quando percebem que não vão conseguir a au-
amplamente difundidas e, como o domínio torização para casar, eles decidem fugir juntos.
dos encantados é o mato, as histórias de caça Segue uma série de episódios de transformação
geralmente acabam remetendo a eles. Um ca- e fuga nos quais o casal é perseguido pelo pai da
çador xakriabá, especialmente um senhor de noiva. Quando este desiste e manda sua esposa
mais idade, tende a falar de bichos e bichos no lugar, Maria diz: “Óia, agora não é mais o
encantados sem que haja qualquer transição na meu pai que tá vindo, não, é minha mãe e ela
conversa. Mas, mesmo que os bichos encantados tem mais segredos que meu pai. Ela vai achar
integrem a fauna, não podem ser caçados. Ao nós e ela vai pegar nós de volta. Vão virar um
contrário, eles frequentemente representam pe- cinzêro” (XACRIABÁ, 2005, p. 105).
rigo para o caçador16. No entanto, as transformações não estão
Em outra ocasião em que falávamos de caça, situadas apenas nas narrativas de um passa-
um xakriabá do Barreiro Preto disse que achava do mítico. Em campo pude escutar sobre um
que os “matos tinham um encanto”, porque às evento similar à história de Seu Estácio, acon-
vezes a caça escasseava e abundava sem qual- tecido há alguns anos, com um casal da aldeia
quer explicação aparente. São Domingos – com o qual eu tive um breve
A algumas pessoas é reputada a capacidade contato, por causa de um projeto de criação
de transformação. Chefes importantes do pas- de peixes. Ambos fugiram para casar e foram
sado, como os finados Gerônimo e Zé Gomes, perseguidos por conta disso. Contam que só
pajés como o finado Estevão, além de outros conseguiram escapar porque o noivo era sabido
notáveis como o Velho Paulino, são lembrados e virou os dois numa casa de cupim.
como capazes de virar animais, casas de cupim Um caso mais emblemático é o de Lúcio.
e pau seco. Muitas narrativas xakriabá colocam Tio de um dos Xakriabá mais próximos de
a transformação no contexto do confronto mim, Lúcio é bisneto do Velho Paulino, re-
com as autoridades do Estado. Velho Paulino putado curador e chefe da região do Barreiro
e Gerônimo, ambos teriam passado por situ- Preto. Ele é conhecido por encantar nas ocasi-
ações em que escaparam da polícia usando da ões de sentinela, em volta da fogueira, onde vira
capacidade de virar –Velho Paulino chegou a gravetos em cobras, folhas em cigarras, palha
ser capturado a despeito disso, mas escapou de milho em dinheiro e faz mesa pular. Lúcio
colocando os soldados para dormir. Nessas também é capaz de se transformar em touro e

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bode, coisa que ele conta ter aprendido com Considerações finais: cultura e
encantados da mata. Abundam os eventos nos cultura
quais Lúcio enganou donos de vendas com o
dinheiro virado ou de pessoas que testemunha- Strathern (1980) se pergunta por que a opo-
ram o surgimento de cigarras e cobras nas fo- sição entre o doméstico e o selvagem feita pelos
gueiras das sentinelas17. Hagen deveria ser extrapolada para a oposição
Gente que encanta como Lúcio pode ser refe- entre cultura e natureza – termos inadequados
rida como fazedores de truque (prestidigitadores), para se tratar dos povos das Terras Altas. Sua ex-
capazes de fazer com que outros acreditem em posição cuidadosa das implicações da oposição
coisas que a rigor seriam ilusões. Embora práticas entre mbo (o doméstico) e rømi (o selvagem)
aparentemente mais inofensivas como fazer de- demonstra que sua relação não se dá nos mes-
saparecer e aparecer pequenos objetos e animais mos termos daquela entre cultura e natureza. E,
possam ser tratadas dessa maneira, as transfor- no entanto, é justamente o equívoco implícito
mações das pessoas são um assunto mais sério. na correlação direta entre os dois pares de ter-
Um célebre exemplo é ilustrado pela ocasião na mos que tornou possível a análise de Strathern.
qual ele chegou em casa virado em um touro pre- Como sustenta Carneiro da Cunha (2009),
to e sua esposa, assustada, pegou uma mão de a cultura, como os cantes de ida y vuelta, chegou
pilão e lhe atingiu a cabeça. Após esse episódio até os mundos nativos e agora volta para nos
ela entrou em depressão e precisou se tratar. assombrar – categorias de ida y vuelta. E o que
Busquei explicitar a riqueza do pensamen- volta quase nunca é o que foi, de modo que a
to acerca dos encantados e do encantamento e cultura a que se referem os nativos certamente
como ele se relaciona com uma série de pre- tem interseções com o conceito da ciência antro-
dicados (caça, cura, roça, etc.), sendo parte pológica, mas é de fato outra coisa. Nesse sentido,
integrante da vida xakriabá. O encantamento a “autoconsciência cultural” proposta por Sahlins
já contém em si uma dimensão do discreto e (2004) não necessariamente implica uma teoria
do indizível: ele deve ser segredo ou não-dito nativa da diferença em termos culturais.
porque os encantados e as gentes que encantam O trabalho de Roy Wagner produziu, por
sabem quando se fala deles. meio de um esforço de reversão antropológica,
A dimensão de segredo do encantamento e um olhar muito acurado a respeito da ambi-
sua não-comunicação com os projetos da cul- guidade e dos diferentes sentidos carregados
tura certamente constitui um contraponto à pelo termo cultura. Para o Ocidente moderno,
exuberância com a qual os Xakriabá tratam as o termo é uma metáfora para vida, um mito da
artes da cerâmica, do ornamento e da pintu- produção e acumulação, do controle e da do-
ra. Os elementos do segredo, quando surgem, mesticação, da oposição entre o feito e o inato,
são apresentados desprovidos de sua dimensão entre o não-convencional e o convencional.
atual, narrados como histórias de coisas que, Além disso, cultura é um conceito constan-
a rigor, não existiriam. O segredo aponta para temente atualizado pelo exercício de expres-
uma diferença radical que não deve ser tradu- são da diferença na teoria antropológica. Mas
zida em cultura e integra uma dimensão inco- seu sucesso como categoria analítica o tornou
mensurável em relação à ontologia moderna, onipresente, ubíquo, justamente o que tem
que precisa ser protegido e, como tal, mantido lhe esvaziado a capacidade de operar como tal
à parte dos projetos de cultura. (STRATHERN, 1995, p. 157).

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Na medida em que essa onipresença favo- categoria antigos engloba a de finados, mas o inverso
rece apropriações e metáforas, ela ajuda a ori- não é verdadeiro.
ginar as categorias de ida y vuelta. Um sinal da 5. Presentes dos Antigos (2009) é o título de um filme
inadequação que estimula a imaginação antro- documentário feito no âmbito do curso de Formação
pológica, já que foi a incompatibilidade entre Intercultural de Professores Indígenas. Dirigido por
cultura, enquanto conceito nativo, e cultura Rafael Fares e produzido por Ranisson e José Reis,
como conceito antropológico o que inspirou o ambos professores Xakriabá, o documentário trata da
presente trabalho em primeiro lugar. A consta- busca dos Xakriabá por uma conexão com os antigos
tação de que a equivocação é de mão dupla é o através das pinturas rupestres como objetos de refle-
que tem dado alguma forma e corpo, por meio xão e o ritual do Toré. Embora não seja uma expressão
do estudo das categorias xakriabá implicadas nativa de uso corrente, faço seu uso por um duplo ca-
em seu conceito cultura. ráter: indica a relação de dádiva implícita nos vestígios
arqueológicos e também os antigos no presente.
Notas 6. Essa é uma versão da história produzida conforme
a documentação (Paraíso, 1987; Santos, 1997; e
1. Essa história foi gravada por Ana Flávia Santos em Xacriabá, 2005) e as várias anotações registradas em
1996, narrada pelo Senhor Laurindo Gomes de diferentes momentos. Escutei a história da Onça
Oliveira, da aldeia Olhos d’Água. Tive oportunidade Cabocla narrada por S. Ioiô da Vargem, S. José de
de escutar diferentes versões dela em várias ocasiões Olava, S. Chico de Bião, S. Emílio e S. José de Fiúza.
em campo. Penso nessa história como uma espécie 7. Na cidade de Itacarambi, quando provocados a fa-
de “mito de origem” dos Xakriabá, por condensar as lar sobre os Xakriabá, alguns senhores disseram que
narrativas de aliança com os diversos grupos e tam- “aqueles índios bebem cachaça com a onça e chamam-
bém por falar na origem do Terreno dos Caboclos da -na de ‘titia’!” (SILVA; OLIVEIRA NETO, 2006).
Missão do Senhor São João. 8. Trabalho de mesa é como os Xakriabá se referem a eventos
2. Saint-Hilaire, em 1817, se refere aos índios aldeados em nos quais os pajés ou curadores invocam ou incorporam
São João das Missões como xicriabás, alegando que ha- entidades, às vezes chamadas de ordens. Estas podem ser
viam se fundido com negros e mestiços. Por não serem acessadas quando os pajés entram em corrente, como são
“índios puros”, conta o viajante, a lei não lhes concedia chamados os estados de incorporação (FERNANDES,
o direito de serem julgados pelos seus. Outros visitantes 2008). As Ordens podem ser encantados (como a Onça
da Missão se referem aos índios lá aldeados como “caya- Cabocla), antigos ou entidades associadas à cultos afro-
pós” e “acroás” (SANTOS, 1997, p. 13-17). -brasileiros, tais como pretos-velhos ou caboclos. A aptidão
3. Em princípio a ideia de apuração passa por ter um corpo para o trabalho de mesa é considerada de nascença, mas o
dotado de um fenótipo com características entendidas aprendizado para se tornar pajé exige a tutoria de alguém
como indígenas: cabelo escuro e liso, pele parda, olhos mais experiente, de modo a minimizar o risco de se en-
pequenos, rosto arredondado. No entanto, uma série de trar na corrente e não voltar mais.
atitudes pode ser marcadora e produtora de apuração, 9. A viagem de Rodrigo a Brasília, por exemplo, teve
tais como andar descalço ou sem camisa, ter domínio uma importante repercussão regional e também uma
das coisas do mato, usar adornos e pinturas corporais. consolidação dele enquanto chefe – e mais tarde caci-
4. Antigo também pode se referir às pessoas do passado que (SANTOS, 1997, p. 201).
em geral. Mas aqueles que podem ser classificados 10. Por duas vezes escutei reclamações dos Xakriabá a res-
como parentes, que podem ser efetivamente inclu- peito de uma pesquisadora que se recusava a comer
ídos na genealogia, são referidos como finados. A a comida deles. Em campo, parecia intrigante para

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alguns o fato de eu comer e gostar de favas e feijão CORREIA DA SILVA, Rogério. Circulando com os
andu, variedades locais que nem sempre são consumi- Meninos: Infância, participação e aprendizagem dos
das por pessoas “de fora”. Uma jovem, ao saber que meninos indígenas Xakriabá. Tese de Doutorado -
sua irmã cozinhava favas para a janta, da qual eu par- Faculdade de Educação, Universidade Federal de
tilharia, me perguntou por que eu gostava de “comi- Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.
da de pobre”. Por outro lado a comida “tradicional” é FERNANDES, Isabela N. O uso de plantas medicinais e
frequentemente referida como forte, devendo ser ofe- os processos rituais de cura entre os Xacriabá da aldeia
recida aos parentes durante visitas e nos circuitos de Caatinguinha, São João das Missões, Minas Gerais.
reciprocidade. Monografia de Graduação. Faculdade de Filosofia e
11. A transformação nesse modelo vem acarretando, entre Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
outras coisas, uma alegada falta de “controle” dos mais Gerais, Belo Horizonte, 2008.
velhos sobre os mais jovens – e alguns problemas daí GOW, Peter. O parentesco como consciência humana:
decorrentes. o caso dos piro. In: Mana. Estudos de Antropologia
12. Os Xakriabá são unânimes em afirmar que os rituais Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 39-65, 1997.
praticados em grutas e clareiras nas matas são muito MARIZ, Alceu C. et al. Relatório de viagem à área in-
antigos. Referidos a grupos familiares como os Gomes dígena Xakriabá. Manuscrito – Brasília: Fundação
de Oliveira e Seixas Ferro, esses rituais ganharam Nacional do Índio, 1982.
posteriormente o nome de Toré e foram renovados PARAÍSO, Maria H. B.. Identidade étnica dos Xakriabá.
pela atuação de Rodrigo e D. Anália. Manuscrito – Brasília: Fundação Nacional do Índio,
13. Muitas palavras são usadas para se referir aos xakriabá 1987
capazes de curar ou encantar: curador, feiticeiro, gente RAMOS, Alcida R.. O índio hiper-real. In: Revista
que encanta, gente sabida, pajé etc. O ato de fazer fei- Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 10. n. 28.
tiço ou encantar também tem muitos nomes: cruzar o p. 5-14, 1995.
ramo, fubá etc. SAHLINS, Marshall. Adeus aos tristes tropos: a etno-
14. Entre os Xakriabá, todos os primos dos pais são cha- grafia no contexto da moderna história mundial. In:
mados de “tios” e todos os irmãos e primos dos avós ______. (org). Cultura na Prática. Rio de Janeiro:
são tratados como “avô” ou “avó”. Editora da UFRJ, 2004, p. 503-534.
15.
Em 2007 recomendou-se a uma pesquisadora do SANTOS, Ana F. M. Xakriabá: identidade e história.
Grupo de Educação Indígena da UFMG que não pro- Relatório de Pesquisa. In: Série Antropologia, n. 167.
curasse D. Anália para uma entrevista. Quando em Brasília: Instituto de Ciências Sociais da Universidade
campo, também me disseram que não falaria comigo. de Brasília. 1994.
16. O Bicho Homem, por exemplo, é descrito como um ______. Do terreno dos caboclos do Sr. São João à terra
humanoide canibal coberto de pelos, que mora em indígena Xakriabá: as circunstâncias da formação de
cavernas ou dentro do oco de árvores e persegue os um povo. Um estudo sobre a formação social de fron-
humanos indiscriminadamente. teiras. Dissertação de Mestrado. Instituto de Ciências
17. Sentinela é o nome dado aos velórios. Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 1997.
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Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG | 255

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autor Rafael Barbi Costa e Santos


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade
Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG) e Pesquisador do Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 241-255, 2014


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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica


afroindígena

Julia F. Sauma
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p257-270 this end, an ethnographic reflection is presented


about the processes of identification and differen-
resumo Partindo de uma hesitação quanto à tiation found among the Filhos do Erepecuru –
simplicidade da antropologia afroindígena e sua riverine-extractivist-coletivos-quilombo-survi-
abertura a análises identitárias, este artigo busca vors from the Lower Amazon Mesoregion, Brazil.
explicitar o potencial comparativo desta proposta An analysis is offered about the native concept
antropológica. Para tanto, apresenta-se uma refle- of entrosamento (relational implication), throu-
xão etnográfica sobre os processos de identificação gh the Filhos’ myth of ancestral arrival on the
e diferenciação entre os Filhos do Erepecuru – ri- Erepecuru and their conceptions about the ins-
beirinhos-castanheiros-coletivos-remanescentes- tability of places and bodies, which points to
-quilombolas da mesorregião do Baixo Amazonas, the importance of relations based on alterity
município de Oriximiná. Baseado no mito de che- and control. This piece thus uses the points of
gada dos antepassados dos Filhos no rio Erepecuru connection and contrast between ethnographies
e sua conceptualização de lugares e corpos instáveis, about Amerindian and African matrix peoples to
componho uma análise sobre o conceito nativo de outline the importance of the mechanism of con-
entrosamentos, apontando para a importância das trol for the comparative method and, accordin-
relações que tem seu fundamental na alteridade e gly, for an Afroindigenous anthropology.
no controle. Por meio dos pontos de conexão e con- keywords Afroindigenous; Quilombo Survivors;
traste entre etnografias sobre povos indígenas e de Mythic landscape; Body; Comparative method; Pará.
matriz africana, este trabalho delineia a importância
do mecanismo de controle no método comparativo Inicio com uma confissão. Até agora tenho
e, portanto, para uma antropologia afroindígena. evitado uma consideração mais direta sobre o
palavras-chave Afroindígena; Remanescentes que seria uma antropologia afroindígena em
de Quilombo; Paisagem mítica; Corpo; Método minhas reflexões etnográficas, até mesmo nos
comparativo; Pará. escritos compostos para momentos de reflexão
sobre esse conceito1. Minha hesitação tem uma
Entrosar-se, an Afroindigenous ethnographic explicação bem simples: acho esse conceito
reflection about mutual implication extremamente difícil, apesar de aparentar sim-
plicidade. É possível descrever a dificuldade
abstract By questioning the apparent strai- inerente a essa questão, para mim, por meio
ghtforwardness of Afroindigenous anthropology de uma consideração dos processos de identi-
and acknowledging its vulnerability to identi- ficação e diferenciação que a noção afroindí-
tary analyses, this article seeks to make explicit gena traz consigo, e o presente trabalho esboça
the comparative potential of this approach. To uma reflexão sobre esse tema com base em

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258 | Julia F. Sauma

uma etnografia sobre os Filhos do Erepecuru2 No contexto de uma etnografia sobre os


(doravante Filhos). Contudo, antes disso é Filhos do Erepecuru – que trata de um cole-
importante afirmar que tomo essa dificuldade tivo de matriz africana com relações históricas
como índice da potência de uma antropologia e contemporâneas com diversos povos indíge-
afroindígena, construída a partir da compara- nas3 – o efeito do conceito é múltiplo. Porém,
ção entre etnografias sobre povos indígenas e em última instância, trata-se de uma questão
de matriz africana e, portanto, entre as forças bastante simples, a saber, do processo pelo qual
políticas, cosmológicas e, acima de tudo, exis- um grupo de “negros escravos fugidos” gerou
tenciais que encontramos nesses contextos. os Filhos do Erepecuru. Ou seja, a forma pela
Nesse sentido, e afirmando, como os Filhos, qual um povo de matriz africana estabeleceu
a importância da cautela frente a qualquer for- sua singularidade em uma paisagem indígena e
ça, espero que confessar a minha hesitação em as repercussões contemporâneas desse processo.
relação ao termo afroindígena possa funcionar
como meio de desacelerar a tentação de ver Entrosamentos que perduram
esse conceito como descrevendo uma simples
identificação entre dois povos, assim como já Quando retornei ao Rio Erepecuru em
foi feito por outros autores (ver, por exemplo, julho de 2014, após três anos de ausência,
GREENE, 2007). Porque mesmo quando Francisco Hugo de Souza, Filho do Erepecuru
pode vir a ser isso, ele não o é, o que fica claro da Comunidade do Jauari, me atualizava so-
na variedade de usos feitos desse conceito neste bre suas diversas viagens e atuações, ao lado
volume e, também, nos processos de identifi- de sua esposa Nilza Nirá, e na frente do mo-
cação e diferenciação etnográficas que funda- vimento4 dos Remanescentes de Quilombos
mentam essas abordagens, as quais nada têm a em Oriximiná, quando mencionou uma reu-
ver com processos que podem gerar “multicul- nião realizada na Cachoeira Porteira do Rio
turalismos afroindígenas” (GREENE, 2007). Trombetas em Setembro de 20115, entre os
O fato do termo estar aberto a esse tipo de uso Quilombolas da região e os povos indígenas
é problemático, até certo ponto, para um pro- Kaxuyana e Waiwai. Hugo descreveu a reunião
jeto antropológico que busca caminhos analí- com cuidado e falou das dificuldades pareci-
ticos bem diferentes. Porém, se por um lado, das enfrentadas por quilombolas e indígenas
é difícil controlar esse outro tipo de uso, a não na região. Ele também contou com entusiasmo
ser pelo constante esforço de evidenciar a di- como os quilombolas fizeram uma “farinhada”
ferença analítica, por outro, tomo inspiração – uma roda de carimbó – com os Kaxuyana
na atitude dos próprios Filhos em relação ao e Waiwai e também como, em determinado
uso de novos termos, como “remanescentes de momento, os homens indígenas levaram os ho-
quilombo,” para dizer que o que importa são as mens quilombolas para caçar e mataram uma
vidas que essas palavras mantêm em movimen- onça só com duas flechadas, e como os quilom-
to. Nesse sentido, creio que não seria o caso de bolas ficaram admirados com aquilo. Finalizou
congelar a antropologia que se promove neste sua descrição animado e com a seguinte frase:
volume e tomo, assim, o termo afroindígena “Julia, agora estamos vendo entrosamentos entre
como um entre os nomes dessa antropologia – quilombola e indígenas, uma coisa que não se
simétrica, pós-social (GOLDMAN, 2008) – e via há muito tempo, parece que já tem até ca-
como conceito que possui seus próprios efeitos. samento novo”.

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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena | 259

Inicio com essa anedota etnográfica recente e uma família recém-chegada ao rio. Mesmo em
por duas razões, primeiro porque aponta para casos de amizades, interações e casamentos entre
a novidade desses re-encontros (literalmente) Filhos e Filhas muito diferentes – como aqueles
afroindígenas para os Filhos. Enquanto os re- que gostam de movimentos e aqueles que não
manescentes do Rio Trombetas, parentes do gostam, aqueles que gostam de trabalhar na roça
povo do Erepecuru, frequentemente intera- e aqueles que preferem o trabalho na comunida-
gem com os povos indígenas que moram aci- de – ou que trazem algum conflito, fala-se em
ma da Cachoeira Porteira, os Filhos raramente entrosamento ou em sua falta.
têm essa oportunidade. A população indígena O que significa que aqui enfatizo esse termo
mais próxima à Área Quilombola Erepecuru é porque, entre os Filhos, o entrosamento é, por
Zo’e, gente isolada que, por vezes, aparece nos definição, uma relação que tem na alteridade o
castanhais da terra quilombola. Além disso, se- seu fundamento. E como do meu ponto de vis-
gundo os relatos dos Filhos, eles têm interações ta, estamos tratando de uma comparação entre
igualmente intermitentes com os Tiriyó, que povos e de etnografias que evidenciam uma pre-
moram bem acima dos Zo’e, e já apareceram ocupação crucial com a alteridade, acredito que
nas comunidades quilombolas a caminho da essa deve ser uma questão central para a antro-
cidade de Oriximiná. Durante os quase dois pologia afroindígena. Sendo assim, nessa pri-
anos que morei com os Filhos, entre fevereiro meira seção, busco refletir sobre a constituição
de 2009 e novembro de 2010, suas principais do mundo dos Filhos do Erepecuru, segundo
interações com os diversos povos indígenas da seu relato mítico de chegada no Erepecuru7, A
região ocorriam de forma indireta em festas na Lenda das Cobras Grandes, e de como ele funda
cidade. Ainda assim, sempre deixaram claro que uma cadeia de entrosamentos que estão continu-
sua história era marcada por relações com os amente se fazendo, afrouxando e estreitando,
Índios6. Seus relatos contam encontros antigos sem ruptura. O relato que segue é uma versão
nos castanhais, nos garimpos e em expedições desse mito, baseada principalmente na narrativa
nas fronteiras com a Guiana e o Suriname, des- de Joaquim Lima8 – Filho da Comunidade do
crevendo os povos indígenas como os primei- Espírito Santo e importante liderança durante a
ros donos daquela terra, como pessoas que têm demarcação quilombola no Erepecuru –, tam-
pajés muito poderosos em função de seu grande bém contendo, porém, elementos importantes
conhecimento da floresta, e que foram esses in- e recorrentes de outras versões.
dígenas que ensinaram seus antepassados a viver
no Erepecuru. Durante o tempo dos antigos, duas cobras gran-
A segunda razão para apresentar a fala de des e perigosas moravam nos mesmos lugares em
Hugo aqui diz respeito à forma pela qual descre- que os Filhos do Erepecuru e seus parentes ha-
ve esse re-encontro como um novo entrosamento, bitam ainda hoje. Uma delas morava no Lago
termo comum entre os Filhos para descrever re- Erepecu no Rio Trombetas e outra morava no
lações próximas entre diferentes indivíduos, fa- Rio Erepecuru. Eram irmãos, a cobra do Erepecu
mílias e povos. Por exemplo, eles frequentemente era macho e a cobra do Erepecuru era fêmea.
descreviam minha aproximação com uma ou ou- Elas eram gigantes e moravam nos poços fundos
tra família durante meu trabalho de campo como dos rios. A cobra do Erepecuru morava embaixo
um entrosamento, e do mesmo modo descreviam d’água, no lugar chamado Barracão de Pedra9,
a relação próxima entre uma família quilombola sempre coberta por um aningal10, que se estendia

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de uma margem à outra naquele ponto do rio. A Dizem que houve uma briga terrível quando as
cobra ficou tão grande que não conseguia mais ca- duas cobras grandes se encontraram no Lago
çar e dependia da ajuda de um par de jacarés que do Erepecu, que durou muitos dias e foi espe-
obtinham comida para ela e contavam para ela cialmente violenta por conta de serem irmãos.
tudo que acontecia no rio. Ninguém conseguia Durante a batalha formou uma tempestade mui-
atravessar o Barracão de Pedra sem a cobra saber to grande e as águas do lago ficaram escuras e
e qualquer ser vivo que se atrevia era devorado. sujas. No final da briga, a cobra do Erepecu ficou
cega e a cobra do Erepecuru sumiu. Há quem
Dizem que durante a primeira viagem dos mo- diga que ela morreu, e outros que suas costelas
cambeiros ao Erepecuru, eles foram surpreendi- formam o altar da igreja da Nossa Senhora de
dos pelos movimentos da cobra e desconfiados Nazaré, em Belém, e que ela deixou três ovos
do perigo tentaram se defender. Um deles foi embaixo d’água; outros ainda dizem que ela ain-
devorado pela cobra enquanto os outros aban- da está por aí. Um velho mocambeiro viu a briga
donaram o caminho do rio e decidiram conti- toda porque estava pescando no lago quando esta
nuar pela mata fechada. Abriram um caminho começou e não conseguiu sair do seu esconderijo
na floresta saindo do lugar chamado Socorro e a tempo. O velho esperou até a briga terminar
até a cabeceira do Piquiá, acima do Barracão e foi avisar seus parentes, que foram até o lago
de Pedra. Depois de deixar esse caminho, por para ver o que tinha acontecido, encontrando ali
onde arrastavam as suas canoas, os negros es- a cobra do Erepecu com o olho furado, boian-
cravos fugidos11 continuaram pelo rio até che- do n’água. Depois da briga, o caminho para as
gar na primeira cachoeira, que eles chamaram cachoeiras abriu e os mocambeiros fizeram suas
Pancada. casas acima da Cachoeira do Chuvisco. Ainda
havia ataques de caçadores de escravos, mas a
Dizem que a cobra do Erepecuru era especial- Mãe Cachoeira os protegia e dava vida para eles.
mente malvada. Seu irmão recebeu reclamações
sobre a sua atitude com as pessoas e mandou Dizem que um poderoso pajé também fez o
mensagens para ela por um tucuxi12, pedindo seu trabalho para a cobra do Erepecuru sair do
para ela parar com suas maldades e deixar as Barracão de Pedra: ele foi de canoa até o lugar
pessoas navegarem pelo rio. Sua irmã respondeu onde a cobra morava e ficou de pé na proa fu-
que ela era dona do seu rio e ele era dono do mando um cigarro de tauari. Ele puxou no cigarro
dele. A cobra do Erepecu continuou mandando e soprou a fumaça por cima da cobra enquanto
suas mensagens, insistindo com sua irmã para dizia as suas orações. Foi assim que o pajé também
deixar as pessoas passarem, mas ela ignorava ajudou os Filhos do Erepecuru, abrindo outros lu-
seus pedidos. Até que o irmão mandou uma gares nos lagos e nas florestas que estavam fecha-
mensagem pedindo a sua irmã em casamento. das pelo Encantado e que eram cheias de fartura.  
Quando a cobra do Erepecuru recebeu a pro-
posta, ficou furiosa e, finalmente decidiu sair Como todo mito, A Lenda das Cobras
do seu poço e enfrentar o seu irmão. Partiu do Grandes nos oferece informações em abundân-
Barracão de Pedra e foi em direção ao Lago do cia que podem nos levar em múltiplas dire-
Erepecu. No caminho, passou por cima da terra ções. No que segue, analisarei sua descrição da
firme e criou grandes furos com seu corpo, que paisagem primordial no Erepecuru e de como
os Filhos chamam de Terra Preta. essa paisagem foi transformada após a chegada

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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena | 261

de “negros escravos fugidos.” Desse modo, relação entre donos sobrepostos e entrosados.
detenho-me na forma em que esse relato nos Denomino essa chegada como “transgressiva”
ajuda a entender a noção de entrosamento. Essa por uma série de razões. Primeiro porque essas
análise possibilita uma reflexão sobre como a pessoas de fora chegaram em um território do-
concepção relacional de entrosamento se re- minado e fechado, porém não tinham opção a
plica nas formulações corporais do Filhos, na não ser ultrapassar qualquer barreira e buscar
seção seguinte, o que nos trará diretamente a um lugar seguro. Essa chegada também é trans-
uma consideração do efeito da comparação en- gressiva porque causa um conflito cosmogônico
tre campos etnográficos indígenas e de matriz entre irmãos, o pior tipo de conflito imaginável
africana, na conclusão do texto. entre os Filhos. A cobra do Erepecu questiona o
O primeiro elemento mítico a destacar aqui comportamento da sua irmã em relação a essas
é a descrição do Erepecuru como uma paisagem pessoas de fora e, em seguida, provoca-a seria-
fechada para os antepassados dos Filhos, uma mente (dada sua relação consanguínea próxima)
condição mantida, por um lado, por uma dona com a proposta de casamento, a única maneira
dominante, violenta e voraz em forma de cobra que encontra de chamar a atenção de sua irmã
grande, e por outro, por uma força onipotente – e tirá-la do seu domínio. O laço consanguíneo
o Encantado – que, como veremos, é protetora próximo entre os dois também faz com que a sua
e criadora do Erepecuru, e pode ser igualmente briga seja especialmente terrível; causando uma
voraz. O mito descreve o fim do domínio das co- tempestade, transformando o lago e resultando
bras grandes, que ocorre por conta dos compor- em uma transformação cosmogônica impor-
tamentos gananciosos da cobra do Erepecuru, tante: o desaparecimento das cobras grandes,
exemplificados pelo fato que a cobra ficou tão dos donos dominantes13. Essa transformação é
grande que não conseguia nem caçar por ela tão profunda que em uma versão singular desse
mesma e que ela não permitia a passagem livre mito, relatada pelo finado Salustiano Melo da
no rio. Esse comportamento egoísta é posto em Comunidade do Varre Vento, esse evento fez o
relevo, sobretudo pelo fato de que seu próprio mundo girar no sentido oposto.
irmão lhe pede que aja de forma diferente em A presença dos negros escravos fugidos tam-
relação aos mocambeiros, mas a irmã recusa, de- bém é transgressiva porque a Mãe Cachoeira,
vora um dos viajantes e fala para seu irmão não dona invisível da Cachoeira do Chuvisco, os
interferir. Assim, com esses irmãos míticos, pa- inclui na transformação do regime de proprie-
rentes de sangue muito diferentes entre si, identi- dade no Erepecuru por meio de uma relação
ficamos o primeiro de uma série de exemplos da própria ao vínculo entre compadres – relacio-
oposição entre aqueles que estão abertos às rela- namento paradigmático entre os Filhos para
ções com os outros e aqueles que as bloqueiam. relações marcadas pela diferença, como entre
O próximo elemento a ressaltar aqui é a qua- concunhados, fundado na proteção, e orienta-
lidade transgressiva da chegada no Erepecuru do para o futuro com a produção e proteção de
dos antepassados dos Filhos, os negros escravos uma nova geração14. A Mãe Cachoeira esten-
fugidos. Esse evento resulta no desbloqueio des- de sua proteção para um grupo de visíveis que
sa paisagem para essas e outras pessoas de fora e, ainda não são nem donos nem parentes, per-
consequentemente, contribui para a instituição mitindo que façam suas casas acima da cacho-
de outro regime de propriedade nessa paisagem, eira, tornando-se, assim, donos e parentes que
não sendo mais pelo domínio único, mas pela terão Filhos naquele rio. É importante notar

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262 | Julia F. Sauma

aqui que o termo Filho do Erepecuru se refere Para estabelecer uma conexão direta com o
somente àquele que nasce no rio e, portanto, tema da evitação de conflitos, o último elemen-
que os Filhos não se referem aos seus antepas- to mítico que aqui me interessa é o pajé, que
sados com esse termo, mas somente como os ajuda a retirar a cobra grande do Erepecuru.
antigos, negros escravos fugidos ou mocambeiros. Em seus relatos, os Filhos utilizam o termo
Portanto, podemos dizer que a transgressivi- sacaca para os seus xamãs, reservando o termo
dade da chegada dos seus antepassados está pajé para falar somente de xamãs indígenas.
tanto nos entrosamentos que eles constroem Dessa forma, no mito a presença do xamã in-
com donos invisíveis da paisagem, quanto na dica a importante aliança feita pelos antepassa-
diferença constitutiva que se estabelece entre os dos dos Filhos não somente com os primeiros
Filhos e os seus antepassados. donos invisíveis do Erepecuru, como também
Outro elemento mítico de interesse aqui com os primeiros donos visíveis dessa paisagem.
é que apesar do desaparecimento das cobras Esse índice é reforçado pelo fato que, no mito,
grandes e do surgimento dos Filhos como o pajé utiliza um cigarro de tauari no seu tra-
donos, essa paisagem de chegada permanece balho, instrumento que o sacaca quilombola
como substrato do Erepecuru, quer dizer, os nunca utilizou, segundo os Filhos. Portanto,
Filhos continuam morando no mundo dos in- se eles estão vendo novos entrosamentos entre
visíveis. Por serem os primeiros donos, os donos quilombolas e indígenas hoje, essa relação tam-
invisíveis ainda têm influência moral sobre a bém tem uma base de antigos entrosamentos:
vida dos Filhos. Por um lado, o retorno da além do seu papel decisivo nas fugas dos negros
cobra grande do Erepecuru e/ou os seus fi- escravos fugidos (ver FUNES, 1995; RUIZ-
lhos e o retorno desse domínio violento e o PEINADO, 2002), os Filhos costumam dizer
fechamento da paisagem é uma possibilidade que os povos indígenas da região os ensinaram a
constante, latente durante os momentos de morar na floresta e, ademais, segundo esse mito,
conflito entre parentes, quando as cobras são os ensinamentos envolveram a atenção a ques-
avistadas nos lugares fundos do rio. Por outro tões e práticas de ordem político-cosmológica.
lado, os Filhos ainda estão entrosados com os No mito, o fato de que esse entrosamento
donos invisíveis que povoam sua paisagem, histórico aparece pelo xamanismo é significati-
participando de interações cotidianas com os vo porque até hoje o xamã dos Filhos, o sacaca,
mesmos que envolvem prescrições de modera- é mediador entre os donos visíveis e invisíveis
ção e, portanto, de proteção. Aqui, a paisagem dessa paisagem: o xamanismo cura doenças por
primordial e os primeiros donos não podem meio do conhecimento derivado dos entrosa-
ser removidos e, portanto, paisagens e donos mentos do sacaca com visíveis e invisíveis, no
anteriores e atuais se sobrepõem; o conflito passado e no presente, em uma paisagem em
deve ser evitado a qualquer custo para evitar sobreposição. Desse modo, a paisagem de che-
o regresso cosmogônico; e, portanto, relações gada dos Filhos transformou pessoas de fora
de proteção devem ser respeitadas e estendidas em donos e criou um regime de propriedade
às novas gerações e às pessoas de fora, ou seja, sobreposto em uma paisagem em sobreposição,
a quem traz a diferença consigo. Podemos di- e o pajé os ensinou a negociar esses entrosa-
zer que o entrosamento aparece como relação mentos. Com um dom que vem de relações de
paradigmática dessa paisagem com múltiplas proteção com donos invisíveis, o Encantado
camadas. e com Deus, podemos dizer que atualmente

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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena | 263

o sacaca dos Filhos seria a figura exemplar do uma descrição dessa instabilidade corporal –
entrosamento – sendo ele resultado do entro- dos corpos que abrem e fecham assim como os
samento histórico entre mocambeiros, povos lugares no Erepecuru – para considerar como os
ameríndios e a igreja católica, e especialista no Filhos continuam se entrosando com os donos
controle das relações que têm na diferença o invisíveis do Erepecuru. Esse esboço permitirá
seu fundamento, e que são fundamentais para uma comparação etnográfica afroindígena, bus-
a vida no Erepecuru15. cando afirmar o conceito de “entrosamento” – a
O mito das cobras grandes e os entrosamen- relação pela alteridade – como um dos pontos
tos duradouros que este relata, nos deixa com de partida de uma antropologia afroindígena.
a imagem de uma paisagem sobreposta e instá- Os Filhos do Erepecuru não têm um rito de
vel, movente e sempre precisando de controles passagem para marcar a transição entre a infân-
e de uma certa manutenção. Veremos, a seguir, cia e a vida adulta. Eles identificam essa passa-
os sentidos dessa instabilidade entre os Filhos gem com a expressão – comum entre diversos
do Erepecuru, a fim de que, na conclusão, pos- povos – desde que me entendi, e explicam que a
samos passar para uma outra dimensão do que infância termina quando a pessoa começa a ter
entendo como uma antropologia afroindígena, ciência de si. Antes desse momento, as crianças
criando, poderíamos dizer, um outro entrosa- são muito vulneráveis porque têm corpos aber-
mento, que é a própria comparação etnográ- tos, condição determinada por seu sangue fraco e
fica. Para isso, passaremos da análise de um a falta de ciência que elas têm de si e da diferença
relato mítico para a descrição dos entrosamen- entre elas mesmas e os outros. Dessa forma, as
tos contemporâneos entre os Filhos e os donos crianças são abertas para tudo que passa por elas,
invisíveis da sua paisagem. Esse deslocamento de bom e ruim e são especialmente propensas a
permitirá uma reflexão sobre como a constante serem mexidas por invisíveis e bichos, e a besteira
negociação dessa relação instável se assemelha e e alegria, tristeza, medo, maldade, exaustão, rai-
difere da instabilidade crucial identificada em va, inveja e ciúme dos outros; ou seja, de múlti-
diversas etnografias sobre povos indígenas – a plas formas, a criança é aberta à influência dos
saber, o perspectivismo ameríndio. outros, seja essa influência intencional ou não.
Como consequência de seus corpos abertos, as
Entre lugares e corpos crianças frequentemente sofrem de quebranto no
Erepecuru, doença que ocorre quando um adulto
O mito das cobras grandes introduz a instabi- recentemente chegado de uma longa viagem agra-
lidade dos lugares e das relações no Erepecuru – da uma criança e passa para ela seu cansaço, triste-
lugares que abrem e fecham por entrosamen- za ou saudades. Segundo meus interlocutores no
tos entre visíveis e invisíveis que se constituem, Erepecuru, como a criança não tem ciência nem
mas requerem controles. Contudo, a descrição de si nem do outro, ela não consegue se proteger
dos entrosamentos contemporâneos dos Filhos dessas forças-sentimentos. A criança não perce-
com os donos invisíveis da sua paisagem – ou be o perigo desse agrado e, assim, não consegue
seja, a descrição de como os entrosamentos controlar a forma em que ela interage com quem
contidos nesse relato mítico perduram na vida pode passar para ela algo de ruim. Quebranto é
atual dos Filhos – não seria compreensível sem uma doença muito perigosa que normalmente se
a consideração de como os corpos também são manifesta com diarreia, vômito, o corpo mole, fe-
instáveis nesse contexto. Nesta seção apresento bre, e que desloca a mãe do corpo da criança do seu

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264 | Julia F. Sauma

lugar no umbigo. Se não for tratada por alguém amplamente afetadas por elas – somente quem
que sabe do assunto, nesse caso as benzedoras que tem um corpo fechado está seguro em um lu-
utilizam uma reza específica para curá-la, é uma gar fechado e quem tem corpo aberto deve ficar
doença que pode até matar a criança. em lugares abertos e limpos.
Ora, as crianças não são as únicas que têm Contudo, a maioria das mulheres não tem
corpos abertos. Muitas das mulheres com corpos abertos por falta de ciência ou sangue
quem convivi nas diversas comunidades do fraco, como no caso das crianças. O corpo fe-
Erepecuru nunca entraram na floresta que as minino fica aberto durante a menstruação, por
rodeiam, a não ser por caminhos limpos e cur- causa da perda de sangue, e, nesse momento, as
tos que as levam até as suas roças, por conta dos Filhas precisam seguir certos cuidados alimen-
seus corpos abertos. Mesmo quando estão entre tares, de interação e movimento, algo que tam-
os homens nos castanhais que ficam acima das bém ocorre com homens feridos ou adoecidos.
comunidades, as mulheres normalmente per- Algumas mulheres e, menos frequentemente,
manecem nos lugares limpos, onde as famílias homens, também têm problemas mais recor-
fazem seus abrigos temporários. As Filhas do rentes, pois seus corpos não fecharam comple-
Erepecuru preferem os lugares abertos e lim- tamente enquanto cresceram. Esse era o caso de
pos, que são os lugares sem mato, sem donos uma jovem mulher com quem convivi durante
invisíveis e sem forças desconhecidas ou muito grande parte do meu trabalho de campo. Em
intensas. Elas raramente se aventuram até os seu caso, ter um corpo aberto significa que ela
lugares fechados, que incluem certos pontos de tende a levar sustos e desmaiar. Ela também per-
floresta densa, as cachoeiras, certos igarapés. cebe a presença de espíritos, bichos e forças peri-
Essa reticência é devida ao fato de que muitas gosas, mas não consegue controlar sua interação
mulheres também têm corpos abertos, muito com os mesmos, eles tomam conta dela. Em ou-
mais frequentemente que os homens. tro caso, um jovem com corpo aberto tinha a
Como no caso das crianças que ainda não tendência de se embebedar demais e a desmaiar
se entenderam, o corpo aberto nas Filhas as também – a tendência a se entregar à bebida é
deixam mais vulneráveis às influências exter- frequentemente considerada pelos Filhos como
nas. Os lugares fechados contêm forças associa- índice de um corpo aberto entre os homens.
das ao Encantado – força onipotente criadora Em todos os casos que acompanhei de adultos
e protetora do Erepecuru – e a donos e mães nessas condições, o maior problema não era a
invisíveis ou às relações que uma vez se forma- falta de ciência, mas uma certa sensibilidade
ram em certo lugar, e essas forças podem entrar maior e a perda de juízo. Corpos abertos em
no corpo, transformando-o e/ou adoecendo-o. jovens adultos também podem ser consertados
São forças especialmente perigosas quando essa com uma reza, mas não é uma cura garantida:
pessoa, ou alguém que a acompanha, quebra precisam de cuidados constantes, que garantam
alguma regra associada ao lugar – tal como fa- seu fechamento, da mesma forma que lugares
zer barulho, tirar pedras do lugar ou levar outro abertos precisam de limpezas constantes para ti-
elemento que pertence àquele lugar e até beber rar o mato, os bichos e as forças que os fecham.
água ali sem pedir permissão à mãe, como a Por meio dos corpos instáveis dos Filhos
Mãe Cachoeira que vimos no mito das cobras do Erepecuru, percebemos, portanto, os en-
grandes. Sendo as mulheres e as crianças as mais trosamentos cotidianos que esse povo ainda
suscetíveis a essas forças, suas rotinas diárias são tem com os primeiros donos invisíveis dessa

