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ISBN 978-85-8422-021-2

© 2014 Editora Unoesc


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D536

Diálogos sobre direito e justiça: coletânea de artigos do Curso de Direito


da Unoesc - Joaçaba / organizadores Cristhian Magnus de Marco, Rafaella
Zanatta Caon Kravetz. – Joaçaba, SC: Editora Unoesc, 2014.
336 p.

ISBN 978-85-8422-021-2
Modo de acesso: World Wide Web

1. Direito. 2. Justiça. I. De Marco, Cristhian Magnus. II. Kravetz, Rafaella


Zanatta Caon. III. Título.

Doris 341

Universidade do Oeste de Santa Catarina

Reitor
Aristides Cimadon

Vice-reitor Acadêmico
Nelson Santos Machado

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Glauber Wagner
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Carlos Luiz Strapazzon
Gilberto Pinzetta
Marilda Pasqual Schneider
Claudio Luiz Orço – Titular
Luiz Carlos Lückmann
Maria Rita Nogueira
Daniele Cristine Beuron
Ricardo Xavier Rocha
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................5

A (I)LEGALIDADE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA CULPABILIDA-


DE DO AUTOR PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE À LUZ DO ESTA-
DO DEMOCRÁTICO DE DIREITO...................................................................7
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

A PERMISSÃO DO ABORTO EM CASOS DE ANENCEFALIA E UMA


POSSÍVEL ABERTURA AO ABORTO EUGÊNICO....................................29
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

A POSSIBILIDADE DA REFORMA DE IMÓVEIS LOCALIZADOS NAS


MARGENS DOS RIOS NO PERÍMETRO URBANO.....................................57
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL


(ADPF) N. 46: UMA BREVE ANÁLISE DO SERVIÇO
POSTAL BRASILEIRO...............................................................................85
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E OS REFLEXOS TRAZIDOS PELA


VIGÊNCIA DA LEI N. 12.850/13 NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRA-
SILEIRO HODIERNO........................................................................................109
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E PUBLICIDADE: UMA


ANÁLISE DO NEUROMARKETING EM FACE DO PRINCÍPIO DA
VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR..................................................137
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

COLETA DE PERFIL GENÉTICO COMO FORMA DE IDENTIFICAÇÃO


CRIMINAL: A LEI N. 12.654/2012 E O DECRETO N. 7.950/2013 SOB O
ENFOQUE DOS DIREITOS À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE...... 163
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari
DIREITO AO ESQUECIMENTO: CONFLITO ENTRE OS DIREITOS DA
PERSONALIDADE E A LIBERDADE DE IMPRENSA.............................. 187
Suelen Borssatti, Jorge Eduardo Hoffmann

DIREITO DE AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE: A PRO-


BLEMÁTICA DA (NÃO) SUBMISSÃO COERCITIVA AO EXAME DE
DNA........................................................................................................... 211
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE E SUA


APLICAÇÃO ERGA OMNES............................................................................ 235
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

OS TRANSEXUAIS E A ALTERAÇÃO DE NOME E SEXO NO REGIS-


TRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS: PERSPECTIVA DOS DIREITOS
DE PERSONALIDADE E DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA.............................................................................................................257
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE EM FACE DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: A OBRIGAÇÃO DO ESTADO
EM FORNECER MEDICAMENTOS PARA A PROTEÇÃO DA SAÚDE
HUMANA..............................................................................................................285
Silvana Miotto, Mauricio Eing

RELAÇÃO TRABALHISTA DOS PROFISSIONAIS DO DESPORTO:


ANÁLISE DA COMPETÊNCIA PARA JULGAR LITÍGIOS TRABALHIS-
TASENTRE JOGADORES DE FUTEBOL E CLUBES................................ 311
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro
APRESENTAÇÃO

É com grande alegria que apresentamos o presente e-book à


comunidade. Trata-se de uma coletânea de artigos, resultado de pesquisas
realizadas no processo de construção dos Trabalhos de Curso, na graduação em
Direito da Unoesc, Joaçaba. Cada texto traz em si a determinação individual
dos pesquisadores e, ao mesmo tempo, uma rede de cooperação que envolve
professores orientadores – de conteúdo e de metodologia –, secretarias, setores
de informática e biblioteca, editora, entre muitos outros.
Atribui-se a Aristóteles a frase: “a educação tem raízes amargas, mas
os frutos são doces”, e a Rousseau: “a paciência é amarga, mas seu fruto é
doce”. Seguramente, o livro eletrônico que o leitor possui na tela é o fruto doce
de um longo processo de educação e paciência. Os textos que seguem são o
produto de, pelo menos, cinco anos vivenciados no transcurso do bacharelado
em Direito. Cada artigo carrega no seu âmago o amadurecimento de ideias, a
experimentação de realidades e a apreensão de conceitos pelos seus autores.
A amargura, ou inquietação, é o sentimento fundamental para
a percepção de problemas de pesquisa que merecem ser investigados
sistematicamente. O desejo de encontrar respostas razoáveis, ainda que estas
sejam provisórias, é a força que anima o pesquisador do Direito a tentar
construir, com justiça, o conteúdo das normas, das decisões, dos fatos jurídicos.
Somente o diálogo que respeite a dignidade humana e o pluralismo
de ideias, tal como proposto nesta coletânea, permite espaços destinados
à construção intersubjetiva de valores e também de uma sociedade mais
democrática, livre e justa. Esperamos que este seja o primeiro livro, de muitos
diálogos sobre Direito e Justiça.
Boa leitura a todos!

Cristhian Magnus De Marco


Rafaella Caon Kravetz

5
A (I)LEGALIDADE DA APLICAÇÃO DA
TEORIA DA CULPABILIDADE DO AUTOR
PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE À LUZ
DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Luana Mena Barreto Lenzi1
Maurício Eing2

Resumo: Verifica-se que o sistema punitivo de uma coletividade corresponde à sua


maneira de compreender e combater a criminalidade, porquanto, ao estabelecer as
funções sociais da pena, legitima, assim, a intervenção estatal no controle social. Nesse
contexto, objetivou-se analisar quais aspectos influenciam a fixação inicial da sanção
penal para que ela cumpra seu papel preventivo e retributivo de acordo com a funda-
mentação adotada pelo Direito Penal nacional, esteja ela apoiada na reprovação de
condutas ou na censura de características pessoais dos delinquentes. A princípio, fez-
-se uma apresentação da pena no contexto do Direito Penal, discorrendo acerca da
sua importância social e evolução conceitual. Em seguida, a pesquisa concentra-se na
análise das finalidades da pena. Então, discutiu-se sobre o tratamento dado pelo Direi-
to Penal no momento posterior à realização do crime, quando surge para o Estado o
direito concreto de punir e a responsabilidade de efetivar a pena abstratamente comi-
nada, de modo que seja aplicada ao caso concreto de forma justa. Por fim, são aborda-
dos os critérios de fixação inicial da pena, bem como a legitimidade e implicações de
adotar critérios subjetivos no Direito Penal brasileiro frente à tipificação de condutas.
A metodologia seguida consubstancia-se na utilização do método dedutivo, por meio
da análise teórica de pesquisa documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Sanção penal. Direito Penal do Fato. Direito Penal do Autor. Pena-base.

1 INTRODUÇÃO

A pena, como um dos instrumentos coatores da criminalidade e da


preservação da ordem social, é, antes de tudo, responsável pela segurança
*
Graduanda do Curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina;
luanalenzi@hotmail.com
**
Especialista em Processo Civil e Novos Direitos pela Universidade do Oeste de Santa
Catarina; Professor do Curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina;
assessor do Ministério Público Federal; maurício.eing@unoesc.edu.br 7
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

jurídica e pela afirmação e validação do sistema penal em uma sociedade. Sua


positivação cogente por um lado limita o poder de punir do Estado e por outro
constitui a previsibilidade de uma conduta proibitiva e de seu resultado fático,
a imposição de sanções redutoras de direito aos infratores.
A inserção da pena no contexto social reflete a eventual insuficiência
e incapacidade das regras naturais disciplinadoras da convivência em inibir
certas ações incompatíveis com a ordem social que tornem as relações entre
os indivíduos instáveis e desarmoniosas. Ou seja, a pena representa um
mecanismo estatal de controle social.
Do direito/dever de punir avocado pelo Estado se extraem, além do
estudo dos fins da norma punitiva diante da evolução histórica do próprio
Direito Penal, as teorias legitimadoras que justificam sua justa e atual aplicação.
Nesse contexto, destaca-se o papel da sanção penal e, cada vez mais, dos
critérios utilizados para quantificar a sua fixação ao caso concreto mediante o
cumprimento de sua finalidade.
A ocorrência concreta dos delitos abstratamente descritos enseja
a consequente punição penal, por meio da aplicação da pena previamente
cominada, visando à redução da criminalidade, seja de forma a compensar a
lesão praticada, seja intimidando o criminoso e a coletividade, a fim de evitar a
prática de novos crimes e ressocializar o infrator, reinserindo-o no meio social.
A fixação da quantificação da pena é fase importante e necessária à
realização dos fins preventivo, retributivo e ressocializador a ela atrelados.
O processo de individualização da sanção penal inicia com a pena-base, por
meio da qual se estabelece a quantia inicial da condenação. Para tanto, a lei
determina quais os critérios objetivos e subjetivos que devem ser observados
para a sua determinação. Contudo, não está legal e expressamente descrita
a técnica de mensuração e avaliação de cada critério, restando ao Judiciário
apreciá-los ao caso concreto.
O presente trabalho, em suma, objetivou verificar a legitimidade de
utilizar critérios subjetivos do infrator, com base na corrente do Direito Penal
do Autor, na fixação da pena-base, considerando que a legislação se funda no
Direito Penal do Fato ao proibir e criminalizar condutas.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA SANÇÃO NO DIREITO PENAL

Os valores básicos consagrados em determinado meio social


8 institucionalizam regras naturais de comportamento e inserem padrões
Diálogos sobre direito e justiça

comportamentais validamente reconhecidos como adequados à convivência


de um determinado grupo. O sujeito que tende a se amoldar e reproduzir
essas atitudes acolhidas por uma sociedade se integram a ela por meio de
um processo de socialização do meio em que vive. Essa identificação com os
demais, seja espontaneamente, seja por influência implícita, une os membros
da sociedade, mantendo-a harmonizada (REALE JÚNIOR, 2009, p. 6-7).
Entende-se que essas regras provêm da integração social (escola,
trabalho, família, etc.) e constituem uma espécie de polícia natural e inerente,
denominada controle social informal (SHECAIRA, 2013, p. 141).
Ocorre que, segundo Reale Júnior (2009, p. 9), a falta de renúncia ao
atendimento de desejos individuais e a mudança de valores no meio social
podem prejudicar o processo de socialização e, consequentemente, a ordem
social. Nessa perspectiva, as regras de controle social informal são capazes de
assegurar, apenas de forma ínfima, a disciplina social e civilizada de um grupo,
dando vazão ao surgimento de um controle social formal.
Ao avocar para si a tarefa de compor litígios, o Estado, por meio do
Direito Penal, constituiu uma espécie de controle social formal, atuante somente
diante do fracasso dos instrumentos informais socializantes do indivíduo. O
Direito introduziu no cenário social as normas jurídicas, elaboradas a partir
da ânsia do Estado de controlar as relações sociais e manter, assim, a ordem e
a paz. Passou-se a determinar e legitimar certas condutas e estabelecer limites
(REALE JÚNIOR, 2009, p. 3).
Imperioso é que a norma penal, portanto, não é o único instrumento de
controle social, nem mesmo o mais fundamental. Como função complementar,
tem a responsabilidade de subsidiar as demais instâncias do controle social,
sempre que estas forem insuficientes. A natureza secundária das normas penais
constitui o caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de
controle social, cujo princípio solidificador é o da proporcionalidade, uma vez
que não se justifica a intervenção penal se houver outros instrumentos menos
gravosos e mais adequados à solução do litígio (QUEIROZ, 2001, p. 13).
Nesse sentido, cumpre delimitar os atos que caracterizam a ilicitude de
uma conduta, visto que o arcabouço do direito penal se pauta pelo princípio
da legalidade esculpido tanto na Constituição Federal quanto no Código
Penal, o qual reflete duas funções por meio da norma penal: a função política,
a qual primordialmente é instrumento limitador do poder punitivo do
Estado; e a função jurídica, funcionando como mecanismo de previsibilidade
9
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

de uma conduta proibitiva e seu consequente lógico, a pena (JUNQUEIRA;


VANZOLINI, 2013, p. 33).
Frisa-se que o direito penal, ao prever legalmente as condutas
consideradas criminosas, faz-no na busca da proteção de bens jurídicos, não
constitui, contudo, um sistema exaustivo de proteção. Sua intervenção possui
um caráter fragmentário, destarte elege como relevantes e merecedores de
proteção alguns bens jurídicos e tipifica condutas consideradas lesivas. Queiroz
(2001, p. 15) esclarece que “Não se protegem, portanto, todos os bens jurídicos,
e sim os mais importantes, e nem sequer os protege em face de qualquer classe
de atentados, mas tão-só em face dos ataques mais intoleráveis.”
Insta destacar que essa seleção de bens jurídicos penalmente relevantes
possui estreita também com a estrutura de poder (político e econômico)
dominante no grupo, vez que cada tipo de poder esculpe sua ideologia na
forma de controlar socialmente a conduta dos homens, imprimindo na
configuração do instrumento de controle social formal (direito penal) a sua
visão da realidade e os valores que se devem perseguir. Porém, frisa-se que
esse poder punitivo não poderá ser irracional e ilimitado, de modo que os
instrumentos de controle social sejam muito mais violentos e severos do que
os próprios crimes. É necessário que a intervenção estatal na esfera penal seja
mínima (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 62).
Nesse diapasão, forma-se o sistema penal próprio de uma sociedade,
que representa um modelo de unidade interna da ordem jurídica e de
adequação a princípios gerais, visando codificar e interpretar, de forma geral
e abstrata, as condições de incidência das normas incriminadoras e das suas
sanções penais (REALE JÚNIOR, 2009, p. 61).
Nesse sentido, é fácil compreender que as bases históricas ajudaram a
delimitar os delitos, bem como a aplicação das penas para fazer valer o sistema
penal admitido e, assim, os dispositivos proibitivos. As medidas sancionatórias
advêm, portanto, do tipo de sistema penal implementado e das vertentes
político-criminais instituídas (QUEIROZ, 2001, p. 45).
Cumpre esclarecer que o fenômeno punitivo compreende dois estágios.
O primeiro deles constitui um ato formal do próprio sistema penal, positivado
pelo parlamento e executivos e, como anteriormente exposto, por meio de
uma seleção, tutelam-se alguns bens jurídicos, para especificar condutas
incriminadoras e estabelecer punição a certas pessoas, ou seja, sanciona-se
uma lei penal material e abstrata. Em um segundo momento, em razão da falta
10
Diálogos sobre direito e justiça

de respeito à norma penal, há uma ação prática, consubstanciada, na punição


às pessoas concretas (ZAFFARONI et al., 2006, p. 43).
Neste ínterim, a circunstância ensejadora da punição penal é a
ocorrência concreta das condutas tipificadas como delitos, que como efeito
penal, cede lugar a uma pena. Antes disso, somente há uma lei penal de caráter
abstrato e genérico, que visa prover a segurança jurídica, garantida não apenas
pela função estatal de dizer o direito, mas, principalmente, pela afirmação das
normas penais com a execução das penas. Assim, Zaffaroni e Pierangeli (2004,
p. 101-102) entendem que a pena, bem como o direito penal, têm por objetivo
perseguir a segurança jurídica.

2.1 VICISSITUDES DA PENA

Malgrado se entenda que a pena delimita o alcance do direito penal


e constitui uma privação de direitos, muito se indaga acerca dos fins que o
Estado pode e deve perseguir por meio dela. A variação de perspectiva da
norma sancionadora decorre da evolução histórica do próprio direito penal,
cuja intervenção estatal se justificava de acordo com a concepção político-
filosófica adotada pela realidade vigente. Dessa forma, exsurge a importância
da abordagem dos fins da pena por meio das suas teorias (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004, p. 117).

2.1.1 Teoria Absoluta

Por meio dessa corrente, explicita-se o caráter compensatório da


reprimenda, não havendo qualquer fim para a pena, a não ser a própria
consequência da pena. A função da pena desvincula-se de qualquer aspecto
social e é imposta sem qualquer benefício à sociedade e/ou ao delinquente
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 117).
A teoria em apreço, segundo as lições de Mirabete e Fabbrini (2013,
p. 230), afirma o direito do castigo e entende que por meio da pena é que se
realiza a justiça, sem necessariamente ter alguma utilidade específica. Assim, o
retribucionismo sugere uma ideia de abstração do direito penal, que penaliza
simplesmente quem cometeu uma conduta delituosa. A aplicação da pena
de forma retributiva, portanto, implica o estado de coibição de abusos do
Estado, uma vez que se aplicam sanções ao infrator, como resultado por seus
11
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

atos, de modo a lhe infligir um sofrimento semelhante ao produzido com o


crime. A crítica a esse posicionamento decai na dificuldade de estabelecer a
proporcionalidade das penas de forma racional.
Assim, para a teoria retribucionista, as penas têm como finalidade
única castigar o infrator (ao mal do crime, o mal da pena). Essa ideia, vinculada
às noções de vingança, simplesmente devolve o mal sem limites, atendendo
de maneira eficaz aos interesses dos regimes totalitários, porque, segundo
Boschi (2006, p. 108), “[...] confere um cheque em branco ao legislador para
criminalizar as condutas que bem entender, arredando o interesse na discussão
sobre o conteúdo ético que relaciona os fundamentos e os limites de punir.”
Contudo, mostra-se insuficiente essa teoria na realidade, considerando que é
necessário, também, evitar novos crimes e não legitimar exercício arbitrário
das próprias razões pelo sentimento de vingança.

2.1.2 Teorias Relativas

A corrente prevencionista entende que se pune para intimidar os


indivíduos e evitar, assim, a prática de mais crimes. Conforme Queiroz (2001,
p. 48), essa prevenção subdivide-se em geral e especial. Essa direciona os efeitos
da pena especificamente ao apenado, enquanto aquela sobre a coletividade de
maneira genérica.
A teoria que aborda a prevenção geral em sua versão negativa
compreende que a pena deve intimidar uma generalidade de pessoas,
demonstrando, aos não delinquentes e àqueles tentados a cometer crimes, as
consequências e efeitos decorrentes da desobediência de uma norma penal. A
exposição do sofrimento do condenado por meio da aplicação e execução da
pena representa um exemplo para que terceiros não venham a praticar delitos.
É uma coerção psicológica fundada em uma ameaça real aos membros da
sociedade (ZAFFARONI et al., 2006, p. 117).
Junqueira e Vanzolini (2013, p. 461) salientam que as críticas enfatizam
que o homem não pode ser utilizado como instrumento de intimidação. Em outro
ponto, instalar-se-ia um direito penal do terror, haja vista que se a pena prevista
não consegue conter a criminalidade, permite-se o seu aumento até que se torne
viável à intimidação, não oferecendo limites ao poder punitivo do Estado.
A corrente da prevenção geral positiva, por seu turno, entende ser
a pena uma necessidade vital para a estabilização social. No entendimento
12
Diálogos sobre direito e justiça

de Queiroz (2001, p. 51), “[...] a reação punitiva (pena) tem como função
principal restabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos negativos
que a violação da norma (seu descumprimento) produz para a estabilidade do
sistema e para a integração social.”
Nesse diapasão, Junqueira e Vanzolini (2013, p. 462) afirmam que a
pena é um instrumento de comunicação entre o Estado e os cidadãos. Sendo
o delito a expressão da falta de fidelidade ao direito pelo indivíduo, a pena
seria, portanto, a afirmação da vigência da norma (direito) pelo Estado e, por
conseguinte, o respeito aos bens jurídicos tutelados.
Os contrários a essa teoria afirmam que o homem deixa de ser um meio
de intimidação para ser um meio de comunicação. Aborda Queiroz (2001, p.
52) que a crítica mais corrente recai no fato simbólico da teoria, considerando
que a pena não tem o condão de evitar novos conflitos penais, mas tão somente
efetivar o sistema que positivou determinada norma.
Destarte, pela versão negativa da prevenção especial e conforme
apontamentos de Zaffaroni et al. (2006, p. 127), a pena tem a função de
neutralizar o delinquente, sem qualquer preocupação em torná-lo um ser
melhor. Portanto, a pena não constitui uma fonte terminativa dos motivos que
o influenciaram no comportamento criminoso, apenas por meio dela se busca
impedir que os conflitos ocorram novamente.
A crítica se assenta justamente nessa proposta desumana de
neutralização física do apenado ocorrido somente no momento da execução da
pena. Outro ponto levantado ressalta que essa teoria não cuida do criminoso
ocasional, considerando que para esse tipo de delinquente a punição não teria
sentido (QUEIROZ, 2001, p. 56).
A respeito da prevenção especial positiva, Zaffaroni et al. (2006, p. 125)
salientam que essa versão busca a reintegração social do agente condenado,
atribuindo à pena uma função positiva de melhoramento do infrator. Enaltecem
que a pena seria um bem para o condenado, uma vez que o Estado, por meio
dela, modifica o ser da pessoa e lhe impõe um modelo de homem. Treina-se
o sujeito a viver em conformidade com a sociedade e aceitar os padrões de
comportamento esperados por todos. A crítica recai sobre a obrigatoriedade
como afronta à liberdade de formação da personalidade.

13
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

2.1.3 Teoria Eclética

A Teoria Eclética ou Mista tenta unificar os aspectos da prevenção e da


retribuição, considerando, sobretudo, a reinserção do delinquente na sociedade, de
forma a superar os aspectos combatidos em cada teoria (BOSCHI, 2006, p. 128).
Em razão dessa finalidade pluralista da pena e em certo grau fundada
contemporaneamente nos princípios constitucionais do Estado Democrático
de Direito, sobrepõem-se duas visões a partir dessa perspectiva: uma voltada
ao criminoso no âmbito de sua ressocialização, evitando-se a reincidência,
considerando ser responsável por seus atos, suportado assim, as eventuais
consequências jurídicas, e outra, direcionada à sociedade em geral, no sentido
de afirmar a soberania do Estado, por meio do temor da pena e da obediência
às leis (CARVALHO NETO, 2008, p. 34).
Com efeito, majoritariamente se entende que o Brasil adota a Teoria
Mista Aditiva, “[...] ou seja, a pena tem como objetivo retribuir o mal do
crime e prevenir a prática de novos crimes.” Esclarece-se, por oportuno, que
a conclusão advém da interpretação do art. 59 do Código Penal, in verbis: “O
juiz, atendendo à culpabilidade [...] estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para a reprovação e prevenção do crime.”

2.2 TEORIAS DO DIREITO PENAL

Se o crime, de alguma maneira, sempre vai existir, o Estado tem em


si uma responsabilidade perpétua de evitar ao máximo os ilícitos penais, seja
pela censura das condutas, seja pela afirmação das normas por meio das penas.
Para exercer essa prerrogativa e ressocializar o delinquente na sociedade, o
Estado se instrumentaliza para aplicar a pena justa ao caso concreto. Nesse
contexto, destacam-se as teorias do direito penal que introduziram modelos
punitivos esboçados no momento da execução da pena (CASTRO, 2010, p. 137).

2.2.1 Análise subjetiva do autor

Quando a reprovabilidade social e a aplicação da pena são baseadas no


modo de ser do agente, está-se diante do chamado de Direito Penal do Autor,
que parte de uma análise subjetiva do autor do crime.

14
Diálogos sobre direito e justiça

Do Direito Penal do Autor se extrai o estudo das pretensões classistas


e extremamente excludentes e estigmatizadas, posto que considera mais
importante avaliar a personalidade do criminoso do que o grau de lesão ao bem
jurídico, ampliando-se a pena a determinadas pessoas em razão do que elas são
em vez de determinados fatos e comportamentos (ANDRADE, 1997, p. 56-58).
Em que pese não exista na doutrina um conceito formalmente
entabulado do que é o direito penal do autor, seus defensores preceituam que
se deve reprovar e penalizar a atitude interna jurídica criminosa, uma vez
que castigar uma conduta é insuficiente, pois o perigo e a ameaça contra a
sociedade se encontram no próprio delinquente. O ato apenas enseja a punição
do autor, pois o crime constitui um signo ou sintoma de uma inferioridade
moral, biológica ou psicológica (ZAFFARONI et al., 2006, p. 131).
O enfoque dessa teoria direciona-se ao infrator, o qual, em sua essência,
está predestinado a cometer crimes, considerando que a periculosidade está
acolhida no seu interior inerentemente, constituindo o crime como um fato
natural e social que integra esse gênero humano, sendo, portanto, previsível
em relação aos delinquentes estigmatizados. É um direito penal baseado
no que o indivíduo realmente é. A causa do crime é identificada no próprio
criminoso e mediante avaliação dos sintomas de sua personalidade mais ou
menos perigosa (ANDRADE, 1997, p. 68).
Nessa perspectiva, o homem é visto como um ser incapaz de
autodeterminação, sem aptidão para fazer escolhas, movido por aquilo que
internamente já o é. A quantificação da pena apenas considera o grau de
periculosidade do agente, ou seja, o limite da pena é estabelecido pelo nível
de determinação que o homem tenha para o delito. Em linhas gerais, o direito
penal do autor entende que a criminalidade já está instalada no ser, de modo
que a personalidade perigosa do agente poderá ser corrigida e/ou neutralizada
pela aplicação da pena (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 113).
A pena imposta fundada no direito penal do autor não reprova a conduta
praticada, tampouco a gravidade da lesão aos bens jurídicos ou a extensão
do injusto e o grau de culpabilidade, apenas censura e exclui o indivíduo por
sua inclinação pessoal ao delito demonstrada nas características individuais,
incompatíveis com a sociedade. A crítica desse tipo de direito penal afirma
que a autodeterminação do homem é negada, posto que o homem tem em si
atitudes lesivas intrínsecas (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 116).

15
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

2.2.2 Análise do fato

Ao contrário do Direito Penal do Autor, para o Direito Penal do Fato


é irrelevante a personalidade e conduta social do indivíduo que cometer um
crime para a aferição do direito de punir.
Nessa perspectiva, entende-se que quando ocorre um crime, surge
para o Estado o direito de punir, que por meio da pena, realiza-se a retribuição
pelo mal realizado, de forma proporcional ao crime, enquanto que para o
infrator surge a responsabilidade penal, fundada na responsabilidade moral
do livre-arbítrio que motivou a conduta praticada. Prevalece a aferição do ato,
de tal modo que não caiba responsabilização a outras que não sejam condutas
e circunstâncias objetivas (ANDRADE, 1997, p. 56, 58).
Dessa maneira, a proposta do Direito Penal do Ato tem por vantagens
o fato de que delimita os conflitos criminalizantes (tipificação), os quais
deverão ser provocados por ações humanas contrárias à lei (antijurídico),
estabelecendo, ainda, que o limite da pena é calculado pela culpabilidade do
ato. Enfraquece a teoria de que o homem é um ser incapaz de fazer escolhas,
destacando que todos são racionalmente iguais, de modo tal que a diferença
entre um cidadão correto e um delinquente é as escolhas que faz. Evidente
que os princípios da legalidade e da anterioridade têm sua importância, pois
ao instituir, e com antecedência, quais condutas serão consideradas ilícitas, o
indivíduo poderá, por sua autodeterminação, agir ou não agir contrário ao
ordenamento jurídico (ZAFFARONI et al., 2006, p. 134).
Por outro lado, a defesa dos direitos humanos frente à vitimização
do acusado fez surgir questionamentos acerca do poder estatal, uma vez que
ao escolher arbitrariamente as condutas que seriam consideradas ilícitas,
o Estado poderia controlar a sociedade direcionando os padrões sociais ao
favorecimento de seus próprios interesses (ANDRADE, 1997, p. 62).

3 PENA-BASE E SEUS CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO

A primeira etapa de individualização da pena é desenvolvida pelo


legislador ao descrever condutas incriminadoras e os elementos do crime
(tipificação), bem como delimitando as circunstâncias do tipo, que podem
influenciar na dosagem final da pena, dependendo da maior ou menor
reprovabilidade, considerando os bens jurídicos socialmente relevantes
16
Diálogos sobre direito e justiça

que necessitem de tutela penal, de forma subsidiária, e posteriormente, ao


estabelecer as penas (cominação) dentro de uma margem mínima e máxima
que seja suficiente para retribuir e prevenir delitos, de acordo com o grau de
violação ao direito ali protegido, inclusive, instituindo os critérios de fixação
da pena (BITENCOURT, 2013, p. 767).
Superada essa fase legislativa, passa-se ao processo de individualização
judicial, elaborado pelo juiz no momento da sentença e, portanto, ocorre
após o cometimento real do delito, sendo “[...] a atividade que concretiza a
individualização legislativa que cominou abstratamente as sanções penais
[...]” (BITENCOURT, 2013, p. 767). Por fim, sobrevém a individualização
executória da pena (administrativa) exercida na ocasião de cumprimento da
pena, que considera, por exemplo, o regime, os benefícios e as faltas graves.
Como bem expresso no Código Penal em seu art. 68, o método adotado
para a ocorrência da individualização judicial da pena, desde a Reforma de
1984, é o trifásico reportando a uma fase inicial em que se estabelece a pena-
base (BOSCHI, 2006, p. 177).

3.1 CONCEITUAÇÃO DE PENA-BASE

Greco (2008, p. 564) assevera que a pena-base constituiu a escolha


inicial da quantidade da pena feita pelo magistrado, atendendo aos critérios
do art. 59 do Código Penal, quantum a partir do qual se fundarão a segunda e a
terceira fases de aplicação da individualização da pena, sendo, assim, impostas
as agravantes e atenuantes e as causas de aumento e diminuição da pena.
A quantificação da pena-base é realizada por meio da discricionariedade
do julgador, tendo como referências as circunstâncias judiciais apresentadas
no art. 59 do Código Penal, critérios orientadores da valoração inicial da
pena; citam-se as subjetivas, que se relacionam com o agente – culpabilidade,
antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos – e as objetivas,
por se tratarem de aspectos que consideram o fato típico – circunstâncias e
consequências do crime e comportamento da vítima.

3.1.1 Critérios subjetivos de fixação da pena-base

Na lição de Bitencourt (2013, p. 769), a culpabilidade é o requisito


balizador máximo da pena aplicável, visto que tem a função limitadora da pena,
17
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

sendo o elemento de medição ou de determinação da pena, não constituindo


o fundamento ou a razão dela. Ainda assevera a necessidade de se examinar
nesse aspecto “[...] a maior ou menor censurabilidade do comportamento
do agente, a maior ou menor reprovabilidade da conduta praticada, não se
esquecendo, porém, a realidade concreta em que ocorreu, especialmente, a
maior ou menor exigibilidade de outra conduta.”
Definem-se os antecedentes como a apreciação da vida pregressa do
réu, que apontem ser o infrator um criminoso habitual envolvido em outros
delitos anterior ao crime analisado, compreendendo, por exemplo, o fato de já
ter sido preso, indiciado ou processado, frisando-se que a reincidência não é
considerada antecedente. Nesse aspecto, os antecedentes são tudo aquilo que
ocorreu ou existiu no âmbito penal do agente antes da prática do delito, ou
seja, tratam-se do histórico criminal do agente que não sirva para efeitos de
reincidência (CARVALHO NETO, 2008, p. 46).
De acordo com Greco (2008, p. 565), a conduta social expressada na lei
traduz o relacionamento do agente com seus pares, visto que sua análise busca
verificar o temperamento do delinquente, se é calmo ou violento, se é viciado
em alguma coisa, como jogos ou bebidas, enfim, conhecer o modo de agir do
agente e se ele pode ter influenciado no cometimento da infração penal.
Bitencourt (2008, p. 771) assevera que, no caso da personalidade, deve
o julgador aferir a “[...] boa ou má índole, sua sensibilidade ético-social, a
presença ou não de eventuais desvios de caráter de forma a identificar se o
crime constitui um episódio acidental na vida do réu.” As infrações penais
praticadas pelo réu durante a menoridade podem, salvo melhor juízo, subsidiar
a análise da personalidade do agente, da mesma forma, os crimes praticados
depois daquele a que está se aplicando a pena.
Já os motivos são os precedentes psicológicos, a fonte propulsora da
vontade criminosa que ensejou a conduta. Trata-se das razões que antecederam e
influenciaram o agente a cometer o delito. Inclusive, há que se ater ao fato de que
o Código Penal, em diversos momentos, prioriza fatores que impeliram o agente
a cometer o crime, considerando tais fatores como indicadores de aumento ou
diminuição da pena a ser aplicada (CARVALHO NETO, 2008, p. 65).
Por fim, caberá ao julgador analisar o comportamento da vítima,
considerando que ela poderá ter contribuído para o cometimento da infração.
Essa aferição deverá ser feita no caso concreto, de modo que o comportamento

18
Diálogos sobre direito e justiça

na vítima possa ter influenciado, em seu próprio prejuízo, a prática do crime.


Assim, esclarece Greco (2008, p. 569):

Suponhamos que a vítima esteja se comportando de for-


ma inconveniente e, por essa razão, o agente se irrite e a
agrida. Descartando a possibilidade [...] de ter agido sob
o manto da legítima defesa, pois a vítima não estava pra-
ticando qualquer agressão injusta, o agente somente co-
meteu o delito em virtude do comportamento da própria
vítima.

Assim, em que pese seus significados próprios, as circunstâncias


judiciais subjetivas não consideram o fato criminoso, podendo haver diversos
elementos desfavoráveis em razão de quem o réu é. Essa aferição da pessoa
do indivíduo causa insegurança, se imaginarmos dois crimes com as mesmas
circunstâncias objetivas, tendo como agentes pessoas diferentes, uma com
causas subjetivas mais desfavoráveis e outra com elementos subjetivos mais
favoráveis. O mesmo fato será punido com intensidade distinta, retirando o
senso de justiça (ANDRADE, 1997, p. 56, 58).
Considerando tal aspecto, cumpre compreender como essa abordagem
ainda se encontra inserida no ordenamento jurídico, considerando que a
legislação preza por um direito isonômico e de intervenção mínima, baseada
no fato e não no indivíduo.

3.2 (I)LEGALIDADE DE ADOTAR CRITÉRIOS SUBJETIVOS NO


DIREITO PENAL BRASILEIRO E SUAS IMPLICAÇÕES

O direito penal exprime o conjunto de normas penais que integra


o sistema legislativo penal de determinada sociedade, cuja interpretação
possibilita compreender a política adotada para combater a criminalidade.
O objetivo primordial do sistema penal é proteger e evitar lesão
ou ameaça de lesão aos bens jurídicos, constituídos em direitos afetados
penalmente como a vida e o patrimônio, em razão da necessidade de
intervenção estatal na proteção desses valores sociais, haja vista a insuficiência
dos demais meios de controles sociais. Logo, o Estado procura, por meio do
Direito Penal, tutelar bens jurídicos elegidos como de interesse geral, contra

19
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

ataques que possam destruir a paz social e a segurança jurídica (ZAFFARONI;


PIERANGELI, 2004, p. 87).
Enaltecem Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 88) que, contemporaneamente,
a finita pretensão punitiva encontra alcance na própria ordem jurídica que
possui respaldo no reconhecimento do caráter de pessoa a todo e qualquer
ser humano, tratando o homem como um ser consciente, autodeterminável e
moral, capaz de compreender e distinguir o bem do mal.
Nesse sentido, ao passo que o Estado reconheceu a dignidade e os
direitos em relação à pessoa humana e admitiu ser o homem capaz de escolher
o que quer em conformidade com sua consciência, reconheceu também a
liberdade moral da sociedade, podendo o homem preferir uma coisa em
declínio de outra. Ocorre assim que, como qualquer outro instrumento de
controle social, a existência do sistema punitivo não é suficiente para conter os
indivíduos, pois estes podem escolher praticar ou não um ato lesivo. Embora
não pretenda impor comportamentos, a resposta estatal no momento da
violação de direitos penalmente tutelados, por meio da pena, é necessária e
fundamental à ordem social (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 89).
Ao perseguir seu objetivo, o Direito Penal deve, portanto, gerenciar
não somente os bens jurídicos de interesse público que necessitam de tutela
penal, como também aqueles que pertencem ao autor do delito, os quais serão
afetados penalmente, em razão da execução da pena, quando houver a violação
dos primeiros. Beccaria ([19--], p. 85) esclarece a necessidade de haver uma
proporção entre os delitos e as penas. Consoante o caráter proporcional entre
o crime e a pena, é possível visualizar que o legislador precisa distinguir e
determinar com muita presteza os bens jurídicos relevantes entre todos os
valores sociais existentes e apená-los de acordo com o grau de importância.
Ademais, cabe lembrar que a proporcionalidade da coerção penal
em relação à conduta censurada faz parte da função do sistema punitivo,
considerando que revigora a pretensão de garantir a segurança jurídica, a qual
será questionada se for imposta pena excessiva a um ato de baixa gravidade.
Limita-se e modela-se a pena para evitar insegurança jurídica (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004, p. 93).
O direito penal atua, especialmente, de forma preventiva, uma vez
que busca pelo conhecimento antecipado das condutas consideradas ilícitas,
que o indivíduo, livre e consciente, escolha não praticá-las, considerando a
consequente aplicação da pena. Sendo insuficiente o método preventivo
20
Diálogos sobre direito e justiça

e restando a conduta abstrata praticada em concreto, o direito penal age de


forma retributiva e repressiva, com a execução real da pena, implantando
medidas de ressocialização do agente (BRUNO, 2009, p. 11).
A aplicação estatal da pena consubstanciada no direito de punir deve
respeitar os limites da própria quantificação legal da pena, bem como as
garantias fundamentais dos cidadãos, de modo a fixar a pena mais adequada e
justa ao caso, satisfazendo as funções de prevenção e retribuição, reconhecendo
a dignidade da pessoa humana, buscando, inclusive, a ressocialização do
agente. Em virtude de que a intervenção penal estatal restringe bens jurídicos
dos infratores com a aplicação das penas, ela será o último meio de punição
e encontrará limites, uma vez que invade a liberdade dos criminosos que
também são considerados pessoas (MOHAMED, 2010).
Diante desse cenário, qualquer vestígio de um direito totalitário, em
que se julga um delito arbitrariamente, sem nenhum precedente determinante
das condutas ilícitas e da forma de medição da sanção, foi afastado quando
se ergueram sobre a sociedade os Estados Liberais Democráticos de Direito
(MOHAMED, 2010).
O direito penal, ao construir um sistema punitivo, pode fundar-se em
dois aspectos, quais sejam, no fato, quando se baseia exclusivamente no ato
praticado, descrevendo as condutas que serão ilícitas – Direito Penal do Fato
– ou no autor, quando o direito penal considera somente o agente do delito,
de modo que não pune o comportamento perpetrado, mas a personalidade do
agente que o praticou – Direito Penal do Autor.
O Estado Brasileiro em seu Código Penal pune condutas e
comportamentos, porém, não engessou a pena, proporcionando ao julgador
espaço para sobrepesar a quantificação necessária às funções da pena para o
caso concreto. A tipificação dos crimes evidencia claramente que o tratamento
criminal escolhido pelo legislador para integrar o ordenamento jurídico foi o
Direito Penal do Fato (MOHAMED, 2010).
Reprova-se, portanto, alguém pelo comportamento exteriorizado.
Sintetiza Piccolotto (2014) que “O fazer e não o ser, o fato e não a pessoa, a
conduta e não as características pessoais do autor é que devem constituir o
objeto do direito penal, sobre os quais incidirão os juízos de reprovação, pois o
que se afasta disso invade a autonomia privada do indivíduo.”
O ordenamento jurídico pátrio, baseado na igualdade e na dignidade
da pessoa humana, preocupa-se, assim, em limitar o poder estatal por meio do
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Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

Direito Penal do Fato, já que, como visto, os crimes e as penas são previamente
determinados, além de a coerção penal estabelecida com antecedência ser
correspondente à lesão ao bem jurídico protegido, não permitindo punir
alguém por uma conduta que não se encontra tipificada, nem mesmo
condenar arbitrariamente os criminosos com penas excessivas ou proibidas
(PICCOLOTTO, 2014).
Contudo, embora o sistema criminal brasileiro aplique o Direito Penal
do Fato, subsistem, ainda, resquícios do Direito Penal do Autor na abordagem
penal nacional. O tratamento não corresponde especificamente aos ideais
iniciais do Direito Penal do Autor, em que a mera suspeita de ser o indivíduo
perigoso bastava para condenar um agente. Modernamente, o Direito Penal
do Autor está presente na fase de individualização da pena, momento em que
se fixa a pena-base de acordo com a avaliação das circunstâncias jurídicas
subjetivas do autor. Obtempera-se que a presença do Direito Penal do Autor
contraria todo o sistema penal fundado no Direito Penal do Fato.
O art. 59 do Código Penal apresenta um rol de circunstâncias jurídicas
subjetivas que permitem ao juiz analisar o caráter do agente, seu estilo de
vida, personalidade, distanciando da reprovação em razão da gravidade do
crime perpetrado. Piccolotto (2014) assevera que os critérios subjetivos para a
fixação da pena-base afrontam a garantia do Direito Penal do Fato, posto que
ao se valorizarem as qualidades e condições pessoais do infrator, aumenta-se o
poder punitivo estatal, afirmando que “Não só na configuração do delito, mas
igualmente na aplicação da pena, não se pode permitir qualquer aspecto do
direito penal do autor.”
Para aqueles que consideram ilegítima a existência do Direito Penal
do Autor no moderno sistema punitivo, além de entenderem que representa
uma maneira de se elevar o poder estatal e não corresponder aos princípios de
igualdade e dignidade da pessoa humana, apontam como problema a própria
ponderação feita pelo juiz, que, em muitos casos, não está apto para sopesar
a personalidade “distorcida” do autor e seu perfil psicológico. Reforçam ainda
que as demais circunstâncias subjetivas somente devem ser utilizadas em
favor do réu e não para prejudicá-lo com a aplicação de penas mais graves
(PICCOLOTTO, 2014).
Em contrapartida, Motta (2013) assegura que o fenômeno do Direito
Penal do Autor não pode ser afastado por completo do ordenamento jurídico,
mas deve ser usado de forma equilibrada na realidade vigente, tendo como
22
Diálogos sobre direito e justiça

teoria orientadora o Direito Penal do Fato, punindo-se o infrator pelo crime


que praticou, implantando-se algumas disposições da culpabilidade do autor.
Com efeito, ainda, a teoria do Direito Penal do Autor cria uma caricatura,
um tipo de autor, criminalizando a personalidade e não o comportamento, o
interior do autor e não a conduta. Há que se ressaltar que o Direito Penal do Fato,
embora menos evidente, também trata o criminoso como um ser diferente. Ao
se tipificar o delito e descrever seus elementos, o Estado Legislador pressupõe
que todos os membros da sociedade são diferentes, que de alguma forma e
por alguma razão, alguns desses indivíduos praticariam um ato que lesaria um
bem alheio. Intrinsecamente, ressalta-se que se criam normas para possíveis
destinatários – aqueles membros da sociedade que, por escolha, praticaram
certa conduta. Porém, essa estigmatização é mais genérica que os pressupostos
do Direito Penal do Autor. Considerando-se as semelhanças das teorias, uma
não contrariaria a outra, mas se complementariam (BRUNONI, 2007).
Outra questão importante a ser salientada é que o Direito Penal do
Autor não orienta o sistema penal, muito menos constitui fundamento para a
punibilidade. Os pequenos vestígios da culpabilidade do autor encontram-se
na etapa de aplicação da pena, quando o delito já foi praticado e o fato teve
correspondência à norma penal abstrata. Assim, ninguém será responsabilizado
penalmente pelo que é, mas tão somente pelo que fez, refletindo o direito penal
consagrado constitucionalmente, em que o sujeito responde por seus atos.
Consoante tal reflexão, punindo-se o agente por seu comportamento, também
não se viola o princípio da lesividade, o qual exige lesão ou ameaça de lesão
a um bem jurídico relevante. O Direito Penal pátrio não restringe a liberdade
de uma pessoa pelo que ela é, mas por uma atitude contrária ao ordenamento
jurídico (BRUNONI, 2007).
No momento da aplicação da pena, porém, em que se adotam critérios
subjetivos, fazendo surgir, ainda que em menor medida, o Direito Penal do
Autor, não se afastam o caso concreto e as peculiaridades da situação. Esses
requisitos pessoais do agente delinquente são considerados em uma etapa da
individualização da pena, e servem como instrumento de partida para a fixação
da pena-base. A razão da punição não encontra guarida na personalidade do
indivíduo. A necessidade de puni-lo já foi invocada, quando ele praticou o
crime (CARVALHO NETO, 2008).
A possibilidade de realizar um juízo sobre a vida anterior do autor e
suas características individuais não ameaça o Direito Penal do Fato, até porque
23
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

o legislador já estabeleceu um parâmetro mínimo e máximo razoável para


penalizar alguém por determinado fato. Não se diminui a dignidade da pessoa
humana, considerando que as penas mínima e máxima adequadas para aquela
situação já foram determinadas. Salienta-se que a pena-base é apenas o ponto
de partida entre tantos outros fatores que majoraram e minoraram a pena. Não
há insegurança jurídica, posto que já se conhecem previamente os limites da
pena (CARVALHO NETO, 2008).
Cumpre relembrar que a análise do criminoso é fundamental para se
assegurar a imposição ideal das finalidades da pena. Um indivíduo com uma má
conduta social, inclinado ao crime, reincidente, precisa ser mais repreendido
do que aquele que fez do crime um episódio diverso da sua história, já que
a pena serve para impedir novos crimes e reinserir o sujeito no meio social.
A fixação da pena-base deve ser aplicada e analisada de forma a garantir a
adequada e justa reprovação. Não se faz uma presunção da periculosidade
do agente, mas se analisam fatos que assegurem ser ele um ser com maior
periculosidade (CARVALHO NETO, 2008).
Se o direito penal protege inclusive a ameaça de lesão ao bem jurídico,
não há como afastar a análise subjetiva de periculosidade do criminoso, pois
se estaria afastando sua função preventiva. Com a devida vênia, há que se
ressaltar que o comportamento de alguém é uma presunção de personalidade
e salvo melhor juízo, qual seria a razão de utilizar questões pessoais favoráveis
para beneficiar o réu, em especial, na própria execução da pena, em que seu
bom comportamento reduz o cumprimento da sanção, e não poder inferir
as desfavoráveis para reprová-lo de acordo com a necessidade. Da mesma
sorte, assevera Carneiro (2010), que “[...] beneficiar alguém com base em
características pessoais está-se, noutra ponta, prejudicando quem não as tem.”

4 CONCLUSÃO

Diante do exposto, percebe-se que a utilização da teoria do Direito


Penal do Autor, em sua concepção pura, na construção do sistema punitivo,
é inconstitucional perante um Estado que reconhece e se funda no princípio
da dignidade da pessoa humana; destarte, o emprego de critérios subjetivos
na etapa da fixação da pena-base é necessário à adequada reprovabilidade da
conduta, em virtude da individualização da pena e dos aspectos funcionais de
sua aplicação.
24
Diálogos sobre direito e justiça

No intuito de compreender a possibilidade da compatibilização da


culpabilidade do fato e do autor no ordenamento jurídico pátrio, é importante
analisar as finalidades da pena, quais sejam: a prevenção, a retribuição e a
ressocialização. Apesar de distintas, todas as funções pretendem, conjuntamente,
garantir a segurança jurídica e a ordem social, com a consequente redução da
criminalidade.
Consoante essa ideia, a imposição de uma sanção penal visa,
primordialmente, evitar e inibir a violação de normas institucionalizadas, de
modo que a intimidação exerça a função preventiva da pena, tanto em relação
à sociedade em geral quanto ao próprio sujeito infrator. Da mesma sorte, ao
ser insuficiente tal pretensão e diante da propensa inobservância de normas
pelo homem, em vista da sua capacidade de escolha, busca-se com a execução
concreta da pena a natural retribuição da lesão, constituindo a compensação
uma forma de demonstrar ao infrator que o seu comportamento é inaceitável
no convívio social, afastando-o do meio para permitir ao agente refletir e
compreender essa ilicitude do ato, no intuito de reintegrá-lo à coletividade.
Portanto, compreende-se pelos fins da pena o papel social do direito
penal na efetiva diminuição da criminalidade, vez que a pena existe tanto antes da
ocorrência do crime quanto após a sua concretização e serve de advertência em
ambas as situações. Assim, instala-se o objetivo do direito penal de salvaguardar
e tutelar a lesão e a ameaça de lesão aos bens jurídicos, os quais se tratam de
valores sociais solidificados em direitos de essência fundamental que exigem a
proteção estatal, na ausência de outros meios garantidores dessa proteção.
Ante a responsabilidade penal do Estado, prescinde expor que a
existência da pena no cenário jurídico se relaciona com o próprio fenômeno
do crime. Desse modo, é necessário estabelecer antecipadamente o que
constitui crime na esfera penal que possa ensejar a aplicação da pena. Duas
teorias elucidam o tratamento tipificador do sistema penal. Pelo Direito Penal
do Fato se descrevem condutas que implicam fatos ilícitos, cuja prática é que
embasa a punição. Logo, o que se pune é a conduta, o comportamento. Para o
Direito Penal do Autor, independe de comportamento para se aplicar alguma
pena, bastando para tanto que a personalidade e as características pessoais do
sujeito indiquem ser ele um agente perigoso, propenso à criminalidade.
A primeira teoria sugere uma intervenção legal, preestabelecida,
controlada, de modo que os membros da sociedade possuam conhecimento
prévio acerca dos fatos considerados criminosos, podendo escolher não
25
Luana Mena Barreto Lenzi, Maurício Eing

cometê-los. Já a segunda corrente permite inferir uma atitude totalitária e


desmedida do Estado, uma vez que um sujeito será punido, simplesmente, por
sua individualidade representar periculosidade ao meio.
O direito penal brasileiro está embasado no Direito Penal do Fato.
Institucionaliza antecipadamente normas que descrevem comportamentos
ilícitos causadores de lesão aos bens jurídicos tutelados e ao tipificar essas
condutas abstratas, comina as penas proporcionais à violação. Assim, o direito
de punir estatal não é totalitário e ilimitado, ainda com mais razão perante o
Estado Liberal. Portanto, seria inconcebível aceitar o emprego do Direito Penal
do Autor em um ordenamento jurídico que reprova condutas e não o que o ser é.
O fato é que, para se atenderem às funções da pena, não se pode
desvincular o sujeito e sua personalidade do fato criminoso, vez que a conduta
foi exteriorizada pelo agente que livremente escolheu praticá-lo e é a ele que
se imporá a respectiva sanção, por meio da qual se pretende conscientizar o
criminoso da ilicitude do ato e reinseri-lo na sociedade. Com efeito, os vestígios
da culpabilidade do autor presentes no art. 59 do Código Penal, que apresenta
critérios de fixação da pena-base, não incorrem em inconstitucionalidade,
porquanto todo o sistema penal está compreendido na culpabilidade do fato e
a aferição do sujeito criminoso somente ocorre para quantificar o ponto inicial
da condenação, desde que haja requisitos desfavoráveis.
Portanto, em vista da análise feita, é possível constatar que a presença
de ambas as teorias da culpabilidade no ordenamento jurídico nacional não
suscita ilegitimidade, porquanto o emprego de cada uma ocorre em momentos
distintos do direito penal, complementando-se, visando efetivar as funções da
pena e penalizar justamente o infrator, de acordo com o caso concreto.
Por fim, em que pese seja difícil desvincular o julgamento subjetivo do
infrator para lhe fixar uma pena, verifica-se que os critérios objetivos têm sido
demasiadamente esquecidos quando da aplicação da sanção ou até mesmo
depreciados em virtude da valorização da personalidade do delinquente.
Logo, elementos de caráter pessoal podem ser levantados quando
a conduta for praticada reiteradamente de modo a atingir sua função
compensatória do crime, por exemplo. Porém, essa questão da reincidência é
circunstância agravante da pena e aumentará a punição de acordo com cada
caso concreto. Entretanto, conclui-se que, nos casos isolados das hipóteses
de crimes eventuais com grandes lesões ao bem jurídico, é importante que o
direito penal se atenha aos elementos objetivos da conduta, a não banalizar a
26
Diálogos sobre direito e justiça

pena e suas finalidades. Se o objetivo do direito penal é a proteção dos bens


jurídicos relevantes, a lesão desses bens jurídicos deve ser a medida da pena.
Assim, aquele que furta pão e leite na padaria por cinco vezes, terá a cada
conduta uma pena maior, em razão da agravante da reincidência. Já aquele que
furta um valor expressivo do caixa do mercado uma única vez, embora não
seja reincidente, deve ter uma pena-base fixada em uma quantidade elevada,
em virtude da lesão causada ao patrimônio alheio.

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28
A PERMISSÃO DO ABORTO EM CASOS
DE ANENCEFALIA E UMA POSSÍVEL
ABERTURA AO ABORTO EUGÊNICO
Letícia Emanuele Agostini 1
Rafaella Zanatta Caon Kravetz 2

Resumo: O aborto é, certamente, alvo de inúmeros debates nas comunidades acadê-


mica e jurídica. Atualmente permitido em lei nos casos em que a gestante corre risco
de morte e em caso de gravidez resultante de estupro, o aborto foi pauta de discussão
no Supremo Tribunal Federal. A Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental n. 54 tratou de analisar a possibilidade de permissão de interrupção de gesta-
ção nos casos de fetos anencéfalos. Após ampla abordagem, os ministros daquela casa
decidiram autorizar a não continuidade da gestação com esse tipo específico de diag-
nóstico, dada a incompatibilidade da vida extrauterina. Entretanto, uma vez que há
outros diagnósticos de más-formações fetais incompatíveis com a vida fora do útero, o
presente estudo se propôs a pesquisar se as lacunas dessa decisão podem ensejar que se
permitam outros abortos, abrindo-se um precedente para a eugenia. O método utiliza-
do foi o dedutivo, contendo como fontes as abordagens doutrinária e jurisprudencial.
Palavras-chave: Aborto. Direito fundamental à vida. Eugenia.

The permission of abortion in cases of anencephaly and a possible opening to euge-


nic abortion

Abstract: The abortion is, undoubtedly, matter of debate in the academic and juridical
communities. Currently permitted by law in cases in which the pregnant woman is in
danger of death and in the case of pregnancy resulting from rape, the abortion was dis-
cussion on the Federal Supreme Court. The Allegation of Noncompliance of Fundamental
Principle n. 54 tried to examine the possibility of permission to interruption of pregnancy
in cases of anencephalic fetal. After broad approach, the ministers of that house have
decided to authorize the non-continuity of pregnancy with this specific type of diagnostic,
due to the incompatibility of extra uterine life. However, as there are other diagnoses of fe-
* Graduanda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; letiagostini@
yahoo.com.br
** Mestranda em Direitos Fundamentais pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos
Fundamentais da Universidade do Oeste de Santa Catarina; advogada especialista em
Direito Criminal pela Unicuritiba; rafaella.caon@unoesc.edu.br 29
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

tal malformations incompatible with life outside the womb, this study proposed to investi-
gate if the gaps of this decision allow other abortions, setting a precedent for eugenics. The
method was deductive, containing as sources the doctrinal and jurisprudential approach.
Keywords: Abortion. Fundamental right to life. Eugenics.

1 INTRODUÇÃO

Ao lado de questões envolvendo a eutanásia, o transplante de órgãos e


células-tronco, as fertilizações in vitro, etc., o aborto é uma temática bastante
atual e relevante na sociedade internacional, uma vez que sua prática culmina
em consequências de ordem religiosa, econômica, social e cultural.
Compreendido como a interrupção da gravidez com a respectiva
destruição do produto da concepção – ovo, embrião ou feto – o aborto é
mundialmente analisado na esfera jurídica, no sentido de se buscar qual o
limite da isenção de responsabilidade cível ou criminal apurada com a prática
da não continuidade de uma gravidez.
Atualmente o aborto é permitido na Legislação brasileira apenas nos
casos em que a gestação implique risco para a vida da mãe ou nos casos em que
a gravidez é resultante da prática do crime de estupro.
Todavia, no ano 2004, por meio da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde, foi formalizada no Supremo Tribunal Federal uma
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, intentando a concessão
da prática do aborto nos casos de fetos anencéfalos.
Em uma decisão de oito votos a favor e dois votos contra, aludido
Tribunal autorizou a interrupção terapêutica induzida desse tipo de gravidez,
sendo referida decisão de grande importância para a esfera jurídica, pois a
altercação de cada voto dos ministros do STF implica uma profunda análise
dos princípios fundamentais, de um lado amparando a dignidade da mulher e
sua autonomia da vontade e de outro, o direito à vida.
O que se questiona, agora, é se referida permissão autoriza a abertura
da concessão de novas práticas de aborto, considerando que há outras más-
formações fetais que se mostram incompatíveis com a vida extrauterina.
Para tanto, o estudo introduz a temática analisando a concepção do
aborto nos aspectos científico, filosófico, sociológico e jurídico, bem como
a condescendência e a rejeição dessa prática na sociedade, a partir de seus
primeiros registros históricos até os dias atuais. Ademais, será demonstrado
30
Diálogos sobre direito e justiça

como a legislação brasileira afronta o aborto e como este é previsto no Código


Penal Brasileiro. Também será analisado o voto de cada ministro participante
da ADPF n. 54, prognosticando, assim, se referida decisão concessiva poderá
se valer como o precedente para que novos tipos de aborto aconteçam, sendo
necessária uma compreensão por meio de uma abordagem relacionada aos
princípios norteadores dessa tutela jurisdicional, como a dignidade da pessoa
humana, a autonomia da vontade e a análise sobre o direito à vida.

2 ABORTO: ANOTAÇÕES PRELIMINARES, CONTEXTO


HISTÓRICO, CONCEPÇÕES E ENQUADRAMENTO NA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A conceituação do aborto é de grande valia, sendo imperioso citar seu


significado etimológico. Segundo Lima (2007, p. 53), “[...] tal palavra provém
de ab, que significa privação, e ortus, nascimento.”
Na visão de Witt (2014, p. 8), o “[...] aborto é a interrupção da gravidez,
com a destruição do produto da concepção (ovo, embrião ou feto).”
Contextualizando o juízo médico, tem-se como aborto a interrupção
da gravidez, espontânea ou provocada, com a expulsão de um embrião,
resultando na morte do concepto ou sendo causada por ela; e assim faz-se
cessar qualquer atividade biológica de formação e concepção de uma nova
vida (ABC.MED.BR, 2012).
Dessa forma, pode-se asseverar, também, que no norte médico existem
dois tipos de aborto: o aborto espontâneo e o induzido (também denominado
aborto provocado), deliberadamente por razões médicas admitidas pela lei ou
clandestinamente por pessoas leigas, o que constitui crime (ABC.MED.BR, 2012).
A própria medicina também reconhece que a prática abortiva é
considerada uma questão alarmante de saúde pública, pois todos os anos
milhares de mulheres vêm a falecer ou ficam gravemente doentes correndo grave
risco de vida em decorrência dos métodos utilizados que são majoritariamente
clandestinos, sendo corrosivos à saúde.
O aborto no sistema penal – encontradiço nos artigos 124 a 128 do
Código Penal – também é objeto de estudo. Segundo Greco (2012, p. 345),
para que haja a configuração desse crime, é necessário que “[...] a vida tenha
início a partir da concepção ou fecundação, isto é, desde o momento em que o
óvulo feminino é fecundado pelo espermatozoide masculino.”
31
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

Registre-se que o conceito de aborto na sistemática jurídica aprecia


a relação de punição e permissividade nas relações humanas, porém, não há
como haver embasamento teórico sobre o aborto sem abordar o ponto de
vista da bioética, que fundamentalmente acompanha o raciocínio teórico da
jurisdição.
Essa filosofia moral trabalha com noções de vida e ética e passa a
ser um norte instrumentador de reflexão e proteção ao ser humano frente
às necessidades, problemas e divergências sociais, engajando nesse caso
as reflexões sobressaídas que levam uma mulher a praticar aborto e a que
conjuntura social e moral esta vive para consentir com referida prática ou
recorrer a ela (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 580).
Desta feita, pode-se dizer que cada conceituação de aborto, em
respectiva ciência social, jurisdicional ou filosófica corrobora para que o aborto
seja compreendido e dimensionado em várias feições e molda a concepção que
o aborto representa em cada meio social.
O primeiro relato positivado sobre o aborto encontra-se no Código
de Hamurabi (2285-2242 a.C.), criado pelo Rei da Babilônia, que previa como
crime o aborto praticado puramente por terceiro, aplicando ao autor uma
pena pecuniária, e quando o aborto resultava em morte da gestante, aplicava-
se pena de morte, não ao agressor, mas ao seu filho (TEODORO, 2008, p. 62).
Também no século XIV a.C., o Código Hitita estabelecia pena
pecuniária para quem cometesse aborto, sendo a pena conforme a idade do
feto. Já as leis de Manu, correspondentes ao século XII a.C., traziam regras até
mesmo sobre a eugenia, proibindo a união matrimonial entre pessoas doentes
ou portadoras de taras (SANTOS, 1935, p. 63).
Representando os primeiros filósofos da história, Aristóteles
compreendia que se deveria fixar o número máximo de procriações e, se
alguns casais fossem férteis para além do limite, seria necessário recorrer ao
aborto, devendo haver controle populacional antes do surgimento da alma,
sendo a interrupção da gestação necessária para evitar o abandono de crianças,
situação corriqueira na Grécia daquela época (DEURSEN, 2009, p. 10).
Por sua vez, Platão defendia a permissão do aborto nos casos de
mulheres com mais de 40 anos, justificando o perigo de vida que a idade
avançada acarretava para a gestante (WITT, 2014, p. 25).
É fato então que desde a pré-história o homem tenta controlar o
nascimento, mas o modo como o aborto é percebido mudou bastante ao longo
32
Diálogos sobre direito e justiça

dos séculos, pois este não era punido pela lei na sociedade grega, mas foi muito
discutido por filósofos como peça-chave da pergunta que não quer calar há
mais de dois mil anos: quando começa a vida? (DEURSEN, 2009, p. 11).
 No início da Idade Média, a ignorância científica permitia pensar que
o feto somente se tornava ser humano após o nascimento. Isso gerava a prática
corrente do aborto, à revelia da tradição cristã vinda desde as suas origens. A
tradição cristã sempre considerou o aborto um ato gravíssimo (PASCHOAL,
2009, p. 1). Com a presença do Cristianismo, a concepção de abortar foi sendo
reformulada e segundo historiadores, a religião determinava e autoditava as
normas da sociedade, pois a Igreja fez do sexo e da reprodução um símbolo de
pecado e de moralidade; um dos abades da época, hoje conhecido como Santo
Agostinho, traduziu o pensamento da época, no qual não considerava o aborto
um assassinato, mas uma perversão. Ele sustentava o pensamento aristotélico
do início da vida no 40º dia a partir do primeiro sinal perceptível do bebê, no
caso de meninos, e no 80º, de meninas (DEURSEN, 2009, p. 9). Para tanto:

A influência da Igreja acaba provocando mudança de


foco: não mais o homem e sim o feto devia ser protegido.
No século 13, leis canônicas e civis fortaleceram a distin-
ção entre feto com alma e sem alma, entre um homicídio
e um crime menor. Mas, nesse debate entre Igreja e le-
gisladores reais sobre o início da vida, faltava a ciência.
A descoberta do óvulo, em 1827, transformou a ideia
da concepção: agora, a vida começava na fecundação.
(DEURSEN, 2009, p. 10).

Em 1532 houve uma lei severa punindo o aborto. Essa norma se chamou
Lei Carolina e previa que quem, por meio de violência ou da administração de
substância ou beberagens provocasse uma mulher a abortar um feto vivo, se tal
crime fosse praticado dolosa e perversamente, seria o agente decapitado como
homicida; previa também o afogamento ou outro tipo de punição com morte
à mulher que em si mesma provocasse o aborto (HUNGRIA, 1958, p. 272).
Assim, assegura-se que o aborto foi se mistificando como crime e
sendo sua prática repreendida na sociedade por meio da influência da Igreja
cristã, bem como da evolução constante da ciência, que mediante estudos e
aplicações explicativas palpáveis definia conceitos à concepção e evolução do
feto no útero. Essa percepção, ampliada com a obstetrícia, o estetoscópio, o
33
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

raio X e o ultrassom, nos 300 anos seguintes, mudou o modo de os médicos,


políticos e religiosos lidarem com o tema (DEURSEN, 2009, p. 10).
Além disso, não podem ser esquecidos os conflitos históricos do século
XX, que resultaram em tumultos veementes de ideologias, o que respaldava
ainda mais o ideal de interesse dos governantes, pois com a Revolução
Francesa, os ideais iluministas, respaldados que o ser humano era o centro
da sociedade, passou-se a acreditar que uma nação soberana e poderosa era
aquela que possuía muitos habitantes para lutar, tanto ideologica quanto
fisicamente (HUNGRIA, 1958, p. 272).
Dessa forma, denota-se que o Estado ou seus líderes dominantes
definiam se concediam ou não o aborto, não analisando a óptica da gestante
ou do futuro cidadão, mas sim, analisando a necessidade do Estado, para
benefícios puramente estatais.
Aproximadamente 97 países, representando cerca de 66% da
população mundial, têm leis que em essência permitem o aborto induzido.
Com cerca de 34% da população, 93 países proíbem o aborto ou o permitem
apenas em situações especiais como deformações do feto, violações ou risco
de vida para a mãe. Todos os anos, aproximadamente 26 milhões de mulheres
realizam abortos legais, enquanto 20 milhões de abortos são realizados em
países onde essa prática é restringida ou proibida por lei (TESSARO, 2008, p.
50). Observa-se que cada país possui uma aquiescência diferente a respeito do
aborto, adotando um paradigma de sistemas para ele. Cada concepção é válida
de acordo com a evolução cultural e os paradigmas sociais de cada povo.
Dessa maneira, muitos países adotam o sistema de indicações, que
segundo Lima (2009, p. 58), “[...] atua pelo princípio da regra da exceção e nele,
o aborto consentido é, via de regra, punível, existindo as exceções previstas de
forma taxativa no ordenamento jurídico, podendo ou não estar condicionadas
a um prazo.” Pode dizer-se que nesse sistema a vida intrauterina está protegida
no âmbito penal com bem e princípio fundamental.
No entanto, na legislação comparada, são concebidas várias formas de
aborto no sistema indicativo, em que pese à indicação terapêutica ou médica,
no qual o aborto é realizado em qualquer momento da gravidez, quando for
necessário para evitar grave perigo à vida e à saúde física e psíquica da gestante.
A indicação ética ocorre quando a gravidez resulta de estupro ou de técnica de
reprodução assistida não consentida (LIMA, 2009, p. 55).

34
Diálogos sobre direito e justiça

Há também a indicação eugênica, que possui fundamento quando


existem riscos fundados de que o feto possua grave anomalia genética de
qualquer natureza. E por fim, há a indicação econômico-social, aconselhada
para os casos em que são analisados aspectos sociais e econômicos da gestante
que consequentemente não possui condições para seguir com a gestação
(LIMA, 2009, p. 56).
Porém, muitos países são enquadrados em outras espécies de
sistemas, pois no direito comparado do aborto, os sistemas também são
divididos em restritivo, permissivo e intermediário (LIMA, 2009, p. 55). No
primeiro, a concepção predominante é a da proibição absoluta, autorizando-
se excepcionalmente o aborto terapêutico para salvar a vida da gestante. Esse
sistema é demasiadamente rigoroso, pois privilegia apenas um dos direitos,
qual seja, o direito à vida, em toda e qualquer circunstância; nesse caso, não são
consideradas as situações de conflito real de direitos fundamentais, nas quais
o direito à vida pode nem sempre prevalecer (LIMA, 2009, p. 55). O sistema
permissivo, por seu turno, considera a prática do aborto um direito da mulher.
Baseia-se no direito pleno de ela realizar o aborto em qualquer circunstância,
sendo a fundamentação para justificar tal sistema a de que o direito da
autodeterminação da mulher deve sempre prevalecer, porque sua liberdade de
escolha está acima de qualquer outro direito (LIMA, 2009, p. 56). O sistema
intermediário, por sua vez, encontra-se no meio termo entre os dois primeiros
sistemas. Ele abarca várias correntes doutrinárias, as mais significativas são o
sistema do prazo e o sistema de indicações (LIMA, 2009, p. 56).
Países populosos como China e Rússia possuem leis menos restritivas,
em que o aborto é decidido por simples opção da gestante; na Dinamarca a
interrupção é decidida por quatro profissionais da Saúde. Na Espanha, o
aborto é permitido em caso de grave risco psíquico e físico da gestante. Na
Holanda, pode-se ter interrupção voluntária da gravidez nas 13 primeiras
semanas de gestação; já no Reino Unido, na Grécia e na Itália o aborto é
permitido durante as 24 primeiras semanas, desde que motivado por razões
sociomédicas ou socioeconômicas. Em Portugal, poderá haver realização de
aborto se houver deformação congênita no feto. Países como Bélgica, Bulgária
e Canadá autorizam o aborto em caso de risco de morte ou saúde mental da
gestante (TESSARO, 2008, p. 41). Nos Estados Unidos da América, como a
jurisdição adotada é a do Common Law, os Estados não podem legislar pela
sua proibição, podendo, no entanto, criar restrições para essa prática, como
35
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

a gestante atender a alguns requisitos sociais, econômicos, psicológicos e até


a obrigar o médico a avisar a paciente sobre os riscos desse procedimento
(CHAVES, 2013, p. 3).
Assim, é concludente que o tema aborto é sinônimo de discussão
e divergência em todas as esferas do mundo, tanto em aspectos morais e
científicos quanto em sociológico; cada cultura ministra suas permissividades
em relação ao aborto, de acordo com suas crenças e sabedorias.
O Brasil, atendendo à demanda jurisdicional, prevê o aborto em sua
legislação, impondo-lhe sua autorização em casos específicos e isolados.
Tipificado no Código Penal, encontra-se classificado no Título I, que trata sobre
os crimes contra a pessoa, na estirpe dos crimes contra a vida, condizentes ao
Capítulo I.
Sob o prisma da lei, poderá ser o aborto: legal, nos casos em que a norma
legal extingue sua punibilidade, abrangendo o necessário e o sentimental ou
criminoso, que consiste na interrupção da vida intrauterina normal, vedada
por lei; em qualquer de suas fases evolutivas, haja ou não expulsão do produto
da concepção do ventre materno, tal crime poderá ser doloso ou preterdoloso
(DINIZ, 2004, p. 32-34).
Além disso, a gravidez preexistente é presumida no crime de aborto,
sendo indispensável que o feto esteja vivo, e que a morte dele seja resultado
imediato de procedimentos abortivos. Somente com a morte do feto o crime se
consuma (adequação típica), notam-se que pouco importa que a morte ocorra
no ventre materno ou fora dele, sendo irrelevante, ainda, que ocorra a expulsão
do feto ou que este não seja expelido das entranhas maternas (BITENCOURT,
2007, p. 136).
No crime de aborto, o bem juridicamente protegido é a vida humana
em desenvolvimento. De forma secundária, em se tratando do crime de
aborto não consentido ou qualificado pelo resultado, protege-se a vida e a
incolumidade física e psíquica da mulher grávida (GRECO, 2012, p. 230).
Dessa forma, o aborto é subdividido no Código Penal em: aborto
provocado pela gestante ou com seu consentimento, consoante o artigo 124,
também conhecido como crime de autoaborto, sendo cominada uma pena de
detenção de um a três anos; aborto provocado por terceiro sem consentimento,
no artigo 125 do Código Penal a pena será de reclusão de três a dez anos; e aborto
provocado por terceiro com consentimento, como se observa no artigo 126 do
Código Penal a pena será de reclusão de um a quatro anos (BRASIL, 1940).
36
Diálogos sobre direito e justiça

Em que pese a previsão de apenas duas excludentes de ilicitude na


legislação penal, conforme já se introduziu, buscou-se por meio da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 a descriminalização do
aborto de fetos anencéfalos, com a finalidade de se garantirem os direitos da
mulher na sociedade moderna; eis que a tipificação de 1940 certamente não
se apoiou nas descobertas e inovações da medicina que garantiriam, décadas
mais tarde, o diagnóstico precoce de más-formações fetais incompatíveis com
a vida fora do útero.
Anote-se, também, que não há como entender, discutir ou interpretar
qualquer norma jurídica sem analisar os princípios fundamentais que norteiam
o ser humano, que sempre será o elemento basilar de toda e qualquer norma
jurídica, razão pela qual se invocam os princípios discutidos na ADPF n. 54.