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paisagem, ou seja, podemos atestar como os são quase-mortos que mantêm sua vida pelo
entrosamentos originários perduram e também desejo e veem os Filhos como afins potenciais.
como requerem controles, que incluem o tra- Os Filhos chamam os espíritos ou invisíveis
balho de benzedoras e do sacaca, mas também do sacaca de seu pessoal – termo que também
do juízo de cada um. Entretanto, também po- usam para designar os parentes dos outros –, pois
demos utilizar essa descrição para pensar nos ainda são aqueles com quem relações controla-
entrosamentos atuais entre povos quilombolas das podem ser estabelecidas. O estado instável do
e indígenas na Amazônia e, assim, deslocar nos- corpo visível aponta para trocas controladas ou
so olhar para uma reflexão antropológica mais descontroladas com seres e forças invisíveis que
explicitamente afroindígena, pois a conceptua- sempre buscam conexões com visíveis. Na visão
lização de corpos que abrem e fecham também dos Filhos, os invisíveis podem não ser humanos,
aparece, muitas vezes com outros termos, em podem estar enganados sobre isso, mas ainda são
etnografias sobre povos indígenas16. Esses tra- donos, tornando-os em uma fonte importante de
balhos apontam para fronteiras instáveis entre proteção, por meio de suas relações com o saca-
domínios e perspectivas humanas e não huma- ca. Dessa forma, nas relações entre visíveis e in-
nas, em contextos onde corpos humanos e pes- visíveis o corpo instável pode ser compreendido
soas (e, consequentemente, parentes) estão em como lócus potencial de continuidades contro-
um constante processo de fabricação por meio ladas ou de descontinuidades absolutas: o corpo
de práticas cotidianas e rituais. Nesses contex- aberto é corpo, ciência e juízo que podem ser per-
tos o corpo também aparece como lócus de didos completamente na relação com invisíveis, e
identidade e alteridade, elemento etnográfico não corpo e perspectiva que podem ser trocados
que contribuiu de forma decisiva para a consti- por outros corpos e perspectivas. Portanto, nesse
tuição da teoria do perspectivismo ameríndio. contexto, o problema relacional dos entrosamen-
Concepções de perspectiva certamente ope- tos se sobrepõe e faz diferir o problema relacional
ram entre os Filhos do Erepecuru, especial- de uma socialidade perspectivista: como manter
mente em suas descrições sobre a relação entre relações seguras e pacíficas com donos que não
donos visíveis e invisíveis, na forma em que têm corpos, mas que ainda assim oferecem rela-
esses espíritos do fundo se enxergam como hu- ções de proteção importantes.
manos. Como Félix (2011, p. 69) descreve, os É interessante notar, aqui, que a qualidade
encantes onde esses invisíveis habitam são “ecos” transgressiva dos entrosamentos aparece em
dos lugares dos Filhos, onde os invisíveis têm diversas descrições etnográficas sobre coleti-
casas, comércios e até jogam futebol. Contudo, vidades e religiões de matriz africana, em que
entre os Filhos, o fato de que donos invisíveis a fabricação do corpo também é uma questão
se veem como humanos é problemático justa- muito importante17. Como não tenho a pos-
mente em função do fato de que são invisíveis sibilidade de oferecer uma reflexão realmente
e de que, portanto, não possuem corpos: são abrangente sobre essa relação etnográfica neste
pessoas que tiveram corpos, foram capturadas momento, atenho-me à descrição sobre o lugar
pelo Encantado e os perderam, mas continuam do sacrifício na iniciação em casas de religião
desejando a relação com pessoas que têm corpos no sul do Brasil, contida na reflexão de Barbosa
– os visíveis – assim como o Encantado sempre Neto (2012) sobre esse tema e na descrição de
deseja capturar mais pessoas. De certa forma, Anjos (2001) sobre como esse processo deixa o
podemos dizer que os invisíveis, ou encantados, corpo aberto e vulnerável e exige:

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266 | Julia F. Sauma

[...] uma série de cuidados, muitos dos quais, deslocamento de foco em relação aos volumes
acrescento eu, se destinam a manter os deuses anteriores daquilo que chama de um eixo
próximos e os mortos distantes. Trata-se de uma mitológico espacial para o eixo temporal, da
“anti-vida” – supondo-se que este termo seja real- mediação entre os planos terrestre e celestial
mente adequado, do que, confesso, tenho dúvi- à separação necessária entre o dia e a noite, e,
das – que visa, no entanto, a criar um inverso da assim, da passagem binária entre a continui-
morte. Alimentar os deuses na própria cabeça é, dade e a descontinuidade para a cadência ana-
sobretudo, não morrer, ainda que sempre existam lógica entre o cosmos e os corpos humanos, e
riscos… (BARBOSA NETO, 2012, p. 293).   especialmente os corpos humanos femininos
e xamânicos (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 94-
Entre os Filhos, esse estado controlado de 95). Em seu estudo sobre a ética e a proféti-
anti-vida é especialmente adequado para a des- ca da mitologia e das práticas cosmopolíticas
crição do corpo do sacaca: seu corpo é fechado, ameríndia, Sztutman (2009) argumenta, es-
protegido por seu juízo e sua ciência de tudo e, pecificamente em relação às práticas xamâ-
ao mesmo tempo, aberto às relações com espí- nicas, que as Mitológicas demonstram uma
ritos dos fundos, por meio de cordões invisíveis preocupação com a distância e o excesso. No
que saem de suas costas. Essa abertura deixa-o primeiro caso,
mais vulnerável, exigindo certos cuidados, mas
também permite a comunicação com seus espí- [...] (p)ara que céu e terra permaneçam sufi-
ritos. Entretanto, neste caso, talvez o termo mais cientemente separados, mas sem perder de vista
adequado fosse “anti-morte” (tomando-o como sua conexão, faz-se necessária a mediação efe-
uma espécie de antídoto), uma vez que essa so- tuada pelo fogo doméstico, pela arte culinária.
breposição de corpos fechados abertos está dire- O excesso de mediação, ou melhor, a conjun-
cionada à manutenção de um fluxo relacional ção entre esses patamares provocaria um mun-
que desacelera a morte, e, assim, garante a vida, do queimado já da sua ausência resultaria um
ao mesmo tempo em que a coloca em perigo. mundo podre, estado de incomunicabilidade
As relações benéficas entre visíveis e invisíveis no (SZTUTMAN, 2009, p. 298).  
Erepecuru nunca serão relações de pura identifi-
cação, elas só podem ser entrosamentos porque E, no segundo,
sempre precisarão do controle para serem man-
tidas. Sem o controle, são relações que levam à (t)odos os elementos devem dispor-se em uma
morte pela força que carregam e, portanto, são boa distância, ou seja, não podem permanecer
relações que mantêm a alteridade enquanto uma nem tão próximos, nem tão distantes, e isso en-
forma de viver e se relacionar e que, assim, se via diretamente à problemática matrimonial e
preocupam em manter uma “boa distância”. ao tema do casamento sensato” (SZTUTMAN,
2009, p. 298).
Uma ecologia de entrosamentos
Sztutman descreve igualmente como, no
O controle relacional ou “a boa dis- caso ameríndio, os mitos revelam que maus
tância” é um tema central na reflexão de modos (e distâncias) podem produzir catástro-
Lévi-Strauss (2006) no terceiro volume das fes cósmicas: um retorno ao tempo mítico pri-
Mitológicas. Nesse volume, o autor oferece um mordial da continuidade entre as espécies que

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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena | 267

seria causada por figuras excessivas – como as manter entrosamentos em um cosmos que era
mulheres ávidas, amantes grudentas, homens completamente fechado e que pode fechar no-
com pênis imensos – que põem em risco “a or- vamente. Portanto, a cosmologia política dos
dem das coisas por conta de uniões improváveis Filhos se preocupa em abrir a paisagem com
entre coisas muito diversas” (SZTUTMAN, moderação e mantê-la aberta por meio dos
2009, p. 299). Isso explicaria a necessidade de relacionamentos com seus primeiros donos, e
disciplinar a desordem latente ou a entropia assim proponho que também podemos enten-
contida no cosmos e nos corpos humanos, es- dê-la como uma ecologia dos entrosamentos:
pecialmente nos corpos femininos e xamânicos, uma forma de se relacionar com a paisagem
que persistem em reencenar as transformações e os seus diversos elementos-donos, a partir
que ocorreram nos mitos e que continuam a da diferença. Essencialmente, esses entrosa-
ocorrer nos dias de hoje (SZTUTMAN, 2009, mentos podem ser entendidos como o dese-
p. 302). jo permanente pela coletivização controlada,
Descrevemos aqui uma paisagem em que em vários níveis, em uma paisagem onde o
o controle das relações excessivas também está Encantado está sempre tentando capturar as
relacionado ao perigo contínuo das catástrofes pessoas e onde os conflitos entre parentes têm
cósmicas. Afinal, o potencial retorno da cobra consequências cosmogônicas. O sacaca atua
grande do Erepecuru depende dos conflitos en- para mediar essa luta política cósmica, manter
tre parentes, e o sacaca é o único entre eles que a paisagem destrancada e as cobras grandes no
pode prever e prevenir essa catástrofe por meio fundo; quer dizer, nesse contexto, a continui-
de seus entrosamentos com os donos invisíveis dade excessiva não causa somente a desordem,
daquela terra. Vemos, assim, como a literatu- ela causa a morte.
ra sobre o xamanismo ameríndio pode ser re- Nesse sentido, entre os Filhos, o xamanis-
levante nessa reflexão sobre os entrosamentos mo como ato de diplomacia cósmica lembra
dos Filhos. Contudo, na análise do mito das o xamanismo ameríndio – acima de tudo no
cobras grandes também vimos que a paisagem que diz respeito à multiplicidade das pessoas e
primordial dos Filhos não descreve a potencial dos donos que são visíveis e invisíveis, forças e
continuidade excessiva entre as coisas, como seres –, mas o problema xamânico é bem dife-
no caso ameríndio, e sim a possibilidade da rente. Essa diferença fica especialmente clara na
descontinuidade radical: um tempo prévio de consideração do problema perspectivista nesse
ruptura absoluta e violência, quando um grupo contexto, proposta anteriormente, mas acima
de negros escravos fugidos chegou em uma pai- de tudo é uma diferença que deve ser enten-
sagem fechada dominada por um bicho violen- dida como possibilitando um entrosamento
to. A continuidade é algo que os antepassados continuo afroindígena, tanto no nível da com-
produzem com seus entrosamentos em uma paração etnográfica quanto nos relacionamen-
paisagem fechada, transformando-a em uma tos que os Filhos formam e desfazem com os
paisagem de chegada, onde os mocambeiros povos indígenas da região.
podem gerar os Filhos do Erepecuru.
Aqui, a boa distância não aparece como Notas
meio de controlar a desordem cosmológi-
ca causada pela continuidade excessiva entre 1. Por exemplo, para o GT “Novos modelos compara-
coisas muito diferentes, mas como meio de tivos: investigações sobre coletivos afroindígenas”,

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268 | Julia F. Sauma

organizado por Marcio Goldman e Beatriz Perrone- 8. Joaquim publicou o mito durante o processo de de-
Moisés na ANPOCS de 2011, e no trabalho apresen- marcação, assim como descrito por Andrade (1995) e
tado na USP, em uma mesa com Marcio Goldman e Ruiz-Peinado (2002). Versões do mito também apare-
Marina Vanzolini, em maio de 2014. cem em Castro e Acevedo (1991), Felix (2006; 2011),
2. Remanescentes de Quilombos do Município de O’Dwyer (2002) e Teixeira (2006), entre outros. A
Oriximiná, Pará. A Área Quilombola do Erepecuru, cobra grande é motivo mítico comum na mitologia
que compreende comunidades dos Rios Acapú, ameríndia; ver especialmente os mitos de origem
Cuminá e Erepecuru, foi titulada pelo INCRA e no noroeste da Amazônia (HUGH-JONES, 1979)
ITERPA em 1997. e nas Guianas (FRIKEL, 1970; GALLOIS, 1988;
3. Principalmente Zo’e, Kaxuyana, Waiwai e Tiriyó, ver GIRARDI, 2011).
Girardi (2011). 9. Grande formação rochosa na beira do Erepecuru, logo
4. Utilizo itálicos ao longo desse trabalho para marcar os acima da Comunidade do Espírito Santo, que ainda
conceitos dos Filhos na primeira instância e/ou quando tem donos invisíveis. Uma praia aparece em baixo do
o conceito requere ênfase. No caso do conceito de movi- barracão durante o verão, onde os mais velhos faziam
mento, vale notar que os Filhos o utilizam para descrever festas e brincadeiras.
qualquer reunião política e festa (inclusive festas para 10. Montrichardia linifera – vegetação comum na região
santos padroeiros), portanto, esse é um termo bastan- amazônica, importante para a formação de ilhas flu-
te complexo que não deve ser entendido simplesmente viais, essas plantas cobrem a superfície das cabeceiras,
como “movimento político” ou “movimento social”. principalmente, desacelerando as canoas e os barcos
5. Organizada em parceira com a Comissão Pró-Índio de que sobem e descem.
São Paulo e o Iepé (Instituto de Pesquisa e Formação 11. Negros escravos fugidos é a expressão utilizada pelos
Indígena) para discutir a demarcação de terras qui- Filhos, em várias narrativas, para falar dos mocam-
lombolas e indígenas na região da Cachoeira Porteira, beiros, e aparece na versão do mito de Joaquim Lima
Rio Trombetas, entre outros assuntos. (1992). Ver também Ruiz-Peinado (2002).
6. Ver Ruiz-Peinado (2002). 12. Golfinho cinza de pequeno porte, que é identificado
7. A ocupação por mocambeiros – os antepassados como mensageiro entre seres míticos e às vezes como guias
dos Filhos – na área localizada acima da Cachoeira para pessoas que se perdem nos rios. Os Filhos identifi-
do Chuvisco no Rio Erepecuru provavelmente co- cam o tucuxi como um ser bom, comparando-o com o
meçou no final do século XVIII. Eles chegaram em boto, que é considerado como um ser mau ou ruim.
pequenos grupos fugindo das plantações de cacau e 13. É interessante notar, aqui, as semelhanças com a aná-
fazendas de gado da região, assim como de outros lise de Lévi-Strauss (2006 [1968]) sobre o incesto
mocambos destruídos por ataques das forças poli- disjuntivo entre os corpos celestiais Sol e Lua na mi-
ciais de Santarém no século XIX. Ver Funes (1995), tologia Ameríndia, que causa grandes transformações
Andrade (1995) e Ruiz-Peinado (2002). Segundo cosmológicas.
os Filhos, foi somente após a abolição da escravidão 14. Reflexões interessantes sobre a relação de compadrio
que seus antigos começaram a descer o rio para abrir na Amazônia estão em Gow (1991) – especialmente
seus lugares, deixando a proteção das cachoeiras para em relação à noção que são relações orientadas para
trás. Atualmente todas as suas comunidades estão lo- o futuro – e em Losonczy (1997), em um contexto
calizadas abaixo das cachoeiras e a área acima delas afroindígena na Colômbia.
continua sendo utilizada pelos Filhos para diversas 15. Como os colegas do PPGAS-UFSCAR me lembraram
atividades extrativistas, e principalmente para a co- no debate que seguiu a apresentação de uma versão an-
lheita da castanha-do-Pará. terior deste texto, a triangulação afroindígena-católica

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Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena | 269

é uma questão interessante que precisa ser pensada de BELAUNDE, L. El recuerdo de luna: género, sangre y me-
forma cuidadosa. Infelizmente, neste trabalho, não tive moria entre los pueblos amazónicos. Universidad Mayor
como explorar essa triangulação, porém, no quarto ca- Nacional de San Marcos, 2005.
pítulo da minha tese de doutorado apresento uma des- BISMARCK, Pilar; ROJAS, Agustina. Koshi Shinanya
crição etnográfica que parte dessa reflexão, sem recorrer Ainbo. El testimonio de una mujer shipibo. Lima:
a esse termo e, assim, sem deixar que o termo “cato- Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales,
licismo” sobrecodifique toda a descrição. Como tentei 2005.
explicar naquele debate, acredito que a necessidade CASTRO, Edna; ACEVEDO, Rosa. Negros do Trombetas:
conceitual de explicitar uma antropologia afroindíge- Guardiães de matas e rios. Belém, Cejup/ UFPA-
na, e não necessariamente a triangulação afroindígena- NAEA, 1991 (1ed).
-católica, se deve a questões comparativas mais urgentes ESPIRITO-SANTO, Diana. Developing the dead: The
para a antropologia nesse momento, o que não quer nature of Knowledge. Tese (Doutorado) - University
dizer que essa triangulação deve ser ignorada etnogra- College London, 2009.
ficamente. Nesse sentido, uma questão a considerar FELIX, Camila C. Todo lugar tem uma mãe. Monografia
futuramente seria como uma cosmologia política de (Graduação) - Universidade Federal Fluminense,
entrosamentos se conecta com a devoção aos santos cató- 2006.
licos no Erepecuru, tema esse que comecei a investigar ______. Sentidos da Ação: Proteção e Perigo numa
durante a escrita da tese. Comunidade Remanescente de Quilombo do Rio
16. Ver, por exemplo, Belaunde (2005), Bismarck e Rojas Trombetas. Dissertação (Mestrado) - Universidade
(2005), Macedo (2010), Mccallum (1999), Vilaça Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
(2005) e Viveiros de Castro (1986). FLAKSMAN, C. Narrativas, Relações e Emaranhados: Os
17. Ver, por exemplo, Anjos (2001), Bastide (1978), Enredos do Candomble no Terreiro do Gantois, Salvador,
Barbosa Neto (2012), Espirito-Santo (2009), Bahia. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do
Flaksman (2014), Goldman (2012), Holbraad (2007, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
2012), Varela (2009), Plastino (2013) E Siqueira FRIKEL, Protásio. Os Kaxuyana. Notas etno-históricas.
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270 | Julia F. Sauma

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autora Julia F. Sauma


Doutora em Antropologia pela University College of London (UCL) e
Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

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271

Daquilo que não se sabe bem o que é: a


indeterminação como poder nos mundos
afroindígenas1

Marina Vanzolini
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p271-285 and Afro-Brazilian religions is a conception of


knowledge, rather than conceptions of the world.
resumo Tendo como ponto de partida uma The aim is not to affirm a common nature for
comparação entre modos de fazer e pensar a feitiça- these collectivities, but to observe how  it seems
ria num contexto ameríndio e em algumas casas de possible to speak of an afroindigenous thought  in
religião de matriz africana no Brasil, o artigo propõe contrast to our own thought regime - as something
uma conexão entre o que, para a economia do argu- that canonlybe common in opposition to a certain
mento aqui apresentado, defini como “os mundos aspect of “us”.
do axé” e “os mundos perspectivistas” ameríndios. A keywords Amerindian ethnology; Amerindian
hipótese desenvolvida é que, mais do que uma con- perspectivism; African-matrix religions in Brazil;
cepção do mundo, o que pode ser comparável nos Axé; Comparison.
universos ameríndios e nas religiões afro-brasileiras
é uma concepção do conhecimento. Com isso não No hay nada que entender. El entendimento es
se pretende afirmar uma natureza comum desses co- sólo un assunto pequeño, pequeñísimo.
letivos, mas observar como, em contraste com nosso
regime de pensamento, parece ser possível falarmos Carlos Castaneda, Una Realidad Aparte 
de um pensamento afroindígena – algo que só seria
comum, pois, em oposição a certo aspecto de “nós”. Este trabalho é uma tentativa de organizar
palavras-chave Etnologia americanista; algumas ideias que esbocei nos últimos anos,
Perspectivismo ameríndio; Religiões de matriz afri- ao desenvolver uma pesquisa comparativa en-
cana no Brasil; Axé; Comparação. tre povos ameríndios e coletivos ligados às re-
ligiões de matriz africana no Brasil, pesquisa
About what we don’t know well what it is: cujo eixo inicial era uma comparação entre os
indeterminacy as power in afroindigenous modos de fazer e pensar a feitiçaria em cada um
worlds desses contextos, tendo como ponto de parti-
da minha própria etnografia dos Aweti, grupo
abstract Starting with a comparison be- tupi do alto Xingu (FIGUEIREDO, 2010).
tween forms of doing and thinking sorcery in an O pequeno trecho de um diálogo entre
Amerindian context and in some African matrix Carlos Castaneda e seu mestre Don Juan que
religious houses in Brazil, this article suggests a escolhi como epígrafe aparece no segundo
connection between what I define, for the argu- livro da série sobre a iniciação do autor nas
ment’s purpose, as “axé worlds” and Amerindian artes do peyote e outras substâncias aluci-
“perspectivist worlds”. The hypothesis is that what nógenas. Cansado das perguntas ansiosas do
can be compared between Amerindian universes aprendiz, Don Juan despreza a curiosidade

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


272 | Marina Vanzolini

intelectual de Carlos, ou simplesmente tenta em que Carlos se iniciava, e sua crítica se dirige
acalmá-la, argumentando: No hay nada que antes a algo mais específico, que ali ele denomi-
entender. El entendimento es sólo un asunto na entendimiento.
pequeño, pequeñísimo. Não tenho nenhum
interesse aqui em julgar a validade desse ou Comparar
de outros relatos de Castaneda como docu-
mento etnográfico; ele me interessa apenas Não se trata aqui, certamente, de afirmar
porque capta algo ao mesmo tempo simples uma natureza comum (qualquer que seja a
e difícil de precisar que identifico no mundo natureza dessa natureza) a coletivos afro-brasi-
Aweti, o universo indígena com o qual tenho leiros e indígenas, mas de observar como, em
(ou busco, sem cessar) alguma familiarida- contraste com nosso regime de pensamento, parece
de, e que é meu ponto de partida na reflexão ser possível falarmos de um pensamento afroin-
aqui proposta. Esse algo diz respeito ao modo dígena – algo que só é comum, pois, em oposi-
como os Aweti me parecem pensar o conheci- ção a certo aspecto de “nós”. Do mesmo modo,
mento: não porque eles não valorizem o saber cada segmento desse termo composto só ad-
que se pode ter sobre as coisas; mas porque quire unidade em seu confronto: a diversidade
suas ideias sobre o que é o conhecimento, e afro é intencionalmente eclipsada em sua jus-
o que ele possibilita ou implica, me parecem taposição à diversidade indígena – e vice-versa.
ser bastante diferentes das nossas. Esse procedimento, no entanto, não difere
Pesquisas comparativas costumam ser sem- em princípio daquilo que fazemos todo o tem-
pre um pouco mais arriscadas, pois nas compa- po como antropólogos – descrever os mundos
rações tende a haver um campo que se conhece dos outros é sempre um procedimento compa-
muito menos, em geral apenas superficialmen- rativo, que consiste em investigar, ou imaginar,
te, e esse é obviamente o caso da leitura que que respostas dariam se fizessem as mesmas per-
proponho sobre religiões de matriz africana. guntas que nós, como resume Strathern (1988);
A hipótese aqui, em todo caso, é que a observa- na formulação de Viveiros de Castro (2004), a
ção de Don Juan pode dizer também algo sobre antropologia é sempre (ou deveria ser) um em-
a forma do conhecimento nesse outro contex- preendimento de equivocação controlada, em
to. Marcio Goldman me chamou a atenção re- que mobilizamos nossa linguagem conceitual
centemente para o fato de que no mundo das para dar conta de objetos que por definição não
religiões de matriz africana a frase de Don Juan podem ser definidos por meio dela, de tal for-
pode parecer completamente deslocada: sabe- ma que é preciso sempre explicitar que nossos
mos que, nessas religiões, grande parte da vida conceitos, quando aplicados numa etnografia,
gira em torno do controle sobre um conheci- são extensões de nossa linguagem usual para
mento altamente especializado (veja-se, por falar de algo diferente daquilo a que se referem
exemplo, a etnografia de Holbraad, 2012 sobre em nosso mundo. Falamos de parentesco indí-
o jogo de Ifá, em Cuba). Mais uma vez, contu- gena porque identificamos alguma semelhança
do, o que creio estar em jogo não é o valor dado entre o que é descrito e o que nós reconhece-
ao conhecimento, mas a forma que ele toma mos como parentesco entre nós, mas é preciso
em diferentes regimes de existência. Arriscaria saber que numa etnografia a palavra parentesco
dizer até que o próprio Don Juan sabia bem a deve significar algo consideravelmente distinto
importância do conhecimento para as práticas do que significa para nós, algo que precisa ser

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descrito: parentesco indígena. Assumir o cará- afro-brasileira – a etnografia de Edgar Barbosa


ter comparativo de toda antropologia implica Neto (2012. Ver também neste volume) sobre
reconhecer, enfim, que não é possível descrever algumas “casas de religião” em Pelotas, no Rio
qualquer coisa se não a partir de algum lugar Grande do Sul, me forneceu excelente material
e de problemas específicos, com uma lingua- para isso (VANZOLINI, 2011). Pareceu-me,
gem específica. Daí a insistência de Viveiros de então, que, considerando as imensas diferenças
Castro quanto à necessidade de se controlar o entre esses regimes de agressão mágica, o que se
equívoco – isso que nós chamamos de parentes- tornava comparável eram as dinâmicas cosmo-
co, e aquilo identificamos no mundo indígena, políticas associadas num e noutro caso a algo
são de fato a mesma coisa? que podíamos reconhecer (seguindo as con-
A questão então talvez seja: por que não ceptualizações nativas, é claro) como “feitiço”.
comparar, se comparar é o que fazemos sem- Em ambos os casos, me parecia haver uma a
pre, ainda que, muitas vezes, com muito pou- dinâmica similar entre processos de identifica-
co controle sobre isso? A diferença entre uma ção-aproximação e processos de diferenciação-
comparação como a que proponho aqui e -distanciamento. Retomo brevemente o caso
aquela implicada em qualquer descrição etno- xinguano.
gráfica me parece residir, basicamente, no grau Enquanto técnica, a feitiçaria xinguana
de complexidade: por um lado, torna-se mais pode ser descrita como um processo de apro-
difícil controlar a distância entre etnografia e ximação excessiva que resulta numa forma de
generalização – os saltos da análise se tornam consubstancialização entre o feiticeiro e enfei-
mais perigosos, o perigo da “equivocação des- tiçado. Dessa forma, assim como um feiticeiro
controlada” aumenta; por outro lado, corre-se utiliza partes destacadas do corpo da vítima
o risco – salutar, a meu ver – de que novos pro- (cabelo, unhas, roupas, restos de comida) para
blemas e novas formulações analíticas sejam su- produzir o feitiço amarrado, na feitiçaria de
geridos pelo confronto, não apenas com outro vingança realizada pelos parentes de uma ví-
material etnográfico, mas também com outra tima de enfeitiçamento, quando este resulta
tradição teórica. em morte, partes do corpo da própria vitima
A aposta deste projeto comparativo nunca são usados para atingir o feiticeiro. Essa for-
foi, portanto, encontrar um fundo comum à ma de identificação, que faz com que a ação
feitiçaria em diversas partes do mundo, e me- sobre um corpo ou fragmento corporal afe-
nos ainda forjar uma tipologia que permita te uma outra pessoa, é em tudo semelhante
análises transversais entre campos distintos – àquela existente entre certos tipos de parentes,
do tipo “a feitiçaria é”, “o parentesco é”, “a po- que devem jejuar e deixar de exercer inúme-
lítica é”… A proposta aqui é testar a potência ros tipos de atividade em ocasiões especiais, a
de um entrecruzamento etnográfico-teórico. O fim de preservar a saúde de um irmão, pai ou
valor da comparação só poderá ser julgado, afi- filho, por exemplo. Mas se o feitiço xingua-
nal, pelos seus resultados: ela fornece alguma no atua como uma forma de parentesco – ou
intuição nova? o parentesco como uma forma de feitiço; al-
O primeiro passo desta reflexão se deu, guns autores vêm assinalando este ponto: ver
como disse, num contraste entre minha des- Wagner (1967), Viveiros de Castro (2009),
crição da feitiçaria xinguana e modos de ope- Sahlins (2011) –, ele é obviamente uma forma
ração do “feitiço” num contexto de religião alternativa ou pervertida da relação normal de

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influência, pois é empregado justamente ali suas divindades pessoais são feitos no processo
onde o parentesco, com suas complexas expec- da iniciação, e uma conexão física muito ínti-
tativas de conduta, falhou. Do ponto de vista ma é estabelecida entre eles, por meio dos ob-
do feiticeiro xinguano, a feitiçaria seria uma jetos do assentamento (GOLDMAN, 2005).
vingança por uma comida negada, uma fofoca Mas tornar-se parente de uma divindade, ou
injusta, uma traição conjugal. Mas a verdade simplesmente aproximar-se dela de modo a po-
é que, neste universo onde ninguém se anun- der usufruir de sua força, é também tornar-se
cia feiticeiro, dificilmente teremos acesso ao vulnerável à sua ação ou à ação de uma pessoa
ponto de vista de quem faz um feitiço. Para o por meio dela – Wafer (1991), Barbosa Neto
enfeitiçado e aqueles que se compadecem de (2012), Siqueira (2012); para um contexto dis-
seu sofrimento, o feitiço é uma prova de que tinto mas “aparentado”, ver a bela descrição de
aquele de quem se esperava afeto, ao contrário, Ochoa (2010) sobre a relação de um praticante
nutre maus sentimentos por parentes por vezes do palo cubano com sua prenda. Não é difícil
bastante próximos. É preciso ser parente no relacionar esta dinâmica àquela do parentesco
alto Xingu para se desaparentar por meio do no Alto Xingu, e à consequente instabilidade
feitiço, porque são as frustrações da vida coti- dos coletivos compostos em tais relações.
diana que conduzem ao feitiço. Mas o feitiço O caráter instável ou sempre inacabado
opera, de forma perversa, um outro tipo de das relações entre humanos e deuses no uni-
aparentamento-influência. Em termos de di- verso ligado às religiões de matriz africana no
nâmica sociopolítica, isso significa que o con- Brasil ressoa também como instabilidade das
tínuo processo de construção e manutenção relações humanas e das próprias estruturas so-
das relações entre parentes produz constante- ciais e cosmológicas em que operam tais reli-
mente seu inverso, instaurando assim um ciclo giões. Penso, por exemplo, nos aparentemente
de eternas aproximações e distanciamentos. comuns casos de abandono de terreiro e de
Os termos envolvidos na feitiçaria associa- mãe ou pai de santo, associados a relações pro-
da às religiões de matriz africana no Brasil são blemáticas dos sacerdotes com as divindades
consideravelmente distintos. Ainda que cer- de seus filhos de santo (WAFER, 1991), ou
ta proximidade entre as pessoas seja relevante na possibilidade de que as próprias divinda-
para as práticas de malefício – é preciso ter um des questionem decisões tomadas pelos chefes
bom motivo para enfeitiçar alguém, e os bons de culto (SIQUEIRA, 2012). Wafer, que faz
motivos surgem nas disputas da vida cotidia- etnografia de alguns terreiros na periferia de
na – me parece mais significativo o elemento Salvador, nota também o fato de que um corpus
de risco envolvido nas relações entre pessoas e mitológico pouco coeso, em que mitos distin-
as divindades das quais se aproximam, geral- tos traçam para as mesmas divindades relações
mente, pelos processos de iniciação ritual; mas ora de descendência, ora de germanidade, ora
não necessariamente desta forma, como mostra de aliança matrimonial, ora de inimizade, tor-
Siqueira (2012). O laço de mútua constituição naria impossível fixar hierarquias e limites rígi-
criado na relação desenvolvida entre uma pessoa dos de domínios entre as próprias divindades.
e os espíritos é geralmente pensado como filia- Além disso, os valores atribuídos às coisas da
ção. Ao menos no caso dos orixás (uma vez que religião também podem variar: contrariando
com exus, caboclos, eguns e outros, isso pode o mais comumente aceito, por exemplo, há
ser diferente), tanto o filho de santo quanto quem diga que os terreiros pequenos são os

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que concentram mais axé, porque dispersam sempre compartilhar com os espíritos os ob-
sua força menos do que os terreiros grandes jetos recebidos em pagamento pelos serviços
(WAFER, 1991). A bela etnografia de Siqueira que prestam. Por outro lado, parecem ser co-
(2012) em uma região do sul da Bahia mostra muns no xamanismo amazônico casos em que
que ali nenhum vínculo entre humanos, e des- o xamã se identifica tão profundamente com
ses com espíritos, está dado definitivamente. seus aliados que termine deixando de reconhe-
O parentesco (de santo) naqueles povoados cer seus próprios parentes humanos. Ainda que
pareceria tão sujeito a rearranjos contínuos e o primeiro risco seja relacionado à vingança do
inversões como em qualquer aldeia tupi. aliado contra o xamã, e o segundo, ao excesso
Evidenciando a estreita conexão entre os de identificação entre eles, o processo resul-
modos relacionais humanos e destes com não tante é similar: adoecer ou identificar-se com
humanos na feitiçaria, o material sobre religi- o espírito aliado implicam, igualmente, numa
ões de matriz africana insere em uma dimensão alteração perceptiva do humano, que deixará
propriamente cosmopolítica a sociopolítica que de ver e viver com seus parentes humanos.
o caso xinguano me permitia ver. Com efeito, Considerando tais associações entre as des-
o regime do feitiço no mundo afro-brasileiro, crições sobre feitiçaria nas religiões de matriz
se lembra o que se passa no Alto Xingu com africana e a ação xamânica na Amazônia, era
respeito às motivações que levam ao malefício, preciso repensar o interesse de manter o foco
remete, no que diz respeito às formas de ação, da análise na noção de feitiço. Rapidamente,
mais às relações com os espíritos no xama- tornou-se evidente que, nos dois universos tra-
nismo, não apenas no mundo xinguano, mas tados, a dinâmica cosmopolítica que eu pro-
na Amazônia indígena de modo geral. Assim curava descrever não podia se resumir ao que
como se passa com as entidades de uma pessoa reuni inicialmente sob tal categoria, mas apon-
nas religiões de matriz africana, os aliados não tava para algo mais geral daqueles mundos.
humanos do xamã também podem representar Minha hipótese aqui é que esse algo mais geral
para ele diversos perigos e requerem uma série está associado não apenas à ontologia desses co-
de cuidados. Os xamãs xinguanos se iniciam letivos, isto é, ao modo como produzem e pen-
quase sempre em resposta a um adoecimento, sam o mundo, mas também à sua epistemologia,
que marca o primeiro passo de um processo de ou o modo como produzem e pensam o co-
aproximação do espírito com o humano – pro- nhecimento. Melhor dizendo, o que me inte-
cesso comum a outras partes da Amazônia. Os ressa apontar é a relação intrínseca entre teoria
espíritos se apaixonam pelos humanos, dizem do conhecimento e imagem do mundo. É essa
os Aweti, e por isso se acercam deles. Do ponto ideia que desejo desenvolver aqui, a partir de
de vista humano, contudo, essa aproximação uma intuição sobre certa relação entre a noção
representa um afastamento de sua alma, levada de axé, conceito central dos mundos religio-
pelo espírito que a deseja e, logo, o adoecimen- sos afro-brasileiros, e o que Viveiros de Castro
to. A iniciação controla e reverte esse proces- (1996) e Lima (1996, 1999) definiram como
so, fazendo com que o espírito passe a atuar caráter perspectivista dos mundos ameríndios.
como auxiliar do xamã. Trata-se, contudo, de Quero lembrar, por fim, que a comparação
um equilíbrio instável, e os xamãs Aweti nunca entre coletivos relacionados a religiões de matriz
descuidam seus auxiliares, sob o risco de sofrer africana e coletivos indígenas não é puramen-
sérias consequências – é preciso, por exemplo, te aleatória: como dito, ela parte da percepção

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intuitiva de características que, em oposição a O axé pode ser, dessa forma, aquilo que per-
um terceiro regime de pensamento (o nosso) mite o encadeamento entre o que Bastide iden-
revelam semelhanças interessantes. Nesse sen- tifica como princípios de participação e corte
tido, este trabalho pode ser visto como um es- na cosmologia do Candomblé: por um lado,
forço para imaginar quais seriam as condições o axé conecta tudo o que existe; por outro, di-
de tradutibilidade e os limites entre dois regi- ferencia lugares, objetos e pessoas – um terrei-
mes de pensamento. Mais importante é o fato ro, uma região da paisagem, um canto de um
de que no Brasil, como em diversas partes da orixá são axés específicos. Apontando as zonas
América, esses coletivos de fato se encontraram de indiscernibilidade entre os orixás, ou mais
e conformam regimes de vida bastante variados bem entre suas diferentes “qualidades” e, sobre-
– um campo ainda por desbravar, e com o qual tudo, entre suas infinitas individuações como
este projeto puramente teórico terá sempre que “orixá pessoal” de um iniciado, Goldman en-
buscar diálogo, testando sua pertinência para tende que as entidades não representam termos
pensar os casos reais de encontro2. discretos arranjados num esquema fixo, mas
modulações da força geral do axé, cortes num
O axé e o xamã fluxo contínuo. Como lembra o autor, Bastide
já notava que o Candomblé constitui menos
Imagino que a proposta de uma compara- um sistema cosmológico de classificações que
ção entre o mundo do axé e os universos ame- um sistema de manipulações (BASTIDE,
ríndios pareça especialmente arriscada para 1958, apud GOLDMAN, 2005). Por meio de
as pessoas familiarizadas com as religiões de operações rituais, o axé poderia ser controlado,
matriz africana. A multiplicidade de significa- aumentado ou diminuído, ou mesmo ter sua
dos do termo axé encontrada nas etnografias é potência invertida, provocando debilidade em
tamanha, que a tentativa de síntese apresenta- lugar de força (ver Barbosa Neto (2012) para a
da aqui, baseada em um número limitado de noção de axé de miséria).
leituras e nenhuma experiência de campo, não Ora, entendido como força que opera, a
tem obviamente a pretensão de dar conta de um só tempo, a conexão e a diferenciação en-
todos os seus sentidos ou contextos de aplica- tre coisas e pessoas, o axé orienta as religiões
ção. É essa própria multiplicidade que me inte- de matriz africana para o desenvolvimento
ressa, no entanto, como ficará claro adiante. Se de mecanismos de controle das conexões en-
bem entendo, pois, o termo axé pode ser usado tre os diversos elementos e partes do cosmo,
para designar tanto uma força geral e comum a num regime comparável àquele em que, entre
todos os seres do cosmos, quanto a força espe- povos indígenas da América do Sul, se dão as
cífica de um elemento ou lugar: pode-se dizer transformações xamânicas. Mas seria possível
que um terreiro ou casa de religião tem um axé encontrar, inversamente, entre os povos ama-
particular; as divindades têm axé e, cada uma, zônicos, algum princípio de participação com-
o seu axé; e o mesmo termo também pode parável ao axé associado ao regime de alteração
predicar rezas, toques de tambor, alimentos próprio ao xamanismo?
ou outros elementos da natureza que lhes são O potencial de transformação xamânica
associados – Wafer (1991), Goldman (2005), dos mundos ameríndios está associado ao que
Barbosa Neto (2012). foi descrito por Viveiros de Castro (1996)
e Lima (1996) como o caráter perspectivo

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daqueles universos: ao menos potencialmen- humano visível apenas para seus semelhantes,
te, animais, plantas, objetos e outros entes não me parecem creditar essa humanidade à
sobrenaturais, apesar da maneira vegetal, ani- existência de nenhum componente da pessoa
mal, inanimada ou invisível pela qual se apre- compartilhado entre humanos e não humanos.
sentam aos humanos, vivem entre si tal como O termo aweti que traduzo por “alma”, ‘ang,
os humanos e se percebem como humanos. pode significar tanto o duplo de um sujeito –
Em geral, o mundo humano, ou o mundo aquilo que pode ser “roubado” pelos espíritos
que os índios reconhecem como humano, provocando adoecimento, aspecto da pessoa
só o é para os próprios humanos. Do pon- que interage nos sonhos, ou nas viagens xa-
to de vista dos jaguares, dizem os Wari’ da mânicas – quanto a sombra ou imagem de um
Amazônia ocidental, por exemplo, os huma- ente qualquer. Dessa forma, não tem nenhum
nos são porcos, comida (VILAÇA, 1992). Ver sentido na língua aweti afirmar que uma coisa
o mundo tal qual uma determinada espécie o tem ‘ang – tudo pode vir a ter. Em todo caso,
vê implica, portanto, viver como aquela espé- é digno de nota que os Aweti não associem a
cie, e a apropriação de modos de percepção capacidade de personitude de um ente qual-
alheios engendra uma transformação do ser: quer a nenhuma propriedade do ser – isto é,
ver como os porcos, e ver-se como os por- à posse de uma alma ou duplo. Não me parece
cos se veem, equivale a habitar seu mundo tal pertinente, portanto, falar em identidade de
como eles o fazem, tornar-se porco. Assim, fundo, interior ou invisível entre as diferentes
a possibilidade de comunicação com os ani- espécies que veem a si mesmas como humanas,
mais enquanto humanos se funda numa po- como quer Descola. Se há algo que “participa”
tência de transformação dos seres, condição entre humanos e não humanos nos mundos
que faz com que todos sejam – ao menos po- ameríndios talvez seja mais um emaranhado de
tencialmente – múltiplos, trazendo em si essa conexões instáveis e parciais, continuum de di-
capacidade de tornar-se outro. ferenças que podem aumentar ou diminuir, do
Que não humanos possam, em circunstân- que uma oposição binária entre identidade in-
cias especiais, se comunicar com os humanos terior e diferença externa. Voltarei a este ponto.
como iguais não significa necessariamente, Lima (1996) e Viveiros de Castro (1996,
penso, que plantas, animais, objetos e entes 2007) oferecem uma interpretação mais inte-
monstruosos sejam humanos no fundo, ou na ressante para a relação entre a posse da alma
interioridade, sob uma exterioridade não hu- e a potência transformativa que constitui o
mana, tal como formula Descola (2005) ao cosmos perspectivista ameríndio. Essa potên-
descrever o que denomina ontologias animistas, cia deve ser pensada, sugerem os autores, como
dentre as quais estariam as ontologias indígenas efeito de uma multiplicidade interna a cada
sul-americanas. Etnografias sobre terras baixas ser, capacidade de tornar-se parcialmente ou-
sul-americanas, de fato, relatam que a posse tro. A alma é a parcela do humano que pode se
de uma alma ou duplo aparece como condi- comunicar com os não humanos como igual,
ção para a autopercepção de qualquer ser sob nos sonhos, transes xamânicos ou na doença.
a condição humana (LIMA, 1996). Não acre- Da mesma maneira, os não humanos também
dito ser esse o caso, no entanto, para os Aweti, devem ser internamente “múltiplos” – parcial-
que, se reconhecem que animais, objetos e ou- mente animais, plantas, ou outra coisa, parcial-
tros entes do cosmos levam uma vida ao modo mente gente – para manterem conexões com

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os humanos como iguais. Nesse sentido, a alma nhe’ẽ guarani, a alma-palavra, na tradução de
não tem nada a ver com identidade ou identi- Cadogan (1959) ou palavra-fluxo, na interpre-
ficação, é pura potência de alteração. Ora, essa tação dos autores. Na cosmogonia guarani, as
potência não deve ser entendida, a meu ver, divindades hoje existentes surgem numa su-
como propriedade intrínseca das coisas, mas cessão de engendramentos que têm início com
como abertura ao indeterminado. Pois o que a autocriação do demiurgo Nhanderu Ete,
resulta fundamental nessa multiplicidade in- “Nosso Pai Verdadeiro”. Esse processo coincide
terna dos seres é que ela abriga, por definição, com o engendramento, a partir da força ori-
uma potência criativa incontrolável. ginal do demiurgo, o nhe’ekuery (sendo kuery
O ponto que quero ressaltar aqui é que, um sufixo coletivizador), dos diversos nhe’e que
para os Aweti, e talvez outros povos amerín- emanam dos diferentes deuses. No nhemonga-
dios, a possibilidade de alteração perspectiva raí, o ritual de nomeação, a criança guarani re-
não precisa ser explicada com referência a uma cebe um nome que identificará de que parte do
qualidade constitutiva dos seres, ainda que cosmos advém seu nhe’e, sua “alma”, descober-
eventualmente ela possa ser referida a uma. to pelo pajé ou por um familiar da pessoa por
Essa potência teria mais a ver, sugiro, com sua meio de um sonho, ou no canto do pajé duran-
experiência de um mundo em que quase tudo te a cerimônia. Macedo e Sztutman observam
pode acontecer, e do qual, portanto, muito que, de forma análoga ao que se passa na inicia-
pouco pode ser definitivamente conhecido. Tal ção no candomblé, o ritual atesta e concretiza,
percepção transparece, por exemplo, em certas a um só tempo, a relação de participação da
fórmulas linguísticas empregadas pelos Aweti: pessoa com um domínio celeste, revelando-
para me perguntar certa vez algo que eu só -atribuindo o nhe’e que a constitui. A nomeação
poderia traduzir como “o que é” ou “de que cria ainda uma conexão especial entre a pes-
é feita” a gasolina, um Aweti formulou a frase soa nomeada e o pajé nomeador. Quando este
“karika ut gasolina?”, que literalmente significa morre, as pessoas que nomeou devem trocar
“que ex-coisa é a gasolina?”. Aquilo que imagi- de nome, pois o espectro (angue) do pajé pode
namos em termos de propriedades intrínsecas, fazer adoecer aqueles aos quais tinha maior li-
ele imaginava em termos de transformação: gação. Como o axé, pois, o nhe’e conecta certos
isso que hoje é gasolina, antes foi outra coisa. homens, lugares e deuses, diferenciando-os de
outros “coletivos de participação”, por assim
Variantes dizer. Mas aquilo que costumamos traduzir
por alma implica, na concepção indígena, uma
Ao questionar há pouco se haveria um prin- abertura para o exterior, algo que se confunde
cípio cujos efeitos seriam equivalentes àqueles apenas parcialmente com a pessoa, mas tam-
produzidos pelo axé nos mundos ameríndios, bém conduz ao mundo fora dela. De fato, os
deixei de lado uma possibilidade que resta por autores esclarecem que os nhe’ekuery também
explorar: a existência de uma força propria- vivem fora dos corpos e circulam pelo cosmos,
mente dita, comparável ao axé, no universo podendo adquirir a forma de pássaros e transi-
indígena. Num trabalho motivado pela mes- tar em sonhos e cantos xamânicos. Quando se
ma comparação que arrisco aqui, Macedo e trata do nhe’e que habita o corpo de uma pes-
Sztutman (ver neste volume) sugerem corres- soa guarani, seu distanciamento pode fazer a
pondências muito interessantes entre o axé e o pessoa adoecer ou mesmo levá-la à morte, caso

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o distanciamento seja definitivo. Assim como humano, como dá evidência o grande investi-
o axé, portanto, o nhe’e parece conjugar parti- mento dos povos das terras baixas na construção
cipação e diferenciação num regime de varia- de corpos comuns por meio da comensalidade e
ções produzidas a partir de uma força original do cuidado (cf. SEEGER et ali., 1979; VILAÇA,
que se desdobra, evidência de que a unidade 2005; GOW, 1997; para o caso xinguano, ver
original continha antes uma multiplicidade la- FIGUEIREDO, 2010). Identificados dessa
tente, e que não perde sua potência conectiva forma, os corpos passam a “participar” uns dos
(penso nos nhe’ekuéry circulando sob a forma outros de tal forma que uma pessoa deve seguir
de pássaros, estabelecendo conexões perigosas uma série de restrições alimentares e de traba-
para a pessoa ou deixando-a suscetível a tais co- lho quando um parente próximo está doente ou
nexões). Provavelmente poderíamos encontrar quando tem um bebê recém-nascido, suscetível
nas terras baixas sul-americanas outras analo- ao ataque por espíritos. Vale lembrar que a do-
gias possíveis – e parciais, é claro – para a noção ença no alto Xingu é entendida como resulta-
de axé. do do roubo da alma de um humano por um
Há ainda outra relação a ser apontada, não espírito, que a leva para viver consigo na mata
de correspondência, mas de complementari- como parente, processo simultâneo à introdu-
dade, entre esses que já não poderemos mais ção, no corpo do humano, daquelas flechinhas
definir como “regimes de pensamento” ou do espírito que, num outro contexto, devem ser
“ontologias” distintos, mas talvez como “me- introduzidas no corpo do xamã. A doença con-
canismos”. A própria forma de acionamento siste, portanto, em uma conversão inadvertida
das transformações xamânicas revela uma liga- de perspectiva associada a uma relação de par-
ção importante entre a lógica da participação ticipação descontrolada com os espíritos, pro-
implicada na noção de axé e o perspectivismo cesso que a consubstanciação em que consiste
ameríndio. Via de regra, a iniciação dos xamãs o parentesco visa controlar. Coerentemente, a
sul-americanos envolve a introdução, no cor- cura xamânica opera pela sucção e expulsão do
po do xamã, seja de objetos pertencentes aos elemento exógeno do corpo do doente. Tanto o
espíritos com quem o xamã entrará contato, parentesco, fixação de uma perspectiva comum
seja dos próprios espíritos (p.ex. CHAUMEIL, humana, quanto o xamanismo, construção de
1983; GALLOIS, 1996; CESARINO, 2011). identidade uma parcial com não-humanos, ope-
No caso xinguano, flechas minúsculas e invisí- ram por lógicas de participação3.
veis, “flechas dos espíritos” (katu’wyp) devem Se minha interpretação está correta, não
ser transmitidas do xamã iniciador ao inician- existe identidade dada, em nenhuma instância,
do por meio do sopro. O poder curativo do nos mundos perspectivistas, apenas identifica-
xamã, derivado da sua capacidade de ver ou ções provisórias, as quais resultam de participa-
ouvir esses entes normalmente invisíveis para o ções estabelecidas por fragmentos corporais e
humano comum, depende da presença de tais forças anímicas, de resto indistinguíveis uns dos
objetos em seu corpo. O poder xamânico re- outros. Mais do que regimes existenciais distin-
sulta, em suma, de uma forma de participação tos com dinâmicas similares, tal como formulei
entre o xamã e os não-humanos. anteriormente, perspectivismo e participação
A mesma lógica opera também na constru- podem ser entendidos como mecanismos com
ção das relações de identidade, aquelas em que múltiplas possibilidades de combinação num
a intenção é justamente fixar um ponto de vista mesmo mundo.

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280 | Marina Vanzolini

Poder kwakiutl são bastante semelhantes, como


reconhece Viveiros de Castro (2002), aos dados
Em todo caso, minha hipótese é que, se sul-americanos que motivaram a formulação
os mundos do axé e os mundos perspectivis- da noção de perspectivismo ameríndio.
tas apresentam dinâmicas comuns, isso não O conceito de nawalak associa diretamente a
se deve à presença, em ambos, de uma força manipulação de uma força semelhante ao axé –
cósmica de natureza semelhante, nem resulta princípio comum a todos os seres do cosmos –
necessariamente da combinação entre disposi- ao controle da alteração interespecífica tal
tivos lógicos num dado contexto, mas advém como operada pelo xamã sul-americano. Mais
do caráter intrinsecamente indeterminável explicitamente, associa a potência xamânica de
do universo que esses dispositivos revelam. subjetivação à aquisição de uma força que a
Formulado de outro modo, a hipótese é que, tudo perpassa: como se o xamã fosse, por assim
mesmo nos mundos ameríndios onde não se dizer, alguém com mais axé do que os outros.
apresenta uma noção de força semelhante ao O que me parece que deve ser comparado
axé, assim como nos mundos do axé em que nos mundos perspectivistas e naqueles em que
em que não se coloca a questão da variação há a presença do axé não é apenas aquilo que a
perspectiva, certas concepções do mundo e do atividade ritual ou xamânica pressupõe, as “par-
conhecimento conduzem a dinâmicas cosmo- ticipações”, mas também seu efeito para a afir-
políticas semelhantes. mação de uma posição ativa do sujeito frente
A comparação com outro caso amerín- a outros (possíveis) sujeitos. É o caso do xamã
dio – o “pensamento religioso” dos Kwakiutl ameríndio que, de presa do espírito, torna-se
analisado por Irving Goldman (1975) a partir aliado e se converte assim em possível predador
dos dados coletados por Boas – fornece novas de outros humanos (ver acima). Algo parecido
pistas para pensarmos essa relação. Segundo se passa, imagino, com a pessoa carregada de
Goldman, a noção kwakiutl de nawalak, que axé, capaz de mobilizar as os divindades a seu
Boas traduz por “poder sobrenatural”, designa favor e, dessa forma, não só controlar sua rela-
uma força presente em diversos seres do cos- ção com as próprias divindades, mas eventual-
mos, também característica da potência xa- mente usá-las para agir sobre outros humanos
mânica. O cosmos kwakiutl seria dividido em (na feitiçaria). É notável, nesse sentido, que nas
quatro “compartimentos” – humano, vegetal, histórias de enfeitiçamento associadas às reli-
animal e espiritual –, cada um internamente giões afro-brasileiras o feitiço seja geralmente
organizado hierarquicamente, mas sem qual- pensado como defesa contra um ataque já rea-
quer relação hierárquica de transcendência en- lizado por outro feiticeiro (BARBOSA NETO,
tre eles. A comunicação entre esses domínios 2012; SIQUEIRA, 2012). Pareceria assim que,
no mundo kwakiutl teria sempre o objetivo de tanto nos mundos indígenas quanto no univer-
aquisição de “poder”, também denominado so das religiões de matriz africana no Brasil, é
nawalak. O termo, portanto, definiria tanto a preciso afirmar-se sujeito num universo povo-
potência xamânica de transformação quanto o ado por outros sujeitos, ou afirmar sua força
poder adquirido nesse processo, sendo ao mes- num universo povoado de outras forças – isto
mo tempo condição e efeito da comunicação é, outros sujeitos e outras forças cuja agência
entre domínios cosmológicos. Vale lembrar que pode determinar minha vida, transformando-
as descrições de Goldman sobre o xamanismo -me em objeto de sua influência. Ter axé, ou

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mais axé do que os outros, equivaleria a ser o variadas, mas também coisas cuja natureza é
sujeito de uma perspectiva numa caçada entre desconhecida ou, ainda que momentaneamen-
os ameríndios? Ser um sujeito, num mundo te, indefinível, é que me parece significativo.
ameríndio, seria como dominar os meios de Indefinível talvez não seja apenas o conceito de
influência sobre outros humanos no candom- axé, mas o axé propriamente dito, ou aquilo
blé baiano? Em ambos os casos, uma percep- que ele in-define, como registra, por exemplo,
ção radicalmente relativista do conhecimento Barbosa Neto (2012) a respeito da fluidez das
e do mundo parece ser o que motiva e possibi- fronteiras cosmológicas entre os tipos de enti-
lita a manipulação dessa força, ou potência de dades em religiões de matriz africana no Rio
subjetivação. Grande do Sul. Em outras palavras, a dificul-
dade de definição do axé talvez não resulte de
Aquilo que não se sabe o que é: o poder um problema de tradutibilidade desse concei-
como princípio de indeterminação to exógeno em nossa língua – o fato de que
do mundo nenhum vocábulo de outro idioma possa dar
conta de uma noção nativa, ioruba, polinésia,
Irving Goldman associa, em sua análise iroquesa etc. Ao designar coisas distintas, o axé
da cosmologia kwakiutl, o nawalak ao mana talvez signifique antes de tudo a abertura do
melanésio e outras noções classicamente enten- mundo, uma potência inclusiva e autodife-
didas como similares (o manitu algonquino, renciante. Se ele é uma força vital, tal como a
o wakan sioux, o orenda iroquês), interpreta- alma ameríndia não dá vida fixando identida-
das por Lévi-Strauss (2003) por meio da no- des, mas colocando o ente em relação com algo
ção de significante flutuante, ou significante fora de si. Lévi-Strauss lembra que as línguas
vazio. Como sabemos, Lévi-Strauss entende a ocidentais também possuem significantes flu-
polissemia que caracteriza esses termos como tuantes – o exemplo mais claro para nós é o
expressão de um descompasso constitutivo do vocábulo “coisa” no português. Mas existe toda
processo de significação, o que implicaria que a diferença do mundo entre se valer de noções
noções similares deveriam estariam presentes assim como um recurso de comunicação, nosso
em todas as línguas. Significantes flutuantes, caso, e situar essas noções no centro do mundo,
noções como mana, ou axé, existiriam justa- identificando-as ao poder ou a um princípio
mente para dar conta daquilo que a linguagem vital.
não pode dizer. É preciso atentar para o fato de É muito significativo, nesse sentido, que o
que Lévi-Strauss define o significante flutuan- termo aweti kat, cuja tradução mais evidente
te como efeito de um excesso de significante, e seria “espírito” ou “ente sobrenatural”, pos-
não de significado. A existência de termos dessa sa significar também genericamente “coisa”.
natureza não diria respeito a uma deficiência Quando usado para designar um objeto não
dos modos de dizer em relação às coisas a se- identificado qualquer (como na expressão
rem ditas, mas a modos de dizer por natureza kat’ikatene, “coisa qualquer/sem importância”)
excessivos. Mas talvez eles digam, sobretudo, kat funciona como os significantes flutuantes
da qualidade indefinível de certas coisas, ou da de Lévi-Strauss, indicando a própria indefini-
potência que elas guardam de serem outras. ção daquilo que designa. Mas essa indefinição
O fato de que termos como mana sejam parece impregnar o sentido mais estrito do
usados para designar não apenas coisas muito termo, quando utilizado para designar certos

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entes do cosmos aweti, como se os espíritos kat potências não humanas por meio de manipu-
fossem, dentre as coisas que não sabemos bem lações do axé, nas religiões de matriz africana.
o que são, aquelas cuja natureza é, certamente, Apesar de inspirada numa proposição de
indefinível. Nomear definitivamente as coisas Isabelle Stengers (2005), a noção de cosmopolíti-
torna-se difícil quando tudo pode ser, ou se re- ca que mobilizei para expressar o que haveria em
velar, “espírito”: uma panela, uma canoa, um comum entre o pensamento perspectivista ame-
jaguar. Há ainda uma “classe” de peixes, deno- ríndio e o mundo do axé foi usada aqui, em prin-
minados wagat (o termo literalmente significa cípio, com um sentido que poderíamos dizer
algo como “autotransformadores”), que são “fraco” em relação àquele proposto pela autora.
na verdade mutações de outros animais – de Sintetizando os domínios cosmológico e políti-
um veado, por exemplo – coisa que só se pode co, a noção me parecia adequada para descrever
saber a posteriori, caso alguém que o comeu mundos nos quais as relações entre humanos e
adoeça, por exemplo. Não é preciso dizer que destes com não humanos são indistinguíveis,
os wagat são também “tipos” de kat. tanto porque obedecem às mesmas lógicas –
Na medida em que sua perspectiva sobre o caso da feitiçaria humana e do xamanismo no
mundo coloca a perspectiva humana em peri- mundo xinguano, por exemplo – seja porque
go – lembremos o risco de, vendo como kat, compõem umas às outras – caso dos efeitos das
abandonarmos o mundo humano para viver relações com as entidades sobre a vida humana,
entre eles –, os espíritos do cosmos xinguano, nas religiões de matriz africana5. Ao final destas
são, como o axé, coisas indefiníveis e agentes considerações penso ter chegado, contudo, um
da indefinição do mundo, nos fazendo lembrar pouco mais perto da ideia original de Stengers.
que ele vai muito além do que a vista alcança. Se bem a entendo, a “proposição cosmopo-
Dessa forma, nos mundos em que a perspecti- lítica” da autora consiste na introdução de um
va dos outros é um componente irredutível da princípio de dúvida no jogo político, na criação
realidade, assim como naqueles onde está pre- de um interstício que nos obriga a questionar o
sente o axé, a impossibilidade do conhecimen- que poderia significar um mundo comum, ad-
to absoluto parece um aspecto central da vida. mitindo a existência em nosso mundo de ato-
Assim, se nesses mundos “o entendimento é res não só imprevistos como também, muitas
apenas um assunto pequeno, pequeníssimo”, vezes, alheios à própria linguagem do político.
como disse Don Juan a Castaneda, não é por- Este, entendido amplamente como campo de
que o conhecimento não seja importante, pois criação de um acordo, deve ser pensado em
na verdade ele é fundamental4. O ponto é que, termos de situações concretas, nas quais pro-
nesses mundos em que o conhecimento jamais blemas concretos sejam colocados em jogo. Se
será totalizável, seu valor está intimamente li- algum mundo comum resulta daí, ele só poderá
gado ao papel que desempenha na aquisição ser contingencial e particular, nunca determi-
de poder, em contextos e relações específicos. nado por valores fixos englobantes, dos quais
O poder, por sua vez, parece ser ele mesmo algum juiz, alguma cultura, alguma classe, se-
indeterminável ou, antes, potência de indeter- riam os supremos representantes. Ora, como
minação do mundo: capacidade de tornar-se lembra Stengers, citando o caso das assembleias
outro, para os povos indígenas amazônicos, comunais na África (o sistema palabre ou pala-
possibilidade de afirmar sua força nas intera- ver): “Such manners maybe found in other tradi-
ções humanas, controlando a relação com as tions, other arts of emerging agreement” (2004,

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Daquilo que não se sabe bem o que é | 283

p. 11). Está claro que esse princípio de dúvida Muitas das ideias que desenvolvi aqui, ou todas elas,
proposto por Stengers é o que ideias como as que são frutos do diálogo que mantive com Marcio
procurei descrever aqui introduzem nos mundos Goldman ao longo do projeto de pós-doutorado
que elas ajudam a construir – e desconstruir. que realizei sob sua supervisão entre 2010 e 2013.
A noção de uma “dinâmica cosmopolítica” Este encontro a princípio inusitado, mas para mim
ganha assim outro sentido, mais profundo: altamente estimulante, é um dos resultados de uma
não se trata mais de apontar um domínio da conversa iniciada há já alguns anos entre os pesqui-
vida – “a cosmopolítica” – que apresentaria sadores do Núcleo de Antropologia Simétrica, no
uma mesma dinâmica em mundos diversos, PPGAS/Museu Nacional.
mas de identificar nesses mundos uma mesma 2. Veja-se por exemplo a etnografia de Mello (2010 – ver
dinâmica, cosmopolítica na medida em que é também neste volume) sobre um movimento artístico
determinada pela impossibilidade de definição que se define como afroindígena no sul da Bahia, a
absoluta do mundo. cosmologia de um povo quilombola do Pará descri-
ta por Sauma (2013 – ver também neste volume), ou
Notas as relações entre grupos afrodescendentes e índios no
Chocó colombiano descritas por Losonczy (1997).
1. Tive a oportunidade de apresentar versões preli- 3. Em termos da distinção proposta por Descola entre
minares deste texto em três ocasiões, que muito ontologias perspectivistas e ontologias analogistas, isso
me ajudaram a esclarecer, muitas vezes para mim implica que o analogismo é a engrenagem de ativação
mesma, o que queria dizer aqui. Agradeço, por da alteração, ou do controle da alteração, perspecti-
abrirem espaços de diálogo tão prolíficos, a Marcio va. Nesse sentido, o perspectivismo não poderia ser
Goldman e Beatriz Perrone Moisés, coordenadores descrito como um tipo de animismo, se entendemos
do GT “Novos modelos comparativos: investigações que este postula uma identidade compartilhada entre
sobre coletivos afro-indígenas”, realizado na 36ª humanos e não humanos.
Reunião da ANPOCS, em outubro de 2012, para 4. Para um exemplo brilhante no mundo ameríndio, ver
o qual este trabalho foi inicialmente elaborado; à a etnografia de Lima (1996) sobre a caçada de porcos
comissão organizadora do Sextas na Quinta, onde do mato pelos Yudjá e a importância do conhecimen-
pude apresentá-lo em outubro de 2013, no PPGAS/ to humano sobre o conhecimento dos porcos como
Museu Nacional, UFRJ; e à comissão organiza- forma de controlar a variação perspectiva.
dora das Sextas do Mês, que idealizou o encontro 5. Essa problemática vem sendo apontada na etnolo-
“Olhares cruzados: antropologia afroindígena”, rea- gia amazonista há já algum tempo. Veja-se Overing
lizado em maio de 2014 no PPGAS/USP. Agradeço (1977) e Viveiros de Castro (1986) para considera-
também a todos os amigos que tiveram a genero- ções sobre a inadequação da separação entre cosmos
sidade de compartilhar dúvidas, críticas e ideias a e sociedade na descrição dos mundos ameríndios, e
respeito deste texto nessas ocasiões, especialmente Sztutman (2012), para uma consideração extensa so-
Eduardo Viveiros de Castro, Marcio Silva, Julia bre o uso da noção de cosmopolítica para pensar a
Sauma, Clara Flaksman, Ana Carneiro, Luisa Elvira política indígena.
Belaunde e Gabriel Banaggia. Edgar Barbosa Neto,
Valéria Macedo e Renato Sztutman foram mais do Referências bibliográficas
que generosos, como sempre, ao permitir esta apro-
priação talvez um pouco selvagem de seus trabalhos, BARBOSA NETO, Edgar R. A máquina do mundo: va-
e pelas conversas que se seguiram e, espero, seguirão. riações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 271-285, 2014


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autora Marina Vanzolini


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) e
Professora Adjunta do Departamento de Antropologia, Universidade de São
Paulo (DA/USP)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 271-285, 2014


287

A parte de que se é parte. Notas sobre


individuação e divinização (a partir dos Guarani)

Valéria Macedo
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

Renato Sztutman
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p287-302 practices of nomination as our focus. These prac-


tices, developed under
​​ the mediation of shamans,
resumo Tendo como inspiração o problema do consist in connecting a child (but also an adult)
“ser feito no santo” nas religiões afro-brasileiras, este with divine powers distributed by different re-
artigo propõe discutir a relação entre processos de gions of the cosmos. In order to conceptualize
individuação e divinização entre os Guarani Mbya. this connection in Guarani terms — which brings
Elegemos como foco as práticas guarani de nomina- us closer to an idea of “intensive kinship” – we
ção que, efetuadas sob a mediação de xamãs, con- ask who these gods/deities are for them after all
sistem na conexão de uma criança (mas também de (Nhanderu and Nhandexy kuery). Furthermore,
um adulto) com potências divinas distribuídas em this point is connected to a classic theme of
diferentes regiões do cosmos. De modo a conceitu- Guarani studies: the concept of nhe’ẽ, “soul-
alizar essa conexão em termos mais propriamente word” or “affection-language.”
guarani – o que nos aproxima de uma ideia de “pa- keywords Individuation; Divinization;
rentesco intensivo” – perguntamo-nos quem seriam, Guarani Mbya; Intensive kinship; Afroindigenous;
afinal, para eles, esses deuses/divindades (Nhanderu Comparison.
e Nhandexy kuery). Este ponto reenvia, ademais,
para um tema clássico dos estudos guarani: o con- Ñamandu, pai verdadeiro, o primeiro,
ceito de nhe’ẽ, “alma-palavra” ou “afeto-linguagem”. depois de nomear cada um dos verdadeiros pais de
palavras-chave Individuação; Divinização; seus filhos vindouros,
Guarani Mbya; Parentesco intensivo; Afroindígena; e cada um dos verdadeiros pais das palavras-almas
Comparação. de seus filhos vindouros,
todos a sós em seus lugares certos, falou:
The part of which one is part. Notes on “Agora,
individuation and divinization (starting with depois de nomeá-los,
the Guarani) todos a sós em seus lugares certos,
da conduta dos adornados com o cocar de plumas,
abstract Inspired by the problem of “mak- da conduta das adornadas com flores nos cabelos,
ing the saint” in African-Brazilian religions, this vós, por vós mesmos, ireis saber”
article aims to discuss the relationship between
processes of individuation and divinization E por fim,
among the Guarani Mbya. We selected Guarani segredou o canto sagrado aos pais primeiros,

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


288 | Valéria Macedo e Renato Sztutman

segredou o canto sagrado às verdadeiras mães e Nhandexy kuery e sua relação com a cons-
primeiras, tituição da pessoa guarani foi inspirado pela
para que os amanhãs leitura de artigos de Goldman (2005; 2009)
colhessem, vivendo e bem, sobre ontologia e multiplicidade nas religiões
os muitos filhos eleitos para erguer-se no leito afro-brasileiras, em diálogo com o universo
terreno. conceitual de Deleuze e Guattari. Saltou aos
nossos olhos a insistência etnográfica de que
– Yvy Tenonde, a Primeira Terra (canto mbya nos rituais de iniciação do candomblé a pes-
registrado por Leon Cadogan e traduzido por soa é feita no santo ao fazer o santo; dito de
Josely Vianna Baptista) outro modo, a pessoa realiza-se como modu-
lação singular de um fundo infinito de mul-
Os termos guarani Nhanderu kuery e tiplicidade, no qual está inscrita a existência
Nhandexy kuery podem ser traduzidos como dos orixás, divindades afro-brasileiras. Tal foi
“Nossos pais” e “Nossas mães” (nhande: “nos- nossa inspiração para buscar algumas conexões
so”, -ru: pai, -xy: mãe e –kuery: sufixo coletivi- parciais (no sentido de Strathern, 1991) – um
zador)1. Os habitantes de domínios celestes a tanto arriscadas, talvez – com aspectos da no-
quem os Guarani se dirigem com esses termos minação entre os Guarani, vinculados ao que
também podem ser referidos como Nhandeja estamos chamando aqui de individuação e di-
(ou Nhandejara), “Nosso dono”. Quando fa- vinização da pessoa. Pretendemos neste artigo
lam em português, os Guarani preferem desig- centrar foco na etnografia guarani, sugerindo
nar tais criaturas celestiais como “deuses” ou certos paralelos capazes de apontar uma nova
mesmo como o “deus”, remetendo ao demiurgo trilha comparativa, que aqui só poderá ser
ou a algum dos imortais engendrados por ele. vislumbrada.
Estamos aqui diante de um problema de tra- Como formulado por um interlocutor
dução: estariam eles procurando se aproximar de Valéria Macedo na Terra Indígena (TI)
daquilo que nós, os jurua (como costumam Guarani do Ribeirão Silveira, Papa Mirĩ Poty,
chamar os brancos), entendemos como deus o nome próprio de uma pessoa diz “a parte de
ou, diferentemente, nos apresentando outro que cada um é parte”, remetendo ao domínio
conceito de divindade, por sua vez tributário celeste a que o sujeito se vincula. Tais partes
de outro universo conceitual menos preocupa- de partes dizem respeito a multiplicidades que
do com a transcendência do que com a ima- ganham modulações singulares em seu trânsi-
nência, menos atrelado à ideia de substância do to até o corpo do sujeito. A nomeação é parte
que à de movimento ou multiplicidade2? Nossa de um assentamento de forças, ou da estabi-
aposta neste artigo incide na segunda alternati- lização de um fluxo cuja proveniência são os
va, ainda que reconheçamos entre os Guarani deuses em suas diferentes moradas. Por sua vez,
um investimento em buscar correlações entre a a nomeação foi o gesto inaugural do engendra-
sua cosmogonia e a dos jurua3. mento dos deuses por obra do demiurgo, como
A reflexão que se segue deve ser compre- aponta a epígrafe deste artigo. Assim, a suces-
endida dentro de uma perspectiva mais ampla são de engendramentos de divindades presente
de comparação de “noções de pessoa” operan- na cosmogonia mbya e atualizada na produção
tes em coletivos ameríndios e afro-brasileiros4. de pessoas nesta terra pode ser lida como indi-
No nosso caso, o interesse pelos Nhanderu viduações de um fundo de multiplicidade, ou

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 287-302, 2014


A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani) | 289

modulações de forças que conectam e diferen- e publicados em versão bilíngue (em mbya e
ciam, fazendo e desfazendo corpos. espanhol) em sua obra clássica Ayvu Rapyta,
Todos os Guarani idealmente devem ter um de 1959. O título remete à “fonte” ou “funda-
nome próprio, vinculando-o a um domínio mento” (rapyta) da fala (ayvu) e narra a origem
celeste e animando-o com sua respectiva po- do mundo como uma sucessão de “desdobra-
tência. A despeito da magnitude estendida dos mentos”, ou engendramentos de seres, desde o
xamãs5, o devir-deus é imanente a cada pessoa “florescimento” do deus primevo como um ser
guarani, sendo experimentado com maior ênfa- compósito, com membros de ramagens, olhos
se na interlocução com os imortais celestes nos de orvalho, coração de sol. Entre os interlocuto-
cantos, danças, sonhos e consumo de petÿ (ta- res de Macedo, as designações mais frequentes
baco), entre outras situações. Particularmente, para o demiurgo são Nhanderu Papa Tenonde e
a fala (que pode ser cantada) e o nome são Nhanderu Ete, mas ambos os nomes também
expressões da imanência da divindade, daí as podem ser precedidos por Nhamandu, como
aproximações que buscamos estabelecer entre a aparece nos registros de Cadogan. Pa-pa foi
nominação e a iniciação no candomblé, tendo traduzido como “último-último” por um pajé
como ponto convergente o tema da multiplici- mbya a este autor, cuja interpretação foi de que
dade e ontologia desenvolvidos por Goldman. o demiurgo gerara tudo e a si mesmo a partir
dos confins do mundo, no mais distante pata-
Desdobramentos e individuações mar celeste, onde vive até hoje (1959, p. 16).
Talvez a repetição da expressão também possa
A partir de sua experiência etnográfica, conferir a “último” um sentido incessante de
Elizabeth Pissolato comenta o pouco interes- movimento ou de devir, o qual nunca chega
se dos Mbya pelos detalhes das origens de suas a termo7. Outro sentido de papa, quando não
divindades e mesmo por elas mesmas enquan- concernente ao deus, é contar (verificar a quan-
to singularidades. No entanto, enfatiza ela, tidade), numerar. Ainda, –pa pode ter a fun-
interessam-se muito sobre o tema da nomina- ção de verbo “terminar, acabar”, ou a função
ção (2007, p. 303). Mais importante do que adverbial de “tudo, todos, completamente”. Já
os laços entre pessoas com nome de mesma Tenonde significa “estar à frente”, enunciando
procedência seria o fato de elas estabelecerem a posição do demiurgo como fonte de orienta-
relações efetivas com o mundo celestial. Daniel ção, um horizonte a ser buscado, mas que está
Pierri (2013, p. 100-101), por sua vez, en- sempre à frente em relação ao referente huma-
contra nas especulações mbya sobre o mundo no. Justapondo os eixos temporal e espacial,
dos deuses algo próximo do que Carneiro da Nhanderu Papa Tenonde é assim a um só tempo
Cunha (1978) encontrou nas fabulações sobre o último e o primeiro, o que está na origem e o
o destino escatológico das pessoas krahô: em que está no término, o que abarca a todos e está
vez de pensar em termos de “pouca precisão”, nos confins. Por sua vez, Ete costuma ser tradu-
é preciso compreender a lógica das variações. zido como “verdadeiro” ou “sagrado, sublime”
Como se vê, a questão reside menos em esta- pelos Guarani, podendo ser também uma partí-
belecer a identidade dessas divindades do que cula intensificadora. Em muitos enunciados, o
em estabelecer relações particulares com elas6. que é ete diz respeito ao mundo dos imortais –
A cosmogonia mbya é tema de registros ao seu valor prototípico – e aquilo que os conec-
de León Cadogan, os quais foram analisados ta a esta terra na qual se realiza a humanidade

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(por exemplo, avaxi ete é a espécie de milho que seu corpo imperecível por meio de jejuns, can-
constitui uma dádiva de Nhanderu, fortalecen- tos, danças e fumaça de tabaco à exaustão. Eles
do o corpo contra agenciamentos patogênicos). vivem em yvy marã e’ỹ, a “terra que não estra-
O demiurgo engendrou a si mesmo na escu- ga”, onde nada tem fim, também chamada em
ridão primordial (petun yma), a partir de uma português de “terra sem mal”. Segundo glosa
luz que desabrochou como seu peito (ogueroje- de P. Clastres (1974), a partir de uma conversa
ra nhamandu’i, “desabrocha o pequeno sol”), com um Mbya, o Mal seria o Um, aquilo que
razão pela qual também é chamado, conforme encarcera, estanca, faz definhar, associado à ter-
os registros de Cadogan (1959), de Nhamandu ra que os humanos habitam.
Ru Ete, “Verdadeiro Pai Sol”. Remetendo nova- Tais modulações de potências, que ganham
mente à epígrafe do texto, o demiurgo confere expressão cartográfica em diferentes domínios,
existência corpórea aos outros deuses nomean- promovem individuações ou singularidades a
do-os. De modo análogo, Kuaray, a divindade partir de uma multiplicidade infinita ou inten-
solar descendente do demiurgo, traz de volta siva, cuja engrenagem primordial é o demiur-
à vida pássaros mortos enunciando seus nomes go. O surgimento dos deuses, uns a partir dos
(KANGUA; POTY, 2003). outros, é descrito pelos Mbya nos registros de
Os domínios celestes onde vivem Nhanderu Cadogan por meio de expressões como mbo-
e Nhandexy kuery costumam ser identificados jera ou -guerojera, que o autor traduz como
pelos Guarani Mbya com referência ao trajeto “criar no curso da própria evolução” (1959, p.
do sol, a despeito de não haver consenso sobre 17), justificando não se tratar de uma criação
os habitantes de cada região. De acordo com ex-nihilo, mas de uma transformação de algo
a versão predominante entre os interlocutores que já estava lá e que se desdobra, desabrocha,
de Macedo, onde o sol nasce, no leste, a que se desenvolve, ou ainda engendra, produzindo
os Guarani chamam de nhanerenonde (“à nossa diferença sem haver desconexão.
frente”, já que é para lá que devem se voltar os Mais importante do que as singularidades
humanos em sua interlocução com os deuses) dos deuses guarani é portanto a ideia de des-
é onde vivem Nhamandu kuery, cuja potência dobramento ou engendramento, que faz com
é associada ao sol; no oeste, onde o astro so- que eles apareçam ora como um só, ora como
lar se põe, nhandekupe (“às nossas costas”), é a muitos. Em vez de monoteísmo ou politeísmo,
morada dos Tupã kuery, associados ao trovão; os Guarani seriam adeptos daquilo que Gabriel
já a região a que chamam nhandeke (“no nosso Tarde (2007) designou como miriateísmo, uma
lado”), ao norte, vivem Jakaira kuery, associa- proliferação que faz do Um uma modalidade do
dos à neblina, por sua vez vinculada à fumaça Múltiplo e vice-versa, um processo contínuo de
do tabaco por sua potência vivificante (ogue- diferenciação. Da mesma maneira que o demiur-
romonhemonhã; CADOGAN, 1959); e ao sul, go desdobrou-se, gerando os demais deuses aos
nhandekerovaikaty (“do nosso lado na outra di- nomeá-los e segredar-lhes um canto, esses deuses
reção”) vivem Karai kuery, associados ao fogo8. são os engendradores das “almas-palavras” dos
Num patamar mais próximo à terra estão os humanos. A cada Guarani que é gestado na terra
Nhanderu Mirĩ (“pequeno”, expressão também é enviado um nhe’ẽ porã, a “alma-palavra”, na tra-
muitas vezes associada ao que é sublime e pro- dução clássica de Cadogan (1959).
vém das moradas celestes), que foram humanos Como amplamente abordado na li-
e conseguiram adquirir imortalidade, fazendo teratura etnológica voltada para essas

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populações, o nhe’ẽ constitui um nexo deles, e afastariam-se com facilidade, seriam


fundamental entre humanos/Guarani e “mais sensíveis”. A ausência prolongada de algum
aqueles traduzidos como deuses. De prove- dos nhe’ẽ mbyte levaria os outros nhe’ẽ, inclusive o
niência celeste/divina, um nhe’ẽ é enviado nhe’ẽ porã, a abandonar o corpo causando a morte
a cada Guarani que está sendo gestado, e (2013, p. 181).  
posteriormente passa a habitar seu corpo,
investindo-o de atributos de pessoa, com O autor ainda comenta a possível corres-
capacidades singulares de comunicação, pondência de nhe’ẽ mbyte com aquilo que os
compreensão e agência. Daí sua definição Mbya também designam como -ã’ng, o espec-
como “alma-palavra”, que poderia ter como tro corporal, que teria uma porção telúrica e
tradução alternativa “linguagem-afeto” (ou outra celeste. Interlocutores de Macedo (2009;
“afeto-linguagem”), por constituir uma 2011) também mencionam a agência de mais
modulação da força que circula e vincula de um nhe’e, valendo-se das expressões nhe’ẽ porã
os homens e os habitantes imortais dos do- (ou mirĩ) e nhe’ẽ vai (ou guaxu) para distingui-
mínios celestes. Longe de concebê-la como rem aquele de proveniência e destino celeste
construção convencionalizada, portanto, a do que se converte em espectro terrestre após a
linguagem entre os Guarani diz respeito a morte. Este pode ser mais de um, de modo que
um potencial afectivo que adquire modula- as muitas sombras que podem desdobrar-se de
ções específicas a partir de sua proveniên- um corpo, a depender da incidência da luz, são
cia, itinerários e assentamentos. Os nomes índices de sua presença na composição do su-
dão corpo a tais modulações, remetendo à jeito (sendo nhe’ẽ porã a sombra mais clarinha)
proveniência celeste do nhe’ẽ que assentou (MACEDO, 2009, p. 225-226). Já Heurich
no sujeito, maximizando naquele corpo sua reconheceu em sua etnografia a presença de
potência de agir. três almas: ñe’e (alma-divina), ã (alma-telúrica)
Os Guarani Mbya reconhecem outras agên- e ãgy, que nasce com a pessoa mas somente se
cias na composição da pessoa, primordialmen- torna visível durante o sonho (2011, p. 47).
te associadas ao patamar terrestre e ao mundo Não é o caso de mapear as diferentes versões
das coisas perecíveis. Assim descreve Pierri: para a composição da pessoa entre os Mbya,
resultantes de diferentes experiências etnográ-
Em contraste com a dualidade simples entre uma ficas de um amplo conjunto de autores e de
alma-palavra ou princípio vital (com destino) ce- diferentes formulações dos Guarani, a partir
leste, e um espectro corporal (com destino) terres- de seus conhecimentos, relações e experiên-
tre, comumente apresentada na literatura sobre os cias nas aldeias (ver também MELLO, 2006;
Guarani, ouvi observações de que a pessoa seria LADEIRA, 2007; RAMO Y AFFONSO,
formada por outros elementos. Disseram-me que 2014, entre outros). Seja como for, a pessoa
além da nhe’ẽ porã, que provém da (e retorna no constitui-se como multiplicidade individuada,
post-mortem para) sua morada celeste, existem habitada ou atravessada por muitos.
mais duas outras almas ditas nhe’ẽ mbyte [alma Quando mencionam apenas nhe’ẽ, sem es-
do meio]. Enquanto a primeira assenta-se mais pecificações, os Mbya geralmente referem-se a
estavelmente no corpo, e localiza-se entre a nuca nhe’ẽ porã, ao qual se vincula o nome do sujei-
e a parte posterior da cabeça (nhanderapyte), os to e sua conexão com as moradas celestes dos
nhe’ẽ mbyte ficariam fora do corpo, como duplos imortais. Além de participar da composição

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de forças que constitui a pessoa, nhe’ẽ porã é comuns. Eles participam e fortalecem as ses-
também uma multiplicidade individuada, cuja sões de cura xamânica e os cantos e danças na
modulação foi sendo constituída no itinerário opy, a casa ritual onde se efetiva a interlocução
desde sua proveniência até o corpo do sujeito. coletiva com os deuses. Por sua capacidade de
Um conjunto (não consensual) de nomes, mas- proteção, comunicação e agência, os Guarani
culinos e femininos, é associado às diferentes Mbya costumam referir-se a nhe’ẽ como “an-
moradas dos Nhanderu e Nhandexy. Assim, por jos” quando buscam explicar sua existência aos
exemplo, novamente de acordo com os inter- brancos, na língua portuguesa.
locutores de Macedo, uma mulher que se cha-
me Takua (“taquara”, em referência ao bastão Assentamentos
de ritmo feminino) ou Para (“água”), ou um
homem que se chame Tupã (“trovão”), ou Vera Tal cartografia guarani de corpos-afetos em
(“relâmpago”), tem o nhe’ẽ vindo da região do domínios celestes e terrestres nos parece ir ao
sol poente, domínio de Tupã. Por sua vez, tive- encontro da ideia da pessoa como multiplicida-
ram os nhe’ẽ vindos da região do sol nascente, de individuada, em que os nomes/nhe’ẽ promo-
domínio de Nhamandu, os homens que se cha- vem singularidades, ou, na expressão deleuziana
mam Mirĩju (“pequeno brilho dourado”, em re- mobilizada por Goldman, modulações de um
ferência ao sol nascente), Kuaray (outro nome fundo infinito de multiplicidade. Para pensar a
para o sol), Papa ou Xape’i, e as mulheres cha- construção da pessoa no universo do candomblé,
madas Jaxuka, Poty (“flor”) ou Ara (“tempo”). Já Goldman atenta para a dimensão imanente dos
do lado de Jakaira vieram, por exemplo, aque- deuses afro-brasileiros, os orixás ou inkisses, que
les que se chamam Xunû e Jeguaka (“cocar”), não são simplesmente “dados” – personagens mi-
ou aquelas que se chamam Tataxin (“fumaça”) tológicos com características fortemente marca-
ou Yva (“céu”). E do domínio dos Karai vêm das –, devendo também ser feitos, individuados.
aquelas que se chamam Kerexu e uma variedade Os adeptos do candomblé angola conhe-
de nomes masculinos compostos, como Karai cem um número mais ou menos finito de
Tataendy, Karai Mirĩ, entre outros. Todos os orixás distribuídos pelo cosmos, mas haveria
nomes podem ser compostos, correspondendo uma multiplicidade de orixás pessoais que só
a modalizações da individuação que empreen- ganham existência mediante sua feitura em ri-
dem por meio do primeiro nome9. Por exemplo, tuais de iniciação. Iniciar-se seria fazer o santo
há os Vera Popygua (relâmpago e clave de som e ser feito no santo ao mesmo tempo, ganhar
que constitui um dos modos de interlocução um nome de santo. A feitura do orixá seria um
entre os homens e os deuses), Karai Tataendy modo de domesticar forças poderosas e, assim
(“chama da vela”); Para Mirĩ (“pequena água”), sendo, produzir uma singularidade. Cada orixá
Tupã Mirĩ (“pequeno trovão”), entre inúmeros possuiria qualidades diversas e zonas de indis-
outros exemplos que podem inclusive conter cernibilidade com outros orixás, configurando
mais nomes, como o mencionado Papa Mirĩ uma multiplicidade que precisa ser atualizada.
Poty (“divindade das pequenas flores”)10. Trata-se, assim, de um sistema que privilegia
Para além daqueles que habitam os corpos
humanos, nhe’ẽ kuery também transitam entre fluxos contínuos e cortes (e não puras desconti-
domínios celestes e terrestres na forma de pás- nuidades), multiplicidades (e não qualquer dia-
saros ou em corpos invisíveis para os humanos lética entre o um e o múltiplo) e agenciamentos

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eficazes (e não formas de ordenamento e sua im- sempre conta com algum tipo de pedra. Esta,
plementação prática que pode ser transmitido que se torna o orixá após o assentamento, já é o
ou ensinado). (GOLDMAN, 2005, p. 5).   orixá desde o começo, por isso sua escolha não
é tida como arbitrária. Contudo, a pedra precisa
Goldman extrai desse processo de feitura ser feita – lapidada – no ritual para efetivar-se
de orixás e singularização de pessoas uma on- como orixá, ou seja, para que sua positividade
tologia que postula que todos os seres e coisas ou virtualidade seja atualizada (GOLDMAN,
do cosmos são modulações do axé (“força”), os 2009).
orixás sendo a encarnação de uma modulação O axé como fluxo de energia que precisa de
específica do axé, que nada mais é que um fluxo corte e como fonte de individuação de seres e
que precisa ser cortado. Os orixás seriam, assim, coisas pode então nos transportar novamente ao
qualidades gerais que devem ser individuadas. nhe’ẽ no universo mbya, a palavra-fluxo que en-
O autor vislumbra nessa ontologia uma teoria gendra seres e coisas do mundo11. Assim como
da pessoa: entre o Ser dos orixás – ser que deve é preciso fazer, no candomblé, um assentamento
ser melhor compreendido enquanto multiplici- para o orixá, a chegada do nhe’ẽ ao corpo de uma
dade – e o não-ser dos não iniciandos; haveria criança guarani é referida com a expressão gue-
todo um caminho, percorrido por meio dos mimboapyka, “tomar assento”, bem como “ser
cultos e da possessão, em que é possível uma concebido” é nhemboapyka, “ser dado assento12.
espécie de divinização, um devir-deus. Se o Ser “Assentar” revela-se, em ambos os casos, como
dos orixás é inacessível, o devir-deus é possível uma metáfora eficaz para o corte do fluxo.
e nele reside o esforço da fabricação da pessoa. A aproximação do nhe’ẽ e seu assentamento
Assim como tudo que existe, a pessoa pre- no corpo são parte do processo de construção da
cisa ser extraída de um fluxo, individuada. pessoa, que inclui uma série de procedimentos
O ritual de iniciação corresponde, no candom- e cuidados. Inicialmente o nhe’ẽ fica mais pró-
blé, à feitura do santo, efetivando o nexo en- ximo do pai ou da mãe da criança, a qual não
tre iniciando e orixá. Como desenvolvido por deve fazer gestos bruscos, trabalhos pesados ou
Goldman, a divindade é feita ao mesmo tem- se afastar muito de casa, entre outras medidas
po em que o iniciando que deverá ser possuído necessárias para que o nhe’ẽ não se machuque ou
por ela em cerimônias específicas. Mas tanto se perca. O olhar perdido e a falta de controle
pessoas como divindades já existem antes de dos bebês sobre seu corpo indicam a ausência
serem feitas, ainda que não da mesma manei- ou distância do nhe’ẽ. Já o aprendizado da fala
ra (2009, p. 120). A distinção entre os orixás, e do caminhar apontam a presença do nhe’ẽ no
que existem em numero mais ou menos finito, corpo, tempo propício para a revelação do nome
e a multiplicidade intensiva dos orixás pessoais da criança, que irá fortalecer o vínculo entre o
ganha forma pelo uso do termo “santo”, já que nhe’ẽ e corpo, ao situar a pessoa nessa cartografia
nunca se diz “fazer o orixá” e sim “fazer o santo”. cósmica, ou enunciar a “parte de que ela é par-
O iniciando não se faz “santo”, mas é “feito no te”, sua proveniência e destino após deixar esta
santo”, de modo a se transformar com o santo terra. Como traduzido por Cadogan, erymo’ã
e não se transformar nele. O orixá é plantado, a, o “nome mantém erguido o fluxo do dizer”
fixado, simultaneamente na cabeça do filho de (1959, p. 42), de modo que o nome assenta a
santo e no que chamam de assentamento, um linguagem-afeto que ergue o corpo e anima o
conjunto de objetos cuja composição varia, mas sujeito.