3 ADPF N. 54 E OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS


CONCERNENTES À INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO EM
CASOS DE FETOS ANENCÉFALOS

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54,


certamente, é um tema que abalizará a concepção dos novos direitos na esfera
das áreas Humanas e Sociais e em especial na área Jurídica, pois esta trata de
assuntos atinentes aos direitos fundamentais, do princípio da dignidade da
pessoa humana, da autonomia da vontade da mulher e do direito à vida, sendo
esses os alicerces de qualquer discussão forense.
Dessa forma, os direitos fundamentais, regidos pela Constituição
Federal, são elevados a um patamar primoroso, no qual o ser humano se
encontra no núcleo das relações sociais, constituindo-se em um sujeito dotado
de direitos e no destinatário final de qualquer relação.
Foi a Constituição de 1988 a primeira na história do constitucionalismo
a prever em seu bojo um título específico aos princípios fundamentais, pois o
constituinte deixou vivo seu desígnio em conferir aos princípios fundamentais
o status de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional,
inclusive das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais
(SARLET, 2002, p. 75).
Desta feita, como já mencionado, a ADPF n. 54 emergiu em seu bojo
assuntos relativos a princípios importantíssimos, como a dignidade da pessoa
humana, a autonomia da vontade da mulher e o direito à vida. Dessa forma,
37
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

referidos princípios foram e continuam a ser confrontados, pois para uma


decisão de tal monta, fora necessário que alguns princípios fossem majorados
e outros minimizados, e essa é a culminância da discussão.
O princípio da dignidade da pessoa humana está iminentemente
relacionado ao respeito que a sociedade deve ter com o ser humano. Desse
modo, ao ser relacionada com a ADPF n. 54, a dignidade da pessoa humana
fora vinculada ao respeito que a sociedade deve ter com a gestante, bem como
expoente principal o ideal de que a dignidade pessoal desta deva ser preservada
antes de qualquer episódio. Referido princípio se reporta à ideia democrática
como um dos fundamentos do Estado de Direito Democrático, tornando-se o
elemento referencial para a interpretação e a aplicação das normas jurídicas,
pois o homem não deve ser tratado como mero objeto a serviço da sociedade
(LEMISZ, 2012).
Assim, a dignidade representa um valor inerente às personalidades
humanas e é considerada pela maioria dos doutrinadores como fundamento
essencial que rege os demais princípios. Por isso, o exercício do poder e a
ordem estatal somente serão legítimos se observarem o respeito e a proteção
da dignidade da pessoa humana, que constitui verdadeiro pressuposto da
democracia (BRANDÃO, 2010, p. 5).
A dignidade da pessoa humana, sopesada por Sarlet (2002), é “[...] um
caráter inerente ao ser humano, não podendo se distanciar dele, sendo uma
meta permanente do Estado Democrático de Direito mantê-la.”
Demandando princípio é por muitos doutrinadores concebido como
menção constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, tendo
considerado Canotilho e Moreira (1993, p. 210) que:

O conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma


densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo
sentido normativo-constitucional e não qualquer uma
idéia apriorística do Homem, não podendo reduzir-se o
sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pes-
soais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos
sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da
personalidade individual, ignorando-a quando se trate de
direitos econômicos, sociais e culturais.

A menção de referido direito à luz da ADPF parte do valor de que “[...]


em regra, uma violação de um direito fundamental estará sempre vinculada
38
Diálogos sobre direito e justiça

com uma ofensa à dignidade da pessoa” (SARLET, 2002, p. 103) e, assim,


de forma sucinta, o que cabe mensurar na dignidade da pessoa humana é a
dignidade da gestante, pois aqui se trata a dignidade à margem do sofrimento
psíquico dela, bem como a angústia de um parto antecipado, o sofrimento de
uma gestação inerte, não sendo justo a essa gestante passar por nove meses as
dores e alegrias de uma gestação, para que em seu parto ela acompanhe um
luto já descrito.
O princípio da autonomia da vontade compôs o elemento nuclear de
referência para que os então ministros do STF consolidassem seus votos. A
certeza de que a mulher é detentora de direitos e vontades próprias e que ela
acompanha uma evolução cultural e social em busca de seus direitos foram
referências basilares para que a autorização do aborto de fetos anencéfalos
fosse homologada, graduando as mulheres e confirmando que estas tenham
maior deliberação em suas escolhas diante da sociedade.
Acerca da ADPF, fala-se que a própria gestante, sob o princípio da
autonomia da vontade, deve ter a discricionariedade para decidir se quer ou
não interromper a gravidez, ou seja, se a mãe quiser provocar o aborto poderia
livremente assim optar, mas estaria sempre resguardado à mulher o direito de,
mesmo sabendo ser portadora de um feto anencéfalo, assumir sua gravidez
integralmente, constituindo-se ato opcional (FERREIRA, 2012).
Muitos apoiadores mais liberais carregam a certeza de que a mulher
deve decidir o que quer para a sua vida e o que deseja fazer com o seu corpo.
Afirma Dantas (2005, p. 20) que “[...] a mulher deve possuir o direito de
decidir se sofrerá o risco de uma gravidez problemática ou se a interromperá,
tentando amenizar o seu sofrimento e de seus entes queridos.”
Desse modo, é impossível que uma gestante de feto anencéfalo não
venha a sofrer e não tenha o iminente pesar de que seu filho tão esperado
nascerá e terá minutos ou horas de vida. Os preparativos da gestação, tão
desejados pela maioria das mães, seriam uma tortura mórbida. Nessa linha,
Piovesan e Sarmento (2012, p. 1) formulam questionamentos contundentes:
Com fundamento nos direitos à liberdade, à autonomia
e à saúde, entendemos caber à mulher e aos casais, na
qualidade de plenos sujeitos de direitos, a partir de suas
próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de es-
colha quanto ao procedimento médico a ser adotado em
caso de anencefalia fetal. A responsabilidade de efetuar
escolhas morais sobre a interrupção ou o prosseguimento
39
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

da gravidez não apenas assegura à mulher o seu direito


fundamental à dignidade, [...] Impedir a antecipação te-
rapêutica do parto, em hipótese de patologia que torna
absolutamente inviável a vida extrauterina, significa sub-
meter a mulher a um tratamento cruel, desumano ou de-
gradante, equiparável à tortura, porque violatório de sua
integridade psíquica e moral.

Além disso, a assertiva da ADPF n. 54 dirime a opressão que a gestante


sente por parte da sociedade, pois o aborto de feto anencéfalo sendo autorizado
e de livre escolha da mãe faz com que o pesar religioso e moral seja dirimido e
não visto mais como um crime.
Assim, o princípio da autonomia da vontade requer que o indivíduo,
com seu poder de liberdade e dignidade assumido pela Constituição Federal,
possa escolher as melhores tratativas para si próprio, admitindo-se que a
gestante delibere sobre suas escolhas pessoais, sendo tratadas com respeito
pela sua capacidade de decisão, pois as questões relacionadas ao seu corpo
e à sua vida somente dizem respeito a si próprio, pois apenas quem enfrenta
referida situação pode dizer qual o melhor caminho a ser escolhido.
A inviolabilidade do direito à vida, bem respaldada na Constituição
Federal, tem o ser humano como centro do Estado democrático, dispondo que
a vida humana é protegida, independentemente de sua qualificação ou de sua
condição pessoal (BRASIL, 1988).
Segundo Dallari (2009, p. 234), sobre o tema é incisivo lembrar que
“[...] a vida é um bem de todas as pessoas, de todas as idades e de todas as
partes do mundo. Nenhuma vida humana é diferente de outra, nenhuma vale
mais nem vale menos do que outra e nenhum bem humano é superior à vida.”
Lembra Silva (2001, p. 20) que:

A vida constitui fonte primária de os outros bens jurí-


dicos, sendo o centro gravitacional sobre o qual orbitam
todos os outros direitos do gênero humano. Em conse-
quência, temos que, do asseguramento do direito à vida
defluem todas as outras situações, quer sejam jurídicas,
políticas, econômicas, morais ou religiosas do Homem
(in genere) [...], assim, de nada adiantaria a Constituição
assegurar outros direitos fundamentais, como a igualda-
de, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse
a vida humana num desses direitos.
40
Diálogos sobre direito e justiça

Portanto, essa autorização, intimamente ligada a preceitos


fundamentais, bioéticos, filosóficos, morais e religiosos fazem com que a ADPF
n. 54 carregue uma carga prenhe de polêmica e divergência, já que avalia a
possibilidade de interromper uma gestação e provocar o cerceamento de uma
vida, ainda que não se discuta a sua inviabilidade fora do útero.
Não tem o ordenamento jurídico brasileiro uma afirmação uníssona
no que diz respeito ao início da vida. Marques (2005) aduz que:

Em nenhum momento, a Constituição diz o que é vida,


e nem poderia, as leis tratam das consequências da vida,
e a partir do momento em que o ser humano nasce, está
sujeito a direitos e obrigações, não cabe à Justiça decidir
isso, e sim à medicina, à ciência, e nem a ciência já definiu
quando começa a vida.

Silva (2009, p. 80) afirma que o direito à vida carece ser observado
de forma ampla, “[...] incluindo o direito de nascer, de permanecer vivo, de
defender a própria vida, enfim, de não ter o processo vital interrompido senão
pela morte espontânea e inevitável.”
Portanto, é imperioso admitir que o direito à vida precede sobre os
demais direitos, uma vez que sem essa prerrogativa não pode o indivíduo
gozar dos demais direitos.

4 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO


LEGAL N. 54 E O VOTO INDIVIDUAL DE CADA MINISTRO
SOBRE O ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS

Como já se expôs, as tratativas sobre o aborto no Código Penal


Brasileiro são aplicadas em casos específicos na esfera jurídica, sem precedentes
de adequação para as necessidades humanas que acompanham a evolução
da sociedade. Assim, a tutela jurisdicional foi inúmeras vezes postulada por
gestantes de feto anencéfalo que requeriam o aborto mediante permissão do
Poder Judiciário.
Portanto, extremamente pertinente a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n. 54 proposta pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde, tendo por representação o Ministro Roberto Barroso.
41
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

Sobre a anencefalia, Pinotti (2004, p. 120) informa que se trata “[...]


da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores
genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese.”
Na mesma linha, Fazolli (2004, p. 3) considera que a anencefalia,
embora diagnosticável, “[...] não possui nenhuma explicação plausível para
justificar sua origem, sabendo-se, apenas, que o feto não apresenta abóbada
craniana e os hemisférios cerebrais ou não existem, ou se apresentam como
pequenas formações aderidas à base do crânio [...]”
Em razão da taxa de mortalidade, do diagnóstico precoce e avançado
em decorrência das últimas descobertas da medicina e atentas a uma nova
geração de direitos e princípios basilares expostos na Constituição Federal, é
que a maioria das mulheres buscava apoio médico e jurídico para interromper
a gestação (DINIZ, 2004, p. 158).
Além do mais, o feto anencéfalo é um natimorto cerebral, sem
possibilidade de tratamento ou cura, tornando a gestação um ápice para um
luto antecipado; em mais da metade dos casos o feto perde os batimentos
cardíacos ainda durante a gestação, e os poucos que alcançam o momento
do parto sobrevivem fora do útero apenas alguns minutos ou horas, com
raríssimos casos de sobrevida de poucas semanas (FREITAS, 2011, p. 17).
Desta feita, a notória decisão abarca um emirado de discussões às
quais foram utilizados os mais notórios e límpidos argumentos jurídicos,
sendo imperioso analisá-los nesse momento.
Relator da ADPF n. 54, o Ministro Marco Aurélio frisa nessa decisão
os seguintes aspectos gerais:

A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobre-


viver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode
ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direi-
tos básicos da mulher [...], é inadmissível que o direito à
vida de um feto que não tem chances de sobreviver pre-
valeça em detrimento das garantias à dignidade da pes-
soa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia,
à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e
moral da mãe, todas previstas na Constituição [...]; cabe à
mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de
ordem estritamente privada, para deliberar pela interrup-
ção, ou não, da gravidez. (BRASIL, 2012).

42
Diálogos sobre direito e justiça

Compreendeu que constitui o aborto um crime contra a vida por se


tutelar a vida em potencial; no caso do feto anencéfalo não há vida possível.
Ademais, afirmou que “[...] o anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em
síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.” (BRASIL,
2012). Por esse motivo, o Relator da ADPF n. 54 compreende que o direito à
vida não deve ser albergado na discussão. No que se refere ao Código Penal, foi
taxativo ao afirmar que não seria lógico um feto sem potencialidade de vida ser
tutelado por um tipo penal que o protege.
Por fim, considerou também que a ciência possibilita novas discussões
em razão da revolução tecnológica, que torna possível a realização de exames
exatos e precisos sobre toda e qualquer anormalidade do feto, fenômenos
não existentes na década de 1940, quando o Código Penal Brasileiro passou
a vigorar.
A Ministra Rosa Weber acompanhou o voto do Relator, tratando o seu
voto de apoiar a liberdade de escolha da gestante, argumentando que:

É o direito da mãe de escolher se ela quer levar adiante


uma gestação cujo fruto nascerá morto ou morrerá em
curto espaço de tempo após o parto, sem desenvolver
qualquer atividade cerebral, física, psíquica ou afetiva,
própria do ser humano [...] A gestante deve ficar livre
para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencé-
falo [...] A postura contrária, a meu juízo, não se mostra
sustentável, em nenhuma dessas perspectivas e à luz dos
princípios maiores dos direitos, como o da dignidade da
pessoa humana, consagrada em nossa Carta Maior, no
seu artigo 1º, inciso III [...] Diante do exposto, voto pela
procedência da presente ação, para dar interpretação con-
forme aos artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo,
por incompatível com a nossa Lei Maior, a interpretação
que entende a interrupção ou antecipação do parto, em
caso de anencefalia comprovada, como crime de aborto.
(BRASIL, 2012).

A Ministra não expôs no seu voto o direito à vida por entender que
não há necessidade de fazer menção a ele, uma vez que adotou o entendimento
do Conselho Federal de Medicina que considera não haver  condições de
desenvolvimento de uma vida com as capacidades psíquica, física e afetiva inatas
ao ser humano quando o feto não tiver atividade cerebral (BRASIL, 2012).
43
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

O Ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, acompanhou o voto do


Relator e solicitou a juntada, com algumas modificações, do voto por ele
elaborado sobre a matéria na análise do Habeas Corpus 84025, quando
considerou a prevalência do princípio da dignidade da mulher e de sua
autonomia privada (BRASIL, 2012).
Registrou também o Ministro que cabe às mulheres a escolha do
melhor para si, considerando que inúmeras delas correm um risco potencial
de ser molestadas, ameaçadas, constrangidas por atos do Poder Público,
delimitadores de sua autonomia da vontade. Assim, foi favorável à interrupção
da gestação nesses casos, considerando todo o sofrimento da gestante em uma
gestação inócua (BRASIL, 2012).
O Ministro Luiz Fux, em seu voto favorável à não continuidade
da gestação e considerando a autonomia da vontade da gestante, alegou
inicialmente, com base em estudos e dados científicos, o seguinte relatório:

É possível chegar a três conclusões lastimáveis sobre a


gestação de anencéfalos: que a expectativa de vida deles
fora do útero é absolutamente efêmera, que o diagnóstico
de anencefalia pode ser feito com razoável índice de pre-
cisão e que as perspectivas de cura da deficiência na for-
mação do tubo neural são absolutamente inexistentes nos
dias de hoje. Diante dessas conclusões, deve-se proteger a
saúde física e psíquica da gestante, dois componentes da
dignidade humana da mulher [...], à luz do princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade. (BRASIL, 2012).

Visa esse pensamento à proteção dos sentimentos incrustados de


uma gestante que se vê em uma gestação de feto anencefálico, chegando a
comparar a situação a uma tragédia humana. Em seu voto, Fux trouxe à baila
questões sociológicas e culturais da sociedade, enquadrando a interrupção
da gravidez de fetos anencefálicos como matéria de saúde pública que aflige,
em sua maioria, mulheres de menor poder aquisitivo, sendo, portanto, uma
questão a ser tratada como política de assistência social, tornando, dessa
forma, necessário prestar à gestante todo a aparato possível nessa situação tão
lamentosa, não sendo de nenhuma maneira a forma mais humana a mulher
ser punida ou sofrer uma repressão penal (BRASIL, 2012).

44
Diálogos sobre direito e justiça

Por sua vez, a Ministra Carmen Lúcia foi enfática ao registrar em seu
voto que a “[...] interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não configura
crime.” Disse também que o STF não estaria decidindo ou permitindo a
introdução do aborto no Brasil, mas discutindo o direito à vida, o direito à
liberdade e também a responsabilidade da gestante. Estaria então o STF

[...] deliberando sobre a possibilidade jurídica de uma


pessoa ou de um médico ajudar uma mulher que esteja
grávida de um feto anencéfalo, a fim de ter a liberdade de
fazer a escolha sobre qual é o melhor caminho a ser se-
guido, quer continuando quer não continuando com essa
gravidez. (BRASIL, 2012).

Além disso, a Ministra pautou sua decisão na dignidade da vida, no


direito à saúde e na sociedade democrática. Quanto à dignidade da vida e ao
direito à saúde, em tonalidade emocional, afirmou que “[...] todas as opções,
mesmo essa interrupção, são de dor, a escolha é qual a menor dor, não é de não
doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também.” Para ela, a
dignidade é um fato avassalador a todos os envolvidos (BRASIL, 2012).
Os esclarecimentos argumentativos da Ministra são dotados de
verdade e sentimentos e indicaram que:

Talvez a maior indicação de fragilidade humana seja o


medo e a vergonha [...], a mulher que não pode inter-
romper a gravidez de feto anencéfalo tem medo do que
vai acontecer, medo físico, psíquico e de vir a ser puni-
da penalmente por uma conduta que ela venha a adotar
[...]; em um das cartas enviadas aos Ministros, uma mu-
lher contou que durante cinco meses de gravidez, após
ter descoberto a anencefalia do seu feto, não saía mais
de casa porque em toda fila, até mesmo na do banco,
perguntavam quando o bebê ia nascer, qual o nome da
criança e o que a mãe pensava para o filho, mas ela não
podia responder, portanto, ela passou cinco meses dentro
de casa se escondendo por vergonha de não ter escolhas
numa sociedade que se diz democrática, com possibili-
dade de garantir liberdade para todos. (BRASIL, 2012).

O Ministro Ricardo Lewandowsky levantou a primeira divergência e,


portanto o primeiro voto contra a Arguição de Descumprimento de Preceito
45
Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

Fundamental, elucidando dois pontos relevantes à discussão: o da usurpação


de poderes e o da ampliação das possibilidades. Disse ele:

O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais,


só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo
a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas
incompatíveis com a Constituição, mesmo este papel,
deve ser exercido com cerimoniosa parcimônia, diante
do risco de usurpação de poderes atribuídos constitu-
cionalmente aos integrantes do Congresso Nacional [...];
não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da
unção legitimadora do voto popular, promover inovações
no ordenamento normativo como se fossem parlamenta-
res eleitos. (BRASIL, 2012).

Previu que o reconhecimento de uma interrupção de gestação de feto


anencéfalo ao aborto de fetos anencéfalos pode abrir precedentes e tornar “[...]
lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que
resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina.” Considerou
que sem uma lei regularmente aprovada pelo Poder Legislativo, regulada
com detalhes e minúcias e acompanhada por longa discussão pública, seria
um retrocesso, inclusive “[...] aos tempos dos antigos romanos, em que se
lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas
ou debilitadas.” (BRASIL, 2012).
Em um último contexto frisou que, se aprovada, a ADPF n. 54 iria
de encontro ao próprio Código Civil Brasileiro, uma vez que essa legislação
resguarda da vida intrauterina em seu artigo 2º (ao estabelecer que a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro).
Sucinto em seu voto, o Ministro Ayres Britto foi incisivo, autorizando
a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, sem que a mulher seja
criminalizada, primando pela gestante “[...] levar às últimas consequências
esse martírio contra a vontade da mulher corresponde à tortura, a tratamento
cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir.”
(BRASIL, 2012).
A determinação do Ministro provém de seu entendimento, assim basilar:

A gravidez se destina à vida, e não à morte [...]; é até


lógica a opção da mulher, no sentido de interromper a
46
Diálogos sobre direito e justiça

gestação de um feto anencéfalo [...]; é preferível arrancar


essa plantinha ainda tenra do chão do útero do que vê-la
precipitar no abismo da sepultura [...]; no caso da gesta-
ção que estamos a falar, a mulher já sabe, por antecipação,
que o produto da sua gravidez, longe de, pelo parto, cair
nos braços aconchegantes da vida, vai se precipitar no
mais terrível dos colapsos. (BRASIL, 2012).

Observou ele que haverá mulheres que mesmo diante de referida decisão,
continuarão com a gestação de um feto anencéfalo, assumindo sua gravidez até
as últimas consequências, sendo opcional o aborto, pois para ele o amor de mãe
é algo único e capaz de se sobrepor a qualquer coisa (BRASIL, 2012).
O Ministro Gilmar Mendes, em voto singular, aprovou a ADPF n. 54
e abarcou o preceito de que abortar um feto anencéfalo é hipótese de aborto,
mas que essa situação está abrangida como causa de excludente de ilicitude, já
prevista no Código Penal, por referida gestação estar no rol de gestação que
causa perigo à vida da gestante, em especial com integridade psicológica dela
(BRASIL, 2012).
Para o Ministro, o necessário quando se trata de gestação de feto
anencéfalo, é uma imperiosa regulamentação, para conferir segurança ao
diagnóstico dessa espécie. Enquanto pendente de regulamentação, a anencefalia
deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos
por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente
seguros (BRASIL, 2012).
Para ele, a necessidade de autorização de aborto de feto anencéfalo
advém de uma mera omissão legislativa, dado que o decurso do tempo em
que o Código Penal vigora deve se considerar, adequando-se a jurisdição às
demandas sociais, não havendo a possibilidade de previsão de anencefalia no
ano em que o Código Penal entrou em vigor (BRASIL, 2012).
Ainda, de acordo com o Ministro, a inconstitucionalidade da omissão
legislativa está:

Na ofensa à integridade física e psíquica da mulher, bem


como na violação ao seu direito de privacidade e intimi-
dade, aliados à ofensa à autonomia da vontade. Competi-
rá a cada gestante, de posse do seu diagnóstico de anence-
falia fetal, decidir que caminho seguir, ressaltou. Por essa
razão, o Ministro destacou a necessidade de o Estado dis-
ciplinar, com todo zelo, a questão relativa ao diagnóstico
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Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

de anencefalia fetal, visto que ele é condição necessária à


realização deste tipo de aborto. (BRASIL, 2012).

Marco Aurélio também destacou um ponto peculiar na discussão e de


grande valia sobre a prevenção da anencefalia, devendo o Ministério da Saúde
ter algum programa “[...] disponibilizando ácido fólico na rede básica de saúde
para acesso de todas as mulheres no período pré-gestacional e gestacional, além
de garantir a inclusão de ácido fólico nos insumos alimentícios”, o que pode
ajudar a diminuir as chances de se gerar um feto anencéfalo (BRASIL, 2012).
O Ministro Celso de Mello votou pela descriminalização da interrupção
de gravidez de feto anencéfalo, confirmando à gestante o pleno direito de
interromper a gravidez de feto que comprovadamente foi diagnosticado com
encefalia. Sua interpretação foi pela declaração de inconstitucionalidade, com
efeito, erga omnes e efeito vinculante para outra interpretação que embarace
a realização voluntária de antecipação terapêutica de parto desse tipo de feto
(BRASIL, 2012).
Sua decisão, todavia, condicionou-se ao fato de a gestante ter o
diagnóstico “[...] comprovadamente identificada por profissional médico
legalmente habilitado [...] sem necessidade de prévia obtenção de autorização
judicial ou permissão outorgada por qualquer outro órgão do Estado para
realizar o aborto.” (BRASIL, 2012).
Discorrendo sobre a autonomia da vontade, disse o Ministro que no
estágio em que se encontrava o julgamento, o STF reconheceria que a mulher
teria “[...] o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica” ou
ainda estaria “[...] legitimada por razões que decorrem de sua autonomia
privada” ao direito de “[...] manifestar sua liberdade individual, em clima da
absoluta liberdade, pelo prosseguimento natural do processo fisiológico de
gestação.” (BRASIL, 2012).
O Ministro Cezar Peluso, sendo o último a votar, foi o segundo a
manifestar-se pela total improcedência da ADPF n. 54, compreendendo
que o feto anencéfalo é portador de vida e, portanto, deve ter seus direitos
tutelados, pois se “[...] o anencéfalo morre, ele só pode morrer porque está
vivo.” (BRASIL, 2012).
Quanto a todos os princípios tutelados nas defesas dos demais
ministros, Peluso foi irredutível:

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Diálogos sobre direito e justiça

Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são de


todo inócuos e atentam contra a própria ideia de um
mundo diverso e plural. A discriminação que reduz o feto
à condição de lixo, em nada difere do racismo, do sexis-
mo e do especismo. Todos esses casos retratam, a absurda
defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre ou-
tros. (BRASIL, 2012).

Além disso, lembra o Ministro que não cabe ao STF tutelar a positivação
de legislação, sendo a discussão abrangida na ADPF de competência do
Congresso, lembrando Peluso que “[...] o Congresso Nacional que não quer
assumir essa responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo.” Para o Ministro,
o julgamento pelo STF representaria “[...] uma tentativa de contornar a má
vontade do Legislativo Brasileiro.”
Esclarecidos os votos, denota-se que ADPF n. 54 foi aprovada por
oito votos a dois. Não votou o Ministro Dias Toffoli, declarando-se impedido
por já ter atuado como Advogado Geral da União, quando esteve em lides
representando a União. Desta feita, referida decisão consagra-se como um
importante feito no Judiciário brasileiro na tomada dos novos direitos, já que
a discussão consagra límpidos argumentos e chancelou na sociedade inúmeras
expectativas que essa decisão irá refletir. Entre os reflexos que a autorização do
aborto de feto anencéfalo poderá trazer, tem-se a possibilidade da abertura de
um precedente para novas espécies de aborto, pois a anencefalia não é a única
e nem a mais grave doença de má-formação de feto.

5 A ADPF N. 54 E UMA POSSÍVEL ABERTURA AO ABORTO


EUGÊNICO

Como já aventado, a Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental n. 54 foi um marco avassalador na concepção dos novos direitos,
conquistando inúmeras revoluções e submergindo vários dogmas. Entretanto,
ao abarcar a permissão da interrupção terapêutica de uma gestação de feto
anencefálico, a ADPF n. 54 abriu precedentes para que outras más-formações fetais
incompatíveis com a vida sejam objetos de discussão na comunidade jurídica.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, há dezenas de “[...]
patologias fetais em que as chances de sobrevivência são nulas ou muito

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Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

pequenas – como acardia (ausência de coração), agenesia renal, hipoplasia


pulmonar, atrofia muscular espinhal e outras.” (SAMPAIO, 2013, p. 6).
Outro ponto avassalador é também o sopesamento sobre a possibilidade
de abertura de novos espécimes de aborto, a partir da ideia do aborto eugênico.
Para Jesus (2000, p. 150), “[...] há o aborto eugenésico ou eugênico, permitido
para impedir a continuação da gravidez quando há possibilidade de que a criança
nasça com taras hereditárias.” O aborto eugênico, para Noronha (2004, p. 56):

Ocorre esta espécie quando há série e grave perigo para


o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja
por doença da mãe, durante a gravidez, seja ainda por e
por efeito de drogas por ela tomada, durante esse perí-
odo, tudo podendo acarretar para aquele, enfermidades
psíquicas, corporais, deformidades, etc. Não é o aborto
eugenésico admitido por nossa lei. Não se admite ela a
cessação da gestação, no caso de possível deformidade da
criatura que está para nascer, e convenhamos que a auto-
rização, nesse caso não deixaria de ser perigosa.

Assim, não se busca apoiar a eugenia ou discordar dela, mas analisar se,
com a procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
auferiu-se uma abertura na jurisdição a respeito do aborto. Isso porque,
conforme já se viu, há outras graves más-formações fetais que culminam na
morte do feto, dentro do útero ou fora dele e acarretam igualmente um trauma
muitas vezes irremediável à gestante.
Como um primeiro aspecto reflexivo, têm-se as palavras proferidas
pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que em seu voto alinhou: “Uma decisão
favorável ao aborto de fetos anencéfalos teria, em tese, o condão de tornar
lícita a interrupção da gestação de qualquer embrião que ostente pouca ou
nenhuma expectativa de vida extrauterina.” (BRASIL, 2012).
Lewandowski também argumentou não haver lei regularmente
aprovada que trate o assunto com as minúcias merecidas, do ponto de vista
ético, jurídico e científico; portanto, diante dos distintos aspectos que essa
patologia pode apresentar na vida real, as portas para a interrupção da gestação
de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças
seriam abertas. (BRASIL, 2012).

50
Diálogos sobre direito e justiça

Sobre as más-formações fetais, em Audiência Pública realizada no


STF, o médico Rodolfo Acatuassú Nunes, Professor Adjunto do Departamento
de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, explicou que há outras doenças congênitas letais, como
acardia, agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal,
holoprosencefalia, osteogênese imperfeita letal, trissomia dos cromossomos
13, 15 e 18, sendo todas afecções orgânicas que levam à morte (BRASIL, 2012).
Corroborando aludidas teses, e atendendo ao propósito de modificação
das leis seguindo a evolução da sociedade, Esteves (2012, p. 2) afirma que
o critério apresentado para a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental para justificar a interrupção da gravidez está baseado em uma
relação mercantilista entre custo e benefício, na qual são sopesados o tempo e
a qualidade de sobrevida do feto de um lado, e o correspondente sofrimento
da mulher, de outro, abrindo-se então o caminho para a permissão da prática
em outras formas de anomalias fetais.
Esteves (2012, p. 5) segue aduzindo que:

Ao aspecto jurídico da questão, a decisão do STF é in-


sustentável: a Constituição brasileira garante e protege o
direito à vida. Assim, o STF, que deveria ser o guardião
da Carta Suprema, acabou por violá-la em nome de um
suposto “direito achado nas ruas”. Além disso, como disse
o Ministro Lewandowski, com toda correção, o Supremo
deu um passo decisivo para permitir o aborto de fetos
com má-formação, o que aponta para a eugenia.

Assim, não se discute que a ADPF n. 54 funcionou como um marco


nos novos direitos, mas acarretou uma provável abertura à discussão sobre a
interrupção de gravidez de fetos com outras más-formações fetais letais.

6 CONCLUSÃO

A evolução humana é responsável pela proliferação de discussão


das questões que acompanham a vida moderna em seus aspectos sociais,
econômicos, jurídicos, religiosos e culturais. Essas discussões muitas vezes
implicam a positivação de direitos reivindicados e dão margem a tantas

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Letícia Emanuele Agostini, Rafaella Zanatta Caon Kravetz

outras capazes de impor aos seres humanos a reflexão a respeito dos direitos
envolvidos nas respectivas lides.
Essas demandas transmitem ao Poder Judiciário inúmeros dogmas
morais, que a partir de funções intelectuais e ponderadas são responsáveis por
moldar a vida em sociedade.
Dessa forma, a ADPF n. 54, tendo como mérito a interrupção da vida
de um feto, teve que dirimir o direito à vida de um feto para valorar a dignidade
da gestante e sua autonomia de vontade, pois esta última já possui uma história
que não pode ser diminuída perante um feto que não irá sobreviver.
No entanto, ao compreender os princípios fundamentais norteadores
dessa decisão, que são o direito à dignidade da pessoa humana, a autonomia da
vontade da mulher e o direito à vida, tem-se a conclusão de que nenhum desses
direitos do ser humano pode ser desconsiderado, embora, dependendo da
situação dolorosa vivenciada, algum desses direitos acabará sendo suprimido.
É fato que a ADPF n. 54 é um marco para a esfera forense, uma vez que
se tratou de uma decisão com efeito arrebatador para um Estado que ainda
preserva muito os costumes, a moral e a religião. Entretanto, referida decisão não
possui as limitações ou os alcances legislativos necessários, sendo esse o pesar
futuro, pois diante de sua margem de abordagem, os problemas relacionados
a gestantes portadoras de fetos com má-formação ainda continuam, podendo
valer-se da ADPF n. 54 para atingir outros casos semelhantes em que o feto
não alcançará a vida fora do útero materno.
É por esses motivos que a ADPF n. 54 se torna tão relevante, pois ela
abre precedentes para que novos tipos de aborto sejam litigados na justiça, tanto
pelo aspecto físico do feto, portador de outras anomalias, não tendo chances de
vida, quanto pelo aspecto emocional da gestante de não querer passar por uma
gravidez falha, sendo o seu corpo e seus sentimentos analisados de forma mais
veemente por analogia à ADPF n. 54. É justamente nessa esteira a importância
da decisão proferida em 2012, no sentido de proteger os direitos e princípios de
outros indivíduos, garantindo-se, contudo, que esse precedente não autorize a
prática da eugenia, que se divorcia da eficaz proteção constitucional ao ser
humano para se aproximar de uma perfeição humana a qualquer custo.

52
Diálogos sobre direito e justiça

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55
A POSSIBILIDADE DA REFORMA DE
IMÓVEIS LOCALIZADOS NAS MARGENS
DOS RIOS NO PERÍMETRO URBANO
Patrícia Diane Weber1
Ricardo Marcelo de Menezes2

Resumo: O presente artigo discorre sobre a possibilidade de reformar imóveis exis-


tentes nas margens de rios localizados em perímetro urbano, bem como o conflito
decorrente dessa possibilidade entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equi-
librado e o direito à moradia. O método consiste no levantamento bibliográfico em
livros e periódicos e nas decisões exaradas pelo Tribunal de Justiça de Santa Catari-
na por meio de pesquisa no website oficial. Apesar de não ser permitido edificar nas
margens dos rios, definidos como área de preservação permanente (APP), desde 1965
diversas construções foram construídas nessas áreas, contando, inclusive, com alvará
municipal. Em determinado momento, esses imóveis tendem a necessitar de reformas,
ocasionando conflitos diante da impossibilidade de alteração e ocupação nas APPs. O
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, quando chamado a se posicionar nesses litígios,
tem pautado suas decisões nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Palavras-chave: Meio ambiente. Direito à moradia. Áreas de preservação permanente.
Reforma de imóveis.

1 INTRODUÇÃO

A proteção ao meio ambiente é fundamental para a continuidade da


vida humana. Há muito tempo o homem vem explorando o meio ambiente,
tirando dele sua subsistência, sem se importar com as consequências dessa
exploração. Somente no último século o meio ambiente passou a ser objeto
de maior atenção nos ordenamentos jurídicos, os quais passaram a positivar
a necessidade de proteção, recuperação e preservação, bem como a efetivar o
disposto nos ordenamentos jurídicos no Brasil como em outros países.

*
Graduanda em Direito na Universidade do Oeste de Santa Catarina;
patriciadianeweber@yahoo.com.br
**
Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul; Especialista em Direito Processual
pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; ricardo.menezes@unoesc.edu.br
57
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

No Brasil houve a aprovação de diversas leis que vieram nesse sentido,


entre as quais o Código de Águas em 1934 (Decreto-Lei n. 24.643), o Código
Florestal em 1965 (Lei federal n. 4.771) e a Política Nacional de Meio Ambiente
em 1981 (lei federal n. 6.938). Em 1988, entrou em vigor a Constituição
Federal que tratou do tema com grande abrangência. Em 2012 também houve
a aprovação de um novo Código Florestal (Lei Federal n. 12.651), lei que trata
sobre a distância mínima a ser preservada nas margens dos cursos de água –
locais denominados áreas de preservação permanente – e sua conceituação.
Com o advento da Constituição de 1988, inúmeras alterações foram
sentidas em nosso dia a dia. O direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado foi erigido a princípio constitucional, situação não verificada
antes em uma Constituição brasileira, e o direito à moradia também passou
a constar no rol dos direitos sociais a partir de 2000, por meio da Emenda
Constitucional n. 26/00.
Outra alteração significativa trazida pela Constituição de 1988 diz
respeito ao direito de propriedade, que sofreu severas alterações, não se
constituindo mais como direito absoluto, mas pautado no atendimento da
função social da propriedade. Entre as limitações impostas ao proprietário,
encontra-se a impossibilidade de edificar em áreas de preservação permanente
(APPs), imposição que objetiva proteger essas áreas de fundamental
importância para a efetivação da proteção ambiental, pois apesar de serem
áreas definidas como non aedificandi, é de praxe encontrarmos diversas
edificações ali situadas.
Inúmeras residências localizadas em APPs foram construídas com a
permissão do Poder Público municipal. Ocorre que, quando há a necessidade
de reformar esses imóveis, os proprietários, de modo geral, não encontram
guarida legal para a sua pretensão, pois o ordenamento jurídico não permite
alteração nas áreas de preservação permanente, surgindo então a celeuma entre
o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Esses proprietários, sem ter seu pleito amparado na via administrativa,
têm buscado amparo à sua pretensão com o Poder Judiciário que tem de se
posicionar a respeito da possibilidade ou não da reforma, tendo de fazer juízo
de valor entre dois direitos importantes no ordenamento jurídico brasileiro:
o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
(direito difuso), para, então, decidir qual deverá prevalecer no caso concreto,

58
Diálogos sobre direito e justiça

embasados na dignidade da pessoa humana, princípio basilar do nosso


ordenamento jurídico.

2 O MEIO AMBIENTE E A ÁGUA NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO

O homem necessita do meio ambiente para a sua sobrevivência. Foi


nele que sempre buscou seus alimentos bem como explorou seus diversos
recursos naturais a fim de garantir a vida da espécie humana. Enquanto existia
abundância de recursos naturais, a temática ambiental não exigia uma tutela
jurídica tão apurada. Com o aumento populacional e a escassez de recursos
naturais o tema ganhou ênfase e o meio ambiente passou a ser protegido nos
ordenamentos jurídicos; a necessidade de sua preservação e recuperação
mostrou-se urgente e necessária para garantir a continuidade da vida humana.
Nas constituições brasileiras anteriores à Constituição de 1988
(BRASIL, 1988), não são encontradas regras ambientais tão amplas quanto às
atuais. Ela foi a precursora em elevar o direito ambiental a direito fundamental,
constando em diversos pontos da Constituição – especialmente no artigo 225
– garantindo a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Em comparação às constituições estrangeiras, fica demonstrado que
nenhuma excedeu a Constituição de 1988 no que se refere ao volume e à
profundidade da matéria constitucional relativa ao meio ambiente (HORTA,
2003, p. 279), demonstrando a preocupação e a relevância atribuídas ao tema
pelo constituinte, visando garantir a recuperação, mas principalmente a
preservação do meio ambiente.
O ordenamento jurídico brasileiro tem como princípio basilar a
dignidade da pessoa humana, a qual não se concebe sem coexistir à proteção
ambiental, e, sem um meio ambiente ecologicamente equilibrado, é impossível
imaginar a efetividade de tão importante princípio. Desta feita, há pouco
tempo se passou de uma situação em que o meio ambiente praticamente não
era protegido pela legislação para uma realidade de proteção e busca por sua
efetivação.
Da mesma forma, a água passou a ser tema de grande relevância não
somente no cenário nacional, mas também no internacional, pois a percepção
de que para a existência de vida a água é de fundamental importância se
tornou notória, bem como que há uma disponibilidade reduzida desse
59
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

recurso. Incontroverso também é o fato de que desde que o homem deixou de


ser nômade, a escolha de um local para se estabelecer de forma permanente
passava pela verificação da existência de água.
Inúmeras civilizações desenvolveram-se próximas aos rios, pois era
por meio destes que ocorria a irrigação de suas culturas (GRANZIERA, 2003,
p. 126), bem como a proximidade das águas facilitava o deslocamento e o seu
uso para os mais diversos fins essenciais para a vida humana. Assim, com
o decorrer dos tempos e o aumento populacional, as cidades continuaram
crescendo no entorno dos rios, e, por isso, foram surgindo inúmeros problemas
sanitários e de saneamento básico, pois o destino comum à maioria dos esgotos
(residenciais, industriais, comerciais) produzidos pelo homem são os rios.
Apesar de a poluição dos recursos hídricos ocorrer desde a era
medieval, o que mudou desde a antiguidade até os dias atuais é a relação
entre o homem e a água: se antes a água era vista como um recurso natural
inesgotável, hoje já é de senso comum que se trata de um recurso que pode
ficar indisponível, sendo, inclusive, motivo de conflitos em diversos locais em
decorrência da escassez em várias regiões do mundo de modo significativo.
Mesmo em países em que a água ainda é encontrada em maior quantidade,
como no Brasil, há dificuldades em formar uma cultura de preservação. Talvez
a maior quantidade de água disponível no país seja justamente o motivo de
tamanho desperdício, pois sua falta não é sentida pela maioria da população
brasileira, que acaba por desperdiçá-la sobremaneira, embora seja comum a
temática ser abordada nos meios de comunicação, alertando sobre a possível
indisponibilidade de tal recurso.
Anteriormente à década de 1980, pouco se encontra sobre recursos
hídricos na legislação infraconstitucional. A lei mais importante que versa sobre
o tema é o Decreto n. 24.643/34 (BRASIL, 1934), que estabeleceu o Código
de Águas, primeira legislação específica, mas que visou, prioritariamente,
estabelecer as diretrizes para o uso e o aproveitamento dos recursos energéticos
e não para a proteção ou o uso da água especificamente. Quando da edição
da Lei, vivia-se um momento em que a energia era fundamental para o
desenvolvimento econômico do país, e controlar o nível das águas era essencial
para manter a produção energética necessária ao desenvolvimento pretendido.
Assim, antes de 1988, a legislação a respeito da água tratava esse bem
como inesgotável, com preocupação da sua falta para a produção energética
(RIBEIRO, 2002, p. 36). Por meio da leitura do artigo 20, § 1º e do artigo 21,
60
Diálogos sobre direito e justiça

XII, “b”, da Constituição de 1988, resta evidente que a produção energética


continua a ser tratada como tema de grande relevância, mas o constituinte
buscou também proporcionar guarida às outras formas de uso das águas,
delegando à União a competência para estabelecer o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos – regulamentado por meio da Lei
Federal n. 9.433/97 (BRASIL, 1997) – o qual dita critérios de outorga da água e
a forma de sua utilização, conforme prescreve o artigo 21, XIX, demonstrando,
assim, a preocupação com os recursos hídricos para outras finalidades que
não somente a energética, principalmente visando garantir a sobrevivência das
diversas formas de vida.
É certo também que existe a legislação necessária para a proteção dos
recursos hídricos e, embora recente e carecendo ainda de plena efetivação,
a edição da Lei n. 9.433/97 já é um avanço na pretensão de proteção a que
se destina, estando garantida a proteção também por meio dos princípios
elencados na Constituição de 1988 que guarnecem as águas.

3 ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (APPS) E O


CÓDIGO FLORESTAL BRASILEIRO

Objetivando a proteção ambiental, o legislador estabeleceu que certas áreas


necessitam de maior proteção e, por isso, instituiu a elas proteção diferenciada, as
quais são intituladas, de acordo com o ordenamento jurídico, áreas de preservação
permanente (APPs); as margens dos rios caracterizam-se como tal.
No ordenamento jurídico, encontramos positivado o conceito e
o objetivo das APPs. Pela leitura do artigo 3º, inciso II, da Lei n. 12.651/12
(BRASIL, 2012), que instituiu o Código Florestal Brasileiro, é possível constatar
que APPs são:

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:


[...]
II – Área de Preservação Permanente – APP: área prote-
gida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função
ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem,
a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o flu-
xo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o
bem-estar das populações humanas.

61
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

No ordenamento jurídico brasileiro as APPs estão regulamentadas


desde o Código Florestal de 1934 (BRASIL, 1934), no seu artigo 4º, o qual
fez referência às florestas protetoras, que se equivalem às nossas APPs atuais.
Posteriormente, com o Código Florestal de 1965, as florestas protetoras
passaram a ser denominadas APPs, o que atualmente está regulamentado
pelo novo Código Florestal Brasileiro – Lei n. 12.651/12 (BRASIL, 2012)
– por meio do qual é possível encontrar sua definição e a metragem a ser
preservada nas margens dos rios (artigo 4º), restando evidente que o legislador
buscou resguardar as margens dos cursos d’água, tanto na zona rural quanto
na zona urbana, garantindo a proteção da vegetação encontrada nesses locais,
vegetação denominada mata ciliar.
No Código Florestal Brasileiro em vigor ficou estabelecida em seu
artigo 4º a metragem mínima a ser respeitada como APP, de acordo com a
largura dos rios, cabendo aos Estados-Membros adaptá-la à sua realidade
regional, mas sem alterar a metragem mínima a ser preservada, ou seja,
possibilita aumentar a área de proteção, mas jamais diminuí-la.
Por apresentarem as APPs uma importante função ecológica, a sua
proteção, faz-se necessária, sendo somente possível sua alteração e supressão
por meio de autorização legislativa, em casos esporádicos e autorizados
legalmente, desde que não venha de encontro à proteção de que são
carecedoras essas áreas, pois são de fundamental importância; a sua destruição
promove a erosão das margens e o assoreamento dos cursos d’água, bem como
a diminuição ou o impedimento da vazão das águas fluviais, exercendo ainda
influência direta sobre o clima e, por consequência, no regime das chuvas e
na captação de água potável para o consumo humano e a produção energética
(ARIMATÉA, 2003, p. 156).
Corroborando nesse sentido, Merlini (2009, p. 52) alerta que: “As áreas
de preservação permanente são especialmente protegidas, pois constituem
instrumentos jurídicos para a implementação do direito fundamental ao meio
ambiente sadio e equilibrado.”
Ainda, convém lembrar que a proteção das APPs como um todo
é necessária para a preservação da vida. Protegendo essas áreas garante-
se a possibilidade de preservação e de recuperação do meio ambiente nas
margens dos rios, principalmente dos rios localizados no perímetro urbano
das cidades, os quais vêm sofrendo desde o início da colonização brasileira,
com a ocupação desordenada nas suas margens, trazendo inúmeros prejuízos
62
Diálogos sobre direito e justiça

ambientais, além de problemas habitacionais e sanitários que ainda carecem


de regularização. Atualmente, a fiscalização por meio do Poder Público
municipal tem sido mais eficiente, não permitindo essas ocupações, limitando
o direito de propriedade embasado na impossibilidade de alteração das APPs
e no atendimento da função social da propriedade, mas ainda assim inúmeras
construções consolidadas são encontradas às margens dos rios na maioria das
cidades brasileiras.
Por derradeiro, proteger as matas ciliares e, por conseguinte, as APPs,
é dever do Estado e de todos, visando à proteção ambiental e às condições para
que as presentes e as futuras gerações tenham acesso aos recursos hídricos
outrora vistos como abundantes, mas tão limitados.
Na Lei federal n. 6.766/79 (BRASIL, 1979), a qual dispõe sobre o
Parcelamento do Solo Urbano, consta que ao longo das águas correntes e
dormentes será obrigatória a reserva de uma faixa não edificável de 15 metros
de cada lado, salvo maiores exigências da Legislação Específica (artigo 3º, II,
da Lei supracitada).
Inúmeras discussões foram levantadas ainda durante a vigência da Lei
n. 4.771/65, trazendo a celeuma de qual legislação deveria prevalecer para a
metragem mínima a ser protegida às margens dos rios no perímetro urbano:
se devia ser o Código Florestal, que estabelecia metragem mínima de cinco
metros – metragem de acordo com a largura do rio – e posteriormente de 30
metros (alteração trazida pela Lei federal n. 7.511/86 e mantida pela Lei Federal
n. 7.803/89 que alterou aquela) a ser preservada, ou se devia ser aplicada a
Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a qual previa 15 metros de preservação,
havendo posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais em ambos os
sentidos. Contudo, alguns anos antes da entrada em vigor do Código Florestal
Brasileiro em vigor, encontrava-se praticamente pacificado nos tribunais que
a metragem a ser observada nas áreas urbanas deveria ser aquela constante na
Lei de Parcelamento do Solo Urbano, por se tratar de lei específica. Existia tal
discussão, por não prever o Código Florestal então em vigor de forma clara,
se a metragem ali estabelecida era para as APPs localizadas em área rural e
urbana, ou somente para APPs localizadas em zona rural.
Com a entrada em vigor do Código Florestal Brasileiro em 2012 e
diante da sua clareza a respeito de a metragem ali estabelecida como APP ser
aplicável para áreas urbanas e rurais – conforme artigo 4º, inciso I – poderá essa
Lei ser utilizada como parâmetro para a metragem mínima de preservação no
63
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

perímetro urbano, a ser preservada enquanto área de preservação permanente, ou


seja, metragem mínima de 30 metros sofrendo aumento, conforme a largura do rio.

4 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Entre os direitos arrolados pela Constituição de 1988 está o direito


à moradia, reconhecido como um direito social, elencado com o artigo 6º
da Constituição, acrescido ao rol dos direitos sociais por meio da Emenda
Constitucional n. 26/2000, sendo de fundamental importância sua inclusão,
pois nesse rol estão elencados os direitos básicos do cidadão e que se interligam
a outros direitos fundamentais, como o direito à liberdade, à igualdade, bem
como ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O direito à moradia é um direito que está positivado em âmbito
internacional desde 1948 por meio da Declaração dos Direitos Humanos –
quando foi estabelecido que a habitação é um direito do homem. No direito
pátrio, além de constar no rol dos direitos sociais, o direito à moradia também
se encontra relacionado ao capítulo que versa sobre a política urbana e o
direito à moradia e à cidade. Também está relacionado ao direito à moradia
o artigo 7º da Constituição de 1988, ao dispor que o salário mínimo deve ser
capaz de atender às necessidades básicas do trabalhador, entre elas a moradia
(GONÇALVES; SOUZA, 2012, p. 3).
Diante da importância que o direito à moradia tem para a efetivação
dos direitos fundamentais do homem, o Estado deve possibilitar o acesso de
forma efetiva a esse direito, pois garanti-lo vai além de garantir uma casa.
Nesse sentido, Rolnik (2011, p. 37, 42) nos ensina que:

Moradia é mais que um objeto físico de quatro paredes


[...] uma moradia adequada [...] tem de proteger a pes-
soa. Mas também, uma moradia adequada é aquela que
está ligada a uma infraestrutura. Portanto, tem de ofere-
cer a quem mora nela condições de acesso a água segu-
ra, de esgoto e de lixo [...] a partir dela deve ser possível,
também, acessar uma rede de equipamentos de saúde,
de educação, de cultura que permita a família que mora
ali naquela moradia as possibilidades de desenvolvimen-
to econômico e de desenvolvimento social. Além disso,
[...] ela tem de permitir o acesso aos meios de vida [...] a
moradia para o trabalhador na indústria é o lugar onde
o emprego existe ou em que ele tem transporte rápido e
64
Diálogos sobre direito e justiça

acessível de acordo com o seu bolso para poder acessar


as oportunidades de trabalho e emprego. Além do mais,
outra dimensão da moradia é o que se chama de afforda-
bility, quer dizer, a moradia não pode custar mensalmen-
te ou uma só vez na vida mais do que a vida pode pagar.

Garantir o direito à moradia significa garantir a observância do


princípio da dignidade da pessoa humana, pois a efetivação do direito à
dignidade passa pelo direito à moradia – moradia digna, com condições de
habitalidade – capaz de proteger o ser humano e a sua família, protegendo
também a sua intimidade e a privacidade, pois são direitos que se intercalam,
não subsistindo dignidade sem que o direito à moradia seja efetivado
(GALMACCI, 2011, p. 44).
Para tal, são necessários grandes investimentos, principalmente
em razão da necessidade habitacional que o Brasil possui. Requer esforços
conjuntos dos Entes Federados, visando minimizar os problemas habitacionais
e impedir que outros venham a surgir, principalmente na seara social e
ambiental, impedindo novas construções irregulares em áreas de risco e em
APPs, sem esquecer que a realidade brasileira clama urgentemente pela solução
dos inúmeros problemas relacionados à habitação irregular em APPs, os quais,
além de colocarem em risco milhares de famílias, também não contribuem
para a proteção ambiental necessária e exigida pelo ordenamento jurídico.
Incontroverso é que com o decorrer dos anos a Legislação Constitucional
e Infraconstitucional de um Estado sofre alterações, conforme os valores e os
princípios do povo ganham novos contornos. Assim ocorreu no Brasil, cuja
Constituição de 1988 trouxe inúmeras novidades, entre as quais se pode citar a
garantia do direito à propriedade, condicionada ao atendimento da sua função
social, o direito fundamental à moradia, bem como o direito fundamental ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tais inovações tiveram grandes
repercussões, pois alteraram significativamente a forma como a propriedade e
o meio ambiente eram tratados.
A concepção da propriedade privada é tão antiga como o homem, sendo
encontrada em todos os povos, com maior ou menor amplitude. Conforme a
cultura de um povo, a propriedade tem maior ou menor importância. Para
os nômades que estão em constante movimento a propriedade não encontra
sentido (ARIMATÉA, 2003, p. 17-18). Diferente situação com outros povos
– principalmente nos ocidentais – em que a propriedade tem grande valor,
65
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

passando entre as gerações e servindo até mesmo de identificação de uma


família o local de sua propriedade, constituindo-se um valor axiológico não
experimentado pelos povos nômades.
Na Legislação brasileira o direito à propriedade está positivado na
Constituição de 1988, em seu artigo 5º, incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV e
XXVI, tendo sofrido profunda mudança, pois na atual Constituição há
limitação ao direito de propriedade que advém da observância do cumprimento
da função social desta, o que não se encontra positivado com tanta amplitude
nas Constituições anteriores, que tratavam a propriedade – de modo geral –
como um direito individualista com poucas limitações. Atualmente, o referido
direito somente pode ser exercido em sua plenitude se observado o interesse
social ou coletivo (GUIMARAENS, 2006, p. 75).
Assim, o direito à propriedade não é direito absoluto, encontrando
restrições na Constituição em vigor, que o condiciona à observância da função
social da propriedade, quando o proprietário continua exercendo seus direitos
sobre a propriedade, mas dentro dos limites legais.
Nas palavras de Marchesan (2004, p. 197):

A expressão função social não foi empregada por acaso e


passa uma ideia operacional, pró ativa, impondo ao pro-
prietário não somente condutas negativas (exemplo, não
poluir, não emitir odores para além dos limites de sua
propriedade) como também positivas (exemplo, obriga-
ção de recompor a mata ciliar, obrigação de recompor a
vegetação que recobria as encostas do morro).

Resta claro que o uso da propriedade está limitado à observância


das normas legais, entre elas as normas de proteção ao meio ambiente, pois
impossível de se conceber que uma propriedade cumpre sua função social se
não observa as normas ambientais. E fazer com que a propriedade cumpra sua
função social é colocá-la a serviço da coletividade, não permitindo que deixe
de ser útil de alguma forma para esta, sem comprometer seu uso futuro e de
seus recursos naturais.
Certamente, a Constituição de 1988 foi inovadora ao estabelecer a
necessidade de cumprimento da função social da propriedade. Cumprindo a
função social não se perde o direito à propriedade, mas, impõem-se deveres
a serem cumpridos em benefício próprio e das presentes e futuras gerações.
66
Diálogos sobre direito e justiça

Os mecanismos e os instrumentos para efetivar a função social da


propriedade foram trazidos com a promulgação da Lei Federal n. 10.257/01
(BRASIL, 2001), autodenominada Estatuto das Cidades, na qual se estabeleceu
que a necessidade de cumprir e fiscalizar o cumprimento da função social é
de competência municipal, devendo ser estabelecida no plano diretor, o que
significa o atendimento e a garantia da função social, abordando, ainda, a
supracitada Lei, a necessidade de proteção e de recuperação do meio ambiente
(artigo 2º, XII). Não deixou o legislador, portanto, de prever também nesse
diploma legal a necessidade de proteção ambiental para que a função social
seja plenamente atingida, indo, por vezes, de encontro a interesses particulares.
Sobre as restrições ao direito de propriedade, Arimatéa (2003, p. 164) leciona:

Entre todas as restrições impostas pelo Estado ao direito


de propriedade, aquelas fundadas na necessidade de pre-
servação do meio ambiente, apresentam-se como o mais
genuíno interesse público. Não há uma pessoa sequer que
não dependa de um ambiente sadio e equilibrado para
viver. Por isso, as limitações e restrições ambientais são
legitimadas pelo interesse de todas as pessoas físicas.

Preservar o meio ambiente é preservar a vida acima de tudo. Diante


disso, o legislador pretendeu, ao impor a proibição de alteração das APPs,
garantir a preservação da própria vida, principalmente quando se tratam de
matas ciliares, que são de fundamental importância.
Haverá inúmeras situações em que se estará diante do conflito entre o
direito de propriedade e a necessidade de proteção ambiental. Deve-se tentar
harmonizar esses direitos, de forma a garantir que o proprietário tenha seus
direitos resguardados e, igualmente, a coletividade tenha seu direito ao meio
ambiente protegido, sem perder de vista que o direito ambiental é direito difuso,
não se esgotando em uma pessoa apenas, mas atingindo toda a sociedade.
No que se refere ao ordenamento das cidades, conforme a Constituição
de 1988, em seu artigo 30, inciso VIII, a administração e seu ordenamento são
atribuições municipais. Por ser o município o Ente Público que se encontra
mais próximo do cidadão em seu dia a dia, as leis que regulamentam a
possibilidade de edificação são de sua competência.
Em regra, possui o munícipe a liberdade de edificar. As limitações
somente são admitidas quando consignadas em lei ou regulamento
67
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

(MEIRELLES, 2005, p. 31). O direito de propriedade e de construir, este em


decorrência daquele, é assegurado pela Constituição de 1988, não sendo
caracterizado como um direito absoluto, mas se pautando principalmente no
atendimento da função social da propriedade e nas demais restrições impostas
pelo ordenamento jurídico.
Com o intuito de bem promover o ordenamento e o crescimento das
cidades, o Estatuto das Cidades estabeleceu a necessidade da implantação de
um plano diretor, e embora a supracitada lei esteja em vigor há mais de dez
anos, inúmeros municípios, cuja lei torna obrigatória a elaboração de um plano
diretor, ainda não contam com esse valioso instrumento para a ordenação
sustentável das cidades, ou contam com um plano totalmente obsoleto e em
disparate aos princípios constitucionais ora vigentes.
Na elaboração do plano diretor deverá ser observada a legislação
ambiental, como forma de garantir um crescimento pautado na sustentabilidade
ambiental e com respeito ao direito constitucional ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Importante ferramenta de âmbito municipal são as legislações acerca
da regulamentação edilícia. Ali será estabelecido o ordenamento da cidade no
seu conjunto e o controle técnico-funcional da construção individualmente
considerada, que visa assegurar as mínimas condições de habitalidade,
funcionalidade e edificação, com enfoque para a moradia, a qual é a razão de
ser de toda a cidade (MEIRELLES, 2005, p. 118-119). O código de edificações é
o instrumento à disposição dos municípios para instituir as normas a respeito
das edificações, concedendo ao urbano a forma pretendida e com os resguardos
julgados necessários.
Assim, o direito de construir não é direito absoluto, pois se depara
com diversas limitações. Desejando o cidadão edificar em solo urbano, deverá
observar a legislação municipal e promover seu atendimento, com vistas a
ter seu direito de construir efetivado, a ser solicitado por meio de alvará de
licença para a edificação, cabendo ao Poder Público realizar o controle prévio
ou preventivo da atividade edilícia com a aprovação do projeto de construção,
firmado por profissional habilitado para tal. Sem a aprovação do projeto não
é possível a concessão de licença ou a autorização para a construção (SILVA,
2010, p. 431-432).
Solicitado o pedido de licença de edificação, deverá o Poder Público
exercer o controle sobre as edificações, analisando sua viabilidade conforme
68
Diálogos sobre direito e justiça

os ditames legais, verificando se a função social da propriedade está presente,


bem como as demais exigências legais, ambientais e urbanísticas.
Nas palavras de Meirelles (2005, p. 213), “O alvará de licença reconhece
e consubstancia um direito do requerente.” Dessa forma, atendidos os
pressupostos legais e estes verificados durante a obra a ser executada, o direito
de construir estará consolidado e deve ser garantido ao requerente.
Para que venha a produzir seus efeitos e a garantir o direito de edificar,
a licença deve ser concedida com a observância da lei e, se não for dessa forma,
não produzirá seus efeitos, impedindo de se proceder à edificação.
Visando atingir seus objetivos urbanísticos e fazer cumprir as leis
urbano-ambientais, o Poder Público pode fazer uso do poder de polícia que
lhe é inerente, sendo atuação estatal preventiva ou repressiva, com o intuito de
coibir danos sociais (ANTUNES, 2000, p. 132-133).
O poder de polícia é um instrumento de grande valia para o Poder
Público municipal, pois por meio desse poder é possível exercer o controle e
a fiscalização do solo urbano e das construções, podendo ingressar no recinto
da obra a qualquer momento durante sua execução e verificar se ela atende ao
disposto no projeto aprovado pela municipalidade, podendo, caso esteja em
desacordo, ser determinado o embargo da obra e, em um momento posterior,
até mesmo a sua demolição, garantindo, dessa forma, que a edificação esteja
em conformidade ao projeto técnico apresentado e cumprindo a função social
da propriedade, nela compreendida a legislação ambiental. Pode-se, assim,
efetivar as regras urbano-ambientais, esquecendo-se da inércia e capacitando
os servidores responsáveis para ver efetivada a proteção ambiental e respeitadas
as regras edilícias.
Construindo o particular sem a devida autorização ou sem a
observância das cominações legais, é possível a determinação de demolição,
por ter sido edificada às margens da legalidade, sem ofertar ao Poder Público
a possibilidade de análise da referida obra e o atendimento dos ditames
legais a ela inerentes. Se a obra foi licenciada, a determinação será efetuada
depois da defesa do interessado. Em se tratando de construção clandestina, a
determinação para demolir é compulsória, mediante ordem da administração,
e não requer processo regular com direito à defesa (MUKAI, 2006, p. 379-389).
Claro está que o direito de construir está subordinado à proteção
ambiental da área a ser alterada por meio da edificação, sendo o Poder Público
municipal o responsável pela verificação prévia do projeto a ser executado,
69
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

bem como durante a sua execução, como forma de garantir a sincronia entre o
projeto apresentado e a obra efetivada.
Conforme legislação em vigor, é incabível a possibilidade de licenciar
uma nova construção em área de preservação permanente por ferir por
completo o ordenamento jurídico vigente, principalmente o princípio ao
direito do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela importância de
que se revestem as APPs.
O Brasil conta com uma realidade urbana de inúmeras residências
localizadas em APPs, mas isso não poderá, em momento algum, servir de
justificativa para que novas edificações sejam construídas nesses locais. Sendo
o alvará de licença de edificação um ato de controle, é por meio desses pedidos
que o Poder Público fará o controle das edificações em seu meio urbano, pois
além de toda a importância ambiental que as APPs representam, em algumas
cidades elas podem significar os últimos espaços urbanos de maior extensão
cobertos de vegetação, devendo ser protegidas, também, com o intuito de
preservar um espaço verde em meio à selva de concreto em que a maioria das
cidades se transformou.

5 CONSTRUÇÕES LOCALIZADAS EM ÁREAS DE


PRESERVAÇÃO PERMANENTE NO PERÍMETRO URBANO

É fato que na maioria das cidades brasileiras existem residências


localizadas em APPs; inúmeras dessas residências foram construídas contando
com alvará de edificação, ou tendo sido construídas antes de 1965, quando foi
aprovada a Lei Federal n. 4.771 que definiu as APPs como área non aedificandi.
Mesmo nos dias atuais, principalmente em cidades menores, percebe-
se que inúmeras construções continuam a ser erguidas em APPs, contando
com a inércia dos órgãos competentes e da população como um todo.
Quando o legislador estabeleceu serem as margens dos rios áreas
carecedoras de proteção, visou proteger tanto o meio ambiente quanto o
ser humano, pois as residências localizadas às margens dos rios estão mais
suscetíveis a alagamentos, desmoronamentos e outras intempéries, expondo
os moradores a toda sorte de perigos. Evidente é o descaso com o qual as áreas
de preservação permanente eram e são tratadas. Prova disso é que na maior
parte das cidades, ou áreas de preservação permanente, estão tomadas por

70
Diálogos sobre direito e justiça

moradias ou são compostas por terrenos baldios, sem mata ciliar, servindo de
modo geral como mero depósito de lixo.
Conforme posicionamento de Saibert (2006, p. 258-259):

Não havia um diálogo com as questões ambientais. A


esgotabilidade dos recursos naturais não era fonte de
avaliação no processo de aprovação municipal. Disso
decorre que grande parte de nossas cidades formais e
regularmente construídas foram erigidas em áreas am-
bientalmente sensíveis e muitas vezes com projetos de
expansão financiados por organismos internacionais [...]
No processo de planejamento das cidades, a escassez de
recursos nunca foi um elemento presente e decisório para
a aprovação de obras e empreendimentos e mesmo para o
planejamento municipal.

O meio urbano sofreu nas duas últimas décadas um crescimento


demasiado, e as cidades não foram capazes de absorver a demanda por moradia.
Assim, muitas APPs foram tomadas por construções irregulares, bem como
em muitas cidades o Poder Público mesmo após 1965 quando a legislação
impôs a preservação de tais áreas, concedeu alvará de licença de edificação em
APPs, ocasionando ocupações com inúmeros prejuízos socioambientais, além
de trazer riscos para a vida das pessoas.
Ocorre que com o passar dos anos essas construções localizadas em
APPs foram se degradando, surgindo a necessidade de reparos, reformas ou
reconstruções e, para tanto, a autorização do Poder Público municipal.
É importante diferenciar os termos “reparo”, “reforma” e “reconstrução”.
Reparos não necessitam de pedido de alvará de licença ao Poder Público
municipal, sendo caracterizados por serviços ou obras que não implicam
modificações na estrutura da construção, como, por exemplo, limpeza e
pintura interna ou externa nos compartimentos ou andares. Já em se tratando
de reformas, é necessário o alvará de licença, pois se está diante de situação
em que ocorrerá modificação da construção ou dos compartimentos ou do
número de andares da edificação, com ou sem alteração da metragem da área
construída (SILVA, 2010, p. 443).
Em relação à reconstrução, Silva (2010, p. 443, grifo do autor) ensina que:

71
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

A reconstrução consiste em executar de novo a constru-


ção, com as mesmas disposições, dimensões e posições
da construção existente. A legislação costuma ter por “re-
construção” a execução, de novo, de área superior a 50%
da área total da construção primitivamente existente – si-
tuação que afasta a incidência do conceito de “reforma”.
De modo que se for até 50% teremos reforma; se acima
dessa porcentagem ingressa-se com conceito de recons-
trução parcial. Quando se refaz a área integral da constru-
ção primitiva o conceito é de “reconstrução total” [...] A
reconstrução depende de licença, que há de ser requerida
pelo interessado, juntando os documentos, que são os
mesmos previstos para construção.

Diante de tal fato, surge uma celeuma, pois há a impossibilidade de


se alterar e ocupar as áreas de preservação permanente e também o direito à
moradia de cidadãos que residem nessas áreas urbanas há longa data e que,
quando da construção de suas residências, foram contemplados com alvará de
licença de edificação expedido pelo órgão público competente.
A maior parte das APPs localizadas no perímetro urbano está tomada
por construções e, de modo geral, encontra-se em situação que descaracteriza
por completo sua função enquanto área de preservação permanente, por se
encontrar destituída, em grande parte, de qualquer forma de vegetação, não
permanecendo com as características necessárias para tais locais.
Considerando as significativas alterações que sofreram as APPs
no perímetro urbano, faz-se necessário um novo olhar sobre essas áreas,
adequando-as às demandas e aos anseios dos habitantes, sem se descuidar da
necessidade de proteção e preservação ambiental, pois aquilo que se pretendia
proteger em grande parte já não existe mais (SERVILHA et al. 2007, p. 98-106).
Incontroverso, ainda, que as residências localizadas nas APPs tendem
a necessitar de reformas. Todavia, o ordenamento jurídico brasileiro não traz a
solução para essa realidade que é enfrentada pelos tribunais, os quais decidem
com base nos princípios constitucionais, analisando o caso concreto, para
fornecer a resposta ao cidadão que busca guarida com o Judiciário.