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O nome já era da pessoa desde a chegada do de onde veio. É preciso então recorrer a outro
nhe’ẽ, mas o vínculo só se estabiliza quando é xamã para que ele encontre o nome correto da
enunciado, geralmente por um xeramõi (“meu pessoa, de modo a fortalecer o nhe’ẽ e, conco-
avô”, uma das designações mais recorrentes mitantemente, sua saúde e vontade de viver.
para os xamãs e mais velhos sabedores em ge- Outra razão para a mudança de nome é a
ral)13. Os nomes geralmente são comunicados morte do xamã que batizou a pessoa. Dizem os
pelos Nhanderu e Nhandexy a um xeramõi em Mbya que, ao dar o nome, o xamã cria um vín-
sonhos ou durante os cantos-reza. Nhemongarai culo com aquele sujeito que não se interrompe
é uma das designações do ritual coletivo de no- no momento da morte. Assim, a porção agenti-
minação das crianças. Mas a revelação do nome va da parte putrescível do corpo que fica na terra
também pode ser feita de modo particular, por (enquanto o nhe’ẽ volta ao seu domínio celeste),
meio de três dias e três noites de cantos-reza o ãgue, tem maior potencial patogênico junto
e fumaça do petyngua (cachimbo com tabaco) àqueles vinculados ao xamã em vida. Podemos
na opy. Algum dos pais, tios ou pessoas próxi- assim inferir que o xamã não apenas escuta e
mas a eles também podem sonhar com o nome comunica o nome, mas faz (ou desfaz, caso não
da criança, mesmo que não sejam xamãs, mas a nomine corretamente, ou que a afete com seu
geralmente essa revelação deve ser confirmada ãgue) a pessoa, sendo em grande medida res-
por um xeramõi, que assume o lugar de um ini- ponsável por sua saúde e por seus infortúnios.
ciador ou ainda de uma espécie de “padrinho”. Para além da agência do xamã, cabe ao sujei-
O xeramõi escuta o nome da criança e o co- to atualizar constantemente o vínculo com seu
munica, mas em alguma medida ele também nhe’ẽ, fazendo com que ele goste de viver na terra
faz a pessoa, efetuando aquilo que até então e no corpo por meio de práticas como o canto, a
era pura virtualidade, e assim participando da dança, fumar petyngua, comer alguns alimentos
individuação do sujeito. Nomear aqui aparece (entre os quais se destacam avaxi ete, espécie de
como um modo de cortar o fluxo, dar um con- milho, e ka’a, erva-mate), entre muitas outras que
torno, assentar, ao mesmo tempo que atualiza reiteram conexões entre aqueles que vivem na ter-
o nexo entre a pessoa e aquilo em relação ao ra e os habitantes imortais dos domínios celestes.
qual ela se individuou. Por meio do nome, sa- Esse processo constante de construção da
berá a parte de que é parte, para voltarmos à pessoa, por meio das relações que as constituem,
expressão de Papa Mirĩ Poty. Tal individuação pode nos remeter novamente ao universo do
ou feitura da pessoa pode não ser bem sucedi- candomblé, particularmente no que diz respei-
da caso o xamã tenha se equivocado na escuta to aos cuidados dos filhos-de-santo com os ob-
do nome. De modo que entre os diagnósticos jetos investidos da agência dos orixás. Segundo
mais recorrentes de crianças, e mesmo jovens Sansi (2008), referindo-se ao candomblé ketu
ou adultos, que adoecem com frequência, ou no Recôncavo baiano, é preciso compreender a
que não logram se curar de alguma enfermida- relação entre os objetos que compõem os assen-
de – incluindo a melancolia, a falta de discer- tamentos e o corpo dos iniciados. Ambos devem
nimento ou a agressividade desmedida –, é que ser preparados, feitos, seja para serem guarda-
seu nome está errado. Por essa razão, o nhe’ẽ dos ou para dançarem nas festas. Nessa direção,
está desconfortável no corpo, não se acostuma Goldman (2009) conta ter comprado uma es-
(ndovy’ai) nele, como se estivesse no lugar er- tátua de Exu, que ficou em sua casa como um
rado, querendo voltar para o patamar celeste objeto (quase) ornamental. Posteriormente, ele

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A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani) | 295

solicitou a um filho-de-santo que a preparasse Parentesco intensivo e seus


para que ela o protegesse. O filho-de-santo o engendramentos
fez, mas ressalvou que dali em diante seria me-
lhor que o Exu ficasse no terreiro, já que teria É possível notar mais um paralelo entre o
que ser alimentado e cuidado, o que Goldman universo do candomblé e o guarani: o idioma
teria dificuldade em fazer em seu apartamento da filiação é acionado para dar conta da relação
no Rio de Janeiro. Assim, o sujeito e o orixá efe- entre deuses e pessoas. No caso do candomblé,
tuado naquele objeto precisava ser feito (mes- os iniciandos costumam ser chamados de “filho/
mo que já existisse antes disso) e em seguida filha-de-santo” e, posteriormente, alguns deles
constantemente atualizado, ou alimentado, por poderão vir a serem chamados de “pai/mãe-
meio de práticas e cuidados14. de-santo”, caso se desenvolva sua aptidão em
De volta aos Guarani Mbya, a pessoa e preparar novos filhos/filhas-de-santo. O pai ou
aquele que a nomeou ou que lhe são próximos mãe de santo é aquele que agencia as relações
são responsáveis por práticas e cuidados que ga- que efetivam o vínculo do filho de santo com
rantam o vínculo do nhe’ẽ ao corpo e o contro- o orixá que irá tomar posse de seu corpo. Entre
le de seu fluxo, impedindo a desagregação da os Guarani, vimos que aqueles que enviam os
pessoa por meio de adoecimentos ou afecções nhe’ẽ são chamados Nhanderu, “Nosso Pai”, ou
em que ela possa deixar de compartilhar a pers- ainda Nhe’ẽ Ru Ete, “Verdadeiro Pai do Nhe’ẽ”
pectiva humana com seus parentes. Em meio (ou, no caso feminino, Nhandexy e Nhande
a suas incontornáveis singularidades, tanto no Xy Ete), ou ainda Nhandejara, “Nosso Dono”.
candomblé como entre os Guarani a fabricação Ainda, os xamãs também podem ser chamados
da pessoa vai de encontro à dicotomização en- de Nhanderu e vimos que uma das designações
tre o dado e o construído, entre ser e represen- mais recorrentes para os xamãs é xeramõi, “meu
tação. Em um e outro casos, a pessoa precisa ser avô”, mesmo que a relação entre o sujeito e o
construída, mesmo que já existisse desde antes, xamã não espelhe esse grau de parentesco no
ou, na expressão de Goldman, “para que algo que diz respeito às relações genealógicas. Aqui
se torne o que já é”. podemos pensar no campo da filiação menos
Tanto no caso do candomblé como entre os associada à consanguinidade do que a um
Guarani, os deuses protagonizam os agencia- sentido de intensidade, um devir-deus. Nesse
mentos em jogo nesse processo de individua- sentido, outra designação para aqueles com ca-
ção. O problema da “pessoa” aqui descortinado pacidade maximizada de interlocução com os
não deve ser reduzido à conceituação de Mauss, deuses é Karai, nome de uma das divindades.
que a toma como reflexo de categorias sociais. Na nominação, nas curas e nas visões do que
No caso Guarani, as divindades não são as úni- está distante no espaço ou no tempo, o xamã de-
cas a participarem desse processo de individu- sempenha o papel crucial de engendrador, assim
ação, que envolve incorporação de capacidades como o são os “pais-deuses” que enviam o nhe’ẽ.
de animais, plantas, inimigos e outras subjetivi- Tudo se passa como se os xamãs atualizassem,
dades15. Um índice da centralidade dos deuses em diferentes graus ou magnitudes, a potência
na composição da pessoa é o idioma de filiação prototípica desses seres. Não por acaso, a ma-
acionado nas relações estabelecidas com eles. É ximização extrema dessa potência constitui o
para esse idioma e seus desdobramentos afecti- ijaguyje, estado de plenitude em que o sujeito se
vos que a próxima seção se volta. despoja de toda dimensão perecível de seu corpo

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e deixa esta terra para habitar o patamar celeste imagem o “influxo germinal”, como presente
de yvy marã e’ỹ na condição de Nhanderu Mirĩ, na mitologia dos Dogon, implicando um esta-
espécie de “homem-deus” (eram assim chama- do pré-cosmológico anterior às distinções entre
dos, aliás, os “profetas” guarani e tupinambá pe- humano e não humano. Viveiros de Castro as-
los cronistas dos séculos XVI e XVII)16. sinala, com isso, a necessidade de se pensar o
Xamãs guarani e pais/mães de santo seriam parentesco em consonância com a mitologia,
ambos engendradores, estabelecendo relações na qual abundam menções de uniões interes-
de filiação com seus “iniciandos”, a qual não pecíficas. O autor afirma, distanciando-se do
passa necessariamente pela relação consanguí- viés africanista de O Anti-Édipo, que o cosmos
nea ou cognática. Para continuar esse esforço mitológico ameríndio privilegia imagens de
comparativo seria preciso que nos debruçás- aliança intensiva ou “demoníaca” – entre se-
semos mais a fundo sobre as diferenças entre res de natureza diferentes, tais como homens e
essas duas modalidades de “filiação espiritual”, deuses, ou humanos e animais –, em detrimen-
termo deslocado do contexto cristão. Esse es- to daquelas de filiação intensiva – figuras como
forço comparativo não poderá ser perseguido ovos cósmicos, figuras unas que se desdobram
aqui; no entanto, arriscamos dizer que a anti- etc. Estas últimas estariam mais presentes nas
nomia que a literatura antropológica estabe- mitologias africanas, que prezariam pelo valor
leceu entre xamanismo e possessão talvez seja da descendência e pela ideia de ancestralidade.
menor do que se poderia imaginar, exigindo Já nas Américas, as figuras do sogro-canibal, da
um redimensionamento do olhar. Dito de ou- onça ou carniceiro doadores do fogo etc. se-
tro modo, em vez de tipos (concretos ou ideais) riam bem mais salientes.
poderíamos imaginar modulações de um mes- No entanto, ainda acompanhando o autor,
mo problema, que é o do devir. não seria possível negligenciar certas figuras da fi-
Voltemos ao problema da filiação que, em liação intensiva na mitologia ameríndia. Ele cita
ambos os casos, não pressupõe um sentido gene- o exemplo rio-negrino: o mito da cobra-Canoa,
alógico, podendo ser descrita, apenas em princí- em que um ser cromático se desdobra em todas
pio, como “filiação espiritual”. No caso guarani, as diferenças existentes. A cosmogonia guarani
foco deste artigo, estaríamos diante de algo como também apresentaria essa configuração na figura
um modelo vegetal de filiação, já que não pressu- de Nhanderu Ete, mas é importante destacar que
põe reprodução sexuada. Particularmente entre o “parentesco intensivo” mbya não se restringe
os Guarani Mbya, “pais” celestiais engendram ao eixo vertical da filiação, pois produz também
nhe’ẽ com nomes masculinos, e “mães”, nhe’ẽ cônjuges e irmãos. Lembremos que também na
com nomes femininos. Tal configuração poderia mitologia do alto rio Negro, paisagem clássica
conduzir ao conceito deleuze-guattariano de “fi- da descendência na Amazônia, a figura da ger-
liação intensiva” – conceito, vale notar, extraído manidade sobrepõe-se ativamente à da filiação,
da etnografia da África Ocidental. sendo a idade relativa do grupo de germanos
Viveiros de Castro (2007) se vale dessa no- mais saliente do que a filiação propriamente dita
ção desenvolvida em O Anti-Édipo de Deleuze (ANDRELLO, 2013). Ainda de acordo com os
e Guattari (1972), no qual se delineia uma registros de Cadogan (1959), cada Nhanderu
crítica à teoria “humanista” do parentesco, em engendrou suas respectivas esposas, as quais são
que predominam noções “extensivas” de filia- Nhandexy, mães das nhe’ẽ femininas. Há ainda o
ção e aliança. A “filiação intensiva” teria como exemplo da narrativa mítica de Kuaray (“Sol”),

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A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani) | 297

que fabrica seu irmão Jaxy (“Lua”) na versão proveniências cósmicas. Ou seja, em uma fa-
mais recorrente entre os Mbya. De modo que mília cujos irmãos compartilham o mesmo
um corpo não engendra apenas filhos, mas tam- pai e mãe, a filiação de seus respectivos nhe’ẽ
bém cônjuges e irmãos. Nessa direção, quando dependem de seus nomes. Irmãos com o mes-
alguns interlocutores de Macedo mencionam mo nome (por ex., ambos se chamam Tupã,
as moradas celestes, costumam referir-se a seus ou Karai etc.) têm o nhe’ẽ oriundo do mesmo
habitantes como irmãos e irmãs, por exemplo lugar, pois têm o mesmo nhe’ẽ ru ete (pai ver-
que Takuakuery são irmãs de Tupãkuery. Na dadeiro do nhe’ẽ), mas irmãos com diferentes
relação com os deuses, os Guarani Mbya tam- nomes têm diferentes pais do nhe’ẽ, e por ex-
bém frequentemente se posicionam como ir- tensão diferentes proveniências e destinos após
mãos caçulas destes, em referência à paternidade a estadia nesta terra. Assim, cada sujeito é o
primordial de Nhanderu Ete. Em suma, dados ponto articular entre o plano sociológico e o
como filiação, germanidade e conjugalidade se plano cosmológico do parentesco, que não são
confundem de maneira intrigante. necessariamente coincidentes.
O coletivizador kuery é frequentemente No domínio celeste, ou no plano do mito,
acionado na menção aos deuses ou aos donos podemos reconhecer também engendramentos
extrahumanos de diferentes domínios desta terra que não constituem modulações de um mesmo
(ija kuery), nos enviando àquilo que Deleuze e bando, ou “matilha”. Na cosmogonia mbya, ao
Guattari formularam como “potência de ma- lado do deus que se desdobra, há seu irmão e
tilha” em jogo no devir. “Num devir-animal, antagonista Xariã, que se associa ou justapõe à
estamos sempre lidando com uma matilha, um imagem de Anhã17. Há narrativas em que Xariã
bando, uma população, um povoamento, em é reconhecido como engendrador dos brancos,
suma, com uma multiplicidade” (1997, p. 19). outras em que ele aparece como motivo da dis-
Contudo, ressalvam os autores, o devir-animal córdia entre o demiurgo e sua esposa, Nhandexy.
se estabelece com um indivíduo excepcional que A seu turno, Kuaray, o Sol, é filho do de-
efetua essa potência. Cada indivíduo é assim miurgo e sobrinho de Anhã18, ou Xariã. Na ver-
uma multiplicidade infinita, mas uma multi- são mais recorrente entre os Mbya no sudeste
plicidade individuada (1997, p. 39). O mesmo brasileiro, Kuaray faz seu irmão Jaxy, persona-
se passa no devir-deus entre os Guarani. Quem gem atrapalhado que desfaz o que o irmão fez,
se chama Tupã, traz consigo a potência de Tupã remetendo ao complexo mitológico difundido
kuery, os Tupã, ao mesmo tempo que constitui em toda a América do Sul dos gêmeos desseme-
uma modulação singular dessa potência. lhantes e, de modo mais amplo, do “dualismo
Tupã kuery, contudo, encontram-se dis- em perpétuo desequilíbrio” que move o pen-
persos nas aldeias desta terra onde se realiza a samento ameríndio (LÉVI-STRAUSS, 1993).
humanidade, assim como outros nhe’ẽ engen- Anhã é enganado por Kuaray (o qual rouba car-
drados pelos imortais. O nome de cada um ne de seu anzol, ou peixes de sua armadilha, a
sinaliza a origem e o destino post-mortem de depender da versão), mas devora Jaxy (o qual é
seu nhe’ẽ, inserindo a pessoa numa rede de re- mal sucedido em imitar o irmão). Anhã tenta
lações que está além do parentesco no plano imitar Kuaray na criação de seres que povoariam
estritamente sociológico, o qual não espelha a terra, mas suas criações são mal-acabadas ou
a configuração das aldeias celestes. Parentes imperfeitas (como a galinha, sem penas no pes-
consanguíneos podem ter nomes de diferentes coço, ou os porcos e as vacas). Como comenta

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Pierri, os animais domésticos e as criações em mais importante do que distinguir filiação e


geral são considerados invenções de Anhã des- aliança intensivas seria atentar para um pla-
tinadas aos brancos, enquanto os animais sil- no de intensidade, onde sequer essa distinção
vestres seriam destinados aos Guarani por seus pode ser afirmada. É preciso ainda considerar
deuses (2013, p. 63). que a fonte desses desdobramentos já existe
As duas duplas de irmãos – Nhanderu Papa desde sempre como multiplicidade, haja vista a
Tenonde e Anhã; Kuaray e Jaxy – remetem à composição heterodoxa do corpo do demiurgo
cascata de dualismos mobilizada na mitologia acima mencionada e a presença de um irmão
mbya. Pierri atenta para o antagonismo entre o mais velho, Anhã. Note-se ainda que o tema
demiurgo e seu irmão Anhã, em contraste com do dualismo combina-se e mesmo se sobrepõe
a cumplicidade entre Kuaray e seu irmão Jaxy, nessas mitologias ao do desdobramento/engen-
destacando a conexão entre Anhã e os brancos, dramento, expandindo a sugestão de Clastres
e Jaxy e os Guarani. Estes últimos seriam proje- (1974) de que a negação da oposição (tipica-
ções, ou imagens, incompletas e perecíveis dos mente grega) entre o Um e o Múltiplo resol-
deuses. Nas palavras de Pierri: “Há uma conti- ve-se na figura de um certo Dois, motor do
nuidade entre os Guarani e os deuses, pois esses movimento, recusa do princípio de identidade
são seus ancestrais, chamados “nossos irmãos e conjurador de uma hierarquia mais rígida.
mais velhos” (nhanderyke’y kuery). Entretanto, Essas questões foram examinadas por Lima em
o corpo dos Guarani é apenas uma imagem um ensaio sobre Clastres, no qual ela indaga a
(a’ãga’i te ma) do corpo dos deuses, como tudo respeito da relação entre as figuras do dois e do
o que é gerado no mundo terrestre” (2013, p. um, desta vez como equivalente ao múltiplo:
47). A essa relação o autor associa uma sorte
de “platonismo em perpétuo desequilíbrio”, Limito-me a sugerir que o convite de Clastres é
em que a centralidade das categorias sensíveis que entendamos a divindade maior do panteão
e a lógica transformacional contrastariam com mbya, Ñamandu, como um = multiplicidade:
o platonismo clássico. Ainda, Pierri se vale da- divindade, em cujo desdobrar, desdobra-se a si
quilo que Viveiros de Castro (2011) chamou mesma, e as coisas, em seu próprio desdobra-
de diferença contínua – aquela que “vai aumen- mento (LIMA, 2011, p. 632).  
tando ou vai diminuindo, mas nunca acaba”
– para caracterizar a relação com os deuses. Já Tudo se passa como se esse ponto de inflexão
a relação com os brancos estaria na ordem da que faz passar da filiação para a aliança e vice-ver-
descontinuidade, vinculada às oposições biná- sa se emprestasse como mote crucial para pensar
rias (PIERRI, 2013, p. 47). as relações complexas entre humanos e não hu-
Os deuses seriam então pais e irmãos mais manos nesse mundo ameríndio, tupi-guarani e
velhos dos Guarani, assim como Jaxy é irmão e especificamente guarani em termos de um “pa-
criatura de Kuaray. A seu turno, uma narrativa rentesco intensivo”. Como escreve Viveiros de
mbya estabelece um vínculo de afinidade en- Castro, em sua discussão com a teoria não hu-
tre os irmãos Nhanderu Papa Tenonde e Anhã. manista do parentesco de Deleuze e Guattari:
Este último seria irmão e genro do primeiro,
ao casar-se com Takua, filha de Nhanderu Papa A questão, contas feitas, parece-me menos a de
Tenonde (PAPA MIRĨ POTY, 2011). Assim, saber se há uma ou duas alianças, uma ou duas
nesse conjunto de histórias, ou de experiências, filiações, ou se os mitos amazônicos reconhecem

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A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani) | 299

essa filiação primordial etc., que a de determinar o sentido desse laço é em princípio a filiação,
de onde provém essa intensidade (2007, p. 123).  é preciso compreender que esta possui rami-
ficações mais complexas que as reconhecidas
De onde, afinal, provém essa intensidade? como verticais. Pois a relação entre humanos
Voltamos, assim, à expressão de Papa Mirĩ Poty e deuses não é apenas uma relação de filiação
sobre as intensidades que configuram a cartogra- (no sentido genealógico ou mesmo hierárquico
fia do corpo e do cosmos guarani e que deu um do termo), mas sobretudo de devir. E sem essa
título a este artigo: “A parte de que se é parte”. ideia de devir, que transversaliza o cosmos, não
há como constituir a pessoa guarani, pois a sua
Palavra final e desdobramentos sem fim individuação já pressupõe a sua divinização.

A conceptualização guarani de seus deuses, Notas


vinculada à problemática da individuação da
pessoa, depende da conexão estabelecida por 1. Boa parte do que será desenvolvido neste texto diz res-
meio do xamanismo com o mundo celestial. peito aos Guarani Mbya que habitam na região Sul
Tudo se passa, portanto, como se para se fa- e Sudeste do Brasil, cujas redes de parentesco podem
zer pessoa fosse antes preciso devir-deus. Neste ser estendidas ao Paraguai, Uruguai e Argentina. Não
ponto, o mundo ameríndio, e guarani em par- serão tematizadas suas aproximações e distanciamen-
ticular, pode se encontrar com um problema tos em relação a aspectos sociocosmológicos de po-
que habita, ainda que de modo bastante di- pulações guarani falantes de outros dialetos, como os
verso, as religiões afro-brasileiras. Poderíamos Kaiowa e os Nhandeva.
mesmo afirmar que o exercício comparativo 2. Hélène Clastres (1975) refere-se, para os antigos Tupi
que aqui se esboçou com relação ao universo e para os Guarani, a uma “religião sem teologia”, isto
afro-brasileiro permitiu vislumbrar aspectos da é, uma religião sem culto a deuses. Para ela, em vez
etnografia guarani – como a divinização e o pa- de adoração é preciso pensar em um devir-deus. Este
rentesco intensivo – que permaneciam pouco ponto foi fartamente desenvolvido por Viveiros de
explorados. Castro (1986), que compara os deuses canibais ara-
Como vimos, o xamã guarani é responsável weté aos deuses guarani e à insignificância destas cria-
por assentar a linguagem-afeto, nhe’ẽ, no corpo turas celestiais para os antigos Tupinambá, praticantes
da criança por meio do nome. Nominar é indi- de uma “religião do canibalismo”.
viduar, é promover um laço entre uma potên- 3. Há um longo debate na etnologia sobre a influência
cia, associada a uma determinada proveniência do universo cristão entre os Guarani, mobilizando re-
no cosmos, e um corpo. Essa individuação é flexões sobre a natureza das transformações ou mesmo
todavia frágil: pode-se desfazer, ocasionando o descontinuidades das cosmologias guarani em relação
retorno do nhe’ẽ ao local de origem, local de às dos tupi-guarani antigos e amazônicos. Essa não
nhe’ẽ kuery, potência de matilha de Nhanderu e será a nossa ênfase neste texto. Para além da literatura
Nhandexy kuery, deuses-engendradores. clássica, remetemos aos trabalhos de Pompa (2003),
O parentesco intensivo seria, em sua versão Fausto (2005), Macedo (2009), Sztutman (2012),
guarani mbya, justamente isso que une o nhe’ẽ Pierri (2013), entre outros.
de cada pessoa aos Nhe’e Ru e Nhe’e Xy Kuery, 4. A primeira versão deste texto foi apresentada no GT
o coletivo dos pais e mães (ou então dos ger- “Novos modelos comparativos: investigações sobre
manos mais velhos) que habita os céus. Ora, se coletivos afro-indígenas”, realizado na 36a Reunião da

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Anpocs, em 2012, coordenado por Marcio Goldman corda invisível que corresponde a um vento fino) que
e Beatriz Perrone-Moisés. liga o centro da terra aos quatro patamares celestes,
5. Não há espaço aqui para discorrer sobre a maximiza- sendo o mais alto a morada de Nhamandu (2013, p.
ção dessa potência que ocorre entre os xamãs, tampou- 108). O autor ainda apresenta versões em que esse
co processos de iniciação xamânica. mundo celeste é a um só tempo aquático, e que as
6. O tema da nominação é central nos estudos tupi-gua- moradas dos deuses correspondem a ilhas.
rani. Viveiros de Castro (1986) enfatiza a característica 9. Alguns Guarani afirmaram a Macedo que há casos em que
exonímica dos sistemas tupi em contraste com o endo- os nomes compostos indicam a presença de mais de um
nímia dos sistemas jê. Ele denomina os sistemas ono- nhe’ẽ porã, mas a maioria afirma que são modalizações de
másticos tupi de “canibais”, visto que buscam nomes um nhe’ẽ, de modo que o segundo nome indicaria a posi-
no Exterior, por exemplo, entre os inimigos de guerra, ção ou o papel que exerce no domínio celeste de onde veio.
como é o caso clássico dos antigos Tupinambá. No 10. Aqui novamente não se encontra consenso no que diz
mundo guarani, haveria uma transformação do devir- respeito à região de proveniência de cada nome. Por
-inimigo tupinambá em uma espécie de devir-divin- exemplo, de acordo com os informantes de Ladeira
dade; no entanto, o critério de exonímia se manteria. (2007) junto a Nhanderu Ete estão nomes como
Ainda que concebidos como ancestrais, e não como Takua, que segundo os interlocutores de Macedo e os
inimigos (caso Araweté), os deuses seriam Outros e, registros de Cadogan localiza-se em Tupã kuery, no sol
ao mesmo tempo, destino de todo ser humano. poente. Segundo Cadogan, Para vive junto a Tupã, e
7. Cadogan ficou intrigado com a expressão, por geral-

de acordo com Ladeira junto a Nhamandu; Ara vive
mente não ser usada nos cantos que presenciava nas com Nhamandu segundo Cadogan, e junto a Tupã de
aldeias, e sim nos momentos em que os pajés os re- acordo com as informações obtidas por Ladeira, en-
produziam para que ele transcrevesse. Também ou- tre outras discrepâncias. De todo modo, a despeito da
viu de pajés que Papa é uma expressão dos cristãos, variação entre os termos, mantém-se a configuração
mas o autor não descarta a hipótese de ser um termo relacional em que os nomes são distribuídos em dife-
autóctone. rentes domínios de modo a promover individuações
8. Essa disposição corresponde à versão dada por in- naqueles que os portam.
terlocutores mbya de Macedo na mencionada TI 11. Goldman (2005) acrescenta que o axé teria uma fon-
Ribeirão Silveira. Mas ela não é consensual, de modo te comum, Olorum ou Zambi, divindade suprema
que Cadogan (1959), por exemplo, aponta outra que não recebe qualquer culto, mantendo-se de certo
configuração narrada por seus interlocutores mbya modo transcendente. Seria tentador estabelecer um
no Paraguai: Karai corresponde ao leste (onde nasce paralelo entre Olorum e Nhanderu Ete. No entanto,
o Sol), Tupã ao oeste (onde o sol se põe) e Jakaira ao nossa sugestão é que a ideia guarani de desdobramento
zênite. A seu turno, segundo informantes de Ladeira impede qualquer transcendência. Este ponto careceria
(2007) Nhamandu kuery vivem no zênite, enquanto de melhor desenvolvimento.
Nhanderu Ete vive na região do sol nascente. Seja como 12. Para uma aproximação da noção afro-brasileira de
for, a despeito da variação dos termos, pensamos que o axé com o universo ameríndio, ver Vanzolini, neste
que é relevante são as relações implicadas, em que os volume.
deuses se distribuem em diferentes domínios celestes 13. Note-se um paralelo interessante com os antigos Tupi da
com referência ao trajeto do sol. Pierri também atenta costa: quando um matador saía da reclusão, que sucedia
para essas variações e apresenta outras tantas em sua a execução ritual, ele ganhava um novo nome e também
dissertação, havendo uma em que a referência princi- escarificações, objetivando sua relação com o inimi-
pal não é o trajeto do sol e sim um eixo vertical (uma go. Nessa saída, ele devia também entoar para outros

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A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani) | 301

homens adultos certos cantos, reconhecidos como can- BAPTISTA, Josely. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify,
tos apropriados do inimigo. Nesse ato de enunciação – a 2011.
um só tempo de um nome e de um canto – o matador BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai: rituais de
fazia-se uma pessoa plena, podendo inclusive procriar, máscaras no alto Xingu. São Paulo: Edusp, 2008.
fazer outras pessoas (SZTUTMAN, 2012). CADOGAN, León. Ayvurapyta. Textos míticos de los
14. A ideia de que é preciso alimentar certos objetos para Mbyá-Guaranídel Guairá. São Paulo: FFLCH-USP,
manter sua agência ou mesmo amansá-los é algo que 1959.
também se verifica na etnografia das terras baixas sul- CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os ou-
-americanas. Ver, a esse respeito, o cuidado que se tem tros: uma análise do sistema funerário e da noção de pes-
com as máscaras de apapaatai entre os Wauja do alto soa entre os índios Krahó. São Paulo: Brasiliense, 1978.
Xingu (BARCELOS NETO, 2008). CLASTRES, Hélène. Terra sem Mal. O profetismo tupi-
15. Como mencionado, entre os Guarani o sujeito corres- -guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978.
ponde a uma configuração relacional que inclui outros CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. In:
agentes para além do nhe’ẽporã. Há ainda o agenciamen- ____. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac
to de donos (-ja) responsáveis por diferentes estados de Naify, 2003 [1974].
espírito ou sentimentos, tais como poxyja (dono da ______. Do um sem o múltiplo. In: ____. A Sociedade
raiva), takãte’yja (dono do ciúme), tavyreija (dono do contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1974]
desejo sexual), entre outros. Os corpos também podem a.
sofrer o efeito patogênico de donos de diferentes domí- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe:
nios desta terra, como ka’aguyja (donos da mata), yakãja Capitalisme et Schizofrénie. Paris: Eds. de Minuit, 1972.
(donos das nascentes dos rios), itaja (donos das pedras), ______. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São
entre outros com potencial patogênico (ver MELLO, Paulo: Editora 34, 2004 [1980].
2006; MACEDO, 2013; PIERRI, 2013; RAMO Y FAUSTO, Carlos. “Se Deus fosse jaguar: canibalismo e cris-
AFFONSO, 2014, entre outros). tianismo entre os Guarani (séculos XVI-XX)”. Mana, v.
16. Para uma discussão atual sobre o aguyje como transfor- 11, n. 2, p.385-418, Rio de Janeiro, Contracapa, 2005.
mação corporal – como devir capaz de ser efetuado em GALLOIS, Dominique. Movimento na cosmologia
diferentes movimentos, sem implicar necessariamente waiapi: criação, expansão e transformação do universo.
deslocamentos em extensão – ver Macedo (2009) e, de Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
modo mais desenvolvido, Pierri (2013). Antropologia Social, Universidade de São Paulo,
17. Xariã aparece como Nhanderu Mba’ekuaa (mba’e: algo São Paulo, 1988.
ou alguém não-humano; kuaa: conhecer, sabedoria) GOLDMAN, Marcio. Histórias, devires e fetiches das
em alguns registros de Cadogan (1959) ou Mba’ePoxy religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropo-
em versões registradas por Pierri (2013). lógica. Análise Social, v. XLIV, n. 190, 2009.
18. Sobre a figura de Anhã como “efeito-espírito” em ou- ______. Formas do saber e modos do ser: observações so-
tras cosmologias tupi, ver Viveiros de Castro (1986) e bre multiplicidade e ontologia no candomblé. Religião
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autores Valéria Macedo


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP), Professora Adjunta do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (DCS/UNIFESP) e
Pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA)

Renato Sztutman
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP), Professor Adjunto do Departamento
de Antropologia da Universidade de São Paulo (DA/USP) e Pesquisador do
Centro de Estudos Ameríndios (CEstA)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

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303

Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de


matriz africana1

Edgar Rodrigues Barbosa Neto


Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p303-318 invisible, have a significant material side. Because


of this the ritual assemblage of these beings pre-
resumo Este artigo retoma uma parte dos ma- supposes a delicate craftsmanship, which includes
teriais etnográficos relativos à feitiçaria aos quais specific ways of combining and separating certain
dediquei um capítulo de minha tese de doutorado, foods and cooking ingredients, but also the care-
consagrada à descrição de três casas de religião de ful use of certain objects, places and words. This is
matriz africana, todas situadas no sul do Rio Grande the case of the ritual creation involved in witchcraft,
do Sul. Meu objetivo é demonstrar que os espíritos, the main object for this article. To understand it we
não obstante invisíveis, dispõem de um significativo need to describe part of what happens during the
lado material, de tal maneira que o agenciamento initiation rite. The main hypothesis is that ritual
ritual desses seres supõe um delicadíssimo traba- creation is the expression of a transformational rela-
lho artesanal, o qual inclui maneiras específicas de tion between different rites.
aproximar e separar determinados alimentos e in- keywords Witchcraft; Ritual; Aesthetic;
gredientes culinários, mas também o uso cuidadoso African-Brazilian religions; Rio Grande do Sul
de certos objetos, lugares e palavras. Esse é o caso da
criação ritual implicada na feitiçaria, objeto privile- A religião está no detalhe.
giado por este artigo, mas cuja compreensão parece Pai Mano de Oxalá
exigir a descrição de uma parte do que acontece du-
rante o rito de iniciação. Eis, portanto, sua hipótese Este artigo é parte da pesquisa da qual re-
de fundo: a criação ritual é a expressão de uma rela- sultou minha tese de doutorado, e retoma par-
ção de transformação entre diferentes ritos. cialmente, mas sem modificações substanciais,
palavras-chave Feitiçaria; Estética; Ritual; a descrição que dediquei ao complexo ritual da
Religiões de matriz africana no Brasil; Rio Grande feitiçaria (BARBOSA NETO, 2012). O traba-
do Sul. lho de campo foi inteiramente realizado na ci-
dade de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul,
On witchcraft as ritual aesthetic in African- entre os anos de 2006 e 2011. Durante esse pe-
Brazilian religions ríodo, acompanhei a vida cerimonial e cotidia-
na de três casas de religião de matriz africana,
abstract This article returns to part of the cada uma das quais procurei descrever de um
ethnographic data relating to witchcraft to which modo que me permitisse, simultaneamente,
I devoted a chapter of my doctoral dissertation – destacar suas diferenças e integrá-las compara-
a description of three houses of religion of African tivamente em um mesmo conjunto sociocos-
origin located in southern Rio Grande do Sul. My mológico. Tendo em vista que seria impossível
goal here is to demonstrate that spirits, despite retomar aqui essa descrição, fornecerei, no

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


304 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

decorrer do texto, apenas aquelas informações Amazônia, mas cujos efeitos sobre a etnografia
etnográficas que me parecerem mais necessá- dessas duas áreas talvez não sejam simétricos.
rias à compreensão do seu argumento.
Antes de prosseguir, contudo, eu gostaria ***
de esboçar brevemente o que talvez seja um
metacomentário sobre aquilo que o leitor po- O “artífice”, escreveu recentemente Richard
derá encontrar neste texto, e que é também Sennett, é aquele que “focaliza a relação ínti-
uma espécie de explicação acerca de sua rela- ma entre a mão e a cabeça” (SENNETT, 2009,
ção com o tema ao qual é dedicado este dossiê. p. 20). Essa definição, embora suponha uma
A comparação com a etnologia indígena, no orientação teórica estranha ao presente traba-
plano molecular em que este texto a pratica, lho, parece perfeitamente adequada à centrali-
é o dispositivo de contrafeitiçaria do qual dis- dade do “fazer” nas religiões de matriz africana,
põe o antropólogo para descrever as religiões a respeito das quais se pode dizer que são “reli-
de matriz africana como se elas não tivessem giões da mão” (JOHNSON, 2002, p. 35), mas
qualquer relação com um tipo de antropologia também da cabeça, ou ainda, de forma mais
que, durante certo tempo e mesmo ainda hoje, ampla, dos modos pelos quais o corpo, sendo
as capturou (entenda-se enfeitiçou) com suas feito, torna-se igualmente preparado para fazer
poderosas formas molares do tipo “mercado (e/ou desfazer) outros corpos2. “Religiões de
religioso”, “urbanização”, “intelectualização”, artífices”, portanto, mas cuja “matéria-prima”
“invenção da tradição”, “esfera pública”, “so- constitui-se da própria ação dos seres sobre-
ciedade de classes”, “legitimação” etc. – para naturais, os quais, conforme veremos a seguir,
uma crítica decisiva a tudo isso, ver Banaggia tendem a reunir o invisível e o material como
(2008). Entendo que a “morte branca do fei- os dois lados de sua textura cosmológica. Padre
ticeiro negro” (e foram várias), foi, sobretudo, Brazil (1911, p. 228) já havia notado, de for-
um assassinato teórico, isto é, um branquea- ma, aliás, particularmente intrigada, que todos
mento conceitual. O “feiticeiro negro” é um esses seres (ele pensava, sobretudo, nos orixás),
pouco como a filosofia, a qual, para lembrar embora fossem invisíveis, não eram, contudo,
Deleuze, só morre se for assassinada. A aposta imateriais, em particular pelo fato de que co-
deste artigo é que a “indigenização conceitual” mem. “Os deuses”, constatava também Bastide
das religiões de matriz africana, que venho ten- (2001, p. 301), “são grandes comilões”.
tando pensar desde minha tese de doutorado, “Fazer”, no contexto das religiões de matriz
não as torna necessariamente mais parecidas africana, é sempre uma “composição” de forças
com os índios, mas talvez possa torná-las um e agências heterogêneas, distante, portanto, do
pouco mais diferentes dos brancos. A conexão conceito “hilemórfico” de uma matéria inerte
afroindígena é uma estratégia etnográfica de sobre a qual, supostamente, se poderia impri-
autodiferenciação teórica. Em suma, a compa- mir qualquer forma (GOLDMAN, 2009).
ração com a etnologia indígena (com uma certa Criar é, sobretudo, transformar. A maioria
etnologia indígena) é o contrafeitiço conceitual desses processos de transformação, se não mes-
que torna possível inventar outros modos de mo a sua totalidade, supõe uma arte ritual, de
descrição para a feitiçaria nas religiões de ma- natureza amplamente culinária, que consiste
triz africana: eventualmente mais próximos da em saber misturar e separar certos ingredien-
África porque, por exemplo, mais próximos da tes, dentre os quais devemos incluir lugares,

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 305

objetos, animais, palavras etc. Veremos, por Essa diferença não é, contudo, absoluta, e
exemplo, que a fofoca, ou a intriga, constitui, para melhor compreender essa relação com o
em ampla medida, a oralidade do feiticeiro. O estado dos alimentos será necessário abrir um
feitiço, em suma, é o efeito de uma combinação longo intervalo para descrever parcialmente o
complexa, e sempre arriscada, dos ingredientes que acontece durante o “chão”, termo nativo
mencionados acima, e cuja conexão exige, em que designa o ritual de iniciação e sua reno-
todos os casos, a mediação dos mais diferentes vação periódica. Sempre que são oferecidos
espíritos. “Fazer”, devemos ainda acrescentar, é animais para os orixás, é preciso, antes pro-
sempre um “fazer fazer”. priamente do sacrifício, montar suas “frentes”.
Estas são muito variadas e talvez não haja duas
*** casas em que sejam completamente iguais, sen-
do que cada orixá, por sua vez, tem a sua. Uma
Fomos até o mato do Totó, localizado en- constante, no entanto, é o fato de alguns de
tre o Balneário dos Prazeres e a Colônia de seus ingredientes culinários, como o milho, a
Pescadores Z3, às margens da Lagoa dos Patos, batata, o feijão, a mostarda, o amendoim, a
para a realização de um feitiço para o qual seria costela de rês ou de porco, a canjica etc., exi-
usado o Bará Lodê, o orixá da rua que prote- girem o contato com o fogo, que pode oscilar
ge a casa de religião pelo “lado do batuque’3. entre um leve cozimento, passando por outro
Éramos três homens e a senhora a quem se des- mais demorado, ou mesmo pela fritura e pelo
tinava o “serviço”, a qual pôde nos acompanhar assar, até uma completa torragem (noto que
por já ter passado da menopausa, enquanto as essa lista não é jamais indiscriminada, e seus
demais mulheres precisaram aguardar em casa4. itens são cuidadosamente separados de acordo
O pai-de-santo estende uma toalha de papel com cada orixá). As frutas que podem acompa-
vermelho sobre o chão, acima da qual arruma nhar algumas dessas “frentes” mantêm-se com-
o “axé de frente” do Lodê: a cama de milho, um pletamente cruas, com a exceção do coco do
opeté grande no centro e sete pequenos na volta, Xapanã, cuja borda é suavemente queimada na
além de outras sete batatas cozidas e amassadas boca do fogão.
com casca5. Com exceção do opeté, cuja feitura Todas essas “frentes” são minuciosamente
se mantém aqui idêntica àquela usada quando ajeitadas sobre o chão, na sequência de Bará a
a “comida seca” (assim chamada porque elide Oxalá, dispostas da esquerda para a direita, na
o sangue ritual) é oferecida a esse orixá em um perspectiva da pessoa que está de frente para o
contexto não diretamente ligado à feitiçaria, os “quarto-de-santo”, espaço ritual também cha-
demais ingredientes são alterados em detalhes mado de pegi, e no qual estão localizados os
quase imperceptíveis para quem vê de fora. O “assentamentos” dos orixás. Tais “assentamen-
milho é cru e não torrado, e as batatas estão tos” permanecem ao fundo, em prateleiras dis-
misturadas com a casca, o que, alhures, não postas verticalmente junto à parede, e entre eles
deve acontecer. Se “a cozinha é o segredo da re- e as “frentes” ficam as “quartinhas” contendo a
ligião”, como se costuma dizer, vemos que, na água lustral de todos os orixás que irão comer
passagem para a feitiçaria, há uma tendência a na “obrigação”. Estes baixam das prateleiras
misturar um pouco mais as substâncias e tam- para o chão, e é sobre eles, mais especificamen-
bém a elidir a mediação do fogo de cozinha, te sobre as pedras nas quais estão “assentados”,
mantendo os alimentos em estado cru. as quais, por sua vez, se encontram dentro de

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suas respectivas “vasilhas”, que será derramada objetos que devem igualmente comer. A pes-
uma parte do sangue do animal sacrificado. soa mantém sobre a cintura recurvada o duplo
Ninguém come no alto. Mesmo os seres so- material de si mesma. O orixá que come na ca-
brenaturais que comem na cabeça das pessoas beça, come também no corpo, mas aquele que
supõem uma posição mais próxima da terra. O come no corpo, refiro-me ao segundo santo do
“chão”, com efeito, horizontaliza a parte mais ajuntó, não come na cabeça6. A culinária divi-
alta do corpo. na supõe um corpo humano cuidadosamente
A pessoa que vai para o “chão” encontra- diferenciado.
-se (inicialmente) sentada de frente para o A esse primeiro sacrifício, segue-se aquele
“quarto-de-santo”, segurando em seu colo a das aves, galos ou galinhas, e, por fim, o de
“vasilha”, dentro da qual está o ocutá (nome um casal de pombos, os quais, de modo geral,
que designa a pedra ritual), e junto com ele a pertencem a Oxalá. Vale notar que os pombos
“quartinha”, a faca usada por ela (no caso de (que são mortos sem o uso da faca, apenas com
já ser um pai-de-santo), a guia, os búzios que as mãos, em um movimento rápido e preciso
compõem o “assentamento”, e qualquer outro que arranca as suas cabeças) são o que se cha-
objeto que seja coextensivo à morada do ori- ma de “confirmação da obrigação”, isto é, eles
xá, a qual, por sua vez, é identificada com o são sacrificados para confirmar o sacrifício dos
próprio orixá. O primeiro sangue é aquele do animais anteriores, ou, de outro modo, para as-
animal de quatro patas. Sua entrada no espa- segurar que Oxalá aceite a “obrigação”. Trata-
ço ritual é cuidadosa. Vários homens se colo- se de um rito dentro do rito, ocupando nele
cam em seu entorno, e um deles carrega em uma posição metassacrificial semelhante, nesse
sua mão um punhado de verdes que serve para sentido, àquela do padê de Exu registrada pela
atrair o animal e fazê-lo andar até o local em etnografia do candomblé (BASTIDE, 2001).
que será sacrificado. Os homens o conduzem, Mas aquilo que um realiza no começo, o outro
mas são os orixás que o fazem vir. Em algumas realiza do meio para o fim.
casas, se ele soltar um grito, seu sacrifício deve Aquela assimetria entre a cabeça e o corpo
ser imediatamente interrompido. Vestindo a humanos é repetida para cada animal sacrifica-
capa na cor do orixá, ele entra com as patas do. Depois de morto, e após o banho de sangue,
no chão, em um caminhar que deve ser con- sua cabeça é separada de seu corpo e posta ao
tínuo, mas, ao final, é sempre morto no alto. lado da “vasilha” dentro do “quarto-de-santo”.
Não é a pessoa que inclina a cabeça para ficar Dependendo da natureza do ritual, o restante
abaixo do animal, é ele que é erguido para fi- do corpo pode permanecer por algum tempo
car ligeiramente acima daquela. Os dois ficam junto ao chão, disposto sobre a mesa dos ori-
cabeça a cabeça, com uma pequena distância xás, sempre montada rente ao solo, ou então
entre elas. É essa inexpressiva fronteira que o é imediatamente levado para outro lugar, co-
sangue, ao ser vertido, se encarregará de per- zinha ou pátio, para que se proceda às demais
correr, criando, para o orixá, o menor intervalo divisões. A importante exceção é o casal de
entre o alimento e seu suporte. O sangue então porcos destinados aos orixás Odé e Otim, cujo
escorre da cabeça para o rosto, estendendo-se corpo é dividido apenas em um segundo mo-
em seguida pelo corpo e continuando até os mento do ritual. Pai Mano de Oxalá7 explicava
pés, com uma parada importante na altura do que Odé, por ser o caçador, o “dono da fartu-
colo, onde se encontra a “vasilha” com todos os ra”, não deve comer o animal em estado cru.