72
Diálogos sobre direito e justiça

6 O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DO DIREITO AO


MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E O
DIREITO À MORADIA

A Constituição de 1988 garantiu a todos o direito ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado, bem como garantiu o direito à moradia (artigo
225 e artigo 6º da Constituição de 1988, respectivamente).
O supracitado diploma também estabeleceu como princípio basilar a
dignidade da pessoa humana, o qual necessita que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e o direito à moradia produzam efeitos para que
seja de fato uma garantia efetiva.
Nas palavras de Barbosa (2011, p. 69), “O ser humano só pode viver
de uma maneira sadia e com qualidade de vida se estiver em consonância com
um meio ambiente equilibrado, não poluído.” Destarte, se o meio ambiente
não for capaz de garantir a sobrevivência da população, não há que se falar em
efetivação da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, sem o direito à
moradia efetivado, não há a ocorrência da dignidade da pessoa humana.
Sobre a colisão entre princípios constitucionais, Guerra (2007, p. 18-
19) leciona que:

A incompatibilidade gerada pelo conflito de princípios é


sanada por meio de um juízo de ponderação, que, depen-
dendo de cada caso concreto, determinará o recuo daque-
le que tiver menos peso, sem que isso lhe confira nulidade
[...] Todavia, ressalte-se que ambos possuem coexistência,
permitindo-nos constatar que os princípios não são ab-
solutos ao ponto de serem aplicados incondicionalmente,
mas sim relativos, dependendo a prevalência de um ou
outro; dependerá da situação fática concreta.

Tal ensinamento vem ao encontro do presente estudo, pois na análise


pelo Poder Judiciário as peculiaridades do caso concreto definirão qual dos
princípios deverá prevalecer. O direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, por se tratar de direito difuso, deve pautar as decisões, mas
não existe consenso sobre a questão. A colisão de direitos ensejará análise
individual de cada caso suscitado ao Poder Judiciário e somente assim será
possível conceder uma resposta ao caso.
73
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

O princípio que será afastado permanece válido, mas em razão das


peculiaridades do caso necessita ceder espaço a outro princípio, tendo sempre
como princípio norteador a dignidade da pessoa humana. Não é o caso de
se optar entre um princípio ou outro, mas de fazer a devida ponderação
(GUERRA, 2007, p. 19).
Quando se está diante de uma situação em que o cidadão busca alvará
de licença para uma nova edificação em APP, a situação é de fácil resolução, pois
a legislação impede por completo a alteração e a ocupação desses locais, e caso
sejam edificadas novas construções, deverão ser embargadas e posteriormente
demolidas, tão logo tome ciência o Poder Público. Dessa forma, deve o cidadão
arcar com o ônus das restrições impostas à sua propriedade em respeito ao
bem comum, cumprindo com a função social da propriedade.
No Código Florestal Brasileiro restou certa a impossibilidade de
supressão de áreas de preservação permanente, ressalvadas algumas exceções
de lei. O código traz algumas hipóteses em que serão cabíveis alterações,
constando em seu artigo 8º que “A intervenção ou a supressão de vegetação
nativa em área de preservação permanente somente ocorrerá nas hipóteses de
utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental, previstas
nesta Lei.” Já em seu artigo 3º se encontra a definição de utilidade pública, de
interesse social e de baixo impacto ambiental, impossibilitando que situações,
além das definidas, venham a ocorrer, não deixando margem ao legislador para
permissões de alterações em APPs pautadas em interesses das mais diversas
espécies.
Destarte, observa-se que não é cabível edificar em áreas de preservação
permanente. O Poder Público caso conceda alvará de licença para edificar nesses
locais, fora das possibilidades que a lei lhe confere, estará agindo em desacordo
com o ordenamento jurídico, da mesma forma que o particular se edificar sem a
permissão do Poder Público.
Mas, os maiores problemas enfrentados são aqueles cujas edificações
já estão consolidadas nesses locais, pois por meio de uma visita aos centros
urbanos, é possível verificar a existência de inúmeras residências às margens
dos rios. Com o problema de falta de proteção às APPs, há também os
problemas sanitários e os riscos inerentes às inundações a que estão expostos
os moradores ribeirinhos.
Nesse contexto, Prestes (2006, p. 44-45), ao se referir às APPs,
ensina que:
74
Diálogos sobre direito e justiça

Será que uma área densamente ocupada, com todas as in-


terações decorrentes (esgoto, produção de resíduos sóli-
dos, destinação de águas servidas, impermeabilização do
solo, etc.) permanece com as características que lhe gra-
varam como APP? Não seria ambientalmente mais ade-
quado identificar o que ainda é possível fazer para prote-
ger, e no restante, investir em urbanização (tratamento de
esgoto, medidas para conter impermeabilização, controle
das edificações, etc.) para minimizar os impactos decor-
rentes da ocupação? Veja-se que não estamos tratando de
situações individuais, localizadas, mas de um contexto
que prepondera na maior parte das cidades brasileiras de
porte médio e grande [...] Negar a existência, ou enfrentar
o problema a partir da ótica “pode ou não pode continuar
morando neste local”, enxergando a situação a partir dela
mesma e sem considerar se há outro lugar mais apropria-
do para aquelas pessoas, bem como se há possibilidade de
relocalização, ou, sem identificar quem paga os custos de-
correntes desta opção, significa perpetuar conceitos cuja
consequência ainda hoje estamos sofrendo.

A solução para as ocupações em áreas de preservação permanente


parece longe de um consenso doutrinário. O que fazer com inúmeras famílias
que habitam esses locais há longa data? Como destituir uma família que
edificou sua residência em APP com o aval do Poder Público?
Outro questionamento que merece estudo é quanto ao custo de uma
possível realocação em massa dessas famílias e quem arcará com ele, além
do custo ambiental, pois novas áreas terão de ser abertas, novas edificações
construídas e a APP deverá passar por um processo de recuperação, pois
pouco resta, em sua maioria, das condições naturais que ali deveriam ser
encontradas, problema este verificado na maioria das cidades brasileiras.
Caso se adotasse uma visão restritiva, impondo a desocupação dos
imóveis localizados em APPs ou a impossibilidade de alteração de suas
estruturas diante da necessidade de reforma, deixando que viessem a ruir, estar-
se-ia ainda diante de outro problema, com inúmeros imóveis inaproveitáveis,
causando insegurança jurídica, prejuízo aos proprietários, o que impediria a
adequação do uso do espaço urbano, sempre necessário em razão do aumento
populacional, levando milhares de pessoas a residir em outros locais, outrora

75
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

livres de ocupação, gerando novos impactos ambientais, os quais não seriam


menores (MIRANDA, 2008).
Dessa forma, estando em conflito os princípios ao direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e o direito à moradia, nos casos em
que o cidadão busca guarida judicial para reformar seu imóvel por não ter
encontrado respaldo na esfera administrativa, será preciso uma análise
criteriosa do caso concreto a fim de oferecer a solução mais adequada, pois
cada caso possui suas peculiaridades, as quais poderão ser determinantes para
dizer qual deverá prevalecer.

7 ANÁLISE DE DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE


SANTA CATARINA ACERCA DA POSSIBILIDADE DE
REFORMAR IMÓVEIS SITUADOS NAS MARGENS DOS RIOS
NO PERÍMETRO URBANO

A possibilidade de reformar imóveis localizados às margens dos rios


no perímetro urbano das cidades tem sido tema levado aos tribunais quando
o Poder Público municipal não autoriza pela via administrativa o pleito
solicitado. Tal fato não é diferente no Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
até mesmo pela geografia do Estado, composto por vales cortados por rios que
tiveram suas margens povoadas desde o início de sua colonização.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem pautando suas decisões
nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, buscando harmonizar
o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à moradia, estabelecendo
qual irá prevalecer, buscando efetivar o princípio da dignidade da pessoa
humana, o que se constitui em tarefa árdua, em decorrência da colisão de
direitos existentes, não restando resposta pronta, advindo somente a partir da
análise do caso em concreto.
Quando da análise das decisões do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, verifica-se que, se o cidadão conta com alvará de licença de edificação
e solicita ao Poder Público municipal alvará de licença de reforma, tendo seu
pedido negado na via administrativa e ingressa com pedido judicial, o Poder
Judiciário, embasado nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade,
tem garantido o direito a esses moradores de reformar seus imóveis, sem
aumentar a área já edificada. Nesse sentido, temos a Apelação Cível n.
2013.073609-5, de 01 de julho de 2014, garantindo o direito de edificar onde
76
Diálogos sobre direito e justiça

antes já existia outra edificação, em razão da inexistência de desmatamento ou


supressão de mata ciliar.
Também verificamos na Apelação Cível n. 2012.076315-4, de 23 de
julho de 2013, que a decisão se pautou nos princípios já elencados, quando
se pretendia construir o segundo pavimento de uma edificação localizada
em APP, considerando o desembargador para a sua decisão que se trata de
situação consolidada, com a existência de inúmeras outras construções em
igual situação na mesma região.
Já no julgamento da Apelação Cível em Mandado de Segurança n.
2009.025447-3, de 29 de novembro de 2013, o entendimento foi no sentido
de que mesmo a edificação tendo sido construída sem licença de edificação e
estando localizada em APP, entendeu-se que a indenização pecuniária seria
mais eficaz do que a demolição da obra, com embasamento nos princípios
da justiça, considerando ainda a realidade fática de inúmeras residências
localizadas no local e que também não observaram a metragem mínima a ser
preservada como APP.
Outra decisão interessante foi a proferida em reexame necessário do
Processo n. 2011. 009694-0, de 23 de julho de 2013, em face de ação ordinária
de reconhecimento de direito, quando se buscava a possibilidade de reformar
e reconstruir imóvel localizado em APP, sendo destacado que

[...] as provas trazidas aos autos pelas partes não possi-


bilitam a conclusão de que a reforma e a reconstrução
do rancho empreendidas pelo autor tenham ocasionado
outros danos ao meio ambiente que não aqueles original-
mente suportados pelas primeiras edificações, que não
foram por ele realizadas. (SANTA CATARINA, 2013c).

Entendimento predominante no Tribunal de Justiça de Santa Catarina


é de que a construção realizada em APP e sem alvará de licença de edificação
deverá ser demolida, pois as APPs são áreas que não suportam novas
edificações por força do ordenamento jurídico e dos princípios constitucionais
ora vigentes, conforme abordado exaustivamente no presente trabalho.
Nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina quando do
julgamento da Apelação Cível n. 2012.047097-4, de 09 de setembro de 2013,
que determinou a demolição de edificação clandestina construída em APP.

77
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

Em uma situação análoga, porém, o Tribunal de Justiça de Santa


Catarina decidiu de modo diverso, conforme acórdão proferido na Apelação
Cível n. 2008.070545-8, de 28 de fevereiro de 2013, garantindo à proprietária
do imóvel o direito à moradia de residência já edificada em APP, em razão
da recuperação ambiental que a proprietária efetuou no local, o que trouxe
maiores ganhos à área do que prejuízos com a edificação de sua residência,
tratando-se de um caso singular.
Constata-se, outrossim, que somente a análise do caso concreto será
capaz de esclarecer qual direito prevalecerá, se o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado ou o direito à moradia, pois quando se está diante
de uma situação em que o direito à moradia e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado entram em colisão, faz-se necessário recorrer aos
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, atentando-se, também, ao
princípio da dignidade da pessoa humana, a fim de garantir que a justiça seja
alcançada.

8 CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo analisar a possibilidade de


reforma de imóveis localizados às margens dos rios no perímetro urbano por
meio de análise da legislação em vigor e de decisões do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina.
A temática ambiental ganhou grande notoriedade nas últimas décadas,
bem como os ordenamentos jurídicos foram adaptados visando à preservação
ambiental e à continuidade de todas as espécies de vida. A Constituição de
1988, inclusive, elevou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
ao patamar de direito fundamental.
Diariamente, ouve-se nos meios de comunicação a respeito da
indisponibilidade da água e da agressão ao meio ambiente, e da importância
da preservação com o intuito de garantir recursos naturais à atual e às futuras
gerações e, de modo geral, à sobrevivência da espécie humana.
A proteção da vegetação às margens dos rios, outrora vista como
desnecessária, hoje é reconhecida como de fundamental importância, não
sendo passível à supressão das matas ciliares ou qualquer alteração nas margens
dos rios, como forma de preservação de área tão sensível e necessária.

78
Diálogos sobre direito e justiça

O direito à moradia foi elevado à condição de direito fundamental,


constando no rol do artigo 6º da Constituição de 1988, e para que a dignidade
da pessoa humana seja atingida – princípio basilar do ordenamento jurídico
brasileiro – é necessário que o direito à moradia seja garantido.
O direito de propriedade não é mais um direito absoluto. Ele é garantido
desde que observadas as condicionantes legais, entre elas está o cumprimento da
função social da propriedade e, consequentemente, das normas ambientais vigentes.
Fato notório é que inúmeras edificações foram construídas nas áreas
de preservação permanente ao longo dos anos; diversas foram edificadas
contando com alvará de licença de edificação expedido pelo Poder Público
competente, restando também certo que a edificação carecerá de reformas
em algum momento e a legislação em vigor não permite que sejam realizadas
alterações em áreas de preservação permanente.
Por meio do presente artigo, tentou-se analisar como conciliar
os direitos constitucionais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
e o direito à moradia, ambos direitos constitucionais. Tal tarefa é árdua;
os tribunais estão tendo de enfrentar esse embate, pois inúmeras são as
edificações localizadas às margens de rios no perímetro urbano e que carecem
de melhoramentos, mas esbarram na impossibilidade de alteração das áreas de
preservação permanente, conforme dispõe o ordenamento jurídico vigente.
O Poder Judiciário tem feito uso dos princípios da razoabilidade e
da proporcionalidade quando da análise dessas decisões, buscando efetivar a
justiça no caso concreto, considerando as peculiaridades de cada caso.
No Tribunal de Justiça de Santa Catarina prevalecem as decisões de
que novas construções localizadas em APPs, e que não contam com alvará
de licença para edificar, deverão ser demolidas, pois ferem o ordenamento
jurídico e os princípios ora vigentes
Certo é que tanto o direito ao meio ambiente quanto o direito à
moradia são essenciais para que a dignidade da pessoa humana seja alcançada
e a análise do caso concreto e de suas particularidades deverá definir qual
dos direitos irá prevalecer, não existindo resposta pronta, mas aquela oriunda
da análise pormenorizada da situação, visando à efetivação do princípio da
dignidade da pessoa humana.

79
Patrícia Diane Weber, Ricardo Marcelo de Menezes

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Lumen Juris, 2000.

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vegetação nativa; altera as Leis n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, n. 9.393, de
19 de dezembro de 1996, e n. 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as
Leis n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, e n. 7.754, de 14 de abril de 1989, e
a Medida Provisória n. 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras provi-
dências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 maio 2012.

80
Diálogos sobre direito e justiça

BRASIL. Lei n. 12.727, de 17 de outubro de 2012. Altera a Lei n. 12.651, de 25


de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as
Leis n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, n. 9.393, de 19 de dezembro de 1996,
e n. 11.428, de 22 de dezembro de 2006; e revoga as Leis n. 4.771, de 15 de
setembro de 1965, e n. 7.754, de 14 de abril de 1989, a Medida Provisória n.
2.166-67, de 24 de agosto de 2001, o item 22 do inciso II do art. 167 da Lei n.
6.015, de 31 de dezembro de 1973, e o § 2o do art. 4o da Lei n. 12.651, de 25 de
maio de 2012. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 out. 2012.

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SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ape-


lação Cível em Mandado de Segurança. Processo n. 2009.025447-3. Relator:
Des. Francisco Oliveira Neto. Julgamento em 29 nov. 2013. Administrativo.
Mandado de segurança. Construção em área de preservação permanente e
sem alvará de construção. Videira, SC, 29 nov. 2013.

SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apela-


ção Cível n. 2008.070545-8. Relatora: Des. Sônia Maria Schmitz. Julgamento
em 28 ago. 2013. Construção irregular. Ausência de licenciamento. Área non
aedificandi. Preservação e recuperação da área. Caso singular. Florianópolis,
SC, 28 ago. 2013.

SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apela-


ção Cível n. 2012.047097-4. Relator: Des. Nelson Schaefer Martins. Julgamen-
to em 10 set. 2013. Sentença mantida. Recurso desprovido. Joinville, SC, 10
set. 2013.

SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ape-


lação Cível. Processo n. 2012.076315-4. Julgamento em 23 jul. 2013. Relator:
Des. Paulo Henrique Moritz Martins da Silva. Florianópolis, SC, 23 jul. 2013.

SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apela-


ção Cível n. 2013.073609-5. Relator: Des. Sérgio Roberto Baasch Luz. Julga-
mento em 01 jul. 2014. Sentença mantida. Recurso desprovido. Criciúma, SC,
01 jul. 2013.

82
Diálogos sobre direito e justiça

SANTA CATARINA (Estado). Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ree-


xame Necessário. Processo n. 2011. 009694-0. Relator: Des. Pedro Manoel de
Abreu. Julgamento em 23 jul. 2013. Vedação da reformatio in pejus. Prece-
dentes da Corte. Remessa desprovida. Laguna, SC, 23 jul. 2013.

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83
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) N. 46:
UMA BREVE ANÁLISE DO SERVIÇO
POSTAL BRASILEIRO
Thiago Arenhart*
Roni Edson Fabro**

Resumo: O objetivo do presente trabalho foi analisar a Arguição de Descumprimento


de Preceito Fundamental n. 46, mais especificamente elaborar uma pesquisa a respeito
do serviço postal brasileiro, sobretudo após a decisão do Supremo Tribunal Federal e
seus novos paradigmas, visando esclarecer alguns aspectos e características do servi-
ço postal. Quanto ao método, utilizou-se o raciocínio indutivo de análise, em que a
natureza da discussão foi qualitativa. Quanto a seus objetivos, tratou-se de um estudo
exploratório. Ainda, em relação às fontes de informação, compreende-se um estudo
bibliográfico. Frente à discussão sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 46, percebeu-se que o serviço postal brasileiro se delimitou a um con-
ceito de serviço público prestado em regime de privilégio pela Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos. Concluiu-se, portanto, que o serviço postal, por ser exercido
com privilégio, acaba por trazer uma realidade antiquada se compararmos o Brasil a
outros países mais avançados. No entanto, por mais que ainda encontremos atrasos
nas questões da livre iniciativa e da livre concorrência, é importante frisar que os cha-
mados de “novos paradigmas” entram em cena para demonstrar que isso não apenas
tende como já começa a mudar.
Palavras-chave: Serviço postal. Monopólio. Correios. Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n. 46.

_______________________________________
*
Graduando do Curso de Direito na Universidade do Oeste de Santa Catarina.
Mestre em Relações Internacionais para o Mercosul pela Universidade do Sul de
**

Santa Catarina; Mestrando em Direito Fundamentais Civis na Universidade do Oeste


de Santa Catarina de Chapecó; Especialista em Direito Civil pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade
do Contestado; Professor e Pesquisador do Curso de Direito da Universidade do Oeste
de Santa Catarina de Joaçaba; Advogado; roni.fabro@unoesc.edu.br.

85
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

Action Against Violation of Fundamental Constitutional Right (local


acronym ADPF) n. 46: a brief analysis of the brazilian postal service

Abstract: The purpose of this work was to analyze the Action Against Violation of Fun-
damental Constitutional Right n. 46, more specifically to conduct a study concerning the
Brazilian postal service, particularly after the decision by the Supreme Federal Court and
its new paradigms, aiming at clarifying some of its certain aspects and characteristics. As
for the method, the inductive reasoning analysis method was used, in which the nature
of the discussion was qualitative. Further in relation to the sources of information, they
are comprised in a bibliographic study. In view of the discussion of the Action Against
Violation of Fundamental Constitution Right n. 46, it was observed that the brazilian
postal service has been circumscribed to a concept of public service provided by Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (Brazilian Mail and Telegraph Corporation) under
a privileged system. One concludes, therefore, that the postal service, inasmuch as it is
exercised with privilege, ultimately presents an antiquated reality if we compare Brazil
with other more advanced countries. Yet, although one still finds some retrogression in
matters of free initiative and free competition, it is important to stress that the so-called
“new paradigms” come into play to show that not only is this tending to, but also begin-
ning to change.
Keywords: Postal service. Monopoly. Mail service. Action Against Violation of Funda-
mental Constitution Right n. 46.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo uma abordagem sobre o serviço


postal em nosso país, de acordo com interpretação à decisão, do dia 05 de
agosto de 2009, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 46, definiu novas
posições sobre o tema do monopólio postal à União, por intermédio da
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
A questão gerava controvérsias, principalmente às empresas do
setor privado, como as do ramo de distribuição, por não lhes ser garantido
o direito de livre desempenho de suas atividades, privando-as dos princípios
constitucionais do livre-exercício de qualquer ofício, trabalho ou profissão
(art. 5º, XIII da CF), da livre-concorrência (art. 170, IV da CF) e da livre-
iniciativa (art. 1º, IV da CF).

86
Diálogos sobre direito e justiça

Com efeito, a polêmica da questão também refletiu sobre a Lei n.


6.538, de 22 de junho de 1978, que até então regulamentava os direitos e
obrigações concernentes ao serviço postal. Por ser uma lei pretérita à entrada
em vigor da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, deveria, assim,
obedecer aos preceitos legais desta, haja vista que ela poderia ser considerada
inconstitucional e, consequentemente, revogada.
Contudo, mesmo após o julgamento, estudos doutrinários e decisões
jurisprudenciais sobre o tema reafirmaram a necessidade de uma nova
adequação aos moldes definidos pela decisão da ADPF n. 46, já que a privação
do serviço postal a uma pluralidade de empresas do setor privado gera
dificuldades quanto ao surgimento de inovações tecnológicas no ramo, cria
obstáculos à produção de novos empregos e complica a universalização de
acesso ao consumidor final.
Ainda, trazendo à tona a decisão explanada na ADPF n. 46, a qual
fornece poderes de privilégio da prestação do serviço postal aos Correios,
a ideia vem sendo contestada, mesmo que timidamente, pela doutrina, por
considerá-la uma privação do consumidor ao direito à livre escolha, já que em
contrapartida há a compreensão de desestatização que redefine a função estatal
em nosso país e que envolve um processo de ampliação à noção dos interesses
públicos, isto é, em que se vislumbra a ideia de que os serviços públicos podem
ser eficientes e satisfatórios ao consumidor mesmo se desempenhados por
empresas privadas.
Este trabalho teve como objeto apontar novas possibilidades à
prestação do serviço postal brasileiro por meio da participação privada e do
incentivo concorrencial do mercado, objetivando analisar as características da
ECT, para em um segundo momento, adentrar no julgamento da ADPF n. 46
e as dificuldades encontradas para a real efetivação da decisão judicial no atual
contexto postal, por meio da apresentação de novos paradigmas.
O estudo está dividido em três seções, sendo a primeira destinada
a alguns aspectos gerais sobre o serviço postal brasileiro, além da função
administrativa à qual os Correios estão atrelados no cumprimento de suas
obrigações.
Em seguida, são abordados os temas específicos ao julgamento da
ADPF n. 46, a começar pelas noções gerais do caso. Ao final da secção, há um
estudo da corrente vencedora seguida pelo STF, ao definir a prestação postal
enquanto serviço público por meio de regime de privilégio pela ECT.
87
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

Na última e terceira seção, são tratados os novos paradigmas que


permeiam o contexto atual brasileiro no âmbito das entregas postais. São
tratadas questões concernentes à entrega de contas de consumo (água, luz,
gás e IPTU) por meio de funcionários das prefeituras e um estudo de caso
a respeito do empreendimento Carteiro Amigo, que iniciou suas atividades
no Rio de Janeiro como solução aos moradores em áreas sem o devido
atendimento regular dos Correios e que hoje é considerado um exemplo de
inovação e sucesso.

2 O SERVIÇO POSTAL BRASILEIRO

2.1 ASPECTOS GERAIS DO SERVIÇO POSTAL BRASILEIRO

Em 20 de março de 1969 ocorreu o chamado de marco inicial das


relações postais que até hoje vigora em nosso território, no qual uma nova
postura de gestão e importância foi alcançada quando o então chamado
Departamento de Correios e Telégrafos (DCT), por meio do Decreto-Lei n.
509, de 20 de março de 1969, transformou-se na empresa pública denominada
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).1
Atualmente, as agências de correios da ECT estão presentes
rigorosamente, com pelo menos uma agência, em todos os 5.561 municípios e
2.685 distritos atualmente existentes no Brasil. Com seus 103 mil empregados,
dos quais 50.110 são carteiros, 12 mil agências, uma frota de 4.335 vans, 10.455
motos e 25.670 bicicletas, a Empresa distribui, em cerca de 45 milhões de
domicílios, um volume diário de 30 milhões de objetos e correspondências
(COSTÓDIO FILHO, 2006, p. 88).
Sobre a situação atual do serviço postal no país, no dia 22 de junho de
2014, Agostini (2014, p. B6), em matéria publicada pela Folha de São Paulo
com o título “Negócio em crise”, aponta que, com o volume de cartas entregues
cada vez menores, os Correios estão enfrentando problemas de eficiência;
apesar do crescimento desde 2009 em 35% das receitas (chegando ao total de
R$ 16,7 bilhões), os custos aumentaram em 60%. Como prova, aponta que em
2013 o lucro foi de apenas R$ 300 milhões, uma forte queda em comparação
ao mais de R$ 1 bilhão obtido em 2012.
1
Art. 1º. O Departamento de Correios e Telégrafos (DCT) fica transformado em
empresa pública, vinculada ao Ministério das Comunicações, com a denominação de
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT); nos termos do artigo 5º, item II, do
Decreto-Lei n. 200 (*), de 25 de fevereiro de 1967 (BRASIL, 1969).
88
Diálogos sobre direito e justiça

2.2 OS CORREIOS E A SUA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

Quanto à delegação compelida à ECT em fazer o papel do Estado para


o desempenho exclusivo de atividade social, há a necessidade de se conferirem
as exigências sociais da coletividade. Enquanto o monopólio privado tem por
fim o aumento dos lucros e o interesse privado, o monopólio estatal tem por
intuito a proteção do interesse público.
O que se busca é tão somente captar o modo da atuação estatal na
função administrativa de produção de serviços essenciais. Sobre o tema, Justen
Filho (2011, p. 37) aduz:

A função administrativa é o conjunto de poderes jurídi-


cos destinados a promover a satisfação de interesses es-
senciais, relacionados com a promoção de direitos funda-
mentais, cujo desempenho exige uma organização estável
e permanente e que se faz sob regime jurídico infralegal e
submetido ao controle jurisdicional.

Em análise à legislação referente aos Correios, na Lei n. 6.538, de 22


de junho de 1978, destacam-se, em especial, os artigos 3º2 e 4º,3 nos quais se
mostra a necessidade da adequação dos serviços prestados pelos Correios ao
bem-estar social e à satisfação da coletividade, já que em razão dessa função
administrativa, cabe à ECT analisar a soma dos interesses individuais de
cada pessoa enquanto membro da coletividade e, principalmente, enquanto
prestador de serviço postal.

3 O JULGAMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCRUMPRIMENTO


DE PRECEITO FUNDAMENTAL N. 46

3.1 NOÇÕES GERAIS

Em 14 de novembro de 2003 foi proposta pela Associação Brasileira


das Empresas de Distribuição (Abraed) a Arguição de Descumprimento de
2
Art. 3º. A empresa exploradora é obrigada a assegurar a continuidade dos serviços,
observados os índices de confiabilidade, qualidade, eficiência e outros requisitos
fixados pelo Ministério das Comunicações (BRASIL, 1978).
3
Art. 4º. É reconhecido a todos o direito de haver a prestação do serviço postal e do serviço
de telegrama, observadas as disposições legais e regulamentares [...] (BRASIL, 1978).
89
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

Preceito Fundamental (ADPF) n. 46, questionando a existência de monopólio


postal pelos correios, como transcrita parte da ementa4 da decisão, adiante:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEI-


TO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE COR-
REIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA
DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CON-
TROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE
22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE RE-
GULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES
AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS
HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POS-
TAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONS-
TITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA
AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, IN-
CISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO
ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIO-
LAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊN-
CIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTER-
PRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO CON-
FERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTA-
BELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO
DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO
ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO
9º, DA LEI. (BRASIL, 2009).

Questionada a constitucionalidade da Lei n. 6.538, de 22 de junho de


1978, fundamentou-se o pedido com os principais fundamentos a respeito
dos princípios constitucionais da livre-iniciativa (art. 1º,5 IV da CF), do livre-
4
Segue parte do restante da ementa: [...] 1. O serviço postal [...] não consubstancia
atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. [...] o
serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade
econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A
exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de
privilégio [...] 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a
exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [...] 6. A Empresa Brasileira
de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos
serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes
jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que
essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade.
8. [...] O Tribunal deu interpretação conforme a Constituição ao artigo 42 da Lei n.
6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse
ato normativo (BRASIL, 2009).
5
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
90
Diálogos sobre direito e justiça

exercício de qualquer ofício, trabalho ou profissão (art. 5º,6 XIII da CF),


da livre-concorrência (art. 170,7 IV da CF) e da inexistência de monopólio
constitucional postal. Assim, aduziram na petição inicial que essa atividade
não se encontra disposta no enumerado e taxativo art. 177,8 da Constituição
Federal.
A decisão ocorrida no Plenário do Supremo no dia 05 de agosto de
2009 julgou, por seis votos a quatro, improcedente a ADPF n. 46 e, assim,
permaneceu o monopólio dos Correios para o recebimento, transporte e
entrega no território nacional, expedição para o exterior de carta, cartão-
postal e correspondência agrupada, além da fabricação, emissão de selos e
outras fórmulas de franqueamento postal.

3.2 POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Sobre a decisão, Gaban (2011, p. 253-257) afirmou que esta ocorreu de


forma confusa, já que os votos não foram proferidos de forma que dialogassem
uns com os outros. Assim, não se debateu com profundidade se o monopólio
legal é consistente com a ordem econômica vigente:
tem como fundamentos:
IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (BRASIL, 1988).
6
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer (BRASIL, 1988).
7
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
IV – livre concorrência (BRASIL,1988).
8
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos
fluidos;
II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exploração dos produtos e derivados básicos resultantes das
atividades previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados
básicos de petróleo produzidos no país, bem assim o transporte, por meio de conduto,
de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização
e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos
radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob
regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21
desta Constituição Federal.
§ 1º. A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das
atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas
em lei [...] (BRASIL, 1988).
91
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

Deu-se, contudo, um grande impasse no momento da de-


claração do resultado, a ponto de os Ministros não saberem
ao final do julgamento, quais seriam os efeitos concretos
da decisão; e mais, qual teria sido a corrente vencedora no
plenário: a procedência, improcedência ou procedência
parcial [...] De maneira geral, a decisão não representou
um avanço para o desenvolvimento dos serviços postais,
bem como para o aumento do bem-estar social, dado que
os limites do monopólio postal no Brasil foram mantidos
tal qual estabelecidos no período ditatorial.

Assim, serão justificadas, principalmente, as conceituações e ocorrências


levantadas em debate no Supremo Tribunal Federal, que demonstraram a
intenção do Estado em reformar e se adequar a novas emergências, dinâmicas
e relações do serviço postal brasileiro.

3.3 ATIVIDADE ECONÔMICA OU SERVIÇO PÚBLICO?

Em face do debate à natureza jurídica do serviço postal e da existência


do monopólio postal em prol do Estado, cria-se a necessidade de definir a
atividade postal na categoria de atividade econômica ou na de serviço público,
pois a distinção entre ambos é fundamental para legitimar os que estão
incumbidos de prestar o serviço.
Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação
concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou
imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, insuscetíveis
de satisfação adequada mediante os mecanismos da livre-iniciativa privada,
destinada a pessoas indeterminadas, qualificada legislativamente e executada
sob regime de direito público (JUSTEN FILHO, 2003, p. 688).
Já a atividade econômica, para Silva (2007, p. 45), é qualquer atividade
produtora de riquezas e que se opera por meio de transformação de produtos já
existentes para a criação de produtos novos. Para Grau (1998, p. 138), atividade
econômica compreende tudo aquilo que possa ser objeto de especulação lucrativa.
Agora, é possível que uma atividade econômica, isto é, passível de gerar
riquezas, atue na seara da prestação de um serviço público? O setor privado
não conseguiria desenvolver tais atividades?
Sob esse prisma, Xavier (2007, p. 63) argumenta:

92
Diálogos sobre direito e justiça

[...] questionamos a razão de as atividades exploradas


para usufruto de todos, do coletivo, geral, impessoal,
terem que permanecer exclusivamente com o Estado. O
público tem que ser único? Em uma sociedade pluralista,
esse pressuposto não se mantém [...] O interesse público
passa a ser objeto de disputa tanto dos particulares quan-
to do Estado, sendo possível ambos desempenharem um
bom serviço, entretanto, a participação do ente público
nas atividades de cunho econômico deve ser restrita, ten-
do em vista os princípios da livre-iniciativa, livre concor-
rência e da subsidiariedade estatal.

Como resposta, para distinguir ambos os conceitos, Grau (1998, p.


132) ensina que as atividades econômicas poderão ser consideradas como
serviço público ou não, conforme opção política do legislador, pois a parcela
da atividade econômica que não é considerada serviço público constitui a
chamada de atividade econômica em sentido estrito.
Quanto ao desempenho de atividade econômica em sentido estrito,
Aguillar (2006, p. 291) explica:

O Estado pode desempenhar atividades econômicas em


sentido estrito em duas hipóteses: quando houver auto-
rização constitucional e quando assim o permitir a lei
fundada em motivo de segurança nacional ou relevante
interesse público. E o Estado pode desempenhar serviços
públicos, desde que previstos constitucionalmente.

Agora, em relação à ADPF n. 46, o Ministro Eros Grau, em seu voto,


que posteriormente foi seguido pelos demais ministros, tendo sido transcrita
na ementa da referida decisão,9 dispôs o seguinte:

[...] o que tenho afirmado, inclusive em trabalho acadê-


mico, é que o serviço postal é serviço público. Portanto,
a premissa de que parte o arguente é equívoca. O serviço
postal não consubstancia atividade econômica em senti-
do estrito, a ser explorada pela empresa privada. Por isso
9
[...] O serviço postal – conjunto de atividades que torna possível o envio de
correspondência ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado
– não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço
público. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas
espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito (BRASIL, 2009).
93
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

é que a argumentação em torno da livre-iniciativa e da


livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido.
(BRASIL, 2009).

Contudo, inúmeras são as razões contrárias a respeito da decisão.


Primeiramente, Xavier (2007, p. 71-76) afirma que o serviço postal não é
mais relevante para a segurança nacional e nem para a soberania, já que nos
dias de hoje é possível transmitir dados de um canto a outro do planeta se
utilizando apenas de máquinas. Ainda, afirma não haver dúvidas de que a
atividade postal tem natureza essencialmente econômica, não se justificando
que sua exploração seja reservada ao Poder Público. Quanto ao princípio
constitucional da livre concorrência,10 afirma ocorrer supressão ao direito,
já que a intervenção estatal na economia deveria ser excepcional e não por
meio de uma interpretação extensiva das regras constitucionais, aceitando a
participação do Estado nas atividades econômicas somente no caso em que
não exista interesse da iniciativa privada para desenvolver tal atividade.
Outro importante ponto foi tratado por Barroso (2001, p. 153-154)
visando à utilização da semântica “manter” utilizada pelo legislador e constante
no art. 21,11 X, da CF, enquanto função pertinente ao Estado:

[...] Ademais, como já se viu, a exploração do serviço pú-


blico, por caracterizar hipótese de intervenção estatal na
ordem econômica, tem natureza excepcional e deve ser
interpretada de forma estrita. Não é possível assim enten-
der o sentido do verbo manter, que por si só não exclui
a participação dos particulares nesse setor da economia,
para que se venha abranger a prestação pelo Estado des-
sa atividade na qualidade de serviço público, com toda
a restrição que essa forma de intervenção acarreta para
o princípio da livre-iniciativa. Se esta fosse a vontade do
10
Sobre livre concorrência, Costódio Filho (2006, p. 147-148) explica: “[...] enquanto é
vedado o monopólio de atividade econômica aos particulares, por reflexo do princípio
da livre concorrência, a própria CF/88, no seu texto original, previa o monopólio
estatal sobre as atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo e a de
resseguro [...]” Assim, tem-se desde logo uma circunstância do “regime do direito
privado” do Estado explorador de atividade econômica que não se estende ao “regime
de direito privado” do particular explorador de atividade econômica. Em outras
palavras, quando o Estado explora a atividade econômica em sentido estrito, pode
existir monopólio; quando o particular a explora, o monopólio é proibido. É válido,
então, tratar ambos os regimes jurídicos como iguais e de direito privado?
11
Art. 21. Compete à União:
X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional (BRASIL, 1988).
94
Diálogos sobre direito e justiça

constituinte, ele teria se validado das mesmas expressões


que utilizou no art. 21, XI e XIII.

Sendo voto vencido, o Ministro Marco Aurélio expôs suas preocupações


e argumentos sobre a análise da Constituição e o tema questionado:

[...] o monopólio da atividade postal, instituído por for-


ça de lei, quando a Constituição Federal expressamente
admitia tal possibilidade – na Constituição de 1967, por
meio do artigo 157, § 8º, e na Emenda Constitucional n.
1, de 1969, mediante artigo 163 –, foi recepcionado pela
Carta de 1988? Em outras palavras, as razões que deter-
minaram a instituição do monopólio do serviço postal
permanecem vigentes? Pode a Corte olvidar as trans-
formações sociais e tecnológicas que ocorreram no País
nesse meio século e entender que o significado do verbo
“manter”, núcleo do inciso X do artigo 21, é o mesmo de
dois séculos atrás? O serviço postal, durante muito tem-
po, foi executado pela União – e não somente mantido
porque simplesmente não havia no País empresas com
capacidade operacional e técnica suficientes para poder
desenvolver, com presteza e agilidade, a entrega de cor-
respondências por todo o território nacional. (BRASIL,
2009).

Portanto, diante do exposto, nota-se que apesar da decisão ter sido


favorável à função prestada em caráter de serviço público, a flexibilização
deste possui viabilidade prática, pois hoje a relação entre o interesse público e
o privado foi estreitada de tal forma que permite a convivência de ambos.

3.4 MONOPÓLIO OU PRIVILÉGIO?

Quanto à configuração da prestação de serviço feita pelo Estado,


Costódio Filho (2007, p. 165) explica que esse tema sempre foi debatido, já que,
historicamente, a legislação postal brasileira sempre mencionou a existência
desse monopólio postal da União. O Decreto-Lei n. 509, de 20 de março de

95
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

1969, no seu art. 2º, I12 e a Lei n. 6.538, de 22 de junho de 1978, principalmente
no seu art. 9º,13 referem-se expressamente ao regime de monopólio.
Sobre o assunto, Carmo (2003, p. 3) discorre a respeito da
monopolização de serviços públicos:

Entende-se por monopolizado o serviço público quando


o Poder Público se encarrega de satisfazê-lo, de forma
exclusiva, restando excluído o particular desse campo de
ação seja pelo fato de ser considerado ineficaz – como nos
casos de serviços públicos não rentáveis –, seja por se tra-
tar de serviço perigoso.

No julgamento da ação, quando debatida a questão, destacou-se dos


votos o que foi discutido pelo então Ministro Joaquim Barbosa e que acabou
seguido pelos demais ministros:

[...] Assim, o serviço postal é prestado exclusivamente


pelo Estado, em regime de privilégio, mediante outorga
legal à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, em-
presa pública federal, sujeita, portanto, a regras de direito
público e de direito privado, mas com predominância das
normas de direito público. (BRASIL, 2009).

Em sentido oposto, o Ministro Marco Aurélio expôs seu entendimento


de que caberia à iniciativa privada a exploração dessa atividade, não se tratando
de monopólio ou privilégio, possibilitando abertura à concorrência:

Ao reverso, o que a experiência vem demonstrando é que


em muitos casos mais se atende ao interesse social quan-
do o Estado se retira da prestação direta e passa a atuar
de outra maneira, como ente capaz de regular, fiscalizar e
impor sanções, de acordo com os ditames do artigo 174
da Carta Política, e liberta a atividade econômica para
12
Art. 2º. À ECT compete:
I – executar e controlar, em regime de monopólio, os serviços postais em todo o
território nacional
[...] (BRASIL, 1969).
13
Art. 9º. São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades
postais:
[...] (BRASIL, 1978).
96
Diálogos sobre direito e justiça

seus verdadeiros titulares: a iniciativa privada [...] No


caso concreto, melhor alcança o interesse da coletividade
a garantia de que o serviço postal, em suas diversas mo-
dalidades, possa ser prestado em regime de concorrência
entre as diversas empresas que disputam o mercado con-
sumidor, porquanto tal modelo induz à busca constante
de melhorias tecnológicas, redução dos custos operacio-
nais e consequente queda dos preços oferecidos pelo ser-
viço. (BRASIL, 2009).

Gaban (2012, p. 75), em análise crítica ao modelo adotado, entende


não haver razões econômicas para manter o modelo de monopólio legal para
os serviços postais, haja vista que “[...] (i) não constituem monopólio natural
(i.e., não apresentam falha de mercado); (ii) não terão sua prestação universal
reduzida ou de qualquer forma prejudicada em razão da mudança para o
regime de livre concorrência.”
Contudo, apesar das questões levantadas, o que prevaleceu ao final do
processo foi o voto do Relator do processo, Ministro Eros Grau, que se baseou
em uma análise mais terminológica do que prática:

[...] Tenho reiteradamente insistido na necessidade de


apartarmos o regime de privilégio, de que se reveste a
prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio
sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividades eco-
nômicas em sentido estrito é empreendida pelo Estado
[...] Monopólio é de atividade econômica em sentido es-
trito. Já a exclusividade de prestação dos serviços públicos
é expressão de uma situação de privilégio [...] Os regimes
jurídicos sob os quais são prestados os serviços públicos,
importam em que sua prestação seja desenvolvida sob
privilégios, inclusive, em regra, o da exclusividade na ex-
ploração. (BRASIL, 2009).

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu entendimento
de que os serviços postais prestados em nosso país são garantidos em razão
de um regime de privilégio aliado a uma prestação exclusiva de exploração
por parte da ECT, devendo, assim, serem respeitadas as prerrogativas de não
abertura à livre concorrência e à livre-iniciativa para o setor.

97
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

4 NOVOS PARADIGMAS

4.1 ENTREGA DE CONTAS DE CONSUMO

Gaban (2012, p. 306-307) relata que a constante tentativa de ampliar


os limites de sua reserva legal, isto é, de fazer com que seu monopólio postal
maximize ainda mais suas receitas e lucro, é fruto de sua busca em manter-se
à frente, sem qualquer tipo de ameaça, na função de prestação universal dos
serviços postais.
Assim, prosseguindo seu estudo, Gaban (2012, p. 307) cita o caso das
empresas prestadoras de serviços de água e esgoto que se utilizavam da ECT
para o envio de consumo aos consumidores. Entretanto, avanços tecnológicos,
como, por exemplo, a emissão de fatura de consumo no momento da leitura
dos hidrômetros, fizeram com que não fosse mais necessário se utilizar dos
serviços postais, ocasionando uma redução de custos imensa para essas
empresas, pois assim diminuíram os custos com o envio, a envelopagem das
contas e a contratação da ECT para atuar na coleta e entrega. Essa eficiência
gerada, por outro lado, significaria uma significativa perda de receita por parte
da ECT, iniciando, assim, várias ações contra empresas de saneamento básico
e correlatas.
No mesmo sentido de Gaban (2012), Lavoratti (2011, p. 10) relata que a
abertura desse tipo de serviço a empresas concessionárias ou terceirizadas seria
a ideal para a diminuição de custos ao contribuinte, além de apresentar outras
alternativas para o envio dessas faturas, como, por exemplo, via correio digital:

De acordo com a Associação Brasileira de Distribuido-


res de Energia Elétrica (Abradee), o valor médio cobrado
pelos Correios para fazer uma conta de luz chegar ao des-
tinatário gira em torno de R$ 1, enquanto o custo obtido
pelas concessionárias que fazem o mesmo serviço com
pessoal próprio é de R$ 0,60 por correspondência, de
acordo com a Associação Brasileira de Distribuidores de
Energia Elétrica.

Destarte, decisões judiciais ao longo de todo o país apontam a inclinação


favorável à cessão desse tipo de atividade a outros Entes do Poder Executivo ou
a outras empresas diversas da ECT, como, por exemplo, os casos advindos de
98
Diálogos sobre direito e justiça

Tribunais Federais: ECT v. Município de Irati (PARANÁ, 2013); ECT v. Serviço


Autônomo de Água e Esgoto de Lagoa da Prata (SAAE) (MINAS GERAIS,
2013); ECT v. Município de Jaguarão (BRASIL, 2010) e ECT v. Município de
Pinheiros (ESPÍRITO SANTO, 2012). Nesses casos, todas as decisões foram
unânimes em afirmar que:

[...] não viola o monopólio postal conferido à Empresa


Brasileira de Correios e Telégrafos a entrega diretamente
aos contribuintes, por agente de empresas concessioná-
rias de serviço público de distribuição de água e esgoto,
de energia elétrica, ou, ainda, a entrega de carnês de co-
brança do IPTU, por agentes municipais tendo em vista
que tais ações não se inserem no conceito de serviço pos-
tal, de que trata o art. 9º da Lei n. 6.538/1978.

No mesmo sentido, convém citar o seguinte precedente jurisprudencial


do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental em Agravo de
Recurso Especial n. 325492/MG, de relatoria da Ministra Assusete Magalhães,
cujo julgamento ocorreu em 22 de abril de 2014 e negou provimento ao
Recurso da ECT:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO


AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMPRESA BRA-
SILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. MONOPÓ-
LIO POSTAL. ENTREGA DE FATURAS DO SERVIÇO
DE ÁGUA E ESGOTO. MATÉRIA ESTRANHA AO OB-
JETO DA LIDE. ENTREGA DE GUIAS DE IPTU PELO
MUNICÍPIO, SEM A INTERMEDIAÇÃO DE TERCEI-
ROS. POSSIBILIDADE. QUESTÃO DECIDIDA COM
BASE NO ART. 543-C DO CPC. AGRAVO REGIMEN-
TAL IMPROVIDO [...] pelo que mostra-se descabida a
discussão acerca do alegado monopólio na entrega de
faturas decorrentes da prestação de serviço de água e es-
goto, pois tal questão não é objeto da presente lide. II. A
Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no jul-
gamento do REsp 1.141.300/MG, Rel. Ministro HAMIL-
TON CARVALHIDO, submetido ao rito do art. 543-C do
CPC, firmou o entendimento no sentido de que “a entre-
ga de carnês de IPTU pelos municípios, sem a interme-
diação de terceiros, no seu âmbito territorial, não viola
o privilégio da União na manutenção do serviço público
99
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

postal. A notificação, porque integra o procedimento de


constituição do crédito tributário, é ato próprio dos entes
federativos no exercício da competência tributária, que a
podem delegar ao serviço público postal” [...] (BRASIL,
2010).

Em meio aos inúmeros casos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal


(STF) reconheceu Repercussão Geral do tema no Recurso Extraordinário n.
667.958.14
O fato ocorreu após decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
na Apelação Cível n. 2006.38.12.008107-7/MG,15 em negar provimento à ECT
após questionar o Município de Três Marias, MG pela entrega das guias de
IPTU e de outros tributos diretamente aos seus administrados. Em seu voto,
o Juiz Federal Avio Mozar José Ferraz de Novaes, Relator convocado para o
caso, expôs:

[...] o serviço de coleta, transporte e entrega de docu-


mentos constitui atividade de competência da União
Federal, explorada, em regime de Monopólio, pela Em-
presa Brasileira de Correios e Telégrafos, nos termos da
Lei n. 6.538/78, recepcionada pela Constituição Federal
de 1988. A espécie dos autos, contudo, enquadra-se na
ressalva conferida aos entes públicos, que, diretamente,
realizam os serviços de entrega de carnês do IPTU e ou-
tras guias de arrecadação tributária, através de seus ser-
vidores, em cada endereço residencial ou comercial, sem
14
Recurso Extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 2º; 21, X; 170 e 175,
da Constituição Federal, a possibilidade, ou não, de os Entes Federados, empresas e
entidades públicas ou privadas entregarem guias de arrecadação tributária ou boletos
de cobrança aos contribuintes ou consumidores sem o intermédio dos correios
(BRASIL, 2012).
15
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MONOPÓLIO POSTAL. ECT.
UNIÃO. CF/88, ART. 21, X. LEI N. 6.538/78. SERVIÇO DE ENTREGA DE GUIAS DE
ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA. IPTU. EXCEÇÃO. POSSIBILIDADE. 1 - O serviço
de coleta, transporte e entrega de documentos constitui serviço postal, cuja exploração
pertence, em regime de monopólio, à União Federal, nos termos do art. 21, X, da Carta
Magna, e da Lei n. 6.538/78, que fora recepcionada pela CF/1988. Precedentes deste
Corte e do STJ. 2 - No entanto, ressalvam-se, como na espécie dos autos, situações
em que o próprio ente federativo (Município de Três Marias/MG) entrega as guias de
arrecadação tributária, diretamente, em cada endereço residencial ou comercial, sem
intervenção de terceiros, que, nessa hipótese, não são atingidas pelo monopólio postal
da Empresa de Correios e Telégrafos, para a entrega de cartas e correspondências,
posto que, no caso, há a atuação direta do ente federativo, com maior segurança e
economia para o cidadão, sem a intermediação onerosa de terceiros. 3 – Apelação não
provida (MINAS GERAIS, 2008).
100
Diálogos sobre direito e justiça

intervenção de terceiros, não atingindo, nessa hipótese, o


monopólio postal da Empresa de Correios e Telégrafos,
para a entrega de cartas e correspondências [...] Com es-
tas considerações, nego provimento à apelação.

Para o Relator no Recurso Extraordinário n. 667.958, Ministro Gilmar


Mendes, é de fundamental importância a delimitação desse assunto, visando
aos interesses tanto do setor privado quanto dos Entes Federativos, empresas
e entidades públicas:

[...] A controvérsia reclama deste STF pronunciamento


jurisdicional para definir se a União detém monopólio
sobre a entrega de guias de arrecadação tributária e bo-
letos de cobrança, por se tratar de atividade inserida no
conceito de serviço postal. A questão, em essência, cin-
ge-se a verificar a possibilidade de os entes federativos,
empresas e entidades públicas ou privadas entregarem
diretamente suas guias ou boletos de cobranças aos con-
tribuintes ou consumidores ou se é indispensável a uti-
lização dos correios. O tema diz respeito à organização
político-administrativa do Estado, alcançando, portanto,
relevância econômica, política e jurídica, que ultrapassa
os interesses subjetivos da causa. Observo que a questão
foi suscitada na ADPF 46, necessitando de provimento
definitivo. (BRASIL, 2012).

Com efeito, a questão atualmente se encontra em fase de análise pelo


Supremo Tribunal Federal e, por ser considerada de importância, é benéfica
não somente a esse caso concreto, mas também aos interesses da coletividade,
já que a análise do mérito será aplicada posteriormente pelas instâncias
inferiores em casos idênticos.

4.2 CARTEIRO AMIGO

Com o intuito de atender às demandas das populações que vivem


em periferias ou áreas de ocupações irregulares, surge a figura do Carteiro
Amigo, uma empresa criada com a finalidade de suprir esse hiato que existe na
comunicação de pessoas que vivem nessas zonas de difícil acesso, já que essa
sempre foi uma questão de resolução dificultosa para os Correios.
101
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

Como exemplo dessa situação, uma notícia do dia 14 de fevereiro de


2012, do portal de notícias G1, em relação aos problemas no Estado do Rio de
Janeiro, esclarece:

Os cerca de 20 mil moradores da comunidade do Borel,


na Tijuca, na Zona Norte do Rio, têm dificuldades para
receber as suas correspondências. A comunidade sofre
com a falta de carteiros [...] O endereço mais famoso do
Borel é a Rua São Miguel, nº 500. No local funciona a as-
sociação de moradores e para onde são encaminhadas to-
das as cartas e encomendas da comunidade. A associação
também conta com algumas caixas dos Correios, usadas
pelos sócios, que são moradores que pagam mensalmente
um valor e têm direito a receber suas correspondências
em suas caixas. (PARCEIRO..., 2012).

Por meio do Ministério das Comunicações, buscando contornar


problemas como esse, foi emitida a Portaria n. 311,16 de 18 de dezembro de
1998, com o escopo de viabilizar a instalação de unidades postais, também
chamadas de Módulos de Caixas Postais Comunitárias.
Dessa forma, criado para atender àqueles que vivem em áreas
desassistidas dos serviços prestados pela ECT,17 abriu-se a possibilidade de
utilização de franquias.
Sobre essa realidade, um grupo de moradores da favela da Rocinha no
Rio de Janeiro, em meio a dificuldades em receberem as suas correspondências,
iniciaram um empreendimento que hoje é tido como exemplo de sucesso, o
Projeto Carteiro Amigo:

O negócio começou a tomar forma há 12 anos, quando os


16
Art. 2º. Determinar que a distribuição postal de que trata o art. 1º seja realizada nos
municípios caracterizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
da seguinte maneira:
I – em domicílio;
II – centralizada em unidade Postal ou em Módulo de Caixas Postais Comunitárias.
17
De acordo com as diretrizes no site dos Correios: “[...] os Correios não efetuam a
entrega domiciliar em algumas cidades, em área rural, logradouros de difícil acesso
ou de risco. Para estes casos, os Correios enviam os objetos para uma unidade mais
próxima do endereço do destinatário, para que seja realizada a entrega interna [...]
Caso o objeto seja destinado a uma área com restrições de entrega domiciliar, os
Correios avaliarão qual a providência a ser tomada para o CEP indicado, podendo
alongar o prazo de entrega do objeto em mais 7 dias ou enviar o objeto para uma das
Unidades dos Correios, de modo que o destinatário possa retirá-lo: [...]”
102
Diálogos sobre direito e justiça

empresários trabalhavam como recenseadores do Institu-


to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Durante o
processo, perceberam que se eles tinham dificuldade para
se orientar pelos becos e ruelas do morro, a tarefa era ain-
da mais complicada para alguém estranho à comunidade.
A confusão era tanta que as correspondências eram co-
locadas em pontos improvisados e poucos usuais, como
bares e açougues. (MAMEDE, 2012).

Assim, de acordo com Pires (2014), a empresa atua em meio às ruas


estreitas e casas sem numeração, após a criação de uma espécie de mapeamento
próprio da favela, de acordo com pontos comerciais próximos, como bares
e pequenas lojas. A empresa recebe diariamente as cartas destinadas aos
moradores da comunidade e as leva até suas casas, por uma assinatura mensal
de R$ 16,00.
Diante do divulgado, a criação e a aprovação dessa empresa por parte
da população é uma prova de que existe um grande leque de possibilidades
em que o setor privado pode suprir as falhas e dificuldades de prestação nos
serviços postais, pois apesar de seu caráter econômico, trata-se de um sistema
que garantiu o acesso de um serviço até então inexistente a uma vasta gama
de pessoas.

5 CONCLUSÃO

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


(ADPF) n. 46 significou uma importante tentativa de regulamentação dos
procedimentos postais adotados em todo o território nacional, limitando o
envio de correspondências aos Correios ou aos chamados de objetos postais
e instituindo que tal prestação se tratava de serviço público, devendo este ser
exercido em regime de exclusividade pela Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos (ECT) cedido pela União, garantindo um caráter de privilégio, não
monopólio.
No entanto, o que mais condiz com a realidade é a ideia do Estado
mínimo, aquele que deve intervir apenas em situações específicas, cedendo
espaço às atividades privadas. Quando um serviço passa a ser prestado por
mais de um fornecedor, é notável a influência gerada no ramo dos prestadores
desse ofício e o sentimento passa a ser o de melhoria, a fim de que a empresa
103
Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

não seja derrotada no mercado altamente competitivo. Isso, certamente, traz


benefícios para a população como um todo.
É crucial que o setor postal esteja sempre se modernizando perante
as inovações tecnológicas, com o intuito de suprir as demandas da sociedade,
visto que esta, da mesma forma, moderniza-se, atualiza-se e modifica-se. Isso
implica a facilitação do acesso aos serviços ao consumidor final, bem como à
redução de custos daqueles. E já que feita referência a um serviço público, são
essas questões fundamentais que não podem ser esquecidas e nem implantadas
de forma precária e insatisfatória. O juízo levantado nesta pesquisa demonstra
uma visão contrastante com a do serviço público, em razão do fato de que
o domínio postal envolve inúmeros fatores operacionais, administrativos,
econômicos e financeiros, sendo, assim, uma atividade econômica.
Ademais, voltando ao disposto sobre o setor postal ser de cunho
econômico, há a figura do Carteiro Amigo, além dos casos de entrega de
contas de consumo pela própria concessionária ou prestadora do serviço.
Portanto, não há como entender que a ECT, mesmo sendo empresa pública,
não vise ao lucro. Da mesma forma, observa-se que grande parte das decisões
jurisprudenciais advindas posteriormente à decisão à ADPF n. 46 tem sido
favorável à abertura do setor a empresas típicas que desempenham essa função,
já que estas podem baratear o custo dos serviços, bem como garantir uma
maior eficiência à sociedade.
Embora a decisão tomada pelos Ministros do Supremo Tribunal
Federal em manter válidos os dispostos nos arts. 9º e 42, ambos da Lei n. 6.538,
de 22 de junho de 1978, passando a impressão de que os serviços postais são
típicos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos; ao se fazer uma análise
histórica do Brasil, encontram-se cenários divergentes quanto à liberação do
mercado como um todo. Atualmente a visão tendenciosa seria de um mercado
cada vez mais liberal, demonstrando, assim, uma visão adversa equiparada
à lei supracitada. Em concordância, o mercado brasileiro não carece ter essa
desarmonia, pois com um mercado liberal, urge que se tenha um mercado
postal em conformidade com o mesmo entendimento.
À vista do exposto, conclui-se que a análise do serviço postal pela
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 46 garantiu um
avanço quanto aos anseios públicos no setor e também proporcionou uma
grande discussão jurídica sobre o tema. Assim, por mais que o julgamento
da demanda tenha sido favorável à ECT, nota-se que atualmente uma grande
104
Diálogos sobre direito e justiça

parte da doutrina concorda pela reforma da decisão em desvestir os Correios


de seus privilégios e que, dessa forma, por meio do setor privado, beneficie e
garanta a prestação de um serviço de qualidade e eficiente a seus usuários.

REFERÊNCIAS

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correios têm problema de eficiência e mudam o foco para serviços de logísti-
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AGUILLAR, F. H. Direito econômico: do Direito Nacional ao Direito Suprana-


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Thiago Arenhart, Roni Edson Fabro

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AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E OS
REFLEXOS TRAZIDOS PELA VIGÊNCIA
DA LEI N. 12.850/13 NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO HODIERNO
Rafaella Zanatta Caon Kravetz*
Luis Azambuja Tessari**

Resumo: O presente artigo teve por objetivo discorrer sobre a nova Lei n. 12.850/13 de
combate ao crime organizado. O primeiro esforço do legislador em relação ao crime
organizado no ordenamento jurídico penal brasileiro foi a edição da Lei n. 9.034/95,
sem, contudo, definir o conceito de organização criminosa, a qual era emprestada pela
Convenção de Palermo. Ainda, os métodos investigativos na época eram falhos e du-
vidosos quanto à sua aplicação. Portanto, a vigência da novel legislação é de extrema
relevância pelo aclaramento sobre a concepção de organização criminosa e também
pelos meios de obtenção da prova para o seu desmantelamento. Quanto ao método
deste estudo, utilizou-se o raciocínio indutivo de análise; a natureza da discussão foi
qualitativa, empreendendo-se um estudo bibliográfico e jurisprudencial.
Palavras-chave: Organização criminosa. Concepção. Meios de prova.

Criminal organizations and the results brought during the term of the Law
n. 12.850/13 in the present Brazilian legal system

Abstract: This article aimed to discuss about the new Law n. 12.850/13 to combat orga-
nized crime. The first effort of the legislator in respect to organized crime in the Brazilian
criminal law was the enactment of Law n. 9.034/95, without, however, defining the con-
cept of criminal organization, which was borrowed by the Palermo Convention. Still, the
investigative methods at the time were flawed and doubtful as to its application. Therefo-
re, the validity of the new legislation is extremely relevant to clarify about the conception
of criminal organization and also by means of obtaining evidence for its dismantling. As
for the method of this study, we used analysis inductive reasoning, and the nature of the
____________________________________
*
Mestranda em Direitos Fundamentais pelo Programa de Pós-graduação em Direitos
Fundamentais da Universidade do Oeste de Santa Catarina; advogada especialista em
Direito Criminal pela Unicuritiba; rafaella.caon@unoesc.edu.br
**
Graduando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; luisstessari@gmail.com
109
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

discussion was qualitative, waging a bibliographical and jurisprudential study.


Keywords: Criminal organization. Conception. Evidences.

1 INTRODUÇÃO

As organizações criminosas iniciaram suas atividades timidamente


há tempo no cenário mundial e, hoje, estão estabelecidas no mundo todo,
corrompendo todos os continentes, por meio de suas atividades ilícitas e destrutivas.
A evolução das organizações criminosas não foi páreo para o avanço da legislação,
a qual deveria puni-la severamente. No Brasil, o legislador preocupou-se em criar
um sistema repressivo contra as organizações do crime apenas em 1995, com a Lei
n. 9.034. A legislação mostrou-se imensamente falha no combate e na prevenção
das organizações criminosas, que, basicamente, faziam o que bem entendiam,
nem sempre recebendo punição adequada para seus delitos.
A Lei n. 9.034/95 sequer previa uma definição de organização
criminosa, a qual era emprestada pela Convenção de Palermo para a aplicação
no ordenamento jurídico brasileiro. Apenas com a Lei n. 12.694/12, o legislador
estabeleceu um conceito para a organização criminosa no Direito Penal interno,
possibilitando ainda que o juiz de primeiro grau possa instaurar um colegiado
para atos processuais e julgamento em detrimento de organizações criminosas.
Posteriormente, surgiu a nova Lei n. 12.850/13 de combate ao crime
organizado, a qual trouxe uma definição mais consistente de organização
criminosa e regulou os seus meios de obtenção da prova, tornando-os menos
inconsistentes e aumentando sua eficácia.
Portanto, este estudo teve a pretensão de analisar a nova Lei que trata
sobre organizações criminosas, avaliando sua conceituação, bem como os meios
de obtenção da prova, com o escopo de saber se o recente ordenamento jurídico
contribuiu para combater de modo eficaz tais organizações no cenário brasileiro.

2 ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS: HISTÓRICO NO CENÁRIO


BRASILEIRO E A PROBLEMÁTICA DA CONCEITUAÇÃO

É sabido que as organizações criminosas surgiram de modo peculiar


em cada região do mundo. No Brasil, os registros apontam como primeiras
organizações criminosas o movimento conhecido como cangaço, que atuava

110
Diálogos sobre direito e justiça

no Sertão nordestino entre o fim do século XIX e o início do século XX,


tendo como origem as condutas dos jagunços e dos capangas dos grandes
fazendeiros e a atuação do coronelismo. A prática da contravenção do “jogo
do bicho” iniciou no início do século XX, sendo identificada como a primeira
infração penal organizada no Brasil. Quem criou esse jogo do azar foi Barão
de Drumond, com o intuito de salvar animais do jardim zoológico. Após, essa
ideia foi patrocinada por grupos organizados, que monopolizaram o jogo do
azar, com a ajuda de policiais e políticos corruptos (SILVA, 2014, p. 8-9).
Posteriormente, surgiram outras organizações, no Estado do Rio de
Janeiro, como explica Olivieri (2006):

Durante os governos militares, em especial no presídio


Cândido Mendes do Rio de Janeiro, criminosos comuns
entraram em contato com membros das organizações
guerrilheiras de esquerda que combatiam a ditadura. Es-
tes, equivocadamente, viam os criminosos aliados em po-
tencial, por serem de origem proletária. Assim transferi-
ram para eles o know-how de organização. Não por acaso,
a primeira facção criminosa do Rio de Janeiro se autode-
nominou  “Comando Vermelho”, numa alusão a cor das
bandeiras das organizações e partidos de esquerda.

Em São Paulo, na década de 1990, surgiu a organização criminosa


batizada como Primeiro Comando da Capital (PCC), com atuação criminosa
em diversos Estados da Federação. Além de patrocinar rebeliões e resgates de
presos, o PCC também atuava em roubos a bancos e carros que transportavam
valores, sequestros e tráfico de entorpecentes, inclusive com conexões
internacionais (SILVA, 2014, p. 9-10).
Nota-se que a atuação das organizações criminosas iniciou no vácuo
de proibições estatais, como explorar a prostituição, jogos do azar, tráfico de
entorpecentes e de armas, além da conivência de agentes do Estado, como
policiais e políticos corruptos, que em vez de combater as organizações
criminosas, ajudaram no seu desenvolvimento (SILVA, 2014).
Sob uma óptica tradicional, verifica-se que a organização criminosa é
um organismo ou uma empresa, cujo objetivo é a prática de crimes de qualquer
natureza, voltada para a prática de atividades ilegais. É, portanto, uma empresa
voltada à prática de crimes (ESPUNY, 2011).

111
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

Preocupado com o aumento do crime organizado, o Brasil editou a Lei


n. 9.034, em 03 de maio de 1995, possuindo como finalidade prevenir e punir
as ações praticadas por integrantes de organizações criminosas, conforme
dispõe o seu preâmbulo. Porém, apesar de preocupado com tais organizações,
o legislador falhou e nem mesmo definiu o que seria uma organização
criminosa.
Sobre tal falha, Cunha e Pinto (2013, p. 11, grifo do autor) relatam que:

A omissão legislativa incentivava parcela da doutrina a


emprestar a definição dada pela Convenção de Palermo
(sobre criminalidade transnacional), assim redigida: “[...]
grupo estruturado de três ou mais pessoas, existentes há
algum tempo e atuando concertadamente com o propó-
sito de cometer uma ou mais infrações graves ou enun-
ciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou
indiretamente, um benefício econômico ou outro benefí-
cio material.”

Diante dessa lacuna que havia na Lei n. 9.034/95, pela ausência de


uma tipificação de organização criminosa, o Brasil socorria-se de um conceito
por meio da Convenção de Palermo, que consistia em um tratado multilateral
voltado à cooperação entre os Estados-partes para prevenir e coibir o crime
organizado transnacional.
Além de o legislador abandonar a linha inicial do Projeto n. 3.519/89,1
não seguiu nenhuma das correntes conceituais e tampouco buscou uma
posição híbrida. Assim, não partiu de uma noção de organização criminosa,
não definiu o crime organizado, não arrolou as condutas que constituiriam
a criminalidade organizada e nem procurou agregar essas orientações para
delimitar a matéria (SILVA, 2014, p. 20).
Pode observar-se que a Lei n. 9.034/95, em seu artigo inaugural,
equiparava organização criminosa com os delitos de quadrilha ou bando, de
modo que, após a edição da Lei n. 10.217/01, houve o acréscimo da expressão
“organizações criminosas ou associações de qualquer tipo” ao artigo 1º da
Lei n. 9.034/95. Contudo, ainda não era capaz para remediar o problema em
relação ao conceito de organização criminosa (SILVA, 2014, p. 21).
1
O Projeto de Lei n. 3.516/89 continha em seu artigo 2º: “Para efeitos desta lei,
considera-se organização criminosa aquela que, por suas características, demonstre
a existência de estrutura criminal, operando de forma sistematizada, com atuação
regional, nacional e/ou internacional.”
112
Diálogos sobre direito e justiça

Foi por intermédio da Lei n. 12.694/12, que, segundo Silva (2014,


p. 22), “[...] pela primeira vez no panorama jurídico nacional definiu-se
organização criminosa.” Isso implicaria substituir a definição organização
criminosa emprestada pela Convenção de Palermo, e que foi introduzida no
Brasil por meio de simples Decreto (CUNHA; PINTO, 2013, p. 13). Assim,
acabando com a lacuna deixada pela Lei n. 9.034/95, o conceito estabelecido
na Lei n. 12.694/12 trazia em seu artigo 2º:

Para os efeitos desta Lei, considera-se organização crimi-


nosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estrutural-
mente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas,
ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta
ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, me-
diante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou
superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter trans-
nacional. (BRASIL, 2012).

A Lei n. 12.694/12 passou a ser utilizada como um norte no


ordenamento jurídico brasileiro, que, por sua vez, diminuiu a celeuma da falta
de existência de um conceito de organização criminosa, inexistente na Lei n.
9.034/95, que até então era utilizada.

3 A LEI N. 12.850/13 E A NOVA DEFINIÇÃO DE


ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA

Ao redigir o texto da Lei n. 12.850/13, o legislador preocupou-se em


trazer um conceito mais sólido, revendo o que é uma organização criminosa,
que até então era criticada pela doutrina a respeito dessa definição trazida
pela Convenção de Palermo e, posteriormente, pela Lei n. 12.694/12. Também
cuidou em diferenciar organização criminosa do antigo crime de quadrilha ou
bando, que teve sua redação legal modificada para caracterizar, agora, o crime
de associação criminosa. Desse modo, extrai-se da hodierna Lei n. 12.850/13,
em seu artigo inaugural, § 1º:

Considera-se organização criminosa a associação de 4


(quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e ca-
racterizada pela divisão de tarefas, ainda que informal-
mente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente,
113
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de


infrações penais cujas penas máximas sejam superiores
a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
(BRASIL, 2013).

A nova Lei, em sua conceituação, alterou o número mínimo de


integrantes de três para quatro. Anteriormente, a organização criminosa, para
alcançar o seu objetivo (obter vantagem de qualquer natureza), tinha que
praticar crimes cujas penas máximas fossem iguais ou superiores a quatro anos
ou que tivessem caráter transnacional. Hoje em dia, a organização possui o
mesmo objetivo, porém, as penas cominadas devem ser superiores a quatro
anos ou de caráter transnacional (CUNHA; PINTO, 2013, p. 14-15).
Verifica-se na Lei n. 12.850/13 que o legislador delimitou o conceito
de organização criminosa, devendo as infrações possuírem penas superiores
a quatro anos. Com isso, os delinquentes que se organizarem para praticar
jogo do bicho, não restarão tipificados como uma organização criminosa.
Do mesmo modo, o conceito não abrangerá a quadrilha que se organize para
fraudar licitações. Nessas duas situações, por exemplo, a Lei n. 12.850/2013
somente poderá ser aplicada se as infrações tiverem caráter transnacional
(SANINI NETO, 2013).
Do conceito trazido pela Lei n. 12.850/13, nota-se que para se
enquadrar no delito de organização criminosa, faz-se necessária a presença de
três requisitos: estrutural, temporal e finalístico.
O requisito estrutural diz respeito ao número de integrantes necessários
para a configuração de uma organização criminosa, que é de quatro pessoas
ou mais, conforme o parágrafo primeiro do artigo inaugural, da Lei n.
12.850/13, exigindo a legislação que haja uma estruturação mínima para o
funcionamento da organização, ainda que informal, com divisão de tarefas,
não se restringindo a um grupo desordenado, e deve haver, necessariamente,
um chefe ou líder que coordena e comanda a organização criminosa, que
planeja a execução dos delitos a serem praticados e divide as tarefas de cada
membro dentro da organização (SILVA, 2014, p. 24). Ausente o requisito
estrutural de quatro integrantes ou mais, não restará configurado o delito de
organização criminosa. Havendo menos integrantes do que o definido pela Lei

114
Diálogos sobre direito e justiça

n. 12.850/13, o crime será de associação criminosa,2 desde que presentes os


requisitos,3 ou será tido como atípico na esfera penal.
A recente lei é omissa quanto ao aspecto temporal, mas como leciona
Silva (2014, p. 26), é possível socorrer-se, novamente, da Convenção das
Nações Unidas, que definiu o “crime organizado” como aquele “[...] existente
há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma
ou mais infrações.” Não basta o simples vínculo eventual para a caracterização
de uma organização criminosa, há a necessidade da continuidade do vínculo
entre os seus integrantes. Assim, reuniões entre os integrantes da organização
para estabelecer divisão de tarefas e combinação dos atos preparatórios são
suficientes para a configuração do delito (SILVA, 2014, p. 25-26).
Para haver uma organização criminosa, além de possuir quatro ou mais
integrantes, possuindo divisão de tarefas, com a finalidade da prática de delitos
não eventuais, ainda deve haver o requisito finalístico, que é o máximo da
pena dos crimes praticados pelas organizações criminosas. Conforme explica
Silva (2014, p. 26), “[...] o legislador optou por escolher os delitos cujas penas
máximas sejam superiores a quatro anos ou de natureza transnacional.” Caso
seja praticado no Brasil, algum crime cuja pena seja igual ou inferior a quatro
anos, os autores do delito poderão ser tipificados pelo crime de associação
criminosa, artigo 288, do Código Penal (SILVA, 2014, p. 26), pois, para a
configuração desse delito, faz-se necessária a presença de três ou mais pessoas
que cometam delitos cujas penas máximas sejam inferiores a quatro anos.
Criticando o legislador, Nucci (2013, p. 16) alega ser equivocado esse
elemento de as penas máximas serem superiores a quatro anos, pois não faz
sentido limitar a configuração da organização criminosa, de modo que a
sua atuação pode ser extremamente lesiva à sociedade, mesmo praticando
infrações penais. Explica ainda que inexistem contravenções penais com
pena máxima superior a quatro anos, o que torna o conceito de organização
criminosa vinculado unicamente aos crimes e não às contravenções. Nessa
mesma linha de raciocínio, Silva (2014, p. 26) explica que há possibilidade
de a organização criminosa cometer contravenções penais, desde que
haja cumulação com outros delitos que atinjam o patamar de pena exigido
pelo legislador. Exemplifica ainda que algumas organizações criminosas

2
Artigo 288 do Código Penal.
3
Presença de três ou mais pessoas que cometam delitos cujas penas máximas sejam
inferiores a quatro anos.
115
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

estabeleceram suas atividades explorando jogos de azar, como os caça-níqueis,


o que é expressamente vedado pela legislação pátria.
No que diz respeito aos tipos penais incriminadores, convém registrar que
estão dispostos no artigo 2º da Lei n. 12.850/13: promover, constituir, financiar
ou integrar organização criminosa. Assim, os agentes que praticarem qualquer
uma dessas condutas, responderão pelo delito de organização criminosa.
A prática de crimes realizados pelas organizações criminosas não
ofende um indivíduo ou outro, mas a sociedade de modo geral e a paz de
todos os indivíduos que nela estejam. Assim, o sujeito passivo é a sociedade,
e o bem jurídico tutelado é a paz pública. Cuida-se ainda de delito de perigo
abstrato, pois a simples participação em organização criminosa, mesmo que
indireta, coloca em risco a segurança da sociedade (NUCCI, 2013, p. 22).
Assim, segundo Cunha e Pinto (2013, p. 19), esse delito é perseguido mediante
ação penal pública incondicionada.
Prosseguindo, Nucci (2013, p. 23) relata que:

O crime é comum, podendo ser cometido por qualquer


pessoa; formal, não exigindo para a consumação qual-
quer resultado naturalístico, consistente no efetivo come-
timento dos delitos almejados; de forma livre, podendo
ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente; co-
missivo, pois os verbos representam ações; permanente,
cuja consumação se prolonga no tempo, enquanto per-
durar a associação criminosa; de perigo abstrato, cuja
potencialidade lesiva é presumida em lei; plurissubjetivo,
que demanda várias pessoas para a sua concretização;
plurissubsistente, praticado em vários atos.

Em relação à tentativa, esta não parece ser possível, pois os atos


praticados com o fim de formar a associação, antes de praticarem qualquer
núcleo penal, são preparatórios (CUNHA; PINTO, 2013, p. 19). Além do mais,
esse delito está condicionado à existência de estabilidade e durabilidade para
se configurar, como assevera Nucci (2013, p. 23), não restando, desse modo, a
possibilidade de praticá-lo na modalidade culposa.
Preocupou-se o legislador em punir rigorosamente os delinquentes
que além de participarem de uma organização criminosa, atuam com um
maior potencial lesivo, prevendo um aumento da pena nos casos de emprego
116
Diálogos sobre direito e justiça

de armas de fogo durante os delitos, a participação de criança ou adolescente,


o concurso de funcionário público, a conexão com outras organizações
criminosas e a transnacionalidade dos crimes.
Sobre o tema, Nucci (2013, p. 25) alude que “[...] são circunstâncias
legais, integrantes da tipicidade incriminadora, que preveem elevações de
pena, por cotas expressas em lei, utilizadas na terceira fase da fixação da pena.”
A pena pode ser aumentada até a metade se na atuação da organização
criminosa houver o uso de armas de fogo (artigo 2º, § 2º, da Lei n. 12.850/13).
Nota-se que somente haverá o aumento da pena se for arma de fogo, restando
excluídos instrumentos como a faca, o canivete, por exemplo, não abrangendo
qualquer outro instrumento, mesmo se fabricado com finalidade bélica
(CUNHA; PINTO, 2013, p. 20).
A pena também será aumentada de um sexto a dois terços quando
houver participação de criança ou adolescente, de acordo com o artigo 2º, § 4º,
da Lei n. 12.850/13. A participação que esse artigo faz menção se refere tanto
ao adolescente que participa efetivamente da organização, ou seja, um membro
ativo (concurso impróprio), quanto aos membros de uma organização que
fazem “uso” de menores para fins diversos (autoria mediata) (NUCCI, 2013,
p. 26-27).
Outrossim, haverá acréscimo na pena, de um sexto a dois terços,
se houver o concurso de funcionário público praticando algum delito ou
ajudando a organização criminosa. A Lei n. 12.850/13 assim dispõe em seu
artigo 2º, § 4º, II: “[...] se há concurso de funcionário público, valendo-se a
organização criminosa dessa condição para a prática de infração penal.” Assim
não basta ser o concorrente funcionário público (artigo 327 do Código Penal),
mas valer-se a organização criminosa dessa sua condição para praticar alguma
infração penal; são requisitos cumulativos. Exige-se do funcionário público
que a atuação deste seja útil para a associação na busca de vantagem objetivada
pelos seus interesses (CUNHA; PINTO, 2013, p. 21-22).
Ademais, se o produto (vantagem obtida com a prática do crime ou
contravenção) ou proveito (produto transformado em outra vantagem) da
infração penal destinar-se ao exterior (CUNHA; PINTO, 2013, p. 22), caberá o
aumento da pena de um sexto a dois terços (art. 2º, § 4º, III, da Lei n. 12.850/13).
Nucci (2013, p. 28) explica que essa premissa foi estabelecida em razão da
“[...] dificuldade em rastrear, localizar e sequestrar ou apreender o produto
ou proveito da infração penal cometida pela organização quando tudo se vai
117
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

ao exterior”, tendo a Lei n. 12.694/12 acrescentado ao artigo 91 do Código


Penal os parágrafos 1º e 2º, que assim preveem a decretação da perda de bens
ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime ainda que não sejam
encontrados ou estejam localizados no exterior, e também a aplicação das
medidas assecuratórias previstas na legislação processual aos bens ou valores
equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação da perda.
Desse modo, quando o criminoso destinar o produto ou proveito do delito ao
exterior, pode-se sequestrar seu patrimônio lícito, localizado no Brasil, para se
fazer compensação (NUCCI, 2013, p. 28), citando como exemplo também o
caso de uma organização criminosa que efetue um roubo e destine o produto
do crime para algum lugar internacional ter seus bens apreendidos no Brasil
como forma de compensar o prejuízo causado.
As organizações criminosas colocam em risco a paz pública da
sociedade e havendo ligações de várias organizações criminosas, por óbvio,
o risco será ainda maior. Nesse sentido, o legislador também majorou a pena
quando houver ligação entre organizações criminosas, de um sexto a dois
terços (artigo 2º, § 4º, IV, da Lei n. 12.850/2013).
Conforme leciona Nucci (2013, p. 30) a agravante “[...] é circunstância
legal, não vinculada à tipicidade incriminadora, que recomenda a elevação da
pena, dentro dos limites previstos no preceito secundário, a ser utilizada na
segunda fase da fixação da pena.” O legislador previu o agravo da pena para
quem exerce o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa,
ainda que não pratique pessoalmente atos de execução (artigo 2º, § 3º, da Lei
n. 12.850/13). Essa liderança pode ser individual, exercida por uma pessoa
apenas, ou coletiva, dividida com outros integrantes. Quem, de qualquer
modo, concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas. Desse modo,
qualquer atividade é capaz de gerar a concorrência no delito (NUCCI, 2013, p.
30) e, consequentemente, haverá a incidência da agravante. Para Silva (2014,
p. 29) aquele que está em situação de comando na organização, coordenando
atividades ou parte delas, ainda que de forma coletiva e que não venha a
praticar nenhum ato de execução, terá sua pena agravada, ficando o quantum a
critério do magistrado, que irá fundar seu julgamento considerando o poder de
decisão do comandante da organização, bem como a sua influência no grupo.
Cunha e Pinto (2013, p. 21) relatam que “O § 3º pune mais severamente
quem tem o domínio da associação. Trata-se de agravante semelhante a do

118
Diálogos sobre direito e justiça

art. 62, I, do CP,4 a ser considerada pelo magistrado na segunda fase do


cálculo da pena.”
A criação de novos métodos para o combate ao crime organizado
considerou a sua complexidade, de modo que os instrumentos processuais
tradicionais por si só se mostraram insuficientes para a sua repressão.
Um detalhe importante é que os autores desse tipo de delito se
preocupam em dificultar a obtenção da prova a quem os investiga. Percebe-
se que os criminosos destroem as armas, para evitar eventual comparação
com outros crimes cometidos; o automóvel usado no delito, que uma vez era
apenas roubado/furtado, hoje em dia também é incendiado para não deixar
qualquer vestígio; os telefonemas dos sequestradores duram menos tempo,
evitando identificar sua origem; quando há testemunhas, estas são intimidadas
e ameaçadas (FASSONI apud SILVA, 2014, p. 33). Verifica-se que o criminoso
participante de uma organização criminosa é muito mais cauteloso que um
delinquente comum, o que suscita do Estado ferramentas mais eficazes para
o seu combate.

4 OS MEIOS DE PROVA ENCONTRADIÇOS NA LEI N. 12.850/13

Referente aos aspectos processuais, a Lei n. 12.850/13, mais


especificamente quanto aos meios de obtenção de prova, em seu art. 3º,
trouxe meios específicos de obtenção de prova, sem prejuízo dos descritos no
Código de Processo Penal, a saber: colaboração premiada; captação ambiental
de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; ação controlada; acesso a
registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes em
bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;
interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da
legislação específica; afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal,
nos termos da legislação específica; infiltração, por policiais, em atividade de
investigação, na forma do artigo 11; cooperação entre instituições e órgãos
federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de
interesse da investigação ou da instrução criminal, os quais serão abordados,
um a um, oportunamente.
A colaboração premiada está disciplinada nos artigos 4º ao 7º da Lei
n. 12.850/13, contudo, esse meio de prova não é originário dessa Lei, sendo
4
A pena será ainda agravada em relação ao agente que:  I - promove, ou organiza a
cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes.
119
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

inicialmente disciplinado pela Lei n. 8.072/90, que dispõe sobre os crimes


hediondos (SILVA, 2014, p. 52). Posteriormente, tal instituto foi introduzido
às Leis n. 9.034/95 (revogada Lei que tratava das organizações criminosas, em
seu artigo 6º), n. 9.613/98 (Lei de lavagem de capitais, em seu artigo 1º, § 5º),
n. 9.807/99 (Lei de proteção das vítimas e testemunhas, em seus artigos 13
e 14), n. 11.343/06 (Lei de drogas, em seu artigo 41) e n. 12.529/11 (Lei que
estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, em seu artigo 87)
(CUNHA; PINTO, 2013, p. 34).
A Lei traz em seu Texto Legal o termo “colaboração premiada”,
enquanto deveria ser denominada “delação premiada”, pois não se trata de
qualquer cooperação, mas do momento em que são descobertos dados ainda
não conhecidos. Por isso, seu sentido é de acusar ou denunciar alguém, ou
popularmente, dedurar alguém (NUCCI, 2013, p. 47). Ainda, pode ser chamada
de cooperação processual (processo cooperativo), como destaca Silva (2014, p.
50), que é quando “[...] o acusado [...] evita que outras infrações venham a se
consumar [...], assim como auxilia concretamente a polícia na sua atividade de
recolher provas contra os demais coautores, possibilitando suas prisões.”
A colaboração premiada pode reduzir a pena privativa de liberdade até
dois terços ou substituída por restritivas de direitos, além de, dependendo da
situação, ser concedido perdão judicial ao delator, desde que tenha colaborado
de modo efetivo e voluntário durante a investigação, conforme dispõe o artigo
4º, caput, da Lei n. 12.850/13. Assim, Nucci (2013, p. 47) assevera que “O
valor da colaboração é relativo, pois se trata de uma declaração de interessado
(investigado ou acusado) na persecução penal, que pretende auferir um
benefício, prejudicando terceiros.”
Além disso, em qualquer caso, a concessão do benefício considerará
a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a
repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (artigo 4º, §
1º, da Lei n. 12.850/13). Tais circunstâncias deverão ser apreciadas pelo juiz no
momento de aplicar o benefício, no momento da sentença de mérito (GRECO
FILHO, 2014, p. 40).
Cumpre destacar que a Lei n. 12.850/13 não exige que haja efetivamente
a conduta de delatar os comparsas do delator. Essa não é uma condição para a
concessão do benefício. Este pode ser alcançado caso venha a ocorrer a recuperação
total ou parcial do produto advindo do crime, ou, por exemplo, quando a
integridade física da vítima seja preservada (CUNHA; PINTO, 2013, p. 35).
120
Diálogos sobre direito e justiça

Avaliando os aspectos positivos e negativos sobre a colaboração


premiada, percebe-se que o Estado deveria ter atuado de forma preventiva,
adotando políticas públicas de segurança adequadas ao combate das
organizações criminosas. Porém, quando se depara com a atuação do crime
organizado, pode valer-se da cooperação de um criminoso para ajudar a
capturar outros, deve sopesar as circunstâncias do caso concreto para que o
uso desse instituto seja seguro e efetivo.
Nucci (2013, p. 48) aponta os pontos negativos sobre esse instituto:

São pontos negativos da colaboração premiada: a) ofi-


cializa-se, por lei, a traição, forma antiética de compor-
tamento social; b) pode ferir a proporcionalidade na apli-
cação da pena, pois o delator recebe pena menor que os
delatados, autores de condutas tão graves quanto a dele
– ou até mais brandas; c) a traição, como regra, serve para
agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual
não deveria ser útil para reduzir a pena; d) não se pode
trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios,
na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos;
e) a existente delação premiada não serviu até o momento
para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a
lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do de-
lito; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a
criminalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um
incremento a vinganças pessoais.

Ainda, há quem diga que esse meio de obtenção de prova enfraqueceria


o trabalho dos policiais durante as investigações, de modo que não mais se
empenhariam para elucidar os fatos, diante da facilidade de obter informações
por meio do delator. Sobre o tema, cumpre destacar que o instituto será aplicado
em poucos casos e também não faltarão outros fatos delituosos para que a polícia
desempenhe suas funções investigativas (CUNHA; PINTO, 2013, p. 36, 39).
Nucci (2014, p. 48-49) relata os pontos positivos da delação premiada:

a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou


em valores moralmente elevados, dada a própria natureza
da prática de condutas que rompem as normas vigentes,
ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há
lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta
é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de repro-
121
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

vação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem


receber penas mais severas. O delator, ao colaborar com o
Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode
receber sanção menos grave; c) o crime praticado por
traição é grave, justamente porque o objetivo almejado
é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a
traição com bons propósitos, agindo contra o delito e em
favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins po-
dem ser justificados pelos meios, quando estes forem le-
galizados e inseridos, portanto, no universo jurídico; e) a
ineficiência atual da delação premiada condiz com o ele-
vado índice de impunidade reinante no mundo do crime,
bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado
em dar efetiva proteção ao réu colaborador; f) o Estado já
está barganhando com o autor de infração penal, como se
pode constatar pela transação prevista na Lei 9.099/95. A
delação premiada é, apenas, outro nível de transação; g) o
benefício instituído por lei para que um criminoso delate
o esquema no qual está inserido, bem como os cúmpli-
ces, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero,
como forte tendência à regeneração interior, um dos fun-
damentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação,
embora possa existir, deve ser severamente punida; i) a
ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens
em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para
a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro
plano, a criminalidade organizada.

Rejeitar o uso do instituto da colaboração premiada seria deixar as


organizações criminosas um passo à frente dos seus órgãos combatentes. A
traição nunca é vista com bons olhos, porém, quando se trata de combater o
crime, ela pode ser utilizada como uma arma (NUCCI, 2013, p. 50).
Como forma de prova, também se permite (Lei n. 12.850/13, artigo
3º, II) “[...] a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou
acústicos.” (BRASIL, 2013). Essa possibilidade era prevista na Lei n. 9.034/95,
em seu artigo 2º, IV.5 Contudo, a lei revogada previa, concomitantemente, a
interceptação, no mesmo inciso, de modo que a nova lei de combate ao crime
organizado trata separadamente dos institutos (CUNHA; PINTO, 2013, p. 25).
5
A Lei n. 9.034/95 previa: “Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são
permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de
investigação e formação de provas: IV – a captação e a interceptação ambiental de
sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante
circunstanciada autorização judicial.” (BRASIL, 1995).
122
Diálogos sobre direito e justiça

Percebe-se, desse modo, que houve o desmembramento de tais procedimentos,


quando comparadas as duas leis.
Por captação ambiental, entende-se que é uma conversa feita
pessoalmente entre os indivíduos, de maneira que um deles captura o que se
passa entre ambos, por qualquer meio para tal, como uma filmagem, gravação
de voz, fotografias (NUCCI, 2013, p. 39).
Entretanto, o legislador omitiu-se em um momento oportuno para
especificar o procedimento sobre tal meio de obtenção de prova, ficando
mais uma lacuna na lei. Por sua vez, Greco Filho (2014, p. 35) assinala que
“A captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos não
depende de regulamentação especial. A sua legitimidade decorre do interesse
público da investigação.”
Registra-se que não é mais necessária a autorização do magistrado
para tal mister, como era previsto na Lei n. 9.034/95 (artigo 2º, IV). Por tal
decisão do legislador, Cunha e Pinto (2013, p. 25) explicam:

Aqui se trata apenas de “capturar”, traduzir a noção de


que pelo menos um dos envolvidos na cena sabe da cap-
tação. É um tanto diverso da “interceptação” onde se pre-
sume que os atores desconheçam que sua intimidade é
objeto de violação. Isso parece explicar a razão pela qual
a lei em exame não mais reclamou a prévia autorização
judicial para a captação.

Considerando o direito à intimidade, quando, por exemplo, a


captação ocorrer em um ambiente privado, como uma residência, ou havendo
pedido de uma das partes para manter segredo sobre determinado assunto, é
imprescindível a autorização judicial, para que seja utilizada posteriormente
como uma prova lícita (NUCCI, 2013, p. 39).
Importante destacar a distinção entre interceptação telefônica e
captação ambiental, uma vez que enquanto a primeira utiliza um meio público
de comunicação (telefone ou similar), a segunda será obtida pela emissão
de sinais não públicos. Assim, a título exemplificativo, a captação pode ser
a gravação de uma emissão clandestina de rádio, a localização de GPS, a
utilização de câmeras de vigilância, a teleoitiva por meios eletrônicos e a leitura
labial (GRECO FILHO, 2014, p. 35).

123
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

Voltando a destacar os meios de obtenção de prova da Lei n. 12.850/13,


há a ação controlada, a qual já era prevista pela Lei n. 9.034/95. Contudo, o
seu procedimento era muito vago, havendo dúvida até se era necessária a
supervisão judicial na realização de tal diligência (CUNHA; PINTO, 2013,
p. 88). Gomes (2012) ainda apontou que o procedimento trazido pela Lei n.
9.034/95 se denominava “[...] ação controlada descontrolada”, pois na letra
da lei não havia expressamente a necessidade da autorização do juiz, este era,
inclusive, o entendimento jurisprudencial6 na época.
A ação controlada surgiu como uma exceção ao disposto no artigo
301 do Código de Processo Penal, que determina que “[...] os policiais e seus
agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”
Dispõe o artigo 8º, da Lei n. 12.850/13, que a ação controlada implica retardação
da intervenção policial ou administrativa inerente à ação praticada por
organização criminosa ou vinculada a ela, desde que mantida em observação e
acompanhada para que a medida legal possa se concretizar no momento mais
propício à formação de provas e obtenção de informações.
Esse instituto possibilita o retardamento da intervenção policial,
impossível até a vigência da nova Lei, podendo os policiais que não efetuassem
a prisão em flagrante responder pelo crime de prevaricação (artigo 319 do
Código Penal).
O instituto da ação controlada pode ser utilizado pelos policiais como
um meio ardiloso para a obtenção de provas e de dados importantes. A ação
controlada, em si, não é um meio de prova, mas o seu resultado, se eficaz, terá
grandes chances de trazer as provas desejadas que motivaram o retardamento
da ação policial (GRECO FILHO, 2014, p. 54).
Outro meio de obtenção de prova é o acesso a registros de ligações,
dados cadastrais e informações eleitorais ou comerciais. O artigo 14 da Lei n.
12.850/13 menciona que o Delegado de Polícia e o Ministério Público terão
acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais
do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação
6
“ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. AÇÃO POLICIAL CONTROLADA. ARTIGO 2º,
INCISO II, DA LEI N. 9.034/95. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA
DE PREVISÃO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
ORDEM DENEGADA. 1. Da mesma forma, à míngua de previsão legal, não há
como se reputar nulo o procedimento investigatório levado a cabo na hipótese em
apreço, tendo em vista que o artigo 2º, inciso II, da Lei n. 9.034/95 não exige a prévia
autorização judicial para a realização da chamada “ação policial controlada”, a qual, in
casu, culminou na apreensão de cerca de 450 kg (quatrocentos e cinquenta quilos) de
124 cocaína.” (BRASIL, 2009).
Diálogos sobre direito e justiça

e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições


financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.
Sobre os dados cadastrais, tais devem ser entendidos como os que
qualificam a pessoa, como o seu número de CPF e RG, estado civil, profissão,
números de telefone, endereço residencial e comercial, nome dos pais, etc.
(CUNHA; PINTO, 2013, p. 120).
Assim, havendo a necessidade de o Delegado de Polícia ou o Ministério
Público ter acesso a outras informações, deverão requerer autorização judicial,
conforme preconiza Silva (2014, p. 107): “Note-se que o dispositivo apenas faz
referência ao acesso a dados cadastrais [...] e não a informações que podem
implicar indevida invasão à vida privada dos investigados, o que somente será
possível mediante autorização judicial.”
Esse acesso a registros cadastrais é constitucionalmente legal, de modo
que não viola os sigilos assegurados pela Constituição Federal (artigo 5º, X e
XII), pois não se referem ao conteúdo das operações de crédito ou telefônicas
(GRECO FILHO, 2014, p. 35-36).
As empresas de transporte possibilitarão, pelo prazo de cinco anos,
acesso do Juiz, do Ministério Público ou do Delegado de Polícia aos bancos
de dados de reservas e registro de viagens (artigo 16, da Lei n. 12.850/13). Tais
dados irão facilitar saber aonde alguém foi ou de onde veio e não demonstra
violação ao direito à intimidade (NUCCI, 2013, p. 41).
Por sua vez, os bancos de dados das empresas de telefonia fixa ou
móvel deverão manter pelo prazo de cinco anos a identificação dos números
dos terminais de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais,
interurbanas e locais (artigo 17, da Lei n. 12.850/13) (BRASIL, 2013).
A interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas surge
como outro meio de obtenção de prova. Segundo Moraes (2011, p. 64), a
interceptação telefônica é “[...] a captação e gravação de conversa telefônica,
no mesmo momento em que ela se realiza, por terceira pessoa sem o
conhecimento de qualquer dos interlocutores”, a qual não deve ser confundida
com uma gravação de conversa7 por um dos interlocutores, em um ambiente
aberto, por exemplo. Ainda, diferencia-se da escuta telefônica em que um dos
interlocutores tem ciência da interceptação (NUCCI, 2013, p. 43).
7
“1. A gravação de conversa por um dos interlocutores não é interceptação telefônica,
sendo lícita como prova no processo penal. 2. Pelo princípio da proporcionalidade, as
normas constitucionais se articulam num sistema, cuja harmonia impõe que, em certa
medida, tolere-se o detrimento a alguns direitos por ela conferidos, no caso, o direito
à intimidade.” (BRASIL, 2001). 125
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

Sendo esse um meio de prova estritamente ligado ao direito à


intimidade (previsto no artigo 5º, X, da Constituição Federal), o artigo 5º,
XII, da Carta Magna, admite a possibilidade de violar esse direito, desde que
estejam presentes três requisitos: ordem judicial; para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal; nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer (MORAES, 2011, p. 64).
O dispositivo legal que regulamenta a interceptação telefônica é a
Lei n. 9.296/96 e o seu artigo 1º dispõe que é imprescindível a autorização
do juiz competente da ação principal, de modo que o seu procedimento será
sob segredo de justiça. Ainda, deve ser considerado que a interceptação deve
ser feita, segundo aponta Moraes (2011, p. 65), para “[...] fins de investigação
criminal ou instrução processual penal, não sendo, portanto, autorizada a
decretação de interceptação telefônica em processos civis, administrativos,
disciplinares, extradicionais ou político-administrativos.”
As condições para o deferimento da interceptação telefônica estão
estabelecidas no artigo 2º, da Lei n. 9.296/96, quais sejam: haver indícios
razoáveis da autoria ou participação em infração penal; não haver outro meio de
se fazer prova; o fato investigado ser punido com pena que não seja de detenção.
Os “indícios razoáveis”, tratados no inciso I do artigo supracitado,
segundo dispõem Cunha e Pinto (2013, p. 29) “[...] devem ser entendidos
aqueles dados que forneçam uma probabilidade da existência de um crime e
sinalizem no sentido de seu autor.” Trata-se, assim, de identificar a presença
do fumus boni iuris. Havendo a possibilidade de serem utilizados outros
meios de provas e que estes sejam menos gravosos e suficientes para obter o
resultado pretendido, a violação do direito à intimidade será completamente
desnecessária, cabendo ao magistrado buscar a mais idônea para o propósito
da investigação (SILVA, 2014, p. 112). Ainda, para ser possível a interceptação
telefônica, é necessário que o crime apurado seja punido com pena de reclusão,
não cabendo tal meio de prova para os delitos que sejam punidos com pena
de detenção.
Diante do exposto, percebe-se que esse meio de prova deve ser a última
opção para a busca de determinada prova, como apontam Cunha e Pinto (2013,
p. 30), devendo ser demonstrada a “[...] imprescindibilidade da interceptação
telefônica, ou seja, que o fim colimado não possa ser obtido senão por aquele
meio de prova.”

126
Diálogos sobre direito e justiça

O afastamento do sigilo financeiro, bancário e fiscal também é um


meio de obtenção da prova disposto na Lei n. 12.850/13, mais precisamente
em seu artigo 3º, VI, o qual é regulado por legislação específica. Tal meio de
prova está estritamente ligado ao disposto no artigo 5º, X, da Constituição
Federal, que dispõe: “[...] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação.” Também está atrelado ao princípio da
inviolabilidade, que assegura a garantia aos sigilos financeiro, bancário e fiscal,
de modo que apenas por meio de decisão judicial estes poderão ser violados
(CUNHA; PINTO, 2013, p. 30).
Quando a Lei n. 12.850/13, em seu artigo 3º, VI, faz menção “nos
termos da legislação específica”, refere-se, por enquanto, à Lei Complementar
n. 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições
financeiras. Além da especial atenção pela Lei Complementar n. 105/2001,
a nossa Constituição Federal tutela os sigilos bancário e fiscal por meio dos
bens jurídicos da intimidade e vida privada, de modo que sua quebra somente
poderá ser realizada por meio de autorização judicial (NUCCI, 2013, p. 44).
Importante destacar que, sob a ótica dos direitos individuais, o
legislador sempre se empenhou em resguardar os direitos fundamentais dos
cidadãos, de maneira que desde a época em que vigorava o artigo 38, da Lei n.
4.595/64, era prevista a quebra do sigilo de informações mediante autorização
judicial e em caráter sigiloso. O mesmo dispositivo foi revogado pelo artigo 13
da Lei Complementar n. 105/2001, contudo, continuaram algumas omissões,
como, por exemplo, a legitimidade para o requerimento, requisitos e o seu
procedimento (SILVA, 2014, p. 119).
A infiltração de agentes, há tempos, consta como um meio de
obtenção da prova, havendo previsão na Legislação brasileira primeiramente
pela revogada Lei n. 9.034/95 (artigo 2º, V), a qual foi inserida pela Lei n.
10.217, de 11 de abril de 2001. Também encontra respaldo na Lei de Drogas,
n. 11.343/06, em seu artigo 53, I, e na Convenção das Nações Unidas contra
o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo, em seu artigo
20.1), a qual o Brasil aderiu por meio do Decreto n. 5.015/2004 (CUNHA;
PINTO, 2013, p. 95-96).
Contudo, ainda não havia qualquer regulamentação sobre a matéria e,
conforme Greco Filho (2014, p. 58), “[...] gerava enormes dúvidas a respeito de

127
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

sua amplitude e seus efeitos, especialmente quanto à qualificação da conduta


do agente infiltrado.”
Verifica-se que a recente legislação de combate ao crime organizado,
ao tratar da infiltração, estipulou que tal medida pode ser efetuada apenas
pelos “agentes de polícia”, excetuando os “agentes de inteligência”, como era
previsto até então na Lei n. 9.034/95. Os agentes de polícia são os membros das
corporações tratados pelo artigo 144 da Constituição Federal (Polícia Federal,
Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias
Militares e Corpos de Bombeiros Militares). Contudo, não são todos os órgãos
citados que possuem atribuições de investigação, sendo somente os Policiais
Federais e Civis os habilitados à eventual infiltração (CUNHA; PINTO, 2013,
p. 97).
Outro meio de prova é a “[...] cooperação entre instituições e órgãos
federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de
interesse da investigação ou da instrução criminal” (Lei n. 12.850/13, artigo
3º, VIII) (BRASIL, 2013). Tal disposição parece óbvia, de que o Estado utiliza
forças de todos os seus órgãos para a obtenção de informações preciosas na
busca de provas. Todavia, ao falar das Polícias Civil e Militar, Nucci (2013,
p. 33) relata que “[...] na prática, no mais das vezes, tais órgãos ‘não se falam’,
isto é, não compartilham suas informações de modo a permitir um adequado
enfrentamento à criminalidade.”
Tal dispositivo não é um meio de obtenção de provas. Na opinião
de Nucci (2013, p. 44-45) “[...] essa cooperação decorre do funcionamento
da máquina estatal, implicando em uma ação positiva de colaboração e não
apenas um mecanismo de demonstração da verdade de fato.”
Portanto, a criação de um banco de dados de amplitude nacional seria
conveniente e importante para gerar efetividade ao que consta na lei, o que, por
sua vez, facilitaria o intercâmbio de informações para a melhor compreensão e
o desenvolvimento do crime organizado (SILVA, 2014, p. 123).

5 A RELEVÂNCIA DA LEI N. 12.850/13 NO ORDENAMENTO


JURÍDICO PÁTRIO

A Lei n. 12.850/13 ainda é muito prematura para verificar a sua eficácia


no combate ao crime organizado, vigorando há pouco mais de um ano. Porém,
não se discute que trouxe mudanças significativas, como a alteração do conceito
128
Diálogos sobre direito e justiça

de organização criminosa e da redação dos artigos 288 e 342 do Código Penal,


a revogação da Lei n. 9.034/95, a regulação dos meios de prova já conhecidos
no ordenamento jurídico interno, etc.
Nucci (2013, p. 108) aponta que “A Lei 12.850/13, modificando os
artigos 288 e 342 do Código Penal, teve somente um benefício: reduzir o
aumento da pena para a quadrilha armada.” Antes da Lei n. 12.850/13, o artigo
288 do Código Penal dispunha que eram necessárias mais de três pessoas,
e que, havendo o uso de armas, a pena seria aplicada em dobro. Depois da
Lei n. 12.850/13, a associação deve possuir três, inclusive, ou mais pessoas,
e havendo uso de armas, criança ou adolescente, haverá aumento de até a
metade da pena. Assim, mais benéfica, devendo retroagir para alcançar fatos
passados (CUNHA; PINTO, 2013, p. 146). Nesta senda, é o entendimento do
Desembargador Cássio Salomé, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na
Apelação Criminal n. 1.0452.10.002716-1/002:

[...] Tendo sido apreendida apenas uma arma, de calibre


mediano, não pode a majoração em razão da causa de au-
mento prevista no art. 288, parágrafo único, do CP, com
redação dada pela Lei 12.850/13, ser fixada em seu quan-
tum máximo, devendo analisar cada caso concreto. 
[...] A Lei n. 12.850/2013, que alterou a redação do art.
288, parágrafo único, do Código Penal, cominando-lhe
pena mais branda, deve retroagir para incidir sob os fa-
tos cometidos antes de sua vigência. (MINAS GERAIS,
2014).

Na esfera processual, a Lei n. 12.850/13 também trouxe mudanças,


conforme dispõe o artigo 22, caput: “Os crimes previstos nesta Lei e as infrações
penais conexas serão apurados mediante procedimento ordinário previsto
no Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).”
(BRASIL, 2013). Assim, deverá ser respeitado o procedimento ordinário,
previsto nos artigos 394/405 do Código de Processo Penal, quando houver
crimes conexos ou quando houver disposição contrária em outra lei especial,
devendo ser respeitada a competência do Tribunal do Júri, pois prevista na
Constituição Federal (SILVA, 2014, p. 129). Ainda no terreno processual, a
instrução criminal não poderá exceder o prazo de 120 dias quando o réu estiver
preso, podendo ser prorrogado por igual período, por decisão fundamentada
129
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

e motivada, havendo complexidade da causa (artigo 22, parágrafo único, da


Lei n. 12.850/13). As organizações criminosas são complexas, com amplitude
regional ou internacional, o que, muitas vezes, implicará a oitiva de várias
testemunhas e a apuração das inúmeras condutas delituosas (SILVA, 2014, p.
129-130). Dessa forma, à luz do princípio da razoabilidade, o Ministro Teori
Zavascki do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Ordinário em Habeas
Corpus n. 122.462, decidiu:

[...] 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-


ral é firme no sentido de que a demora para conclusão
da instrução criminal, como circunstância apta a ense-
jar constrangimento ilegal, somente se dá em hipóteses
excepcionais, nas quais a mora seja decorrência de (a)
evidente desídia do órgão judicial; (b) exclusiva atuação
da parte acusadora; ou (c) situação incompatível com o
princípio da razoável duração do processo, previsto no
art. 5º, LXXVIII, da CF/88, o que não ocorre no caso dos
autos. 2. Os fundamentos utilizados revelam-se idôneos
para manter a segregação cautelar da recorrente, na linha
de precedentes desta Corte. É que a decisão aponta de
maneira concreta a necessidade de garantir a ordem pú-
blica, tendo em vista a periculosidade da agente, acusada
de integrar organização criminosa voltada à prática dos
crimes de tráfico de drogas, corrupção policial e forma-
ção de quadrilha armada, com ramificações para outras
Comarcas do Estado de São Paulo e também nos Estados
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. 3. Recurso impro-
vido. (BRASIL, 2014b).

O legislador preocupou-se de forma exponencial quanto ao sigilo das


investigações, objetivando a eficácia das medidas adotadas para elucidar fatos
relacionados ao crime organizado. Assim, poderá ser decretado pelo magistrado
o sigilo da investigação, conforme dispõe o artigo 23, da Lei n. 12.850/13.
Sendo decretado o sigilo, deve o advogado peticionar ao juiz requerendo
acesso aos autos. É importante que seja delimitado pelo magistrado o alcance
do advogado ao consultar o inquérito policial para que não prejudique as
investigações (CUNHA; PINTO, 2013, p. 142-143).
Em outro norte, considerando-se a nova Lei n. 12.850/13, exigir tantos
requisitos para a caracterização de uma organização criminosa, haverá vários
130
Diálogos sobre direito e justiça

delinquentes que não serão compreendidos pela novel Lei, por restar ausente
um único requisito, como é o caso da seguinte decisão:

[...] Não há elementos nos autos que indiquem a existên-


cia tecnicamente (Lei  12.850/13) de organização crimi-
nosa, como considerou o magistrado, embora as circuns-
tâncias do delito – utilização de veículo batedor, rádios
transmissores, quantidade do entorpecente, receptor em
outro Estado – sugiram, sim, a presença de associação
criminosa nos moldes do art. 35 da Lei 11.343/06. 6. Con-
tudo, não restando suficientemente comprovado que os
réus a integravam ou a estabilidade do vínculo associativo
entre si, o que redundou, inclusive, na absolvição quanto
a este crime, deve incidir a minorante prevista no § 4º do
art. 33 da Lei 11.343/06. (PARANÁ, 2014).

Percebe-se que dos meios de provas tratados na Lei n. 12.850/13, o que


mais pode trazer resultados positivos é a infiltração policial, principalmente
nas organizações criminosas que estão ligadas ao tráfico de entorpecentes.
Nesse sentido, é a decisão proferida pelo Desembargador Julio Cesar Finger,
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao apreciar o Habeas Corpus n.
70059115725:

Inexiste ilegalidade na infiltração policial e na prova dela


obtida. O tráfico de drogas estava consumado desde a re-
alização dos verbos nucleares “trazer consigo” e “ter em
depósito” [...] Na espécie, inexiste patente violação da lei
pois o crime de tráfico de drogas estava consumado des-
de a realização dos verbos nucleares “ter em depósito” ,
“guardar” ou “transportar” entorpecentes, condutas que
não foram estimuladas pelos policiais, sendo despicien-
da eventual indução da mercancia pelos agentes. (RIO
GRANDE DO SUL, 2014a).

Outro meio de prova utilizado para o desmantelamento de organizações


criminosas é o instituto da colaboração (ou delação) premiada, recentemente
utilizado por Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, diante dos casos de
corrupção envolvendo a Petrobras, em que estes assinaram acordo de delação
131
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

premiada e se comprometeram a delatar os envolvidos e como era realizado o


esquema de propina, objetivando obter redução da pena (BOMFIM, 2014). Os
termos do acordo estão sigilosamente resguardados, conforme impõe o artigo
7º, caput, da Lei n. 12.850/13 e, sendo efetiva a colaboração, poderão ter a sua
pena reduzida.
Ao tratar do tema, a Lei n. 12.850/13 é imponente ao trazer no seu texto
legal que a colaboração deve ser efetiva (artigo 4º, caput), literalmente. Esse é
o entendimento jurisprudencial atual: “[...] Não há como ser reconhecida a
colaboração premiada, uma vez que o réu não revelou informações eficazes
para a apreensão de drogas e identificação de coautores do crime [...]” (RIO
GRANDE DO SUL, 2014b).
A nova lei é uma tentativa para o combate às complexas organizações
criminosas, que demandam meios sistemáticos e eficazes para o seu
desmantelamento. Foi visto que o legislador parou no tempo e que não
soube editar novos remédios para combater, ou ao menos reprimir, o crime
organizado. A Lei n. 12.850/13 trouxe o que estava faltando na legislação
interna, apontando métodos rigorosos, porém mais seguros para o Delegado,
Promotor de Justiça e Magistrado.

6 CONCLUSÃO

Neste artigo analisou-se, brevemente, o surgimento das primeiras


organizações criminosas no Brasil, as quais surgiram no Nordeste brasileiro,
por meio das atividades dos jagunços e capangas dos grandes fazendeiros. A
primeira infração penal organizada no Brasil foi a prática do jogo do bicho, na
qual os grupos organizados obtinham ajuda de policiais e políticos.
Estabelecer um conceito de organização criminosa pelo legislador
brasileiro não foi uma tarefa fácil. A primeira experiência legislativa foi com
o advento da Lei n. 9.034/95, que possuía como finalidade prevenir e punir
as ações praticadas por organizações criminosas. Entretanto, não havia
sequer uma definição na lei do que era organização criminosa, tornando-se
necessária a aplicação da Convenção de Palermo aos casos relacionados a crime
organizado. A Lei n. 12.850/13 acabou com essa celeuma e trouxe consigo um
conceito claro de organização criminosa, além de regular meios de obtenção
da prova, que até então eram pouco disciplinados e a sua aplicação acabava se
132
Diálogos sobre direito e justiça

tornando ineficaz ou inofensiva frente ao poderio e à complexidade do crime


organizado.
Verifica-se que a Lei n. 12.850/13 solidificou aspectos que necessitavam
de uma melhor regulamentação pelo legislador e, observando-se os julgados
colhidos dos tribunais inferiores e superiores, tem-se que os meios para a sua
repressão, agora melhores regulamentados, estão mostrando-se eficazes no
combate ao crime organizado.

REFERÊNCIAS

BOMFIM, C. Zavascki aprova acordo de delação, e Costa vai cumprir pri-


são em casa. G1 Política. Brasília, DF, 30 set. 2014. Disponível em: <http://
g1.globo.com/politica/noticia/2014/09/zavascki-aprova-acordo-de-delacao-e-
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meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 03 maio 1995.

BRASIL. Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte


final, do art. 5° da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
25 jul. 1996.

BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional


de Políticas Públicas sobre Drogas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24
ago. 2006.

133
Rafaella Zanatta Caon Kravetz, Luis Azambuja Tessari

BRASIL. Lei n. 12.694, de 24 de julho de 2012. Dispõe sobre o processo e o


julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados
por organizações criminosas; altera o Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de de-
zembro de 1940; Código Penal, o Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de
1941; Código de Processo Penal, e a Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997;
Código de Trânsito Brasileiro, e a Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 2012.

BRASIL. Lei n. 12.850, de 02 de agosto de 2013. Define organização crimi-


nosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova,
infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei
n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei n. 9.034,
de 03 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União,
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135
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
E PUBLICIDADE: UMA ANÁLISE DO
NEUROMARKETING EM FACE DO
PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE DO
CONSUMIDOR
Eduarda Bortoli*
Magda Cristiane Detsch da Silva**

Resumo: O presente trabalho propôs analisar o neuromarketing, uma junção de ma-


rketing e neurociência, sob a ótica do princípio da vulnerabilidade do consumidor.
O neuromarketing tem por fim entender a mente do consumidor, o motivo de suas
escolhas, mesmo as subconscientes, para decifrar a lógica do consumo. No entanto,
esta nova técnica tem gerado discussões entre os profissionais da área, uma vez que o
neuromarketing propiciaria que os fornecedores tivessem conhecimento dos medos e
dos desejos mais íntimos do consumidor, o que poderia ser usado para influenciar na
escolha de um produto. Assim, por meio da análise do neuromarketing, em face das
normas contidas no Código de Defesa do Consumidor, de forma mais específica sob
a ótica do princípio da vulnerabilidade do consumidor, podemos tirar as primeiras
conclusões sobre a influência que o neuromarketing pode ter na mente do consumi-
dor, e se esta pode ser classificada como publicidade abusiva ou enganosa, ou não. A
metodologia empregada para a realização da pesquisa consiste em uma abordagem
dedutiva, trazendo o entendimento de doutrinadores pátrios e entendimentos juris-
prudenciais, visando aprofundar a discussão sobre o tema. Ainda, a pesquisa é qualita-
tiva, atribuindo importância primordial à interpretação para melhor entendimento do
tema. Diante da presente pesquisa, pode-se perceber que o neuromarketing ainda está
passando por estudos, e não há parâmetros confirmados do quanto pode influenciar
a mente do consumidor e se que realmente funciona. Todavia, o consumidor é a parte
vulnerável da relação de consumo, e o fato de o neuromarketing ter conhecimento do

_____________________________
* Graduanda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; duda_bortoli@
hotmail.com
** Professora do Curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina de
Joaçaba; magda.dasilva@unoesc.edu.br
137
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

que se passa pela sua cabeça, pode tornar a relação mais desequilibrada, aumentando
o grau de vulnerabilidade do consumidor diante das relações de consumo.
Palavras-chave: Neuromarketing. Consumidor. Vulnerabilidade. Publicidade. Rela-
ção de consumo.

Code of consumer and advertising: an analysis of neuromarketing in the


face of the principle of consumer vulnerability

Abstract: This study aimed to analyze the neuromarketing, a joint of marketing and neu-
roscience, from the perspective of the principle of consumer vulnerability. Neuromarke-
ting is to understand the mind of the consumer, the reason for their choices, even the sub-
conscious choices, to decipher the logic of consumption. However, this new technique has
generated discussion among professionals, since neuromarketing would empower that
providers were aware of the fears and the innermost desires of the consumer, which could
be used to influence the choice of a product. Thus, through the analysis of neuromarke-
ting in face of the rules contained in the Code of Consumer Protection, more specifically
from the viewpoint of the principle of consumer vulnerability, we draw first conclusions
about the influence that neuromarketing may have in the consumer’s mind and whether
it can be classified as abusive or misleading advertising, or not. The methodology used
for the research consists of a deductive approach, bringing the understanding of patriotic
scholars and jurisprudential understandings to deepen the discussion on the topic. Still,
the research is qualitative, giving prime importance to the interpretation to clarify the
subject. Given this research, it can be noticed that neuromarketing is still undergoing stu-
dies and there are no confirmed parameters of how much it can influence the consumer’s
mind and that really works parameters. However, the consumer is the vulnerable part of
the consumer relationship, and the fact of neuromarketing has knowledge of what goes
through your head, you can make the most unbalanced relationship, increasing the de-
gree of vulnerability of the consumer before the consumer relations.
Keywords: Neuromarketing. Consumers. Vulnerable. Advertising. Consumer.

1 INTRODUÇÃO

O objeto deste artigo é a análise do neuromarketing, uma nova


ferramenta do marketing, sob a ótica do princípio da vulnerabilidade do
consumidor. O Código de Defesa do Consumidor é um instrumento de
proteção às relações de consumo, protegendo o consumidor de toda forma de
abuso, visto que indica parâmetros de como essas relações devem proceder.
138
Diálogos sobre direito e justiça

O neuromarketing surge como uma ferramenta capaz de entender a


lógica do consumo, por meio da união do marketing e da neurociência seria
possível identificar o que leva o consumidor a adquirir determinado produto,
analisando seu subconsciente para tanto. Dessa feita, surge outra problemática,
com o neuromarketing, as empresas terão acesso aos desejos, medos e emoções
mais íntimos do consumidor, adentrando em seus pensamentos internos, e
utilizando-os para que adquira um produto ou serviço, em vez de outro.
Com essa problemática, o presente trabalho buscou discutir a possibilidade
de o neuromarketing interferir na escolha do consumidor por meio do seu
subconsciente, afetando sua vulnerabilidade. Ainda, visa avaliar se essa nova
ferramenta pode ser considerada ou não publicidade abusiva ou enganosa.

2 MARKETING, PUBLICIDADE E PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

O marketing é uma ferramenta utilizada para despertar atenção dos


consumidores, bem como para satisfazer os que já são clientes, visto que este
abrange quatro pilares fundamentais: o produto, o preço, a praça e a promoção,
conforme define Chaise (2001, p. 12): “Deve-se ter claro que o marketing é um
conjunto de atividades que se processam desde a concepção de um produto
vendável, sua produção, promoção, até sua distribuição ao consumidor.”
Portanto, fica clara a amplitude do marketing; este envolve da concepção do
produto até a entrega ao consumidor final. O que nos interessa no marketing,
é a promoção do produto, uma vez que é nesse âmbito que surge a publicidade,
assunto de nosso interesse.
A publicidade é um instrumento do marketing, que tem o objetivo de
tornar o produto conhecido e promover sua aquisição. Assim, é importante
analisarmos de forma detalhada para posteriormente trabalharmos de
forma efetiva com a publicidade, uma vez que esta está adstrita ao marketing
(CHAISE, 2001, p. 12). E para entendermos a publicidade é necessário que
entendamos o que é o marketing.

2.1 DEFINIÇÃO DE MARKETING

Nos dias atuais, com o capitalismo em alta, a concorrência entre as


empresas é muito grande, sendo necessário usar técnicas para despertar atenção
de novos consumidores e garantir a lealdade dos que já são clientes. É com
este objetivo que surge o marketing, conforme define Kotler (2007, p. 2): “Os
139
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

dois principais objetivos do marketing são: atrair novos clientes, prometendo-


lhes valor superior, e manter e cultivar os clientes atuais, propiciando-lhes
satisfação.” O marketing, vai além das peças publicitárias, das propagandas
empregadas, vai além de apenas vender um produto, é mais abrangente que
apenas isso, é utilizado como meio de satisfazer às necessidades dos clientes
em todos os âmbitos (KOTLER, 2007, p. 4). Portanto, uma definição de
marketing, muito empregada é a trazida por Kotler (2000, p. 30, grifo do
autor): “Marketing é um processo social por meio do qual pessoas e grupos de
pessoas obtêm aquilo de que necessitam e o que desejam com a criação, oferta
e livre negociação de produtos e serviços de valor com outros.”
Assim, o marketing tem o objetivo de satisfazer o interesse dos
clientes de forma abrangente, pois envolve o produto oferecido, o preço para
a aquisição, os programas de promoção com o fim de persuadir os clientes e,
por fim, apresenta um ponto de distribuição, ou seja, um local onde o produto
será disponibilizado.

2.2 OS QUATRO “P’S” DO MARKETING

O marketing tem quatro pilares fundamentais, que são conhecidos


pelos estudiosos como os “Quatro P’s”, sendo eles produto, preço, praça,
promoção. Nesse sentido, conceitua Gomes (2003, p. 52, grifo do autor):

Das concepções teóricas e conceituais sobre o marketing,


surgidas como produto de reflexão acadêmica, portanto,
fora do mundo empresarial, a que mais se popularizou
ficou conhecida como os QUATRO P’s ou Fatores Con-
troláveis do Marketing, que foram concebidos por Jerome
McCarthy, no início dos anos 50, e popularizou-se por
Philip Kotler, entre os anos de 60 e 70. Os quatro P’s cons-
tituem-se de: Produto, Preço, Praça e Promoção.

Esses, portanto, são os fundamentos básicos do marketing e, como


mencionado, avaliaremos de forma mais específica cada um deles, para
entendermos o que é o marketing e qual é a relação deste com o mundo
jurídico.
Produto, de forma sucinta, é o objeto das relações comerciais e um
dos alicerces básicos do marketing. Kotler (2007, p. 200, grifo do autor) traz
a seguinte definição: “Definimos produto como algo que pode ser oferecido a
140
Diálogos sobre direito e justiça

um mercado para apreciação, aquisição, uso ou consumo e que pode satisfazer


um desejo ou uma necessidade.” Ainda, ressalta o autor, que o produto não
diz respeito apenas a bens tangíveis, mas envolve também serviços, eventos,
objetos físicos, pessoas, lugares, ideias e organizações.
Reforçado a ideia da amplitude da definição de produto, podemos
ainda citar o § 1º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, no qual
consta: “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.”
Preço, por sua vez, é o valor de custo de um produto, é a quantia em
dinheiro que se paga por determinado produto. Kotler (2007, p. 258, grifo do
autor) traz um conceito de preço: “No sentido mais estrito, preço é a quantia
em dinheiro que se cobra por um produto ou serviço.”
No que diz respeito à praça, também chamada de ponto de distribuição
ou canal de distribuição por alguns autores, é onde os consumidores terão acesso
ao uso ou consumo do produto, é onde o produto fica acessível aos clientes.
Assim conceitua Kotler (2007, p. 305): “[...] um conjunto de organizações
interdependentes que ajudam a tornar um produto ou serviço disponível para
o consumo ou uso por um consumidor final ou usuário organizacional.”
A promoção, conhecida também como mix de promoção, é um
conjunto de atividades com o fim de promover a imagem da empresa; um meio
de comunicação entre o cliente e a empresa. Conforme aduz Kotler (2007, p.
357, grifo do autor):

O mix de promoção total de uma empresa consiste na


combinação específica de propaganda, promoção de ven-
das, relações públicas, venda pessoal e marketing direto
que a empresa utiliza para comunicar de maneira persu-
asiva o valor para o cliente e construir relacionamentos
com ele.

Assim, é possível vislumbrar a amplitude desse fundamento, sendo


um dos fatores determinantes para o sucesso da empresa; a persuasão é algo
fundamental para a promoção, convencer o cliente a adquirir o produto ou
serviço é o objetivo dessa fase.
A promoção, conforme visto anteriormente, envolve atividades como
propaganda, relações públicas, promoção de vendas, venda pessoal, marketing
direto e publicidades, há ainda outras atividades, mas iremos nos deter apenas

141
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

a essas mencionadas, tidas como as principais. Vamos analisar especificamente


a publicidade.
O nosso Código de Defesa do Consumidor traz em seus artigos1
a questão da publicidade, que é uma das formas de promoção contidas no
marketing, regulamentando a forma de como ela será exposta, para que não
seja veiculada de forma ilícita e nem que o consumidor seja exposto aos abusos
da publicidade, constando como um direito básico do consumidor.

2.3 PUBLICIDADE E PROPAGANDA

A publicidade é um dos instrumentos do marketing, estando inserida


nos programas de promoção. Nesse sentido, define Chaise (2001, p. 12) que
“[...] a publicidade é um instrumento do Marketing que visa tornar o produto
conhecido e provocar a sua compra. O marketing, entretanto, não está adstrito
à publicidade.” Portanto, o marketing é mais amplo, enquanto a publicidade é
mais restrita, com uma finalidade específica, visto que pode ser conceituada
como um meio de comunicação de caráter informativo, tendo como finalidade
promover a aquisição de um bem ou serviço. Nesse sentido, conceitua Lenza
(2013, p. 431): “A publicidade pode ser conceituada como a informação
veiculada ao público consumidor com o objetivo de promover comercialmente,
e ainda que indiretamente, produto ou serviço disponibilizado ao mercado de
consumo.”
Portanto, podemos concluir que publicidade é um meio de comunicação
que tem por fim transmitir uma mensagem ao público, com o fim de promover
o consumo do que está sendo divulgado, visto que possui como características
ser em curto prazo, grátis e impessoal.
Há muita divergência na doutrina quanto à consideração da
publicidade e da propaganda como institutos distintos, ou sinônimos, alguns
doutrinadores defendem que os dois institutos não se confundem, enquanto
outros alegam que são sinônimos (LENZA, 2013, p. 432). Além disso, nem
mesmo o legislador fez diferença entre os dois institutos, o que gerou mais
conflitos, conforme demonstra Maltez (2011, p. 114):

Os profissionais da área publicitária e os doutrinadores


do meio jurídico ora empregam os termos “publicidade”
e “propaganda” como sinônimos, ora estabelecem a dife-
rença de seus significados. O legislador do mesmo modo,
1
Artigos 36, 37 e 38 do Código de Defesa do Consumidor.
142
Diálogos sobre direito e justiça

não se encarregou de empregar linguagem uniforme


quanto aos termos “publicidade” e “propaganda”.

Percebemos, assim, que na atualidade, as palavras publicidade e


propaganda são praticamente sinônimas, não havendo distinção entre ambas.
Na geração passada, os profissionais da área defendiam que publicidade e
propaganda eram institutos distintos, no entanto, atualmente tem prevalecido
o entendimento de que são sinônimos (PEDREBON et al., 2004, p. 19).
No fundo, esse problema pode ser visto como uma questão de
nomenclatura, não interferindo na prática do dia a dia uma vez que esses
termos em diversas situações se confundem, como, por exemplo, em uma
agência de propaganda, onde quem trabalha são os publicitários, ou ainda,
podemos chamar de agência de publicidade, sem alteração do significado
(PEDREBON et al., 2004, p. 19).
Apesar de parecer algo moderno e recente, a publicidade tem um
histórico que remonta ao antigo Egito, passando pela Idade Média até chegar
aos dias atuais, conforme descreve Gomes (apud MALTEZ, 2011, p. 91): “[...]
o anúncio mais antigo que se tem notícia é originário de Tebas, no Egito, há
3000 anos, e apresentava a busca de um escravo perdido ou fugido, já que os
escravos eram tratados como mercadoria.”
Assim, percebe-se que há 3000 anos a publicidade já fazia parte da vida
do homem. Com o surgimento do comércio e das mercadorias, as técnicas
publicitárias apenas se aperfeiçoaram, mas ela sempre desempenhou um
grande papel na história da humanidade, a forma publicitária mais antiga,
ainda foi a oral, conforme esclarece Gomes (apud MALTEZ, 2011, p. 91):

O meio publicitário mais antigo foi o oral, uma vez que o


povo não tinha acesso à leitura. Os pregoeiros liam textos
que os letreiros escreviam. Tinham voz agradável e facili-
dade de expressão e muitas vezes se faziam acompanhar
por músicos.

Assim surgiram os primórdios da publicidade que conhecemos


atualmente. No entanto, naquela época, a publicidade limitava-se ao
fornecimento dos dados básicos sobre o produto. As relações entre vendedores,
produtos e consumidores eram diretas (MALTEZ, 2011, p. 92).
143
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

A grande evolução ainda ocorre em meados de 1770, quando os jornais


começam a aceitar anúncios pagos, e as despesas de produção dos jornais
passam a ser custeadas pela publicidade. Mas o grande impulso da publicidade
veio apenas com o início da industrialização (MALTEZ, 2011, p. 92).
Desse modo, com o processo da industrialização e, posteriormente,
com a revolução industrial e com o surgimento da imprensa, a publicidade
toma forma e dá os primeiros passos para ocupar o espaço na sociedade da
forma de hoje, ampliando o consumo, multiplicando as possibilidades de
comunicação, transformando-se em um regulador do mercado, fazendo parte
da vida econômica, social e cultural das sociedades industrializadas (MALTEZ,
2011, p. 93).
No Brasil não foi muito diferente, com o advento da industrialização e
a disseminação da imprensa, a publicidade não poderia passar despercebida.
A publicidade no Brasil existe há cerca de 400 anos e sua história pode ser
dividida em cinco ciclos, os quais demonstram os picos que a publicidade teve
no decorrer do tempo, além dos principais acontecimentos em cada época.
Nesse sentido, constata Maltez (2011, p. 93):

Quanto à história da publicidade e propaganda no Brasil,


pode-se apontar a existência de cinco ciclos. O primei-
ro, foi da tradição oral; o segundo, no século XIX, com o
surgimento da imprensa no Brasil, vão aparecer as men-
sagens escritas e difundidas pelos jornais impressos; o
terceiro surge com a chegada das emissoras de rádio no
Brasil, a partir de 07.09.1922; o quarto surge com a cria-
ção da TV Tupi, em 18.09.1950; e o quinto surge com a
era dos anúncios virtuais.

Fica demonstrado, dessa forma, o auge da publicidade em cada época;


com o surgimento de novos meios de comunicação, pode-se dizer que a
publicidade evoluiu junto com o homem.
A publicidade, como demonstrado anteriormente, tem a finalidade
de promover a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço e,
conforme o objetivo a ser alcançado, pode ser classificada em institucional
ou promocional (CHAISE, 2001, p. 13). É muito importante diferenciarmos
a classificação da publicidade institucional da promocional, uma vez que está
diretamente ligada ao objetivo da publicidade.
144
Diálogos sobre direito e justiça

Assim, a publicidade institucional, também chamada de corporativa


por alguns autores, é aquela com o fim de institucionalizar a marca, conforme
descreve Chaise (2001, p. 13): “Publicidade institucional é aquela que se destina
a institucionalizar a marca. Aqui não existe a preocupação com a venda do
produto em si; o que se anuncia é a própria empresa, e não um produto.”
Por outro lado, a publicidade promocional tem por fim promover
a aquisição do produto ou serviço (CHAISE, 2001, p. 14). A publicidade
promocional, como o nome diz, tem por fim a promoção e age de forma
imediata, com resultados rápidos e visíveis.

2.4 AS TÉCNICAS PUBLICITÁRIAS

Existem diversas técnicas utilizadas no âmbito da publicidade.


Analisaremos de forma mais aprofundada as principais técnicas empregadas na
atualidade, são elas: o teaser, o puffing, o mechandising e por fim a publicidade
subliminar.
O teaser é uma técnica publicitária que visa despertar a curiosidade
no consumidor, a criar um certo suspense, preparando-o para a campanha
publicitária; Chaise (2001, p. 15) descreve: “Procura-se com essa técnica
‘anunciar o anúncio’, dar-lhe maior impacto, ou seja, assegurar um índice de
audiência para a campanha.”
Essa técnica é uma prática de marketing promocional, e a função dela
é incitar a curiosidade do consumidor, não há divulgação de um produto ou
uma empresa, mas uma preparação para o anúncio (MALTEZ, 2011, p. 153).
É importante ressaltar que o teaser é uma técnica admitida pelo Código
de Defesa do Consumidor, conforme ressalta Maltez (2011, p. 154): “O teaser
não está expressamente proibido pelo Código de Defesa do Consumidor,
podendo ser utilizado desde que não seja enganoso ou abusivo”, sendo,
portanto, uma forma de publicidade lícita, muito utilizada atualmente.
O puffing é uma técnica que enfatiza o exagero publicitário, sendo
caracterizado, ainda, pela utilização de expressões vagas e de caráter subjetivo
e de uma comprovação de fato difícil (MALTEZ, 2011, p. 155). O limite entre
o puffing ser permitido e proibido pelo Código de Defesa de Consumidor é
muito tênue, pois o exagero pode levar o consumidor a erro e isso incorrerá em
publicidade enganosa, conforme Chaise (2001, p. 16) argumenta: “O exagero

145
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

que induzir o consumidor a erro incorrerá em publicidade enganosa, conforme


art. 37 § 1º, do CDC, mas tal técnica não é proibida por este mesmo Código.”
O merchandising é uma técnica que consiste na apresentação do
produto ou serviço em sua situação normal de consumo, sem declarar de
forma ostensiva a marca, uma vez que dessa maneira é mais eficiente do que
os anúncios propriamente ditos (CHAISE, 2001, p. 16). É importante ressaltar
que essa técnica não está proibida no Código de Defesa do Consumidor,
podendo ser empregada desde que o consumidor seja informado da veiculação
da mensagem publicitária, uma vez que é exigência do referido Código que a
publicidade seja identificada como tal (CHAISE, 2001, p. 16).
A publicidade subliminar é uma técnica que tem por fim atingir o
subconsciente do consumidor, fazendo com que ele adquira um produto
ou determinado serviço de forma subconsciente (MALTEZ, 2011, p. 195).
Assim age a publicidade subliminar, utilizando a emoção, trabalhando com o
psicológico do ser humano, para que utilize um serviço em vez de outro.
No entanto, é questionada a eficácia da publicidade subliminar, se é
possível que ela realmente possa influir nas escolhas das pessoas de forma
subconsciente, nesse sentido aduz Maltez (2011, p. 198): “A eficácia das
mensagens subliminares ainda não está devidamente esclarecida em todos
os detalhes”, e acrescenta ainda, “De qualquer forma, pode-se associar o
funcionamento da publicidade subliminar com o inconsciente.”

2.5 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO


DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor foi criado para regulamentar as


relações de consumo entre o fornecedor de produtos e serviços e o consumidor.
É um instrumento de proteção e defesa do consumidor, conforme dispõe em
seu artigo 1º:

Art. 1º O presente código estabelece normas de proteção e


defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social,
nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Cons-
tituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.

Assim, como uma forma de garantia de proteção e defesa do


consumidor, o referido Código estabelece normas e diretrizes nas relações de
146 consumo, bem como na oferta, na publicidade e nos contratos.
Diálogos sobre direito e justiça

A proteção ao direito do consumidor surgiu em meados do século


XVIII, após a Revolução Industrial na Europa. Com o desenvolvimento do
capitalismo, as sociedades comerciais e os monopólios começaram a dominar
o mercado de consumo, visto que a produção em massa e o fornecedor
fortalecido deixaram o consumidor em desvantagem. Assim, surge o direito
consumerista, com o fim de regular as trocas econômicas massificadas e
proteger a parte mais vulnerável dessa relação, o consumidor (SOUZA, 2010).
Alguns autores dividem a evolução do direito do consumidor em escala
mundial em três fases; na primeira, a principal preocupação era com os preços
e informações adequadas, na segunda fase questionava-se a relação entre as
empresas e, por fim, a terceira fase, que chega aos dias atuais, é marcada pela
consciência ética, sendo os direitos do consumidor ampliados (VIEGAS, 2011).
Já no que diz respeito ao Brasil, houve uma forte influência do direito
português e do direito europeu, tanto que já no tempo do Império ocorria uma
proteção discreta ao consumidor. No início, o direito brasileiro era apenas uma
extensão do direito português, principalmente no período da colonização,
quando o ordenamento jurídico tinha tendências patrimonialistas e patriarcais
(VIEGAS, 2011).
A conscientização do direito do consumidor, porém, veio realmente
desabrochar apenas com a Constituição Federal de 1988, em que foi
reconhecida a proteção do consumidor, sujeito vulnerável das relações de
consumo. Antes da Constituição Federal de 1988, o direito do consumidor
no Brasil era disciplinado pelo Código Civil, visto que referido diploma legal
estava despreparado para a proteção da parte mais frágil da relação de consumo
(LENZA, 2013, p. 28).
Posteriormente, em cumprimento ao disposto na Carta Magna, foi
elaborado, em 1990, a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, criando o
Código de Defesa do Consumidor, um ordenamento no qual se encontram
normas de direito penal, civil, constitucional e administrativas, com o fim de
organizar e proteger as relações de consumo no Brasil (VIEGAS, 2011).

2.6 PRINCÍPIOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR


RELATIVOS À PUBLICIDADE

Princípio significa começo, início, fundamentos de uma matéria,


conforme conceitua Mello (apud LENZA, 2013, p. 192): “[...] é, pois, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
147
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas”, sendo possível


visualizar o caráter essencial que possuem os princípios de uma área.
No direito do consumidor não é diferente; normalmente, os princípios
e os direitos básicos do consumidor são tratados em conjunto, conforme
preceitua Maltez (2011, p. 283): “Os princípios do Código de Defesa do
Consumidor estão todos entrelaçados, um remetendo e complementando
o outro, em um todo integrado e harmônico.” Assim, trabalharemos com a
divisão de princípios definida por Lenza, abordando apenas os princípios
mais elementares ao tema abordado, considerando-se que o rol de princípios
é extenso, faz-se necessário analisar apenas os relevantes para a compreensão
do tema objeto deste trabalho. Entretanto, é importante destacar a relevância
de todos os princípios insertos no Código de Defesa do Consumidor, bem
como de que a divisão seguida neste trabalho inicia com os princípios e depois
analisa os direitos.
O princípio da vulnerabilidade é um dos princípios de grande
importância no ordenamento consumerista. Inserto no artigo 4º, inciso I,
define que a relação jurídica de consumo é desigual e o consumidor é a parte
vulnerável, ou seja, é a parte mais frágil dessa relação. Nesse sentido, define
Lenza (2013, p. 196):

Com a constatação de que a relação de consumo é extre-


mamente desigual, imprescindível foi buscar instrumen-
tos jurídicos para tentar reequilibrar os negócios firmados
entre consumidor e fornecedor, sendo o reconhecimento
da presunção de vulnerabilidade do consumidor o prin-
cípio norteador da igualdade material entre sujeitos do
mercado de consumo.