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 307

Assim, os porcos são assados inteiros (embora animais, juntamente com todas as inhelas e as
já devidamente carneados) e só então têm sua “comidas secas”, permanecem durante três dias
cabeça separada do corpo. Em todos os casos, no chão do pegi, e apenas ao final desse perío-
contudo, a essa separação, segue-se um conjun- do, na noite do terceiro dia, é que são levanta-
to de outras separações internas ao próprio cor- das, em um ritual tão importante quanto o da
po, as quais incluem as patas (cujas unhas, em “matança” e que leva o nome (precisamente) de
se tratando das aves, devem ser cortadas) e de- “levantação”. No momento desse rito, é espe-
terminados órgãos, como o fígado, o coração, a cialmente importante que o pegi esteja, como
moela, os rins, os testículos e o ovário, enquan- se costuma dizer, “florido ou perfumado”, isto
to o restante das vísceras é habitualmente “en- é, ele deve exalar um forte cheiro a podre, pois
tregue na natureza” ou então, conforme o caso, esse é o principal indicativo de que os orixás
é “plantado” (enterrado) nos fundos da casa. aceitaram o que lhes foi oferecido. “É um sinal
Com exceção do ovário e dos testículos, que de fartura, de movimento, de que a obrigação
devem permanecer crus, as demais partes são foi bem aceita”, explica Pai Mano de Oxalá.
cozidas ou então fritas. Daquelas dos animais Digamos então que o podre, nesse contexto,
de quatro patas é feito um cozido chamado sar- é menos uma “transformação natural do cru”
rabulho, que é oferecido às pessoas, enquanto (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 172) do que uma
aquelas das aves, preparadas no dendê, no mel “transformação sobrenatural” do estado varia-
ou em ambos, são oferecidas no “quarto-de- do (cru, cozido, frito) dos alimentos dedicados
-santo” apenas para os orixás. aos deuses. Seu ato de comer parece marcado
“Por que as inhelas não podem permanecer por uma transformação cujo limite final, o es-
cruas?”, perguntei certa vez a Pai Mano de tado desejável, é o apodrecimento. Há mais,
Oxalá8. “Porque essa é a maneira como elas são contudo.
comidas pelos eguns”. “Mas por que o mesmo No dia da “levantação”, todos aqueles ob-
não acontece com os testículos e com o ovário?”, jetos que comeram (note-se aqui que a agên-
acrescentei. “É diferente. Eles permanecem crus cia culinária é estendida para cada objeto que
para não perderem a força vital, já que deles serve de suporte para as divindades) são cuida-
seriam geradas novas vidas”. Lembro de uma dosamente separados da parte orgânica que se
cabrita da Oxum que foi sacrificada quando acumulou sobre eles no decorrer desse perío-
estava prenha, e sem que ninguém soubesse do. Não convém, por outro lado, retirar todo
disso. No momento em que as pessoas depara- o sangue que recobre a pedra, e as penas das
ram com os dois minúsculos fetos, rapidamente aves que estiverem muito coladas à sua superfí-
trouxeram uma bacia branca para que pudes- cie, geralmente aquelas que foram retiradas do
sem montar, dentro dela, uma cama de canjica peito, também devem permanecer. O ocutá é
amarela cozida sobre a qual ambos foram esten- suavemente tocado com um pano, nunca es-
didos, completamente crus, e com suas cabeci- fregado com força, e assim, com esse método
nhas voltadas na direção dos “assentamentos”. alheio a qualquer pressa, tira-se dele o que pode
Vê-se, portanto, que se os eguns, na culinária ser tirado, para logo em seguida devolvê-lo ao
ritual, comem tudo cru, daí não se segue que interior da “vasilha” na qual permanecerá até
os orixás comam tudo cozido, frito ou assado. a próxima “obrigação”. Mas antes de recolocar
O cru contém força vital, e o podre, deve- os “pais” de volta na prateleira, passa-se sobre
mos agora acrescentar, também. As cabeças dos cada pedra o elemento correspondente ao orixá

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a que pertence (dendê, mel ou ambos), repe- apodrecesse mais rápido. Tratava-se de ofere-
tindo-se o mesmo gesto para as paredes inter- cer a carne crua daquele guisado em forma de
nas do alguidar, junto às quais são derramadas gente para que o espírito apodrecesse o corpo
algumas gotas de um ou de outro. Os demais da pessoa. Foi exatamente sobre esse boneco
objetos são lavados no mieró (um preparado que o pai-de-santo matou o galo destinado ao
ritual composto por diferentes ervas) e imedia- exu que iria executar o feitiço. Um dos modos
tamente dispostos ao redor do ocutá dentro da que esse exu adotava para se manifestar era por
“vasilha”. O “assentamento” está então prepa- meio de um odor especialmente fétido que, em
rado para voltar à posição mais alta do pegi. contextos de feitiçaria, sempre podíamos sentir
Restam, contudo, as cabeças dos animais quando nos aproximávamos do seu “assenta-
sacrificados. Elas são sempre levantadas por úl- mento”. Mas essa sua ligação com o “mundo
timo, e é nesse momento, na casa de Pai Luis podre” era muitas vezes revertida a favor das
da Oyá, que os orixás devem chegar.9 Começa- pessoas, e ele então invertia o “apodrecimento”
se então a cantar para eles, e Pai Luis da Oyá em curso de algum órgão seu que porventura
adentra o pegi para trazê-las uma a uma. Ele estivesse doente: o axé por meio do qual se faz
volta em meio ao canto e à dança, e se dedica guerra é também aquele pelo qual se cura.
a passar cada cabeça rente ao rosto dos inicia- Voltemos agora ao Bará Lodê com o qual co-
dos, alguns dos quais caem imediatamente em meçamos. De um lado, ele come o torrado e o
transe. Todos os orixás que, nessa hora, vêm cru, de outro, apenas o cru. A presença da cacha-
ao mundo, seguram as cabeças entre suas duas ça acrescenta outro ingrediente feiticeiro àquele
mãos, enfiando a boca por baixo da linha do axé. Lodê é um orixá, mas é mais um exu; a ca-
pescoço, ingerindo, com esse gesto, uma peque- chaça, contudo, não é indiscriminadamente ofe-
na parte daquela carne transformada. Aqueles recida a ele, ao contrário do que acontece com
que não experimentam a possessão sentem o os exus, para os quais ela está invariavelmente
cheiro putrefato que exala daquelas cabeças presente. Vemos, portanto, que, na feitiçaria,
que os deuses apertam entre os dentes enquan- aquele intervalo (entre orixás e exus) desde sem-
to dançam no mundo. O odor consubstancia. pre pequeno torna-se ainda menor, praticamen-
Os orixás comem dentro de todo o espectro te nulo; da mesma maneira que, se fosse o caso
culinário, e assim, se a feitiçaria elide, de modo de dar a cabeça de uma pessoa para Lodê, esse
geral, o fogo de cozinha, o “chão” (o ritual de intervalo seria necessariamente aumentado.
iniciação) não necessariamente subtrai o cru. O pai-de-santo se afasta até a boca do mato
Um único estado pode, portanto, conter os e faz a chamada com a sineta, voltando de costas
dois lados, o mesmo acontecendo com o podre. na direção do feitiço, enquanto derrama sobre
Lembro de um feitiço para o qual foi utilizado o chão algumas gotas de cachaça, as quais for-
um boneco feito inteiramente de carne crua, mam a trilha que indica o caminho. Um papel
em cujo rosto os olhos eram marcados por dois contendo o nome completo da pessoa (contra a
milhos crus e a boca, por outros três. O alvo era qual é destinado o feitiço) e seu respectivo ende-
um segundo pai-de-santo e o objetivo era, ini- reço é posto junto à cama de milho cru. Sobre
cialmente, atingir sua visão e sua fala, dois sen- ela, é sacrificado um galo vermelho, o preferido
tidos fundamentais para qualquer um que seja de Lodê, e seu corpo é completamente quebra-
chefe de uma “casa de religião”. Explicaram-me do, começando pelas asas, depois as patas e, por
que a carne deveria estar crua para que assim fim, o tronco, um gesto que não se repetiria se

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 309

ele estivesse sendo oferecido em outro contexto é análogo nos muitos casos: as conexões que ele
ritual, tal como, por exemplo, o da iniciação. sempre faz e desfaz não são feitas e desfeitas da
Assim, ao invés de ser cuidadosamente aberto mesma maneira. O “estranho prato” que resulta
para que sejam separadas suas partes internas, dessa inversão do animal – cujas partes internas,
o corpo aqui permanece fechado, porém não cuidadosamente separadas, e também a cabe-
inteiro. Digamos que a descontinuidade passa ça, são distribuídas pelo avesso na tigela que o
de dentro para fora, e enquanto a primeira se contém – é ofertado a Exu, mas não, contudo,
destina à criação de uma consubstancialidade “para lhe dar prazer”, e sim, dada a inversão que
pela distribuição das diferentes partes entre os o compõe, para “provavelmente [...] provocar a
humanos e os deuses, compondo, portanto, sua ira” (OPIPARI, 2009, p. 161).
uma “boa proximidade” entre eles, a segunda é Ao ser quebrado, o galo do Lodê tem altera-
destinada à fabricação de um “axé de miséria”, da a maneira pela qual seria oferecido a ele em
cheio de consequências nefastas para a pessoa. outro ritual, despertando-lhe, com isso, a fúria.
“Quebra-se o corpo do galo para quebrar as for- O galo foi degolado pelo pai-de-santo, mas é
ças do inimigo”, explica o pai-de-santo. a própria senhora que nos acompanha quem
O galo é “posto em participação” com a se encarrega de quebrá-lo, enquanto ele, ob-
pessoa que se quer atacar: saltando o intervalo servando-a atentamente, acrescenta: “Põe mais
resultante de sua ausência, faz que, naquele mo- raiva aí!”. O pai-de-santo toma então um gole
mento, ela seja a própria ave. Essa equivalência da cachaça e imediatamente esborrifa o axé que
não é incomum na etnografia. Carmen Opipari se encontra deitado sobre o chão. Ao final, em
se deparou com ela na minuciosa descrição que tom de brincadeira, ele diz: “Está feito o feitiço”.
fez de um feitiço, provavelmente a mais comple- Outro pai-de-santo contou que uma conheci-
ta de que dispomos na literatura. “Se todo sacri- díssima mãe-de-santo pediu, certa vez, a um de
fico encerra um princípio de substituição [...], seus filhos que se virasse de costas para ela, e tão
este gesto parece aqui torná-lo explícito: o galo e logo este a obedeceu, desfechou-lhe um violen-
o marido, agora, são uma só vítima” (OPIPARI, to golpe de chicote, deixando-o profundamente
2009, p. 161). A substituição, como se pode ver, furioso. Quando ele se virou de volta, tomando
não é uma operação homogênea na passagem pela raiva, ela lhe pediu que fizesse um “servici-
entre os diferentes rituais. No sacrifício atua- nho”. O próprio pai-de-santo que me relatou
lizado pela iniciação, ou pela sua renovação, o esse episódio fazia eventualmente uso da técni-
animal está ali para que a pessoa esteja apenas ca que ele descreve. Enquanto alguns de seus
como suporte, mas quando passamos para a fei- filhos-de-santo preparavam o feitiço, ele ficava
tiçaria, a pessoa, fisicamente ausente, é substi- ao lado dizendo-lhes coisas horríveis.
tuída pelo galo que, no entanto, é ela própria. A feitiçaria, em todos esses casos, é uma ação
As várias possibilidades de atualização ritual que ritual que conecta, de maneira particularmente
a operação do sacrifício comporta supõem for- complexa, um conjunto de várias ações: a alte-
mas particulares de modalizar a relação com o ração culinária que provoca a ira do espírito; a
corpo visado. Precisamente por isso, como mui- mão do pai-de-santo que sacrifica o animal e
to bem descreve Opipari, Galo Preto (o espíri- as palavras que ele pronuncia ao fazer a “cha-
to utilizado na realização do feitiço) inverte os mada”; a pessoa que se dedica a quebrá-lo com
gestos sacrificiais como modo de atualizar por raiva para entrar em ressonância com a disposi-
diferenciação essa operação cujo funcionamento ção moral do espírito e, com isso, potencializar

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310 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

a eficácia do ritual; e, por fim, o próprio animal possui seu calendário particular, com períodos,
que é simultaneamente um mediador e a pes- dias e horas que são como os seus momentos
soa que se quer atingir. O sentimento moral e a fortes. Todas as datas nas quais são fechados os
culinária sacrificial constituem pontos de con- “quartos-de-santo”, quando então se evita cuida-
vergência que nos mostram que o feiticeiro é dosamente a realização de rituais para os orixás,
menos um indivíduo do que uma composição sobretudo aqueles que envolvam o sacrifício de
de agências. O feiticeiro é uma pessoa feita de animais, são circunstâncias especialmente propí-
outras pessoas, e o feitiço, a síntese heterogênea cias à feitiçaria. Assim acontece com o Carnaval,
de muitos gestos. Devemos ainda notar que a a Semana Santa (sobretudo a Sexta-Feira da
feitiçaria é uma prática que se alimenta da expe- Paixão), o dia de finados, o mês de agosto, aos
riência de sentimentos (raiva, ira, mas também quais devemos acrescentar determinadas horas
inveja) que, por definição, está aberta para to- do dia, como todas aquelas que o tornam divisí-
das as pessoas. Há alguma coisa da multiplici- vel por quatro (seis horas da manhã e seis horas
dade do feiticeiro que está em todo o mundo. da tarde, meio-dia e meia-noite), as duas últimas
Não presenciei feitiço algum que prescindisse denominadas de “hora grande”.
da mediação de algum ser sobrenatural. Existem Seguramente não é por acaso que esses se-
situações nas quais pode inclusive haver mais de jam os períodos que Bastide (2001), sem, no
um ou até mesmo uma miríade de outros espí- entanto, mencionar a feitiçaria, descrevia como
ritos, em geral eguns. A pessoa faz o feitiço pas- de “caos e recriação do mundo”, “de destruição
sando-o para um segundo espírito que o passa, da ordem normal e de restabelecimento da har-
por sua vez, a outros espíritos. É isso o que acon- monia perdida”, “momentos de confusão” que
tece quando, por exemplo, um orixá distribui a irrompiam no mundo e dos quais o Carnaval
função para outro que seja seu “escravo”, como e a Semana Santa forneciam, segundo ele, a
um egum ou talvez um exu; o próprio exu, em imagem principal (BASTIDE, 2001, p. 96).
certos casos, pode fazer o mesmo, repassando a É por dentro de sua própria teoria do “cosmos
tarefa a um egum. Essa “terceirização” da feitiça- compartimentado” que busca uma explica-
ria supõe a possibilidade de que o feitiço seja, si- ção, retomando, para tal, as conhecidas descri-
multaneamente, uma relação entre um humano ções do Carnaval como um rito de inversão e
(ou vários) e um ser sobrenatural, e também uma mistura, no qual são “violados todos os tabus
relação interna ao mundo desses outros, de tal de contato” etc. (BASTIDE 2001, p. 96).
modo que sua realização torna-se o resultado de “O Carnaval destrói a compartimentação do
uma série de mediações, em cujo encadeamento, real, fazendo tudo participar de tudo”, enquanto
contudo, sempre pode haver algum corte. Esse “a Semana Santa, por seu turno, destrói aos olhos
é um dos modos pelo qual ele pode dar errado. dos cristãos os próprios fundamentos da hierar-
Um feitiço pode não funcionar porque a cone- quia cósmica [...]” (BASTIDE, 2001, p. 98).
xão foi cortada, e veremos posteriormente uma O Carnaval é um rito que tende para o
ou duas razões que explicam esse corte. contínuo, elidindo a classificação por estender
indefinidamente a participação, tornando o
*** mundo especialmente vulnerável à ação de for-
ças perigosas, associadas ao caos e à desordem.
A feitiçaria é uma ação ritual que pode ser É claro que Bastide, seguindo aqui o mesmo
realizada em qualquer ocasião, mas ela também procedimento usado por ele na descrição da

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 311

divindade Exu, dialetiza o contínuo, engloban- ritual do mel, pelo menos nesse contexto, é
do-o no ciclo ritual da regeneração e, portanto, análoga àquela que é frequentemente atribuída
na ordem do mundo. A feitiçaria, contudo, é aos mortos, os quais dispõem de uma baixís-
o termo ausente de sua descrição, e é ele que sima capacidade de estabelecer diferenciações,
subitamente aparece quando passamos de seu fazendo com que sejam, pelo menos em tese,
material para aquele com o qual se ocupa este mais facilmente manipuláveis nos ritos com
artigo. Digamos então que a feitiçaria é como finalidades feiticeiras. Assim, se a ação de en-
um carnaval o tempo inteiro. Precisamente por feitiçar aproxima o sistema do lado dos mor-
liberar a participação da classificação, proce- tos, no movimento inverso, isto é, quando o
dendo, inclusive, a inversões sistemáticas sobre feitiço envolve os próprios orixás, em particular
essa última, pondo em contato o que, por ou- os mais velhos dentre eles, é então o próprio
tro lado, se mantém separado, é que a feitiçaria enfeitiçado que se torna, do ponto de vista dos
dispõe de uma impressionante potência car- efeitos que o mel produz sobre ele, mais próxi-
navalizante, a qual, no entanto, visa menos a mo de um morto, donde sua virtual imobilida-
provocar o riso do que a fúria. O carnaval é um de. Certa vez, ao comunicar a Pai Luis da Oyá
rito específico dentro de um calendário, mas é que iria participar de um arissum (nome pelo
também um “lado” continuamente presente de qual é conhecido o rito fúnebre), ele me reco-
tudo aquilo que existe. mendou enfaticamente que nunca parasse de
Passo agora à descrição de um feitiço para mexer alguma parte do corpo, mesmo quando
o qual se usa Oxalá. Ele me foi transmitido estivesse sentado. Movimentar o corpo é uma
como uma fórmula, e nunca o vi ser posto em maneira de dizer que não se está morto. A subs-
prática pela pessoa que me fez o relato. De um tância usada para acalmar o “povo do dendê”
modo geral, os orixás mais velhos, aqueles que (os orixás mais novos cuja culinária inclui o
compõem o “povo do mel”, Oxum, Iemanjá e dendê) é também a mesma usada para roubar
Oxalá, são usados para os feitiços denomina- o movimento humano. Os orixás mais velhos,
dos de “adoçamento”, os quais constam entre aqueles que estão, em certo sentido, mais aci-
os mais frequentes no cotidiano ritual de uma ma, também têm o seu “outro lado”. Pai Luis
“casa de religião”. A técnica aqui é variadíssima, sempre dizia: “o povo do mel é o povo mais
dependendo, entre outras coisas, do quanto se sinistro”.
quer “adoçar” alguém e, sobretudo, do propó- O feitiço que se segue parece se apoiar em
sito associado a esse “adoçamento”. grande medida sobre esse aspecto menos “mi-
Na maioria dos casos, o uso feiticeiro do sericordioso” do “povo do mel”. Aquela sepa-
mel é destinado a subtrair o discernimento de ração entre o mel e o dendê, as substâncias
uma pessoa, a fazer diminuir suas capacidades sensíveis usadas para organizar os orixás em
discriminatórias, tornando-a completamente dois grandes conjuntos, é maior para o mel do
cega para uma situação. Trata-se de um feitiço que para o dendê. Este pode receber um pou-
usado quando se quer manipular a ação de al- co daquele, mas o inverso não é verdadeiro.
guém, fazendo com que ela se torne favorável Porém isso só vale quando estamos no contex-
àquele que o fez. Usado em quantidade exces- to ritual ligado ao “chão” (à iniciação), e assim,
siva, o mel amortece inteiramente os sentidos, quando passamos para outro mais próximo da
imobilizando a pessoa e retirando dela a von- feitiçaria, o intervalo igualmente diminui para
tade de empreender qualquer coisa. A posição o lado do mel. O feitiço abaixo visa a enganar

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312 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

a classificação, invertendo as substâncias sensí- canjica branca dever ser cozida até passar um
veis que a organizam. É trocando os deuses de pouco do ponto, sem, contudo, deixá-la ama-
lugar que se pode provocar sua ira, em um ges- relar. Uma canjica de cor amarela, se for feita
to que se alimenta de uma disposição continu- com mel, pertence a Oxum, se feita com den-
amente presente, apenas atualizando-a em um dê, pertence a Obá. Se não observado, o deta-
momento específico. De resto, e conforme se lhe do cozimento, ao qual se associa à mudança
verá, é bastante significativo que o local da en- da cor do alimento, pode trocar um deus pelo
trega seja a encruzilhada, geralmente associada outro. Se deus, como já se disse, existe no deta-
a Exu, pois há um mito, glosado por Bastide, lhe, aqui os deuses existem nos detalhes daqui-
no qual ele aparece como aquele que faz as di- lo que comem.
vindades trocarem de lugar, com consequências A essa canjica cozida nem de menos, nem
desastrosas para Oxalá, que se opõe comple- demais, acrescenta-se o mel e o coco ralado.
tamente a todas essas mudanças resultantes Da mistura dos três resulta uma massa, um
daquelas “peregrinações divinas” (BASTIDE, bolo, que, com a ajuda do molde de papelão e
2001, p. 184). Se todo enfeitiçado é, em parte, da bandeja, deve ser usado para esculpir a mão
como um morto, talvez todo feiticeiro seja um da pessoa. Depois disso, joga-se fora o molde.
pouco como exu, cuja função, nesse contexto, é A vela, que deverá permanecer acesa durante
ligeiramente diversa daquela de um “regulador sete dias dentro do pegi, é passada pelo corpo
do cosmos” que impede “os encontros brutais da pessoa, compondo um triplo movimento:
das forças da natureza que poderiam se traduzir passa-se em cima e embaixo, do lado direi-
por choques fatais” (BASTIDE, 2001, p. 183). to e do lado esquerdo, na frente e nas costas.
O “lado” Oxalá de Exu, que Bastide parece pri- O serviço duplica o desenho do corpo tomando
vilegiar, transforma-se no “lado” Exu de Oxalá. como referência sua geometria tridimensional:
O feitiço se chama “Mão Virada do Oxalá”, alto e baixo, direita e esquerda, frente e fundos.
mas para que se possa entendê-lo é preciso co- Cantando as rezas dos cinco Oxalás
meçar por aquele que é o seu símile ao con- (Obocum, Olocum, Dacum, Jobocum e
trário, a “Mão do Oxalá”. Trata-se, com efeito, Orumilaia), entrega-se esse serviço na fren-
de dois feitiços que se apresentam em remissão te do “quarto-de-santo”, aproveitando-se esse
recíproca e inversa. Oxalá é o orixá mais velho, momento para pedir todas as coisas boas que
e está associado à sabedoria e à clareza que cada se deseja alcançar. O ideal é que esse serviço
pessoa deve buscar na relação que mantém con- seja feito ou em um domingo (que é o dia dos
sigo mesma. A “Mão do Oxalá” serve para que Oxalás Jobocum e Orumilaia), ou em uma
essa relação aconteça da melhor forma possí- quarta-feira (que é o dia dos outros três Oxalás,
vel. É um serviço destinado exclusivamente ao e também da Obá e dos Xapanãs Jubeteí,
bem, usado em casos como de “doenças men- Belujá e Sapatá) ou ainda em uma sexta (que
tais”, “depressão”, “perda de concentração”. é o dia do Bará Agelú, do Odé, da Otim e das
As substâncias usadas são aquelas de predi- Iemanjás Bocí, Bomi e Nanã Burukun). Nesse
leção desse orixá, como a canjica branca, o mel mesmo dia, deve-se dar um banho na pessoa
e o coco ralado. Além delas, utiliza-se também com a água da canjica, acrescentada de funcho.
uma vela branca de sete dias, um molde em pa- Durante vinte e quatro horas, essa pessoa não
pelão da mão da pessoa que é objeto do serviço poderá tomar outro banho. Ao final de sete
e uma bandeja de cor branca ou prateada. A dias, retira-se o serviço do pegi para levá-lo até a

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 313

praia, onde será despachado depois das devidas encruzilhada fechada, portanto. Quatro bifes
saudações a Oxalá e Iemanjá. O “povo do mel” de fígado de rês, todos crus, e dentro dos quais
é também um “povo da praia”. se colocam alguns pregos, juntamente com a
A “Mão Virada do Oxalá” é o “outro lado” cachaça e as velas, na cor branca ou preta, são
desse serviço. Dá-se a Oxalá substâncias de oferecidos aos eguns em cada um dos seus três
predileção do “povo do dendê”, ou então mais cantos. O feitiço para Oxalá é posto no meio,
próximas a ele. A canjica branca e o coco ra- mais ou menos na intersecção das três pontas.
lado se mantêm, mas o mel sai, e em seu lu- O duplo da mão é disposto sobre uma toa-
gar entram ingredientes estranhos a um lado lha de papel preto, e embaixo dele fica o molde
de sua culinária, por exemplo, vários tipos de que foi utilizado para fazê-lo. Oito velas são
pimenta e também cachaça. A operação, nesse acesas de forma virada, isto é, enterrando-se o
primeiro momento, consiste em transformar a pavio e acendendo-as ao contrário, deixando
cor dos ingredientes. É preciso fazê-los passar para cima a sua parte de baixo. O nome da pes-
do branco para um tom mais opaco, o mais soa será escrito com letra de forma, e também
próximo possível do preto. A mudança da cor de trás para frente, em cada uma dessas velas,
visa a aproximar Oxalá – orixá que sempre ves- as quais serão dispostas ao redor da mão, for-
te branco, que come animais brancos e cuja mando um círculo. Oito copos de cachaça são
“comida seca” também é predominantemente servidos para Oxalá, e, por fim, joga-se sobre o
branca – do preto, cor que está mais perto dos axé algumas das pimentas, dizendo que foi uma
mortos e dos exus. Oxalá vira no seu contrário terceira pessoa, alguém que seja das relações
ao ser aproximado daquilo que é mais distan- daquele que se quer atacar, que mandou entre-
te dele. A conjunção do que está mais acima gar tudo aquilo. Em voz alta, o entregador diz
com o que está mais embaixo põe em variação a frase que consuma o feitiço: “Fulano mandou
sua posição mais regular, deixando-o irado por entregar em nome de Beltrano tal bandeja para
isso, sentimento que o leva a assumir a forma Oxalá, pois ele disse saber que todos os Oxalás
de uma potência feiticeira. são fracos”.
O coco ralado e a farinha de mandioca são Esse serviço é preferencialmente entregue
misturados e temperados com sal, pimenta e ao meio-dia de uma segunda-feira, que é o
azeite de dendê, do que resulta uma farofa es- dia dos Barás Légba, Lodê, Lanã e Adague, do
pecialmente escura. A canjica branca é cozida Ogum Avagã e do Ossanha, todos eles orixás do
e depois escorrida, para em seguida ser leva- dendê. Cada um dos horários que divide o dia
da ao forno, onde deverá ser assada até tostar, em quatro partes simétricas é considerado um
assumindo, ao final, uma cor preta ou muito momento adequado à prática da feitiçaria. Já a
próxima a esta. A partir daí, ela é esmagada até escolha do dia, por sua vez, se deve à presença
se transformar em um pó preto que será mistu- de três orixás da rua (Légba, Lodê e Avagâ), os
rado com a farofa. Acrescentando-se a cachaça, quais, por estarem identificados com a defesa
faz-se a massa com a qual será moldada a mão de algumas “casas de religião”, constam entre
da pessoa que se quer atingir com o feitiço. os mais furiosos. O que se pretende com esse
Essa mão duplicada em forma de bolo deve feitiço é “fechar o cruzeiro”, trancando em to-
ter um tamanho similar àquela da pessoa, e das as direções os caminhos da pessoa.
será entregue em uma encruzilhada que pos- Aquele que está entregando o feitiço, o pai
sua forma de T e não em X ou em +. Uma ou a mãe-de-santo, deve fazê-lo com as mãos

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314 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

cobertas com luvas ou com algum saco preto, de entregue o “serviço”, são tomadas as últimas
para que Oxalá não possa reconhecê-lo. Da precauções: alguém que seja da confiança do
mesma forma, evita-se escrever o nome da ví- feitor, de preferência um de seus filhos-de-san-
tima usando sua caligrafia habitual: se a letra to, espera por ele na esquina de sua casa a fim
possuir uma caída para a direita, procura-se do- de esborrifá-lo com a água da “quartinha” do
brá-la para a esquerda, e vice-versa. Em outros principal exu do terreiro. Já de volta, ele toma
casos, o entregador pode também se disfarçar: um banho de sete ervas, faz alguns pontos de
se for homem, veste-se de mulher, se for mu- pólvora na casa e também a defuma, para asse-
lher, veste-se de homem. gurar-se de que vá embora qualquer egum que
Mesmo antes de entregar o feitiço, ainda porventura o tenha seguido. Por fim, ao anoite-
no domingo imediatamente anterior, o feitor cer, ele entrega, agora na casinha dos exus, uma
do trabalho deve fazer uma “bandeja comple- bandeja para o Seu Omulu, que é o dono do
ta para Oxalá”, a qual deverá conter todos os cemitério, pedindo que ele o proteja e também
alimentos prediletos desse orixá. A feitiçaria à pessoa que solicitou o feitiço.
começa por um ritual de agrado e não de agres- A fofoca, “o fuxico de santo”, é um dos te-
são. Essa bandeja será entregue no “quarto-de- mas mais conhecidos na etnografia afro-brasi-
-santo” em nome daquele que solicitou o feitiço leira, mas aqui parece que estamos diante de
e de quem o fez. Chama-se a isso de o “calço do uma importante variação quanto à natureza de
serviço”’. Outra mãe-de-santo explicava que o sua operação. Vejamos, por exemplo, esse ou-
calço é a segurança do feiticeiro. tro feitiço, expressivamente denominado “Axé
de Pimenta para Maria Molambo”. Mistura-se
O santo faz o mal, mas ele pesa, pondera muito. cachaça a um preparado que inclui sete tipos de
Tudo que é de santo é muito lento. Tu vais espe- pimenta, cinzas de cigarro (em geral associadas
rar vinte anos. Mas podes preparar uma comida aos eguns) e pedaços de jornal. Depositado em
com carne podre e dizer que fui eu que mandei. uma panela, é continuamente mexido em for-
Antes tu entregas a boa e depois a ruim. Para ma de cruz, sempre pedindo o que deve acon-
todos os santos, quando vais fazer o mal, tens tecer com a pessoa, até que, seca a cachaça, ele
que fazer o bem e o mal. O bom para ti e o ruim é levado para uma encruzilhada fechada (em
para aquele que tu queres tocar. A primeira é forma de T) ou então para um lixão. O axé é
para te segurar. O bem te protege do mal que ofertado a Molambo dizendo que os nomes
vais fazer.   que estão ali naquela mistura são de pessoas
que não acreditam nela, que a acham fraca, as
Nenhum feitiço, em geral, é feito sem que mesmas que mandaram lhe entregar essa enco-
se considere a possibilidade do desenfeitiça- menda. Ao deixar o lugar, não se olha para trás.
mento, que, nesse caso, seria sua devolução A feitiçaria, em ambos os casos, é a trans-
para quem o fez: o feitiço já contém em si a posição da intriga para a relação entre os hu-
forma de anular a própria tentativa de anulá- manos e os seres sobrenaturais, algo como a
-lo. A feitiçaria começa por um rito oposto à continuação cosmológica da fofoca. É sig-
contrafeitiçaria. nificativo que esse seja também um tema
Mas a prudência exige que também se con- recorrente entre alguns dos vários mitos as-
sidere a hipótese de que esse dispositivo de me- sociados aos orixás, nos quais podemos vê-
tafeitiçaria possa não funcionar, e assim, depois -los em uma posição rigorosamente análoga

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 315

àquela dos feiticeiros acima. O mais conhe- se quer enfeitiçar. Como se vê, a realização do
cido, e provavelmente o mais difundido, feitiço supõe uma troca de posições entre o fei-
talvez seja aquele que conta como Obá ar- ticeiro e o enfeitiçado. O feiticeiro, enfim, tal-
rancou sua própria orelha. Obá, juntamente vez seja o outro, mas não exatamente do modo
com Iansã e Oxum, era uma das mulheres de como se imagina, pois fazer um feitiço é aqui
Xangô, e correu a Oxum para saber por qual fazer o enfeitiçado passar-se pelo próprio feiti-
razão o orixá do trovão tinha nela a sua pre- ceiro. O “eu é um outro”, mas quem sabe disso
ferida. Oxum, tendo percebido a possibilida- é o outro e não o eu.
de do logro, disfarça seu próprio rosto e diz Mas é claro que esse eu sempre conta com a
a Obá que o segredo era servir a sua orelha possibilidade de saber que alguém sabe de algu-
na comida de Xangô. Este, ao se deparar com ma coisa que ele não sabe, ou seja, que ele pode
tal prato, é tomado por uma repulsa e repele estar sendo o outro de um outro eu. O jogo
violentamente Obá. Desde então, este orixá, de búzios é um dos modos de dar forma a esse
por vergonha de ter se automutilado em fun- saber, e ajuda a definir a prática de contrafeiti-
ção de uma trapaça da Oxum, dança sempre çaria que se deve adotar. Uma das mais comuns
com a mão cobrindo a sua orelha, para que é interessantemente chamada de “troca”. Um
ninguém possa vê-la. Todas as filhas de Obá pai-de-santo me ofereceu a seguinte explicação
que conheci dançavam assim. Em todos esses a respeito dela e também sobre como e quando
casos, alguém que leva duas pessoas a brigar deve ser feita.
(e a fofoca é um ingrediente fundamental de
muitas dessas brigas) não pratica uma ação Queres saber quando estás com feitiço e precisas
muito diferente daquela que um feiticeiro de uma troca? É quando tu tens uma dor que
é capaz de realizar10. Uma importantíssima muda de lugar. Um dia tu te acordas e a dor está
substância agonística atravessa a feitiçaria, na tua perna, não consegues nem caminhar, e a
a mitologia e a sociologia desses coletivos dor não passa. No outro dia, a dor passou para
afro-brasileiros. o braço, te incomoda. No outro, para o ombro,
A “Mão Virada do Oxalá” é um feitiço e assim a dor vai caminhando pelo teu corpo.
que consiste precisamente em trocar a comida Podes ter certeza que estás com alguma coisa no
ritual e servi-la ao último dos orixás (aquele corpo. Existe então uma troca maravilhosa. Tu
que está mais no alto) no dia em que comem fazes todos os axés dos orixás e sacrificas dois
os primeiros dentre eles (aqueles que estão mais galos. O galo do Xangô, que é [um orixá] da
próximos da rua e, portanto, em certo sentido, pedreira, entregas na figueira, o galo do Xapanã,
os que estão mais embaixo). Costuma-se dizer que é [um orixá] da figueira, entregas na pedrei-
de Oxalá que é o pai de todos, e desses últi- ra. Vão dizer que tu estás com uma doença, mas
mos que não podem ou não devem ter filhos. uma doença que caminha!? Que coisa é essa?
Assim, o feitiço consiste em usar o “povo da Feitiço. O Xapanã desmancha qualquer feitiço
rua” para fazer uma intriga entre um orixá do e o Xangô corre egum.  
mel e a pessoa que se quer atingir. Há mais,
contudo. Escondendo suas mãos, disfarçando- O feitiço não apenas se esconde ao se des-
-se do seu contrário, aquele que faz o feitiço locar, mas é também uma doença que se dis-
procede como se não o fizesse, dizendo que foi farça em outra para poder matar a pessoa. Dar
um outro quem o fez, precisamente aquele que combate a esse feitiço que se expressa nesta

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316 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

imagem tão impressionante de uma dor, uma Mas enganam porque, pelo menos aqui, sabem
doença, que caminha pelo corpo, e que usa o que é melhor para eles.
astuciosamente suas partes para se encobrir, é Para concluir, observo que a feitiçaria con-
igualmente trocar de posição dois orixás, in- tém, em seus diversos planos, uma espécie de
vertendo não exatamente aquilo que comem, reversibilidade potencialmente interminável,
mas o lugar no qual eles comem; como se de- e cujo efeito, experimentado de modo muitas
senfeitiçar consistisse em proceder a uma in- vezes dramático pelas pessoas, reside em uma
versão com o propósito de acabar com uma dificuldade de determinar o sentido completo
inversão: a astúcia do desenfeitiçador replica do evento: quem começou, quando começou,
aquela do feiticeiro. O engodo, a duplicida- por qual motivo, quem está comigo e quem
de, a astúcia associada ao disfarce, são traços não está, por qual razão o feitiço funcionou
importantes da métis grega tal como descrita ou não funcionou, e assim por diante. Para
por Détienne e Vernant (2008), e possuem quem está implicado em um evento como
notáveis correspondências com aqueles que esse, o resultado é muito parecido com aquilo
compõem a feitiçaria afro-brasileira. Ambas que Clausewitz chamava de a “névoa da guer-
mobilizam, embora cada uma à sua maneira, ra”. A feitiçaria assemelha-se a uma guerra fei-
as potências do engano. ta em condições de baixíssima visibilidade, e
Uma outra possibilidade, não menos inte- dentro da qual as distinções perdem muito de
ressante do que essa, é quando um feitiço dá sua nitidez. É na espessura dessa névoa que
errado ou mesmo quando dá certo às avessas. ela novamente entra em uma curiosa sintonia
E isso não parece ser nada incomum. Conheci com o território sempre incerto e fugidio da
o caso de uma mãe-de-santo que, a pedido de métis.
uma mulher, fez um feitiço para juntá-la a um
homem, e cujo resultado foi seu afastamento Notas
definitivo. Quando lhe perguntei o que teria
acontecido, ela me respondeu: 1. Uma versão parcial deste texto foi apresentada no
GT “Novos modelos comparativos: investigações
Eu fiz tudo exatamente do modo como sempre sobre coletivos afroindígenas” na 36ª Reunião da
fazia, e o feitiço saiu com um efeito invertido. ANPOCS ocorrida na cidade de Águas de Lindóia no
A mulher era filha-de-santo, e eu acho que a ano de 2012. Agradeço a Marcio Goldman e a Beatriz
mãe dela, a Iansã, sabia que aquele homem não Perrone Moisés, coordenadores do GT, e a todos os
era o melhor partido. Um tempo depois a gente demais participantes pelos comentários feitos àquela
veio a descobrir que ela tinha razão. ocasião e principalmente pela disposição para criar
um espaço tão propício à criatividade teórica e à ex-
De um lado, os orixás podem ser engana- perimentação conceitual. Agradeço também a Marina
dos, de outro, eles têm discernimento suficien- Vanzolini, com quem divido o prazer do ofício e um
te para saber se a pessoa deve ou não alcançar sem-número de conversas sobre este tema que igual-
aquilo que pede11. No primeiro caso, o feiti- mente nos fascina.
ço funciona porque os humanos enganam os 2. ‘Religião da mão’ é o modo como a mãe-de-santo de
deuses, no segundo, o feitiço não funciona, um terreiro localizado na cidade do Rio de Janeiro
ou funciona de modo invertido, porque, num definiu, para Paul Christopher Johnson, o candom-
certo sentido, os deuses enganam os humanos. blé. “Fazer”, escrevem Anjos e Oro (2009, p. 80) é “o

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Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana | 317

verbo mais importante desse regime afro-brasileiro de por exemplo, o Lodê é uma das divisões do orixá
existência. A cabeça do praticante é feita, aprontada, Bará, e seu “assentamento” ritual, em todas as casas
assim como o próprio orixá, e ambos se fazem mu- que conheci, está sempre localizado do lado de fora
tuamente no presentear-se das oferendas. E fazer não da casa. Essa sua propriedade espacial faz com que
procede por evocação verbal, mas sim por provocação algumas pessoas o aproximem dos exus, os quais são
material da emergência do que realmente importa nes- também conhecidos como o “povo da rua”. Apenas
sa cosmologia”. “Fazer o santo” ou “fazer a cabeça”, os homens e as mulheres que já passaram da meno-
observa ainda Goldman (2009, p. 120) ‘não é tanto pausa podem se aproximar do Bará Lodê.
fazer deuses, mas, neste caso, compor, com os orixás, 5. Opeté é uma construção de batata em formato cônico,
um santo e uma outra pessoa”. sempre associada ao aspecto fálico desse orixá, poden-
3. “Batuque”, ou ainda “nação”, designa o “lado” ritual do ainda ser usada para outros orixás e também, em
de muitas casas de religião afro-brasileira localizadas algumas casas, para os exus.
no Rio Grande do Sul. O termo talvez seja o mais 6. No batuque, cada pessoa é composta por três orixás:
familiar à etnografia dessa região, e ele compreende, aquele da cabeça, outro do corpo e um terceiro que é
em linhas muito gerais, o culto dos orixás (dos deuses) denominado “o orixá da passagem”. São eles que for-
e dos eguns (dos mortos). Os exus dizem respeito ao mam o ajuntó, a saber, a composição de deuses especí-
que seria uma outra categoria de seres espirituais, mais fica de cada ser humano, mas cuja ênfase, no entanto,
geralmente associados aos lados da quimbanda, da recai sobre o da cabeça.
magia e da umbanda, mas que podem, conforme cada 7. Pai Mano de Oxalá é o pai-de-santo da Sociedade
casa, se aproximar dos orixás e/ou ainda dos eguns. Africana Divino Espírito Santo, casa de “nação” ca-
4. O panteão dos orixás é organizado a partir de múlti- binda, mas na qual também são cultuadas, pela ação
plas divisões internas, tais como, por exemplo, aque- ritual de sua mulher, Mãe Michele da Oxum, a um-
las de natureza espacial (os orixás da casa e os da banda e a quimbanda.
rua), etária (os velhos e os novos), culinária (aqueles 8. As inhelas são algumas das partes internas dos animais
que comem mel e os que comem dendê), e também oferecidas aos orixás, aos exus e aos eguns.
por gênero (os masculinos, os femininos e os an- 9. Pai Luis da Oyá é o pai-de-santo do Reino de Oyá,
dróginos). O leitor poderá encontrar uma descrição casa de “nação” jeje e ijexá, e na qual também são cul-
detalhada desse panteão, também chamado de oru- tuadas as “linhas” da umbanda e da quimbanda.
malé, em Corrêa (2006) e Barbosa Neto (2012). Os 10. Tanto a briga quanto a fofoca, do mesmo modo que
orixás, pelo “lado batuque”, são os seguintes: Bará a agressividade e a raiva (KOSBY, 2009), podem ser
(masculino), Ogum (masculino), Iansã (feminino), associadas aos eguns. Por ocasião do rito fúnebre de
Xangô (masculino), Odé e Otim (masculino/femini- Mãe Ester da Iemanjá, em cuja casa os eguns podiam
no), Ossanha (masculino), Obá (feminino), Xapanã possuir as pessoas nos rituais dedicados a eles, Norton
(masculino), Oxum (feminino), Iemanjá (feminino) Corrêa testemunhou uma eloquente conversa entre
e Oxalá (masculino). Os orixás novos são aqueles dois deles: “Que bom, minha irmã, dizia um. Que
que vão de Bará a Xapanã, e os velhos, de Oxum missa boa: deu tanta briga, deu tanta fofoca!... Como
a Oxalá. Iemanjá e Oxalá são considerados mãe e nós (eguns) [gostamos] de fofoca e de briga! e dava
pai de todos os outros, e, por isso, os mais velhos gargalhadas. Mas a gente está contente, dizia o outro,
entre os velhos, “os primeiros que foram criados”. porque agora ela (Mãe Ester) está com nós’! (Corrêa,
Note-se que Exu não aparece entre os orixás, o seu 2006, p. 167). Observo ainda que entre os Wauja do
lugar sendo ocupado por Bará. Cada um desses ori- Alto Xingu os feiticeiros também dispõem da “capaci-
xás divide-se internamente em vários outros. Assim, dade de distorcer e falsear os fatos”, e a respeito deles

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 303-318, 2014


318 | Edgar Rodrigues Barbosa Neto

pode-se dizer que são habilidosos na “fala feia”, que BRAZIL, Pe. Étienne Ignace. O Fetichismo dos negros
“sua língua não é boa” e que “sabem fazer o pessoal no Brazil. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
brigar” (BARCELOS NETO, 2006, p. 287). Brasileiro. Tomo LXXIV, Parte II, Rio de Janeiro, p.
11. Devo registrar que a possibilidade de se enganar os 195-260, 1911.
orixás está longe de ter qualquer consenso entre os pais CORRÊA, Norton. O batuque do Rio Grande do Sul:
e mães-de-santo que conheci. antropologia de uma religião afro-rio-grandense. Porto
Alegre: Editora Cultura e Arte, 2006 (1992).
Referências bibliográficas DÉTIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. Métis: as as-
túcias da inteligência. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.
ANJOS, José C.; ORO, Ari P. Festa de Nossa Senhora dos GOLDMAN, Marcio. Histórias, devires e fetiches das
Navegantes em Porto Alegre. Sincretismo entre Maria e religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antro-
Iemanjá. Porto Alegre: Editora da Cidade, 2009. pológica. In: Análise Social, v. XLIV, n. 190, p. 105-
BANAGGIA, Gabriel. Inovações e controvérsias na an- 137, 2009.
tropologia das religiões afro-brasileiras. Dissertação JOHNSON, Paul C. Secrets, gossip, and gods: the trans-
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em formation of Brazilian candomble. Oxford: Oxford
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade University Press, 2002.
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. KOSBY, Marília. “Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”:
BARBOSA NETO, Edgar R. A Máquina do Mundo: va- sobre afecção na etnogra!a dos processos de feitura da pessoa
riações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros. de religião no Batuque, em Pelotas, RS. Dissertação de
Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Mestrado - Instituto de Filosofia, Sociologia e Política,
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2009.
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo:
BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamâni- Cosac & Naify, 2004.
cas e acusações de feitiçaria: imagens wauja da agência OPIPARI, Carmen. O candomblé: imagens em movimen-
letal. In: Mana, v. 12, n. 2, p. 285-313, 2006. to, São Paulo–Brasil. São Paulo: EDUSP, 2009.
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record,
Paulo: Companhia das Letras, 2001 (1958). 2009.

autor Edgar Rodrigues Barbosa Neto


Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) e
Professor Adjunto da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas
Gerais (FAE/UFMG)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

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resenhas
321

BRAZ, Camilo. À meia-luz...: uma etnografia em


clubes de sexo masculinos. Goiânia: Editora UFG,
2012, 208p.