Os autores, ainda, costumam dividir a vulnerabilidade em espécies,


sendo estas a vulnerabilidade técnica, a vulnerabilidade jurídica e a
vulnerabilidade fática (MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, 2010, p. 198).
A vulnerabilidade técnica se refere àquela em que o comprador não tem
conhecimentos sobre o produto, tornando-se, dessa forma, mais propenso a
ser enganado. Lenza (2013, p. 198) explica: “[...] consiste na fragilidade do
consumidor no tocante à ausência de conhecimentos técnicos sobre o produto
ou o serviço adquirido/contratado no mercado de consumo.”

148
Diálogos sobre direito e justiça

Quanto à vulnerabilidade jurídica, também chamada de científica pela


doutrina, diz respeito, nas palavras de Lenza (2013, p. 199): “[...] a debilidade
do consumidor em relação à falta do conhecimento sobre a matéria jurídica ou
a respeito de outros ramos científicos como da economia ou da contabilidade.”
Assim, há uma presunção de fragilidade do consumidor perante as matérias da
economia e do ramo jurídico, tornando-o vulnerável nas relações de consumo.
Já a vulnerabilidade fática, também chamada de socioeconômica, é
aquela em que há desigualdade fática de ramos, intelectuais e econômicos, que
geralmente caracteriza a relação de consumo (LENZA, 2013, p. 200).
Essa espécie de modalidade refere-se, portanto, à fragilidade por
si só do consumidor, sem envolver especificações técnicas do produto, ou
seu conhecimento jurídico, apenas na presunção de vulnerabilidade do
consumidor diante da relação de consumo.
Pelo princípio da intervenção estatal, entende-se que o Estado deve
intervir nas relações de consumo para proteger a parte mais frágil da respectiva
relação, conforme explica Lenza (2013, p. 204): “[...] resulta do reconhecimento
da necessidade da atuação do Estado na defesa do consumidor.” Ainda,
descreve que a Carta Magna, ao consagrar o direito do consumidor como um
direito fundamental, impôs ao Estado o dever de defesa desse direito.
Referido princípio está inserido no artigo 4º, inciso II, do Código de
Defesa do Consumidor e explana a atuação do Estado nas relações de consumo.
Referida atuação no mercado consumerista pode ocorrer por meio de seus
órgãos de administração pública, ou por meio de órgãos de fiscalização, e é
caracterizada por uma presença plural, em que a fragmentação da fiscalização
é uma técnica eficaz contra os abusos do mercado, uma vez que não é possível
saber qual órgão atuará na defesa do consumidor (MARQUES; BENJAMIN;
MIRAGEN, 2010, p. 201).
O princípio da harmonia nas relações de consumo está presente
no inciso III do artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor. Refere-se
à harmonização que deve haver nas relações de consumo, equilibrando a
proteção do consumidor com o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Assim, esse princípio tenta harmonizar a defesa do consumidor com o
desenvolvimento econômico, tecnológico ou científico. A vulnerabilidade do
consumidor não pode impedir os avanços nos referidos campos, no entanto,
esses avanços devem ser realizados de maneira satisfatória a não descumprir
os objetivos citados (LENZA, 2013, p. 210).
149
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

O princípio da boa-fé é mais um dos princípios basilares do direito


do consumidor e está expresso no artigo 4º, inciso III, do Código de Defesa
do Consumidor. A boa-fé pode ser classificada em objetiva e subjetiva, é
importante distinguir com clareza uma da outra, uma vez que a subjetiva diz
respeito a questões internas, à vontade do agente, e a objetiva diz respeito aos
fatos, sem analisar a vontade do agente, analisa-se de forma objetiva os fatos
(LENZA, 2013, p. 211).
Ainda, no artigo 4º, inciso III, é possível vislumbrar o princípio do
equilíbrio, que somado à boa-fé, resulta na harmonização da relação de
consumo. Esse princípio faz-se de suma importância, uma vez que, conforme
visto anteriormente, existe uma desigualdade na relação de consumo,
observando que uma das partes é mais vulnerável, necessitando de proteção
na relação consumerista (LENZA, 2013, p. 216).
Portanto, é visível a desigualdade na relação de consumo entre o
consumidor e o detentor dos meios de produção, sendo necessária uma
legislação específica como meio de proteção.
Sendo o consumidor a parte mais vulnerável da relação de consumo,
faz-se necessário que haja meios para que este se mantenha informado e seja,
de certa forma, educado sobre os direitos a que faz jus (LENZA, 2013, p. 216).
O princípio da educação e da informação encontra-se disposto no artigo
4º, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor e é possível vislumbrar
a necessidade da educação e da informação do consumidor, considerando-
se a realidade brasileira, na qual as pessoas não têm acesso a um sistema
educacional adequado.
Previsto no artigo 4º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor,
o princípio da qualidade e segurança diz respeito ao incentivo à criação, pelos
fornecedores de produtos e serviços, de meios eficientes para o controle da
qualidade e segurança dos bens oferecidos ao consumidor, prezando pela sua
saúde e segurança, ainda diz respeito a alternativas para solucionar conflitos de
consumo (LENZA, 2013, p. 218).

2.7 A PUBLICIDADE NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor não apresenta uma definição


do que é a publicidade, tornando a definição do termo muito abrangente, da
mesma forma, não há um rol de atividades consideradas como publicidade,
150
Diálogos sobre direito e justiça

deixando uma brecha nesse aspecto, conforme leciona Lenza (2013, p. 432):
“O Código de Defesa do Consumidor não define a publicidade e também não
faz exigência de sua existência como forma de promover produtos ou serviços
no mercado de consumo.”
Contudo, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária
traz um conceito de publicidade, conforme menciona Marques, Benjamin
e Miragem (2010, p. 727): “O Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária define a publicidade comercial como ‘toda atividade destinada a
estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições,
conceitos ou ideias’, incluindo nessa definição a publicidade governamental e
o merchandising.”
Ainda, o Código de Defesa do Consumidor, em seu capítulo V, mais
especificamente na seção três, determina algumas características da publicidade,
impondo os limites necessários à veiculação publicitária, conforme define o
art. 36: “A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil
e imediatamente, a identifique como tal.”
No que se refere às formas de controle da publicidade, esta poderá ser
controlada pelo Estado ou pelo setor privado pertinente à atividade desenvolvida,
ou por ambos. No Brasil, o controle da publicidade será efetuado por órgãos
estatais e pelo setor privado. No que se refere aos órgãos estatais, é importante
destacar o Conselho Nacional de Regulamentação Publicitária (Conar), órgão
com função de exercer o controle da publicidade, por meio do Código Brasileiro
de Autorregulamentação Publicitária (LENZA, 2013, p. 434).
Ainda, no que diz respeito à publicidade, o Código de Defesa do
Consumidor proíbe toda forma de publicidade abusiva ou enganosa, conforme
preceitua em seu artigo 37 e §§s:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.


§ 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou
comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcial-
mente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por
omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a res-
peito da natureza, características, qualidade, quantidade,
propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados so-
bre produtos e serviços.
§ 2º É abusiva, dentre outras a publicidade discriminató-
ria de qualquer natureza, a que incite à violência, explore
o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de
151
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

julgamento e experiência da criança, desrespeita valores


ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a
se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saú-
de ou segurança.
§ 3º Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa
por omissão quando deixar de informar sobre dado es-
sencial do produto ou serviço.

Portanto, o referido artigo proíbe publicidade abusiva ou enganosa, já


definindo em seus parágrafos o conceito de publicidade enganosa e elencando
um rol exemplificativo do que é a publicidade abusiva.
Temos, portanto, um parâmetro do que é a publicidade abusiva, sendo
um ato ilícito que viola um direito ou causa prejuízo a terceiro em uma relação
de consumo, conforme conceitua Marques et al. (2010, p. 738): “A publicidade
abusiva é, em resumo, a publicidade antiética, que fere a vulnerabilidade do
consumidor, que fere valores sociais básicos, que fere a própria sociedade como
um todo”, sendo, portanto, expressamente proibida pelo Código de Defesa do
Consumidor.
O rol disposto no artigo 37 é exemplificativo, visto que condutas que
não estejam expressamente dispostas, mas que prejudiquem o consumidor
podem ser consideradas abusivas (LENZA, 2013, p. 448).
Já a publicidade enganosa constante no § 1º é conceituada como uma
modalidade de informação, inteira ou parcialmente falsa, capaz de induzir a
erro o consumidor; nesse sentido, aborda Chaise (2001, p. 33): “Podemos dizer
que a principal característica da publicidade enganosa é a probabilidade de
induzir o consumidor em erro.” O induzimento do consumidor a erro pode
ocorrer por meio de omissão de informações.
Portanto, a publicidade enganosa pode acontecer por intermédio da
comissão ou da omissão. A publicidade enganosa por comissão é aquela em
que se mostra algo que não é real, uma situação que não condiz com a realidade,
induzindo o consumidor a erro. A publicidade enganosa por omissão ocorre
quando o fornecedor deixa de prestar alguma informação ao consumidor e
omite dado essencial do produto (LENZA, 2013, p. 443).
Destarte, as formas de publicidade enganosa são prejudiciais ao
consumidor, condenadas pelo ordenamento vigente, sendo necessária, apenas,
a potencial capacidade de enganar para que seja considerada enganosa
(LENZA, 2013, p. 445).
152
Diálogos sobre direito e justiça

3 NEUROMARKETING E A VULNERABILIDADE DO
CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor elenca como um direito básico


do consumidor a proteção contra qualquer tipo de publicidade abusiva
e enganosa. Assim, a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o
consumidor facilmente possa identificá-la como tal, sendo vedada qualquer
forma de publicidade considerada subliminar, conforme Lenza (2013, p.
437) explica: “São condenadas, no entanto, quaisquer tentativas destinadas a
produzir efeitos ‘subliminares’ em publicidade ou propaganda.”
A vulnerabilidade do consumidor fica completamente exposta
diante da publicidade subliminar, uma vez que esta atinge o inconsciente
do consumidor, usando seus medos, aspirações, sonhos mais íntimos para
influenciar na escolha e na compra de um produto, sendo esta vedada pelo
ordenamento jurídico atual, uma vez que fere os princípios da vulnerabilidade
e o caput do artigo 36.
Já a posição do consumidor diante do neuromarketing tem gerado
polêmica e críticas na área da ética publicitária, visto que há defensores dessa
nova técnica e há os que se opõem ao seu uso. Lindstrom (2009, p. 13), um
dos precursores dessa técnica, explica: “[...] o neuromarketing é a chave para
abrir o que chamo de nossa ‘lógica de consumo’ – os pensamentos e desejos
subconscientes que impulsionam as decisões de compra que tomamos todos
os dias de nossas vidas.” Assim, para o renomado autor, o neuromarketing não
fragiliza o consumidor, uma vez que este entenderá a lógica do consumo.

3.1 DEFINIÇÃO DE NEUROMARKETING

O neuromarketing pode ser definido como uma ferramenta de


marketing, que utiliza recursos da neurociência para avaliar a reação emocional
e fisiológica das pessoas em relação a produtos e propagandas. É a união entre
a ciência e o marketing, como define Lindstron (2009, p. 167): “Uma união de
fatores aparentemente opostos [...]” No entanto, essa união de fatores opostos,
aparentemente, tem tudo para ter sucesso, a união da ciência e do marketing
é algo esperado pelos profissionais da área, pois poderá afirmar a certeza do
sucesso de um produto, bem como determinar o fracasso de outro.

153
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

É visível a união entre o marketing e a ciência; com a ajuda do


mapeamento cerebral, a eficácia de todas as formas de marketing será
maximizada, uma vez que nem sempre é possível identificar os sentimentos
por meio das palavras, visto que o inconsciente pode interpretar de uma forma
e o consciente verbalizar de outra.
Portanto, esse é o objetivo do neuromarketing, a união da ciência e do
marketing, para descobrir quais as verdadeiras preferências do consumidor.

3.2 O NEUROMARKETING E A PUBLICIDADE SUBLIMINAR

A publicidade subliminar é aquela que pretende atingir o subconsciente


da pessoa; a mensagem é projetada de forma a não ser perceptível, uma vez
que no momento da compra o produto aflora no nível da consciência, como se
fosse uma escolha espontânea. (CHAISE, 2001, p. 14)
O neuromarketing, da mesma forma que a publicidade subliminar,
tem o intuito de atingir o subconsciente dos consumidores, fazendo com que a
pessoa escolha determinado produto em vez de outro, sem entender de forma
consciente o motivo que a levou a comprar. A intenção do neuromarketing
é avaliar a reação das pessoas diante de produtos, propagandas e serviços,
por meio do mapeamento cerebral, e com a ajuda da ciência, a eficácia da
publicidade aumentaria, tornando-se certeira aos consumidores e atingindo o
subconsciente em longo prazo.
É nesse ponto, da eficácia em longo prazo, que chegamos à principal
diferença entre o neuromarketing e a propaganda subliminar, uma vez que a
publicidade subliminar atinge o subconsciente do consumidor no momento
em que está sendo veiculada a publicidade, atingindo o subconsciente em
curto prazo; por outro lado, o neuromarketing atinge o subconsciente do
consumidor em longo prazo, fazendo com que o que foi veiculado permaneça
na mente do consumidor por um período maior.
Outro ponto diferencial entre o neuromarketing e a publicidade
subliminar se refere às técnicas de pesquisa empregadas, pois o neuromarketing
utiliza os recursos da neurociência e as técnicas mais avançadas de monitoramento
cerebral para ver como o cérebro do consumidor reage a determinados estímulos,
usando disso para promover a publicidade de seus produtos ou serviços. Por
outro lado, a publicidade subliminar não usa meios da neurociência para avaliar a
eficácia de seus produtos, mas técnicas empregadas na psicologia, determinando
154
Diálogos sobre direito e justiça

que o psicológico do consumidor reagirá melhor à determinada situação do que


à outra (CALAZANS, 2006, p. 33).
Portanto, fica clara a diferença entre a publicidade subliminar e o
neuromarketing, sendo este último uma forma de marketing que usa os
recursos mais avançados, com a intenção de atingir o consumidor de forma
mais eficaz.

3.3 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS AO NEU-


ROMARKETING

O neuromarketing é um tema polêmico da atualidade, suscitando


posições favoráveis e desfavoráveis, isso tanto na área jurídica quanto na área
publicitária, uma vez que o referido tema envolve ética profissional e afeta
direitos fundamentais, trazendo a questão de ser ou não técnica e abusiva e
estar ou não afetando o direito de escolha do consumidor.
O neuromarketing, como já citado, é uma matéria que envolve
neurociência e marketing e, portanto, gera muita polêmica. Entretanto,
muitos veem com bons olhos essa técnica, sendo um dos principais defensores
Lindstrom (2009, p. 171), um renomado profissional da área do marketing,
que argumenta que o neuromarketing beneficiará tanto consumidores quanto
empresas, uma vez que “[...] o cérebro toma a decisão e muitas vezes nem
temos consciência disso.”
Assim, segundo essa teoria, os profissionais do marketing terão acesso
além do consciente do consumidor e por intermédio do neuromarketing,
poderão analisar os impulsos inconscientes que levam as pessoas a adquirir
determinado produto em vez de outro.
Portanto, essa nova técnica é um avanço no método tradicional de
pesquisa utilizado pelo marketing, visto que será possível descobrir o que o
consumidor realmente quer, e ainda, essa técnica será cada vez mais conhecida
e procurada pelos profissionais da área (LINDSTROM, 2009, p. 152).
Então, é visível que o neuromarketing é uma realidade mais próxima do
que se imagina e, com o passar do tempo, tornar-se-á mais popular e acessível.
Além disso, o neuromarketing ajudará a prever as direções e as tendências
que vão alterar o modo de pensar e de agir, e, de certa forma, o destino do
comércio em todo o mundo (LINDSTROM, 2009, p. 175).
E como fica o consumidor diante de tais técnicas? Segundo os
profissionais do marketing, não haverá nenhum problema, e será até mesmo
155
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

benéfico aos consumidores, pois a partir do momento que entenderem que


suas escolhas são mais inconscientes do que conscientes, poderão proteger-se
dos ataques publicitários (LINDSTROM, 2009, p. 167).
Assim, os argumentos favoráveis baseiam-se no fato de que conhecendo
o seu subconsciente e as técnicas que os publicitários irão utilizar, o consumidor
conseguirá se defender e se preparar para não ser facilmente influenciado.
Em contrapartida ao demonstrado anteriormente, há aqueles que
consideram o neuromarketing uma verdadeira afronta aos princípios
consumeristas e direitos básicos do consumidor. A ética do neuromarketing
é outro ponto questionado, uma vez que é atacado o subconsciente do
consumidor. Nesse sentido, descreve Setti (2013):

Alguns críticos alegam que a eficácia do método não


pode ser comprovada, enquanto outros denunciam ser
eticamente questionável influenciar nos processos deci-
sórios do cérebro dos consumidores, comparando o neu-
romarketing à hipnose. Os profissionais da área negam, é
claro, mas admitem que o campo sofre hoje a inva-
são de charlatões.

A principal preocupação dos opositores ao neuromarketing é a


influência que ele pode ter no subconsciente das pessoas. Maltez (2011, p.
202) explica que: “[...] o inconsciente trabalha com todo o resto, inclusive
daquilo que o indivíduo não está atento. E sobre ele não temos controle
nenhum.” Os consumidores, as pessoas em geral, não têm controle sobre o
seu subconsciente, não há como controlar impulsos provocados por aquilo
que não é consciente. Portanto, na visão dos opositores, o neuromarketing
ocasionaria uma hipervulnerabilidade ao consumidor, que não poderia se
defender daquilo que não consegue perceber.
Outro ponto abordado é a credibilidade do neuromarketing, uma
vez que não há provas contundentes de que essa técnica realmente funcione.
Essa nova técnica ainda está sendo estudada, analisada, e já existem muitas
consultorias no mercado oferecendo tais serviços, o que faz perder um pouco
da credibilidade (SETTI, 2013).

156
Diálogos sobre direito e justiça

3.4 ANÁLISE DO NEUROMARKETING EM FACE DO PRINCÍPIO


DA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR

O neuromarketing, como explanado nas seções anteriores, é a junção


do marketing e da neurociência com o fim de entender a mente do consumidor.
Essa nova técnica utiliza tecnologias da neuromedicina e da psicologia, com o
objetivo de entender suas reações diante de determinadas situações, ou de sua
exposição a uma marca ou oferta de um produto ou serviço, para avaliar como
estes o influenciam (ZANONE, [2014]).
Assim, é possível prever as reações e ações do consumidor que nem
mesmo ele conhecia, é possível conhecer a mente do consumidor e entender
a lógica do consumo, utilizar medos, desejos, anseios subconscientes para que
ele opte por determinado produto ou serviço em vez de outro.
No entanto, questionamentos sobre a conduta ética de avaliar a mente
do consumidor e utilizar seus sentimentos mais íntimos, usar seu subconsciente
para que adquira um produto ou serviço têm surgido. Além da questão ética,
ainda é necessário avaliar o neuromarketing sob a ótica do princípio da
vulnerabilidade do consumidor, bem como do artigo 36 do Código de Defesa
do Consumidor.
O neuromarketing ainda é um tema com pouca divulgação e de certa
forma encoberto, mas críticos já questionam sobre os riscos de que as empresas
tenham conhecimento da mente do consumidor e possam usá-la para que
adquira produtos ou serviços (ZANONE, 2014).
Portanto, apesar de ser um tema recente, tem gerado preocupações quanto
à ética de seu uso e da exposição do consumidor a essa ferramenta do marketing.
E, infelizmente, essa ferramenta nas mãos erradas poderia causar estragos.
Dessa forma, é possível perceber que o neuromarketing é uma ferramenta
extremamente útil aos profissionais da área, uma vez que estes avaliarão tanto
a parte consciente quanto inconsciente do consumidor. Contudo, será que essa
nova ferramenta não afetará o princípio da vulnerabilidade?
O princípio da vulnerabilidade é um dos princípios de proteção
ao consumidor explícitos no artigo 4º, inciso I, do Código de Defesa do
Consumidor, e reconhece que o consumidor é a parte fraca da relação
de consumo, uma vez a decisão do que vender, quando e a que preço é do
fornecedor deixando o consumidor reduzido a apenas a escolha de um
produto, conforme destaca Nunes (2013, p. 178): “É por isso que, quando se
fala em “escolha” do consumidor, ela já nasce reduzida.” 157
Eduarda Bortoli, Magda Cristiane Detsch da Silva

Além disso, o consumidor somente pode optar por aquilo que o


fornecedor decidiu disponibilizar no mercado, a oferta foi determinada
de forma unilateral pelo fornecedor, unicamente com a obtenção de lucro,
portanto, faz-se necessária uma proteção ao consumidor, por esse ser a parte
fraca, vulnerável da relação jurídica de consumo (NUNES, 2013, p. 178).
Portanto, o fato de o neuromarketing analisar a mente e utilizar
informações do subconsciente do consumidor para influenciar na escolha
de um produto ou serviço, leva alguns autores a considerá-lo antiético e
prejudicial a este. No entanto, há autores e profissionais da área que consideram
o neuromarketing apenas mais uma importante ferramenta de pesquisa de
escolhas e preferências do consumidor.

4 CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, surge um questionamento crucial, o fato


de o neuromarketing analisar a mente do consumidor, verificar sentimentos
e reações inconscientes e utilizá-los para que o consumidor adquira um
produto ou serviço não o torna vulnerável diante da relação de consumo?
Então, se entendermos que o neuromarketing gera um desequilíbrio na
relação de consumo, aumentando a fragilidade do consumidor, não deverá ser
interpretado como publicidade abusiva?
O presente trabalho tentou responder a esses questionamentos e, para
tanto, analisou de forma aprofundada o marketing, de forma mais específica
a parte referente à promoção, na qual se enquadra a publicidade, para
avaliarmos todas as técnicas e a influência que estas têm sobre o consciente e o
subconsciente do consumidor.
A promessa é que o neuromarketing descubra o que o consumidor
realmente pensa, o motivo de ele optar por determinada marca, produto ou
serviço em vez de outro, indo além da parte consciente do consumidor e
analisando as escolhas subconscientes, para que então possam oferecer seus
produtos de forma mais sedutora ao consumidor.
Além disso, o fato de não deixar explícito na publicidade de um
produto ou serviço que está sendo usado neuromarketing, ou que foi utilizado
na fase de pesquisa, não vai contra o disposto no artigo 36 do Código de
Defesa do Consumidor? O Código de Defesa do Consumidor define em seu
artigo 36 que a publicidade deve ser veiculada de forma que o consumidor
158
Diálogos sobre direito e justiça

facilmente a identifique como tal, então, o fato do neuromarketing estar


subentendido na propaganda ou outra forma de publicidade pode inferir que
não é facilmente identificada pelo consumidor, levando-nos a entender que
está em desconformidade com o dispositivo legal.
Por fim, não chegamos a uma conclusão definitiva, uma vez que os
pesquisadores de neuromarketing ainda não chegaram a nenhum consenso
quanto à real eficácia, bem como se essa ferramenta tem capacidade de
influenciar o consumidor na escolha de um produto ou serviço. Assim, o
neuromarketing merece atenção na área jurídica, pois muito pouco se sabe
concretamente sobre o tema e sobre sua influência nas escolhas do consumidor.

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161
COLETA DE PERFIL GENÉTICO COMO
FORMA DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL:
A LEI N. 12.654/2012 E O DECRETO N.
7.950/2013 SOB O ENFOQUE DOS
DIREITOS À INTIMIDADE E À
PRIVACIDADE
Eduardo Augusto Coeli *
Ricardo José Nodari**

Resumo: O presente artigo objetivou analisar se a aplicação da Lei Federal n. 12.654,


de 28 de maio de 2012, que prevê a coleta de perfil genético como forma de identifi-
cação criminal, e do Decreto Federal n. 7.950, de 12 de março de 2013, que instituiu o
Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos,
é uma afronta aos direitos à intimidade e à privacidade do identificado. O problema
apresentado consiste em questionar se os mencionados direitos podem sofrer limita-
ções em decorrência da aplicação das referidas normas. O método de raciocínio uti-
lizado foi o indutivo, posto que as constatações particulares levaram à elaboração de
generalizações quanto ao objetivo deste. No que se refere às fontes de informação, a
pesquisa foi primordialmente bibliográfica, em que se buscou a fundamentação teóri-
ca necessária à discussão do tema em questão.
Palavras-chave: Identificação criminal. Genética forense. Banco de perfis genéticos.
Direito à intimidade e à privacidade.

Collect of genetic profile as a means of criminal identification: the law n.


12.654/2012 and decree n. 7.950/2013 under the focus of rights to privacy
and intimacy

Abstract: This article aimed to examine whether the application of Federal Law n. 12.654,
of May 28, 2012, which previses the collection of genetic profile as a form of criminal
___________________________________________________
*
Graduando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; eduardo.
coeli@outlook.com
**
Mestre em Instituições do Direito Público e Privado pela Universidade Federal de
Santa Catarina; Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Vice-Prefeito 163
do Município de Herval d’Oeste; ricardo.nodari@unoesc.edu.br
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

identification, and the Federal Decree n. 7.950 of March 12, 2013, which established the
Bank National of Genetic Profiling and Integrated Bank Network of Genetic Profiles, is
an affront to the rights to privacy and the privacy of the identified. The problem presented
is to question whether the aforementioned rights may be restricted due to the application
of these standards. The method used was inductive reasoning, since the particular obser-
vations will lead to the development of generalizations about the purpose of it. Regarding
the sources of information, the search was primarily literature, in which it was sought the
necessary theoretical background to the discussion of the topic.
Keywords: Criminal identification. Forensic genetics. Bank of genetic profiles. Right to
intimacy and privacy.

1 INTRODUÇÃO

Em 28 de maio de 2012 foi promulgada a Lei Federal n. 12.654, que


possibilitou a coleta de material biológico para obtenção de perfil genético
como forma de identificação criminal, bem como dispôs que os dados
relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de
dados de perfis genéticos gerenciado por unidade oficial de perícia criminal. 
A referida Lei, ainda, deixou consignado que a identificação do
perfil genético será armazenada em banco de dados de caráter sigiloso,
conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. A mencionada
regulamentação surgiu com a expedição do Decreto n. 7.950, de 12 de março
de 2013.
Este artigo objetivou analisar se a aplicação da Lei Federal n.
12.654/2012, que prevê a coleta de perfil genético como forma de identificação
criminal, e do Decreto n. 7.950/2013, que instituiu o Banco Nacional de Perfis
Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, é uma afronta aos
direitos à intimidade e à privacidade do identificado.
Tem-se como necessário e atual o presente estudo, portanto,
merecendo ser analisado, ante a utilização de material genético para fins
de identificação criminal suscitar alguns problemas relativos à informação
obtida com o mencionado recurso, pois os interesses da pessoa afetada podem
entrar em conflito com outros interesses individuais ou coletivos atinentes à
administração da justiça criminal.
A Lei n. 12.654/2012 e o Decreto n. 7.950/2013 trouxeram à tona
o assunto da utilização de material genético para fins de persecução penal,
que está recebendo críticas negativas por supostamente ser inconstitucional,
164
Diálogos sobre direito e justiça

violando os direitos à privacidade, à intimidade e à integridade física do


identificado, estes elencados como direitos e garantias fundamentais pela
Magna Carta de 1988, entre outros, bem como críticas positivas por ser uma
forma eficiente e segura de identificação criminal, a fim de assegurar o correto
cumprimento da persecução penal promovida pelo Estado.
O método de raciocínio utilizado foi o indutivo, posto que as
constatações particulares levaram à elaboração de generalizações quanto a se
a aplicação da Lei Federal n. 12.654/2012, que prevê a coleta de perfil genético
como forma de identificação criminal, e do Decreto n. 7.950/2013, que
instituiu o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos
de Perfis Genéticos, é uma afronta aos direitos à intimidade e à privacidade do
identificado.
Referente às fontes de informação, a pesquisa foi bibliográfica, em que
se buscou a fundamentação teórica necessária à discussão do tema em questão.
Para tanto, este artigo foi dividido em três seções, inicialmente,
considerando-se a necessidade de discorrer sobre os direitos da personalidade,
de forma genérica, e, mais especificamente, sobre os direitos à privacidade e
à intimidade, subdividiu-se a primeira seção observando-se essa sistemática.
Na segunda seção será abordado sobre a identificação criminal e, mais
especificamente, sobre a identificação criminal genética e sobre bancos de
dados genéticos.
Por fim, na última seção, em um primeiro momento, será abordado
sobre a Lei n. 12.654/12 e o Decreto Presidencial n. 7.950/13, tecendo algumas
considerações pertinentes sobre ambos os dispositivos legais. Em um segundo
momento, será abordado sobre as limitações ao direito à intimidade e à
privacidade, decorrentes da aplicação das mencionadas normas.

2 DIREITO À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE

Considerando-se que será abordado neste estudo sobre as limitações


aos direitos à privacidade e à intimidade em decorrência da aplicação da Lei n.
12.654/2012 e do Decreto n. 7.950/2013, é necessário, antes de abordar sobre o
tema específico do trabalho, discorrer sobre o tema dos direitos à privacidade
e à intimidade, para analisar se aqueles violam estes.

165
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

2.1 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Antes de discorrer sobre os direitos à intimidade e à privacidade,


propriamente ditos, necessário se faz tecer algumas considerações acerca dos
direitos da personalidade. Tal análise é imprescindível, considerando-se que este
é o gênero no qual aqueles se inserem como espécies (ECHTERHOFF, 2010).
Leciona o professor Bittar (2003) que a definição dos direitos à
intimidade e à privacidade como direitos da personalidade encontra forte
resistência de grande parte da doutrina, divergindo quanto à sua existência,
extensão e especificação e, até mesmo, de sua construção teórica. A discussão
cinge também quanto à denominação, já que podem ser tratados por direitos
essenciais da pessoa; direitos subjetivos essenciais; direitos sobre a própria
pessoa; entre outros. Entretanto, a doutrina dominante os tem chamado de
direitos da personalidade.
Bittar (2003, p. 1), conceitua os direitos da personalidade como:

[...] os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada


em si mesma e em suas projeções na sociedade, previs-
tos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de
valores inatos no homem, como a vida, a higidez física,
a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.

Adiante, Bittar (2003, p. 5) menciona que “São direitos ínsitos na


pessoa, em função de sua própria estruturação física, mental e moral. Daí,
são dotados de certas particularidades, que lhes conferem posição singular no
cenário dos direitos privados [...]”
Na concepção de De Cupis (2004 apud ECHTERHOFF, 2010, p. 116,
grifo do autor), os direitos da personalidade são:

Todos os direitos, na medida em que destinados a dar


conteúdo à personalidade, poderiam chamar-se “direitos
da personalidade”. No entanto, na linguagem jurídica,
esta designação é reservada aos direitos subjetivos, cuja
função, relativamente à personalidade, é especial, cons-
tituindo o minimum necessário e imprescindível ao seu
conteúdo.

166
Diálogos sobre direito e justiça

Ensina Motes (1993 apud BELTRÃO, 2005, p. 23) que “Com os direitos
da personalidade, quer-se fazer referência a um conjunto de bens que são tão
próprios do indivíduo, que chegam a se confundir com ele mesmo e constituem
as manifestações da personalidade do próprio sujeito.”
Pode-se citar que os direitos da personalidade são inatos, absolutos,
extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios,
necessários e oponíveis erga omnes (BITTAR, 2003, p. 112).
Quanto à distinção entre direitos fundamentais e direitos da
personalidade, apesar de a maioria dos direitos da personalidade ser tratada
como direitos fundamentais, há entre eles distinções, pois os primeiros
manifestam aspectos que não podem deixar de ser conhecidos sem afetar
a própria personalidade humana, enquanto os segundos demarcam, em
particular, a situação do cidadão perante o Estado, com a preocupação básica
da estruturação constitucional (BELTRÃO, 2005).
Na lição de Miranda ([19--] apud BELTRÃO, 2005, p. 48):

Os direitos fundamentais pressupõem relações de po-


der, os direitos de personalidade relações de igualdade.
Os direitos fundamentais têm uma iniciativa publicística
imediata, quando ocorram efeitos nas relações entre os
particulares; os direitos de personalidade uma incidência
privatística, ainda quando sobreposta ou subposta à dos
direitos fundamentais. Os direitos fundamentais perten-
cem ao domínio do Direito Constitucional, os direitos de
personalidade ao do Direito Civil.

Nesse sentido, Canotilho (2003) explana que “Muitos dos direitos


fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos
fundamentais são direitos de personalidade.”

2.2 DIREITO À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE

Entre os direitos fundamentais que dizem respeito à proteção da


dignidade da pessoa humana, pode-se citar o direito à privacidade, ou
vida privada, como um dos mais importantes, apesar de nem sempre ter
sido contemplado, ao menos expressamente, nas constituições (SARLET;
MARINONI; MITIDIERO, 2012).

167
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prescreve,


de forma explícita, em seu artigo 5º, caput e inciso X, como invioláveis, os
direitos à intimidade e à privacidade, além do mais, os elencam como Direitos
e Garantias Fundamentais, considerando que estão inseridos no Título II “Dos
Direitos e Garantias Fundamentais” e no Capítulo I “Dos Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos”, vejamos:

TÍTULO II
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLE-
TIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-
trangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-
dade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e
a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

A Constituição de 1988, a exemplo da passagem antes transcrita, não


reconheceu apenas um genérico direito à privacidade (ou vida privada), mas
optou por referir tanto a proteção da privacidade quanto da intimidade, como
bens autônomos, como no caso da honra e da imagem (SARLET; MARINONI;
MITIDIERO, 2012).
Pelas lentes de Silva (2005), a privacidade é o conjunto de informações
sobre o indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou
divulgar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem que seja
legalmente obrigado a fazer isso.
Embora a jurisprudência e diversos doutrinadores não distingam
entre os direitos à intimidade e à privacidade, há os que dizem que o direito
à intimidade faria parte do direito à privacidade, que seria mais amplo. O
direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos
atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, que o indivíduo não deseja
que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade
seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações
familiares e amizades mais próximas (MENDES; BRANCO, 2014).
168
Diálogos sobre direito e justiça

Mendes e Branco (2014), citando Ferraz, conceituam direito à


privacidade como um direito subjetivo fundamental, cujo titular é toda pessoa,
física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente ou em trânsito no País e
cujo teor é a faculdade de forçar os outros ao respeito e de resistir à violação
do que lhe é própria, isto é, das situações vitais que, por somente a ele lhe dizer
respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão
e cujo objeto é a integridade moral do titular (FERRAZ apud MENDES;
BRANCO, 2014).
Na lição de Pereira (apud SILVA, 2005, p. 206), a privacidade é “[...] o
conjunto de informações sobre o indivíduo que ele pode decidir manter sob
seu exclusivo controle, ou divulgar, decidindo a quem, quando, onde e em que
condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito.”
O ponto nodal desse direito encontra-se na exigência de isolamento
mental ínsita no psiquismo humano, que leva a pessoa a não desejar que certos
aspectos de sua personalidade e de sua vida cheguem ao conhecimento de
terceiros. Limita-se, com esse direito, o quanto possível, a inserção de estranho
na esfera privada ou íntima da pessoa (BITTAR, 2003).
Esses direitos revestem-se das conotações fundamentais dos direitos
da personalidade, devendo-se enfatizar a sua condição de direito negativo, ou
seja, expresso exatamente pela não exposição a conhecimento de terceiro de
elementos particulares da esfera reservada do titular. Nesse sentido, pode-se
acentuar que consiste no direito de impedir o acesso de terceiros aos domínios
da confidencialidade (BITTAR, 2003).
O direito à privacidade abrange, hoje, não apenas a proteção à vida
íntima do indivíduo, mas também a proteção de seus dados pessoais. O direito
à privacidade é mais amplo que o simples direito à intimidade atualmente.
Supera a esfera doméstica para alcançar qualquer ambiente onde circulem
dados pessoais do seu titular, aí incluídas suas características físicas, código
genético, estado de saúde, crença religiosa e qualquer outra informação
pertinente à pessoa. Nesse sentido, a privacidade poderia ser definida,
sinteticamente, como o direito ao controle da coleta e da utilização dos
próprios dados pessoais (SCHREIBER, 2013).
Mais especificamente sobre o direito à intimidade genética, tem-se que
este direito passou a ser tutelado como decorrência do direito à intimidade,
assegurado pela Constituição Federal em seu art. 5º, X, e a preocupação com

169
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

sua proteção jurídica tem crescido substancialmente nas últimas décadas, em


decorrência da evolução da ciência (CARVALHO; CORAZZA, 2013).
Na lição de Bidasolo (2001 apud HAMMERSCHMIDT, 2012, p.
63, tradução nossa),1 pode-se definir esse direito como “[...] o direito de
determinar as condições de acesso à informação genética, em forma de dados,
informações ou qualquer elemento orgânico do qual pode inferir-se esta,
excluindo a interferência de terceiros no respectivo conhecimento e proibindo
sua divulgação.”
O direito à intimidade genética encontra seu fundamento em diversos
textos internacionais, como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano
e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª Conferência Geral da Unesco, em 11
de novembro de 1997 (art. 7º);2 na Convenção relativa aos Direitos Humanos
e Biomedicina do Conselho da Europa, realizado em Oviedo, em 04 de abril
de 1997 (art. 10);3 a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos
Humanos, aprovada na 32ª Conferência Geral da Unesco, em 16 de outubro
de 2003 (art. 14, a);4 a Declaração de Inuyama, aprovada em 1990 no Japão,
a Declaração de Bilbao sobre o Direito ante o Projeto Genoma Humano, de
1993; entre outros.
No Direito brasileiro, não há legislação específica para dados genéticos,
quanto mais tratando do direito à intimidade e à privacidade dos dados
genéticos.

3 IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL E A GENÉTICA FORENSE


1
“[…] como el derecho a determinar las condiciones de acceso a la información genética, ya
sea em forma de datos, información o de cualquier elemento orgânico del cual pueda inferirse
esta, excluyendo la injerencia de terceiros em el conocimento respectivo y prohibiendo su
difusión.” (BIDASOLO, 2001, p. 31 apud HAMMERSCHMIDT, 2013, p. 63).
2
Art. 7º Dados genéticos associados a indivíduo identificável, armazenados ou
processados para uso em pesquisa ou para qualquer outro uso, devem ter sua
confidencialidade assegurada, nas condições estabelecidas pela legislação.
3
Art. 10. Vida privada e direito à informação
1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada referente a informações
relacionadas com a sua saúde.
2 - Qualquer pessoa tem o direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a
sua saúde. Todavia, a vontade expressa por uma pessoa de não ser informada deve ser
respeitada.
3 - A título excepcional, a lei pode prever, no interesse do paciente, restrições ao
exercício dos direitos mencionados no n. 2.
4
Art. 14. Vida privada e confidencialidade (a) Os Estados deverão desenvolver esforços
no sentido de proteger, nas condições previstas pelo direito interno em conformidade
com o direito internacional relativo aos direitos humanos, a vida privada dos indivíduos
e a confidencialidade dos dados genéticos humanos associados a uma pessoa, uma
170 família ou, se for caso disso, um grupo identificável.
Diálogos sobre direito e justiça

Na presente seção será abordado sobre a identificação criminal e, mais


especificamente, sobre a identificação criminal genética e sobre bancos de
dados genéticos.

3.1 A IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL

O conceito de identificação criminal está atrelado ao conceito de


identificação humana, que, segundo Sobrinho (2003, p. 15), pode ocorrer de
duas formas “A identificação humana pode ser estabelecida sob dois pontos
de vista, o subjetivo (identificação pessoal) e o objetivo (identificação física).”
Neste trabalho, o estudo está voltado à identificação objetiva (física),
que é analisada utilizando-se como base as características físicas do indivíduo
a ser identificado, no caso pelo DNA (SOBRINHO, 2003).
Comentando sobre identificação criminal, Rabello (1996, p. 20)
conceitua identidade:

Identidade, no latim identitias, identitatis, de idem (o


mesmo), é, por definição, a propriedade de cada ser, con-
creto ou abstrato, animado ou inanimado, ser ele próprio e
não outro. É, por isso mesmo, a afirmação de uma verda-
de cuja aceitação pacífica e incondicional é indispensável
e fundamental à teoria do conhecimento.

Ainda sobre identificação, Nucci (2011, p. 691) entende que “Identificar


significa determinar a identidade de algo ou alguém. No âmbito jurídico, quer
dizer apontar a individualidade e exclusividade de uma pessoa humana, não
havendo espaço para a duplicidade.”
A identificação criminal é a individualização física do indiciado, para
que não se confunda com outra pessoa, por meio da colheita de impressões
digitais, da fotografia e da captação de material biológico para exame de DNA
(NUCCI, 2013).
Andreucci (2009, p. 305) assim entende: “Identificação criminal
pode ser definida como o registro, guarda e recuperação de todos os dados e
informações necessários para estabelecer a identidade do acusado.”
Para Tourinho Filho (2011, p. 308), “Podemos dizer que a identificação
é o processo usado para se estabelecer a identidade. Esta, por sua vez, vem a ser
o conjunto de dados e sinais que caracterizam o indivíduo.”
171
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

A identificação criminal é subsidiária, ou seja, ela somente ocorre


quando o indiciado não possuir identificação civil.

3.2 A IDENTIFICAÇÃO GENÉTICA CRIMINAL E OS BANCOS DE


DADOS GENÉTICOS PARA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL

As investigações sobre o genoma humano têm, entre os seus objetivos


imediatos ou mediatos, o conhecimento das características do DNA humano e
de seus componentes integrantes. Como consequência disso, pode-se verificar
também quais são os genes responsáveis pela aparição de determinadas
doenças, bem como os mecanismos de sua manifestação e transmissão, e,
em fases mais avançadas e tardias da investigação, inclusive quais influem
na aparição de certas tendências, habilidades ou capacidades das pessoas
(CASABONA, 1999).
A realização de análises genéticas em pessoas determinadas pode revelar
informações muito importantes de caráter pessoal e familiar, como são os dados
biológicos sobre a saúde presente e futura do afetado (CASABONA, 1999).
O art. 2º, I, da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos
Humanos da Unesco5 define dados genéticos humanos como “[...] informações
relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de
ácidos nucleicos ou por outras análises científicas.”
Segundo Bonaccorso (2010), os bancos de dados criminais genéticos
têm como objetivo contribuir para a resolução de ações judiciais criminais,
funcionando como ferramenta de investigação por propiciar o conjunto
automatizado de perfis genéticos procedentes de diversas fontes como vestígios
questionados (não identificados), oriundos de locais de crimes e amostras-
referência de vítimas, suspeitos e condenados.
Os bancos de dados genéticos ou biobancos podem ser formados por
informações extraídas de qualquer material genético, ou seja, essas informações
podem ser extraídas do material genético, do esperma, do sangue, de tecidos
ou de qualquer outro material (ECHTERHOFF, 2010, p. 88).
A Recomendação n. 1/1992 do Conselho da Europa define arquivo de
DNA como qualquer coleção estruturada dos resultados dos testes das análises
5
Art. 2º Definições
Para efeitos da presente Declaração, os termos e expressões utilizados têm a seguinte
definição:
(i) Dados genéticos humanos: informações relativas às características hereditárias dos
indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucleicos ou por outras análises científicas;
172
Diálogos sobre direito e justiça

de DNA, que se conserve materialmente em registros manuais ou em uma


base de dados informatizada.
Os bancos de DNA podem ser conceituados como conjuntos de
materiais ou dados genéticos, informatizados ou não. Em outras palavras, os
bancos de DNA ou biobancos podem ser definidos como grandes coleções
de material genético (amostras de DNA, células, tecidos, tumores ou órgãos)
associados a dados de diversas naturezas (genéticos, médicos, biológicos,
familiares, socioambientais) (SCHIOCCHET et al., 2012).
No Brasil, desde 2004, são realizadas ações no sentido de aprimorar
o método de testes de DNA com foco na identificação criminal. Em maio de
2009, a Polícia Federal norte-americana (FBI) e a Polícia Federal brasileira
firmaram a Letter of Agreement, um convênio gratuito de compartilhamento
do software CODIS (Combined DNA Index System), desenvolvido e utilizado
pelo FBI e por mais de 30 países. Esse programa permite o cruzamento de
milhares de registros genéticos armazenados em seu banco de dados, com a
finalidade de identificar vítimas, desaparecidos e criminosos (KLEIN, 2013).
O banco de dados do sistema CODIS no Brasil foi inicialmente
constituído por vestígios genéticos obtidos no local do crime ou em amostras
fornecidas voluntariamente. Contudo, a Lei n. 12.654/2012 procura explorar
o potencial do sistema, possibilitando a ampliação da sua base de dados com
amostras de acusados e condenados (KLEIN, 2013).

4 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DA LEI N.


12.654/2012 E DO DECRETO N. 7.950/2013 DIANTE DOS
DIREITOS À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE

Nesta seção, em um primeiro momento, será abordado sobre a Lei n.


12.654/12 e o Decreto Presidencial n. 7.950/13, tecendo algumas considerações
pertinentes sobre ambos os dispositivos legais. Em um segundo momento,
será abordado sobre as limitações ao direito à intimidade e à privacidade,
decorrentes da aplicação das mencionadas normas.

4.1 A NOVA LEI N. 12.654/2012 E O DECRETO N. 7.950/2013

Com o advento da Lei Federal n. 12.654, de 28 de maio de 2012, que


entrou em vigor em 24 de novembro de 2012, passou a ser prevista, em nosso
173
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

ordenamento jurídico, a possibilidade da coleta de perfil genético como forma


de identificação criminal. A mencionada Lei promoveu alterações na Lei
n. 12.037, de 1º de outubro de 2009 (Lei de Identificação Criminal), e na Lei n.
7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).
Ao art. 5º da Lei de Identificação Criminal foi inserido o parágrafo
único que assim dispõe:

Art. 5º A identificação criminal incluirá o processo da-


tiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos
da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito
policial ou outra forma de investigação.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso IV do art. 3o, a
identificação criminal poderá incluir a coleta de material
biológico para a obtenção do perfil genético.

Aproveita-se a oportunidade para trazer a redação do inciso IV do art.


3º da Lei de Identificação Criminal:

Art. 3º Embora apresentado documento de identificação,


poderá ocorrer identificação criminal quando:
[...]
IV - a identificação criminal for essencial às investigações
policiais, segundo despacho da autoridade judiciária com-
petente, que decidirá de ofício ou mediante representação
da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;

Ainda, procedeu a inclusão dos arts. 5º-A, 7º-A e 7º-B na Lei n.


12.037/2009, in fine:

Art. 5º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil ge-


nético deverão ser armazenados em banco de dados de
perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia
criminal. 
§ 1º - As informações genéticas contidas nos bancos de
dados de perfis genéticos não poderão revelar traços
somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto de-
terminação genética de gênero, consoante as normas
constitucionais e internacionais sobre direitos humanos,
genoma humano e dados genéticos. 
§ 2o - Os dados constantes dos bancos de dados de perfis
genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal
174
Diálogos sobre direito e justiça

e administrativamente aquele que permitir ou promover


sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou
em decisão judicial. 
§ 3o - As informações obtidas a partir da coincidência de
perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo peri-
cial firmado por perito oficial devidamente habilitado.
Art. 7o-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de
dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei
para a prescrição do delito. 
Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armaze-
nada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento
a ser expedido pelo Poder Executivo.

Na Lei de Execução Penal foi incluído o art 9º-A, dispondo que

Os condenados por crime praticado, dolosamente, com


violência de natureza grave contra pessoa, ou por qual-
quer dos crimes previstos no  art. 1o  da Lei n.  8.072, de
25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente,
à identificação do perfil genético, mediante extração de
DNA – ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada
e indolor.

Atendendo à exigência prevista na Lei n. 12.654/12, o Poder Executivo


expediu o Decreto n. 7.950/13, de 12 de março de 2013, mesma data que entrou
em vigor, que institui e regulamenta o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a
Rede Integrada de Perfis Genéticos. Por meio desse instrumento, é descrita a
finalidade do banco de dados, qual seja subsidiar ações destinadas à apuração
de crimes.
O mencionado decreto instituiu, no âmbito do Ministério da Justiça,
o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis
Genéticos (art. 1º).
Este, em seu art. 1º, § 1º, traz o objetivo do Banco Nacional de Perfis
Genéticos que é armazenar dados de perfis genéticos coletados para subsidiar
ações destinadas à apuração de crimes; e no § 2º desse artigo o da Rede Integrada
de Bancos de Perfis Genéticos tem que é de permitir o compartilhamento e a
comparação de perfis genéticos constantes dos bancos de perfis genéticos da
União, dos Estados e do Distrito Federal.

175
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

4.2 AS LIMITAÇÕES AO DIREITO À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE

Pelo fato de a identificação genética criminal se desenvolver muito


rapidamente, possibilitando a obtenção de perfis genéticos com amostras
cada vez menores de material biológico, há um reflexo disso no ordenamento
jurídico, pois, fazendo diminuir cada vez mais o grau de intervenção
corpórea, criam-se dúvidas quanto à real vulneração de direitos fundamentais
(BONACCORSO, 2010).
Casabona (1999) entende que a informação obtida ou que se poderia
obter, como consequência da realização de análises genéticas nas pessoas,
suscita alguns problemas relativos à essa informação, a seu acesso e à sua
utilização, pois os interesses da pessoa afetada podem entrar em conflito com
outros interesses individuais ou coletivos.
Com efeito, o acesso a essa informação acarretará conhecimento de
aspectos muito importantes da pessoa a que se refiram, atingindo, de forma
muito direta, a sua esfera íntima (CASABONA, 1999).
No entanto, a vida em comunidade, com as suas inerentes interações
entre pessoas, impede que se atribua valor radical à privacidade. É possível
descobrir interesses públicos, acolhidos por normas constitucionais, que
se sobreponham ao interesse de recolhimento do indivíduo (MENDES;
BRANCO, 2014).
Limitações aos direitos à privacidade e à intimidade existem em razão
de vários interesses da coletividade e pelo desenvolvimento crescente de
atividades estatais, que a doutrina tem apontado, como: exigências de ordem
histórica, científica, cultural ou artística: exigências de cunho judicial ou policial,
inclusive com o uso de aparatos tecnológicos de detecção de fatos; exigências de
saúde pública e de caráter médico-profissional e outras (BITTAR, 2003).
Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2012) também entendem que como
os demais direitos pessoais, o direito à privacidade também não se revela
ilimitado e imune a intervenções restritivas. Todavia, ao não prever, para a
privacidade e intimidade, uma expressa reserva legal, além de afirmar que se
cuida de direitos invioláveis, há que reconhecer que a Constituição Federal
atribuiu a tais direitos um elevado grau de proteção, de tal sorte que uma
restrição apenas se justifica quando necessária a assegurar a proteção de outros
direitos fundamentais ou bens constitucionais relevantes (no caso, portanto,
de uma restrição implicitamente autorizada pela Constituição Federal), de tal
176
Diálogos sobre direito e justiça

sorte que é em geral na esfera dos conflitos com outros direitos que se pode,
em cada caso, avaliar a legitimidade constitucional da restrição.
As situações de embates entre princípios podem assumir tanto a forma de
colisão de direitos fundamentais quanto a de conflito entre um direito fundamental
e outro valor consagrado na Constituição (MENDES; BRANCO, 2014).
Sobrevém a mencionada colisão entre direitos fundamentais e outros
valores constitucionais quando interesses individuais (tutelados por direitos
fundamentais) contrapõem-se a interesses da comunidade, reconhecidos
também pela constituição, como: saúde pública, integridade territorial, família,
patrimônio cultural, segurança pública e outros (FARIAS, 2000).
Os interesses comunitários relevantes para Canotilho e Moreira (1991, p. 136):

[...] não são todos e quaisquer bens jurídicos, são exclusi-


vamente aqueles bens coletivos protegidos pela constitui-
ção. Somente a necessidade de salvaguardar estes últimos
justifica a restrição de direitos fundamentais quando coli-
dentes com valores comunitários.

Farias (2000) ainda evidencia que a solução da colisão de direitos


deverá ser baseada nos fundamentos da colisão de princípios. Portanto, jamais
haverá incompatibilidade total entre direitos, mas, sim, concorrência. Como os
princípios, os direitos conflitantes deverão ser cumpridos proporcionalmente
às condições reais e jurídicas existentes no caso concreto.
Narra Bonaccorso (2010, p. 118) que:

Em decorrência disso, em certas ocasiões, alguns direi-


tos constitucionalmente relevantes cederão em favor de
outros interesses, direitos ou valores, igualmente prote-
gidos, mas que em circunstâncias concretas tendem a ser
sacrificados em benefício de outros direitos com os quais
colidem.

Tais direitos atuam como barreira de proteção contra possíveis atuações


abusivas dos órgãos estatais de persecução penal. Mas, se de modo inverso, esses
direitos se tornarem uma barreira instransponível e impermeável à atuação estatal,
tornar-se-ia até mesmo inútil a persecução penal (BONACCORSO, 2010).

177
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

A partir dessa premissa, tem-se que os direitos fundamentais não têm


um caráter absoluto, fazendo com que, em determinados casos, no transcorrer
da investigação criminal, eles possam sofrer certas restrições e limitações. É o
caso, por exemplo, do direito que a vítima e a sociedade têm de que os crimes
sejam combatidos de forma eficaz e que os seus culpados sejam punidos de
acordo com a lei. Existe, assim, um interesse social em reprimir comportamentos
delituosos e, quando possível, impedi-los (BONACCORSO, 2010).
Não se pode negar que os bancos de dados genéticos podem ser
decisivos para a investigação e para a resolução de casos criminais, inclusive
mediante a exclusão da participação de suspeitos, mas podem gerar sérios
problemas fora dos processos originais (BONACCORSO, 2010, p. 134).
A informação genética não somente pode identificar cada ser humano,
como também desvenda todas as suas características biológicas relacionadas à
sua saúde atual e futura, e de seus familiares, pois é por meio da análise de DNA
que se pode averiguar toda a sua herança genética (ECHTERHOFF, 2010).
Machado (2012), manifestando opinião no sentido de que a
constituição de um banco de dados genéticos, destinado a armazenar os
perfis de criminosos, a par de ser uma medida que ameaça a intimidade e a
confidencialidade de dados do genoma humano, favorecendo a ressurreição
de teses e delírios tipicamente lombrosianos, é algo que afronta os princípios
liberais da presunção de inocência, da não autoincriminação e da ampla defesa,
em uma convivência problemática com a ordem constitucional vigente.
Destaca que a coleta de material biológico, a análise do DNA do
indivíduo e o armazenamento de dados genéticos pelo Estado são providências
severas de controle estatal que ameaçam radicalmente a privacidade das
pessoas e ainda podem ter o efeito de revolver as ideias positivistas do médico
italiano, Cesare Lombroso, que no século XIX acreditava ser possível definir
os caracteres morfológicos e comportamentais dos “criminosos natos”,
naturalmente propensos à prática de crimes (MACHADO, 2012).
Na mesma linha, o Procurador Regional da República aposentado
Romano (2013) afirma que lhe assombra a possibilidade de identificação
criminal pelo DNA, bem como a manutenção de bancos destinados a
armazenar perfis genéticos. Lança a suspeita, o receio, de que o armazenamento
de dados genéticos, em um banco destinado à identificação de indivíduos,
possa favorecer à discriminação, sobretudo quando pode levar alguém a ser
discriminado no mercado de trabalho, ante a possibilidade da indicação de
178
Diálogos sobre direito e justiça

doenças ou predisposição a elas, a seleção a determinados cargos ou funções


no serviço público. Considera, pois, tal banco de dados uma afronta ao direito
à intimidade, previsto no artigo 5º, X, da Constituição Federal.
Ademais, a Lei n. 12.037/2009, com as alterações promovidas pela
Lei n. 12.654/2012, é clara ao dispor no art. 5º-A, § 1º, que “As informações
genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar
traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética
de gênero, inclusive, respeitando as normas constitucionais e internacionais
sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.” (BRASIL, 2009,
grifo nosso). Ainda, segundo o § 2º do mesmo artigo “Os dados constantes dos
bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil,
penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização
para fins diversos dos previstos na lei ou em decisão judicial.” (BRASIL, 2009,
grifo nosso).
Não se pode esquecer que a Constituição Federal, expressamente,
determinou que os direitos e as garantias por ela arrolados não prejudicam
outros decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja signatário.6
Tratando mais especificamente acerca de diplomas internacionais, insta
observar que o § 1º do art. 5º-A, anteriormente transcrito, traz em seu conteúdo
“[...] respeitando as normas constitucionais e internacionais sobre direitos
humanos, genoma humano e dados genéticos”, dessa forma, prescrevem os
arts. 2º, 6º e 7º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos
Humanos da Unesco, da qual o Brasil é signatário, que:

Artigo 2º
a) A todo indivíduo é devido respeito à sua dignidade e
aos seus direitos, independentemente de suas caracterís-
ticas genéticas.
b) Esta dignidade torna imperativa a não redução dos in-
divíduos às suas características genéticas e ao respeito à
sua singularidade e diversidade.
Artigo 6º
Nenhum indivíduo deve ser submetido à discriminação
com base em características genéticas, que vise violar ou
6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 2º - Os direitos e as garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte.
179
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

que tenha como efeito a violação de direitos humanos, de


liberdades fundamentais e da dignidade humana.
Artigo 7º
Dados genéticos associados a indivíduo identificável, ar-
mazenados ou processados para uso em pesquisa ou para
qualquer outro uso, devem ter sua confidencialidade as-
segurada, nas condições estabelecidas pela legislação.

Ainda, o art. 10, I, da Convenção para a Proteção dos Direitos do


Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da
Medicina do Conselho da Europa preceitua que qualquer pessoa tem direito
ao respeito da sua vida privada no que se refere a informações relacionadas
com a sua saúde, in verbis:

Art. 10 Vida privada e direito à informação


1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
privada no que toca a informações relacionadas com a
sua saúde.
[...]

No que se refere à Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos


Humanos da Unesco, esta prescreve que a coleta de dados genéticos somente
deverá ocorrer nas hipóteses previstas no direito interno e em conformidade
com o direito internacional relativo aos direitos humanos, bem como o respeito
à privacidade e à intimidade das pessoas que tiverem seus dados genéticos
cadastrados, senão vejamos:

Art. 12 Recolha de amostras biológicas para fins de medi-


cina legal ou de processos civis ou penais ou outras ações
legais
Quando são recolhidos dados genéticos humanos ou da-
dos proteómicos humanos para fins de medicina legal
ou de processos civis ou penais ou outras ações legais,
incluindo testes de paternidade, a colheita de amostras
biológicas in vivo ou post mortem só deverá ter lugar
nas condições previstas pelo direito interno, em confor-
midade com o direito internacional relativo aos direitos
humanos.
Art. 14 Vida privada e confidencialidade
a) Os Estados deverão desenvolver esforços no sentido
180
Diálogos sobre direito e justiça

de proteger, nas condições previstas pelo direito interno


em conformidade com o direito internacional relativo aos
direitos humanos, a vida privada dos indivíduos e a con-
fidencialidade dos dados genéticos humanos associados a
uma pessoa, uma família ou, se for caso disso, um grupo
identificável.
b) Os dados genéticos humanos, os dados proteómicos
humanos e as amostras biológicas associados a uma pes-
soa identificável não deverão ser comunicados nem tor-
nados acessíveis a terceiros, em particular empregadores,
companhias de seguros, estabelecimentos de ensino ou
família, se não for por um motivo de interesse público
importante nos casos restritivamente previstos pelo di-
reito interno em conformidade com o direito internacio-
nal relativo aos direitos humanos, ou ainda sob reserva
de consentimento prévio, livre, informado e expresso da
pessoa em causa, na condição de tal consentimento estar
em conformidade com o direito interno e com o direito
internacional relativo aos direitos humanos. A vida priva-
da de um indivíduo que participa num estudo em que são
utilizados dados genéticos humanos, dados proteómicos
humanos ou amostras biológicas deverá ser protegida e
os dados tratados como confidenciais.

Na visão de Schiocchet et al. (2012) quando se propõe uma pesquisa


acerca da criação de bancos de dados genéticos, torna-se necessária a
discussão sobre os limites que a Constituição Federal pode apresentar
no sentido de proteção aos bens jurídicos fundamentais que esta norma
protege. Entretanto, o que se tem observado na prática legislativa é o recurso
constante às finalidades de política criminal, principalmente no que se refere
à persecução criminal, para relativizar direitos e garantias fundamentais em
nome da observância e atendimento ao direito da coletividade à segurança.
Busca-se o instrumento imediatista e simbólico da lei penal como solução para
os problemas de segurança pública e para os déficits do aparato do Estado no
combate à criminalidade.

5 CONCLUSÃO

Com o desenvolvimento do presente estudo, concluiu-se que os direitos


à privacidade e à intimidade, previstos no art. 5º, inciso X, da Constituição da
181
Eduardo Augusto Coeli, Ricardo José Nodari

República Federativa do Brasil de 1988 pertencem à categoria dos direitos da


personalidade.
Os direitos da personalidade são direitos conferidos à pessoa humana para a
defesa de valores inatos dela, como a vida, a intimidade, a honra, a intelectualidade e
diversos outros. São direitos considerados como inatos, absolutos, extrapatrimoniais,
intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis e vitalícios.
No que se refere aos direitos à intimidade e à privacidade, estes estão
elencados como direitos fundamentais pela CRFB/88, considerando-se o
fato de estarem inseridos no título “Dos direitos e garantias fundamentais”,
ademais, trazem em seu bojo conteúdo claramente de direito fundamental.
Sobre o tema da identificação criminal, tem-se que a Constituição Federal,
no art. 5º, LVIII, preceituou que o civilmente identificado não será submetido à
identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei, sendo considerada,
portanto, como uma norma formalmente tida como direito fundamental.
Com o advento da Lei n. 12.654/2012, promoveu-se alterações na Lei de
Identificação Criminal, permitindo-se a coleta de perfil genético como forma
de identificação criminal. A identificação genética criminal pode ser entendida
como a individualização física do indiciado, para que não se confunda com
outra pessoa, por meio da captação de material biológico para exame de DNA.
Com o surgimento dessa Lei, teve origem uma discussão doutrinária
acerca da violação dos direitos à intimidade e à privacidade do identificado ao
se promover a identificação criminal por meio dessa nova modalidade.
Não se pode negar a importância da criação do instituto em debate,
que pode auxiliar a administração da justiça, permitindo a identificação de
pessoas de forma segura e confiável por meio de uma amostra de material
genético que será armazenado em um banco de dados de caráter sigiloso, que
não poderá revelar traços somáticos do indivíduo.
Para os defensores da criação dos bancos de dados, a sua utilização
permite grandes avanços na investigação de crimes, sobretudo nos de caráter
sexual, em razão da grande taxa de reincidência, bem como pelos bons
resultados obtidos no esclarecimento desse tipo de crime nos países que
introduziram os bancos de dados de DNA.
No mais, os direitos à privacidade e à intimidade, como quaisquer
outros direitos, não são absolutos, podendo sofrer limitações quando entrarem
em conflito com outros direitos relevantes, que se mostrem ser de interesse
coletivo, como: segurança pública, investigação criminal e boa administração
182
Diálogos sobre direito e justiça

da justiça. Portanto, no caso concreto, os direitos à intimidade e à privacidade


podem ser relativizados em favor de outros interesses.
No entanto, sempre se deve ter em conta a ponderação de direitos,
analisando-se no caso concreto qual direito deve se sobrepor em determinado
caso e como esse direito vai ser relativizado.
Não se pode olvidar que se percebe nesse assunto um predomínio do
interesse público na persecução penal sobre os direitos e garantias fundamentais
do identificado.
Ademais, a Lei n. 12.654/2012 é clara ao dispor que as informações
genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar
traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética
de gênero, inclusive, respeitando as normas constitucionais e internacionais
sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.  Ainda, que os
dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso,
respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou
promover sua utilização para fins diversos dos previstos na lei ou em decisão
judicial.
Referente a normas internacionais, a Declaração Internacional sobre os
Dados Genéticos Humanos da Unesco também prescreve sobre a privacidade
dos dados genéticos.
Dessa forma, percebe-se que houve uma preocupação do legislador
com o respeito da privacidade das pessoas, pois quem tem seu perfil genético
armazenado no banco, terá garantido que as informações armazenadas serão
sigilosas e que não poderão revelar traços somáticos.
Considerando-se que a Lei n. 12.654/12 e o Decreto n. 7.950/13 tratam-
se de normas jurídicas novas, sendo até o momento raras as manifestações
doutrinárias sobre o tema, e não existindo, ainda, julgados relativos ao assunto,
caberá aos tribunais se manifestarem sobre a constitucionalidade ou não dessas
normas.

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186
DIREITO AO ESQUECIMENTO:
CONFLITO ENTRE OS DIREITOS DA
PERSONALIDADE E A LIBERDADE DE
IMPRENSA

Suelen Borssatti*
Jorge Eduardo Hoffmann**

Resumo: Este artigo trata sobre os conflitos existentes entre os direitos da personalidade e a
liberdade de imprensa diante da tentativa de aplicação da teoria do direito ao esquecimento.
O fato de ambos serem considerados como direitos fundamentais torna a resolução do im-
passe mais difícil, motivo porque os tribunais, especificamente o Superior Tribunal de Justiça
(STJ), têm entendido que a melhor forma de resolução do conflito existente entre ambos os
direitos ocorre mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, devendo-se sopesar
cada caso concreto, de modo a vislumbrar com maior clareza qual dos direitos deve prevale-
cer. Em vista disso, este artigo visou apresentar esse impasse e sua forma de resolução.
Palavras-chave: Direitos da personalidade. Liberdade de imprensa. Direito ao esque-
cimento. Princípio da proporcionalidade.

Right to oblivion: conflict between the rights of personality and the liberty of press

Abstract: This article discusses the conflicts between personality rights and freedom of
the press in face of the attempt to apply the theory of right to oblivion. The fact that they
are both considered as fundamental rights makes the resolution more difficult, reason
why the courts, specifically the Supreme Court, have understood that the best way to
resolve the existing conflict between the two rights is through the application of the prin-
ciple of proportionality, having to weigh each case so as to discern more clearly which
rights should prevail. Given that, this article aims to present this deadlock and a way of
its resolution.
Keywords: Personality rights. Freedom of the press. Right to oblivion. Principle of pro-
portionality.
__________________________________________
*
Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina de Joaçaba;
sborssatti@gmail.com
**
Promotor de Justiça do Estado de Santa Catarina; Professor do Curso de Direito da
Universidade do Oeste de Santa Catarina de Joaçaba; jorge.hoffmann@unoesc.edu.br
187
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

1 INTRODUÇÃO

Embora a exposição da vida das pessoas seja algo comum na atualidade,


decorrente dos diversos dispositivos de áudio e vídeo existentes no mercado
e da liberdade de imprensa e expressão, há situações nas quais o indivíduo
necessita que sua individualidade, sua privacidade, sua vida privada, sejam
postas em primeiro plano, a fim de que fatos íntimos ou que somente a poucos
interessem, não virem matéria jornalística.
Tais fatos, como o rompimento de um relacionamento ou mesmo,
e mais grave, o envolvimento de alguém com o cometimento de um crime,
em determinadas situações não podem e não devem ser do conhecimento de
todos, visto que o abalo e o sofrimento havido por parte dos envolvidos em tais
situações podem se tornar ainda maiores na hipótese de um alarde nacional.
É em razão disso que surgiu a tese, já bastante aclamada no exterior,
do direito ao esquecimento que, como um dos direitos da personalidade, vem
para ocultar do conhecimento do grande público situações já superadas pelos
envolvidos, e que por já não possuírem relevante valor para a sociedade devem ser
esquecidas em prol da ressocialização e da readaptação daqueles à vida normal.
De outro lado, há também o direito da população, em geral, de ter
conhecimento sobre os fatos notórios e relevantes que acontecem no país e
no mundo, visto também se tratar o direito à livre imprensa de um direito
constitucional, que não deve e não pode ser suprimido por qualquer razão,
sob pena de se propiciar a ocorrência da censura, expressamente vedada pelo
ordenamento pátrio.
É acerca desse conflito entre direitos fundamentais que trata a presente
pesquisa, que tem por fim analisar em quais situações poderá ser aplicado o
direito ao esquecimento em detrimento do direito de todos à liberdade de
imprensa, em prol dos direitos da personalidade.

2 DIREITOS DA PERSONALIDADE: CONCEITO

O homem, por definição, é titular de diversos direitos subjetivos, sendo


eles destacáveis ou não da pessoa de seu titular.
Entre os destacáveis, de acordo com Rodrigues (2007, p. 61), “[...]
encontram-se a propriedade ou o crédito contra um devedor [...]; ao contrário,

188
Diálogos sobre direito e justiça

outros direitos há que são inerentes à pessoa humana e, portanto, a ela ligados
de maneira perpétua e permanente.”
No que se refere aos direitos mencionados pelo doutrinador
anteriormente citado, verificam-se o direito à vida, à liberdade física e
intelectual, ao nome, ao corpo, à imagem e também àquilo que o indivíduo crê
ser sua honra.
Para a parte da doutrina, conforme De Cupis e Tobeñas (apud BITTAR,
2003, p. 6, grifo do autor), os direitos da personalidade “[...] têm função especial em
relação à personalidade, constituindo um minimun necessário e imprescindível
ao seu conteúdo, constituindo direitos cuja ausência torna a personalidade uma
suscetibilidade completamente irrealizável, sem valor concreto.”
Segundo Venosa (2011, p. 171-172),

[...] os direitos da personalidade são os que resguardam a


dignidade humana, de modo que ninguém pode, por ato
voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar à sua li-
berdade, ceder seu nome de registro para a utilização por
outrem, ou mesmo, já no direito de família, renunciar ao
direito de receber alimentos.

À vista de tal imprescindibilidade, visto que ínsitos à própria natureza


do homem, é que se verificam como “[...] direitos inatos (originários),
absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis,
vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes.” (BITTAR, 2003, p. 11, grifo do
autor), sendo intangíveis pelo Estado ou por particulares, conforme dispõe o
art. 11 do Código Civil de 2002.
Conforme referido anteriormente, tratam-se os direitos da personalidade
de direitos subjetivos, visto que a sua proteção não é obrigatória pelo indivíduo,
mas uma faculdade concedida pela norma para que, em sendo ofendida, possa a
vítima exercer o seu direito, previsto em lei, para a sua defesa, em que pese haja
situações, conforme as já citadas, nas quais não se pode deles dispor.
Acerca do tema, De Cupis (1961 apud MAZUR, 2012, p. 33) aduz que:

Os direitos da personalidade constituem uma categoria


autônoma no sistema dos direitos subjetivos, que deriva
do caráter de essencialidade, da configuração particular
do objeto e do caráter especial de sua fisionomia. Só nas
mais vastas categorias de direitos subjetivos (direitos pri-
189
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

vados, não patrimoniais, absolutos) podemos integrar os


direitos da personalidade.

O Direito Subjetivo representa de um lado um poder de vontade e de


outro implica no dever jurídico de respeitar aquele poder por parte dos outros.
Ao se dizer que se tem um direito sobre a vida, saúde, corpo, liberdade, honra,
etc., está-se afirmando um poder de vontade sobre essa vida, corpo, saúde, etc.,
e cujo respeito se impõe aos outros (ZEA, 1974 apud MATTIA, 1977, p. 253).
Normalmente, conforme aduz Venosa (2011, p. 171), os direitos da
personalidade decompõem-se em direito à vida, à própria imagem, ao nome
e à privacidade; o próprio Código Civil de 2002 limitou-se a tratar apenas de
cinco desses direitos (ao corpo, à honra, ao nome, à imagem e à privacidade).
Apesar de não ter tido a codificação civil, o “[...] cuidado de ressalvar a
existência de outros tantos direitos além daqueles que contempla em seus arts.
11 a 21, essa omissão não impede que outras manifestações da personalidade
humana sejam consideradas merecedoras de tutela, por força da aplicação
direta do art. 1º, III da CF/88.” (SCHREIBER, 2013, p. 15).
Tal ressalva traz à tona a necessidade de distinguir, ademais, os direitos
da personalidade dos direitos e garantias fundamentais, bem como dos direitos
humanos.
De acordo com Schreiber (2013, p. 13, grifo do autor):

Todas essas diferentes designações destinam-se a con-


templar atributos da personalidade humana merecedoras
de proteção jurídica. O que muda é tão somente o pla-
no em que a personalidade humana se manifesta. Assim,
a expressão direitos humanos é mais utilizada no plano
internacional, independentemente, portanto, do modo
como cada Estado nacional regula a matéria. Direitos fun-
damentais, por sua vez, é o termo normalmente emprega-
do para tratar da proteção da pessoa humana no campo
do direito público, em face da atuação do poder estatal.
Já a expressão direitos da personalidade é empregada na
alusão aos atributos humanos que exigem especial prote-
ção no campo das relações privadas, ou seja, na interação
entre particulares, sem embargo de encontrarem também
fundamento constitucional e proteção nos planos nacio-
nal e internacional.

190
Diálogos sobre direito e justiça

Ou seja, em que pese haja diferentes denominações, “[...] o valor


tutelado é unitário: a dignidade humana.” (SCHREIBER, 2013, p. 13).
Interessante notar, nesse sentido, que a maior parte dos direitos da
personalidade mencionados pelo Código Civil brasileiro (imagem, honra,
privacidade) encontra previsão expressa no art. 5º do texto constitucional.
Mesmo os que não contam com previsão explícita nesse dispositivo são sempre
referidos como consectários da dignidade humana, protegida no art. 1º, III da
Constituição. Os direitos da personalidade são, portanto, direitos fundamentais
(SCHREIBER, 2013, p. 14), mas que, apesar disso, não são absolutos, podendo
ter de serem sobrepostos em determinadas situações, pelo direito do povo à
liberdade de imprensa, também direito fundamental.

3 LIBERDADE DE IMPRENSA

Para Hungria (1953 apud GODOY, 2001, p. 61), liberdade de imprensa


é conceituada como “[...] o direito da livre manifestação do pensamento pela
imprensa”, assegurando-lhe o direito à veiculação de informações por seus órgãos.
Atualmente, concebe-se a liberdade de imprensa como “[...] o exercício
da liberdade de expressão de maneira pública e mediante qualquer meio
técnico de comunicação social.” (VIEIRA, 2003, p. 32).1
Contudo, diante da gama de interpretações possibilitada pelo
constituinte em razão da redação do art. 5º, incisos IV, IX e XIV e do art. 220
da CF/88, é que são diversos os doutrinadores que entendem ser a liberdade
de imprensa uma das manifestações da liberdade de expressão, entendendo
ser este um gênero do qual decorrem todas as demais liberdades, como a de
manifestação do pensamento, de expressão artística, de ensino e pesquisa, de
comunicação e informação (liberdade de imprensa) e de expressão religiosa
(MITIDIERO; MARINONI; SARLET, 2012, p. 441).
Esse também é o entendimento de Germano (2012, p. 37), para quem
a liberdade de imprensa decorre de um direito maior, denominado liberdade
de expressão, que por ser mais ampla, abrange a liberdade em todos os seus
meios e formas, em que pese seja a liberdade de imprensa mais antiga que a de
1
A imprensa, hoje, não mais significa a arte da impressão, como outrora, derivando o
termo da prensa, ou seja, máquina de imprimir, descoberta por Gutenberg, no ano de
1436. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação social, imprensa é sinônimo
de informação, jornalismo, rádio, televisão e qualquer outro meio técnico difusor de
pensamentos, opiniões e ideias (VIEIRA, 2003, p. 32).
191
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

expressão e informação, tendo sido aquela a propiciar o desenvolvimento das


teorias sobre os meios de comunicação.
Assim, o dispositivo constitucional ao qual cumpre o resguardo de tal
liberdade é o art. 220 da Constituição Federal de 1988, também atribuído à
liberdade de expressão, diante da confusão havida entre ambas.
De acordo com Vieira (2003, p. 35),

[...] a liberdade de imprensa, como manifestação das li-


berdades de expressão e informação, recebeu do ideário
iluminista uma dimensão autônoma do livre desenvolvi-
mento da personalidade, como uma liberdade da pessoa,
sistematicamente reportada ao homem ou ao cidadão.

Tal ideal de liberdade acabou culminando com a Declaração de Direitos


de Virgínia de 1776, cujo texto, pela primeira vez na história, reconheceu a
liberdade de imprensa como um direito humano. Dispunha o art. 12 de tal
declaração que “A liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da
liberdade e não pode ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos.”
(VIEIRA, 2003, p. 35).
Pouco tempo depois, na França, também se proclamou acerca da
liberdade de imprensa, dessa vez por meio da Declaração dos Direitos do
Homem e dos Cidadãos, que em seu art. 11 dispôs:

Art. 11. A livre comunicação dos pensamentos e das opi-


niões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo
cidadão pode, portanto, falar, escrever e imprimir livre-
mente, salvo a responsabilidade que o abuso desta liber-
dade produza nos casos determinados por lei.

Já no ano 1791, a Emenda número 1 da Declaração de Direitos dos Estados


Unidos passou a contemplar o seguinte (VIEIRA, 2003, p. 35, grifo nosso):

Emenda 1. O Congresso não fará lei alguma referente


à implantação de uma religião ou proibindo o culto de
qualquer uma delas; nem lei que restrinja a liberdade de
palavra, ou de imprensa; nem o direito do povo de reu-
nir-se pacificamente; nem o de dirigir-se ao governo em
demandas para a reparação de situações consideradas in-
justas.
192
Diálogos sobre direito e justiça

Com o passar dos anos, a liberdade de expressão superou a sua


aplicação meramente individual para se tornar um direito de todos, um direito
fundamental sem o qual não há democracia. Nesse sentido é o entendimento
de Farias (2000 apud BARROSO, 2007, p. 82):

Se a liberdade de expressão e informação, nos seus pri-


mórdios, estava ligada à dimensão individualista da ma-
nifestação livre do pensamento e da opinião, viabilizando
a crítica política contra o ancien régime, a evolução da-
quela liberdade operada pelo direito/dever à informação,
especialmente com o reconhecimento do direito ao pú-
blico de estar suficientemente e corretamente informado;
àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma
outra dimensão de natureza coletiva: a de que a liberdade
de expressão e informação contribui para a formação da
opinião pública pluralista – esta cada vez mais essencial
para o funcionamento dos regimes democráticos, a des-
peito dos anátemas eventualmente dirigidos contra a ma-
nipulação da opinião pública.

Em 1948, proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos do


Homem e do Cidadão de 1948, que em seu art. 19 também dispôs acerca das
liberdades de opinião, informação e expressão.
Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada
em 22 de novembro de 1969, em São José da Costa Rica, prelecionou em seu
art. 13 disposições acerca da liberdade de pensamento e de expressão (VIEIRA,
2003, p. 37).
Ou seja, durante toda a história moderna, foram muitos os documentos
editados a fim de resguardar o direito da população mundial à liberdade de
expressão, opinião, informação e imprensa, muitos deles na forma de tratados
internacionais (como no caso do Pacto de San José da Costa Rica), os quais, ao
serem recepcionados pela Constituição brasileira, recebem também o caráter
de direitos fundamentais.2
Desse modo, buscou-se proteger o direito, então fundamental, da
coletividade de ter uma imprensa livre, a fim de que se pudesse expressar
ideias, informações e opiniões sem que houvesse censura por qualquer meio.
2
Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais,
mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico
de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos
fundamentais previstos no texto da Carta Magna (VIEIRA, 2003, p. 41). 193
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

Assim, também, conforme será visto adiante, foi o que pretendeu o


constituinte brasileiro, ao disciplinar a norma constante no art. 220 da Carta
Magna brasileira, quando dispôs acerca da impossibilidade de censura à
liberdade de pensamento, expressão e opinião.
Com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988,
voltaram a viger integralmente os direitos e as garantias fundamentais que nos
anos anteriores somente se ouvira falar, mas cuja aplicabilidade era nula. Entre
tais direitos encontram-se o direito à liberdade de expressão, informação,
pensamento e imprensa, todos presentes no bojo da Carta Magna de 1988,
em seus incisos IV, IX e XIV do art. 5º e art. 220, parágrafos 1º e 2º,3 embora
nem todos estejam expressamente citados, visto que em algumas situações são
suprimidas as distinções, englobando todos os conceitos em apenas um.
Atualmente vige a ideia de reparação civil pelos danos cometidos em
detrimento do direito de outrem, conforme disposto no art. 927 do Código
Civil de 2002, “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Diante disso, aquele que atingir à integridade moral, à honra ou à
imagem de outrem, responsabilizar-se-á pelos danos causados na esfera cível,
por meio de seu patrimônio, não havendo qualquer imputação na esfera penal.
No que se refere à Lei n. 5.250/67 (lei de imprensa), após o
julgamento pelo STF da ADPF 130, declarou-se ser aquela incompatível com
o atual ordenamento constitucional do país, restando, pois, desprovida de
aplicabilidade.
Ou seja, inexiste, na atualidade, norma disciplinando a atividade
da imprensa brasileira, razão porque se verifica uma maior liberdade de
3
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o
disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade
de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o
disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
(BRASIL, 1988).
194
Diálogos sobre direito e justiça

imprensa no país, bem como de expressão, opinião e informação, o que não


significa, entretanto, que seja ela um direito superior aos demais, visto que
a própria constituição, na redação do art. 5º, X, cuidou de explicitar acerca
da inviolabilidade da vida privada, da intimidade, da imagem e da honra
das pessoas, o que os coloca, os direitos da personalidade e a liberdade de
imprensa, em um mesmo patamar, o de direitos fundamentais.
Assim, embora esteja disposto na Carta Magna acerca da liberdade de
imprensa, expressão e informação, tal direito não é absoluto, já que pode ter de
ser freado quando em confronto com outro de mesma “hierarquia”.

4 DIREITO AO ESQUECIMENTO

As pessoas têm o direito de ser esquecidas pelos meios de comunicação


e pela opinião pública, dizem os defensores da tese que vem sendo chamada de
Direito ao Esquecimento. Os erros do passado não podem ecoar para sempre
em suas vidas, bem como antigas feridas não devem poder ser trazidas à tona
à custa da dor das famílias que perderam os seus.
São estas e muitas outras as razões pelas quais muitos estudiosos e
juristas, principalmente europeus e norte-americanos, defendem o direito que
o indivíduo tem de ser “deixado em paz”,4 de ser esquecido.
No Brasil, embora o direito penal já tivesse previsto em seu art. 93 uma
espécie de direito ao esquecimento, bem como o Código de Processo Penal (art.
748) e a Lei de Execuções Penais (art. 202),5 foi somente após a IV Jornada de
Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, através do Centro
de Estudos Judiciais (CEJ), que se difundiu, em maior grau, a discussão acerca
desse direito.

4
“The right to be alone”, é aquele em que se garante que os dados sobre uma pessoa
somente serão conservados de maneira a permitir a identificação do sujeito a eles
ligado, além de somente poder ser mantido durante o tempo necessário para suas
finalidades (RULLI JÚNIOR; RULLI NETO, 2012, p. 420).
5
CP - Art. 93. A reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva,
assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação.
CPP - Art. 748. A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na
folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo,
salvo quando requisitadas por juiz criminal.
LEP – Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados
ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da justiça, qualquer
notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova
infração penal ou outros casos expressos em lei.
195
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

Na última jornada, ocorrida entre os dias 11 e 12 de março de 2013,


aprovou-se, entre diversos outros, o enunciado n. 531, o qual dispôs acerca
do direito ao esquecimento no âmbito cível, elencando-o entre os direitos
da personalidade, dizendo que “A tutela da dignidade da pessoa humana na
sociedade de informação inclui o direito ao esquecimento.”
Tal enunciado faz referência aos direitos da personalidade em contraponto
ao direito de informação, estabelecendo o direito do indivíduo de não ser
eternamente lembrado pelos equívocos do passado ou situações constrangedoras
que tenha vivenciado. Em sua justificativa, dispõe o enunciado que:

Os danos provocados pelas novas tecnologias de infor-


mação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao
esquecimento tem sua origem histórica no campo das
condenações criminais. Surge como parcela importante
do direito do ex detento à ressocialização. Não atribui a
ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria
história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir
o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamen-
te o modo e a finalidade com que são lembrados.

Embora muito celebrada e discutida no exterior, no Brasil, a tese do


Direito ao Esquecimento somente tomou corpo há pouco mais de uma década,
em razão da massificação dos meios de comunicação e fontes de notícia, os
quais ocasionaram o que vem sendo chamado de “superinformacionismo”,
que resultou na necessidade urgente de defesa da honra, da imagem e da vida
privada dos indivíduos.
O que o chamado direito ao esquecimento resguarda é o uso que é
dado a determinadas informações, não significando, contudo, a sua exclusão
completa, mas, quando a pedido do interessado, a proibição de veiculação de
uma imagem, dado ou notícia já semiesquecida e que não possua qualquer
relevante interesse à coletividade, considerando que a própria justificativa do
enunciado 531 se pauta na impossibilidade de alteração da história, ainda que
do próprio indivíduo.

196
Diálogos sobre direito e justiça

5 O ESPAÇO DE APLICAÇÃO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO

Segundo disposição contida no código penal brasileiro, em seu art.


93, caput, “[...] a reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença
definitiva, assegurando ao condenado o sigilo sobre seu processo e condenação.”
Como mencionado anteriormente, tal disposição encontra-se
verificada na legislação penal e processual penal (arts. 93 do CP, 748 do CPP
e 202 da LEP).
Contudo, em que pese haja respaldo legislativo e jurisprudencial para
assegurar tal direito aos ex-condenados, tal previsão é inexistente na área cível.
No entanto, embora não seja normatizado, visto que o Enunciado
531 é apenas um “enunciado”, não tendo, pois, caráter vinculante e nem
normativo, o direito ao esquecimento na área cível já tem sido encontrado em
julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, como no caso do
recurso especial n. 1.334.097,RJ (2012/0144910-7), impetrado pela recorrente
Globo Comunicações e Participações S/A contra decisão proferida no Ag. n.
1.306.644,RS, considerando-se a mantença da sentença de primeiro grau que
condenou o recorrente ao pagamento de indenização por danos morais ao
Recorrido Jurandir Gomes de França.
De acordo com o relatório feito pelo Ministro Relator do REsp., Luis
Felipe Salomão, o autor (ora recorrido):

Informou ter sido indiciado como coautor/partícipe da


sequência de homicídios ocorridos em 23 de julho de
1993, na cidade do Rio de Janeiro, conhecidos como Cha-
cina da Candelária , mas que, ao final, submetido a Júri,
foi absolvido por negativa de autoria pela unanimidade
dos membros do Conselho de Sentença.
Noticiou que a ré o procurou com o intuito de entrevistá-
-lo em programa televisivo (Linha Direta – Justiça) – pos-
teriormente veiculado –, tendo sido recusada a realização
da referida entrevista e mencionado o desinteresse do au-
tor em ter sua imagem apresentada em rede nacional. Po-
rém, em junho de 2006, foi ao ar o programa, tendo sido o
autor apontado como um dos envolvidos na chacina, mas
que fora absolvido.
Segundo entende, levou-se a público situação que já ha-
via superado, reacendendo na comunidade onde reside a
imagem de chacinador e o ódio social, ferindo, assim, seu
197
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

direito à paz, anonimato e privacidade pessoal, com pre-


juízos diretos também a seus familiares. Alega que essa
situação o prejudicou sobremaneira em sua vida profis-
sional, não tendo mais conseguido emprego, além de ter
sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e aban-
donar a comunidade para não ser morto por “justiceiros”
e traficantes e também para proteger a segurança de seus
familiares.

Vislumbra-se que no caso em tela não houve relevante interesse público


que exigisse a divulgação do nome e imagem do autor da ação, já que não se
tratavam de fatos recentes, posto que ocorridos há duas décadas.
O sacrifício da liberdade de imprensa, pelo fato de omitir-se o nome
completo do autor quando da veiculação da reportagem teria sido justificado,
nesse caso específico, em prol da proteção de sua imagem e da possibilidade e
seu direito de ressocialização.6
Não significa, contudo, que não se deva dar publicidade a fatos tão
marcantes como o nefasto episódio da Chacina da Candelária, visto que a
6
[...] 2. Conquanto inegável seja o interesse público na discussão aberta de fatos
históricos pertencentes à memória coletiva, e de todos os pormenores a ele
relacionados, é por outro lado contestável a necessidade de revelarem-se nome
completo e imagem de pessoa envolvida, involuntariamente, em episódio tão funesto,
se esses dados já não mais constituem novidade jornalística nem acrescem substância
ao teor da matéria vocacionada a revisitar fatos ocorridos há mais de década. Não é
leviano asseverar que, atendido fosse o clamor do autor de não ter revelados o nome
e a imagem, o distinto público não estaria menos bem informado sobre a Chacina
da Candelária e o desarranjado inquérito policial que lhe sucedeu, formando uma
vergonha nacional à parte. 3. Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para
solver conflito (aparente) de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a
proteger o interesse privado do veículo de comunicação voltado ao lucro, e o interesse
público dos destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da intimidade, da imagem
e da vida privada. A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um
pseudônimo (como se faz, em observância a nosso ordenamento, para proteção de
menores infratores) consistiria em sacrifício mínimo à liberdade de expressão, em
favor de um outro direito fundamental que, no caso concreto, merecia maior atenção
e preponderância. 4. Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem
assim do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram a doutrina e a
jurisprudência de diversos países, como uma sua derivação, o chamado “direito ao
esquecimento”, também chamado pelos norte-americanos de “direito de ser deixado
em paz”. Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez- se a bem da
ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados ou em
vias de o serem. Se o direito ao esquecimento beneficia os que já pagaram por crimes
que de fato cometeram, com maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes,
involuntariamente tragados por um furacão de eventos nefastos para sua vida pessoal,
e que não se convém revolver depois que, com esforço, a vítima logra reconstruir sua
vida. (BRASIL, 2013b).
198
Diálogos sobre direito e justiça

liberdade de imprensa, como explicitado no capítulo anterior, é fundamental


à democracia, impedindo a alienação da população e permitindo a livre
manifestação do pensamento e, assim, a evolução social.
Ocorre que após a condenação, e mesmo quando da absolvição do
acusado, ou quando condenado, do efetivo cumprimento integral da pena a ele
impingida, não há mais tanta relevância social na publicação de notícia sobre
o fato como na época em que ocorreu, quanto mais quando já tiver passado
tanto tempo, como no presente caso, da época da ocorrência do crime.
Na época dos fatos, por óbvio, os nomes de todos os suspeitos,
indiciados e acusados, foram revelados na imprensa, considerando-se a
relevância da informação para a população. Contudo, passados mais de 20
anos (fato ocorrido em 23 de julho de 1993), não mais se vislumbra o mesmo
impacto da notícia na sociedade, embora tenha sido algo tenebroso, um ato
covarde e tremendamente repreensível, todos os acusados já foram julgados
pela justiça, tendo cumprido sua pena ou não, não podem tornar a ser julgados
pelos meios de comunicação, e tampouco por seus pares na sociedade, dado
que a própria Constituição do Estado brasileiro, em seu art. 5º, XLVII, b, dispõe
acerca da proibição de penas de caráter perpétuo.7
É recorrente no meio acadêmico a publicação de artigos nos quais se
critica a tese do direito ao esquecimento, em razão de que os autores contrários
a sua aplicação tendem a bradar acerca da supressão da liberdade de um direito
coletivo, que é o da livre imprensa, em prol de um direito individual (proteção
da honra, imagem e vida privada), quando da sua ocorrência.
Afirmam que, com a possibilidade, por meio de sua aplicação, de
impedimento de veiculação de notícias sobre uma pessoa ou grupo específico,
estar-se-ia também apagando a história, cujo conhecimento é direito de toda
a coletividade.
Nesse sentido é que dispõe Alceu (apud CANÁRIO, 2013):

Estariam os jornais, por força do enunciado “anistiador”,


absurdamente compelidos a apagar reportagens e edito-
riais? As academias e as universidades estariam obrigadas
7
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XLVII - não haverá penas:
[...]
b) de caráter perpétuo; (BRASIL, 1988). 199
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

a “passar a borracha” em tudo quanto, em aulas ou semi-


nários, registraram sobre as pessoas públicas e seus atos,
nada importando se bons ou maus? “Esqueceríamos” de
tudo sob o impertinente pretexto de assim defender a
“dignidade da pessoa humana”? Nas escolas e nas facul-
dades, relegaríamos ao ostracismo as perversidades dos
Hitlers e Stalins? Também deles deveríamos esquecer?

Contudo, o que o direito ao esquecimento pretende, e isso também


ficou bem claro no acórdão proferido pelo Ministro Luis Felipe Salomão
quando da redação de seu voto no recurso especial em análise, é apenas evitar a
exposição desnecessária do indivíduo quando não estiver, àquela, estritamente
vinculada ao fato que se pretende relatar.8
Nesse sentido é o entendimento de Bucar (2013, p. 12):

A tutela de dados passados da pessoa, neste ponto, não


significa revisionamento histórico, como bradam os críti-
cos do controle temporal. Na realidade – e paradoxalmente
–, uma proteção nesta direção significa justamente apri-
morar uma verdade histórica (se é que existe), com o apon-
tamento e depuração dos partícipes relevantes, de forma
que o fato, na medida do possível, seja atualizado dentro
8
Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela
se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes de revelar, para
o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época. Todavia, a
historicidade da notícia jornalística, em se tratando de jornalismo policial, há de ser
vista com cautela. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos; mas também
há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra da
exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos prazeres
primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas
figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. É que a historicidade de determinados
crimes, por vezes, é edificada à custa de vários desvios de legalidade, por isso não
deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o
vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um
crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a
pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso
à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado.
Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar
um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos
policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista
da mídia. É evidente o legítimo interesse público em que seja dada publicidade da
resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante, é imperioso também ressaltar
que o interesse público – além de ser conceito de significação fluida – não coincide com
o interesse do público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração
pública, praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada.
(BRASIL, 2013a).
200
Diálogos sobre direito e justiça

de uma democracia cronológica (isto é, interpretado com


a devida nota de historicidade, mas em tempos diversos).

Para tanto, não é necessário mencionar todos os supostos envolvidos


no fato noticiado à época, os quais ao longo do processo foram dados como
inocentes por tribunal legítimo. Não há razão para que se reabram feridas
que há muito trouxeram tanta dor e mágoa para as pessoas, já que a falta de
menção de seus nomes não alterará em nada a narração do fato ocorrido.
Aliás, como sinal de que o Tribunal Superior não tenciona aplicar a tese
do direito ao esquecimento em detrimento da liberdade de imprensa, bem como
do direito à memória histórica do país, faz-se necessária e relevante a menção do
segundo recurso até então julgado por aquele Tribunal a respeito do tema.
Trata-se do Recurso Especial n. 1.335.153,RJ (2011/0057428-0),9 que
também teve como relator o Ministro Luis Felipe Salomão, em que figurou
como recorrente Nelson Curi e outros e como recorrido outra vez a Globo
Comunicações e Participações S/A.
Os recorrentes, autores de uma Ação de Indenização por Danos
Morais, são os únicos irmãos vivos de Aída Curi, vítima, aos 18 anos, de
um homicídio ocorrido em 1958, perpetrado por um grupo de jovens que
a estupraram e mataram. O crime ficou muito conhecido na época, sendo
noticiado no país inteiro. Contudo, a recorrida, por meio do programa Linha
Direta Justiça, reproduziu o caso em rede nacional, quase 50 anos após a sua
ocorrência, mencionando o fato nos mínimos detalhes, com nomes da vítima
e dos assassinos, bem como veiculando uma foto de Aída.
Em razão da dor vivenciada, à qual tornaram a ser submetidos, os
recorrentes diante da rememoração dos fatos por meio de tantos detalhes, além
da utilização indevida e sem autorização da imagem de Aída, ingressaram com
9
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE
DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO
TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA
. HOMICÍDIO DE REPERCUSSÃO NACIONAL. OCORRIDO NO ANO DE 1958.
CASO “AIDA CURI”. VEICULAÇÃO, MEIO SÉCULO DEPOIS DO FATO, DO
NOME E IMAGEM DA VÍTIMA. NÃO CONSENTIMENTO DOS FAMILIARES.
DIREITO AO ESQUECIMENTO. ACOLHIMENTO. NÃO APLICAÇÃO NO CASO
CONCRETO. RECONHECIMENTO DA HISTORICIDADE DO FATO PELAS
INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESVINCULAÇÃO
DO NOME DA VÍTIMA. ADEMAIS, INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO,
DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IMAGEM.
SÚMULA N. 403/STJ. NÃO INCIDÊNCIA. (BRASIL, 2013).
201
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

a ação de indenização por danos morais contra a recorrida, suscitando como


fundamento a tese do direito ao esquecimento.
Entretanto, apesar das justificativas dos autores da ação, o Juiz da 47ª
Vara Cível da Comarca da Capital/RJ, julgou improcedentes os seus pedidos,
cuja sentença restou mantida pelo Tribunal em grau de apelação.
Após, em sede de julgamento do recurso especial impetrado pelos
recorrentes, foram unânimes os Ministros do Superior Tribunal de Justiça ao
negar-lhe provimento, acompanhando o voto do Ministro relator, considerando
terem concluído não ter havido degradação da imagem ou tratamento
desrespeitoso a sua memória, visto que os fatos lá expostos eram de conhecimento
do grande público, tendo sido amplamente divulgados no passado.
Segundo o relator, Ministro Luis Felipe Salomão, “[...] o trabalho
jornalístico simplesmente reproduziu os acontecimentos da época, com a
máxima fidelidade, inclusive ressaltando o recato, a ingenuidade e a formação
religiosa de Aída Curi.” (RODRIGUES JÚNIOR, 2013).
O que difere o caso Aída Curi daquele também julgado pelo STJ em sede
de recurso especial, que trata acerca da Chacina da Candelária, é o fato de que,
neste último, a falta de menção do nome e fotos do recorrente não mudaria em
nada as informações históricas sobre o feito. Já no caso Aída Curi, contudo, não
há como se mencionar aqueles terríveis fatos sem citar o nome de sua vítima.
Nas palavras do Ministro Relator do acórdão, Luis Felipe Salomão:

Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por


torpeza do destino – frequentemente se torna elemento
indissociável do delito, circunstância que, na generali-
dade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se
pretenda omitir a figura do ofendido. Com efeito, o di-
reito ao esquecimento que ora se reconhece para todos,
ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que
se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que
entrou para o domínio público, de modo que se tornaria
impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de
retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi.

Prossegue o Ministro dizendo que:

É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca


de como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador
202
Diálogos sobre direito e justiça

reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exa-


cerbada exploração midiática, e permitir novamente essa
exploração significaria conformar-se com um segundo
abuso só porque o primeiro já ocorrera. Porém, no caso
em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou
o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se,
portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade
a que podem se sujeitar alguns delitos.

Ou seja, em que pese no retrô mencionado, caso não se tenha dado


efetividade à proteção da imagem da vítima do crime, visto ser aquela
“indissociável” do fato e necessária ao relato histórico, o direito, não somente
o brasileiro, tem amadurecido para uma maior proteção de tais situações,
privilegiando os direitos da personalidade em detrimento da liberdade
de imprensa, quando necessário, para tanto se utilizando do princípio da
proporcionalidade.

6 DA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE OS DIREITOS DA


PERSONALIDADE E A LIBERDADE DE IMPRENSA

Tendo sido alçados os direitos da personalidade à categoria de


direitos fundamentais, vista a sua importância para o exercício da liberdade
do indivíduo, seja ela corpórea ou psicológica, o seu embate com a liberdade
de imprensa, também direito fundamental resguardado pela Constituição
Federal, não é mera colisão de normas.
Em virtude de ambos serem direitos fundamentais, não há como
se falar da existência de hierarquia entre eles, ou mesmo acerca do critério
temporal e de especialização, não havendo, pois, uma solução, em tese, para o
conflito, fornecida abstratamente pelas normas aplicáveis.
Diante disso, quando se fizer necessária a análise de uma situação na
qual ambos estejam em conflito, deverá o intérprete “[...] fazer as valorações
adequadas, de modo a preservar o máximo de cada um dos valores em conflito,
realizando escolhas acerca de qual interesse deverá circunstancialmente
prevalecer.” (BARROSO, 2007, p. 67).
Tal análise é também chamada de ponderação de normas, que para
Souza (2008, p. 125):

203
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

A ponderação consiste na atividade desenvolvida pelo in-


térprete, que, ao se deparar com uma colisão entre prin-
cípios constitucionais, desenvolve uma análise sobre os
valores que inspiram cada um daqueles princípios, pro-
curando identificar, no caso concreto, qual deles possui
mais relevância, dispondo-se a afastar a aplicação do ou-
tro naquele caso, sacrificando-o, entretanto, nos limites
do extremamente necessário e mesmo assim sem extirpá-
-lo do ordenamento, já que continua válido e aplicável a
outras situações.

Prossegue o autor acerca da ponderação, dizendo que:

É a técnica de decisão que, sem perder de vista os aspec-


tos normativos do problema, atribui especial relevância
a suas dimensões fáticas, equacionando-as a partir da
aplicação do critério introduzido pelo princípio da pro-
porcionalidade, atuando em um balanceamento ou pon-
deração racional e proporcionalmente estabelecido, de
forma a possibilitar que o afastamento da aplicação de
um princípio se dê dentro dos limites necessários, não
sacrificando os valores nele inseridos, além daquilo que
seja essencialmente necessário. (SOUZA, 2008, p. 126).

Ainda de acordo com Souza (2008, p. 128):

Para que se atenda à proposta de aplicação do princípio da


proporcionalidade, na solução de colisão entre normas e, em particular,
albergando esta norma um valor essencial que lhe dê a qualidade de princípio
do ordenamento, dever-se-á, a um só tempo, alcançar os fins a que ela se destina,
atuar de forma a que o resultado seja o menos gravoso possível para que se
logrem tais fins, e causar benefícios superiores às desvantagens que proporciona.
Para tanto, deve a relação entre o fim que se pretende alcançar e o meio
utilizado ser adequada, necessária e proporcional, motivo porque a análise do
princípio da proporcionalidade se divide em três subprincípios, sendo eles: o
Princípio da Adequação,

[...] que ordena que se verifique, no caso concreto, se a


decisão normativa restritiva [...] do direito fundamental
oportuniza o alcance da finalidade perseguida. Trata-se
204
Diálogos sobre direito e justiça

de examinar se o meio é apto, útil, idôneo ou apropria-


do para atingir ou promover o fim pretendido. (STEIN-
METZ, 2004, p. 212).

O Princípio da Necessidade

[...] ordena que se examine se, entre os meios de restri-


ção disponíveis e igualmente eficazes para atingir ou pro-
mover o fim pretendido, o escolhido é o menos restritivo
– isto é, menos prejudicial ou gravoso – ao(s) direito(s)
fundamental(is) em questão. (STEINMETZ, 2004, p. 213)

O Princípio da Proporcionalidade em Sentido Estrito, que “[...] ordena


que os meios elegidos devam manter-se em relação razoável com o resultado
perseguido.” (STEINMETZ, 2004, p. 213).
Diante de tal escrutínio a que se deve ater para a obtenção da melhor
solução para o caso concreto é que se entende, juntamente com a doutrina e
jurisprudência, ser a ponderação entre princípios colidentes a melhor forma de
resolução do conflito posto em questão, visto que por meio dela é que se torna
possível proceder à “[...] extirpação dos excessos presentes em cada situação
de colisão, através de um juízo de proporcionalidade.” (SOUZA, 2008, p. 134).
Como visto, sempre caberá ao poder Judiciário, no exercício de sua
função jurisdicional, assumir a tarefa de ponderar, no caso concreto, a partir
da análise do proporcional, até que ponto cada um dos direitos fundamentais em
conflito deve ser realizado e quando deve tal realização ser obstada, de modo a garantir
a efetivação do valor preponderante em cada situação (SOUZA, 2008, p. 139).
Ou seja, a solução do conflito apresentado nesta pesquisa não é fácil,
devendo sofrer pormenorizada análise caso a caso, a fim de que não seja tolhido
o direito à imprensa livre e com ela o direito à informação da população em
situações nas quais, diante da análise do julgador, deva ele prevalecer sobre os
direitos da personalidade de outrem.10

10
Nesse sentido é o entendimento de Souza (2008, p. 127-128), para quem a solução
do conflito terá de ser casuística, pois estará condicionada pelo modo com que se
apresentarem os valores em disputa, e pelas alternativas pragmáticas viáveis para
o equacionamento do problema, razões tais que demonstrem que a ponderação de
valores não pode ser controlada exclusivamente mediante o uso de critérios de lógica
formal, já que o que impera nesse domínio é a “lógica do proporcional”.
205
Suelen Borssati, Jorge Eduardo Hoffmann

7 CONCLUSÃO

Com a evolução dos meios de comunicação, o advento da internet e o


fim da Ditadura Militar no Brasil, tornou-se simplesmente impensável a ideia
de supressão da liberdade de imprensa, tão cara ao povo na atualidade.
No entanto, conforme visto no decorrer desta pesquisa, há momentos
em que impera a necessidade de maior amparo e força aos direitos da
personalidade, como honra e vida privada, a fim de que não sejam gerados
danos de grande monta à vida das pessoas envolvidas em situações cujos fatos
tenham sido motivo de notícia no passado em razão das circunstâncias nas
quais tenham ocorrido.
Assim, ao ser posta a questão ao judiciário acerca de qual dos direitos
deve prevalecer, se o direito fundamental do indivíduo de ter guarnecida a sua
vida privada, a sua imagem ou honra ou o direito fundamental da coletividade à
liberdade de imprensa, a sociedade exige que lhe seja dada uma resposta coerente.
Ambos são de importância imensurável, que aumenta ainda mais a
depender do fato que se esteja analisando.
Entretanto, em virtude de se tratarem de direitos fundamentais,
possuidores de mesma hierarquia e mesmo valor axiológico, é que têm de ser
sopesados de acordo com o caso concreto mediante a ponderação, utilizando-
se, portanto, do princípio da proporcionalidade.
Tal análise, em virtude de não estar explicitada em nenhuma norma
posta, deverá passar pelo crivo do julgador, a quem caberá decidir, diante
de cada situação, qual direito que, ao ser aplicado, causará o menor dano e o
maior benefício às partes envolvidas, devendo o magistrado aplicar o direito
das partes ao esquecimento sempre que entender que o direito à liberdade de
imprensa for de menor relevância para a sociedade do que o direito daqueles
ao resguardo da vida privada, do sossego e do esquecimento.
A partir das fontes bibliográficas utilizadas, não foi possível a verificação
de outra forma de resolução do conflito tema desta pesquisa que não fosse a
proporcionalidade, visto que principalmente as decisões da jurisprudência a
tem como fonte única de resolução do conflito entre direitos fundamentais.

206
Diálogos sobre direito e justiça

REFERÊNCIAS

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DIREITO DE AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO
DE PATERNIDADE: A PROBLEMÁTICA
DA (NÃO) SUBMISSÃO COERCITIVA AO
EXAME DE DNA
Mariana Letícia Bazzi Meneghini1
Fabiane Christofoli 2

Resumo: O presente trabalho trata a respeito da problemática da (não) submissão


coercitiva ao exame de DNA nas Ações de Investigação de Paternidade, bem como da
importância que o referido exame tem para a solução justa e verdadeira da demanda.
Pesquisou-se, mediante pesquisa teórica, qualitativa, explicativa e fontes bibliográfi-
cas, os principais direitos do autor e do réu que acabam entrando em colisão. Além
disso, analisou-se a ocorrência da preponderância de um ditame constitucional sobre
outro, restando saber, por meio do princípio da proporcionalidade, qual deve se sobre-
por ao outro. Por meio desse princípio se chegará à solução da problemática envolvida,
em que o direito do filho de ter reconhecida sua paternidade biológica deve prevalecer
sobre os direitos levantados em defesa do suposto pai que se nega a realizar o exame
de DNA.
Palavras-chave: Investigação de paternidade. Exame de DNA. Princípios e sopesa-
mento de valores constitucionais.

1 INTRODUÇÃO

Os litígios que envolvem direito de família são objetos de inúmeras


discussões, considerando-se a relevância que possuem na sociedade e é cediço
que sempre que determinado tema envolva interesse público em conflito com
um direito individual ele estará em pauta na esfera jurídica.
Como todo o filho tem direito de conhecer sua verdadeira identidade
genética, sempre que privado do direito de saber sua real paternidade por não
*
Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; mariana_lbm@
hotmail.com
**
Especialista em Direito Público – Constitucional e Administrativo; Especialista em
Direito Processual Civil e Civil; Advogada no Núcleo de Prática Jurídica; Professora
no Curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina; fabiane.christofoli@
unoesc.edu.br
211
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

ter quem o assuma voluntariamente, poderá invocar o Judiciário por meio de


uma Ação de Investigação de Paternidade, cuja prova cabal para a solução do
feito é o exame de DNA.
Todavia, o exercício do direito não será tarefa fácil na hipótese de o
suposto pai se recusar a fazer o exame de DNA. Diante desse problema, abre-se
uma interessante discussão a respeito dos direitos fundamentais do autor da
Ação de Investigação de Paternidade, bem como dos direitos fundamentais do
réu, aquele suposto pai que se recusa a fazer o exame.
O presente trabalho tratou, portanto, das implicações decorrentes da
não exigibilidade – possível e necessária exigibilidade – do exame de DNA nas
Ações de Investigação de Paternidade, uma vez que ele é o único meio capaz
de trazer a verdade aos autos, ou seja, é o único capaz de dizer, com 99,99% de
probabilidade, se o réu é ou não o pai do autor da ação.
O método de abordagem utilizado para a realização da pesquisa foi
o dedutivo, partindo de conceitos gerais com os quais, ao final da pesquisa,
chegou-se a uma solução para a problemática.
A metodologia empregada foi qualitativa, pois buscou abraçar
a relevância dos direitos fundamentais com o intuito de demonstrar a
importância de proteção do direito dos filhos em saber sua real paternidade
genética. Ainda, foi teórico, afinal, este trabalho se baseou em conceitos e
soluções à colisão dos direitos envolvidos.
O procedimento da pesquisa foi o explicativo, já que se abordou o
motivo pelo qual se criou a Lei n. 12.004/09, os efeitos que ela gerou na prática
forense, a importância do exame de DNA para a solução justa da causa e por
que um direito deve prevalecer sobre outro.
A presente pesquisa se presta a mostrar a necessidade de se ter maior cuidado
legislativo e judicial às Ações de Investigação de Paternidade, especialmente sobre a
importante função que o exame de DNA possui para se trazer a justiça pretendida,
garantindo ao autor da ação direitos essenciais que a própria Constituição Federal de
1988 lhe confere para o exercício de uma vida digna.

2 A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE ESTABELECIDA PELA


LEI N. 12.004, DE 29 DE JULHO DE 2009

A Lei n. 12.004, de 29 de julho de 2009, alterou a Lei n. 8.560, de


29 de dezembro de 1992, que regula a Ação de Investigação de Paternidade
212
Diálogos sobre direito e justiça

dos filhos havidos fora do casamento, para acrescentar em seu corpo o art.
2º-A com a seguinte redação: “A recusa do réu em se submeter ao exame de
código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em
conjunto com o contexto probatório.”
Mas, antes da criação da Lei n. 12.004/09, existia a Súmula 301 do
Superior Tribunal de Justiça, que já estabelecia que “Em ação investigatória, a
recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris
tantum de paternidade.”
Oportuno salientar que a edição da mencionada Súmula, que
posteriormente virou a Lei n. 12.004/09, surgiu em razão da necessidade
de se ordenarem os inúmeros casos de recusa ao exame de DNA nas Ações
Investigatórias de Paternidade, pois na maior parte dos casos de recusa, o
objetivo era retardar as garantias e obrigações decorrentes do vínculo paternal.
Entretanto, essa Súmula gerou muita polêmica, considerando que colocou
em confronto os direitos do filho com os direitos do suposto pai. Conflitou a
identidade genética e a investigação de paternidade do autor da ação com o
direito à privacidade e à integridade corporal do suposto pai, fundamentando a
procedência do pedido à recusa injustificada em fazer o exame.
Além das instruções legais citadas, há outra previsão normativa em
defesa da presunção de paternidade que, nesse caso, é considerada como
indício, que é o art. 334, IV do Código de Processo Civil, ou então, os arts. 231
e 232 do Código Civil de 2002, combinados com aquele.
Assim, pode-se dizer que existem duas regras que se aplicam nos casos
de recusa ao exame de DNA: o Código Civil de 2002, que apresenta uma regra
geral com pouca utilidade prática, pois se refere à presunção judicial que decorre
da recusa, vista como indício, e uma regra específica às Ações de Investigação
de Paternidade que prevê, diante da recusa, uma presunção legal relativa da
paternidade biológica (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2012, p. 65).
Inobstante, a presunção da paternidade diante da recusa, além de
poder receber a aparência de punição àquele que se recusa a fazer o exame
de DNA, também pode se tornar um obstáculo aos reais propósitos buscados
por meio da Ação de Investigação de Paternidade, cuja finalidade precípua,
segundo Campos (2006, p. 356), é a de “[...] indicar o pai biológico e não de dar
um pai ao investigante. Através da ação judicial o indivíduo tem conhecimento
da existência ou não do vínculo biológico.”

213
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

Por isso, mesmo que atualmente se preze muito pela manutenção


da afetividade no seio familiar de modo a configurar pai aquele que cria,
que proporciona carinho, que participa do desenvolvimento e crescimento
da criança, deve-se considerar a possibilidade de o indivíduo conhecer suas
origens, e é por meio da Ação de Investigação de Paternidade que se buscará
isso: saber quem é o pai biológico do autor da ação.

3 OS DIREITOS DO PAI E OS DIREITOS DO FILHO

Mesmo com a expressa disposição legal do Código de Processo Civil,


em seu art. 339, que prevê que “Ninguém se exima do dever de colaborar com
o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”, bem como no art. 14,
II, do mesmo diploma, que “São deveres das partes e de todos aqueles que de
qualquer forma participam do processo proceder com lealdade e boa-fé”, ainda
não é possível no ordenamento jurídico brasileiro a imposição coercitiva do
réu para a realização do exame de DNA e muitos são os direitos levantados em
sua defesa para se evadir da produção dessa prova genética, como os que serão
analisados a seguir.
A Constituição Federal de 1988 prevê em seu art. 5º, inciso X, que
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito de indenização pelo dano material e moral decorrente de
sua violação.” (BRASIL, 1988).
No âmbito das relações familiares, relativamente à Ação de Investigação
de Paternidade, sustenta-se a inviolabilidade do direito à intimidade e vida
privada o ato de ter de submeter-se à realização do exame de DNA. Defende-
se que a condução forçada do suposto pai ao exame não pode ser violada
por terceiro e nem pelo Estado por expressa condição constitucional, e que
na realização de exame por meio de sangue ficam expostas, além do DNA,
informações individuais da parte sem o seu consentimento.
O próprio Supremo Tribunal Federal se manifestou nesse sentido no
Habeas Corpus n. 71.373, com relatoria do Ministro Marco Aurélio, em 10 de
novembro de 1994, ao estabelecer a impossibilidade de um “[...] provimento
judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique
determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ‘debaixo de
vara’, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA.”

214
Diálogos sobre direito e justiça

Todavia, é imperioso reconhecer que o avanço científico, no que se


refere a essa matéria, tornou possível a realização de exames para a coleta
de material genético sob o uso de técnicas muito singelas, por meio de um
simples fio de cabelo ou um pouco de saliva, não sendo mais a intrusão física
para a coleta de sangue em laboratório o único modo de investigação (DIDIER
JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2012, p. 67).
Por esse vértice é que Branco e Ferreira (2011, p. 319) explicam que
“A vida em comunidade, com suas inerentes interações entre pessoas, impede
que se atribua valor radical à privacidade. É possível descobrir interesses
públicos, acolhidos por normas constitucionais, que sobrelevem ao interesse
do recolhimento do indivíduo.”
Outro direito levantado em defesa pelo réu é aquele de não produzir
provas contra si mesmo, previsto no art. 5º, LXII, da Constituição Federal de
1988. Ele se traduz ao direito ao silêncio (de permanecer calado) e também
abrange a questão de não contribuir ativa e passivamente de outras formas, de
modo a cooperar ou colaborar com a sua própria punição (SILVA JÚNIOR,
2008, p. 732-733).
Relativamente à ideia em pauta, exibe Silva Júnior (2008, p. 736):

Tem surgido, porém, discussão quanto ao alcance do di-


reito ao silêncio, especialmente com o incremento da tec-
nologia quanto à forma de realização dos exames periciais.
Sustentam alguns doutrinadores que uma gota de sangue,
a mera saliva, um fio de cabelo ou um diminuto fragmento
de unha é plenamente suficiente para permitir a realização
do exame de DNA, daí porque não se mostra razoável ne-
gar-se a possibilidade de exigir da pessoa o fornecimento
de um desses seus elementos intrínsecos, pois, em essência,
isso não representa ínfima lesão à dignidade da pessoa hu-
mana quanto à sua integridade corporal e, por outro lado,
seria pouco invasivo à sua intimidade.

De outro lado, também se tem o direito à intangibilidade corporal do


suposto pai que, embora subjetivo da personalidade, não pode ser exercido de
forma abusiva. Pondera Andrighi (2004, p. 158 apud DIAS, 2011, p. 413, grifo
do autor) que esse direito “[...] que protege interesse privado, deve dar lugar
ao direito à identidade da criança, que salvaguarda, em última análise, um
interesse público, representado pela dignidade da pessoa humana.”
215
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

No que se refere aos direitos fundamentais do filho na Ação de


Investigação de Paternidade, merece destaque, inicialmente, o direito à filiação,
o qual é garantia prevista na Constituição Federal de 1988, em seu art. 227,
§ 6º, no Código Civil de 2002, em seu art. 1.596, bem como no Estatuto da
Criança e do Adolescente, em seu art. 20.
O direito à filiação é direito da personalidade, revestindo-se de
diversas características, entre as quais a impossibilidade de lhe atribuir valor
econômico, formando-se, assim, de um conteúdo de altos valores físicos,
morais e intelectuais (AMARAL, 2006, p. 247).
Há também o direito à saúde, que constitui forte defesa em benefício
do autor da ação para a realização do exame de DNA, previsto no art. 196 da
Constituição Federal de 1988, sendo um direito de todos e dever do Estado.
A averiguação da identidade genética é essencial à preservação da saúde, uma
vez que, por meio dos genes, determinadas doenças podem ser previamente
tratadas e prevenidas antes mesmo da fecundação do óvulo, ou até mesmo
após o nascimento, para tratamentos médicos mais eficazes.
Nesse sentido, Fiuza (2008, p. 972) reputa ilegítima a cláusula de
anonimato presente nos bancos de esperma quando se manifesta dizendo
que “[...] não se pode negar a ninguém o direito de conhecer sua ascendência
genética, até por razões de saúde física, para não dizer mental.”
Outro importante direito envolvido nessa problemática é o direito à
vida, o qual constitucionalmente possui um significado bastante abrangente,
pois ele se conecta profundamente a outros direitos, como o direito à
liberdade, à igualdade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação,
ao vestuário, ao lazer, à educação, à saúde, à habitação, à cidadania, aos valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa (BULOS, 2010, p. 532).
A Constituição Federal de 1988 prevê o direito à vida no seu art. 5º,
caput, cabendo ao Estado utilizar-se das cautelas necessárias à sua máxima
proteção, tanto no direito à vida no sentido de continuar vivo quanto no que
diz respeito ao direito à vida digna enquadrada em sua subsistência (MORAES,
2011, p. 39).
O direito à vida possui íntima ligação com as Ações de Investigação de
Paternidade, pois esta é o instrumento de que se vale o Estado para garantir ao
autor da ação o conhecimento da sua origem genética, de modo a explicar de
onde sua vida, sua própria existência surgiu.

216
Diálogos sobre direito e justiça

Com o conhecimento da origem genética, não apenas se firma a certeza


dos antecedentes biológicos, como também se garante a própria permanência
viva na esfera terrestre, já que se protege, por exemplo, a saúde do indivíduo,
fator indispensável ao mantimento da vida, e privar-lhe disso é praticamente
interromper o processo vital, antecipando-se, por inúmeras vezes, a sua morte.

4 A IMPORTÂNCIA DO EXAME DE DNA FRENTE ÀS DEMAIS


PROVAS

Inicialmente, cumpre salientar que o ordenamento processual brasileiro


não prevê uma hierarquia entre as provas, ou seja, não se acolhe o princípio
da prova legal, segundo o qual cada prova tem um valor previamente fixado
por lei. O que somente é possível é o juiz estabelecer um sopesamento entre
as provas para formar seu convencimento, ou seja, é permitida a persuasão
racional, ou o livre convencimento fundamentado, previsto no art. 131 do
Código de Processo Civil (GONÇALVES, 2012, p. 378).
Entretanto, há que se considerar que no sistema jurídico brasileiro
existem resquícios do princípio da prova legal, em que se consagra que
determinada prova é a única que pode ser aceita para a comprovação dos
fatos. Como exemplo disso se pode citar o art. 366 do Código de Processo
Civil, que valoriza em absoluto o instrumento público, como prova do ato cuja
celebração o exige, e também o art. 401, do mesmo diploma legal, que impede
a comprovação de negócios jurídicos de valor superior a dez salários mínimos
por meio exclusivamente testemunhal (GONÇALVES, 2012, p. 379).
Assim, o que se busca com este estudo é demonstrar que, para
determinadas situações, há provas que por si só são suficientes e únicas
para trazer um convencimento livre de incertezas, pois foi ela a única com
potencialidade suficiente de proporcionar o maior grau de certeza possível
para se fazer justiça.
É por isso que na atual realidade científica o exame de DNA é prova
determinante, já que as demais provas, testemunhal e documental, não se
revelam como os meios mais aptos a trazer a certeza da paternidade para o
justo deslinde do feito, ainda mais porque, atualmente, as relações entre as
pessoas estão cada vez mais flexíveis, sendo muito comum a prática de sexo
casual sem qualquer envolvimento afetivo e prolongado, o que, por vezes,

217
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

resulta no esquecimento da parte, por ser um evento sem maior importância


(CHAVES, 2004, p. 14).
A prova documental, por exemplo, somente terá valia se ela conseguir
revelar de forma clara o reconhecimento do filho, de modo a cumprir sua real
finalidade (CHAMELETE NETO, 2008, p. 50). Por isso, quando se fala em
comprovar a existência efetiva de uma relação sexual, ela é de difícil colhimento,
pois não há como obter registros escritos que possam confirmar a existência
desse íntimo envolvimento entre duas pessoas (CHAVES, 2004, p. 13).
A prova testemunhal, por sua vez, é falível e deficiente (SIMAS FILHO,
2008, p. 112) e, segundo afirma Gonçalves (2012, p. 399), “[...] com alguma
frequência ela tem sido criticada, sob o fundamento de que a memória humana
é falha, e que circunstâncias de ordem emocional ou psicológica podem
influenciar a visão ou as lembranças das testemunhas. Os críticos sugerem que
a elas seja dado um valor menor que às outras provas.”
A prova testemunhal carece de segurança e certeza jurídica, por isso
é considerada como a prostituta das provas. Ela é a mais sujeita à imprecisão,
pois consiste em relatos orais que se encontram guardados na memória
daqueles que, embora não sendo parte do processo, presenciaram ou tiveram
conhecimento dos fatos do litígio (LEITE, 2009).
Assim, a comprovação de uma paternidade em sede judicial, sem
qualquer perícia técnica, beira à impossibilidade, pois não há como obter,
por parte do magistrado, um convencimento satisfatório. Diante disso é
que “A evolução científica veio revolucionar o reconhecimento da relação
parental através de técnicas sofisticadas e métodos cada vez mais seguros de
identificação dos indicadores genéticos, tornando-os meio probatório por
excelência.” (DIAS, 2011, p. 413).
Na questão pericial, o exame de DNA é considerado uma prova por
excelência, o qual, nas palavras de Campos (2006, p. 347), “[...] é tido como
uma das principais descobertas científicas, tendo sua margem de certeza de
quase 100% (cem por cento) garantida e reconhecida pelos cientistas.”
Chamalete Neto (2002, p. 88) corrobora nesse sentido ao expressar que
“Sem a realização da perícia, careceria o julgador de um elemento de convicção
indispensável para a prolação da decisão final. A prova genética é apontada
como a solução definitiva na verificação da paternidade.”

218
Diálogos sobre direito e justiça

Pensamento igual tem Simas Filho (2008, p. 209, grifo do autor)


quando afirma que o exame de DNA “[...] é dos mais especializados e o que
consegue, sem margem alguma de erro, determinar a paternidade.”
A técnica do exame de DNA ganhou muito prestígio nos tribunais,
sobretudo no Estado de Santa Catarina, em que diversos acórdãos
converteram os julgamentos em diligência, a fim de realizar a perícia pelo
DNA, considerando-se a fragilidade das demais provas colhidas que acabaram
por se mostrar insuficientes ao convencimento do juiz. É o que se observa,
por exemplo, no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina
na Apelação Cível n. 2004.016063-1, com relatoria do Desembargador Luiz
Carlos Freyesleben, em 12 de junho de 2004, quando se reconheceu que “Em
ação de investigação de paternidade, quando as provas não são conclusivas
quanto à verdade dos fatos, alvitrado é converter o julgamento em diligência
para a realização da prova técnica.”
Além disso, o próprio Superior Tribunal de Justiça já se posicionou
em sentido contrário ao julgamento do Habeas Corpus n. 71.373, citado
anteriormente. A Quarta Turma do Tribunal, por unanimidade, decidiu no
Recurso Especial n. 222.445-PR, em 07 de março de 2002, com relatoria do
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que “[...] na fase atual da evolução do
Direito de Família, não se justifica encolher a produção de prova genética pelo
DNA, que a ciência tem proclamado idônea e eficaz.” (BRASIL, 2002).
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, já determinou a coleta
coercitiva de material para a realização do exame de DNA quando do
julgamento da Reclamação n. 2040-QO, do Distrito Federal, com relatoria
do Ministro Néri da Silveira, em 21 de fevereiro de 2002, ao “[...] autorizar
a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da
placenta recolhida.” (BRASIL, 2002).
No caso da mencionada decisão, a ordem ocorreu contra a vontade
da suposta mãe que possivelmente teria sido estuprada por policiais federais
nas dependências da Polícia Federal. Os ministros que julgaram o processo
entenderam que o interesse público deveria prevalecer sobre o interesse
particular da suposta mãe. Por isso, ordenou-se a realização do exame de DNA
por meio de material biológico retirado de sua placenta.
Há que se reconhecer, após essas análises, a indispensabilidade do
exame de DNA nas Ações de Investigação de Paternidade, visto que “[...]
enquanto perdurar na consciência do cidadão brasileiro esta nebulosa área gris
219
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

do desconhecimento sobre a real infalibilidade do DNA, igualmente manterá


seu espírito refratário aos avanços e conquistas tecnológicas dessa importante
prova pericial.” (VELOSO, 2000, p. 390 apud MADALENO, 2011, p. 521).
Por fim, ao analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os
ministros firmam entendimento jurídico pela indispensabilidade do exame de
DNA nas Ações de Investigação de Paternidade, ficando evidenciada no caso
em concreto a prevalência do reconhecimento do interesse público sobre o
interesse particular.

5 PRINCÍPIOS E SOPESAMENTO DE VALORES


CONSTITUCIONAIS

Princípio difere de norma, uma vez que norma é um preceito que tutela
situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, que garante o direito de realizar
certos interesses por ato próprio ou que passa o dever de realizar uma prestação
a outrem. Já o princípio é uma ordenação que irradia e imanta os sistemas de
normas, confluindo valores e bens constitucionais (SILVA, 2010, p. 30).
Princípio também não se confunde com valor. Nesse sentido, Alexy
(apud GARCIA, 2003, p. 18, grifo do autor) ensina que “Os princípios se
traduzem em mandados de otimização, apresentando caráter deontológico –
do dever ser, enquanto que os valores situam-se na dimensão axiológica – do
que efetivamente é segundo um juízo do bom e do mau.”
Neste ínterim, parte-se à análise dos principais princípios levantados
em defesa do autor e do réu quanto à obrigação da prestação ao exame de DNA
nas Ações de Investigação de Paternidade.

5.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana consiste em um dos


fundamentos da República Federativa do Brasil com previsão no art. 1º, III,
da Constituição Federal de 1988. Ele é um importante instituto inerente à
personalidade humana e que, segundo Moraes (2009, p. 21), “[...] afasta a
ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em
detrimento da liberdade individual.”
Para Nunes (2010, p. 64), “O termo dignidade aponta para, pelo menos,
dois aspectos análogos mas distintos: aquele que é inerente à pessoa, pelo

220
Diálogos sobre direito e justiça

simples fato de ser, nascer pessoa humana; e outro dirigido à vida das pessoas,
à possibilidade e ao direito que têm as pessoas de viver uma vida digna.”
O princípio da dignidade da pessoa humana é o maior de todos os
princípios, tanto é importante que levou o constituinte a consagrá-lo como
valor nuclear da ordem constitucional. Dele se irradiam todos os demais
princípios: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade,
etc. (DIAS, 2011, p. 62, grifo do autor).
Vislumbra-se que a dignidade da pessoa humana não está no campo
patrimonial da pessoa, mas no campo moral, de valor próprio. Por isso se faz
necessário harmonizar esse princípio aos avanços científicos e tecnológicos, a
fim de melhorar e aprimorar a qualidade de vida das pessoas (GAMA, 2003,
p. 131).
Acerca da dignidade da pessoa humana invocada à proteção do autor
da Ação de Investigação de Paternidade, esta se fundamenta, conforme afirma
Campos (2006, p. 359), no seguinte sentido:

Pelo princípio da dignidade da pessoa humana é dado ao


indivíduo o direito à personalidade. Uma das principais
expressões da personalidade é o nome que ela utiliza, pois
tem o condão de individualizar a pessoa, tornando-a úni-
ca, mas o próprio ser humano é naturalmente individual
e único, em razão de sua origem genética. Pela origem
genética se verifica cor, raça, etnia, a descendência social
e cultural entre outras, sendo a origem genética elemento
importante na formação psicológica do indivíduo, daí a
importância de alguém conhecer suas origens, decorren-
do do direito à identidade genética.

Conhecer a origem genética constitui, portanto, um direito fundamental


da pessoa. Por esse vértice, Campos (2006, p. 356) ainda ensina que

[...] conhecer a origem significa entender seus traços so-


cioculturais, devendo ser compreendido como um direito
fundamental do ser humano. O direito à identidade ge-
nética deve ser entendido, com base no princípio da dig-
nidade da pessoa humana, como elemento intrínseco ao
direito da personalidade.

221
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

Malgrado o direito ao conhecimento da origem genética ser elemento


fundamental da dignidade da pessoa humana, cumpre reconhecer que a
dignidade da pessoa humana também é perfeita e indiscutivelmente cabível ao
suposto pai que se recusa a prestação do exame de DNA.
Diante disso, a colisão de direitos existentes entre filho e suposto pai é
clarividente, mais ainda é a colisão de princípios que atuam em prol de ambas
as defesas. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana serve como
escudo protetor de direitos para ambas as partes, e não somente ao autor da
ação para a proteção de um direito personalíssimo. Dessa forma, fica a dúvida
de como resolver esse problema, já que tanto um quanto o outro possuem na
sua defesa algo essencial e indiscutível.
Porém, antes de adentrar a esse mérito, é crucial falar da natureza
jurídica da dignidade da pessoa humana, se ela se trata de um valor essencial
ou de um princípio fundamental, pois é comum observar o emprego dos
termos “valor” e “princípio” em contextos diversos com o mesmo significado
(GAMA, 2003, p. 137, grifo do autor).
Alexy (apud GAMA, 2003, p. 137, grifo do autor) ensina que a significação
dos dois termos é distinta, concluindo que a dignidade da pessoa humana é um
princípio jurídico e enfatiza o seu caráter normativo e deontológico. Isso porque
os princípios possuem caráter deontológico e se relacionam ao “dever-ser”, ao
passo que os valores estão na dimensão axiológica, ou seja, do que efetivamente
“é” de acordo com um juízo do bom e do mau.
Essa distinção de termos e definição da natureza jurídica da dignidade
da pessoa humana é extremamente importante para iniciar a uma discussão
acerca da relativização da pessoa humana, a qual será feita a partir de agora.
Primeiramente, usa-se as palavras de Nunes (2010, p. 60) para se
ratificar a ideia de que a dignidade é garantida por um princípio e por isso é
absoluta e plena, não podendo sofrer arranhões e muito menos ser vítima de
argumentos que a coloquem em posição relativa.
Contudo, em contrapartida, Gama (2003, p. 143) afirma com
propriedade que

[...] como valor intrínseco da pessoa humana, a dignida-


de não pode ser violada ou sacrificada, mas na sua pers-
pectiva principiológica não há como negar a possibilida-
de de sua relativização, especialmente quando colocadas
em confronto as dignidades de duas pessoas diferentes.
222
Diálogos sobre direito e justiça

Gama (2003, p. 149, grifo do autor) ainda menciona, nesse sentido, que:

O tema envolvendo a dignidade da pessoa humana e as


relações intersubjetivas conduz à polêmica quanto à ins-
tauração de um conflito entre as dignidades de pessoas
diferentes, o que deve gerar o “estabelecimento de uma
concordância prática (ou harmonização), que necessaria-
mente implica hierarquização (como sustenta Juarez Frei-
tas) ou a ponderação (conforme prefere Alexy) dos bens em
rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade) con-
cretamente atribuído a dois ou mais titulares”. Por óbvio
que, neste caso extremo, a dignidade da pessoa humana
relativamente a um dos envolvidos – ou quiçá de ambos
– deverá ser relativizada, dentro de um juízo de valor re-
alizado no caso concreto, o que denota que o princípio (e
não o valor) da dignidade da pessoa humana não é abso-
luto, diversamente do que alguns apregoam.

Mesmo Nunes (2010, p. 65), embora definindo a dignidade como


absoluta, ressalva que tem que se “[...] incorporar no conceito de dignidade
uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia. Ou seja, a
dignidade só é garantia ilimitada se não ferir outra.”
Por conseguinte, a dignidade da pessoa humana, considerada em
sua natureza jurídica como um princípio, poderá ser relativizada quando
a dignidade de pessoas diferentes entrarem em conflito. Dessa forma, em
consonância com o acima exposto, um dos direitos, do filho ou do suposto
pai, será priorizado em detrimento do outro, mas nem por isso será menos
importante.
Assim, Brugguer (apud GAMA, 2003, p. 150) considera que “A
dignidade da pessoa humana, encarada sob o prisma jurídico de norma
constitucional, possui o caráter de mais importante princípio fundamental,
mas não de direito fundamental absoluto.”
Outrossim, uma vez que se sabe que a dignidade da pessoa humana
não se constitui em um princípio absoluto quando fere a dignidade de outra
pessoa, cabe analisar, então, se o que deve prevalecer é a dignidade do autor da
ação de investigação ou a do réu.
Em favor do autor da ação, posiciona-se Lôbo (2004, p. 344) ao dizer
que “Em tese, negar o direito ao reconhecimento da origem genética é tão
223
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

lesivo ao princípio da dignidade da pessoa humana quanto à submissão


compulsória a exame.”
A solução para esse choque de princípios é apresentada pelo princípio
da proporcionalidade, pois ele será útil para propiciar que o intérprete resolva
o problema do real conflito entre dignidades de pessoas diferentes (NUNES,
2010, p. 71), conforme será visto a seguir.

5.2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade encontra-se estampado no art. 5º, II, da


Constituição Federal de 1988, segundo o qual “Ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”; do mesmo modo, regula
também o princípio da legalidade os incisos XXXV, do art. 5º, bem como os
arts. 37 e 84, IV, do mesmo diploma legal.
É possível afirmar que o princípio da legalidade apresenta duas
realidades, pois por intermédio dele é que se exige o respeito à lei, e por meio
dele, também, é que se impõe que não se crie direito ou dever sem amparo
legal (TAVARES, 2003, p. 447).
Conforme se observa, o mencionado princípio não constituiu somente
um meio de produção de deveres e obrigações, pois funciona também como
ferramenta para a produção de direitos.
Nesse sentido, Tavares (2003, p. 445, grifo do autor) faz uma relevante
observação quanto ao princípio da legalidade:

Quando o preceito constitucional determina que nin-


guém “será obrigado”, a não ser por meio de lei, dá a en-
tender, à primeira vista, alcançar apenas a imposição de
obrigações, silenciando no que se refere à concessão de
direitos. Contudo, não é assim que se passa. Também os
direitos necessitam estar contemplados em lei. Seja direi-
to ou dever, só mesmo por meio de lei é que se admite sua
formação legítima. Até porque os direitos são, na realida-
de, o reverso dos deveres correlatos impostos. Ou, o que
dá no mesmo, qualquer direito remete diretamente a um
dever, qual seja, o dever de cada indivíduo pertencente
à coletividade de observar e respeitar aquele direito in-
dividual sufragado legalmente. Não há, pois, direito sem
dever correlato.

224
Diálogos sobre direito e justiça

Imperioso se faz esclarecer, no que se refere ao tema do presente trabalho,


que esse princípio possui clara função de defesa ao réu na Ação de Investigação
de Paternidade. Isso porque o suposto pai não é obrigado à prestação ao exame
de identificação genética, pois não há lei que o obrigue a tanto.
Por outro lado, consoante citado, ao mesmo tempo que o princípio da
legalidade cria deveres a partir da elaboração de leis, ele também cria direitos,
e, nesse sentido, o direito ao autor da Ação de Investigação de Paternidade
encontra nítido respaldo legal: primeiro porque ele é parte legítima a propor a
demanda, segundo porque se trata de direito personalíssimo.
O que se pode concluir é que, no caso em tela, há novamente conflito
de interesses, pois se discute a falta de lei que obrigue o réu, mas também se
discutem as várias previsões legislativas que garantem ao autor seus direitos.
Por isso, embora não haja previsão legal que crie o dever ao suposto pai, há
previsão legal que cria direito ao filho.
A solução para esse conflito de interesses também se encontra por
meio do princípio da proporcionalidade, discorrido a seguir.

5.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE



A proporcionalidade manifesta-se como uma forma de exigência de
racionalidade, impondo aos atos estatais uma dose mínima de sustentabilidade
(TAVARES, 2003, p. 531).
A Constituição Federal de 1988 não prevê expressamente o mencionado
princípio, porém, é possível contemplá-lo por meio do art. 5º, § 2º, do referido
Diploma Legal, o qual aduz que “Os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.” (TAVARES, 2003, p. 531).
Embora não exista sua exata previsão, isso não impede seu
reconhecimento, pois ele é uma imposição natural de qualquer sistema
constitucional de garantias fundamentais (NUNES, 2010, p. 55).
O princípio da proporcionalidade é argumento para inúmeros assuntos
jurídicos e o ensaio que será feito a partir de agora tentará explicar como serão
resolvidos os choques do princípio da dignidade da pessoa humana e do
princípio da legalidade, bem como da colisão entre direitos, e, para tanto, é
indispensável fazer um introito sobre esse princípio.
225
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

Primeiramente, é essencial explicar que haverá colisão de direitos


fundamentais quando, no caso concreto, o exercício de um direito fundamental
de um particular obstaculiza, limita-se ou prejudica o direito fundamental de
outrem, idêntico ou diferente. Ou seja, haverá colisão quando os interesses de
um indivíduo se chocarem com os interesses de outro indivíduo particular.
Nesse caso, tratar-se-á de uma colisão horizontal (STEINMETZ, 2001, p. 139).
Ressalta-se, também, que a colisão entre os direitos fundamentais não
necessariamente ocorrerá apenas entre indivíduos particulares, podendo ocorrer,
inclusive, entre um indivíduo particular e os direitos fundamentais da coletividade,
configurando uma colisão vertical de direitos (STEINMETZ, 2001, p. 139).
O método da ponderação de bens é o que será utilizado para adotar
uma decisão de preferência entre direitos ou bens em conflito, determinando
qual direito ou bem, e em que medida, prevalecerá, para solucionar a colisão. A
ponderação referida será operacionalizada mediante a aplicação do princípio
da proporcionalidade (STEINMETZ, 2001, p. 140-143).
Em continuidade, preciso ressalvar que, embora uma corrente
minoritária da doutrina, em especial representada pela doutrina alemã, prefira
diferenciar o conceito de ponderação do conceito de proporcionalidade; do
ponto de vista prático, essa diferenciação tem, segundo Steinmetz (2001, p. 143-
144), pouca relevância, visto que sua importância “[...] reside na ciência jurídica
para se atender imperativos da uniformização terminológica e rigor conceitual.”
A doutrina majoritária, por sua vez, orientada principalmente por
Alexy, considera, consoante menciona Steinmetz (2001, p. 144-145), que:

[...] a ponderação concreta de bens, na colisão de di-


reitos fundamentais, realiza-se mediante o controle de
proporcionalidade em sentido amplo, de modo especial
ou propriamente dito por meio do princípio da propor-
cionalidade em sentido estrito, o terceiro subprincípio
constitutivo do princípio da proporcionalidade em sen-
tido amplo. Assim, o princípio da proporcionalidade em
sentido amplo compreende a ponderação de bens.