Fernando Ramírez Arcos


Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, Colombia

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p321-324 Paulo, e está composto de uma introdução e


cinco capítulos. Na primeira parte, traz à tona
O livro de Camilo Braz pertence a uma sé- indagações preliminares de Braz sobre seus pos-
rie de investigações sobre sexualidade e sexo, as síveis lugares de trabalho de campo, a escolher
quais datam desde as primeiras e mais clássicas entre saunas, cinemas pornô e clubes de sexo,
etnografias da antropologia e da sociologia. O todos eles descritos como locais comerciais
sexo tem sido um tópico presente nas narrati- para encontros sexuais (LCES): lugares mais
vas das culturas indígenas, mas sua forma de “privados” que cobram um valor de entrada.
narrá-lo e analisá-lo exotiza e diferencia es- Seu interesse é a relação entre sexualidade, mer-
sas sexualidades a partir de um modelo social cado e convenções de gênero, pelo que decidiu
moderno, naturalizado e não problematizado. dedicar-se aos clubes, onde poderia observar
Nesse contexto, está coberto de concepções citações performativas dos leather sex clubs dos
moralistas que avaliam vidas corretas reprodu- Estados Unidos e da Europa, que começaram
tivas e monogâmicas, e punem as que se “des- se firmar nos espaços urbanos dos anos 1970 e
viam” dos limites do “normal”, inclusive nas 1980, depois da explosão pública dos ativismos
mesmas sociedades ocidentais. gay e lésbicos nesses países. Citações que são
Algumas dessas práticas sexuais “desviadas” espaciais, de consumo e de construção de sub-
são o alvo da pesquisa de doutorado em ciên- jetividades masculinas, enquanto posicionam e
cias sociais do autor. Ela analisa as articulações hierarquizam sujeitos.
sociais, econômicas e culturais dos clubes de Para entrar e participar dos clubes de sexo
sexo masculinos na cidade de São Paulo, que masculinos paulistanos, os sujeitos devem
permitem encontros sexuais públicos e grupais cumprir uma série de requisitos de gênero,
entre homens. Baseia-se em três apostas teóri- idade (maior de 18 anos), aparência e com-
cas e metodológicas: contribui aos estudos so- portamento, assim como desnudar-se parcial
bre erotismo, prazer e desejos sexuais; dialoga ou totalmente. Estes LCES são tentativas de
com novas formas de erotismo em um mercado estabelecer espaços comerciais de divertimento
global e transnacional, e participa nos debates sexual mais arriscados e desinibidos, herdan-
sobre homossexualidade e masculinidade. Cada do uma história de experimentações sexuais e
uma dessas apostas é desenvolvida com rigor, corporais referidos ao sadomasoquismo, fist-fu-
destreza e sensibilidade ao longo do texto. cking e sexo grupal, entre outros. Mas a possibi-
O livro é apresentado por Júlio Assis Simões, lidade de encontros sexuais não convencionais
pesquisador e professor da Universidade de São constrói um espaço ambíguo de controle e

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


322 | Fernando Ramírez Arcos

transgressão em constante tensão. Por um lado, da pesquisa questiona a objetividade do fazer


os donos e administradores procuram recupe- antropológico, a produção e hierarquização do
rar e aumentar o capital investido, prometen- conhecimento, a autoridade de quem etno-
do o cumprimento de fantasias e fetiches. Os grafa, e a “necessidade” do distanciamento no
corpos nus dos clientes são bens em transação: campo. A ansiedade dos outros nas perguntas
eles são consumidores desses outros corpos, sobre a identidade sexual ou se ele fazia sexo
ao mesmo tempo em que são as mercadorias com outros sujeitos nos LCES, é o ponto de
a consumir. Corpos mercantilizados que fazem partida para falar sobre como os/as antropólo-
parte de um governo sexual do consumo. Por gos/as devem ocultar ou eliminar os possíveis
outro lado, essas experimentações podem ser envolvimentos afetivos e sexuais com seus/suas
interpretadas como deslocamentos de significa- colaboradores/as. Essa desconfiança e esses si-
ção corporais, sexuais e culturais sobre o prazer. lêncios sobre os erotismos em campo devem ser
Os deslocamentos revelam relações de poder e problematizados teórica e metodologicamente.
estruturas coercitivas sobre a sexualidade, en- Como argumenta, sua participação em campo
quanto apoiam outras maneiras de desejar e estava além de praticar sexo ou não, porque sua
sentir prazer. O autor enfatiza na necessidade presença já era uma forma de se engajar com
de posicionar outro ponto de vista sobre o mer- diálogos, desejos, trocas e conversações nos lu-
cado além das restrições: ele também possibili- gares. A etnografia imprópria do livro, a meu
ta e autoriza experimentar. ver, é uma aposta política mesmo, especial-
Com um leque de possibilidades para pes- mente quando ele está o tempo todo na escrita,
quisar, o autor decide-se pelos clubes de sexo partindo desde um “eu” visível que lia os outros
masculino, depois de algumas observações li- e que era lido por eles, julgado pelo corpo, pela
vres iniciais e de começar procurando colabo- sua presença e/ou pelo que ele fazia ou não.
radores por meio de um perfil criado no site O capítulo dois trata-se da genealogia das
virtual Orkut. Essa primeira inserção no cam- convenções dos leather sex clubs e como eles
po dos lugares lhe permite ser objeto de múl- “viajaram” ao Brasil na última década do sé-
tiplas perguntas que estiveram presentes em culo XX. O autor traça a história deles com os
seu trabalho de campo, perguntas dirigidas às primeiros estabelecimentos comerciais volta-
“verdadeiras” intenções dele em fazer a pesqui- dos a um público fetiche do couro nos Estados
sa. O autor nomeia como foi interpelado sobre Unidos, na época da “liberação sexual” logo
a razão principal de seu interesse acadêmico; da revolta em Stonewall Inn, em 1969. Essa
interpelação que persegue quem tem pesquisa- sensação de “liberdade” tem a ver com a noção
do lugares de encontros sexuais entre homens. naturalizada de uma força sexual que tem sido
Sempre existe esse halo de ceticismo, que Braz sempre reprimida e que agora deve ser “libera-
traz à tona para analisar o porquê dele, como da”. Mas a presença desses lugares, que come-
uma forma de problematizar o que ele esplen- çaram fazer parte de um novo mercado “gay”,
didamente chama “etnografias impróprias”. tem suas reminiscências das representações vi-
Segundo o autor, uma etnografia é impró- ris nos anos 1920-1940, com a disseminação
pria pelo seu trabalho de campo, onde devia de estereótipos masculinos homoeróticos dos
ficar (semi)nu e observar outras pessoas faze- marinheiros, oficiais e outra classe de trabalhos
rem sexo, e pela indesejabilidade do sexo como que precisam de força e dureza corporal. Os
tópico legítimo de estudo. A impropriedade músculos grandes tornaram-se desejo sexual

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Camilo. À meia-luz...: uma etnografia em clubes de sexo masculinos | 323

para outros homens, o que foi ainda mais no- público que eles esperam nos lugares: homens
tório com a moda das roupas de couro. Nessas de mente aberta e que sabem o que quer. Uma
representações têm destaque os quadrinhos de constituição de subjetividades hipermasculi-
Tom da Finlândia, quem retratava suas pró- nas, que espera que um “homem de verdade”
prias experiências e fantasias com soldados, pode ser bem resolvido ao ficar nu e fazer sexo
caubóis e policiais. Assim, uma performativida- na frente dos outros sem vergonha. Essa dife-
de hipermasculina faria conexão com práticas renciação será ainda mais desenvolvida no ca-
“dissidentes”, reivindicada e reapropriada em pítulo quatro, em que o autor se concentra nas
cenas do BDSM nos primeiros clubes de sexo falas com os usuários dos clubes. Ele mantém
em cidades estadunidenses e europeias, como as descrições e percepções deles, sem suprimir
o Hellfire Club em Chicago, o Catacombs em a linguagem popular que descreve os parceiros
São Francisco e o Connection em Berlim. conforme referências de gênero, classe social,
As convenções dos lugares viajaram a ou- raça/cor da pele e idade. Palavras populares, al-
tros contextos para serem apropriados de acor- gumas preconceituosas, que dão visibilidade aos
do com cenas culturais locais. No capítulo três, sentidos dos marcadores sociais de diferença.
o autor localiza a chegada dessas convenções Tem aí também destaque a cena leather, as-
ao Brasil e como elas foram adaptadas em um sociada ao fetiche e ao BDSM, como uma “ati-
momento político e econômico de ativismo se- tude liberal contracultural”. Nos clubes se joga
xual de alta relevância no país. Os clubes de com os limites do inteligível, com significados
sexo masculino aparecem depois das reuniões sexuais “transgressores” produto dessas práticas
de sujeitos interessados em sexo grupal, que se de “sexo duro”. Mas eles são subversivos mes-
conheceram na Internet em meados dos anos mo? No capítulo cinco, o autor analisa os ex-
1990. Nesse momento, a rede global virtual e cessos sexuais, que poderiam dar impressões de
o mercado nascente GLS estavam se populari- uma transgressão do compreensível. Mas o ex-
zando, os quais permitiram estabelecer conta- cessivo é controlado, ou em suas palavras, existe
tos entre futuros e potenciais clientes. Alguns um “descontrole controlado”. Os marcadores
deles traziam ideais do exterior para tentar sociais de diferença criam ao mesmo tempo
adaptar os sex clubs ao Brasil, onde as pessoas em que posicionam, subordinam e controlam
pudessem misturar baile, ócio e sexo. Em con- simbolicamente os sujeitos que vão aos clubes.
sequência, nascem os clubes Station Video Bar, Tanto os lugares quanto os sujeitos são alvo de
SoGo, Blackout, RG, No Escuro e Gladiators, adjetivos que os hierarquizam em uma trilha de
alguns deles ainda ativos. O autor detalha cada significações sobre o que está permitido e é de-
um com muita habilidade, especialmente ba- sejado. A raça/cor, a idade, a virilidade, a atitu-
seando-se em suas próprias experiências, com de, são muito importantes na configuração de
notas de campo que descrevem suas impressões corpos “atrativos”, nos corpos que importam,
do que estava olhando. Na realidade, um dos esteticamente funcionais aos padrões hegemô-
máximos aportes do livro é a mistura de diver- nicos de beleza. Nesses casos, os “excessos” de
sos estilos de escrita, entre teoria e narrativa et- peso corporal ou idade são valorizados de acor-
nográfica, o qual enriquece o texto. do com parâmetros normativos, que indicam
Os clubes de sexo atuais se distanciam dos que é normal e que é desviado.
LCES mais tradicionais. Os donos se identifi- O mesmo se aplica no uso de drogas recrea-
cam com a modernidade, o qual se traduz ao tivas, da camisinha e da ingestão do álcool. Essas

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324 | Fernando Ramírez Arcos

práticas são vigiadas pelos mesmos sujeitos, o vozes dos principais afetados são excluídas dos
que possibilita um descontrole possível, compre- debates públicos, além de serem vitimizados e
ensível e legítimo. Então, os excessos corporais, silenciados. Falar de sexo desde uma distân-
de drogas ou de práticas como o fist-fucking e o cia moral obvia os múltiplos atores e agências
sadomasoquismo, moram em um espaço ambi- marginalizados por instâncias de poder. Um
valente, entre o que é considerado normativo e terceiro eixo se dirige a legitimidade da sexua-
transgressivo. Um espaço limite da sexualidade lidade em geral, e do sexo em particular, como
que permite deslocamentos performativos de gê- tópicos de destaque. A produção de conheci-
nero, mas também governa o “incompreensível” mento deve ser interpelada por suas lógicas
segundo normas viáveis do mercado erótico. masculinas e discriminatórias sobre os sabe-
O livro de Camilo Braz é muito arrojado. res não autorizados, os quais alcançam ao/à
Etnografar sexo e fazer dele uma pesquisa de mesmo/a pesquisador/a. Uma pesquisa sobre
doutorado não é fácil. Mas além de contribuir sexo, e mais do sexo entre homens, em públi-
aos estudos de erotismo, da masculinidade e co e grupal, provoca comoções disciplinares.
homossexualidade, e da relação deles com o Um último eixo aponta à corporalidade do/a
mercado, a pesquisa abre questionamentos etnógrafo/a como meio de conhecimento do
para se pensar, em minha opinião, quatro campo. As sensações, os afetos, as interpela-
eixos de análise: primeiro, a constituição de ções, as (in)comodidades são regularmente
mercados de prazer sexual masculinos, que obviadas no produto final da pesquisa. Mas
são multiescalares, tanto global quanto regio- a forma de estar em campo, em especial em
nal, nacional, local e virtual. Seria interessante contextos sexuais, deve ser parte essencial da
analisar estas conexões simultâneas, os signi- etnografia, de como somos autorizados para
ficados que circulam entre eles, as diferenças olhar, ouvir, sentir, e como isso se traduz em
locais e as articulações com bens de consumo saberes parciais e situados.
como a pornografia gay bareback (cada vez Deve-se destacar o livro de Camilo Braz
mais comum). Outro eixo tem a ver com as como uma importante contribuição, não so-
novas políticas transnacionais sobre a punição mente para os estudos de gênero e sexualidade
de práticas sexuais como a pedofilia, a prosti- no Brasil, mas também para os estudos antro-
tuição e a perseguição e fechamento dos LCES pológicos e das ciências sociais sobre práticas
em cidades como Nova Iorque. Nesse caso, as sexuais em geral.

autor Fernando Ramírez Arcos


Mestre em Estudos Culturais, Universidade Nacional da Colômbia

Recebido em 01/09/2014
Aceito para publicação em 8/12/2014

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SÁ, Guilherme. No mesmo galho: antropologia


de coletivos humanos e animais. Rio de Janeiro:
7Letras, 2013.

José Cândido Lopes Ferreira


Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil

Flora Rodrigues Gonçalves


Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p325-329 com o questionamento de Kira, pesquisadora-


-chefe de um dos projetos sobre muriquis, a
A interação entre muriquis e humanos, na respeito de suas intenções de pesquisa. A pri-
região leste mineira, é o foco da observação e matóloga norte-americana, com formação em
análise empreendidas por Guilherme Sá, apre- antropologia,2 tomava Guilherme por um an-
sentadas em seu livro No mesmo galho: antropo- tropólogo do tipo “que estuda ciência” e que
logia de coletivos humanos e animais, publicado poderia atrapalhar seus estagiários durante suas
pela editora 7Letras, em 2013. O autor nos situa atividades, além de bisbilhotar a ciência ali
em meio à prática etnográfica, em uma tarefa desenvolvida. Por outro lado, mais uma razão
nada simples e bastante peculiar de seguir pri- motivava a posição de Kira, que era o fato de
matólogos. A narrativa etnográfica desenvolvi- o antropólogo ser estranho aos muriquis. Sua
da por Guilherme leva o leitor a percorrer uma presença na mata poderia interferir no com-
extensa rede que conecta diversos atores hu- portamento dos primatas e, consequentemen-
manos e não humanos, sinalizando a intenção te, nos dados dos pesquisadores. A diferença de
do autor de simetrizar posições e propor uma “estratégias de olhar” (p. 28) é apontada pelo
antropologia pós-social. Primatólogos, prima- autor: o modo como primatólogos e antropó-
tas, fazendeiros, mateiros, tabelas, cadernos de logos lidam com seus objetos.
campo e um antropólogo são alguns atores que Primatólogos prezam por uma observação
compõem essa rede. A “cultura-discurso”, nos objetiva do comportamento dos primatas, de
termos do autor, de um grupo de cientistas é modo que seja possível descrevê-lo tal como
descrita e analisada a partir da observação do naturalmente acontece. “Habituação” é como
seu cotidiano de pesquisa da ecologia e etologia estes cientistas nomeiam um conjunto de estra-
de duas espécies de primatas, conhecidos como tégias que usam para se aproximar dos prima-
muriquis (Brachyteles spp.),1 tendo como cená- tas que estudam. Pelo acompanhamento diário
rio a Estação Biológica de Caratinga (EBC), na dos grupos de macacos, após correr muito sob
Zona da Mata mineira. as árvores, os cientistas habituam esses animais
Um dos principais tópicos pontuados por à sua presença, de modo que seja possível os
Sá é sua relação com seus nativos: seu empenho observarem na naturalidade de seu compor-
é observar observadores. Logo no início de sua tamento. Têm a intenção de ser observadores
empreitada etnográfica, o antropólogo deparou que não causam interferência; tal propósito é

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


326 | José Cândido Lopes Ferreira e Flora Rodrigues Gonçalves

impraticável para o antropólogo. A habitua- Relações intersubjetivas permeiam o con-


ção operacionalizada por Guilherme, se assim tato entre humanos e primatas no campo da
podemos dizer, passa por seu posicionamento pesquisa científica. Além de registros e cam-
como pesquisador diante de outros pesquisado- po, Guilherme seleciona uma série de relatos
res. Quando ele consegue se inserir na rotina de renomados primatólogos nos quais ficam
dos pesquisadores, mateiros e outros funcio- evidentes diversas situações em que interações
nários da EBC, é que passa a fazer parte das pessoa-pessoa são estabelecidas entre humanos
relações dos seus interlocutores. A simetria que e animais. Nessas relações, a humanidade é
elabora em sua análise parte do posicionamen- uma condição difundida entre humanos e não
to como observador/pesquisador e da prática humanos (p. 142).
de pesquisa, que coloca no mesmo patamar Definições são necessárias. É importan-
primatólogos e antropólogos. te diferenciar intersubjetividade de projeção.
Grosso modo, a fronteira epistemológica Intersubjetividade se refere a alguma troca ex-
entre as ciências naturais e as humanidades pas- periencial que resulta em transformações sig-
sa pela possibilidade do observador não inter- nificativas para os sujeitos nela envolvidos.
ferir em seu objeto de estudo. Cientistas agem Projeção faz referência a sobreposições de traços
de modo a garantir um ideal de objetividade, antropomorfos em não-humanos, um claro mo-
de forma que seja possível captar a realidade vimento de delineação do mundo pelo discurso
natural das coisas – uma ontologia naturalis- da ciência. Essas duas modalidades de interação
ta, nos termos de Descola (1996). Porém, no compõem as atividades da ciência. Dada sua
decorrer da produção da ciência, por diversos assimetria intrínseca, a projeção não colabora
momentos, a objetividade escapa em meio às com uma análise do que Guilherme conhece
relações estabelecidas entre primatólogos e pri- no campo da convivência entre primatas e hu-
matas. Isso fica mais evidente quando vislum- manos. O autor se atém à via das relações in-
bramos o sistema de nomeação de indivíduos tersubjetivas, a fim de desenvolver sua reflexão.
usado pelos cientistas. O nome de gente dado Ele mapeia as situações em que aproximações
a cada muriqui faz referência às suas caracterís- acontecem e das quais derivam transformações,
ticas físicas, bem como à experiência pessoal do mais ou menos planejadas, para primatólogos e
pesquisador com seu “muriqui focal”.3 Neste primatas. A reflexão sobre a intersubjetividade
ponto, convergem técnicas gerais próprias da está na base da proposta do autor de fazer uma
ciência da primatologia justapostas à experiên- “antropologia da aproximação”.
cia subjetiva do pesquisador que nomeia o pri- Uma antropologia da aproximação é aquela
mata. A atribuição de nomes aos macacos não que se propõe a levar a sério o que dizem seus
é algo trivial. Para além da mera técnica4 estão interlocutores e, principalmente, pensar com
as relações entre humanos e monos. eles. Diferente de tomar o mundo segundo as
“representações” dos cientistas, num intuito
Estas incidências dos pesquisadores sobre os relativista, essa antropologia procura “reelabo-
macacos são constantes de modo que batizar um rar o ‘familiar’ a partir de relações interativas e
pequeno filhote significa possuí-lo, incorporá-lo mutuamente contundentes entre antropólogos
à sua experiência. A escolha do nome do filhote e seus interlocutores” (p. 39), se atentando às
pressupõe que o pesquisador se relacione com evidências que primatólogos (e seus muriquis)
ele, subjetivando-o (p. 127, grifos do autor).   fazem emergir aos olhos do antropólogo.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 325-329, 2014


No mesmo galho: antropologia de coletivos humanos e animais | 327

A especificidade do campo etnográfico que o jovem julgava como novo padrão era, na
apresentado nesse livro começa pelos nativos verdade, uma variação de um comportamen-
da EBC: primatólogos estão acostumados a to já descrito. Guilherme expõe, a partir dessa
pesquisar, não a serem pesquisados. Não so- contenda, o que chama de “predação científica”
mente estes deveriam ser habituados pelo an- (p. 170): o processo pelo qual cientistas purifi-
tropólogo, mas também este deveria ser aceito cam os muriquis, macaco-sujeito, em números,
pelos muriquis. Ser aceito por eles implica gráficos e tabelas. Macacos-sujeitos, que rece-
admitir a validade dessa proposição (p. 142). bem nomes, que interagem pessoalmente com
Propor tal condição pressupõe uma tomada primatólogos, são convertidos em “entidades
de posição dos primatas. Para pensar essa si- distintas” (p. 171), em macacos-objetos. Esse
tuação, Guilherme recorre às noções do pers- argumento é importante para dissipar inten-
pectivismo, elaboradas por Eduardo Viveiros ções de tomar a ciência como mero constru-
de Castro, acerca do conhecimento para os to dos cientistas. A posição de Kira revela um
ameríndios: “Conhecer é personificar, tomar o compromisso com o objeto, neste caso, com os
ponto de vista daquilo que deve ser conhecido” códigos e gráficos que sustentam o texto cientí-
(2002, p. 358). Adotar um ponto de vista, estar fico e falam dos muriquis nos termos da prima-
pessoalmente inserido numa situação é condi- tologia. “Assim, objetos são outra coisa que não
ção fundamental para o conhecimento. Neste representações de sujeitos, números em artigos
momento, sai de cena o observador que não científicos são outra coisa que não representa-
interfere no mundo. Muriquis não são meros ções de macacos, mas igualmente concretos”
objetos, são sujeitos que integram a rede de re- (p. 171).
lações motivada pela primatologia. Ao final da jornada empreendida nas matas
Sendo assim, os primatas incitam invenções de Caratinga, algo que se torna mais evidente é
do discurso da primatologia, na medida em o quanto estes cientistas se policiam de modo
que seu comportamento põe limites factuais a não confundirem muriquis e números. Ideias
às teorias elaboradas pelos cientistas. O “mo- acerca de representações e construções dos fatos
delo babuíno”, que previa a reunião de fêmeas científicos afligem recorrentemente a cabeça do
em torno de fontes de alimento e competição antropólogo. A conclusão de Guilherme sobre
entre machos por acesso às fêmeas, do qual sua conversa com Kira, a respeito de sua inter-
partiu Karen Strier5, logo teve de ser ajustado ferência sobre o comportamento dos muriquis,
ao deparar com o “bom” comportamento, não aponta para uma ética da relação na pesqui-
competitivo, dos muriquis. Ajustes como estes sa. Tal qual primatólogos precisam ser aceitos
são feitos a todo o momento no intercurso da pelos seus primatas, o antropólogo precisa ser
produção científica. Porém não são todos os re- aceito por seus interlocutores. E essa condi-
gistros etológicos de primatas que promovem ção passa pela possibilidade do antropólogo
mudanças nas teorias a seu respeito. se deixar afetar6 pela lógica nativa. Afetar-se é
Quando Ícaro, jovem estagiário que fez perceber as transformações que esse encontro
pesquisas na EBC, propõe formalizar numa promove. Antropólogos e primatólogos tra-
publicação um registro de comportamento ob- balham da mesma forma: observando. O caso
servado, Kira o desacredita, justificando que as aqui não é elaborar representações alheias, mas
observações não foram suficientes para emba- respeitar a ontologia alheia, ter controle sobre
sar uma publicação. Segundo a pesquisadora, o a tradução.

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328 | José Cândido Lopes Ferreira e Flora Rodrigues Gonçalves

Cientistas “transformam naturezas sem Notas


torná-las menos reais” (p. 181). O que o antro-
pólogo tem a aprender com isso? A cautela de 1. Existem duas espécies de muriquis, ou mono carvo-
transformar culturas sem que elas percam seus eiros: Brachyteles hipoxantus (muriqui-do-norte) e
sentidos próprios. Seguir cientistas tem mais a Brachyteles arachnoides (muriqui-do-sul).
ver com elaborar uma compreensão acerca das 2. Formação nos moldes da antropologia feita nos EUA,
transformações dos objetos da ciência no de- dos four fields: Antropologia Cultural, Linguística,
correr dos seus próprios processos, segundo sua Antropologia Biológica e Arqueologia.
lógica, do que trabalhar em projeções do que os 3. Referência ao método “animal focal” definido por Jeanne
outros pensam. A proposta de uma antropolo- Altmann (1974). Consiste basicamente na observação de
gia da aproximação evoca a sensibilização de interações de indivíduos, ou coletivos, animais específi-
uma percepção dos vínculos transformadores cos num determinado espaço e período de tempo.
que emergem das relações estabelecidas entre 4. O sistema de nomeação utilizado pelos primatólo-
antropólogo e interlocutor. Ao deixar-se afetar gos da EBC segue o modelo de outros primatólogos,
por seus primatólogos, Guilherme se afasta de como Jane Goodall e Dian Fossey. A regra geral con-
uma postura cientificista e se liga ao que o cam- siste em dar nomes às crias usando a letra inicial do
po lhe apresenta: às narrativas intersubjetivas. nome da mãe. A partir daí criam-se verdadeiras linha-
De modo semelhante ao que nos orienta gens maternas.
Marilyn Strathern (2006), para não buscarmos 5. Primatóloga norte-americana que iniciou os trabalhos
em outras sociedades as respostas para os nossos de pesquisa sobre muriquis em Minas Gerais na déca-
problemas, No mesmo galho aponta para uma da de 1980.
boa estratégia etnográfica: “devemos aprender 6. Guilherme segue Fravret-Saada (2005 [1990]) em sua
com eles [nossos interlocutores] na resolução reflexão sobre o afeto. Para ele, “[O] ato de pesquisa
de seus problemas” (p. 192). É nos momentos pressupõe uma interação que relaciona a intencionali-
de impasse e controvérsia que atitudes e cate- dade do pesquisador/sujeito (-objeto) à cumplicidade
gorias fundamentais são expressas aos olhos do de seu objeto (-sujeito). Uma parceria” (p. 37).
observador. Como este observador está imerso
nas redes e compõe relações com seus inter- Referências bibliográficas
locutores, a etnografia se torna uma narrativa
de uma prática conjunta, de uma convivência. ALTMANN, Jeanne. Observational study of behavior:
Essa convivência deve, antes de tudo, ser fon- sampling methods. In: Behavior, v. 49, p. 227-267,
te de entendimento acerca da lógica nativa, de 1974.
forma que o antropólogo possa compreender DESCOLA, Phillippe. Constructing natures. Symbolic
os problemas postos, bem como as soluções ecology and social practice. In: Descola, P.; Pálsson,
encontradas. Esta obra se mostra fonte inspi- G. Nature and Society: Anthropological perspectives.
radora para outras etnografias, sejam aquelas London: Routledge, 1996.
voltadas para as ciências, sejam as voltadas para FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Trad. Paula
outros campos. Rompe com análises culturais Siqueira. In: Cadernos de Campo, n.13, p. 155-161,
(ou naturalistas) recorrentes de um estudo da 2005.
ciência (enquanto) instrumental e assimétrica. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e
Conclui que, no caso da primatologia, antro- engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp,
pólogos e primatólogos são primatas e nativos. 2000.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 325-329, 2014


No mesmo galho: antropologia de coletivos humanos e animais | 329

STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Problemas VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da


com as mulheres e problemas com a sociedade na alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
Melanésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006.

autores José Cândido Lopes Ferreira


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade
Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG) e Pesquisador Bolsista do Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

Flora Rodrigues Gonçalves


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG) e doutoranda pelo Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais
(PPGAN/UFMG)

Recebido em 31/08/2014
Aceito para publicação em 08/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 325-329, 2014


331

DAUSTER, Tânia; TOSTA, Sandra Pereira; ROCHA,


Gilmar (orgs.). Etnografia e educação. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2012, 248p.

Amurabi Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p331-335 Esse trabalho está estruturado em torno


de nove capítulos, que em sua maioria articu-
A coletânea Etnografia e Educação (2012), lam uma reflexão metodológica com dados de
organizada por Tânia Dauster, Sandra Pereira campo, sendo os autores, via de regra, antro-
Tosta e Gilmar Rocha, surge a partir do pólogos que pesquisam sobre educação, e em
workshop internacional Diálogos Ibero- alguns casos orientando em Programas de Pós-
Americanos sobre Etnografia na Educação, pro- Graduação em Educação, cujas teses e disserta-
movido pelo Grupo de Pesquisas em Educação ções dão origem a alguns dos artigos.
e Culturas (PUC-Minas), bem como dos di- Raúl Iturra, em “A epistemologia da infân-
versos espaços acadêmicos a partir dos quais cia: ensaio de antropologia da educação”, reali-
esses antropólogos têm se inserido, o que inclui za uma aproximação na discussão da educação
tanto os eventos na área da Educação quanto a partir do universo infantil, destacando que
na Antropologia. “Para o adulto, é um caos de ideias a lógica da
Apesar de ser bastante antigo o diálo- criança. Para as crianças, uma tensão lógica que
go entre a Antropologia e a Educação, como permite uma forma de pensar.” (p. 33). Sua
nos elucida Gusmão (1997), trata-se de uma discussão aproxima-se do que tem se conven-
área ainda em processo de construção, que se cionado denominar no Brasil de Antropologia
forja na interface entre estes dois diferentes da Criança (COHN, 2005), porém focando
campos disciplinares, cuja principal articula- mais no processo de aprendizagem, defenden-
ção se dá justamente a partir do processo de do uma diferenciação que não é qualitativa do
apropriação da Etnografia por aqueles que re- saber da criança com relação ao saber do adul-
alizam pesquisas educacionais, sejam eles an- to, indicando que o que aquela não possui são
tropólogos ou não, ainda que esse processo se palavras para explicitar o que entende.
mostre por vezes problemático, marcado por Gilmar Rocha também realiza um trabalho
tensões (VALENTE, 1996), disseminando- mais de reflexão teórica em “Aprendendo com
-se, por vezes, uma perspectiva na qual há o o outro: Margaret Mead e o papel da educa-
desenvolvimento de estudos do tipo etnográ- ção na organização da cultura”, resgatando
fico, e não etnografias no sentido estrito do uma dimensão normalmente olvidada na obra
termo (OLIVEIRA, 2013b). Esta coletânea, dessa antropóloga. Rocha preocupa-se tanto
entretanto, se posiciona nesse debate apontan- em apresentar a autora e seu legado intelectu-
do para as múltiplas possibilidades abertas pela al de forma mais ampla, quanto em analisar
utilização da etnografia em educação. sua reflexão sobre a educação, que envolve um

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


332 | Amurabi Oliveira

contínuo debate sobre o outro, mas que tam- da sala de aula concepções distintas sobre o que
bém possui implicações na forma de pensar sua é ler, e quais as implicações existentes no pro-
própria sociedade (a estadunidense). Aponta cesso de ensino e aprendizagem, de tal modo
ainda além dos avanços no debate teórico as que a autora conclui que a professora não con-
inovações metodológicas trazidas pela autora, segue atingir seu objetivo com relação ao letra-
que tangenciam tanto a utilização do vídeo e mento literário, tendo em vista que “As práticas
da fotografia, quanto do desenvolvimento de escolares de leitura não vêm se constituindo
uma abordagem própria para a apreensão do em práticas significativas para a maior parte do
universo infantil. grupo pesquisado.” (p. 121).
“Escrever: formação e identidade num Ricardo Vieira, em “Do lar à escola: a he-
universo de escritoras”, de autoria de Tânia gemonia das práticas escolares e a antropologia
Dauster, assim como no texto de Iturra acaba da educação em Portugal”, reconstitui a forma-
por realizar uma análise na interface entre a ção do campo da Antropologia da Educação
Antropologia da Educação e outro campo, o em Portugal, que seria uma história recente,
da Antropologia da Leitura e da Escrita. Trata- remetendo aos anos de 1970, ao contrário do
se de uma etnografia urbana que se utiliza da que ocorreu no Brasil, quando já no começo
análise biográfica, voltando-se para a formação, do século XX contávamos com os Laboratórios
construção de identidades e representações e de Antropologia e Psicologia Pedagógica
prática de escrita de oito escritoras renomadas (OLIVEIRA, 2013a). Aponta inúmeros estu-
de diferentes gerações. Longe de traçar um pa- dos desenvolvidos, focados, em sua maioria, na
norama linear, Dauster enfatiza a multiplicida- realidade escolar, mas também em processos
de de representações em torno da escrita, o que de aprendizagem mais amplos, numa intensa
interpreta a partir do conceito de metamorfo- interface com os estudos da infância. Para fi-
se desenvolvido por Gilberto Velho, segundo nalizar o artigo, Vieira traz uma reflexão sobre
a autora: “[...] as experiências simbólicas que o processo de formação de professores, o que
marcam e constituem as trajetórias e as cons- nos leva a uma análise sobre a pertinência da
truções sociais das identidades das escritoras, discussão antropológica na formação docente,
suas ‘passagens’, seus ‘trânsitos’ e seu trabalho que possibilitaria a ampliação dos horizontes
ficcional.” (p. 94). destes, tendo em vista que “Os professores não
Seguindo o fio condutor do texto de estão treinados para entender a mente cultural
Dauster, Lucelena Ferreira, em “Sinal fechado: quer de alguns alunos quer de alguns pais”, e,
representações e práticas de leitura de alunos ante este desafio, a Antropologia poderia trazer
do ensino médio de uma escola pública cario- uma contribuição significativa.
ca”, volta-se também para a interface entre a “Pelos mares da baía da Ilha Grande” traz os
Antropologia da Educação e Antropologia da primeiros resultados da pesquisa de Anderson
Leitura e da Escrita, apresentando como se uti- Tibau, que apesar de se relacionar com os pro-
lizou do método etnográfico para desenvolver cessos de educação formal, pois seus sujeitos
seu trabalho em uma escola, bem como os cri- são alunos da escola regular, há um desloca-
térios utilizados para a seleção de seus sujeitos mento de olhar para os processos pedagógi-
de pesquisa. Considerando a perspectiva tanto cos vivenciados no barco que leva estudantes,
da professora de língua portuguesa quanto dos professores, dentre outros sujeitos para a Ilha
alunos, Ferreira demonstra como há no espaço Grande, considerando que, na interpretação

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 331-335, 2014


Etnografia e educação | 333

do autor, “[...] a escola já é vivenciada no [...] atualmente, apartada do mundo exterior,


próprio trajeto que a comunidade faz em sua com poucas relações com os lugares onde se
direção” (p. 156). O autor tem o cuidado de situam na cidade, conformando uma estrutura
apresentar seus pressupostos epistemológicos, que tende ao hermetismo, com sua arquitetura
bem como descrever detalhadamente o con- que se assemelha muito à de uma prisão ou à
texto social no qual se insere sua pesquisa, e, de um espaço de reclusão de jovens infratores,
apesar de trazer apenas dados iniciais, ele já com suas grades, portões e cadeados, a escola
aponta para algumas questões interessantes, tem se mostrado cada vez mais com dificuldades
como as interpretações de alguns professores de funcionar plenamente como uma instituição
sobre o desinteresse pela leitura por parte dos que disciplina os mais jovens, impondo-lhes pa-
alunos, que seria motivado tanto pela escassez drões de corporalidade. (p. 188).  
na renovação do acervo da biblioteca, quanto
pela disseminação de mídias móveis. Tibau, Parece-me que reside aí uma das gran-
entretanto, não se propõe a realizar ensaios des possibilidades abertas pela etnografia em
interpretativos mais “ousados”, tendo em vista educação, ao possibilitar mais que a simples
que nesse texto procura apenas apresentar ao constatação dos limites do atual modelo de
leitor alguns aspectos da cultura escolar pre- sistema escolar existente, indo rumo a uma
sente na Ilha Grande por meio da descrição do análise sobre como esta questão se apresenta
trajeto de barco rumo à escola. na prática. Não é à toa que a etnografia pas-
Alexandre Barbosa Pereira realiza mais sou a ser utilizada amplamente pela denomi-
um trabalho de interface, desta vez entre a nada Nova Sociologia da Educação a partir
Antropologia da Educação e a Antropologia dos anos 1970, uma vez que essa corrente vi-
Urbana. Em seu texto “Jovens e rituais esco- sava, justamente, analisar a “caixa-preta” que
lares”, o autor anuncia logo no início as difi- é a escola. Nesta mesma direção, o artigo de
culdades encontradas para se realizar pesquisa Sandra Pereira Tosta e Pollyana Alves também
no universo escolar, e, de fato, esta é uma busca desvendar a realidade escolar por meio
questão que deve ser trazida pelos pesquisado- da etnografia. Em “Cultura e cor na escola:
res no âmbito da Antropologia da Educação, uma etnografia com adolescentes negros de
tendo em vista a complexidade que envolve elite”, as autoras investigam um tema privi-
este espaço. Sua análise se volta para os rituais legiado nesta interface entre a Antropologia
cotidianos, especialmente aqueles que pos- e a Educação, que diz respeito às relações
sibilitam a “quebra da ordem”, por meio da étnico-raciais na educação, que tem ganhado
zoação e da ideia de “causar”, que além disso destaque principalmente em razão das diver-
traziam novos elementos para a relação entre sas políticas públicas em educação no Brasil,
autoridade e alteridade existente, a qual iria como as cotas no ensino superior para alunos
para além da dicotomia entre professores e negros e a lei nº 10.639/03, o que pode ser
alunos. Por fim, traz uma reflexão pertinen- atestado pelo incremento de pesquisas que
te sobre as finalidades da escola, focando no vêm sendo realizadas nos últimos anos em
processo de docilização dos corpos, porém, Programas de Pós-Graduação em Educação
partindo dos dados etnográficos apresentados (OLIVEIRA, 2011).
ao longo do trabalho, ele realiza o seguinte As autoras iniciam seu trabalho proble-
apontamento: matizando a educação enquanto objeto de

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 331-335, 2014


334 | Amurabi Oliveira

investigação da antropologia, especialmente como agentes de destaque no processo de arti-


a educação escolar, fazendo referência a tra- culação das demandas culturais e étnicas que
balhos seminais como os de Margaret Mead emergem nesse embate. Todavia, para além da
no plano internacional e os de Florestan questão exclusiva da educação quilombola, as
Fernandes no caso brasileiro. Para elas, “Se autoras se preocupam em trazer uma reflexão
fica claro que a educação escolar tem sido em torno da necessidade de se pensar uma es-
pouco tratada nos estudos antropológicos, cola que dialogue com a diversidade de ma-
também é por demais evidente que, no con- neira ampla, o que podemos interpretar como
junto do conhecimento disponibilizado na outra contribuição substancial da antropolo-
interface entre antropologia e educação, al- gia à educação.
gumas questões permanecem quase ocultas, Etnografia e Educação insere-se no con-
dentre elas, as identidades étnico-raciais de texto das novas questões que têm surgido no
adolescentes negros de classe alta, na con- campo educacional e que têm demandado
dição de alunos de escolas particulares.” (p. uma aproximação com a antropologia, tanto
196-197). No estudo empreendido fica evi- em termos teóricos quanto metodológicos.
dente que, apesar da mobilidade social viven- Em grande medida essa coletânea demar-
ciada, a discriminação continua persistente ca mais claramente a necessidade existente
na realidade desses alunos, cuja afirmação de que os antropólogos passem a assumir a
identitária mostra-se repleta de contradições educação como um objeto legítimo de in-
que lhes são inerentes. vestigação, o que ainda é realizado de forma
O último artigo da coletânea também en- pontual, cujos resultados têm sido divul-
contra-se no campo dos estudos das relações gados principalmente por meio de Grupos
étnico-raciais em educação, porém focando de Trabalho em eventos diversos, tanto de
em outro campo que tem emergido com bas- antropologia quanto de educação. Trata-se
tante fôlego nas últimas décadas: a educação portanto de uma obra relevante em termos
quilombola. Este é o recorte de Neusa Maria acadêmicos e sociais, que deve ser tomada
Mendes de Gusmão e Márcia Lúcia Anacleto como uma importante referência para ambos
de Souza em “Educação quilombola: entre sa- os campos de saber.
beres e lutas”. Esta modalidade de educação é
apresentada pelas autoras como em constru- Referências bibliográficas
ção, oriunda de uma nova demanda social que
se insere nas políticas públicas brasileiras, que COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro:
para sua compreensão deve-se considerar tan- Jorge Zahar, 2005.
to os aspectos estritamente culturais quanto GUSMÃO, Neusa M. Antropologia e educação: origens
“raciais”, já que estão inseridos na discussão de um diálogo. In: Cadernos CEDES. v. 43, n. 43, p.
sobre a discriminação e preconceito racial no 8-25, 1997.
Brasil, o que se articula intimamente com a OLIVEIRA, Amurabi. A antropologia dos não antro-
necessidade de se pensar uma escola que se co- pólogos e outras questões etnocêntricas. In: Revista
munique com a comunidade na qual se inse- Anthropológicas, v. 22, n. 2, p. 101-123, 2013.
re. As autoras se preocupam nesse trabalho em ______. O lugar da antropologia na formação docente:
apontar para as lutas em torno de uma edu- um olhar a partir das escolas normais. In: Pro-Posições,
cação diferenciada, que possui os professores v. 24, n. 2, p. 27-40, 2013a.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 331-335, 2014


Etnografia e educação | 335

______. Por que etnografia no sentido estrito e não es- VALENTE, Ana L. E. F.. Usos e abusos da antropologia
tudos do tipo etnográfico em educação?. In: Revista na pesquisa educacional. In: Pro-Posições, v. 7, n. 20,
FAEEBA, v. 22, n. 40, p. 69-82, 2013b. p. 54-64, 1996.

autor Amurabi Oliveira


Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Recebido em 06/08/2014
Aceito para publicação em 08/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 331-335, 2014


337

LEA, Vanessa Rosemary. Riquezas intangíveis


de pessoas partíveis. São Paulo, Edusp, Fapesp,
2012, 496 p.