De acordo com o exposto, e conforme será visto a partir de agora, o


princípio da proporcionalidade, considerado no sentido amplo, abrangerá os
subprincípios (ou também chamado por alguns doutrinadores de elementos

226
Diálogos sobre direito e justiça

do princípio da proporcionalidade) da adequação, da necessidade e da


proporcionalidade em sentido estrito.
Os elementos da adequação e necessidade correspondem aos
pressupostos fáticos do princípio da proporcionalidade, enquanto a
proporcionalidade em sentido estrito equivale à ponderação jurídica desses
dois primeiros elementos (TAVARES, 2003, p. 538).
Tavares (2003, p. 538) menciona a decomposição do princípio da
proporcionalidade, segundo a doutrina alemã, em três elementos necessários:
a conformidade e adequação dos meios empregados; a necessidade ou
exigibilidade da medida adotada; a proporcionalidade em sentido estrito.
Entende-se que a adequação, consoante Tavares (2003, p. 538), “[...]
representa a necessária correlação entre os meios e os fins a serem atingidos,
de forma que os meios escolhidos sejam aptos a atingir o fim determinado.”
Nesse sentido, também ensina Steinmetz (2001, p. 149), ao dizer que “O
juízo de adequação pressupõe que, conceitualmente, saiba-se o que significam
meio e fim e que, empiricamente, identifique-se claramente o meio e o fim que
estruturam a restrição de direito fundamental.”
Contudo, ao se perguntar quando um meio é adequado, a resposta é
dada pela doutrina alemã, de forma negativa e positiva. Diz-se negativa quando
se reconhecem vários meios possíveis de se atingir o objetivo pretendido, sem
que se diga qual dos meios idôneos deve prevalecer, nem se um é mais ou
menos eficaz. Apenas se dirá se um determinado meio é ou não idôneo, útil,
apto, apropriado. Já a forma positiva diz que um meio é adequado quando com
ele é possível alcançar o resultado perseguido (STEINMETZ, 2001, p. 150).
No que se refere ao elemento da necessidade ou exigibilidade da
medida adotada, afirma-se que “[...] equivale à melhor escolha possível, dentre
os meios adequados, para atingir os fins. Dentro da concepção de Estado de
Direito, essa escolha corresponde àquela que menos ônus traga ao cidadão.”
(TAVARES, 2003, p. 539).
Finalmente, o elemento da proporcionalidade em sentido estrito significa
a “[...] ponderação de bens propriamente dita” (STEINMETZ, 2001, p. 152), um
“[...] sopesamento de valores do ordenamento jurídico” (TAVARES, 2003, p.
539), para se atingir a uma finalidade da melhor maneira possível, evitando-se
ao máximo uma desvantagem e oneração exorbitante a uma das partes.
Esse elemento quer dizer, segundo Guerra Filho (1999, p. 388
apud TAVARES, 2003, p. 539), que “[...] mesmo em havendo desvantagens
227
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

para, digamos, o interesse de pessoas, individualmente ou coletivamente


consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens
que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.”
Ademais, por meio das palavras de Tavares (2003, p. 536, grifo do
autor), fica claro que

O princípio da proporcionalidade desponta como re-


levante instrumento de solução de conflitos na medida
em que se apresenta como mandamento de ‘otimização
de princípios’, ou seja, como critério de sopesamento de
princípios quando estes conflitam em dada situação con-
creta.

Assim, pode-se dizer que o princípio da proporcionalidade tem a


finalidade de proteger os direitos fundamentais, garantindo-os segundo as
possibilidades fáticas e jurídicas; conforme enfatiza Steinmetz (2001, p. 155),
ele “[...] autoriza somente restrições ou limitações que sejam adequadas,
necessárias, racionais ou razoáveis.”
Conclui-se que a operacionalização desse princípio ocorrerá: a partir
da existência de uma estrutura meio-fim; que o fim seja constitucional; que se
identifiquem as circunstâncias relevantes (colisão entre direitos e princípios
fundamentais) e; que se apliquem, sucessivamente, os três princípios ou
elementos parciais constitutivos (STEINMETZ, 2001, p. 155).
Destarte, o princípio da proporcionalidade se mostra como solução
para o conflito de interesses entre autor e réu da Ação de Investigação de
Paternidade, na medida em que:

a) a adequação, enquanto elemento a se identificarem os meios


aptos a atingir ao fim determinado, demonstra que as técnicas
para a coleta de material genético se mostram muito avançadas,
de forma que não prejudicam a integridade física do demandado
e, do mesmo modo, o sigilo dado a esses processos protege a
intimidade de ambas as partes;
b) a necessidade, enquanto elemento para se identificar a melhor
escolha possível, ou seja, a menos prejudicial entre os meios
adequados, mostra que os direitos do filho, que salvaguardam o
228
Diálogos sobre direito e justiça

interesse público, devem prevalecer sobre os direitos particulares


do suposto pai, caso contrário, haveria abuso de direito;
c) a proporcionalidade em sentido estrito, responsável por fazer o
sopesamento de valores, mostra nitidamente que as vantagens
obtidas, quando protegidos os direitos do autor da ação, superam
as desvantagens sofridas pelo réu em sede de investigação de
paternidade, uma vez que dessa forma ficam garantidos direitos
essenciais inerentes da natureza e personalidade de qualquer
pessoa.

6 CONCLUSÃO

Concluiu-se, com a presente pesquisa, que o exame de DNA possui


extrema importância nas Ações de Investigação de Paternidade, restando uma
prova indispensável para a justa solução da lide.
A intenção da referida demanda, conforme foi visto, é averiguar quem é
o pai biológico do autor da ação, e não apenas nomear um pai a ele. Diante dessa
necessidade, o exame de DNA é a única prova que se mostra com potencialidade
suficiente para trazer um grau de quase 100% de certeza da paternidade biológica,
já que as demais provas, documental e testemunhal, mostram-se muito frágeis e
falíveis ao convencimento do juiz para o melhor deslinde do feito.
Em consequência, a presunção resultante da recusa, e determinada pela
Lei n. 12.004/09, não produz o resultado almejado, restando uma medida ineficaz,
já que ela não traz a certeza da existência do vínculo biológico, que é o que se busca.
Diante disso, uma paternidade presumida e declarada pelo juiz em
razão, principalmente, da recusa ao exame, será uma paternidade que deverá
ser assumida de modo forçado, simplesmente para não deixar uma pessoa no
mundo sem filiação completa definida.
Além do mais, os direitos do autor da ação que foram estudados
(direito à vida, à saúde e à filiação) estão constitucionalmente previstos e
merecem especial proteção, uma vez que eles se apresentam muito mais fortes
do que os direitos estudados em defesa do réu (direito à integridade física
e intangibilidade corporal, direito à inviolabilidade da intimidade e da vida
privada e direito de não produzir provas contra si mesmo).
Conforme foi visto, as técnicas de colhimento de material genético
não configuram formas grosseiras a ponto de ferir a integridade física de uma
229
Mariana Letícia Bazzi Meneghini, Fabiane Christofoli

pessoa, até porque, se fosse o caso, nem o teste do pezinho feito no recém-
nascido seria possível.
Da mesma forma, o argumento à exposição da intimidade e da vida
privada resta inconsistente, insuficiente e irrelevante, pois todo o processo
corre, obrigatoriamente, em segredo de justiça, visto que possíveis constatações
oriundas da análise sanguínea do suposto pai não terão visibilidade processual
que não àquelas suficientes a identificar a paternidade.
Ademais, os direitos de ambas as partes são reconhecidos e respeitados.
No entanto, quando eles colidem, alguma medida precisa ser tomada para
solucionar o caso e, inevitavelmente, os direitos de um prevalecerão em
detrimento aos direitos do outro.
Como é evidente a necessidade de uma solução que supere os conflitos
causados pela relatividade dos direitos fundamentais, é também indispensável
o uso de algumas “técnicas” para adotar o direito fundamental que se apresente
mais adequado à determinada situação.
Restringir um direito em detrimento do outro requer uma análise
cautelosa da questão discutida, pois não se pode esquecer que também está em
jogo um direito tão importante quanto aquele, mas que será sacrificado.
A técnica utilizada para dizer qual direito irá prevalecer reside no campo
da ponderação, apresentada por meio do princípio da proporcionalidade,
no qual, conforme apontado, analisa-se cada caso concreto, bem como qual
medida é adequada e necessária, e, por fim, faz-se um sopesamento de valores,
de modo que a vantagem obtida supere a desvantagem sofrida.
No caso das Ações de Investigação de Paternidade, especialmente quando
houver recusa em fazer o exame de DNA, os direitos do autor da ação devem
prevalecer sobre os direitos do réu, que é o suposto pai. Isso porque a ponderação
de direitos e princípios feita por meio do princípio da proporcionalidade mostra
ser essa a medida mais razoável e justa para proteger o interesse maior.

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234
O CONTROLE DIFUSO DE
CONSTITUCIONALIDADE E SUA
APLICAÇÃO ERGA OMNES
Camila Deitos1
Camila Nunes Pannain2

Resumo: A fim de acompanhar as transformações e os interesses sociais, as decisões


do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade estão passan-
do por algumas transformações quanto à sua aplicação e efeitos. Para melhor com-
preender a complexidade constitucional que encerra a questão, o artigo foi elaborado
mediante estudo doutrinário e legislativo, a fim de elucidar o controle de constitucio-
nalidade adotado em nosso ordenamento jurídico, os princípios que o norteiam, as
teorias que influenciaram o seu desenvolvimento no ordenamento jurídico nacional,
observado com todas as suas particularidades e complexidades de procedimento. As-
sim, trata-se da questão da aplicação erga omnes e do efeito vinculante das decisões,
sob a ótica de uma nova teoria e de um paradigma jurisprudencial que suscitaram a
pesquisa.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Efeitos. Aplicação.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo científico trata do controle difuso de


constitucionalidade e das transformações que os efeitos da decisão de
inconstitucionalidade em via difusa vêm sofrendo na atuação do Supremo
Tribunal Federal.
O controle difuso de constitucionalidade é considerado via de exceção
e caracteriza-se pela competência que todo e qualquer juiz ou tribunal tem
de, no caso concreto, realizar análise acerca da constitucionalidade ou
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, a fim de que seja verificada a
incompatibilidade do ordenamento com a Constituição Federal, resguardando,
*
Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; camideitos@
hotmai.com
**
Mestranda em Direitos Fundamentais na Universidade do Oeste de Santa Catarina;
Especialista em Direito Público e Privado pela Unesa, Professora do Curso de Direito
da Universidade do Oeste de Santa Catarina; camila.pannain@unoesc.edu.br
235
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

portanto, o princípio da supremacia constitucional, a qual gerará, em regra,


efeitos retroativos somente entre as partes e no processo em que houve a
declaração.
As decisões definitivas de inconstitucionalidade, proferidas pelo pleno
do Supremo Tribunal Federal e encaminhadas ao Senado Federal, têm o condão
de tornarem-se erga omnes, ou seja, ter eficácia geral, logo após a suspensão da
executoriedade da Lei ou ato normativo por meio de resolução Senatorial.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, acompanhando as transformações
sociais, e a fim de resguardar sua função de guardião da supremacia da
Constituição Federal, tem questionado a competência da atividade do Senado
Federal, entendendo que a atuação senatorial serve apenas para gerar publicidade
às suas decisões, visto que estas já são de última instância.
O escopo deste trabalho é, portanto, analisar, com base na doutrina
e na jurisprudência, os efeitos da aplicação erga omnes do controle difuso
de constitucionalidade, bem como os entendimentos que acerca de sua
aplicabilidade, partindo-se da conceituação e elucidações basilares sobre o
instituto para, na sequência, discorrer-se sobre as novas teorias da mutação
constitucional e da transcendência, que têm sido trazidas pela doutrina
constitucional mais moderna e mencionadas em julgados acerca da aplicação
erga omnes das decisões do Supremo Tribunal Federal.

2 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

A ideia de um controle constitucional está intimamente ligada a uma


norma suprema, dotada de princípios, pressupostos e requisitos fundamentais
que preveem a organização e a formação de um Estado.
Surge a partir da existência de um sistema jurídico complexo e
hierarquizado, o qual possui uma norma rígida e superior sobre todo o
ordenamento jurídico (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 94).
Nossa atual Constituição Federal apresenta-se, entre outras classificações,
na forma rígida, que pressupõe a noção de um escalonamento normativo,
ocupando o grau máximo na aludida relação hierárquica, caracterizando-se
como norma de validade para os demais atos normativos, ou seja, é nela que se
encontra a própria estruturação do Estado e de seus órgãos.
Essa rigidez é pressuposto para o controle, pelo fato de que, se assim
não o fosse, não existiriam diferenças formais entre a espécie normativa que
236
Diálogos sobre direito e justiça

é objeto de controle, daquela em face da qual ocorre o controle (BARROSO,


2009b, p. 2).
Como consequência da rigidez, a Constituição é considerada a lei
suprema; toda autoridade somente nela encontra fundamento, dependendo
dela para atribuição de poderes e competências, vislumbrando um
escalonamento normativo, uma vez que a Constituição positivada encontra-
se no topo da “pirâmide” de Kelsen, consagrando a verticalidade hierárquica
das normas por ser norma que “[...] institui, organiza e harmoniza o próprio
sistema jurídico.” (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 103).
O simples fato de a Constituição ser fundamento de unidade e validade
jurídica do sistema já lhe garante a superioridade e, portanto, todas as leis, que em
seu bojo, possuírem forma e conteúdo que contradizem, expressa e implicitamente,
a Lei Suprema serão consideradas inconstitucionais (NEVES, 1988, p. 73).
Desse modo, pode-se dizer que a finalidade do controle de
constitucionalidade é a verificação de compatibilidade entre as normas e a
Constituição Federal, com o intuito de que o sistema jurídico seja uno e que
se apresente de forma harmoniosa, considerando inconstitucional qualquer
ofensa à Norma Suprema, seja quanto ao processo de elaboração legislativa
a ser seguido (inconstitucionalidade formal), ao conteúdo na norma
(inconstitucionalidade material), em decorrência de uma produção de atos
legislativos e administrativos contrários às normas e princípios constitucionais,
sejam federais ou estaduais (inconstitucionalidade por ação), bem como
decorrente do descumprimento de uma obrigação constitucionalmente prevista
de legislar (inconstitucionalidade por omissão), impedindo, portanto, que
dentro do sistema jurídico existam atos normativos contrários à Constituição
e ao próprio Estado de Direito (SILVA, 2005, p. 47).
O conceito de inconstitucionalidade não traduz tão somente a ideia
de inconformidade com a Constituição, mas também a sanção que incorre
em razão da contrariedade com o ordenamento jurídico, acarretando a
nulidade, por influência do direito norte-americano, ao declarar uma norma
inconstitucional, baseando-se no plano de validade, pois como doutrina
Barroso (2009b, p. 15), “[...] ato inconstitucional é ato nulo de pleno direito.”
O controle de constitucionalidade é uma “arma” contra os ataques a
direitos consagrados na Carta Magna, configurando-se como importante meio
para a preservação e garantia das liberdades públicas, assegurando que os

237
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

preceitos previstos na Constituição sejam conservados e cumpridos, evitando


ofensas aos princípios fundamentais (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 94).
A legitimidade para o exercício do controle de constitucionalidade
depende da estruturação de cada ordenamento e suas peculiaridades quanto
ao princípio da separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário),
a fim de permitir ou não a interferência de um sobre o outro e, dessa forma,
determinar se o sistema de controle será essencialmente político ou jurídico.
O modelo de sistema de controle de constitucionalidade adotado
pelo Brasil é denominado misto, visto que submete as leis inconstitucionais
à apreciação tanto dos órgãos responsáveis pelo controle político quanto dos
responsáveis pelo controle jurisdicional (BESTER, 2005, p. 340).

2.1 ESPÉCIES DE CONTROLE E MODELOS

Do ponto de vista de sua natureza e momento de realização, o controle


de constitucionalidade segue dois modelos básicos: o modelo político, ou
preventivo, e o modelo jurisdicional, ou repressivo.
O controle preventivo, ou a priori, remete à “prevenção”, ou seja,
prevenir que lei inconstitucional seja promulgada e ingresse no ordenamento,
cabendo aos poderes Executivo e Legislativo o realizarem, ainda quando se
trata de projeto de lei, ou seja, ainda em fase de processo legislativo, a fim de
evitar que uma norma inconstitucional passe a ter vigência e posteriormente
eficácia no ordenamento (MORAES, 2009, p. 703).
Para tanto, vislumbram-se duas hipóteses de controle preventivo,
quais sejam as comissões de constituição e justiça e o veto jurídico a cargo
do Presidente da República nos termos do art. 66, § 1° da Constituição
Federal, vetar projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional se entender ser
inconstitucional (MORAES, 2009, p. 707).
Concomitantemente, o controle repressivo, ou a posteriori, visa afastar
a incidência da norma, retirando-a do ordenamento jurídico, permitindo o
exercício tanto na forma concentrada quanto na forma difusa. O controle
repressivo típico é exercido pelo Poder Judiciário, contudo, de forma atípica,
esse controle repressivo poderá igualmente ser exercido pelos Poderes
Legislativo e Executivo.
A utilização do controle de constitucionalidade em sua forma difusa,
como assevera Moraes (2009, p. 608), é “[...] permissão a todo e qualquer
238
Diálogos sobre direito e justiça

juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade


do ordenamento jurídico com a Constituição Federal”, e também é conhecido
como o controle pela via de exceção ou defesa, controle posterior, aberto ou
concreto, e/ou ainda controle pela via incidental e segue o modelo norte-
americano de controle constitucional, sendo realizado quando da existência
de um caso concreto, de um litígio concreto, instaurado perante o Judiciário.
O controle concentrado, todavia, segue o modelo austríaco, difundido
por Kelsen, que adentrou no ordenamento jurídico brasileiro com a Emenda
Constitucional de n. 16 do ano 1965, que estabeleceu a competência para o
Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente a representação
de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, a
ser proposta, exclusivamente, pelo Procurador-Geral da República, com
a finalidade de obter a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato
normativo em tese, independentemente da existência de um caso concreto,
visando-se à obtenção da invalidação da lei (MORAES, 2009, p. 627).
Mediante o controle concentrado, seguem as seguintes ações: ação
direta de inconstitucionalidade genérica; ação direta de inconstitucionalidade
interventiva; ação direta de inconstitucionalidade por omissão; ação
declaratória de constitucionalidade; e arguição de descumprimento de preceito
fundamental.

3 CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

A ideia de controle difuso de constitucionalidade adotado no


ordenamento nacional possui sua origem histórica atrelada ao célebre caso
Marbury versus Madison, de fevereiro de 1803, frente à Suprema Corte Norte-
Americana, em razão da decisão proferida pelo Juiz John Marshall, caso que
se tornou referência, pois foi a primeira vez que a Suprema Corte Americana
declarou a inconstitucionalidade de uma lei federal a fim de preservar a
superioridade hierárquica da Constituição Federal.
Tal controle figura no Brasil desde a primeira constituição republicana
de 1891, sendo ainda hoje a única via de tutela dos direitos subjetivos
constitucionais aos cidadãos comuns (BARROSO, 2009b, p. 89).
O controle difuso ou controle por via de exceção ou defesa possibilita
que qualquer membro do poder judiciário ou tribunal, no desempenho de
sua função judicial, interprete e analise a compatibilidade da norma invocada
239
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

com a Constituição Federal, declarando a inconstitucionalidade de forma


incidenter tantum (forma incidental), pressupondo a existência de uma ação
judicial, um caso concreto com conflito de interesses no qual a causa de pedir
processual tenha sido fundamentada com base em uma lei ou ato normativo
incompatíveis com a Constituição.
Necessário destacar que nesse tipo de controle a declaração de
inconstitucionalidade proclamada pelo juiz ou tribunal, em relação ao
interessado, gera o efeito de tão somente isentá-lo do cumprimento da lei
contrária à Constituição, permanecendo, contudo, os efeitos em relação a
terceiros interessados, no que se refere à sua força obrigatória, visto que não
se pretende declarar a nulidade da lei, nem retirá-la do ordenamento jurídico,
mas, sim, reconhecer sua inconstitucionalidade incidental e afastá-la do caso
concreto (MORAES, 2009, p. 710).
Para tanto, qualquer interessado no processo tem a faculdade de suscitar
a questão de inconstitucionalidade a qualquer juízo ou tribunal de âmbito
nacional, podendo ser levantada pelo réu por contestação, reconvenção ou
exceção; o autor em ações de qualquer natureza seja civil, trabalhista ou eleitoral;
terceiros interessados na relação processual ou ainda pelo Ministério Público,
que como custos legis deverá intervir, manifestando-se a respeito da questão
incidental, mesmo que no processo em rigor não seja necessário, respeitando,
dessa forma, o princípio geral do controle jurisdicional de que não pode haver
juízo sem autor, bem como ser reconhecida ex officio pelo juiz ou tribunal
competente, caso nenhuma das partes a tenha suscitado (BULOS, 2011, p. 201).
Observa-se, assim, que qualquer tribunal de primeiro ou segundo
grau, e tribunais superiores, serão competentes para decidir a questão de
inconstitucionalidade em via de exceção.
Vale ressaltar, nas palavras de Barroso (2009b, p. 94), que:

O controle incidental de constitucionalidade é um con-


trole exercido de modo difuso, cabendo a todos os ór-
gãos judiciais indistintamente, tanto de primeiro como
de segundo grau, bem como aos tribunais superiores. Por
tratar-se de atribuição inerente ao desempenho normal
da função jurisdicional, qualquer juiz ou tribunal, no ato
da realização do Direito nas situações concretas que lhes
são submetidas, tem o poder-dever de deixar de aplicar o
ato legislativo conflitante com a Constituição.

240
Diálogos sobre direito e justiça

Todavia, convém destacar que apesar de plena, a competência dos


juízes de primeiro grau de declarar a inconstitucionalidade é desempenhada de
forma mais singela em comparação aos tribunais, visto que estes não se sujeitam
à reserva de plenário, conforme dispõe o artigo 97 da Constituição Federal,
princípio específico instituído aos tribunais, que determina que somente seja
declarada a inconstitucionalidade se por maioria absoluta de seus membros
ou dos membros do respectivo órgão especial em que se originou o processo,
inclusive dos tribunais de segundo grau e do Superior Tribunal de Justiça,
devendo respaldo aos procedimentos definidos no Código de Processo Civil.
Essa obrigatoriedade expressa deve-se ao fato de que no tribunal
competente – tendo sido distribuído o processo à turma, câmara ou seção
– será suscitada em razão de haver uma questão de ordem a ser analisada e
posteriormente remetida ao pleno para interpretação e julgamento, afastando
a possibilidade de qualquer órgão fracionário dos tribunais declarar a
inconstitucionalidade de uma lei sem que esta já tenha sido analisada e
reconhecida por órgão especial do próprio tribunal ou pelo próprio STF
(LENZA, 2009, p. 179).
Processada e julgada a questão, a decisão que declara a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo
pelo plenário do Tribunal somente gera efeitos inter partes, servindo, porém,
de precedente para outros casos que tramitarem no Tribunal, vinculando os
órgãos fracionários em casos idênticos (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 170).

3.1 O CONTROLE DIFUSO EXERCIDO PELO SUPREMO TRIBU-


NAL FEDERAL

A Constituição Federal dispõe, em seu artigo 102, que incumbe


ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a sua guarda. Assim, cabe à
Suprema Corte o processo e o julgamento de questões que afrontem o texto
constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, assim como todos os demais órgãos do
poder judiciário nacional, tem competência para realizar o controle incidental
e difuso de constitucionalidade, seja em processos de sua competência
originária (artigo 102, I, alínea “a”), seja mediante a interposição de recurso
ordinário (artigo 102, II), porém, é em sede de recurso extraordinário que o

241
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

STF desempenha a fiscalização concreta de questões constitucionais, de leis ou


atos normativos federais, estaduais ou municipais (BARROSO, 2009b, p. 101).
Assim, para que um processo chegue à Suprema Corte, a nível de
recurso extraordinário, deverá ter havido um prequestionamento da questão
suscitada na instância de origem, havendo, assim, uma reapreciação de
questões de direito já decididas em única ou última instância.
Entretanto, deve ser posto à baila a faculdade de o Pretório Excelso, por
deliberação espontânea de seus membros, tem de ex officio, suscitar questão de
inconstitucionalidade sem ter havido prequestionamento. Assevera-se, contudo,
que esta faculdade é tão somente reservada ao STF, em razão de sua posição
constitucional de guardião da Constituição. Quaisquer outros interessados
poderão levantar questões constitucionais, em sede de recurso extraordinário,
desde que já tenham sido prequestionadas (BULOS, 2011, p. 202).

3.1.1 Recurso Extraordinário

Segundo orientações mais recentes da jurisprudência da Suprema


Corte nacional, esta tem conferido, quando do julgamento dos recursos
extraordinários, efeitos que anteriormente eram considerados próprios do
controle concentrado (em via de ação).
Pode-se dizer que o recurso extraordinário é o instituto de direito
processual constitucional adequado para provocar a jurisdição constitucional
em um caso concreto.
São possíveis objetos de recurso extraordinário as questões,
com decisão recorrida que: contrariarem dispositivo constitucional, que
erroneamente declararem a inconstitucionalidade de lei ou tratado federal,
que julgarem válidas as leis ou atos de governo local que atuarem em conflito
de competência com as leis constitucionais, bem como leis de governo local
que afrontarem lei federal.
Para que seja julgado como recurso extraordinário, pela Corte Suprema,
a questão suscitada deverá, todavia, respeitar pressupostos de admissibilidade
e deve ser analisado como um pressuposto para a realização da atividade
jurisdicional que vai além dos interesses subjetivos.
Ademais, na interposição do recurso extraordinário, o recorrente deverá
apresentar preliminar formal e objetiva de repercussão geral, sob pena de não
242
Diálogos sobre direito e justiça

ser admitido o recurso (artigo 543-A, § 2º do CPC). A partir disso, o Tribunal


poderá acatar ou não a interposição do recurso; assim, se o STF decidir apreciar
a questão em razão de sua notoriedade, deverá fazê-lo mediante voto de no
mínimo quatro de seus membros, conforme estabelece artigo 543-A, § 4º do
CPC. Concomitantemente, se negar a existência de repercussão geral, por voto
de dois terços dos seus membros, o recurso considerar-se-á não admitido, caso
em que serão julgados, de acordo com sua natureza, pelos Tribunais, Turma de
Uniformização ou Turmas Recursais (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 197).
Esse pressuposto de repercussão funciona como um filtro para o Supremo
Tribunal Federal, visto que esse não julgará todos os recursos interpostos, mas
tão somente aqueles que causarem repercussão nacional, resguardando, assim,
sua superioridade perante os demais Tribunais, e, para tanto, não será aplicada
às Turmas do STF a cláusula de reserva de plenário para julgamento do recurso
extraordinário, determinada pelo art. 97 da Carta Magna.
Uma vez acatado e analisado o recurso extraordinário pela Suprema
Corte, a declaração de inconstitucionalidade proferida de forma incidental
gera efeitos retroativos, ex tunc, tornando a lei ou ato normativo sem efeito
desde a sua origem, atingindo somente as partes interessadas no processo.
A decisão de inconstitucionalidade proferida pelo STF em via de
exceção poderá, porém, produzir efeitos erga omnes, atingindo terceiros
interessados de forma ex nunc (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 148).
Para que seus efeitos se tornem gerais, a Corte Suprema deve emitir
resolução à competência do Senado Federal para que este suspenda a execução
da lei ou ato normativo, nos termos do art. 52, X da Constituição Federal,
tornando a norma sem efeito a partir desse momento, ou seja, ex nunc.

3.2 A SUSPENSÃO DA LEI DECLARADA INCONSTITUCIONAL


PELO SENADO FEDERAL

Após deliberação e voto da maioria de seus membros, deverá o STF


oficiar sua decisão, com caráter definitivo, à Mesa Diretora do Senado Federal,
para que, entendendo necessário, suspenda a norma, no todo ou em parte,
conforme estabelece o artigo 52, inciso X da Constituição Federal, sem haver,
contudo, prazo para a edição da resolução do Senado.
Tal comunicação é necessária, visto que a decisão definitiva declaratória
de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, não tem
243
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

o condão de fazer coisa julgada material enquanto o Senado não suspender


sua executoriedade, podendo, inclusive, ser aplicada por qualquer juiz e
pelo próprio STF, caso a entendam por constitucional. Isso ocorre, pois a
declaração de inconstitucionalidade, operada incidenter tantum, não é por si
só capaz de fazer coisa julgada, e nem declara a nulidade ou anulabilidade de
lei inconstitucional (GRINOVER, 2003, p. 7).
Cumpre destacar a legitimidade do Procurador Geral da República e
da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania do Senado Federal, que por
intermédio de projeto de resolução suspensiva poderão enviar a comunicação
da decisão sobre a declaração incidental de inconstitucionalidade à Mesa
Diretora do Senado (AGRA, 2006, p. 533).
Para Mendes (2004b, p. 257) essa suspensão da execução proferida pelo
Senado Federal foi a forma que o constituinte encontrou de “[...] emprestar
eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade” e,
assim, levar a questão ao conhecimento dos cidadãos, contudo, continua
abordando o Ministro Gilmar Mendes que “[...] a aparente originalidade de
forma tem dificultado o seu enquadramento dogmático”, questionando, pois, a
discricionariedade do ato praticado pelo Senado.
A natureza jurídica desse ato do Senado acarreta discussão aparente
na doutrina moderna, que questiona se há ou não a obrigação de o Senado
suspender a lei ou ato normativo declarados inconstitucionais, bem como se a
sua natureza é vinculatória ou discricionária.
Para, Ferreira Filho (1995, p. 35), tal suspensão “[...] não é posta
a critério do Senado, mas lhe é imposta como obrigatória”, não havendo a
faculdade de discutir acerca da decisão proferida pela Suprema Corte, devendo,
sim, suspender a execução do ato tido como inconstitucional, mantendo seu
caráter vinculatório.
Concomitantemente, de acordo com Bester (2005, p. 426, grifo do
autor), e grande parte da doutrina, seguindo a interpretação do artigo 52, X da
Carta Magna, o Senado “poderá, e não o Senado deverá suspender a execução
da lei, uma vez que não se trata de atribuição de natureza vinculada”, tratando-
se de ato político e discricionário, sujeitando-se ao juízo de conveniência e
oportunidade do legislativo, não havendo, tampouco, norma constitucional
que pré-estabeleça prazo para emitir resolução, ou que pune o Senado em
caso de não realizar a suspensão requerida pelo STF, caso contrário, seria
considerado afronta ao princípio constitucional da separação de poderes.
244
Diálogos sobre direito e justiça

Oportuno se faz mencionar que, conforme dispõe o artigo 52, X da


Constituição Federal, o Senado tem competência para suspender leis e atos
normativos dos três poderes, inclusive atos emanados pelo legislativo estadual e
municipal, atribuindo efeitos ex nunc com a suspensão da execução da lei ou ato
normativo, ou seja, seus efeitos começam a valer a partir da edição da resolução,
não alcançando direitos pretéritos por não retroagir e, portanto, os interessados
no processo que quiserem ter seus direitos protegidos por efeito retroativo devem
recorrer ao Poder Judiciário, visto que a resolução emitida pelo Senado não tem
competência para revogar uma lei inconstitucional, mas apenas suspender a sua
eficácia, tornando-a sem validade (AGRA, 2006, p. 534).
Conforme aduz Moraes (2009, p. 715), a efetividade do artigo 52, X
da Carta Magna sempre foi reduzida e este tem sido cada vez menos citado,
uma vez que ao Supremo Tribunal Federal, a partir da EC n. 45/04, coube
a faculdade de editar Súmula Vinculante nas questões constitucionais que
atingem repercussão nacional e, observados os requisitos dispostos no art. 103-
A, da Constituição Federal, devendo, outrossim, resguardar a especificidade
com o assunto tratado, evitando a demora na atuação judicial sobre o mesmo
assunto em ações idênticas julgadas em nível de recurso extraordinário.
O objetivo do artigo 52, X, da Constituição Federal, assim, seria de tão
somente tornar pública uma decisão proferida pela Corte Maior, levando-a ao
conhecimento dos cidadãos.

3.2.1 A Mutação Constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal

O ministro Gilmar Mendes, em seu artigo acerca do papel do Senado


Federal no controle difuso de constitucionalidade, levantou uma coerente questão:

[...] se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de in-


constitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia
de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que
haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida
no controle incidental, valer-se tão somente para as partes?

Sua resposta: uma “[...] razão de índole exclusivamente histórica.”


(MENDES, 2004b, p. 157).
245
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

A doutrina atual tem cada vez mais tratado do fenômeno da mutação


constitucional, em razão da arguição de obsolescência da atribuição do Senado
Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade, mas, segundo
Hesse (2009, p. 147), “[...] a possibilidade de uma mutação constitucional é
admitida de forma absolutamente majoritária”, interpretativa, visto que a
mudança no significado de uma norma não tem relação com a interpretação
legal, e continua asseverando que “[...] uma mutação constitucional modifica
o conteúdo das normas constitucionais de modo que a norma, conservando o
mesmo texto, recebe um significado diferente.”
Em 1934, quando foi instituída, vigia no Brasil uma concepção diversa
acerca da divisão dos poderes, já superada, mas que não admitia eficácia geral
para as decisões de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato de
normas, dependendo, para tanto, de uma decisão do Senado Federal.
O constituinte de 1988 manteve a atribuição do Senado no controle em
via difusa, mas, em contrapartida, introduziu significativa ampliação quanto
à propositura de ação direta de inconstitucionalidade, em via concentrada,
reduzindo a funcionalidade de tal atribuição senatorial, visto que quando há
discussão sobre inconstitucionalidade, perante um mesmo tribunal, tanto
em via difusa quanto concentrada, primeiro deverá ser exercido o controle
concentrado (AGRA, 2006, p. 534).
Assim, com a ampliação da legitimidade para propositura de ação direta
de inconstitucionalidade e consequente redução na atribuição do controle
difuso e incidental, o modelo de controle misto de constitucionalidade adotado
em nosso ordenamento passou a enfatizar o perfil concentrado de controle,
e não mais o difuso, uma vez que todas as controvérsias constitucionais de
grande importância e repercussão devem ser submetidas à Suprema Corte
mediante processo de controle em via abstrata de normas e com efeito
vinculante (MENDES, 2004, p. 158).
O ministro Gilmar Mendes sustenta, também, a ideia de que a
suspensão da execução de lei ou ato normativo emanada pelo Senado por
meio dessa resolução somente possui o condão de tornar pública a decisão
do STF, mostrando-se, porém, inadequada para garantir a eficácia geral ou
efeito vinculante às decisões do Supremo nos casos em que não declara a
inconstitucionalidade de uma lei e, assim, em suas palavras:

246
Diálogos sobre direito e justiça

[...] parece legítimo entender que, hodiernamente, a fór-


mula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado
Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta for-
ma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle
de incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de
que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos ge-
rais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para
que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal
como assente, não é (mais) a decisão do Senado que con-
fere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria
decisão da Corte contém essa força normativa. Assim, o
Senado não terá a faculdade de publicar ou não a deci-
são, uma vez que se não cuida de uma decisão substantiva,
mas de simples dever de publicação. A não publicação não
terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assu-
ma a sua real eficácia. (MENDES, 2004, p. 165).

Em sua tese, o Ministro Gilmar Mendes defende que em razão da


discricionariedade do Senado para suspender a execução da lei declarada
inconstitucional, esse instituto não possui mais relevâncias práticas que
o justifiquem, principalmente em razão de sua pouca utilização em casos
concretos, sendo objeto de revisão e nova interpretação, a fim de se chegar a
uma nova e mais moderna jurisdição constitucional, verificando-se, pois, um
caso de mutação constitucional, com o intuito de gerar novo sentido normativo
ao artigo 52, X, da Constituição Federal.
Contudo, uma pergunta vem à tona: houve uma mutação constitucional
ou o artigo em questão está apenas em desuso?
A verdade é que a Constituição e demais Leis devem acompanhar
as transformações sociais e atualizarem-se de acordo com os fatos sociais,
assim como aconteceu com o advento da EC/45 de 2004, que trouxe novas
perspectivas a alguns institutos de direito constitucional.
Quanto ao artigo 52, X, da Constituição Federal, não houve de fato uma
mutação constitucional, mas, sim, um gradual processo de desuso, em razão de
sua inadequabilidade social e pouca aplicação, encontrando-se completamente
superado, devendo ser excluído do ordenamento pátrio, logrando ao Supremo
Tribunal Federal eficácia erga omnes e efeito vinculante em via de exceção e
não somente de ação.

247
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

3.3 A APLICAÇÃO ERGA OMNES DO CONTROLE DIFUSO DE


CONSTITUCIONALIDADE E SEU EFEITO VINCULANTE

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a comunicação da decisão da


Suprema Corte ao Senado desde a Constituição de 1934, tendo sua origem
histórica relacionada, bem como o controle incidental de normas, ao direito
norte-americano, em que as decisões dos tribunais, inclusive da Suprema
Corte, são vinculadas a outros órgãos judiciais e passíveis de revisão.
Como no Brasil as decisões judiciais tomadas em via de exceção
não são atribuídas de eficácia vinculante em nenhum órgão jurisdicional,
outorgou-se ao Senado tal competência de atribuir eficácia geral à norma
declarada inconstitucional (BARROSO, 2009b, p. 129).
Dessa forma, a partir do momento em que o Senado suspender, no
todo ou em parte, a execução da lei levada a controle de constitucionalidade
incidenter tantum atingirá a todos, porém, não retroagirá. Todavia, tal
suspensão somente valerá a partir da publicação senatorial na Imprensa Oficial
(LENZA, 2009, p. 184).
A aplicação geral e vinculante das decisões proferidas pelo Tribunal
Supremo não devem ser vistas exclusivamente como uma mutação
constitucional, mas como uma necessária transformação e adequação da
normativa constitucional brasileira.
Ademais, em um sistema jurídico complexo como o do Brasil, em que
o controle de constitucionalidade é aplicado de maneira mista, é natural, como
doutrina Medina (2012, p. 112), que o controle difuso receba influência dos
métodos adotados para controle em via concentrada.
Assim, utilizando-se de métodos específicos e próprios do controle
concentrado, “[...] declarada a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
federal ou estadual, a decisão terá efeito retroativo (ex tunc) e para todos (erga
omnes), desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional.”
(MORAES, 2009, p. 763).
A doutrina moderna, a partir de jurisprudências da Suprema Corte, tem
adotado a teoria da transcendência dos motivos determinantes na sentença,
inclusive no controle difuso, sem, todavia, ser questão pacificada, como forma
de abstrativização do controle difuso, a fim de que seja garantida a segurança
jurídica e os interesses sociais, pautada na celeridade e economia processual,
com o intuito de conferir ao Supremo Tribunal Federal a legitimidade para
248
Diálogos sobre direito e justiça

proferir declarações de inconstitucionalidade incidenter tantum, e com efeitos


erga omnes, pro futuro e vinculantes.
Essa nova perspectiva, para as declarações de inconstitucionalidade em
via de exceção, discute a atividade do Senado Federal, concebida pelo artigo 52,
inciso X, da Constituição Federal, de forma a reduzi-la, tornando sua resolução
meio de, apenas, dar publicidade às decisões definitivas proferidas pela Corte
Maior. Todavia, apesar de ser possível perceber um número notável de decisões
que se utilizam desse pensamento, a questão ainda não se encontra pacificada,
havendo posicionamentos contrários, que discutem a sua aplicabilidade.
Contudo, observando algumas decisões proferidas pelo pleno do STF na
última década, pode-se notar que este vem declarando a inconstitucionalidade
de Lei ou ato normativo em via incidental com efeitos genéricos, erga omnes,
independente da resolução senatorial. Cumpre indagar, então: esta teoria
da abstrativização é constitucional ou não? Ou será a questão caso de uma
mutação constitucional?
Em suma, o Supremo entende que se suas decisões já são de última instância,
então a função do Senado seria de somente dar publicidade às suas decisões.
A intenção do Supremo não é de atropelar normas jurídicas para
atender a suas necessidades, mas, sim, de encontrar uma maneira célere e
processualmente econômica, dentro de um normativo jurídico constitucional
de evitar a obsolência da atividade do Senado Federal.
Lenza (2009, p. 187) aduz que os principais argumentos para justificar
a utilização dessa teoria da transcendência seriam: “[...] força normativa
da Constituição; princípios da supremacia da Constituição e sua aplicação
uniforme a todos os destinatários; o STF enquanto guardião da Constituição e
seu intérprete máximo e a dimensão política das decisões do STF.”
O leading case, que abriu a discussão doutrinária sobre o assunto, foi o
acórdão proferido pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do
Recurso Extraordinário n. 197917 do Estado de São Paulo, em que fora relator
o Ministro Maurício Corrêa. Conforme ementa, disponível no site do STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂ-


MARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTO-
NOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS.
NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À
POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE
249
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO


DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABI-
LIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPU-
LAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCON-
STITUCIONALIDADE, ‘INCIDENTER TANTUM’, DA
NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO.
SITUAÇÃO EXCEPCIONAL.
[...]
7. Inconstitucionalidade, ‘incidenter tantum’, da lei local
que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que
sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente
comporta 09 representantes. 8. Efeitos. Princípio da segu-
rança jurídica. Situação excepcional em que a declaração
de nulidade, com seus normais efeitos ‘ex tunc’, resultaria
grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Pre-
valência do interesse público para assegurar, em caráter
de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de
inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido
e, em parte, provido. (SÃO PAULO, 2002).

O Ministério Público do município de Mira Estrela, Estado de São


Paulo, ajuizou ação civil pública para redução do número de vereadores de
11 para nove, alegando que o art. 6º da Lei Orgânica do Município estava
em divergência com o art. 29, inciso IV, alínea “a”, da Constituição Federal; a
inconstitucionalidade foi percebida pelo juiz de primeiro grau de jurisdição,
que julgou procedente o pedido do MP municipal. O município e a câmara de
vereadores apelaram e o TJ/SP proveu o recurso. Em julgamento do Recurso
Extraordinário pelo STF, os ministros acordaram declarando parcialmente
procedente o pedido do MP, restabelecendo a decisão do juiz monocrático,
declarando inconstitucional, incidenter tantum, o artigo em questão. Quanto
aos efeitos, para preservação do princípio da segurança pública e prevalência
do interesse público, com caráter de excepcionalidade, aplicaram-na com
efeitos genéricos e pro futuro, asseverando em acórdão que “[...] a declaração
de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo
o sistema legislativo vigente.”
Lenza (2009, p. 187), analisando tal Recurso Extraordinário, faz
referência ao voto do Ministro Gilmar Mendes, o qual ressaltou a aplicabilidade
dos efeitos vinculantes oriundos da própria ratio decidendi que motivou o
julgamento da questão inconstitucional.
250
Diálogos sobre direito e justiça

Outra decisão que acalentou discussão doutrinária sobre a possibilidade


de aplicação da teoria da transcendência no controle difuso foi o julgamento
sobre a constitucionalidade da progressão de regime no caso dos crimes
hediondos, em razão do Habeas Corpus n. 82959 do Estado de São Paulo, em
que foi relator o Ministro Marco Aurélio:

PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRES-


SÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cum-
primento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e
aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso
que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social.
PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUM-
PRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, §
1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDA-
DE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a
garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso
XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante
norma, do cumprimento da pena em regime integral-
mente fechado. Nova inteligência do princípio da indivi-
dualização da pena, em evolução jurisprudencial, assen-
tada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº
8.072/90. (BRASIL, 2006).

No julgamento, os ministros, por sua maioria, votaram para declarar,


incidenter tantum, a inconstitucionalidade do disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei
n. 8.072/90, admitindo o pedido de progressão de regime pela prática de crime
considerado hediondo. No acórdão, assevera-se que

[...] a declaração incidental de inconstitucionalidade do


preceito legal em questão não gerará consequências ju-
rídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois
esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento
do óbice representado pela norma ora declarada incons-
titucional [...]

Ou seja, decidiram pela aplicação da decisão com efeitos pro futuro (ex
nunc) e não a regra dos efeitos em controle difuso de que deve retroagir.
251
Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

Por ocasião desse julgamento, e de várias outras decisões que conferem


e admitem a eficácia erga omnes e, consequentemente, o efeito transcendente às
decisões do Supremo, o Ministro Gilmar Mendes, em sua obra sobre a mutação
constitucional, entende que a sentença em via de exceção teria, sim, o efeito de
transcendência de seus motivos determinantes, e, dessa forma, a declaração de
inconstitucionalidade incidenter tantum passaria a fazer parte também das razões
da decisão, gerando efeitos vinculantes. Continua o Ministro afirmando que:

[...] por razões de ordem pragmática, a jurisprudência


e a legislação têm consolidado fórmulas que retiram do
instituto da ‘suspensão da execução da lei pelo Senado
Federal’ significado substancial ou de especial atribuição
de efeitos gerais à decisão proferida no caso concreto [...]
(MENDES, 2004a, p. 164).

Assim, amplia a legitimação específica para a obtenção de uma


declaração erga omnes de inconstitucionalidade e acrescenta efeito vinculante
às suas decisões, para que todos que estiverem na mesma situação jurídica
possam aproveitar de seus efeitos.
A verdade é que, dessa forma, as decisões do Supremo Tribunal Federal
passariam a ter mais coerência com a sua função precípua.
Porém, conforme expõe Lenza (2009, p. 188), apesar de essa teoria
da transcendência parecer “[...] bastante sedutora, relevante e eficaz,
inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de
celeridade processual, e de implementação ao princípio da força normativa da
Constituição”, ainda precisam sem pacificadas regras e dispositivos processuais
e, principalmente, constitucionais, para que seja amplamente utilizada, visto que,

[...] se aceita, nos parâmetros propostos, a transcendên-


cia, com caráter erga omnes, dos motivos determinantes
da sentença no controle difuso autorizaria, inclusive, o
uso da reclamação em caso de descumprimento da tese
constitucional resolvida enquanto questão prejudicial.
(LENZA, 2009, p. 189).

Diante disso, as correntes doutrinárias e as orientações jurisprudenciais


têm utilizado como meio de solucionar a discussão a edição de Súmulas
Vinculantes, que adentraram em nosso ordenamento com a Emenda
Constitucional n. 45 de 2004, que alterou a redação do artigo 103-A da
252
Diálogos sobre direito e justiça

Constituição Federal e, assim, vincular todos os órgãos do poder Judiciário e


da administração pública direta ou indireta.

4 CONCLUSÃO

Pelo exposto, pode-se constatar que tanto a mutação constitucional


quanto a teoria da transcendência dos motivos determinantes acabam por
“aproximar” a natureza jurídica dos controles concentrado e difuso, em
razão dos seus efeitos e procedimentos, revelando uma nova compreensão
jurisprudencial acerca do texto constitucional vigente, a fim de superar as
contradições oriundas da disposição do art. 52, inciso X, da Constituição
Federal, que, conforme se demonstrou, pode-se considerar ultrapassada na
esteira da corrente doutrinária exposta.
Dessa forma, em que pese a atuação do Supremo Tribunal Federal
e sua autonomia como guardião precípuo da Constituição, e de as teorias
mencionadas serem extremamente interessantes e capazes de promover uma
grande economia e celeridade processual, estas devem ser utilizadas com
cautela, visto que enquanto não houver a adoção de uma teoria e a previsão
de procedimentos próprios para sua aplicação, constitucionalmente previstos
e expressos, a desconsideração de um preceito (art. 52, X) que prevê a
participação política do Senado Federal no controle difuso, a fim de garantir a
eficácia geral das decisões da Suprema Corte, pode-se revelar ela própria uma
inconstitucionalidade.

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Camila Deitos, Camila Nunes Pannain

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Diálogos sobre direito e justiça

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255
OS TRANSEXUAIS E A ALTERAÇÃO DE
NOME E SEXO NO REGISTRO CIVIL DE
PESSOAS NATURAIS: PERSPECTIVA DOS
DIREITOS DE PERSONALIDADE E DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
Naiara Trevisan*
Cristhian Magnus de Marco**

Resumo: O presente trabalho teve por objetivo elucidar os aspectos sobre a retificação
do registro civil do transexual e os procedimentos para se alcançar tal finalidade. Ini-
cialmente, realizou-se uma abordagem histórica acerca do transexualismo, juntamen-
te com os fatores determinantes da sexualidade, bem como foram apresentadas as ano-
malias sexuais, enfatizando a transexualidade, tema do presente trabalho. Após, foram
analisados os direitos de personalidade juntamente com o princípio da dignidade da
pessoa humana, sendo argumentos determinantes para o deferimento da alteração do
nome e do sexo no registro civil, e, nesse sentido, foi analisada a abrangência da Lei de
Registros Públicos simultaneamente com o princípio da imutabilidade, principal em-
pecilho ao deferimento do pedido a uma nova identidade civil. Após a análise do con-
teúdo apresentado e com o estudo jurisprudencial, concluiu-se que há possibilidade de
alteração do nome e do sexo pelos transexuais em razão dos argumentos supracitados.
Palavras-chave: Transexualismo. Dignidade humana. Personalidade. Registro civil. Nome.

1 INTRODUÇÃO

A escolha pelo assunto abordado neste trabalho tem como finalidade


trazer ao conhecimento acadêmico uma reflexão acerca da possibilidade do
_________________________________________
*
Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Rede de Ensino Luiz Flavio Gomes;
Graduanda em Direito na Universidade do Oeste de Santa Catarina; naitrevi@hotmail.
com
**
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professor e pesquisador do
Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina;
cristhian.demarco@unoesc.edu.br 257
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

transexual a uma nova identidade civil considerando os direitos inerentes à


personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana.
O enfoque jurídico que se pretende com o presente trabalho está
voltado para a falta de legislação inerente ao transexual, desde o ato cirúrgico
à retificação do seu prenome no Registro Civil, bem como analisar quais
argumentos são elencados para requerer a referida alteração e o posicionamento
dos tribunais acerca do assunto.
A Resolução n. 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina, revogou
a Resolução n. 1.652/2002 que vigia anteriormente, não tendo inovado nos
aspectos a respeito da cirurgia de transgenitalização, apenas fixou requisitos
indispensáveis para a realização da intervenção cirúrgica.
Ressalta-se que não se teve a pretensão de esgotar o tema versado
em sede do presente trabalho, mas foi mantido o cuidado de abordá-lo com
responsabilidade e incansável procura de material bibliográfico, buscando
uma forma de regulamentação para os direitos e obrigações decorrentes da tal
cirurgia, para que esse indivíduo se integralize socialmente.

2 ASPECTOS RELEVANTES REFERENTES AO TRANSEXUALISMO

Para iniciar a discussão sobre o tema foi necessário fazer uma


abordagem histórica acerca do transexualismo, em que ficou evidente que o
assunto é muito antigo, inclusive aos doutrinadores que afirmam haver uma
confusão entre fatos históricos e a mitologia (SILVA, 2003, p. 13).
Durante o Império Romano e a Idade Média há relatos de
acontecimentos envolvendo transexuais (PLATÃO, 1999 apud ABREU, 2005,
p. 13), entretanto, na renascença foi que o assunto teve especial repercussão,
passando a ser observado do ponto de vista médico e reconhecido como
um transtorno passivo de tratamento hormonal ou cirúrgico. As primeiras
cirurgias de transgenitalização ocorreram na Dinamarca e na Alemanha, tendo
chegado ao conhecimento do mundo após a operação realizada nos Estados
Unidos em um jovem ex-combatente do Exército Szaniawski.
Justamente em meados de 1953 é que o termo transexualismo se
convalida a partir dos estudos de Harry Benjamin, publicados no livro
The Transexual Phonomenon; segundo ele, a partir do momento em que o
transexualismo passa a ser entendido como transtorno, ganha reconhecimento,

258
Diálogos sobre direito e justiça

sendo o tratamento hormonal e cirúrgico o mais adequado para os portadores


do referido transtorno (PERELSON, 2011, p. 3).
No Brasil, somente em 1997, por intermédio da Resolução n.
1482, o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização de cirurgias
de transgenitalização em pacientes transexuais, considerando que tal
procedimento teria um caráter terapêutico (LEITE, 2009, p. 20).
Dessa forma, como bem destacou Perelson (2011, p. 4), podemos
observar que o que será discutido é, apesar de essencialmente antigo, moderno
quanto à ciência, podendo ser definido uma incongruência sexual, estudada e
definida por várias teorias a serem vistas a seguir.

2.1 DA IDENTIDADE SEXUAL

Antes de adentrar na exata discussão do transexualismo, é necessário


compreender o que significa a identidade sexual de cada pessoa. É sabido que o
meio cultural tem grande relevância na determinação da personalidade sexual,
e, segundo o que determina Diniz (2002, p. 232), “[...] a identidade sexual é um
princípio constitucional atinente ao direito de personalidade.”
Segundo Szaniawski (1998, p. 34), o sexo constitui uma das
características primárias para a identificação da pessoa e pode ser definido
pelo conjunto de atributos que distinguem o macho da fêmea, ou o conjunto
de indivíduos que possuem a mesma conformação física e é por intermédio
dela que se cria a identidade sexual.
Habitualmente, a identidade sexual acontece pelo sexo biológico e é
determinada pelos padrões culturais, sendo essencialmente importante o papel
da sociedade na criação dessa identidade, determinando papéis, tomando por
base o sexo genético e jurídico para formar o sexo social (HUMILDES, 2008,
p. 221). Entretanto, para a real definição da identidade sexual de uma pessoa,
deve-se considerar alguns aspectos, sendo eles: o sexo genético, endócrino,
morfológico, psicológico e jurídico (SZANIAWSKI, 1998, p. 35).
Para chegarmos à identidade sexual de um indivíduo é preciso
considerar todos os aspectos; entretanto, pode-se afirmar que somente se
apresenta um quadro de normalidade quando há um sincronismo de todos
os elementos e das características psicológicas e biológicas, portanto, a busca
dessa sincronia é o ponto mais importante da identidade sexual do indivíduo.

259
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

Todavia, há que se considerar a existência em algumas pessoas de


um forte desejo de mudar de sexo, devendo ser desconstituída a ideia de
que prevalece o sexo biológico. Quando não houver essa sintonia entre os
elementos, Vieira (apud ARAUJO, 2000, p. 25-26) afirma que “[...] havendo
discrepância (os componentes para a determinação do sexo), o componente
que apresenta maior relevância é o psicológico.”
Assim, faz-se compreender que para a determinação do sexo,
inicialmente, prevalece o sexo biológico; entretanto, com o passar do tempo,
conforme o ser humano se desenvolve, pode haver uma dissociação entre o sexo
biológico e o sexo psicológico, momento em que deverá prevalecer o psicológico.
Ademais, cumpre fazer uma singela distinção entre as diversas
orientações sexuais vivenciadas pelos seres humanos; o indivíduo sexualmente
normal difere-se dos demais tipos sexuais quando, segundo Peres (2001, p. 106),
“[...] os fatores biológicos estão em harmonia com os psicológicos e sociais.”
A homossexualidade trata da orientação sexual em que o indivíduo
tem atração sexual e afetiva por uma pessoa do mesmo sexo; conforme salienta
Humildes (2008, p. 222), “[...] isso não acarreta qualquer aversão ao seu sexo
biológico, pois se reconhecem como homens ou mulheres de acordo com o seu
órgão genital.”
Não se trata de doença, mas de orientação sexual, não possuindo
conflitos inerentes à sua condição, pois para ele sua orientação sexual é clara
e seus órgãos genitais são fontes de prazer, assim, o Conselho de Medicina,
em 1993, retirou seu conceito do rol da classificação internacional de doenças
(ARAUJO, 2013).
Já o indivíduo portador do intersexualismo permanece no meio do
caminho entre os dois sexos definidores da espécie humana; sua maior
preocupação é que seja definido com precisão o sexo ao qual pertence e que
lhe permita a funcionalidade (SZANIAWSKI, 1998, p. 45).
Em se tratando de intersexualismo, os pais, ao registrarem as crianças
portadoras desse transtorno, o fazem com base no sexo predominante. Mais
tarde, durante a puberdade, quando começam a exibir transtornos físicos e
emocionais decorrentes do intersexualismo, é o momento em que se deparam
com a falta de identificação entre as estruturas sexuais que possuem (BARROS,
1990, p. 16), e, nesse caso, somente após um exame clínico minucioso feito por
um médico acompanhado de um terapeuta é que se torna possível o intersexual
se submeter à cirurgia corretiva.
260
Diálogos sobre direito e justiça

A bissexualidade refere-se ao desejo erótico, não exclusivo, pelos dois


sexos. Segundo Guines (2013), o bissexual sente atração e desejos sexuais por
ambos os sexos.
Importante destacar que o bissexualismo não se trata de uma situação
transitória do heterossexualismo ao homossexualismo ou vice-versa; o que
geralmente ocorre é o reconhecimento de uma identidade sexual independente
das demais, com características próprias, que de certa forma oscila entre as
duas supracitadas (PERES, 2001, p. 119).
Os travestis não apresentam qualquer disfunção no seu sexo, nem
mesmo possuem desejo de mudá-lo, apenas sentem vontade de se parecerem
com o sexo oposto; para isso fazem uso, por exemplo, de utensílios cosméticos,
cílios postiços e perucas, mas, acima de tudo, eles não rejeitam o seu sexo
(SCHWEIZER, 2010, p. 141).
Por fim, há que se tratar do transexual, o objeto de estudo do presente
trabalho, devendo ser considerado o transexual como a pessoa que não se
identifica com o seu corpo biológico, que se sente como se estivesse ocupando
um corpo e um sexo que não é seu, havendo uma verdadeira desconformidade
entre o seu psicológico e o seu estado físico (SCHWEIZER, 2010, p. 140).
Muitas vezes, o transexual é confundido com o hermafrodita, travesti
ou homossexual, quando na verdade são pessoas que não se identificam com
o seu corpo biológico, sentindo como se estivessem em um corpo que não
corresponde às suas características (ESCARELLI et al., 2002).
Importante frisar que não há no transexual qualquer problema com a
sexualidade; o conflito diz respeito à identidade, pois há uma divergência entre
o corpo e a imagem que tem de si. O problema do transexual é demonstrar
na realidade quem realmente é, existe uma dificuldade em exteriorizar a sua
verdadeira identidade.
Esclarece o Conselho Federal de Medicina, por meio das Resoluções CFM
n. 1.652/02 e n. 1.955/2010, que o transexual é o portador de desvio psicológico
permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à
automutilação, obcecados pela compulsão de pertencerem ao outro sexo.
Assim, entende Garcia (2010) que transexuais são aqueles que
apresentam características, como: desconforto com o sexo natural, desejo
explícito de perder as suas características genitais primárias e ganharem as do
sexo oposto, ausência de outros transtornos e permanência desse distúrbio de
forma contínua.
261
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

Apesar de, em muitos casos, os transexuais serem confundidos com


homossexuais, é importante trazer as lições de Garcia (2010); segundo ele,
os transexuais se diferem dos homossexuais e dos travestis, pois apresentam
incontáveis aversões psicológicas, em caráter continuado ao próprio sexo, o
que, segundo o entendimento médico, seria que, por conta das discriminações
atinentes à orientação sexual, muitos desenvolvem sérias patologias atinentes
à ordem psicológica, como depressão, angústias e síndromes da rejeição
(ROVARIS, 2010).

2.3 ASPECTOS MÉDICOS, JURÍDICOS E PSICOLÓGICOS NE-


CESSÁRIOS E RELEVANTES ACERCA DO TRANSEXUALIS-
MO: DA POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO CIRÚRGICA DE
TRANSGENITALIZAÇÃO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO

Conforme já mencionado, o transexualismo, em muitos casos,


origina-se na infância, antes mesmo da formação do discernimento do
indivíduo. Contudo, as primeiras manifestações da orientação sexual ocorrem
na puberdade, momento em que o corpo começa a se moldar conforme a
sua sexualidade; nessa fase, além dos questionamentos e das incertezas do
adolescente em relação ao seu corpo e ao seu sexo, o indivíduo transexual
se depara com constantes divergências entre o psicológico e o seu sexo físico
(ROVARIS, 2010, p. 19).
A sociedade é um fator preponderante para influenciar a formação das
convicções pessoais, laborais e até mesmo sexuais do indivíduo transexual.
Desse modo, muitas vezes, o transexual acaba se tornando vítima de preconceito
e, por medo de ser rechaçado e humilhado, acaba se isolando do meio social.
Em constante conflito consigo, o transexual ainda precisa encarar a
sua vida em sociedade e, por conta da discriminação atinente à orientação
sexual, acaba contraindo sérias patologias de ordem psicológica, como
depressão, angústias, síndromes de rejeição, tentativas de suicídio e, muitas
vezes, perpetram automutilação do seu corpo.
A fim de evitar descontentamentos em relação à divergência existente
entre o sexo físico e o psicológico, os transexuais conquistaram um grande
avanço na medicina com a possível cirurgia de transgenitalização, que
consiste na tentativa de adequação do sexo físico com o sexo psicológico, a

262
Diálogos sobre direito e justiça

fim de amenizar, ou, até mesmo, ceifar as angústias trazidas pela “disparidade”
harmônica no corpo físico e no corpo psicológico (ROVARIS, 2010, p. 21).
Entretanto, não há no Brasil lei que permita expressamente a realização
da cirurgia, apesar de ser majoritário o entendimento de que a referida cirurgia
não é estética, mas segundo Vieira (2003, p. 103), objetiva melhorar a saúde
do paciente. Para ele, o direito à integridade física está diretamente ligado ao
direito à saúde; “[...] a liberdade de cada um dispor sobre o próprio corpo deve
curvar-se diante da legítima necessidade da vida social e da ciência.”
Assim, no que diz respeito aos limites subjetivos da disponibilidade
do corpo humano, tem-se o consentimento da pessoa como de fundamental
importância para justificar a intervenção cirúrgica. Assim, conforme disciplina
Ferrera (apud SZANIASWSKI, 1998, p. 73), o consentimento do paciente para
a intervenção deve ser entendido como o exercício ao direito de liberdade,
traduzindo-se em uma atividade lícita por parte do médico, para o qual é
necessária a manifestação de vontade livre e consciente do paciente.
Ademais, a fim de se eximir de responsabilidades, é dever do médico
informar ao paciente os riscos da cirurgia, o paciente deve ser advertido de que
nem sempre, na realização da transgenitalização, alcançar-se-á uma perfeição
absoluta, para que somente após uma correta compreensão do problema o
paciente decida se irá ou não se submeter à intervenção cirúrgica (VIEIRA,
2003, p. 106).
O Conselho Federal de Medicina na Resolução n. 1.955/2010 e em
seus artigos 3º,1 4º2 e 5ºestipulou alguns requisitos a serem preenchidos antes
para se ver reconhecido o direito à realização da cirurgia de transgenitalização.

1
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo
enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2)  Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e
secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3)  Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.(Onde se lê “Ausência de outros transtornos
mentais”, leia-se “Ausência de transtornos mentais”)
2
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a
avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião,
endocrinologista, psicólogo e assistente social,  obedecendo aos  critérios a seguir
definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:1) Diagnóstico
médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
263
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

Entretanto, tal Resolução não significa a legalização desta, de modo que sua
autorização apenas se vislumbra no meio judicial.
Quanto ao caráter mutilatório da cirurgia de transgenitalização, é
importante colacionar o parecer do Ministro Celso de Mello (apud VIEIRA,
2004, p. 115), “[...] a operação não pode ser considerada mutilação. Eu saúdo
esta resolução do Conselho, que disciplina um ato cirúrgico que tem a função
básica de adaptar a morfologia sexual externa do paciente à sua realidade
psicológica.”
Segundo o que determina Rovaris (2010, p. 20), mesmo depois de
cumpridos os requisitos expressos na Resolução, faz-se necessário que a pessoa que
deseja realizar a cirurgia demonstre a realização de acompanhamento psicológico
apto a demonstrar a sua verdadeira identidade sexual antes da realização da
cirurgia. O acompanhamento pós-cirurgia deve perdurar, como explica Castro
(2007, p. 36), “[...] deve-se assegurar um acompanhamento psicológico, para
garantir a ideal adequação do paciente ao seu novo estado sexual.”
Assim, é possível inferir que apesar de não haver legislação específica
sobre o tema no Brasil, a Resolução elaborada pelo Conselho Federal de
Medicina tem o condão de amparar essas relações de forma adequada, e a
omissão de assistência médica de forma adequada e necessária afronta o direito
à saúde que vem amplamente apresentado na Constituição Federal. Destarte,
apesar de o entendimento jurisprudencial já estar trilhando o caminho da
possibilidade de redesignação do sexo, necessário seria permitir que as pessoas
portadoras dessa patologia pudessem exercer de forma plena o seu direito de
liberdade e dispor do próprio corpo.

3 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E A IMUTABILIDADE DA


LEI DE REGISTROS CIVIS

Os princípios são a origem de todo o ordenamento jurídico


contemporâneo no qual a Constituição Federal passou a ser compreendida
como um sistema aberto de normas e princípios e desempenha função de
fornecer fundamento material e formal aos subprincípios e às regras do sistema
normativo, buscando a prevalência dos direitos fundamentais e das ideias de
justiça (BARROSO, 2011, p. 340-341).
Para Alexy (2011, p. 87), “[...] princípios são normas com grau de
generalidade relativamente alto”, uma vez que a previsão dos fatos relatados
264
Diálogos sobre direito e justiça

ocorre de forma abstrata, e a aplicação dos princípios ocorrerá de forma


graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por
situações de fato, havendo, assim, uma valoração e ponderação das situações
(LENZA, 2011, p. 139).
A Constituição Federal de 1988 é composta por um conjunto de normas
fundamentais que tem por base os valores jurídicos fundamentais dominantes
na sociedade e esses valores fundamentais tratados pela Constituição Federal são
projetados nos princípios constitucionais (ARAUJO, 2000, p. 80). Estes, por sua
vez, incidem sobre o mundo jurídico e sobre a realidade fática de várias formas,
ora serão fundamentos diretos de uma decisão, ora incidirão indiretamente,
condicionando a interpretação de determinada lei (BARROSO, 2011, p. 342).

3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Inicialmente, cabe destacar que o princípio da dignidade da pessoa


humana trata-se de um conceito multifacetário, com incidência no campo
da filosofia, da política e do direito; apesar de ser considerado de extrema
importância, não pode ser classificado como absoluto, portanto, trata-se de
um valor fundamental, mas nunca absoluto (BARROSO, 2012, p. 63-64).
Destarte, a Constituição Federal de 1988 atribuiu ao princípio da
dignidade humana um avanço significativo no campo normativo, passando a
ser tratada como núcleo da proteção da pessoa humana, sendo recepcionado
pela Constituição Federal como um fundamento da República Federativa do
Brasil (SARLET, 2004, p. 61), e estando positivada no art. 1º, III,3 da CF.
Segundo Bulos (2011, p. 502), o princípio da dignidade da pessoa
humana agrega a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do ser
humano, e prossegue afirmando que a Constituição Federal de 1988 está
proclamando um imperativo de justiça social, pois reflete um conjunto de
valores civilizatórios incorporado ao homem.
Assim, compreende-se que a ideia de proteção da dignidade da pessoa
humana está fundada nos objetivos da sociedade em tornar o homem feliz, e, no
3
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988, grifo nosso).
265
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

caso dos transexuais, se aquele nome masculino ligado a uma pessoa feminina,
ou o inverso, está colocando a pessoa em uma situação vexatória, expondo-a ao
ridículo, o ordenamento jurídico, ainda que não faça previsão, deve amparar o
direito do cidadão a uma vida plena (BESSO; CAMPOS; PAES, 2010).
Igualmente, para Besso, Campos e Paes (2010, p. 170), na Constituição
Federal brasileira, há pelos menos três expressões do princípio da dignidade
da pessoa humana, quais sejam: a primeira está ligada aos direitos do homem,
ou seja, o direito à vida, à liberdade, bem como o fundamento de proporcionar
a cada um o que é seu de direito; na segunda, são considerados os direitos
do homem em sentido estrito, compreendidos nos tratados e nas convenções
que reconheceram a dignidade do homem como fundamento; e, por último,
tem-se a expressão dos direitos fundamentais, sejam eles aqueles tratados
incorporados pelo ordenamento brasileiro ou aqueles reconhecidos pela
própria Constituição Federal.
Por isso, diz-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é o
fundamento da República Federativa do Brasil, e os direitos fundamentais
constantes do art. 6º,4 da CF, representam a aplicação da dignidade da pessoa
humana. Assim, quando violados os seus ditames, consequentemente, será
vedado o referido princípio fundamental (DIAS, 2012, p. 185).
Assim, deve-se reconhecer que o transexual, sendo pessoa humana, é
também parte desse centro de valores sobre os quais incidem as normas de direito
positivo e também todas as normas de caráter natural, e que, por conseguinte,
deve ser protegido pelo ordenamento, assim como os demais cidadãos.