Carlos Melo de Oliveira Paulino


Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p337-341 parágrafos, no entanto, o encadeamento de


ideias é confuso e encontramos pequenos erros
Publicado em 2012, Riquezas intangíveis gramaticais e tipográficos.
de pessoas partíveis é resultado de pesquisa rea- Conforme explicado no livro, o povo indí-
lizada pela docente do Instituto de Filosofia e gena Mẽbêngôkre é historicamente dividido
Ciências Humanas da Universidade Estadual em diversos subgrupos e aldeias com diferen-
de Campinas (IFCH-Unicamp), Vanessa tes etnônimos, sem que, no entanto, deixem
Rosemary Lea, ao longo de mais de trinta anos de falar a mesma língua e compartilhar as-
de trabalho com o povo indígena Mẽbêngôkre pectos culturais. A experiência maior de Lea
(também conhecido como Kayapó). O tema é com o subgrupo denominado Mẽtyktire,
principal do livro é a transmissão e perpe- localizado atualmente na Terra Indígena
tuação de nomes pessoais e riquezas (nekre- Kapoto-Jarina, no estado do Mato Grosso, a
tx na língua Mẽbêngôkre) entendidos como oeste do rio Xingu. Porém, embora a maio-
constituintes da herança distintiva de Casas ria de seus dados seja relativo aos Mẽtyktire,
matrilineares. por meio de comparações com autores que
De 1978 até 2011, a antropóloga pesquisou estudaram outros subgrupos Mẽbêngôkre e
e conviveu com os Mẽbêngôkre em suas aldeias devido às já mencionadas semelhanças lin-
por quase dois anos fracionados em catorze via- guísticas e culturais entre esses subgrupos,
gens. Além de realizar pesquisa, a autora tam- muitos dos argumentos e afirmações da au-
bém trabalhou em outras circunstâncias junto tora se estendem a todos os Mẽbêngôkre. Ao
aos Mẽbêngôkre, tal como em cursos de for- longo da obra, ambos os termos (Mẽtyktire
mação de professores indígenas. e Mẽbêngôkre) são usados para se referir ao
As quase quinhentas páginas do livro estão povo indígena estudado.
divididas em dez capítulos (mais introdução, A obra se inicia com uma contextualiza-
posfácio e sete apêndices), que por sua vez es- ção geral da autora, sua pesquisa e sua relação
tão subdivididos em diversos itens. Essa divisão com o grupo indígena estudado. Na sequên-
torna, apesar de extensa, a leitura da obra uma cia, o primeiro capítulo traz uma revisão geral
atividade dinâmica, e a procura por um tema de estudos históricos e antropológicos sobre
específico dentro do livro, uma tarefa simples. os Mẽbêngôkre e outros grupos da família
O texto também é acompanhado quase sem- linguística Jê (da qual os Mẽbêngôkre fazem
pre por fotos e diagramas de alta qualidade que parte). Essa revisão serve bem ao propósito de
ajudam muito sua compreensão. Em certos situar o leitor, mesmo aquele que desconhece

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


338 | Carlos Melo de Oliveira Paulino

completamente o povo estudado, para o res- a autora resgata brevemente a noção de “fi-
tante do livro. liação complementar” proposta por Meyer
Os capítulos 2, 3 e 4 continuam com a Fortes no texto “The Structure of Unilineal
descrição do povo estudado abordando, res- Descent Groups”, argumentando, como ele,
pectivamente, os temas das Casas, habitações e que a filiação bilateral é um aspecto universal
aldeia; vida cotidiana; e terminologia de paren- do parentesco.
tesco e onomástica. Embora estejam baseados Lea nota ainda que os Mẽbêngôkre consti-
fundamentalmente na experiência etnográfica tuem um caso interessante para se refletir sobre
da própria autora, ao longo desses capítulos são o conceito de descendência e suas aplicações,
abundantes as referências comparativas ao tra- já que, apesar de preponderantemente matri-
balho de outros pesquisadores que estudaram lineares, evocam também aspectos de descen-
os Mẽbêngôkre e/ou outros povos (não somen- dência dupla (via amizade formal patrilinear)
te jê, nem somente ameríndios). e de sociedades de casas (via seus patrimônios
O conceito de Casa é central para o de- e sua constituição como sujeitos de direitos e
senvolvimento de todo o argumento da obra. deveres).
Entre os Mẽbêngôkre, é usado por Lea para No capítulo sobre parentesco, impressiona
designar um coletivo de pessoas ligadas por a grande quantidade de termos para uso em
descendência uterina, descrito como uma pes- contextos e por pessoas diversas: termos de re-
soa jurídica e moral que é sujeito de direitos e ferência e vocativos; termos usados unicamente
deveres. A Casa não deve ser confundida com durante choro ritual; termos usados somente
as habitações físicas; tanto uma Casa pode ser em certas falas de chefes; e os chamados ter-
composta por várias habitações quanto podem mos triádicos. Esses últimos constituem a con-
haver membros de uma Casa vivendo numa al- tribuição mais original da obra para o estudo
deia em que não haja nenhuma habitação física do parentesco Mẽbêngôkre; são utilizados para
a representando. Da mesma forma, devido ao falar sobre uma terceira pessoa condensando
padrão de residência uxorilocal e à exogamia em um só termo a relação que o falante e seu
das Casas, os homens só residem numa habita- interlocutor têm com ela. A grande comple-
ção que compõe sua Casa até casarem, residin- xidade do vocabulário de parentesco atesta a
do numa habitação da Casa de sua esposa após meticulosidade com que os Mẽbêngôkre classi-
o casamento. ficam suas relações, ao mesmo tempo que uma
Embora a autora caracterize os série de exemplos concretos demonstra como
Mẽbêngôkre através da descendência uteri- os indígenas operam essas classificações e como
na, há um aspecto de sua organização social é possível transformá-las.
pouco trabalhado nessa obra que evoca um Há um debate sobre a construção do pa-
viés patrilinear: as relações de amizade for- rentesco entre os povos ameríndios que não
mal. Tais relações são transmitidas por linha chega a figurar diretamente no livro, mas com
paterna e, dentre outras particularidades, relação ao qual, no entanto, a autora parece
tornam os amigos/as formais interditos para afirmar sua posição. Opondo-se à abordagem
casamento, sendo que, idealmente, uma mu- formulada por Eduardo Viveiros de Castro e
lher deve eleger um de seus amigos formais trabalhada, entre os povos jê, sobretudo por
de geração mais nova para casar com sua fi- Marcela Coelho de Souza, essa autora consi-
lha. Para dar conta dessa inflexão patrilinear, dera as relações de parentesco Mẽbêngôkre não

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 337-341, 2014


Riquezas intangíveis de pessoas partíveis | 339

como construídas, mas como essencialmente aos detentores dos nomes bonitos o direito de
dadas por um pensamento que se baseia, ao vestir certos adornos e faz que seu pai e mãe
menos parcialmente, em critérios genealógicos. passem a poder ser chamados por um termo
Isso não quer dizer que não existam nuances específico que designa o fato de terem um fi-
e transformações de classificação relacionadas lho com nome bonito confirmado.
à proximidade de convívio e à adequação aos Cada nome pessoal é tido como proprie-
ideais de comportamento, apenas que essas dade coletiva de uma Casa específica, o que
mudanças não afetam o status fundamental não significa que não haja disputas sobre a
das relações de parentesco da forma como os que Casa pertence tal nome e sobre o uso in-
Mẽbêngôkre as concebem. devido de nomes alheios. O saber onomástico
Os capítulos 5, 6 e 7 tratam especifica- é em geral tido como um assunto de mulhe-
mente da questão dos nomes pessoais. São ba- res, o que é compatível com a descendência
sicamente três os tipos: bonitos, comuns e de uterina; as anciãs são quem perpetua o legado
brincadeira. Cada pessoa deve ter ao menos de suas Casas.
seis nomes de qualquer tipo, mas esse núme- A transmissão de nomes é sempre feita
ro chegou a 32 em um caso registrado pela de um nhênget (categoria que inclui o irmão
autora. O nome pelo qual a pessoa é conhe- da mãe, os avôs e outros parentes) ou kwatýj
cida publicamente pode ser de qualquer tipo; (categoria que inclui a irmã do pai, as avós e
o que diferencia os nomes uns dos outros é outras parentes) para seus tabdjwý (categoria
sua origem. Nomes bonitos e comuns são que inclui os filhos/as de germanos de sexo
transmitidos de uma pessoa a outra da mesma oposto, os netos/as e outros/as). Entretanto, é
forma; no entanto, enquanto os nomes boni- comum que as funções de nominador (aquele
tos têm origem no tempo mitológico ou em que transmite o nome, mas que não neces-
expedições xamânicas, os comuns têm sua ori- sariamente o possui) e epônimo (aquele que
gem nos nomes de brincadeira. Esses últimos, possui o nome, mas não necessariamente o
por sua vez, são inventados em determinadas transmite) sejam executadas por pessoas di-
situações, sendo em geral esquecidos após al- ferentes. Assim, uma mãe (agindo como no-
gum tempo, mas podendo também ser trans- minadora) pode transmitir a seu filho nomes
mitidos a outrem, tornando-se assim nomes de um nhênget falecido (que faz o papel de
comuns. epônimo) que não estejam sendo utilizados
Os nomes bonitos têm ainda outros aspec- por outra pessoa para evitar que esses nomes
tos relevantes; a saber, o fato de que devem se percam.
ser confirmados em uma cerimônia para que Essa regra de transmissão faz que – sobre-
sejam reconhecidos como verdadeiramente tudo no caso de nomes femininos, já que a
bonitos. Existem oito classificadores e cada epônima ideal é a irmã do pai que pertence a
um deles está ligado a diferentes cerimônias uma Casa diferente de ego feminino – os no-
de confirmação. A realização de uma ceri- mes frequentemente sejam transmitidos para
mônia para confirmar nomes bonitos é um alguém que não é membro da Casa a qual
evento dispendioso para os pais do nomina- o nome pertence. Nesses casos, considera-se
do (que são patrocinadores da festa), já que que a pessoa que recebe o nome tem apenas
devem fornecer alimento para toda a aldeia. o usufruto dele, mas não é sua dona legíti-
Se concluída com sucesso, a confirmação dá ma, devendo devolvê-lo a alguém da Casa a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 337-341, 2014


340 | Carlos Melo de Oliveira Paulino

qual o nome realmente pertence na geração Quanto mais isso ocorre, menos esse nekretx é
seguinte. valorizado, já que, sendo possuído por muitas
Como cada pessoa tem muito mais nomes pessoas, seu poder distintivo se reduz a ponto
do que usa cotidianamente, a ocasião em que de que certas pessoas abram mão de alguns de
eles são mais importantes é justamente sua (re) seus nekretx por considerarem que estão mui-
transmissão. Essa regra de transmissão obedece to difundidos. O inverso também é verdadeiro
a um princípio de reciprocidade, pois, ideal- e aqueles que são portadores únicos de algum
mente, todo nominado será um dia nominador nekretx se vangloriam desse fato.
e a transmissão de nomes implica alianças entre Dentre os apêndices, além de informações
Casas distintas. Para os Mẽbêngôkre, é essen- linguísticas, plantas de aldeias e dos dados genea-
cial nesse ciclo de transmissões que os nomes, lógicos coletados pela autora, se destaca uma ex-
depois de serem transmitidos uma vez para tensa e fascinante lista de nekretx agrupados por
fora, retornem à sua Casa de origem sob perigo categorias (animais de estimação, adornos diver-
de gerarem conflitos e acusações de usurpação sos, cantos e papéis cerimoniais, bens industria-
caso não o façam. lizados, itens colecionáveis etc.) e divididos pelas
Passando para os capítulos 8 e 9, che- Casas às quais pertencem. Tal inventário ilustra a
gamos ao conceito de nekretx. Lea explica enorme quantidade e variedade de nekretx exis-
nekretx como sendo a propriedade de cada tentes e a complexidade do tema.
pessoa, no sentido daquilo que é exclusivo O capítulo 10 oferece, à guisa de conclusão,
dela e que a constitui como pessoa distinta de algumas comparações entre os Mẽbêngôkre
outras. O ponto chave aqui é a exclusividade e outros povos da família linguística jê, bem
como produtora de diferenças; o uso indevi- como algumas problematizações de ordem
do de nekretx por pessoas que não possuem conceitual, numa tentativa de amarrar a grande
essa prerrogativa motiva grandes conflitos, quantidade de informações presentes no livro.
que podem resultar na cisão de aldeias e até Por fim, embora pontuada em diversos
mesmo em assassinatos entre os envolvidos. pontos do livro, é apenas no posfácio que a
Da mesma forma que os nomes pessoais, os noção de pessoas partíveis presente no título
nekretx são identificados como herança co- da obra ganha um pouco mais de atenção. Lea
letiva de uma Casa específica. Idealmente, explica então que entende os nomes pessoais
quando um adulto escuta um nome ou vê e nekretx não como propriedades externas
um nekretx, identifica o usuário como mem- que são transmitidas entre indivíduos, mas,
bro (ou tabdjwý de algum membro) da Casa com efeito – seguindo a linha de pensamen-
proprietária. to consagrada por Marilyn Strathern em seu
A transmissão de nekretx se dá seguindo a livro The Gender of the Gift (1988) –, como
mesma regra que a transmissão de nomes, de extensões das pessoas, aspectos partíveis que
nhênget ou kwatýj para seus tabdjwý. No en- circulam e se combinam de incontáveis ma-
tanto, a transmissão de nomes e nekretx é feita neiras para formar singularidades. Essa abor-
separadamente, a transmissão de um não im- dagem implica que, ao analisar o sistema de
plica a do outro. Uma diferença importante na nomes e nekretx, o foco não está somente na
transmissão de nekretx é que um único nekretx transmissão e usufruto desses bens, mas na
pode ser transmitido para mais de uma pessoa, relação entre as pessoas das quais esses bens
ao contrário do que acontece com os nomes. são aspectos partíveis.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 337-341, 2014


Riquezas intangíveis de pessoas partíveis | 341

autor Carlos Melo de Oliveira Paulino


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP) e indigenista da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI)

Recebido em 28/08/2014
Aceito para publicação em 08/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 337-341, 2014


343

OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas


da prostituição nas experiências de quatro
mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2013. 358p

Ana Paula Luna Sales


Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p343-347 momentos políticos e fases da vida o ritmo da


escrita e o lugar primeiro de sua inovação. A
José Miguel Nieto Olivar é antropólo- linguagem acadêmica é animada pelas expres-
go, comunicador social e escritor. Nascido sões populares que constituem a prostituição
em Bogotá, cursou graduação e mestrado na de Porto Alegre, de Puerto Berrío e dos roman-
Pontificia Universidad Javeriana, onde iniciou ces latinos; o espanhol e os híbridos “portu-
seu interesse por pesquisas e processos formati- nhóis” são por vezes convocados por dizerem
vos em temas de sexualidade, gênero e direitos mais, melhor ou mais bonito.
humanos. No Brasil, desenvolveu estes temas Enunciados acadêmicos, literários e políti-
na tese de doutoramento junto ao Núcleo de cos se cruzam neste livro, que não poderia deles
Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde prescindir. As transformações na prostituição
(NUPACS), do Programa de Pós-graduação em de rua feminina em Porto Alegre, do início dos
Antropologia Social da UFRGS. Em seguida, anos 1980 até 2010, compreendidas por meio
realizou Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos das experiências das quatro prostitutas mili-
de Gênero PAGU (UNICAMP), ao qual está tantes acompanhadas pelo autor: Soila, Dete,
associado até o presente como pesquisador. Nilce e Janete têm uma complexidade que ins-
O livro Devir puta é baseado na pesqui- pira muitos talentos para se inscrever no papel.
sa realizada junto ao movimento organizado O primeiro, e mais importante deles, é “sa-
de prostitutas em Porto Alegre entre 2006 e ber-se em um campo de batalha” (p. 36), que
2009, que deu origem a sua tese de doutora- possibilita reinventar em texto as práticas (de
mento. Contudo, além do material etnográfico guerra) das mulheres que protagonizam esta
e histórico específico à tese, conhecemos nesta pesquisa, que se despem na medida exata para
obra outras experiências do autor no estudo seduzir sem se expor.
dos mercados do sexo, que se estendem des- A prostituição é compreendida além da re-
de seu trabalho como comunicador social na lativa estabilidade do valor negativo que este
Colômbia até a pesquisa de campo na tríplice termo possui no ocidente, sendo encontrada
fronteira Brasil-Colômbia-Peru, em 2011. por meio dele uma multiplicidade de práticas
A trajetória de Olivar se inscreve no corpo “nem todas econômicas, nem todas sexuais”
do texto por meio de uma perspectiva que se (p. 33). Em diferentes momentos da formação
sabe deslocada e faz do trânsito entre contextos intelectual, Olivar conta com a colaboração
nacionais, disciplinas, teorias antropológicas, próxima de Claudia Fonseca, Ceres Víctora e

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


344 | Ana Paula Luna Sales

Adriana Piscitelli no desenvolver da análise das Em Fazer(-se) uma puta esposa... é explici-
socialidades e relações de poder que constituem tada a centralidade da categoria da família nas
essa multiplicidade para compreender os temas representações e práticas de prostituição neste
da corporalidade, parentesco, sexualidade e contexto. O marido/gigolô encarna a figura
gênero. Localizados nas margens fluidas dos de protetor/disciplinador/iniciador, construí-
mercados do sexo, é buscado nesses aspectos o da como indispensável para o bom funciona-
potencial de deslocar hegemonias e apresentar mento da prostituição e da vida (p. 80). São
novas perspectivas (BUTLER, 1990). relações que evocam normas hegemônicas de
A leitura segue o fluxo das trajetórias das gênero e parentesco, contudo não há uma cor-
quatro mulheres. Este é um artifício comple- respondência estrita. Os atributos de “esperte-
xo. Por um lado nos permite compreender za” e “ser trouxa” são também mobilizados para
como elas se constroem em suas redes com o operar deslocamentos.
conforto da crescente familiarização ao lon- A estrutura da família/negócio do sexo é an-
go das páginas. Por outro, ele nos confronta, drocentrada, heteronormativa, monogâmica,
logo nas Primeiras histórias... (Parte I – Sexo, monodomiciliar e comportava a poliginia. Esta
predação e família: fazer-se prostituta de rua última característica interessa ao expor assime-
no Centro de Porto Alegre nos anos 1980), com trias entre a(s) esposa(s), mas também permi-
cenas que combinam inexperiência (interiora- tir a construção de solidariedades e desejos de
na e/ou romântica) feminina e ardil dos ma- individualização em um contexto de família/
landros da cidade, levando ao início delas na negócio do sexo onde “não era para gozar, não
prostituição. era para sentir prazer que deitavam com esses
Para quem se sabe em uma guerra, é um outros; era para conseguir dinheiro na constru-
movimento arriscado reproduzir a cena tantas ção do projeto familiar.” (p. 110)
vezes mobilizada por políticas que visam “ani- Programa não é sexo. Prostituição e “predação
quilar” a prostituição. Porém a reprodução per- familiarizante” é um dos capítulos mais estimu-
mite também a inserção de novos elementos, lantes do livro. Nele, as considerações feitas até
um novo enquadramento (BUTLER, 2009) o presente sobre parentesco, gênero, violência
que reinsere as relações de cafetinagem mascu- e agência são desenvolvidas pela aproximação
lina dentro das assimetrias de gênero e violên- das teorias de Michel Foucault com aquelas da
cia que marcavam tanto os universos da família etnologia indígena brasileira, permitindo cons-
quanto o do trabalho em Porto Alegre nos anos truir novas interpretações sobre as políticas da
1980. prostituição de rua.
A entrada na “quadra”, o gigolô e a paixão As elaborações de Foucault (1988) são bus-
são elementos constitutivos da iniciação na cadas para analisar toda a multiplicidade das
prostituição daquela época. As narrativas so- relações de poder abordadas no livro. Neste
bre eles, contudo, não são homogêneas, pois capítulo, especialmente, compreendemos a
constantemente recriadas pelas mulheres à luz operação do dispositivo da aliança nos primei-
de seu ativismo. Elas, que conhecem na pele as ros anos, na construção de corpos por meio da
políticas da prostituição, sabem localizar “me- família e o subsequente deslocamento para a
mória e narrativa no olho das voracidades pre- individualização e a construção de uma sexu-
datórias de moralistas, feministas, higienistas alidade-dispositivo. Num momento em que
ou pesquisadores” (p. 77). se fala de sexo pela família, a construção dos

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 343-347, 2014


Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes | 345

corpos passa pela neutralização no programa. deixa de ser um elemento coesivo da família
Este é, em última instância, uma produção para dizer-se um trabalho como “outro qual-
do casal prostituta/esposa e cafetão/marido na quer” (frequentemente problemático no seio
qual o cliente torna-se objeto dessexuado. familiar). Saindo da lógica da necessidade dos
Simultaneamente, as noções êmicas de cafetões, as mulheres sublinham sua rebel-
“caça”, “guerra” e “comida” despertam o inte- dia contra os agentes do Estado e fortalecem
resse na etnologia indígena para compreender suas redes durante os anos 1990. O Núcleo de
as lógicas do campo. Elas tornam-se, então, Estudos da Prostituição (NEP), fundado em
pontes entre contextos ameríndios e a prosti- 1989, insinua-se em seus ambientes de traba-
tuição de rua. O autor encontra nas reflexões lho, constituindo-se em um novo, contingente
sobre a predação familiarizante (FAUSTO, e suspeito aliado.
2002) ferramentas para discutir as relações en- Nessa atmosfera de mudanças, encontra-
tre agentes prenhes de subjetividade, que bus- mos o Caderno de imagens, que conta com ilus-
cam impor suas perspectivas pela construção de trações feitas pelo autor, recortes de jornais e
um sistema que envolve “relações entre pessoas, fotografias das quatro protagonistas deste livro
perspectivas, órgãos, que estimulassem a divi- em diversos momentos e contextos de suas vi-
dualidade e a coesão familiar” (p. 131). Temas das. A operação da dividualidade a seu favor
clássicos dos estudos de parentesco como o flu- parece ficar clara pelo modo como são organi-
xo de substâncias, interdições, comensalidade e zadas as fotografias. Ainda crianças com seus
canibalismo são operados também neste con- pais; jovens sedutoras na batalha ou no lazer; já
texto urbano e contemporâneo. mães e avós, não menos sedutoras, na militân-
A construção relacional de potências e de- cia: são cenas que se cruzam, se sobrepõem, se
vires é lida enquanto agenciamento da divi- comunicam sem se confundir.
dualidade (STRATHERN, 1988). Dentro de Reconfiguração da guerra: novas alianças,
uma lógica em que o sexo é relação entre dois novas formas de mediação. Ser militante. Olivar
agentes, ainda que em posições assimétricas, trata aqui do contexto que aproximou as pro-
ele só poderia acontecer no espaço familiar. tagonistas do livro com a militância no NEP,
O gozo feminino, entendido como condição esmiuçando o fazer político. Agências globais
para a gravidez e a reprodução familiar, era re- se interessam nas prostitutas para executar bio-
servado aos verdadeiros homens, seus maridos/ políticas de combate ao HIV/AIDS; elas por
cafetões. seu lado, buscam dar fim às violências policiais
Porém a experiência adquirida na prostitui- sofridas por meio do fortalecimento de “redes
ção de rua conjuga-se às mudanças no cenário femininas de fuga e resistência” e do encontro
político para ensejar novas formas de consti- com “universos extraprostituição” (p. 208).
tuição de sujeitos na intimidade e nas relações Criam-se novas alianças e subjetividades:
com o Estado e com a “sociedade”, objeto da um novo “nós” que modifica o “eu” dentro da
Parte II – Guerra, trabalho e movimentação: fa- noção dos “Direitos Humanos” como “me-
zer-se puta, fazer-se profissional, fazer-se coletivo. canismo de simetrização das relações com o
O capítulo El amor en los tiempos del cólera Estado e a ‘sociedade’.” (p. 209). A retórica
nos apresenta o movimento de individualiza- da profissionalização, já operada em relações
ção do negócio do sexo enquanto meio pro- íntimas, se expande e articula no movimento
dutivo (somente) da esposa. A prostituição político.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 343-347, 2014


346 | Ana Paula Luna Sales

Esta prostituição atividade profissional, caminhos: desvincular-se da prostituição física


distinta da criminalidade e da “putaria”, com- ou simbolicamente, inserir a prostituição no
binava com as ideias de sociedade veiculadas universo de legitimidades por meio do tema do
no Brasil livre da ditadura militar. Tolerância e trabalho ou dos direitos sexuais. Maneiras de
civilidade devem marcar espaços urbanos, ação “um pouco virar Estado, um pouco virar so-
da polícia e práticas de prostituição na reelabo- ciedade, para poder continuar sendo puta sem
ração de subjetividades e políticas. morrer, sem sofrer mais do que o devido.” (p.
Em Novas formas da guerra e da violência: 298)
tudo em off, são abordadas as categorias e alian- A Parte III – “Puta é foda”: fugas, presentes
ças que constituem as práticas políticas con- e perspectivas encerra o livro com o capítulo
temporâneas de prostitutas de rua em Porto Máquinas de guerra, feminilidades avulsas. Nele
Alegre. Neste capítulo o autor faz recurso a retornamos ao título do livro, à noção de devir.
uma batalha específica para explicitar táticas Já referida algumas vezes durante a obra, sua
de guerra. Ele contextualiza os mercados do retomada aqui não é explicativa. Olivar busca,
sexo na Porto Alegre de 2006, dentre os quais terminando seu trabalho de sedução acadêmica
a prostituição de rua tem um lugar bastante em tempos de guerra, mostrar-nos que o poder,
diminuído em relação a 1980. É destacado o multissituado, encontra-se também na potên-
aumento de privês, salas em prédios comerciais cia de fazer-se e desfazer-se puta. Despedimo-
e boates, ambientes protegidos/escondidos do nos de Soila, Janete, Dete e Nilce com suas
olhar público onde não se iria desavisado(a). histórias de hoje, um pequeno substrato para
O autor busca destacar como políticas globais romancearmos seus futuros.
e locais se implicam mutuamente deslocando A obra de antropologia, feminismo, direi-
violências. Expõe a legislação brasileira vigente tos humanos e putaria alcança seus objetivos.
assim como as propostas de mudança, conecta Permite-nos perceber a interseccionalidade
seus argumentos com políticas governamentais dos marcadores da diferença na experiência da
transnacionais e situa dispositivos repressivos, prostituição, relacionando-as com as noções de
disciplinares e reguladores dentro do fazer po- predação e guerra de modo a colocar novas pe-
lítico dos agentes envolvidos na produção dos ças na caixa de ferramentas para análise destes
mercados do sexo contemporâneos. temas, tendo o cuidado de expor os discursos
Exterioridade, hibridez e a lógica do confiar que constituem o campo em sua relação com
desconfiando: alguns contornos políticos da guerra os dados etnográficos. Discursos íntimos e po-
é um capítulo que trata da guerra como espaço líticos da prostituição são levados a sério, num
da produção da prostituição por meio de dois esforço de simetrização.
polos que se afirmam ao se antagonizarem. Mais especificamente, porém, gostaria de
Trata-se dos discursos tidos como exteriores a revisitar a construção política de legitimidades
prostituição em face dos saberes/poderes sujei- pelos movimentos de prostitutas organizadas
tados. Nele percebemos a construção de “iden- por sua importância e atualidade em pesquisas
tidades” dentro de estratégias políticas que sobre os mercados do sexo em geral. O Estado
recorrem frequentemente à noção de estigma é percebido como figura central, produtora,
enquanto chave interpretativa êmica para as reguladora, disciplinadora ou incitadora da
violências e assimetrias. Injustiça a ser combati- prostituição de rua e das militâncias de pros-
da, o estigma pode ser superado por diferentes titutas. A análise dos dispositivos operados na

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Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes | 347

legitimação de (certas) prostituições torna o Estas questões, ainda sem resposta, indi-
estudo valioso não só para pesquisadores dos cam a qualidade, importância e inovação do
mercados do sexo, dentro dos estudos de gê- livro, que abre caminho para novas pesquisas
nero e sexualidades, mas também para o en- sobre políticas nos mercados do sexo e outras
tendimento da política nas margens do Estado margens.
(DAS & POOLE, 2004).
Há de se considerar, contudo, que o Estado Referências bibliográficas
e outras agências governamentais não são as úni-
cas instâncias legitimadoras nos espaços da pros- BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the sub-
tituição e de “virações”. Olivar pondera que o version of identity. New York and London: Routledge,
antagonismo êmico entre prostitutas e a “socie- 1990.
dade” é marcado pelo recorte de classe. A associa- ______. Frames of war. When is life grievable? Londo and
ção com a criminalidade, percebida na operação New York: Verso, 2009.
da deslegitimação do movimento e prática da DAS, Veena; POOLE, Deborah (eds.). Anthropology in
prostituição, pode ser intuída também em sua the margins of the State. Santa Fe: School of American
potência de empoderamento. Ambos os meca- Research Press, 2004.
nismos são operantes e, sabendo-se num con- FAUSTO, Carlos. Banquete de gente: comensalidade
texto em que a criminalidade desumaniza, deve e canibalismo na Amazônia. In: Mana, v. 8, n. 2, p.
ser considerado o perigo da exposição. Contudo 7-44, 2002.
a obliteração das formas de empoderamento de FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vonta-
prostitutas e outros atores sociais marginais pelas de de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
redes do mundo do crime nos mantém ignoran- STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Problems
tes de uma parte importante do funcionamento with Women and Problems with Society in Melanesia.
desta instância de poder e reforça a representa- Berkley/Los Angeles/London: University of California
ção de supremacia do Estado. Press, 1988.

autora Ana Paula Luna Sales


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Campinas (PPGCS/UNICAMP)

Recebido em 01/09/2014
Aceito para publicação em 08/12/2014

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349

DAWSEY, John; MÜLLER, Regina; MONTEIRO,


Marianna; HIKIJI, Rose. Antropologia e
performance: ensaios Napedra. São Paulo:
Terceiro Nome, 2013, 504p.

Raquel Sant’ana
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p349-353 Schechner para definir os cruzamentos e dis-


persões entre ritual e teatro na “performance”.
Meio século após as primeiras investidas Os artigos estão distribuídos em quatro partes,
de Victor Turner no diálogo entre antropo- às quais foram acrescentados mais quatro tex-
logia e teatro e após haver sido decretado um tos que constroem saltos mais abrangentes em
performative turn nas últimas décadas, o livro relação à teoria da performance e amarram os
Antropologia e performance consolida em língua diálogos do livro, dando a ele um caráter que
portuguesa um panorama de diferentes cami- ultrapassa a mera justaposição de textos e o
nhos trilhados por dezenas de pesquisadores transforma em uma “montagem” no sentido
que têm entre suas preocupações centrais o di- utilizado por Walter Benjamin e Eisenstein,
álogo com a teoria da performance. recuperado sobretudo a partir de John Dawsey
Embora, por essa razão, se trate de um livro no livro, como caminho metodológico.
que já nasce como um marco, uma referência A primeira parte do livro, Corpo, drama e
para os estudos no país, ele vai, ao mesmo tem- memória, inicia precisamente com o artigo
po, na contramão dos paradigmas que têm se “Imagens de mães: drama e montagem”, de
imposto ao fazer Ciências Sociais no Brasil. Se John Dawsey, em que, na periferia de uma ci-
a tendência do campo tem sido uma especiali- dade do interior de São Paulo aparecem sobre-
zação cada vez maior em áreas que pouco dia- postas as imagens de “mãe sofrida” e “mulher
logam, Antropologia e performance pode ser lido doida” construindo o que ele chamou de uma
como uma espécie de manifesto pelo cruzamen- “história noturna de Nossa Senhora”. A opção
to, uma defesa das potencialidades das “monta- pela análise baseada no princípio de “monta-
gens” tensas entre imagens contraditórias. gem” revela que as tensões entre as imagens e
Quem lê transita entre índios bororo, seu caráter de “risco” é justamente o terreno
imagens de mães e “mulheres doidas”, con- que reconstrói “em meio a inervações corpo-
gadas, escritos de um Dalai Lama até bichos- rais, os laços amorosos que lhes dão sentidos de
-do-pé sentados em rodas para comer coca. viver” (p. 82). Por isso, nesses dramas, “o ins-
Tamanha abrangência traz consigo um caráter tante da ruptura coincide com a cura.” (p. 82).
de reflexão sobre o que significa o próprio fazer Por outro viés, o corpo é pensado no ar-
antropológico/performático. tigo seguinte, de Danilo Ramos, a partir da
O livro está organizado, de fato, como roda de coca dos Hupd’äh. Ali, posturas cons-
uma “trança”, metáfora utilizada por Richard troem corpos que podem assumir diferentes

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


350 | Raquel Sant’ana

perspectivas (até mesmo a de bicho-do-pé) e composto por técnicas do corpo subjetivantes”


determinam assim a “desconstrução e reconfi- (p. 159). A busca de si teria ecos da busca do
guração da pessoa para a ação através de outra “outro” experimentada na ausência primordial,
corporalidade” (p. 93). a que se segue ao nascimento e nos constituiria
Em “Performances narrativas nos quilom- a todos (p. 26).
bos do Alto Vale da Ribeira”, Rubens da Silva A parte II, Festa e ritual, trata de pontos
traz à tona discursos construídos na disputa de contato privilegiados entre antropologia e
pelo reconhecimento do estatuto de remanes- performance, mas ainda assim é capaz de in-
centes de quilombos e demonstra o quanto cluir novos fios ao trançado da performance.
identidade e memória podem ser olhadas sob É o caso do artigo de Ana Cristina Lopes, que
a dimensão de performances. Assim, se as per- encontra uma dimensão performativa nos tex-
formances constroem identidades, no artigo tos produzidos pelo V Dalai Lama, no século
seguinte, Denise Pimenta remonta a Mauss e XVII, demonstrando que, em grande medida,
Le Breton para mostrar como é possível que a performance ritual desses textos é a própria
se construa um “corpo de fé” distinto de ou- performance do Estado tibetano em cujo pro-
tros corpos a partir da experiência de romaria cesso de formação o Dalai Lama estava engaja-
a Aparecida. do. Outros quatro artigos compõem essa parte
A experiência corporal também aparece dando relevo às relações entre ritual, devoção e
na análise de Marcos Vinícius Malheiros de performance.
Moraes acerca do cotidiano em uma escola pú- Carolina de Camargo Abreu propõe uma
blica infantil. A discussão da “mímeses” é recu- “escuta corporal e também psicossocial”, reto-
perada de Walter Benjamin e Michael Taussig mando a ideia de Constance Cassen de que “os
para a compreensão dos modos de fazer-se ou- sentidos do mundo se formam pelos sentidos
tro e fazer-se a si mesmo, pois por meio dessa do corpo” (p. 164). Nas festas rave apresenta-
faculdade as pessoas produziriam “uma “sutura das por ela, corpos expandem seus sentidos e
entre a natureza e o artifício”, constituindo nas suas fronteiras e constroem uma coletividade
experiências uma relação ao mesmo tempo ín- transnacional que mobiliza sonhos e desper-
tima e reflexiva com o mundo” (p. 133). A mí- tares de uma “humanidade tecnologicamente
meses revela estranhamentos das crianças em potencializada, encantada por seu conto de
relação ao mundo dos adultos que aparecem, fadas: do progresso científico justaposto ao de-
sobretudo, nas tensões entre o espaço da brin- senvolvimento humano” (p. 185).
cadeira e o tempo de assumir o lugar de aluno, Já Adriana Oliveira da Silva mostra a
“corpo sem órgãos”. experiência do giro do divino como o momento
A primeira parte se encerra com o arti- de liminaridade mais contundente da festa,
go de Romain Bragard que coloca problemas quando o divino pede esmola e se faz seme-
epistemológicos à antropologia a partir das lhante aos devotos mais humildes, que, por sua
contribuições da psicanálise. Categorias como vez, oferecem dádivas, em semelhança ao divi-
“desejo” e “falta” iluminam o “sentimento de no. Este performa o humilde.
natureza” que operaria nos adeptos do turis- Giovanni Cirino demonstra as potenciali-
mo ecológico e estaria “entre a mitologia ur- dades do arcabouço teórico dos estudos da per-
bana, que molda um desejo de natureza, e o formance para pensar a história como dada em
prazer esperado” conquistado por “um ritual um tempo que está longe de ser “homogêneo

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 349-353, 2014


Antropologia e performance: ensaios Napedra | 351

e vazio”, como dizia Walter Benjamin. O autor conhecimento e de conexão entre o “corpo de
mostra “relampejos” do passado escravocrata quem percebe” e o de quem “é percebido”.
ao aproximar as origens da congada de uma A discussão da performance de si mesmo
experiência colonial e suas operações de inde- como personagem aparece também na análise
xação das categorias locais ao universo cristão, feita por Kellen Pessuto da atuação de não-ato-
assim como circulação desses códigos entre as res no cinema a partir do caso do filme Salve o
missões. cinema. O cinema traz questões que ultrapas-
Celso Vianna Bezerra de Menezes fecha essa sam suas fronteiras e nos permitem pensar so-
segunda parte do livro ao trazer o caso dos de- bre jogos de cena e de construção de “verdades”
votos do Padre João Maria, na região onde se para além de seus limites.
deu o movimento do “contestado” no século Também Diana Pala Gómez Mateus traz des-
XIX. O exame da prática da devoção constrói ta arte imagens que questionam nosso próprio
uma reflexão sobre o potencial de “estranha- lugar como pesquisadores. Ao tratar da produ-
mento” produzido pela performance em rela- ção fílmica sobre a violência na Colômbia à luz
ção ao cotidiano (p. 243-244). dos diários de Taussig, a autora propõe refletir
A parte III, Filme e narrativa, ao propor sobre os potenciais de transformação do mundo
uma discussão sobre diferentes formas narra- não apenas do cinema mas também da antropo-
tivas, constrói também uma reflexão sobre o logia: “somos atores porque somos construtores
próprio lugar da pesquisa antropológica. de um espaço, de um vocabulário, de catálogos
Alice Villela demonstra as relações entre de nomes, datas, lugares e opiniões sobre a vio-
performance xamânica e as operações da edição lência. O nosso pecado não é a desordem epis-
fílmica na construção de narrativas que criam temológica que Taussig encontra nos espaços do
mundos antes inacessíveis aos outros. terror, mas talvez a ordem epistemológica que
Edgar Cunha, ao trabalhar os dilemas da construímos no fazer acadêmico” (p. 317).
produção de um filme sobre o ritual funerá- O trabalho de Jean Rouch aparece no tra-
rio bororo acrescenta uma discussão sobre as balho de Ana Lúcia Ferraz sobre trabalhadores
diferentes aproximações possíveis às diferentes circenses a partir do conceito de etnoficção,
plateias de uma reprodução fílmica do ritual, mas também na discussão de Rose Satiko Hikiji
que adquire significados e densidades distintas e Carolina Caffé sobre a “etnografia compar-
para diferentes públicos. tilhada” na produção fílmica. As autoras ana-
O texto de Francirosy Campos Barbosa lisam as diferentes porosidades das etapas de
Ferreira traz uma discussão que ultrapassa o gê- produção, em que ora sobressaem as vozes dos
nero fílmico (embora ela utilize as ferramentas interlocutores locais, ora a sensibilidade dos
audiovisuais para seu trabalho acerca das pes- profissionais da edição, e ainda, o lugar de fala
quisadoras que estudam comunidades islâmi- e as redes articuladas pelas pesquisadoras. É
cas). Discutindo a construção de personagens dessa forma que o material produzido possui
por parte dos antropólogos, a autora proble- uma combinação de diferentes narrativas sobre
matiza o lugar do corpo como instrumento a experiência da cidade.
de pesquisa e da performance como forma de A parte IV do livro, Antropologia e artes da
acesso do corpo do pesquisador às experiências performance, propõe o desafio de pensar a per-
dos grupos estudados, lembrando as discussões formance como instrumento de conhecimento
de Taussig acerca da mímeses como forma de a partir da experiência.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 349-353, 2014


352 | Raquel Sant’ana

Tratando de sua performance “Mira Chica”, partir do olhar de Alfred Gell sobre as intencio-
Regina Müller relaciona a antropologia da arte nalidades que se materializariam em objetos por
de Alfred Gell e a teoria da performance de meio da intencionalidade de um “agente primá-
Richard Schechner para pensar o caráter de rio”, o autor entende que os objetos artísticos que
transformação que sua experiência possui para ele analisa “revelam a ideia de descontinuidade e
o performer e para o público, pois, como as indeterminação, colocando como elementos que
iniciações, “performances geralmente tratam questionam o modus operandi fechado e deter-
daquilo que o performer recobra de seu pró- minístico dos maquinismos técnico-funcionais
prio eu” (p. 370). A performer incorpora um produzidos em larga escala” (p. 439).
eu político que provoca o sentido costumeiro Encerrando a última parte, aparece a força
das coisas a partir da inversão, dos excessos, da do manifesto de Guillermo Gómez-Peña, que
sensualidade e da “paródia da paródia”. performa o performer, e apresenta as linhas ge-
Ao tratar dos intercâmbios entre a perfor- rais da performance enquanto gênero artístico
mance do “nego fugido” de Santo Amaro da liminar.
Purificação, na Bahia, e os movimentos sociais Por fim, além da apresentação de John
da periferia de São Paulo, Mariana Monteiro Dawsey, que recupera o contexto de formação
explora a ideia brechtiana de “experimento” do NAPEDRA e dos diálogos entre antropolo-
contraposta à “experiência” de Dilthey, desdo- gia e performance de modo geral, a amarração
brada por Victor Turner. O intercâmbio desse da trança fica por conta de mais três ensaios.
“experimento” ganhou novas cores, gerando Iniciamos o livro com o prefácio de Diana
“imagens sintéticas e inquietadoras” que “fe- Taylor, que desvenda diferentes sentidos para
cundavam a atuação dos grupos teatrais junto a performance a partir da própria intraduzibili-
aos movimentos sociais.” dade do conceito em todas suas acepções origi-
Já Luciana Lyra apresenta um trajeto de nais e terminamos a leitura com o posfácio de
investigação para performances por ela diri- Maria Lúcia Montes que apresenta os vínculos
gidas que se baseiam na artetnografia, uma da discussão com o teatro e filosofia gregos,
metodologia criada pela autora a partir da mas também com a potencialidade e os limites
confluência entre Victor Turner e Gilbert de uma performance de escola de samba.
Durant. Assim apresenta-se um exercício na Num lugar liminar, entre a apresenta-
busca pelo “cruzamento complexo gerado do ção e a primeira parte, encontramos Richard
contato entre artistas e comunidade, entre Schechner revisitando os pontos de contato
eus e alteridades” (p. 394). entre antropologia e teatro abordados por ele
Ainda pensando metodologias, o Work in no primeiro capítulo do seu clássico “Between
progress de Renato Cohen, apresentado por Ana theater and anthropology”. O autor acrescen-
Goldstein Carvalhaes, traz para o centro do de- ta três pontos aos discutidos no ensaio origi-
bate a questão da alteridade e desafia a ideia nal. Schechner propõe pensar, em primeiro
de obra ou repertório, propondo um desafio lugar, a dimensão “encorporação” (diferen-
para a análise da experiência em sua dimensão te de uma cognição puramente racional) do
efêmera. conhecimento “nativo” e do conhecimento
Em seguida, o efêmero e o tempo aparecem antropológico, retomando a ideia desenvolvida
também como objeto de investigação e criação por Victor e Edith Turner de “performance
na arte sonora discutida por Eduardo Nespoli. A como pesquisa”.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 349-353, 2014


Antropologia e performance: ensaios Napedra | 353

Em segundo lugar, apresenta uma discussão “as áreas motoras do cérebro não são ativadas
sobre a performatividade das fontes da cultura somente por meio de ações performadas, mas
humana. Em uma digressão a partir das dis- pela observação das ações do outros [...] os
cussões sobre as pinturas rupestres e as práticas espectadores performam em sua imaginação,
que possivelmente estavam relacionadas a elas juntamente com os performers que observam
na pré-história, o autor encontra uma chave de [...] Nosso corpo não acaba na nossa pele. Ele
leitura do desenvolvimento comunicacional vai além, chegando até o cérebro dos outros”
humano a partir da teatralidade de práticas de (p. 59).
iniciação. A leitura de Antropologia e performance ins-
Por fim, vemos problematizada a própria tiga esse corpo pela leitura e também pelos es-
noção de cérebro, entendido por ele como “um tímulos aos sentidos provocados pelo material
lugar de performance” (p. 56). A partir de sua audiovisual que vem anexo ao livro, com os
experiência no treinamento de performers, em registros audiovisuais dos objetos trabalhados
que mobilizou conhecimentos, por exemplo, nos artigos. Acima de tudo, somos a todo tem-
de artes marciais, e em diálogo com as teorias po lembrados de que temos um corpo leitor,
sobre o “sistema nervoso entérico”, Schechner um corpo pesquisador, um corpo que experi-
propõe que, ao assistir a uma performance, menta e performa.

autora Raquel Sant’Ana


Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ)

Recebido em 01/09/2014
Aceito para publicação em 08/12/2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 349-353, 2014


informes
357

Coletivo ASA - Artes, Saberes e Antropologia

O Coletivo Artes, Saberes e Antropologia Coordenado pela Profa. Fernanda Arêas


(ASA) reúne pesquisadores aproximados em Peixoto e cadastrado no Diretório de Grupos
função de uma perspectiva etnográfica e de uma de Pesquisa do CNPq, o Coletivo ASA vem
abordagem pragmática da vida social, que privile- desenvolvendo várias linhas de atuação acadê-
gia as formas e estilos das práticas, ou seja, a poé- mica, com o apoio de agências financiadoras
tica social. Trata-se de um dos grupos de pesquisa como o CNPq, a FAPESP, a CAPES e a Pró-
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Reitoria de Pesquisa da Universidade de São
Social da Universidade de São Paulo (PPGAS/ Paulo. Dentre elas, se destacam quatro:
USP), que se encontra mensalmente para com- – Artes e saberes da (e para a) Antropologia:
partilhar ideias e experiências, assim como dis- voltada para um exercício autorreflexivo, essa
cutir textos teóricos e pesquisas em andamento, linha revisita autores, conceitos e teorias, esfor-
envolvendo a antropologia das formas expressivas çando-se por recuperar o contexto em que as
e a teoria, método e história da antropologia. ideias foram produzidas, assim como sua atua-
Criado em 2009, já produziu várias teses e lidade para a reflexão atual. Menos do que uma
dissertações, recebeu alguns prêmios e indica- história da antropologia, trata-se de oferecer
ções, publicou livros e artigos em periódicos uma reflexão sobre as artes e saberes da (e para)
nacionais e internacionais, promoveu muita a antropologia.
conversa, estudos e debates, contribuindo as- – Expressão artística, memória e experiência
sim para a formação de um campo de pesquisa social: o fio da memória costura essa linha que
por meio de uma troca profícua entre pesqui- se beneficia da análise de expressões artísticas
sadores de iniciação científica, mestrado, dou- variadas (fotografia, música e literatura, por
torado e pós-doutorado. A produção do ASA exemplo), pensando-as de forma interligada às
pode ser acompanhada em http://www.coleti- experiências sociais.
voasa.dreamhosters.com/. – Práticas e imaginários urbanos: a linha reú-
Merece destaque também a participação, ne pesquisas sobre espaço e cidades, pensando-
como membros do Coletivo ASA, de pes- -os em suas relações estreitas com a memória,
quisadores vinculados à Fundação Escola de as ideias e representações. Trata-se de indagar
Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), os usos e sentidos conferidos pelos sujeitos ao
à Universidade Estadual de Campinas espaço praticado, o que nos endereça também
(Unicamp), à Universidade Federal do às dimensões pública e política.
Recôncavo da Bahia (UFRB), à Universidad – Cultura e Política: a política é aqui toma-
da la República (Udelar), à Université de da do ponto de vista de suas práticas, formas
Montréal (UdeM) e à École des Hautes Études expressivas e significados, interrogando ainda
en Sciences Sociales (Paris). os sentidos nativos de “cultura” e “política”,

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


358 | Coletivo ASA - Artes, Saberes e Antropologia

assim como indagando sobre os diversos mo- Em 2014, por exemplo, no primeiro semes-
dos como os termos se inter-relacionam. tre, realizamos a leitura de algumas de nossas
Se são várias as linhas de atuação, os temas pesquisas: dois relatórios de iniciação científi-
abordados também são diversos. Modernismos, ca (de Bruno Ribeiro e Diogo Maciel, então
viagens, bordadeiras, cidades, intelectuais, graduandos), de três projetos de doutorado
movimentos sociais, memórias, políticas (dos doutorandos Adriana Taets, Alexandre
culturais, fotografia, literatura, arte, música, Araújo e Julia Goyata) e de dois projetos de
pensamento social etc. Tamanha diversidade é pós-doutorado (dos pós-doutorandos Eduardo
articulada por uma série de linhas transversais Pedrosian e Rodrigo Ramassote).
que dão as bases das trocas que acontecem neste Do debate sobre esses projetos e do acúmu-
grupo. Assim, de um lado, há uma aproximação lo de discussões provenientes dos últimos anos,
em função de uma perspectiva etnográfica para o segundo semestre, desenhamos uma agen-
e de uma abordagem da vida social centrada da de leituras que nos permitissem interpelar as
nas práticas. Nesse sentido, uma questão que categorias de imagem, representação e agência.
frequentemente aparece nas pesquisas é: o que Debruçamo-nos sobre autores como Jean-Pierre
uma abordagem etnográfica sobre determinada Vernant, Carlo Ginzburg, Alfred Gell, Bruno
questão pode propiciar? O que de novo pode Latour, Gregory Bateson e Annelise Riles. Nessa
ser iluminado ao atentar para as práticas empreitada, especialmente para as leituras dos
cotidianas? De outro, há o gosto por temáticas textos de Gell, contamos com a valiosa partici-
variadas, mas que, sutilmente, se aproximam pação de Adriana de Oliveira Silva, doutoranda
a partir dos objetos de estudo propostos, que do PPGAS/USP e integrante do Napedra.
gravitam em torno dos eixos mencionados. Com essas leituras, interessava-nos aprofun-
A antropologia, portanto, é aqui tomada dar alguns aspectos sobre a noção de agência,
como principal ferramenta – ou caminho – entender como ela poderia nos ajudar a apro-
para olhar, ouvir, sentir… enfim, para perceber fundar o movimento de crítica da ideia de repre-
e pensar o mundo. Por meio de seus métodos sentação enquanto algo oposto ou dissociado de
e conceitos e, principalmente, de uma certa práticas e ações concretas, além de nos permitir
perspectiva que lhe é própria, os pesquisadores pensar aplicações inovadoras, como aquela que
do Coletivo ASA se voltam para seus objetos. tem sido feita a partir de uma antropologia dos
Ao mesmo tempo, ela própria é matéria de re- artefatos. O que é uma imagem, e como ela
flexão, seja nas histórias da antropologia e das tem sido pensada? Para além da pergunta sobre
ideias feitas por alguns membros do grupo, seja o que uma imagem diz ou representa, que res-
na exploração dos limites e possibilidades da postas podemos obter à formulação sobre o que
reflexão, da escrita e da prática etnográfica rea- elas fazem? E mais do que isso, como olhar efe-
lizada por todos nós. tivamente para as dimensões e suportes mate-
Esse trabalho de estudo, análise e debate é riais pelas quais essas imagens e representações
efetuado coletivamente a partir de duas princi- se fazem presentes em nossas investigações?
pais atividades, que ocupam nossos encontros Bordados, fotografias, correspondências,
regulares: a discussão das pesquisas de inte- monumentos, indumentárias, documentos e
grantes do grupo e de eventuais convidados, arquivos de várias naturezas; danças, músicas e
e a discussão de textos que compõem agendas performances: o que elas fazem; como operam
temáticas, definidas semestral ou anualmente. suas agências; como artefatos, formas e padrões

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 357-359, 2014


Coletivo ASA - Artes, Saberes e Antropologia | 359

específicos são capazes de ser eficazes e de afe- Doutores e doutorandos: Adriana Rezende
tarem, e até constituírem, as pessoas, relações Faria Taets, Alexandre Araújo Bispo, Bruno
e ambientes colocados ao seu redor? Estas são de Macedo Zorek, Dalila Vasconcellos de
algumas das perguntas que têm ocupado as re- Carvalho, Isabela Oliveira Pereira da Silva, Júlia
flexões do Coletivo ASA. Vilaça Goyatá, Lorena Avellar de Muniagurria,
Blog: http://www.coletivoasa.dreamhos- Luísa Valentini, Thais Chang Waldman, Thaís
ters.com/ Fernanda Salves de Brito.
Contato: coletivoASA@gmail.com Mestres e mestrandos: Bruno Ribeiro da
Coordenadora: Fernanda Arêas Peixoto Silva Pereira, Diogo Barbosa Maciel, Vinícius
Pós-doutorandos: Eduardo Álvarez Augusto Guerra Spira, Fábio Osias Zuker e
Pedrosian, Julia Ruiz Di Giovanni, Rodrigo Maria Victoria Gaburro de Zorzi.
Martins Ramassote. Graduandos: Daniele Soares.

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361

Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade


(GEAC)

Criado em 2005, o Grupo de Estudos de musicais, à busca de um conhecimento mais


Antropologia da Cidade, coordenado por abrangente do que a polaridade “Nova Luz-
Heitor Frúgoli Jr., realiza encontros regulares cracolândia”, veiculada pela grande imprensa,
para o debate e reflexão sobre temas ligados costumava sugerir2.
a esse campo da antropologia, reunindo pes- Interessa-nos, portanto, tomar as cidades
quisadores em diversos estágios da carreira como contextos assinalados por linhas de for-
acadêmica. ça amplamente diversificadas e heterogêneas,
Nossas interações sempre se basearam em em que o enfrentamento etnográfico constitui
princípios de diálogo, reciprocidade e coleguis- uma prática decisiva na reconstituição de re-
mo.  No início líamos e discutíamos antropo- des de relações e conexões, dadas a princípio
logia urbana, na interface com outros estudos pelos próprios citadinos, em suas relações com
disciplinares sobre a cidade (principalmente equipamentos e artefatos urbanos. Tais práticas
São Paulo), depois abrimo-nos para outras ver- empíricas devem preferencialmente se assentar
tentes antropológicas, o que foi entremeado, em uma dada territorialidade ou espacialidade,
aos poucos, pela discussão detida de textos de a partir das quais se consiga investigar, de for-
participantes sobre seus próprios trabalhos1.  ma articulada, seus aspectos mais relevantes e
Num dado momento, concomitantemente, recorrentes, que se abrem para aprofundamen-
parte dos estudantes se envolveu numa pesqui- tos em múltiplas direções, mas com um núcleo
sa de caráter coletivo, na qual tal espírito de relacional que permita acumular saberes resul-
partilha também esteve presente. Isso resultou tantes de cruzamentos de recortes, que enfim
numa abordagem pautada pela confluência de configuram a cidade, em sua diversidade e den-
distintas linhas de investigação, sintetizadas sidade constitutivas.
no “Dossiê Luz, São Paulo” (dez./2012, http:// Desde meados de 2013, temos realizado,
pontourbe.revues.org/1129). Trata-se do en- em conjunto com o Núcleo de Antropologia
foque concentrado de um espaço que integra Urbana (NAU-USP), seminários periódicos
a área central paulistana, com uma densidade dessa área do Departamento de Antropologia
significativa de processos e de olhares discipli- da FFLCH-USP, sempre com a participação
nares, o que justificou um conjunto articula- de três apresentadores, com destaque para os
do de recortes etnográficos. Foi dada especial seguintes eventos: “Reflexões sobre etnografias
atenção a práticas espaciais de seus residentes, em contextos distintos: a questão da alterida-
a ações de entidades sociais voltadas a usuários de”, “Museus e patrimônios: perspectivas an-
de crack e a outros atores sociais vulneráveis, a tropológicas”, “Periferias e estéticas da cidade”
usos de suas principais instituições culturais e e “Práticas futebolísticas em Manaus e São
a formas de lazer e interação ligadas a práticas Paulo: redes, sociabilidade e gênero”.

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362 | Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC)

Entre 16 e 17 de setembro de 2014, realiza- em questão a partir de sua insuficiência para a
mos no prédio das Ciências Sociais da USP, em elucidação de processos observados na vida coti-
parceria com o NaMargem (Cebrap-UFSCar) diana citadina.
e o LEU (FGV-RJ), a “II Oficina de Estudos
Urbanos”, que contou com a participação de Site: http://geacusp7.wix.com/geac
pesquisadores referenciais no campo das ciências Facebook: https://www.facebook.com/
sociais, debates expressivos e um público signi- grupoestudosdeantropologiadacidade
ficativo em todas as sessões. Durante as quatro Contato: geac_usp@yahoo.com
mesas do encontro, por meio de debates trans- Professor responsável: Heitor Frúgoli Jr.
versais e cumulativos – “As cidades para além Pós-doutorando, doutor e doutorando:
dos binarismos”, “Territórios e territorialidades”, Guilhermo André Aderaldo, Enrico Spaggiari,
“Cidades, estado e mercados” e “Insurgências Bruno Puccinelli.
contemporâneas”3 – foram tratados rumos re- Mestres e mestrandos: Bianca Barbosa
levantes das metrópoles brasileiras, com ênfase Chizzolini, Julio Cesar Talhari, Laís Silveira,
nos contextos carioca e paulistano (assinalados Gabriel Moreira Monteiro Bocchi.
pela conjunção de fenômenos de abrangência no Graduandos: Maurício Fernandes de
cenário nacional), com destaque para os seguin- Alcântara, Eduardo Rumenig de Souza, Júlia
tes tópicos: megaprojetos urbanísticos ligados a Daher Marques, Luca Fuser.
eventos esportivos internacionais ou a processos Colaboradores: Jessica Sklair (Goldsmiths
de revalorização urbana, com fortes impactos College), Mariana Cavalcanti (CPDOC-FGV-
principalmente sobre populações vulneráveis; RJ), Mariane Pisani (NUMAS-PPGAS-USP),
um conjunto de insurgências sociais e políticas Juliana Blasi Cunha (LeMetro/UFF), Márcio
materializadas em manifestações públicas que se José de Macedo (New School for Social
tornaram visíveis a partir de meados de 2013; o Research, New York), Simone Toji (University
crescimento do impacto da criminalidade em of St. Andrews), Ana Catarina Morawska
diversas esferas do tecido urbano; as novas ges- Viana (UFSCar), Taniele Rui (Cebrap/FESP),
tões de controle policial voltadas ao enquadra- Otávio Raposo (ISCTE-IUL), Giancarlo
mento do mundo do crime já mencionado; as Marques Carraro Machado (NAU-USP),
várias práticas culturais, religiosas e de consumo Weslei Estradiote Rodrigues (PPGAS-USP),
que se articulam em tais contextos, com a am- Lídia Canellas (PPGA-UFF), Alice Maria
pliação da noção de mercado, ressignificada por Buratto (Ciências Sociais-USP), Guilherme
uma série de práticas ligadas às classes popula- Leon Oliveira (Ciências Sociais-USP).
res e marginalizadas; os diversos agenciamentos Grupos parceiros: NaMargem (Núcleo de
culturais realizados de forma estratégica por co- Pesquisas Urbanas-UFSCar-Cebrap), Laboratório
letivos originários de áreas periféricas. Tais di- de Estudos Urbanos (LEU-FGV-RJ), Núcleo de
mensões exigem aprofundamentos das práticas Apoio à Pesquisa “São Paulo: cidade, espaço, me-
de pesquisa etnográfica, para possibilitar olhares mória” (NAPSP-USP).
refinados a tais processos e agentes, bem como
acirram a necessidade de problematização críti- Notas
ca de dicotomias que norteiam muitos estudos,
como centro-periferia, favela-asfalto, formal- 1. Um desdobramento dessas dinâmicas foi a publicação
-informal, público-privado, dentre outras, postas de Sociabilidade urbana, de Heitor Frúgoli Jr. (Rio de

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 361-363, 2014


Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC) | 363

Janeiro, Jorge Zahar, 2007). Dois livros já saíram de 2. Tal investigação contou com o apoio de CNPq atra-
dissertações de mestrado de integrantes do GEAC: A vés de dois projetos: o Universal (Edital MCT/CNPq
filantropia paulistana: ações sociais em uma cidade segre- 14/2008, 2008-2010) e o de Iniciação Científica
gada, de Jessica Sklair (São Paulo, Humanitas, 2010) e (Edital MCT/CNPq 01/2007, 2007-2010).
De carrinho pela cidade: a prática do skate em São Paulo, 3. Ver a programação completa em http://geacusp7.wix.
de Giancarlo Machado (São Paulo, Intermeios, 2014). com/geac#!ii-oficina-de-estudos-urbanos/c10uk.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 361-363, 2014


365

nominata de pareceristas

Nome Filiação Institucional Titulação


Alberto Groisman UFSC Professor Doutor
Ana Paula Alves Ribeiro UFRRJ Doutora
Andre Gondim do Rego IFB Professor Doutor
Andrea Bayerl Mongim UFES Professora Doutora
Antônio Cristian Saraiva Paiva UFC Professor Doutor
Antonio Maurício Dias da Costa UFPA Professor Doutor
Bruno Nogueira Guimarães Museu Nacional/UFRJ Mestre
Carlos Herold Junior UEM Professor Doutor
Carolina Branco de Castro Ferreira Unicamp Doutora
Ciméa Barbato Bevilaqua UFPR Professora Doutora
Clebemilton Gomes Nascimento UFBA Mestre
Debora Breder Barreto UCAM Professora Doutora
Denise Fajardo Grupioni USP/Iepé Doutora
Elena Calvo Gonzales UFBA Professora Doutora
Emerson Alessandro Giumbelli UFRGS Professor Doutor
Emmanuel Duarte Almada UEMG Professor Doutor
Esther Jean Langdon UFSC Professora Doutora
Fabiana de Andrade USP Mestra
Fabiano de Souza Gontijo UFPA Professor Doutor
Fábio Reis Mota UFF Professor Doutor
Fernando Altair Pocahy UERJ Professor Doutor
Flávio Leonel Abreu da Silveira UFPA Professor Doutor
Gleicy Mailly da Silva USP Mestra
Guilherme Orlandini Heurich Museu Nacional/UFRJ Mestre
Guilherme Silva de Almeida UERJ Professor Doutor
Gustavo Santa Roza Saggese USP Mestre
Hippolyte Brice Sogbossi UFS Professor Doutor
Iracema Dulley USP Doutora
Iris Gareis Goethe-Universität Professora Doutora
Irlys Alencar Firmo Barreira UFC Professora Titular
Isabel Santana de Rose UFMG Doutora

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


366 | Nominata de Pareceristas

Nome Filiação Institucional Titulação


Isadora Lins França Unicamp Professora Doutora
Izabela Maria Tamaso UFG Professora Doutora
Jacqueline Moraes Teixeira USP Mestra
Joana Cabral de Oliveira USP Doutora
John Cunha Comerford Museu Nacional/UFRJ Professor Doutor
Júlia Frajtag Sauma UCL Doutora
Juliana Goncalves Melo UFRN Professora Doutora
Julie Sarah Lourau Alves da Silva UCSAL Doutora
Julio Cesar Suzuki USP Professor Doutor
Laila Andressa Cavalcante Rosa UFBA Professora Doutora
Larissa Pelúcio UNESP Professora Doutora
Leandro Colling UFBA Professor Doutor
Leandro Oliveira URCA Professor Doutor
Leticia de Faria Ferreira UFFS Professora Doutora
Lúcia Hussak van Velthem MPEG/MCT Doutora
Lucybeth Camargo de Arruda UFOPA Professora Doutora
Luís Roberto de Paula UFABC Professor Doutor
Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia UFS Professor Doutor
Marcelo Moura Mello Unicamp Mestre
Marina Guimarães Vieira UFBA Professora Doutora
Maristela de Paula Andrade UFMA Professora Doutora
Milton Júlio de Carvalho Filho UFBA Professor Doutor
Mónica Lourdes Franch Guitiérrez UFPB Professora Doutora
Nádia Elisa Meinerz UFAL Professora Doutora
Orlando Fernandes Calheiros Costa Museu Nacional/UFRJ Doutor
Paride Bollettin UFOPA Professor Doutor
Paulo Ricardo Müller UFRGS Mestre
Pedro Lopes USP Mestre
Rachel Aisengart Menezes UFRJ Professora Doutora
Raphael Bispo dos Santos UFF Professor Doutor
Raquel Wiggers UFAM Professora Doutora
Renato Francisco Marques USP Professor Doutor
Ricardo Verdum UnB Doutor

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 365-367, 2014


Nominata de Pareceristas | 367

Nome Filiação Institucional Titulação


Sandra Jacqueline Stoll UFPR Professora Doutora
Sandra Maria Nascimento Sousa UFMA Professora Doutora
Scott Correll Head UFSC Professor Doutor
Sérgio Ivan Gil Braga UFAM Professor Doutor
Silvia Aguião Rodrigues Unicamp Doutora
Sylvia Caiuby Novaes USP Professora Titular
Thereza Cristina Cardoso Menezes UFAM Professora Doutora
Ulisses Neves Rafael UFS Professor Doutor
Vanessa Jorge Leite UERJ Doutora
Verena Sevá Nogueira UFCG Professora Doutora
Victor Torres de Mello Rangel UFF Mestre
Vitor Pinheiro Grunvald USP Mestre
Wagner Xavier de Camargo UFSCar Doutor
Winifred Knox UFES Professora Doutora

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 365-367, 2014


369

números anteriores
Nº. 21 (2012) TRADUÇÕES
O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva
ARTIGOS E ENSAIOS amazônica sobre a natureza do ser humano
O Tabu do Incesto e a Bioantropologia Anne-Christine Taylor
José Francisco Carminatti Wenceslau e André Strauss
Apresentação
Guías de campo y registro etnográfico. Una revisión Wilson Trajano
del abordaje de los niños y niñas desde la Guía para la
Ancestrais enquanto pessoas mais velhas do grupo de
clasificación de los datos culturales
parentesco na África
Noelia Enriz
Igor Kopytoff
O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes,
corpos e poderes vistos por entendidos
ESPECIAL
Rafael da Silva Noleto
Sobre o Convênio Acadêmico Internacional entre o
A dor em movimento: corpo e envelhecimento nas Departamento de Antropologia Social e Cultural da
academias de ginástica Universidade Autônoma de Barcelona (DASC-UAB) e o
Aline Alcarde Balestra Departamento de Antropologia da Universidade de São
Paulo (DA-USP)
Trabajo y salud en los años de la reestructuración
Marcio Ferreira da Silva
productiva. El caso de los trabajadores de la ex
Propulsora Siderúrgica, Ensenada, Buenos Aires No ritmo do bombeio: teoria e métodos para o estudo
María Alejandra Esponda antropológico em um espaço de venopunção assistida
em Barcelona
Los rastros de una búsqueda: un archivo documental en
Rafa Clua
Abuelas de Plaza de Mayo
Sabina A. Regueiro Materialidade e subjetividade do trabalho: notas
preliminares sobre os call centers no Chile
Política em Família. Relações de parentesco e facções
Areli Escobar Salazar
políticas em um município da Zona da Mata de Minas
Gerais Do Pacífico ao Mediterrâneo: coincidências e diferenças,
Luciano Senna Peres Barbosa a partir da antropologia, na concepção de patrimônio
cultural
Abrir no Mundo, Rasgando o Trecho: Mobilidade
Adriana Arista Zerga
Popular, Família e Grandes Projetos de Desenvolvimento
André Dumans Guedes A construção da pessoa imigrante no limbo jurídico:
nem deportados nem regularizados na Espanha
Eu, nativo, nós, Ialanawinai. Reflexões baniwa sobre a
Adriana Jarrín Morán
alteridade branca
João Vianna
RESENHAS
De skate pela cidade: quando o importante é (não) competir
ALVES, Fábio Lopes. Noites de cabaré: prostituição
Giancarlo Marques Carraro Machado feminina, gênero e sociabilidade na zona de meretrício
Marcelo de Paula Pereira Perilo
ARTES DA VIDA BRUMANA, Fernando Giobellina. O sonho dogon: nas
V Kipupa Malunguinho da Jurema Sagrada origens da etnologia francesa
Pedro Stoeckli Pires Romulo Lelis
FISCHER, Michael. Futuros antropológicos: redefinindo a
ENTREVISTA cultura na era tecnológica
Pontos em expansão: uma conversa com Marilyn
Thamires de Lima Silva
Strathern
Bruno Guimarães, Luisa Girardi, Mariana Oliveira e WAGNER, Roy. A invenção da cultura.
Rui Harayama Daniel Pícaro Carlos

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


370 | Números Anteriores

INFORMES Múltiplos ordenamentos de realidade: o debate iniciado


Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da por Lévy-Bruhl
Diferença – NUMAS Stanley Tambiah
Grupo de Antropologia Visual – GRAVI
Grupo Nós Mulheres
ESPECIAL
Nº. 22 (2013) Apresentação
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer
ARTIGOS E ENSAIOS Pixadores pela cidade: (i)legalidades e ambiguidades nas
“Filhos de uma reza só”: regulamentação jurídica extensas relações da pixação de Belo Horizonte
das identidades e paradoxos da adequação no Rodrigo Amaro de Carvalho
reconhecimento do Quilombo do Carmo
Rebeca Campos Ferreira A Lei Maria da Penha e os atendimentos
multidisciplinares: os sentidos de uma proposta diferente
Una “individualidad forzada”: experiencias conyugales no Fórum do Núcleo Bandeirante, Distrito Federal
de mujeres separadas con hijos Ranna Mirthes Sousa Correa
Carolina Castellitti
A representação da homossexualidade nos discursos
Signos urbanos juvenis: rotas da pixação no ciberespaço jurídicos sobre adoção homoparental
Glória Diógenes Rafael Morello Fernandes
Interagir é fazer? Uma descrição de uma exposição de “Entre o ser humano e as leis existem muitas coisas”:
arte digital e interativa vozes femininas acerca da
Marcello da Silva Malgarin Filho & Débora Krischke criminalização do aborto
Leitão Emilia Juliana Ferreira
O índio e a revolução. Reflexões sobre a antropologia e o Drama social e narrativas do assassinato de Aline
indigenismo mexicano (1920-1960) Ana Letícia de Fiori
Mariana da Costa Aguiar Petroni
“A lei ficou louca”: A Lei Maria da Penha e os efeitos da
Jogando pelas beiradas: Sobre o vivido de meninos e incondicionalidade da lesão
homens num estádio de futebol em Catingueira-PB corporal no trabalho policial em duas DDM de São Paulo
Antonio Luiz da Silva Beatriz Accioly Lins
Heidegger, Ingold e as (zoo)técnicas: uma discussão a “A minha verdade é minha justiça”: dilemas e paradoxos
partir da bovinocultura de corte brasileira sobre o princípio da
Caetano Sordi imparcialidade judicial
Bárbara Gomes Lupetti Baptista
ARTES DA VIDA O Estatuto do Nascituro: quando os documentos
A itinerância da vida manoki legislativos constroem pessoas
André Lopes Bruna Potechi
ENTREVISTA Representações sociais sobre a família do adolescente em
Antropologia e/da Educação no Brasil: entrevista com conflito com a lei: a lei e suas ressignificações
Neusa Gusmão Juliana Vinuto
Amurabi Oliveira
RESENHAS
TRADUÇÕES MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da periferia ao
“De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, cinquenta anos centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana.
depois: por uma ontologia Maori Bruno Puccinelli
Patrice Maniglier
MARTINS, Pedro; SÁNCHEZ, Héctor Ávila;
Vanguarda conservadora WELTER, Tânia (orgs.). Território e
Richard Schechner sociabilidade: relatos latinoamericanos.
Valdir Aragão do Nascimento

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 369-371, 2014


Números anteriores | 371

MELLO, Marcelo Moura. Reminiscências dos quilombos: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA,
territórios da Wania (orgs.). Festa como perspectiva e em perspectiva.
memória em uma comunidade negra rural. Rafael da Silva Noleto
Marcos Teixeira Souza
MELLO, Marco Antônio da Silva; MACHADO DA INFORMES
SILVA, Luiz Antonio; FREIRE, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Leticia de Luna; SIMÕES, Soraya Silveira (orgs.). Afro-Brasileira (UNILAB)
Favelas cariocas: ontem e hoje.
Ana Beatriz Esteves
ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto; RICKLI, João
(orgs.). Transnacionalização
religiosa: fluxos e redes.
Ronaldo de Oliveira Rodrigues

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 369-371, 2014


373

Instruções para colaboradores

Objetivo e Política Editorial 4. Conceitos e opiniões expressos nos tra-


balhos publicados são de responsabilidade
A Cadernos de Campo – revista dos alu- exclusiva dos autores, não refletindo obrigato-
nos de pós-graduação em antropologia so- riamente a opinião da comissão editorial.
cial da USP é uma publicação anual dedicada
a divulgar trabalhos que versem sobre temas,
resultados de pesquisas e modelos teórico- Critérios para apresentação de
metodológicos de interesse para o debate colaborações
antropológico contemporâneo e que possam
contribuir no desenvolvimento de pesquisas em 5. A revista aceita periodicamente contribui-
nível de pós-graduação, no país e no exterior. ções nos seguintes formatos: Artigos e Ensaios,
Traduções, Resenhas, Entrevistas, Produções visu-
1. Todas as contribuições serão submeti- ais (artes da vida) e Informes.
das à avaliação da comissão editorial, que le-
vará em conta tanto a adequação ao perfil e à Atenção: Desde Agosto de 2012 NÃO
linha editorial da revista quanto o conteúdo e RECEBEMOS TRABALHOS IMPRESSOS,
a qualidade dos trabalhos; no caso de Artigos, seja via correio ou em mãos. SOMENTE
Ensaios ou Resenhas a relevância para a publi- RECEBEREMOS VIA NOSSO PORTAL.
cação também será avaliada por pareceristas da Em caso de dúvidas entre em contato conos-
área do trabalho. co pelo e-mail cadcampo@usp.br.

2. A Cadernos de Campo publicará prefe- 5.1. Artigos e ensaios. Devem ser inéditos,
rencialmente trabalhos redigidos em português; indicar título, resumo entre 100 e 150 palavras
todavia, serão aceitas também contribuições e um elenco de 5 palavras-chave (separadas por
em espanhol e, eventualmente, francês e inglês, ponto e vírgula), todos em português e inglês,
ficando nos dois últimos casos a publicação identificando seu conteúdo. Limite máximo de
condicionada à possibilidade de tradução do 10.000 palavras, incluídas as referências. Não se-
trabalho. rão publicados artigos e ensaios que excedam esse
limite. Avaliação: O Artigo ou Ensaio que esti-
3. A remessa espontânea de qualquer co- ver dentro das normas citadas acima será enviado
laboração inédita implica automaticamente a para dois pareceristas da área, os quais emitirão
cessão de direitos autorais (reprodução/divul- seus pareceres. O resultado dos pareceres poderá
gação) à Cadernos de Campo, assim autorizada ser DEFERIDO (dois pareceres favoráveis à pu-
à publicá-la. Reservados os direitos da revista, blicação sem modificações), DEFERIDO COM
fica autorizada a reprodução posterior desses MODIFICAÇÕES SIMPLES (dois pareceres fa-
trabalhos, sob a condição de que seja men- voráveis a publicação desde que feita alterações sim-
cionada a publicação original na Cadernos de ples), DEFERIDO COM MODIFICAÇÕES
Campo, inclusive em caso de tradução. SUBSTANTIVAS (dois pareceres favoráves a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


374 | Instruções para colaboradores

publicação desde que feita profundas alterações no 5.4. Entrevistas: Elas devem apresen-
trabalho) e INFEDERIDO (dois pareceres des- tar o(s) nome(s) do(s) entrevistado(s) e
favoráveis à publicação). Caso exista um parecer entrevistador(es). Devem trazer também uma
indicando DEFERIDO e outro INDEFERIDO, apresentação de, no máximo, 400 palavras.
a comissão enviará o trabalho para um terceiro pa- Solicitamos também o envio da autorização
recerista da área. do(s) entrevistado(s), concordando com a pu-
blicação do trabalho. As entrevistas não devem
5.2. Traduções de trabalhos relevantes e exceder 10.000 palavras. Avaliação: A avaliação
indisponíveis em língua portuguesa ou, em al- da entrevista será realizada pela comissão
guns casos, textos que justifiquem uma retra- editorial da Cadernos de Campo e será leva-
dução, devem apresentar título, nome(s) do(s) do em compensação a relevância dos assuntos
autor(es) e do(s) tradutor(es). Devem ainda abordados e sua pertinência na edição.
ser acompanhadas de cópia do original utiliza-
do na tradução, bem como da autorização do 5.5. Produções visuais (artes da vida):
detentor dos direitos autorais permitindo sua Produções estéticas como ensaios fotográficos,
publicação em português. As traduções não ilustrações, desenhos, partituras, poemas, etc.,
devem exceder 10 mil palavras. Avaliação: A possuem uma seção especial na Cadernos de
qualidade da tradução será avaliada pela comis- Campo. Tais trabalhos devem indicar título, em
são editorial e o trabalho passará por um revi- português e inglês, e nome(s) do(s) autor(es).
sor técnico, normalmente um professor doutor Devem trazer também uma apresentação de, no
com familiaridade com as proposições teóricas máximo, 400 palavras. Tratando-se de imagens,
do texto. É obrigatório que antes de submetê- devem vir em preto e branco, sem extrapolar o
-la os autores a façam passar, além de sua pró- limite de 8 imagens, em resolução a partir de 300
pria revisão, por uma revisão técnica particular. dpi, acompanhadas da indicação do autor e do
ano. Legendas são opcionais. Solicitamos tam-
5.3. Resenhas de livros editados nos dois úl- bém as devidas autorizações de uso, incluindo a
timos anos a contar da data de publicação do possível publicação de uma das fotos na capa da
mesmo. Devem indicar a referência bibliográfica revista. Avaliação: A partir de 2012 a Cadernos
do trabalho resenhado. Não devem ultrapassar de Campo adotará uma curadoria na escolha dos
2.400 palavras. Não serão publicadas resenhas trabalhos visuais que serão selecionados. O nome
que excedam esse limite. Avaliação: A partir de do(a) curador(a) será divulgado junto com o edi-
2012 toda resenha a ser publicada pela revista tal de abertura de chamada de trabalhos.
será enviada para um pareceristas da área. O
resultado do parecerer poderá ser DEFERIDO 5.6. Informes: Serão bem-vindos informes
(parecer favorável à publicação sem modifica- de instituições relacionadas à antropologia,
ções), DEFERIDO COM MODIFICAÇÕES como programas de pós-graduação, grupos e
SIMPLES (parecer favorável a publicação desde núcleos de pesquisa. Recomenda-se que os in-
que feita alterações simples), DEFERIDO COM formes apresentem a instituição de forma su-
MODIFICAÇÕES SUBSTANTIVAS (parece- cinta e informativa para os leitores. Não devem
rer favorável a publicação desde que feita pro- ultrapassar 1.200 palavras. Exemplos de infor-
fundas alterações no trabalho) e INFEDERIDO mes estão disponíveis nas edições anteriores da
(parecerer desfavorável à publicação). revista.

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 373-377, 2014


Instruções para colaboradores | 375

6. Os trabalhos devem estar digitados em repetição de um mesmo autor em citações su-


página A4, fonte Times New Roman, corpo cessivas deverá repetir-se o formato (autor, ano
12, espaçamento 1,5 cm, com margens esquer- da obra, número da página). A partir de 2012
da/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé 3 cm, em a formatação da Cadernos de Campo excluirá
formato Microsoft Word (.doc ou .docx) ou o uso dos termos “Ibid, Idem”, “Id.”, “Ibidem”
OpenOffice (.odt) ou “Opus cit.”. Exemplos de formatação do
campo Notas estão disponíveis nas edições an-
7. Quadros, mapas, tabelas, imagens etc. teriores da revista.
devem ser enviados em arquivo separado, com As citações com mais de três linhas deve-
indicações claras, ao longo do texto, dos locais rão ganhar um parágrafo separado com re-
em que devem ser incluídos. No caso das foto- cuo em todo o parágrafo de 1,5cm, mantendo
grafias, devem estar digitalizadas com resolução o espaçamento entre linhas de 1,5cm e tama-
acima de 300dpi, formato .JPG e acompa- nho 12. As citações com tal parágrafo separado
nhadas com os dados do autor/fonte e ano de não devem ser envolvidas por aspas.
produção.
9. As referências bibliográficas devem vir
8. As notas e citações são enquadradas pelo ao final do trabalho, depois das notas e listadas
padrão da norma ABNT NBR 10520. É in- em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes
dispensável que os autores atentem minucio- padrões exemplificados, segundo as normas da
samente para a forma de apresentar as notas e ABNT NBR 6023 (pede-se atenção à pontu-
citações no corpo do texto. ação, espaços, usos do itálico e de maiúscula).
Seguem exemplos:
8.1. Notas: Lembre-se que as notas des-
tinam-se a prestar esclarecimentos ou fazer 9.1. Livros:
considerações que não devam ser incluídas no LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauva-
texto para não interromper a sequência lógica ge. Paris: Plon, 1962.
da leitura. Devem ser reduzidas ao mínimo,
estar dispostas em ordem numérica e relacio- ______. O cru e o cozido. Tradução de
nadas no final do texto, num tópico específico Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac &
intitulado Notas, antes do tópico Referencias Naify, 2004.
Bibliográficas. Não utilizar o sistema automá- BATESON, Gregory; MEAD, Margaret.
tico de notas do editor de texto. O número da Balinese Character. A Photographic Analysis.
nota não deverá vir formatado, mas sim em New York: The New York Academy of Sciences,
texto normal e sobrescrito. 1942.
Obs: Não colocar as referências em no-
tas, isso confunde os indexadores de citações 9.2 Trabalhos em coletâneas:
internacionais. STOCKING JR., George. The
Ethnographer’s Magic: Fieldwork in British
8.2. Citações: As citações dispostas no Anthropology from Tylor to Malinowski. In:
meio do texto devem seguir o padrão: (autor, ______. (Org.). Observers observed – Essays
ano da obra, número da página). Por exemplo: on Ethnographic Fieldwork. Madison: The
(LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 122). Caso exista a University of Wisconsin Press, 1983. p. 70 - 120.

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376 | Instruções para colaboradores

TURNER, Terence. Ethno-ethnohistory: direcionado à Página do Usuário, na qual deve-


Myth and History in Native South American rá clicar em [Nova submissão].
Representations of Contact with Western O processo de submissão divide-se em cinco
Society. In: HILL, J; WRIGTH, R. (Orgs.). passos. O autor deve preencher todos os passos
Rethinking History and Myth. Indigenous South adequadamente. O não cumprimento dessa exi-
American Perspectives on the Past. Urbana: gência acarretará na rejeição do trabalho. Os cam-
University of Illinois Press, 1988. p. 235-281. pos de preenchimento facultativo serão indicados.

9.3. Artigos em periódicos (versões im- Os cinco passos são:


pressa e eletrônica):
GEERTZ, Clifford. Ethos, world view and 1. Início: escolher a Seção (Artigos e
the analysis of sacred symbols. The Antioch re- Ensaios, Artes da Vida, Entrevista, Traduções,
view, Yellow Springs, v. 17, n. 4, p. 234-267, Resenhas ou Informes), aceitar as Condições
1957. para Submissão, a Declaração de Direito Autoral
BEVILAQUA, Ciméa. Direitos coletivos: e escrever Comentários para o Editor (opcional).
do contrato ao status?.Pontourbe: revista do nú-
cleo de antropologia urbana da USP, São Paulo, 2. Transferência do Manuscrito: anexar o
ano 1, v.1, 2007. Disponível em: <http:// trabalho (em formato .doc, .docx ou .odt) no
www.n-a-u.org/pontourbe01/Bevilaqua. site e clicar em Transferir.
html>. Acesso em: 23 mar. 2009.
3. Inclusão de Metadados: informações
9.4. Teses ou dissertações acadêmicas: sobre os Autores, Inclusão de Autor (se hou-
DAWSEY, John Cowart. De que riem os ver), Título e Resumo, Indexação, Agências de
bóias-frias? Walter Benjamin e o teatro épico Fomento (se houver) e Referências.
de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese
(Livre-docência) – Faculdade de Filosofia, 4. Transferência de Documentos Suple-
Letras e Ciências Humanas, Universidadede mentares: destinado para o envio de quadros,
São Paulo, São Paulo, 1999. mapas, tabelas, imagens etc., os quais devem
ser enviados em arquivos separados; Trabalhos
10. Autores(as) que tiverem artigos e en- para a seção Artes da Vida devem ser submetidos
saios publicados receberão dois exemplares. neste momento (o texto de apresentação deve
Resenhistas e demais colaboradores(as) recebe- ser inserido no passo 2). O termo de autoriza-
rão um exemplar cada. ção da Entrevista (que é obrigatório para a pu-
blicação nesta seção) deve ser submetido neste
Passo a passo como submeter os momento. Lembre-se que as imagens devem
trabalhos via portal: estar digitalizadas com resolução a partir de
300dpi, formato .JPG.
A submissão de trabalhos será feita uni-
camente pelo sítio. O autor deve cadastrar-se 5. Confirmação: verificar os passos anterio-
na revista selecionando a opção autor, gerar res e Concluir submissão.
login e senha (http://revistas.usp.br/cadernos-
decampo/user/register). Ao fazer o login, será Condições para submissão

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Instruções para colaboradores | 377

Como parte do processo de submissão, os au- 4. O texto está digitado em página A4, fon-
tores são obrigados a verificar a conformidade da te Times New Roman, corpo 12, espaçamento
submissão em relação a todos os itens listados a 1,5 cm, com margens esquerda/direita 2,5 cm,
seguir. As submissões que não estiverem de acor- cabeçalho/rodapé 3 cm.
do com as normas serão devolvidas aos autores.
5. O texto segue os padrões de estilo e re-
1. A contribuição é original e inédita, e não quisitos bibliográficos descritos em Diretrizes
está sendo avaliada para publicação por outra para Autores, na página Sobre a Revista.
revista; caso contrário, deve-se justificar em
“Comentários ao editor”. 6. Em caso de submissão a uma seção com
avaliação pelos pares (ex.: artigos), as instru-
2. O arquivo da submissão está em for- ções disponíveis em Assegurando a avaliação
mato Microsoft Word (.doc ou .docx) ou pelos pares cega foram seguidas.
OpenOffice (.odt).

3. URLs para as referências foram informa-


das quando possível.

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Cupom
379 para pedido de números anteriores

Edição □ Brasil – Individual □ Brasil – Institucional Quantidade Sub-total


Nº 23 R$ 15,00 R$ 20,00
Nº 22 R$ 15,00 R$ 20,00
Nº 21 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 20 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 19 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 18 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 17 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 16 R$ 10,00 R$ 15,00
Nº 14/15 Esgotado Esgotado
Nº 13 Esgotado Esgotado
Nº 12 Esgotado Esgotado
Nº 11 Esgotado Esgotado
Nº 10 R$ 8,00 R$ 11,00
Nº 09 Esgotado Esgotado
Nº 08 R$ 5,00 R$ 10,00
Nº 07 Esgotado Esgotado
Nº 05/06 Esgotado Esgotado
Nº 04 Esgotado Esgotado
Nº 03 Esgotado Esgotado
Nº 02 Esgotado Esgotado
Nº 01 Esgotado Esgotado
Coleção (exceto nº esgotados) R$ 70,00 R$ 100,00
TOTAL
Preços válidos até 31/12/2015.

Assinante
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Cidade _______________________ Estado __________ Pais _______________
Telefone ( ) ______________________ Fax ( ) ____________________
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Forma de pagamento
Para formas de pagamento entre em contato conosco por e-mail, correios ou telefone:

E-mail: cadcampo@usp.br

Comissão Editorial Revista Cadernos de Campo


Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315
São Paulo, SP CEP 05508-900

fax: (11) 3091-3163

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


errata

Somam-se às correções publicadas em errata incluída nas edições impressas da Cadernos de


Campo n. 22, as seguintes correções:

Página 348
Onde lê-se, na edição online:
Marcos Teixeira Souza
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil
E, na edição impressa:
Marcos Teixeira Souza
Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
Leia:
Marcos Teixeira de Souza
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Página 351
Ondê lê-se, nas edições online e impressa:
Marcos Teixeira Souza
Mestre em Antropologia Social – UFG
Leia:
Marcos Teixeira de Souza
Doutorando em Sociologia - IUPERJ

Cordialmente,

Comissão Editorial

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