3.2 DIREITO AO NOME COMO DIREITO PERSONALÍSSIMO

Os direitos de personalidade estão assegurados de forma genérica


no inciso III, do art. 1º, bem como foi especializado no caput do artigo 5º da
Constituição Federal alguns direitos de personalidade destinados a fortalecer
a tutela da personalidade humana (SZANIASKI, 2005, p. 144).
Ainda, o Código Civil de 2002, em sua parte geral, inovou com a
existência de um capítulo próprio destinado aos direitos da personalidade
visando à sua salvaguarda (GONÇALVES, 2011, p. 190). Isso porque a
personalidade faz parte da natureza do ser humano, sendo constituída por
4
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
266
Diálogos sobre direito e justiça

um conjunto de características próprias que, no âmbito jurídico, referem-se


a bens pertencentes à pessoa, são eles: vida, igualdade, liberdade, segurança e
propriedade, essenciais à pessoa humana e, ligados ao ser humano de modo
inseparável, nascem com o próprio homem, sendo este titular desses direitos,
pois personalidade é parte do indivíduo, é por meio dela a pessoa poderá
adquirir e defender os demais bens (ALMEIDA, 2007, p. 12).
Para Coelho (2010, p. 196), os direitos de personalidade são essenciais,
uma vez que não podem ser destacados da pessoa que é titular, bem como que
para o exercício desses direitos é suficiente a titularidade da personalidade, ou
seja, a aptidão de ser sujeito de direitos e obrigações.
O ordenamento jurídico brasileiro trata do nome como direito de
personalidade pertencente à integridade moral, como se observa da redação do
art. 165 do Código Civil de 2002, uma vez que todo o indivíduo tem direito de
ser reconhecido em sociedade por uma denominação própria (GONÇALVES,
2011, p. 201). No mesmo sentido, leciona Monteiro (2012, p. 377), dizendo
que “[...] o direito ao nome é um direito da personalidade porque emana da
própria personalidade.”
Também, Venosa (2011, p. 187-188), após abordar diversas correntes
acerca da natureza jurídica do nome, filia-se à corrente majoritária de que o
nome é uma forma de individualização da pessoa perante a sociedade em que
vive e interage; é tão importante que tudo e todos têm nome, sendo por meio
dele que se distinguem coisas e pessoas das demais.
O prenome é livremente escolhido pelos pais, podendo utilizar-se de
expressões mais ou menos usuais, segundo o seu desejo, e, em princípio, deve
acompanhar o indivíduo por toda a vida como marca distintiva na sociedade.
Entretanto, o art. 556 da Lei de Registros Públicos veda a atribuição
de nomes que expõem o indivíduo a situações vexatórias. Dessa forma, deve
o oficial registrador suscitar dúvida perante o juiz que decidirá se o prenome
adotado pelos pais pode ou não ser registrado; exceto essa hipótese, não poderá
ser recusado o registro de nenhum nome (COELHO, 2010, p. 199).
Acerca do pseudônimo, que não se trata de elemento do nome, mas
é utilizado como substituto do próprio nome, ocorre igualmente. Como,
geralmente, o pseudônimo é escolhido pelo próprio indivíduo há uma
5
Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o
sobrenome.
6
 Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante
do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não
o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato.
267
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

tendência de que haja uma identidade maior do que com o próprio nome.
Entretanto, ao pleitear a alteração do prenome pelo pseudônimo deve-
se considerar o respeito ao princípio da imutabilidade, que será debatido
posteriormente (MONTEIRO, 2012, p. 371-373).
Igualmente, disciplina o art. 197 do Código Civil de 2002, que quando
utilizado para meios lícitos, o pseudônimo recebe a mesma proteção que o
nome, mas para que seja reconhecido e protegido o pseudônimo, não basta
que ele seja utilizado apenas uma vez, é imprescindível que ele seja notório
para o reconhecimento de determinada pessoa, ademais, da mesma forma
deve ser tratado o apelido notório, pelas mesmas razões em que a lei protege
o pseudônimo, uma vez que em muitos casos a pessoa é mais conhecida
pelo apelido do que pelo próprio nome civil, o que não faz sentido dispensar
proteção (MONTEIRO, 2012, p. 373).
Como visto alhures, o direito ao nome integra a gama de direitos
personalíssimos e deve ser protegido pelo ordenamento e regido pelo princípio
da imutabilidade, como em regra deve acompanhar o indivíduo pelo resto da
vida; entretanto, essa proteção deve ser vista com ressalvas quando concernente ao
prenome, uma vez que em algumas situações, após atingir a maioridade, o indivíduo
possa não mais se identificar com o prenome que lhe foi atribuído pelos pais.

3.3 ABORDAGEM DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS ACERCA


DA POSSIBILIDADE DA ALTERAÇÃO DO NOME E SEXO DOS
TRANSEXUAIS

Em contrapartida, a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/77) é


regida pelo princípio da imutabilidade, o qual, por sua vez, impede que sejam
modificados os prenomes no Registro Civil de Pessoas Naturais sem que haja
expressa previsão em lei. Segundo o que determina Carvalho (2013, p. 2),
“[...] esta regra apresentava justificativa na segurança jurídica, visando evitar
fraudes, sobretudo, impedindo o uso deste instituto por pessoas que tivessem a
finalidade de buscar possível isenção de responsabilidade civil ou penal.”
Acerca do princípio da imutabilidade do Registro Civil, salienta
Moreira (2011, p. 22-23) que a fixidez do nome garante à sociedade que se
possa imputar a um indivíduo as consequências de fatos que ocorreram
anteriormente, sob pena de serem estimuladas as práticas de ilícitos e o

7
Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.
268
Diálogos sobre direito e justiça

inadimplemento dos contratos, ante a patente impossibilidade de identificar


os autores de cada ato jurídico.
Sabe-se que os Registros Públicos relatam fatos históricos da vida
do indivíduo, tendo como finalidade assegurar a publicidade de certos
acontecimentos de interesse coletivo e contribuir para a segurança jurídica,
a fim de evitar fraudes. Em razão dessa finalidade é que qualquer hipótese de
alteração dos registros depende de minuciosa motivação (GARCIA, 2010).
Outrora, sabe-se que a Lei Registros Públicos, além de ser regida pelo
princípio da publicidade, deve fielmente observar o princípio da imutabilidade
do prenome, que, segundo Lenza (2012, p. 137-137), “[...] é salutar, devendo
ser afastada somente em caso de necessidade comprovada”, uma vez que a
facilitação da mudança pode ser realmente nociva aos interesses sociais.
Fazendo referência ao princípio da imutabilidade, o art. 588 da referida
Lei dispunha em sua redação original que o prenome seria inalterável. Destarte
ser este o entendimento que predomina ao longo do tempo, esse artigo sofreu
alterações prevendo algumas possibilidades de alteração do registro (VENOSA,
2011, p. 190).
Diante dessa situação, Lenza (2012, p. 138) afirma que “[...] o critério
adotado é, portanto, da imutabilidade relativa do prenome”, haja vista a
possibilidade de alteração do prenome em razão de erro gráfico, sendo
assegurado por meio do art. 110,9 bem como a mudança no caso de nome
8
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por
apelidos públicos notórios. Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda
admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com
a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o
Ministério Público.
9
Art. 110.  Os erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata
de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo oficial de registro
no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo
interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de
selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público.
§ 1º  Recebido o requerimento instruído com os documentos que comprovem o erro,
o oficial submetê-lo-á ao órgão do Ministério Público que o despachará em 5 (cinco)
dias. 
§ 2º  Quando a prova depender de dados existentes no próprio cartório, poderá o
oficial certificá-lo nos autos. 
§ 3º Entendendo o órgão do Ministério Público que o pedido exige maior indagação,
requererá ao juiz a distribuição dos autos a um dos cartórios da circunscrição, caso
em que se processará a retificação, com assistência de advogado, observado o rito
sumaríssimo. 
§ 4º  Deferido o pedido, o oficial averbará a retificação à margem do registro,
mencionando o número do protocolo e a data da sentença e seu trânsito em julgado,
quando for o caso. 
269
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

vexatório ou que expunha ao ridículo, visto o que determina o art. 5510 do


mesmo codex.
Em relação específica aos transexuais não há norma na Lei de Registros
Públicos para socorrer o seu suplício, visto que não se pode invocar o artigo
34811 do Código Civil, pois não se trata de erro e nem de retificação de registro,
trata-se apenas de alteração do estado individual desse indivíduo à sua nova
identidade sexual, o que deve ser requerido judicialmente (LEITE, 2009, p. 39).
Outrossim, para Schweizer (2010, p. 158), não há que se falar
em retificação do Registro Civil, já que não se pretende corrigir um erro
efetivamente e sim a intenção é proceder uma averbação de sexo ou nome
diverso, e, em razão disso, o que se tem visto são muitas decisões com
posicionamentos distintos, sem que possa haver uma unanimidade na forma
dos procedimentos.

3.4 PERSPECTIVAS DOS PROJETOS DE LEIS ACERCA DA ALTE-


RAÇÃO DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS

Visando dar um respaldo legislativo acerca da alteração do nome e


do sexo no registro civil, vários Projetos de Leis foram editados, entre eles
o Projeto de Lei n. 70-B, que propõe alterar o art. 12912 do Código Penal e o
10
Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante
do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não
o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato.
Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis
de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com
a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de
quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.
11
Art. 348. Na hipótese do inciso I do artigo antecedente, vigorará o disposto quanto à
cessão do crédito.
12
 Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º - Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2 - Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incurável;
III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
270
Diálogos sobre direito e justiça

art. 5813 da Lei de Registros Públicos. Segundo o que determina Szaniawski


(1998, p. 204) a respeito do referido projeto, ele não fornece solução a toda
a problemática, uma vez que apenas regulariza a legislação já existente, não
visando aos conflitos existentes quanto aos transexuais que não realizaram a
cirurgia de redesignação de sexo, ou que fizeram a cirurgia no exterior, ou
ainda, aos que não desejam realizar a cirurgia e aos transexuais operados que
possuam filhos.
Quanto ao art. 129 do Código Penal, o problema já foi parcialmente
solucionado por meio da edição das Resoluções n. 1482/9714 e n. 1652/0215 do
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Lesão corporal seguida de morte
§ 3º - Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado,
nem assumiu o risco de produzi-lo:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Diminuição de pena
§ 4º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Substituição da pena
§ 5º - O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção pela
de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis:
I - se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior;
II - se as lesões são recíprocas.
Lesão corporal culposa
§ 6º - Se a lesão é culposa: 
Pena - detenção, de dois meses a um ano.
Aumento de pena
§ 7º - Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§
4o e 6o do art. 121 deste Código.
§ 8º - Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121.
 Violência Doméstica 
§ 9º - Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o
agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. 
§ 10 - Nos casos previstos nos §§ 1o  a 3o  deste artigo, se as circunstâncias são as
indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).
§ 11 -  Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime
for cometido contra pessoa portadora de deficiência. 
13
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por
apelidos públicos notórios.
Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de
fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por
determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
14
Resolução 1482/97: autoriza a título experimental, a realização de cirurgia de
transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários com o tratamento dos
casos de transexualismo. (D.O.U.; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1,
p. 20.944). REVOGADA pela Resolução CFM n. 1652/2002.  
15
Resolução 1652/02 Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e REVOGA a 271
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

CFM e o artigo 1316 do Código Civil/02, em que deixou de ser considerado


crime a intervenção cirúrgica.
A outra alteração prevista pelo Projeto é o acréscimo de dois parágrafos
ao art. 58 da Lei de Registros Públicos, um admitindo a mudança do prenome
mediante autorização no caso de comprovada realização de cirurgia e outro
determinando o registro no acento de nascimento das pessoas transexuais
tratarem-se de pessoas nessa condição.
Assim, segundo Escarelli et al. (2002), o Projeto colocaria fim à discussão
da jurisprudência, que até o momento é contraditória e discricionária, acerca
da possibilidade de alteração do nome e do sexo no registro civil.
Outrossim, no Projeto ficou estabelecida a obrigatoriedade de constar
o termo transexual no assento do Registro Civil em razão da redesignação
do sexo; entretanto, destaca Almeida (2007, p. 43), a menção da expressão
transexual seria capaz de expor a pessoa ao ridículo.
Diante de tal empecilho, a comissão que fez ressalvas quanto ao
parágrafo terceiro apresentou uma emenda aditiva, com o objetivo de criar um
parágrafo quarto, com a seguinte redação “É vedada a expedição de certidão,
salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial.” Com isso,
fica clara a intenção de proteger a intimidade e a vida privada do transexual
operado, para que ele não sofra (DIAS, [2014]).
Outro Projeto de Lei, sob o n. 6.655/06,17 foi proposto à Câmara de
Deputados em 2006; visando também alterar a Lei n. 6015/73, incluindo a
possibilidade de alteração do prenome de homens e mulheres transexuais,
mesmo que não tenham feito a cirurgia de redesignação de sexo; segundo
o Projeto de Lei, a alteração deve ser requerida, via judicial, mediante
apresentação de um laudo médico comprovando a condição de transexual. Por
outro lado, essa alteração ficaria anotada no livro de registro civil, não podendo
ser anotada em nenhum outro documento. Entretanto, quanto à alteração do
sexo, mesmo no caso de travestis operados, o Projeto apresenta uma lacuna,
visto que não abordou o tema sob nenhuma ótica (ALMEIDA, 2007, p. 32).
Resolução CFM n. 1.482/97. (Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF,
n. 232, 2 dez. 2002. Seção 1, p. 80). 
16
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,
quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na
forma estabelecida em lei especial.
17
Projeto de Lei n. 6655/06 altera o art. 58 da Lei n. 6015, de 31 de dezembro de 1973,
que dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências.
272
Diálogos sobre direito e justiça

Recentemente, em 2013, foi editado mais um Projeto de Lei acerca do


assunto: trata-se do Projeto n. 5002/2013, com o objetivo definido em seu art. 3º.18
O referido Projeto prevê a possibilidade de pessoas que ainda não
atingiram a maior idade pleitearem a alteração desde que a solicitação seja feita
por meio de seu representante legal, é o que dispõe o art. 5º.19 Há que se salientar,
outrora, que o Projeto, por meio do art. 4º� e incisos, visa à dispensabilidade
da realização de cirurgia para pleitear a retificação do registro, bem como
cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos supracitados o Projeto prevê
autorizar os cartorários a proceder a alteração sem a necessidade de nenhum
trâmite judicial ou administrativo.
Ademais, referido Projeto visa, também, assegurar o direito à
intimidade dos transexuais, uma vez que pretende assegurar o sigilo da
alteração, bem como a emissão de cópias das certidões de nascimento somente
serão concedidas após autorização expressa do titular.
Assim, no decorrer do tempo, é possível perceber algumas iniciativas
com o propósito de solucionar a problemática em torno do transexualismo,
por se tratar de um tema delicado e que ainda envolve preconceito de muitas
partes (ALMEIDA, 2007, p. 42).

3.5 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA RETIFICAÇÃO


DO REGISTRO CIVIL DO TRANSEXUAL

Realizando uma pesquisa jurisprudencial sobre o assunto, são


encontrados posicionamentos diversos acerca do deferimento ou indeferimento
da pretensão de retificação de nome e sexo do transexual, umas exigindo a

18
Art. 3º Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança
do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não
coincidam com a sua identidade de gênero autopercebida.
19
Art. 5º Com relação às pessoas que ainda não tenham dezoito (18) anos de idade,
a solicitação do trâmite a que se refere o artigo 4º deverá ser efetuada através de
seus representantes legais e com a expressa conformidade de vontade da criança
ou adolescente, levando em consideração os princípios de capacidade progressiva e
interesse superior da criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
§ 1º - Quando, por qualquer razão, seja negado ou não seja possível obter o
consentimento de algum/a dos/as representante/s do Adolescente, ele poderá recorrer
ele poderá recorrer a assistência da Defensoria Pública para autorização judicial,
mediante procedimento sumaríssimo que deve levar em consideração os princípios de
capacidade progressiva e interesse superior da criança.
§ 2º - Em todos os casos, a pessoa que ainda não tenha 18 anos deverá contar com
a assistência da Defensoria Pública, de acordo com o estabelecido pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente.
273
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

realização prévia de cirurgia, outras solicitando laudos psicológicos acerca do


verdadeiro estado do requerente.
A seguir, sem o intuito de esgotar o assunto, foram descritos alguns
posicionamentos para que possam ser discutidos:
Inicialmente, convém discutir o entendimento do STJ quanto ao
julgamento do Recurso Especial n. 1008398 (2007/0273360-5), julgado em 18
de novembro de 2009, em que é Relatora a Ministra Nancy Andrighi, deferindo
a alteração do nome e do sexo no registro civil, com fundamento no princípio
da dignidade da pessoa humana.
Conforme se depreende do referido acórdão, a requerente afirma
que apesar de ter nascido com o sexo masculino, cresceu e se desenvolveu
como mulher, bem como que após tratamento psicológico foi diagnosticada
como um tradicional caso de transexualismo. Asseverou que apesar de ter se
submetido à cirurgia de transgenitalização e de ter sido bem-sucedida, seus
documentos de identidade com nome e sexo, que já não condizem mais com a
sua realidade fática, causam-lhe grande constrangimento.
Em seu voto, a Relatora do processo, Ministra Nancy Andrighi,
sustentou que o caso merece especial cuidado, pois além de serem considerados
os direitos inerentes à requerente, é preciso tomar cuidado para garantir a
segurança jurídica que as decisões judiciais devem causar na sociedade. A
ministra asseverou que o deferimento da alteração do sexo no registro civil
em caso de transexuais operados já vem sendo uma ordem mundial, tendo
inclusive colacionado alguns julgados de outros países para elucidar os fatos.
Juntou ao seu voto o posicionamento de psiquiatras quanto ao tema; todos
eles destacam que a única medida terapêutica para as pessoas com esse tipo de
transtorno é a submissão à cirurgia.
No mesmo sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao
julgar a Apelação Cível n. 2011.034720-1, inclusive utilizando-se dos mesmos
argumentos supramencionados, especialmente o direito do apelado de viver
dignamente exercendo com amplitude seus direitos civis, sem restrições de
cunho discriminatório.
De igual modo, no julgamento do Recurso Especial n. 2007/0273360-
5, em que o Ministro João Otávio de Noronha é relator, ficou confirmada
a possibilidade da alteração do nome e do sexo no Registro Civil, com o
fundamento de que o objetivo dos Registros Públicos é relatar os fatos mais

274
Diálogos sobre direito e justiça

importantes da vida das pessoas, e, assim, para que esse objetivo seja cumprido
na integralidade deve relatar o estado sexual em que as pessoas se encontram.
Em outra decisão proferida pelo STJ, recentemente, no Recurso Especial
n. 1043004, julgado em 05 de agosto de 2013, discutiu-se a obrigatoriedade de
constar no assento do Registro Civil a razão da alteração do sexo e do nome em
razão de sentença judicial; ficou decidido como obrigatório constar a alteração
no Registro, entretanto, vedada a menção da alteração em qualquer certidão
que possa ser expedida.
Importante também se faz colacionar o entendimento do Egrégio
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que foi pioneiro no debate
jurisprudencial a respeito do assunto em comento. Segundo o seu entendimento,
e conforme já debatido no decorrer do presente trabalho, para o Tribunal
gaúcho a alteração do nome e do sexo no registro civil independe de cirurgia
de redesignação de sexo.
Assim, pode-se perceber que forte é o preconceito em toda a sociedade
em relação aos transexuais, contudo, o fato é que eles estão lutando para ver
seus direitos reconhecidos, enfrentando questões sociais e humilhações,
inclusive ingressando judicialmente com demandas para a retificação de seu
prenome nos registros civis, a fim de buscarem o direito a uma vida digna.

4 CONCLUSÃO

Ao final deste trabalho chega-se à conclusão de que para determinar


o sexo de um indivíduo deve-se considerar os critérios de definição da
sexualidade, observando-se que todos eles têm fundamental importância para
definir o transexualismo, tema da pesquisa realizada.
A ciência médica preocupou-se em diagnosticar a síndrome do
transexualismo e constatou que o tratamento adequado na maioria das
situações é a cirurgia de transgenitalização, autorizada apenas para o
transexual, em decorrência de ter a característica do desconforto em relação
ao seu órgão genital.
Não há qualquer lei que regule a realização da cirurgia no território
brasileiro. O que há é apenas a Resolução do Conselho Federal de Medicina
n. 1.955/2010, que dispõe diversos critérios a serem preenchidos antes da
autorização para a realização da referida cirurgia. Entretanto, para muitos

275
Naiara Trevisan, Cristhian Magnus de Marco

doutrinadores e hoje sendo o entendimento majoritário, o preenchimento dos


requisitos é suficiente para tornar lícita a realização da cirurgia.
O transexual busca sua integração social por meio da alteração do
nome, o que é considerado um direito integrante da personalidade, sendo
originário, vitalício, inalienável e absoluto, bem como o nome é a identificação
da pessoa no meio social em que vive, por isso é protegido pelo ordenamento
jurídico pátrio.
A Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, denominada Lei dos Registros
Públicos dispõe sobre a obrigatoriedade do assento de nascimento que deverá
conter o nome e o prenome que forem postos à criança. Observou-se que o
princípio da imutabilidade atinge o nome, impondo algumas possibilidades
apenas de proceder à alteração do nome no assento de nascimento.
Igualmente, em relação à identificação do sexo no assento de
nascimento, concluiu-se que na maior parte dos casos o registro é feito com o
que determina o sexo biológico, e sua alteração vem gerando grande discussão
doutrinária, considerando-se as inúmeras consequências que o deferimento
para a alteração pode gerar.
Em virtude da falta de Legislação inerente ao transexualismo aliada às
implicações que o deferimento para alteração pode ocasionar, a jurisprudência
teve de construir um entendimento para abarcar tal situação.
Assim, conforme explanado no presente trabalho, após estudos
doutrinários e jurisprudenciais, os transexuais viram reconhecido o direito
de alteração do nome e do sexo no registro civil, mesmo sem se submeter à
cirurgia de transgenitalização, uma vez que manter essas pessoas em desacordo
entre o sexo biológico e o psíquico é considerado uma afronta ao princípio da
dignidade da pessoa humana e aos direitos de personalidade, principalmente
no que diz respeito ao direito ao nome.
Desse modo, o direito à redesignação sexual e à retificação do nome e do
sexo no registro civil devem ser considerados essenciais para o pleno exercício
da dignidade da pessoa humana, da autonomia pessoal e da cidadania.

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284
PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE
SAÚDE EM FACE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS SOCIAIS: A
OBRIGAÇÃO DO ESTADO EM FORNECER
MEDICAMENTOS PARA A PROTEÇÃO
DA SAÚDE HUMANA
Silvana Miotto*
Mauricio Eing**

Resumo: Os direitos fundamentais exercem um importante papel para a concretiza-


ção do direito à saúde, sendo este um direito social, o qual exige do Estado o cumpri-
mento imediato, em razão da sua relevância e de ser um direito universal e igualitário;
qualquer pessoa pode exigir do Estado o fornecimento de medicamentos, indepen-
dente da situação econômica e do fármaco estar padronizado nas redes públicas de
saúde. Hoje, porém, existem princípios constitucionais que têm aplicação de normas,
como princípio da igualdade, proporcionalidade, universalidade e reserva do possível,
os quais devem ser observados nitidamente, a fim da melhor aplicação das receitas
públicas, sendo o direito à saúde uma prestação social materializada pelo Ente Público.
Este artigo aponta a importância dos direitos fundamentais, bem como dos direitos
sociais, e vê a emergência de fornecer aos indivíduos medicamentos não padroniza-
dos nas redes públicas de saúde como uma maneira de garantir a aplicabilidade dos
direitos fundamentais e do princípio da dignidade humana, já que a saúde é um direito
universal e igualitário.
Palavras-chave: Direito à saúde. Direitos fundamentais. Dignidade humana. Forneci-
mento de medicamentos.

___________________________________
*
Graduanda em Direito pelaUniversidade do Oeste de Santa Catarina; sil.
silvanamiotto@hotmail.com
**
Especialista em Direito Processual; Professor na Universidade do Oeste de Santa
Catarina; mauricio.eing@unoesc.edu.br
285
Silvana Miotto, Mauricio Eing

Provision of public health care service in the face of fundamental social rights: the
obligation of the state to provide medicines for protection of human health

Abstract: Fundamental rights have an important role for the realization of the right to
health, which is a social right, which requires immediate compliance with State, due to its
importance and to be a universal right and egalitarian; anyone may require the provision
of medicines, regardless of the economic situation of the individual and of the drug be
standardized public health networks, at the risk of hurting the principle of human dignity.
Today, however, there are constitutional principles that have application of standards and
these, such as the principle of equality, proportionality, universality and possible reserve
must be observed clearly in order to have the better application of the public revenue, and
the right to health is a social performance materialized by the public entity. This article
points out the importance of fundamental rights and social rights, and sees the emergence
of supplying non-standard medications individuals in public health networks as a way of
ensuring the applicability of fundamental rights and the principle of human dignity, since
health is a universal right and egalitarian.
Keywords: Right to health. Fundamental rights. Human dignity. Supply of medicines.
 
1 INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais são também conhecidos como direitos do


homem ou direitos humanos. São direitos subjetivos do indivíduo, contudo, seu
titular é o ser humano e são ainda elementos essenciais do ordenamento normativo.
Os direitos fundamentais são direitos absolutos do ser humano e sua violação
agride valores, como a dignidade humana. Desse modo, destaque-se a existência
dos direitos fundamentais sociais e direitos sociais, que envolvem prestações
materiais que o Estado deve assegurar aos indivíduos, considerando aquilo que é
garantido pela norma constitucional e, sobretudo, pelos princípios constitucionais,
uma vez que estes são essenciais para a efetivação do direito à saúde.
Portanto, o direito à saúde é garantido a todos, de forma universal
e igualitária, sendo necessário equilibrar o orçamento público, a fim de
garantir a aplicabilidade dos direitos sociais, em especial ao direito à saúde,
em meio à escassez dos recursos financeiros. Assim, o Estado deve fornecer
o fármaco necessário para tratar a saúde do indivíduo, sendo desnecessária a
comprovação da hipossuficiência e se está ou não padronizado, pois o direito à
saúde está incluído no rol dos direitos sociais, e a Constituição Federal garante
a todos o acesso igualitário e universal ao sistema de saúde.
286
Diálogos sobre direito e justiça

Para tanto, o método de pesquisa adotado foi o indutivo bibliográfico,


partindo de premissas gerais para as específicas. O estudo proposto está
estruturado em três seções, na seção inicial serão expostas as questões
pertinentes aos direitos fundamentais, sua importância e a aplicação do
princípio da dignidade humana, bem como a relação existente com os direitos
fundamentais sociais e os direitos sociais.
Na segunda seção tratar-se-á acerca da necessidade de aplicação dos
princípios constitucionais para a execução dos direitos sociais.
Derradeiramente, abordar-se-á na terceira e última seção o direito
à saúde e à sua prestação pelo Estado, sua efetividade frente à reserva do
possível, especificamente, o fornecimento de medicamentos de forma gratuita
pelo Estado, independente de estarem padronizados nas redes públicas e da
condição financeira daquele que necessita.
Enfatiza-se que o presente estudo não tem a pretensão de esgotar o
assunto, mas proporcionar discussões acerca da prestação de serviço público
de saúde, baseando-se na aplicação dos direitos fundamentais.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS

Inicialmente, a discussão sobre direitos fundamentais baseia-se na


própria expressão utilizada para designá-lo, pois alguns autores tratam como
direitos do homem, direitos humanos, direitos subjetivos públicos, direitos
individuais, contudo, a Constituição da República, ao tratar de direitos
fundamentais, utiliza diversas expressões, logo, o titular desses direitos
fundamentais será o ser humano (SARLET, 2006).
Por sua vez, há uma distinção entre os termos “direitos fundamentais” e
“direitos humanos”; procede que direitos fundamentais se aplicam aos direitos
do ser humano, indivíduo, que estão positivados na esfera constitucional
de um Estado, já direitos humanos tem relação com documentos de direito
internacional, pois se referem a posições jurídicas que reconhecem o ser
humano como tal, sem depender da vinculação com o Estado constitucional.
(SARLET, 2012).
Nesse contexto, preceitua Höffe (2000 apud SARLET, 2012, p. 31-32)
que: “Os direitos humanos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato
de ser pessoa humana) ao passo que os direitos fundamentais (positivados nas
Constituições) concernem às pessoas como membro de um ente público concreto.”
287
Silvana Miotto, Mauricio Eing

Contudo, são direitos compreendidos como aqueles inerentes à


dignidade humana que acabam sendo transformados em direitos fundamentais
positivados (SARLET, 2012).
Entretanto, os direitos fundamentais são sempre direitos do homem,
são valores que garantem eficácia na aplicação do ordenamento jurídico. Dessa
forma, os direitos fundamentais caracterizam-se por regularem questões
discutidas na estrutura normativa do Estado e da sociedade, como é o caso
da dignidade, da igualdade e da liberdade (ALEXY, 1996 apud LEIVAS, 2006).
Sob o enfoque, no ensinamento de Bonavides (2007, p. 375), os
direitos fundamentais “[...] são o oxigênio das Constituições democráticas
[...]”, tamanha é a importância desses direitos no ordenamento jurídico de um
Estado Democrático.
Os direitos fundamentais são um conjunto de direitos e garantias
constitucionais do ser humano, que têm por objetivo básico o respeito
à dignidade humana, protegendo o ser humano do arbítrio estatal e o
estabelecimento de condições mínimas para desenvolvimento da personalidade
humana (MORAES, 2003).
Nesse contexto, os direitos fundamentais podem ser considerados
direitos subjetivos. Assim, na concepção de Kant acerca do tema, o ser
humano é um ser racional, dotado de liberdade; a outra concepção é baseada
na teoria de Larenz, que entende que a liberdade como direito é um indivíduo
ser simplesmente aquilo que lhe é devido enquanto pessoa, e os outros serem
obrigados a respeitar ou garantir. Assim, a questão ético-filosófica desempenha
um papel dogmático no campo dos direitos fundamentais, para a qual um
sujeito de direito ter direito a um direito subjetivo é uma questão jurídico-
dogmática (SARLET, 2006).
Dessa forma, considerando os direitos fundamentais como direito
subjetivo, ressalta-se que, conforme ensinamentos de Freitas (2007, p. 33),
“[...] os direitos fundamentais se caracterizam como elementos essenciais do
ordenamento objetivo [...]”
Dito isso, não obsta que o Poder Público é quem deve garantir a correta
aplicação desses direitos, garantindo eficácia ao que o ordenamento jurídico dispõe.
Aliás, não há óbice em dizer que os direitos fundamentais passaram por
inúmeras transformações, tanto em seu conteúdo quanto em sua titularidade,
eficácia e efetivação (SARLET, 2012).

288
Diálogos sobre direito e justiça

De tal modo, a teoria jurídica dos direitos fundamentais é uma teoria


dogmática, logo, essa dogmática jurídica é dividida de três formas: analítica,
empírica e normativa (SARLET, 2006).
Por conseguinte, a dimensão analítica diz respeito à análise dos
conceitos elementares do direito vigente, isto é, conceito de norma, de liberdade
e de igualdade; a dimensão empírica é compreendida em relação à cognição
do direito positivo válido e em relação à aplicação de premissas empíricas na
argumentação jurídica e, por fim, a dimensão normativa avança para além do
simples estabelecimento daquilo que, na dimensão empírica, pode ser elevado
à condição do direito positivo válido, e diz respeito à elucidação e crítica da
práxis jurídica, sobretudo da práxis jurisprudencial (ALEXY, 2006, p. 33-36).
Diante das três dimensões, a Ciência do Direito revela-se como um
princípio unificador, isto é, se a ciência jurídica quiser cumprir com sua
obrigação, deverá, sem via de dúvidas, usar as três dimensões, de forma
combinada, pois, para impetrar uma questão e obter uma resposta jurídica,
deve conhecer o direito positivo; esse direito é tarefa da dimensão empírica,
mas há certos casos que somente o direito positivo, dimensão empírica, não
é suficiente como solução, então, há necessidade de um juízo de valores,
configurando, assim, a dogmática normativa. Por sua vez, a dogmática analítica
cumpre sua tarefa de maneira racional (ALEXY, 2006).
Para Silva (2006, p. 179), os direitos fundamentais são “[...] situações
jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da
dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana.”
De outro norte, o que conduziu o nascimento dos direitos fundamentais
foi a Reforma Protestante, pois levou ao reconhecimento da liberdade. Assim,
os direitos fundamentais podem ser considerados como base e fundamento do
Estado Constitucional Democrático (SARLET, 2006).
Para Alexy (2006, p. 193-194), existe a seguinte divisão no campo dos
direitos fundamentais: direito a algo, liberdade e competências.
Logo, direito a algo, na acepção de Alexy (2006, p. 194, grifo do autor),
resume-se da seguinte forma: “(1) a tem, em face de b, um direito a G.”
Com isso, direito a algo pode ser abrangido como uma relação triádica,
na qual o primeiro elemento é o titular do direito, o segundo é o destinatário
do direito e o terceiro é o objeto do direito (ALEXY, 2006).
Acerca da estrutura do objeto do direito a algo, abrange-se que o objeto
do direito a algo é sempre uma ação do destinatário, que tanto pode ser uma
289
Silvana Miotto, Mauricio Eing

ação negativa quanto positiva, logo os direitos de ação negativa correspondem


àquilo que é chamado de “direitos de defesa”, por sua vez, os de ação positiva
coincidem apenas parcialmente com aquilo que é chamado de “direitos de
prestação” (ALEXY, 2006).
De tal modo, para melhor compreender a estrutura das ações positivas
e negativas, faz-se necessário entender o que vem a ser liberdade e competência,
assim, liberdade é tudo aquilo considerado bom ou desejável. Ademais, Alexy
(2006, p. 218) enfatiza que “[...] quem quer induzir alguém a uma determinada
ação pode tentar fazê-lo dizendo que liberdade é realizar essa ação.” Portanto,
essa liberdade pode ser abarcada como liberdade jurídica, ou seja, é uma
qualidade que pode ser atribuída às pessoas e às ações.
Entretanto, dizer que uma pessoa é livre pressupõe dizer que para
essa pessoa não há nenhum impedimento. Mas, se o Estado quiser proibir
determinada ação, isso também se pode entender como liberdade, ou seja,
uma liberdade negativa. Mas há de se deixar claro que uma pessoa é livre
em sentido negativo à medida que não lhe são vedadas alternativas de ação,
nada se relaciona com fazer ou deixar de fazer, é a possibilidade de fazer algo
(ALEXY, 2006).
Desse modo, para a liberdade positiva seu objeto é uma única ação,
enquanto para a liberdade negativa há uma alternativa de ação.
Logo, para a liberdade jurídica basta a liberdade negativa, ou seja,
alternativa de ação. Assim ensina Alexy (2006, p. 223), “[...] somente a liberdade
jurídica seria caracterizada como ‘liberdade negativa’.”
Acerca da competência, há uma relação com poder jurídico, aponta algo
fático, uma capacidade ou autorização, ou seja, é um acréscimo na capacidade do
indivíduo que lhe é conferida pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, para a
compreensão dos direitos fundamentais, é imprescindível conceituar competência,
tanto em relação às competências do cidadão quanto às competências do Estado.
Contudo, a competência do cidadão pode ocorrer no âmbito do direito público,
como o direito à vida, e no âmbito do direito privado, como a aquisição de um
imóvel, enquanto competência do Estado é o contraponto da competência do
cidadão, porque as normas de direitos fundamentais colocam o Estado em uma
posição de não competência (ALEXY, 2006).
Com isso, extrai-se que os direitos fundamentais têm caráter de
princípios, os quais são normas que podem ser usadas para ordenar um caso
concreto (ALEXY, 2006).
290
Diálogos sobre direito e justiça

Por isso, afirma Alexy (2006, p. 116-117) que “[...] a natureza dos
princípios implica a máxima da proporcionalidade, com suas três máximas da
adequação, da necessidade [...] e da proporcionalidade em sentido estrito [...]”,
expressando com isso, a ideia de otimização. Ideia essa que se compreende
como normas que ordenam que algo seja realizado da melhor forma possível.
Acerca disso, salienta Leivas (2006, p. 59), “[...] eles não contém
mandados definitivos, mas somente prima facie, pois carecem de conteúdo de
determinação [...]”
No entanto, importante se faz uma explanação sobre os direitos
fundamentais no ordenamento constitucional, acerca da vinculação dos
direitos fundamentais e as noções de Constituição e Estado de Direito.
Além disso, os direitos fundamentais são direitos existenciais, pois
visam atingir as necessidades básicas do indivíduo e com isso tornam-se direitos
essenciais à sobrevivência humana, tendo, portanto, aplicação imediata.
A respeito disso, visualiza-se no art. 5º,1 § 1º, da CF/88, que “[...] as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.” Portanto, quando do não atendimento a esse preceito, há violação
dos princípios da dignidade humana e do Estado de Direito (MORAES, 2003).
Acerca da importância da dignidade humana, aborda o professor
Cavalcante Filho ([2010?]) que os direitos fundamentais devem ser relacionados
à dignidade humana, haja vista ser um importante princípio expresso na
Constituição da República.
Há doutrinadores que entendem que o princípio da dignidade humana
é o mais importante princípio existente no ordenamento jurídico, pois é o
primeiro fundamento do sistema constitucional (NUNES, 2002).
A concepção de dignidade está “[...] intimamente ligada à noção da
liberdade pessoal de cada indivíduo – o Homem como ser livre e responsável
por seus atos e seu destino.” (SARLET, 2012, p. 35).
Ainda, Sarlet (2005, p. 19) compreende a dignidade humana “[...] como
uma qualidade intrínseca da pessoa humana é irrenunciável e inalienável.”
Portanto, sendo uma qualidade irrenunciável, deve ser tutelada pelo Estado,
o cidadão deve exigir do Poder Público o reconhecimento e o atendimento
de suas necessidades em decorrência da existência do princípio da dignidade
humana. Contudo, sustenta ainda Sarlet (2005, p. 30) que:
1
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]
291
Silvana Miotto, Mauricio Eing

A dignidade possui uma dimensão dúplice, que se mani-


festa enquanto simultaneamente expressão da autonomia
da pessoa humana (vinculada à ideia de autodetermina-
ção no que diz com as decisões essenciais a respeito da
própria existência), bem como da necessidade de prote-
ção (assistência) por parte da comunidade e do Estado,
especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e prin-
cipalmente – quando ausente à capacidade de autodeter-
minação.

Sobre o tema, leciona Nunes (2002, p. 46) que dignidade humana é um


conceito elaborado no decorrer dos séculos, é “[...] valor supremo, construído
pela razão jurídica.”
A dignidade nasce com o ser humano, é da sua essência. Diante dessa
afirmativa, não obstante, a dignidade faz parte da integridade física e psíquica do
ser humano, ela envolve as ações e comportamentos do homem (NUNES, 2002).
Destarte, dignidade humana é um valor do homem que deve ser
respeitado, o qual é atribuído a ele pelo fato de ser considerado pessoa humana.
Logo, a dignidade humana fornece o parâmetro para a solução de conflitos,
visto que é ela quem ilumina o ordenamento jurídico (NUNES, 2002).
Já Kant (2007 apud LEITE, 2011, p. 500) fundamenta que a dignidade
se baseia na autonomia da vontade, “[...] trata-se de uma dignidade autônoma,
que decorre da própria racionalidade humana.”
Assim, apresentada a importância dos direitos fundamentais e da
dignidade humana como objeto de concretização de direitos e garantias,
destaca-se que, segundo observa-se na Constituição da República, intimamente
ligados aos direitos fundamentais estão os direitos socais, como a educação, a
saúde, a alimentação, entre outros.
Assim, é imprescindível uma breve conceituação de direitos
fundamentais sociais, para posterior abordagem das prestações positivas do
Estado frente à aplicação imediata dos princípios e garantias fundamentais.
Evidentemente, os direitos fundamentais sociais também são chamados de
direitos prestacionais em sentido estrito, são direitos que envolvem ações
positivas (LEIVAS, 2006).
Os direitos fundamentais sociais são direitos garantidos por meio
de normas constitucionais. Como são direitos a prestações normativas,
estabelecem um dever de atuação positiva. Por sua vez, cita Freitas (2007, p.
292
Diálogos sobre direito e justiça

73) que “[...] o direito a prestações normativas adquire um sentido de direitos


à proteção.”
Diante desse panorama, é essencial direcionar o estudo do presente
artigo para os direitos socais. Assim, o artigo 6º da Constituição da República
dispõe que: “[...] são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.”
Porém, há que se ressaltar um importante direito social: o direito
à saúde, pois é considerado um direito fundamental, em razão da sua
importância, cuja aplicação deve ser imediata, considerando-se que se trata da
vida de um indivíduo, pois o Estado jamais pode violar bens jurídicos que por
ele mesmo são tutelados.
Os direitos sociais envolvem um conteúdo econômico, isto é, devem ser
executados por meio de políticas públicas, com a atuação de órgãos estatais, com
direcionamento de orçamentos e planejamentos, para que o resultado possa ser
atingido de maneira positiva e eficaz àquele que espera (AGRA, 2010).
Por sua vez, os direitos sociais são uma espécie de escudo para a
proteção do indivíduo, são direitos subjetivos, pois têm o poder de exigir uma
prestação positiva do Estado, por isso são também chamados de direitos de
crédito (FERREIRA FILHO, 2006).
Nessa perspectiva, como são direitos que exigem do Estado uma
prestação, de fato, são também denominados direitos sociais prestacionais.
Logo, abrangem a pessoa humana (BERTRAMELLO, 2013).
Diante de todo o exposto, há que se considerar que tanto os direitos
fundamentais quanto os direitos sociais buscam seu equilíbrio por meio dos
princípios constitucionais, os quais exigem aplicação de direitos e garantias
de acordo com ditames constitucionais, priorizando o respeito à dignidade
humana. Assim, passa-se ao estudo dos princípios constitucionais.

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Concernente, não há como falar de direitos fundamentais e direitos


sociais sem abordar a importância dos princípios jurídicos constitucionais
informadores do direito à saúde, de modo que é patente a aplicação desses
princípios no cumprimento de tarefas de concretização dos direitos
fundamentais e sociais (RIOS, 2013).
293
Silvana Miotto, Mauricio Eing

Inicialmente, é necessário um breve conceito do que venha a significar


a expressão princípios, na concepção de Silva (2010, p. 168): “[...] é uma
norma que exige algo que seja realizado na maior medida possível diante das
condições fáticas e jurídicas do caso concreto.”
Dessa forma, princípios não são nada mais do que normas que devem
ser respeitadas. Todavia, o Poder Público não pode se omitir ao chamado de
uma pessoa que precisa de tratamento médico para recuperar sua saúde. Deve,
contudo, de maneira a observar os princípios constitucionais, atender àqueles
que solicitam ajuda.
Após esse breve conceito da expressão princípios, abordar-se-ão
os princípios de igualdade, universalidade, proporcionalidade e reserva do
possível, basilares à prestação do serviço público e necessários para a satisfação
dos direitos fundamentais dos usuários, sobretudo o direito fundamental de
receber medicamentos de maneira gratuita para tratar o mal que acomete a
saúde do indivíduo, objeto de estudo do presente trabalho.

3.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DA UNIVERSALIDADE

Sobre o princípio da igualdade, Silva ([2007?]) dispõe que Aristóteles


entendia que igualdade era “[...] tratar os iguais de maneira igual e os desiguais
de maneira desigual, na medida de suas desigualdades.” Extrai-se desse
pensamento que os indivíduos possuem diferenças e que devem ser respeitadas.
Todavia, igualdade consiste em tratamento uniforme a todos, busca-se
uma igualdade real e efetiva (BASTOS, 2001).
Isso significa que todo o cidadão tem o direito de tratamento igual pela
lei, em conformidade com os critérios albergados no ordenamento jurídico
(MORAES, 2007).
Logo, conclui-se que a igualdade é essencial à unificação do
ordenamento jurídico, de modo a tornar os direitos sociais formas de prestações
estatais, em que o Estado possa efetivar seu cumprimento, sem esquecer que o
que se busca é concretizar a aplicação dos direitos fundamentais.
Assim, nota-se em diversos dispositivos da Carta Magna o princípio
da igualdade, fortalecendo com isso que o objetivo da Constituição brasileira
é construir um Estado Democrático de Direitos para todos os cidadãos,
indistintamente, de maneira que o Poder Público seja o primeiro a zelar por
essa igualdade.
294
Diálogos sobre direito e justiça

Ademais, interpretar que as desigualdades possam ser consideradas


formas de aplicação do princípio da igualdade é aceitar que as diferenças não
devem ser discriminadas, mas devem ser aceitas, contudo, perante a lei, todos
são iguais, independente da diferença existente (MOARES, 2007).
Feitas as considerações acerca do princípio da igualdade, passa-se a
abordar estudos sobre o princípio da universalidade.
O princípio da universalidade também está explícito na Constituição
de 1988, a qual garante acesso universal a ações e serviços acerca da proteção
e da recuperação da saúde do indivíduo. De fato, o Estado deve considerar
a universalidade do acesso ao direito à saúde um de seus objetivos e uma
obrigação que deve ser garantida a todo e qualquer cidadão, seja brasileiro
ou estrangeiro. Todavia, o artigo 194, da Constituição de 1988,2 trata que a
universalidade pode ser de cobertura ou de atendimento. Logo, é importante
estabelecer a distinção acerca dessas universalidades.
Por universalidade de cobertura, Castro e Lazzari (2005, p. 88-
89) entendem que “[...] a proteção social deve alcançar todos os eventos
cuja reparação seja premente, a fim de manter a subsistência de quem dela
necessite.” Já acerca da universalidade de atendimento, os supracitados autores
compreendem que é a entrega de ações, prestações e serviços a todos os que
necessitem, nos termos da previdência social, saúde e assistência.
Infere-se dos conceitos expostos, que o princípio da universalidade,
tanto de cobertura quanto de atendimento, visa tornar o direito à saúde
acessível a todos os cidadãos residentes no país.

3.2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade tem como finalidade equilibrar algo


que deve ser visto como justo e razoável.
Na visão de Silva (2010, p. 167, grifo do autor), o princípio da
proporcionalidade também é chamado de “regra da proporcionalidade”.
Assim, proporcionalidade é uma regra porque impõe um dever
definitivo, que é a sua aplicação de forma completa.

2
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
[...]
I - universalidade da cobertura e do atendimento.
295
Silvana Miotto, Mauricio Eing

O princípio da proporcionalidade também pode ser identificado como


princípio da razoabilidade e tem elementos, como adequação, que consiste em
atingir os objetivos pretendidos com a efetivação de um ato da Administração
Pública, e necessidade, deve ser utilizado com todos os meios existentes, de
maneira que não afete os direitos individuais e, por fim, proporcionalidade em
sentido estrito: significa que deve haver um equilíbrio entre o meio utilizado
e o fim almejado, proíbe excessos e insuficiência de proteção, que devem ser
observados (MOREIRA, 2011).
O princípio da proporcionalidade desempenha papel muito importante
na limitação da atuação do Poder Público e na manutenção e na consolidação
dos parâmetros constitucionais (KONCIKOSKI, 2012).
Logo, o princípio da proporcionalidade, ou princípio da razoabilidade,
deve ser utilizado para ponderar, equilibrar valores importantes que conflitam
entre si, para o reconhecimento e aplicação dos direitos fundamentais.

3.3 PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Segundo entendimento de Silva (2007, p. 26), o princípio da reserva do


possível é capaz de regular a possibilidade e a extensão da atuação do Estado
na efetivação de certos direitos sociais e fundamentais, como o direito à saúde,
“[...] condicionando a prestação do Estado à existência de recursos públicos
disponíveis.”
Logo, a reserva do possível diz respeito às finanças públicas e, com
isso, passou a exprimir a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais
dependem da existência de recursos financeiros do Estado, disponibilidade esta
que estaria no orçamento público, a fim de que os direitos sociais prestacionais
sejam realmente efetivados (SARLET et al., 2008).
Contudo, ainda compreendem os supracitados autores, que a prestação
reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente
exigir da sociedade.
Com efeito, mesmo o Estado dispondo de recursos, não se pode falar em
uma obrigação de prestar algo que não seja razoável. Assim, pode-se sustentar a
ideia de que não há como impor ao Poder Público uma prestação de assistência
social a alguém que necessariamente não faça jus a esse benefício, por dispor, ele
próprio, de recursos suficientes para seu sustento (SARLET et al., 2008).

296
Diálogos sobre direito e justiça

Dessa forma, conforme já exposto, compreende-se que os direitos


sociais devem ser garantidos quando há recursos financeiros suficientes para
isso, por sua vez, o direito à saúde está contido nesse rol, pois, conforme artigo
6º da Constituição de 1988, é um direito social, então, para sua efetivação deve
haver um orçamento prévio do Estado.
Nesse sentido, entende-se que é necessário manter uma previsão
orçamentária, como um limite à atuação do Estado para a efetivação de direitos
sociais (SILVA, 2007).
Denota-se que é por meio da reserva do possível que se realiza a
efetivação dos direitos sociais condicionados às prestações materiais, mas,
para que isso se formalize de maneira positiva, a Administração Pública deve
levar a sério os princípios da moralidade e da eficiência, quando se cuida de
administrar a escassez de recursos e aperfeiçoar a efetividade dos direitos
sociais (SARLET et al., 2008).
Portanto, deve haver um equilíbrio, uma ponderação entre os direitos
fundamentais sociais e o princípio da reserva do possível, pois esses direitos
fundamentais sociais demandam recursos financeiros para sua efetivação e
esses recursos são limitados pelo Estado, exigindo com isso, a previsão em lei
orçamentária (LEIVAS, 2006).
Nesse diapasão, ainda afirma Leivas (2006, p. 99) que “[...] direitos
fundamentais sociais podem ter um peso maior que o princípio da competência
orçamentária”; assim, o princípio da competência orçamentária não pode ser
absoluto. Igualmente é o entendimento de Alexy (1996 apud LEIVAS, 2006, p. 100):

A força do princípio da competência orçamentária do


legislador não é ilimitada. Não é um princípio absoluto
[...] Todos os direitos fundamentais restringem a compe-
tência do legislador; muitas vezes o fazem de uma forma
incômoda para este e, às vezes, afetam também sua com-
petência orçamentária quando se trata de direitos finan-
ceiramente mais gravosos.

Nessa perspectiva, a proteção ao direito à saúde do indivíduo está sob


a reserva financeira do possível, portanto, deve-se tomar decisões com base no
preceito da proporcionalidade, em favor do princípio com maior peso no caso
concreto, isto é, considerando o assunto abordado do estudo, entre o direito
à saúde e o princípio da reserva do possível, deve prevalecer aquele que for
maior e mais importante (LEIVAS, 2006). 297
Silvana Miotto, Mauricio Eing

Portanto, para não haver esgotamento de recursos financeiros, é


necessária a aplicação do modelo triádico, desenvolvido por Alexy, que
somente reconhece direitos fundamentais sociais aqueles cuja qualificadora
é de situação de extrema gravidade, como é o caso do mínimo existencial, em
casos excepcionais, por exemplo (LEIVAS, 2006).
Contudo, é necessário minimizar o impacto da reserva do possível,
pois não deve ser utilizada como argumento genérico da limitação estatal no
campo da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os de cunho
social. Ainda mais, deve ser comprovada a falta de recursos indispensáveis
à aplicação dos direitos fundamentais, ônus este cabível ao Poder Público
(SARLET et al., 2008).
Quanto ao critério do mínimo existencial como parâmetro para o
reconhecimento dos direitos subjetivos a prestações, Sarlet e Figueiredo
(2008, p. 32, grifo do autor) entendem que “[...] por si só já contribui para a
‘produtividade’ da reserva do possível.”
Logo, é de fácil percepção que o mínimo existencial está relacionado a
uma existência digna (TORRES, 2008), ainda, Barcellos (2002 apud TORRES
2008, p. 77, grifo do autor) afirma que “[...] o chamado mínimo existencial,
formado pelas condições materiais básicas para a existência, corresponde a
uma fração nucelar da dignidade da pessoa humana [...]”
Para tanto, será abordado o direito à saúde, o direito que o cidadão
tem de receber do Estado prestações positivas, considerando a existência de
princípios constitucionais, analisar diante desses pontos o dever que o Poder
Público tem em fornecer de forma gratuita medicamentos aos indivíduos que
necessitam e não possuem condições econômicas suficientes para adquirir o
fármaco, independentemente do valor econômico atribuído a esse remédio e
de estar ou não padronizado nas redes públicas, considerando a aplicabilidade
dos direitos e garantias fundamentais, afastando, com isso, o princípio da
reserva do possível.

4 DIREITO À SAÚDE

Nesse momento, o estudo passa a ser direcionado ao direito à saúde,


seu conceito, bem como à prestação de serviço público de saúde em face dos
direitos fundamentais, entender qual é a obrigação do Estado para fornecer
medicamentos para proteção da saúde humana.
298
Diálogos sobre direito e justiça

4.1 CONCEITO DE SAÚDE

Neste primeiro momento, o que precisa ficar claro é o conceito de saúde,


para depois ser abordado qual é o dever do Estado em fornecer medicamentos
para salvaguardar a saúde de seus cidadãos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde não apenas
como a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico,
mental e social. O conceito tem uma intensa relação com o desenvolvimento e
expressa a associação entre qualidade de vida e saúde da população. A saúde,
nesse sentido, é resultado de um processo de produção social e sofre influência
de condições de vida adequadas de bens e serviços. A saúde como produto
social se constrói coletiva e individualmente, por meio de ações de governo,
da sociedade e de cada indivíduo. A saúde é um bem para o desenvolvimento
pleno do ser humano (ANVISA, 2009).
Observa-se que a própria Constituição de 1988 reservou uma seção
para tratar de saúde. Assim, o artigo 196 preconiza que a saúde

[...] é direito de todos e dever do Estado, garantido me-


diante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso univer-
sal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.

Com isso, denota-se que por saúde entende-se ausência de doenças, ou


seja, é a redução de riscos que possam atingir a saúde de um indivíduo.
Todavia, fica evidente que um indivíduo goza de boa saúde, tanto na forma
física quanto mental e é dever do Estado, por meio de Políticas Públicas, fazer com
que o estado de bem-estar físico e mental do cidadão permaneça intacto, essa é a
leitura que se pode extrair do artigo 197 da Constituição de 1988.3
Por outro lado, ainda na mitologia grega, saúde está associada à ideia
de cura. Para Hipócrates, filósofo grego que viveu no século IV a.C, saúde tem
influência da cidade e do tipo de vida de seus habitantes, já para Celso, médico
e alquimista, que viveu durante a primeira metade do século XVI, e também
Engels, filósofo alemão do século XIX, as condições de vida das pessoas e o
3
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado.
299
Silvana Miotto, Mauricio Eing

ambiente de trabalho são responsáveis pela saúde da população (DALLARI,


2013).
Dessa forma, além da saúde ser uma ausência de doenças, não há como
negar que o meio ambiente influencia de maneira decisiva no estado de saúde
de uma pessoa, do mesmo modo que uma pessoa deprimida não está saudável
(DALLARI, 2013, p. 23).
Já na concepção de Sarlet e Figueiredo (2008, p. 38), “[...] a saúde
constitui um bem essencial da e para a pessoa humana.”
Portanto, conclui-se que a saúde não se limita à ausência de doenças
apenas, mas é influenciada pelo ambiente em que vive o indivíduo, de forma
que deve ser tutelada pelo Estado, por meio de políticas públicas de prevenção
e recuperação.
No próximo assunto, a prestação de serviço público de saúde pelo
Estado será o centro de análise, visto que a prestação deste deve ser o meio de
concretização dos direitos fundamentais.

4.2 DIREITO À SAÚDE E SUA PRESTAÇÃO PELO ESTADO

O direito à saúde está estampado, como já visto, na Constituição


Federal, que afirma, segundo Dallari (2013, p. 34), “[...] cuidar da saúde é
tarefa que deve incumbir a todas as esferas de poder político da federação.”
Todavia, para a Constituição Federal de 1988, saúde não significa
somente ausência de doenças, mas a redução do risco de doenças e a permissão
ao acesso universal e igualitário a todos para proteção e recuperação da saúde
e, para isso, regularizou o Sistema Único de Saúde (SUS), no qual serão
integradas as ações e os serviços de políticas públicas que o Estado cria para
efetivar a saúde dos cidadãos (DALLARI, 2013).
Na visão de Schütz (2003 apud CARDOSO, 2013, p. 56, grifo do autor),
“[...] a ‘saúde’ pode ser vista como um bem público, integrando a categoria dos
direitos sociais.”
Assim, a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. O Sistema
Único de Saúde é um produto de criação do Poder Público, o qual fornece
aos cidadãos atendimento gratuito para recuperar e prevenir a saúde, logo, o
Estado está cumprindo seu papel disponibilizando o acesso ao SUS a todos os
indivíduos que dele necessitem. Nota-se que o Sistema Único de Saúde aborda
em sua política de atendimento os princípios da universalidade, equidade e
300
Diálogos sobre direito e justiça

integralidade para fornecer ao cidadão tratamento que abrange a promoção, a


proteção e a recuperação da saúde humana (CARVALHO et al., 2013).
Contudo, muitas vezes, para ver efetivado seu direito à saúde, até
mesmo em relação ao atendimento pelo Sistema Único de Saúde, o indivíduo
deve recorrer ao poder judiciário, pelo simples fato de que a reserva do possível
não é suficiente para atender a determinados cidadãos que necessitam de
assistência, isso porque nem todos os direitos estão sujeitos à tutela imediata,
pois alguns demandam recursos financeiros para sua efetivação, isto é, estão
sujeitos à cotação orçamentária (CANOTILHO, 2003 apud PIOLA, 2013).
De fato, o Poder Púbico tem a obrigação de permitir o acesso a todos
os cidadãos que necessitam de fármacos para tratar da saúde, considerando o
direito à saúde fundamental e indispensável à satisfação da dignidade humana,
considerando que existem direitos fundamentais que têm aplicação imediata
e, portanto, não se aplica de forma integral a reserva do possível, sob o risco
de ferir não apenas a dignidade humana do sujeito, mas de colocar em perigo
sua própria vida.

4.3 EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE FRENTE À RESERVA


DO POSSÍVEL

Primeiramente, destaque-se que a saúde ocupa um espaço no


ordenamento jurídico constitucional, é um dever e direito fundamental, e, de
certa forma, também é um direito social, pois para sua efetividade, depende de
recursos materiais, logo, o direito à saúde assegura a integridade física e moral
do indivíduo (SARLET, 2002).
O direito à saúde está assegurado pela Constituição da República em
seu artigo 196, que deve ser garantido mediante políticas públicas pelo Estado,
o qual deve fornecer acesso universal e igualitário a todos. Entretanto, o artigo
6º da Constituição de 1988 dispõe ser a saúde direito social de todo cidadão,
sem qualquer discriminação econômico-social. Logo, negar atendimento
ao indivíduo nas situações de comprovada urgência, importa em grave
desobediência ao direito fundamental à saúde, prestação constitucionalmente
imposta ao Poder Público (LIMA, 2008).
Ainda, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que
o direito à saúde é um direito subjetivo e é dever do Poder Público garanti-lo,

301
Silvana Miotto, Mauricio Eing

mediante políticas públicas, de prevenção, promoção e recuperação da saúde


(BRASIL, 2007).
É evidente que a efetivação do direito à saúde está integrada à
inviolabilidade do direito à vida, pois ambos são direitos subjetivos do
indivíduo e são protegidos pela Constituição em que preceitua como valor
maior a dignidade humana, na qual se fundamenta o direito à saúde.
De fato, a aplicação dos direitos sociais representa custos a serem
suportados pelo Estado, logo, é certo que direitos fundamentais não podem
viver na dependência dos recursos econômicos do Estado, assim, estariam
ferindo a dignidade do ser humano (OLSEN, 2008).
Nesse sentindo, visualiza-se que, em razão da escassez dos bens, nem
todos os indivíduos terão uma prestação cumprida pelo Estado. Porém, se há
escassez de recursos em determinada área, é porque houve uma decisão que
levou os recursos para outro lado, gerando, com isso, um enfraquecimento
no sistema de proteção dos direitos fundamentais sociais, aqueles que exigem
cumprimento de uma prestação (OLSEN, 2008).
Evidente que nenhum direito nasce com limitação orçamentária, ela
é imposta pelo próprio Ente Estatal. A prova de que a reserva do possível é
artificialmente criada pelo Poder Público está nas decisões do judiciário
quando obrigam o Ente Público a fornecer medicamentos de forma gratuita
àquele que necessita, mesmo que o fármaco não esteja padronizado no SUS
(OLSEN, 2008).
O dever do Estado em fornecer meios para tratar a saúde humana é
inquestionável, porém, há outros entendimentos de que deve prevalecer o
princípio da reserva do possível, pois o Poder Público trabalha com o sistema
de freios e contrapesos, em que extrapolar o orçamento econômico fere o
princípio da reserva do possível (SILVA, [2007?]).
Entretanto, somente se pode invocar o princípio da reserva do possível
caso o Estado comprove a insuficiência de recursos financeiros, já que é
indiscutível que as necessidades são ilimitadas e os recursos financeiros para
supri-las são escassos (ÁVILA, 2013).
De certa forma, os recursos financeiros são finitos, por isso deve haver
uma ponderação a fim de verificar quais direitos deverão ser priorizados
(CALIENDO, 2008).

302
Diálogos sobre direito e justiça

Assim, a reserva do possível impõe limites à concretização dos direitos


fundamentais, em razão da escassez de recursos do Estado, pois não há recursos
suficientes para atender a todos os pedidos (ZANITELLI, 2008).
Dito isso, denota-se que há vários entendimentos acerca da efetivação
do direito à saúde. Para alguns, o direito à saúde, por ser um direito fundamental
social, deve ser prestado pelo Estado de maneira prioritária, pois se relaciona
com a dignidade do ser humano e consubstancialmente com o direto à vida,
por outro lado, há entendimentos de que o princípio da reserva do possível
deve prevalecer e que o Estado deve fornecer medicamentos para salvaguardar
a saúde do cidadão até o limite de seu orçamento, pois os recursos financeiros
são escassos.
Nesse contexto, Morais (2005, p. 87 apud ZANITELLI, 2008, p. 210)
dispõe ser um defensor de que deve prevalecer a reserva do possível frente
aos direitos fundamentais e assim estabelece: “[...] o direito público brasileiro
inicia sua caminhada rumo à fase em que a análise prévia do custo e certa
atuação estatal será elemento de fixação ou não de certa pretensão como
direito passível de exigibilidade.”
Por fim, “[...] a reserva do possível não poderia impedir a realização
judicial de direitos indispensáveis a assegurar um ‘mínimo existencial’.”
(ZANITELLI, 2008, p. 211).
Feitas as considerações relativas à efetivação do direito à saúde frente
ao princípio da reserva do possível, buscou-se compreender que deve haver
um equilíbrio entre a reserva do possível e o direito à saúde, considerando
sempre que a dignidade humana deve ser priorizada diante dos limites
orçamentários. Assim, passa-se ao derradeiro item, cujo objetivo é a exposição
do embasamento doutrinário e jurisprudencial relativo ao fornecimento de
medicamentos de forma gratuita, considerando a necessidade do cidadão em
receber determinado fármaco.

4.4 FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS

Na dicção do enunciado do artigo 196 da Constituição de 1988,


“[...] a saúde é direito de todos e dever do Estado [...]”, trata-se, portanto,
de um direito absoluto e indispensável que deve ser garantido pelo Estado
indistintamente a todo e qualquer cidadão que, não sendo atendido ou não
tendo condições financeiras de custear seu tratamento, tem assegurado o
303
Silvana Miotto, Mauricio Eing

direito de ação, bastando, para tanto, a demonstração da enfermidade da qual


é acometido, a indicação do tratamento por parte de seu médico assistente e,
por derradeiro, sua impossibilidade de vir a arcar com os respectivos custos
(SANTA CATARINA, 2009).
Ademais, mesmo o direito à saúde sendo um direito positivado no
ordenamento jurídico, deve-se ter em mente que há limites orçamentários que
devem ser respeitados. Logo, o direito à saúde é um direito fundamental e,
por isso, não pode ser violado pelo Estado. De fato, existindo necessidade de
receber um medicamento determinado, o Poder Público deve fornecê-lo sob
pena de ferir o princípio da dignidade humana (BRASIL, 2014).
Como apontado no artigo 196 da Constituição da República, há
elementos indispensáveis para o entendimento da norma, contudo, define
seus titulares e destinatários, bem como traz o meio de atuação e a finalidade
específica a ser alcançada. No entanto, a saúde é direito de todos e dever do
Estado e deve ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doenças (LIMA, 2008).
Assim, deve-se realçar que o Estado é ente responsável por cumprir
e fazer justiça, por conseguinte, deve disponibilizar tratamento para a saúde
daqueles que necessitam. Fornecer de forma gratuita medicamentos para
tratar o mal que acomete a saúde do ser humano, buscando fornecer não
somente aquele fármaco que está disponibilizado nas redes do SUS, mas aquele
medicamento determinado que o indivíduo excepcional necessite, somente
assim o Estado estará agindo com justiça (MS n. 2003.025751-9, Des. Pedro
Manoel Abreu) – (AC n. 2008.049625-0, Des. Newton Trisotto).
Assim, há o entendimento que o Estado deve fornecer a todos os
indivíduos tratamento igualitário, sem considerar sua situação econômica
(SANTA CATARINA, 2009; SANTA CATARINA, 2010).
É evidente que se o Estado permitir acesso universal e igualitário a
todos, estará propiciando um tratamento diversificado, atendendo, assim, às
necessidades de cada cidadão, tornando o sistema de fornecimento de bens e
serviços pertinentes à saúde capaz de atender a cada indivíduo (RIOS, 2013).
Outro ponto relevante é compreender que o princípio da igualdade,
como já mencionado anteriormente, é concretizado quando é atingido de
forma completa, ou seja, tratar todos de forma igual, isto é, fornecer a todos
os medicamentos, padronizados pelo SUS, não significa que está agindo
com igualdade, somente se está agindo consoante o princípio da igualdade
304
Diálogos sobre direito e justiça

estabelecido na norma constitucional, quando tratar os iguais de forma igual e


os desiguais de forma desigual, fornecer um medicamento certo e determinado,
que não esteja padronizado no SUS, de forma gratuita, não viola o princípio da
isonomia. Isso significa que o fato do fármaco não estar padronizado nas redes
públicas de saúde não exime a responsabilidade do Poder Público em fornecer
àquele que necessitar, visto que o direito à saúde se sobrepõe à ausência de
padronização (SANTA CATARINA, 2011).
Por fim, o direito à saúde deve se garantido, na forma dos artigos 6º e
196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por meio de
políticas públicas que garantem o acesso universal e igualitário, enfatizando
o fornecimento gratuito de medicamentos para salvaguardar a saúde do
indivíduo que dele necessitar, considerando que a falta de recursos financeiros
não constitui óbice para o fornecimento de medicamentos, independente da
condição econômica e de o fármaco estar ou não padronizado na rede pública
de saúde do Estado.

5 CONCLUSÃO

O direito à saúde está previsto no texto constitucional. A Carta Magna,


ao estabelecer isso, dotou como dever do Estado efetivar o seu cumprimento, e
também adotou os direitos fundamentais como direito subjetivo do indivíduo.
Dessa forma, reconheceu em seu dispositivo que determinados direitos e
garantias têm aplicabilidade imediata. Com isso, buscou abordar que o direito
à saúde, por ser um direito social e fundamental, tem aplicação imediata.
Os direitos sociais são direitos prestacionais que devem ser materializados
pelo Estado, logo, são direitos subjetivos do indivíduo. De fato, em razão da
existência dos direitos sociais, o indivíduo deve receber do Estado a proteção
que tais direitos definem. Logo, é fundamental a existência dos princípios
jurídicos constitucionais, especialmente no direito à saúde, considerando que
princípios são vistos como normas que exigem cumprimento de leis, direitos
e garantias, os princípios constitucionais são primordiais na prestação do
serviço público, especialmente do serviço público de saúde.
Sabe-se que a Carta Magna estabelece que todos são iguais perante a
lei e, por isso, devem receber tratamento igual; nenhum indivíduo deve ser
discriminado, isso significa que fornecer medicamentos certos e determinados
não fere o princípio da isonomia, já que o próprio texto constitucional menciona
305
Silvana Miotto, Mauricio Eing

tratamento igual, mas nem todos necessitam do mesmo tratamento, portanto,


fornecer remédio que não esteja padronizado nas redes públicas de saúde não
viola a igualdade constitucional, é proporcionar um tratamento diferenciado
àqueles que necessitam, ou seja, tratar os indivíduos iguais de forma igual e os
indivíduos desiguais de forma desigual, assim, independentemente da situação
econômica do cidadão, caso este necessite, o Estado não pode se negar em
atendê-lo. Todavia, negar atendimento ao indivíduo em comprovada urgência
é violação grave do direito fundamental à saúde e à dignidade humana.
Dessa forma, o Estado deve trabalhar com razoabilidade, deve atender
a todos que necessitam, sem violar nenhum direito fundamental. Por sua vez,
disponibilizar os recursos econômicos exige o dever de observar qual bem
jurídico é mais importante, considerando que quando do não atendimento a
um direito social, como o direito à saúde, há violação dos direitos fundamentais,
consequentemente, uma agressão à dignidade humana ao mínimo existencial.
Por isso, em determinados casos, os direitos fundamentais devem se sobrepor
à reserva do possível.

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310
RELAÇÃO TRABALHISTA DOS
PROFISSIONAIS DO DESPORTO:
ANÁLISE DA COMPETÊNCIA PARA
JULGAR LITÍGIOS TRABALHISTAS
ENTRE JOGADORES DE FUTEBOL E
CLUBES
Rafael Guisolfi Cechin*
Roni Edson Fabro**

Resumo: O tema envolve principalmente a relação entre atletas profissionais de futebol


e clubes, em todos os aspectos trabalhista-desportivos e analisa a competência para di-
rimir litígios entre as partes, decorrentes da relação empregatícia. Além disso, procura
trazer toda a evolução e o surgimento do futebol no Brasil, a evolução legislativa desde
os primeiros Decretos-Lei até a positivação do Código Brasileiro de Justiça Despor-
tiva. Também apresenta a estrutura e a composição da Justiça Desportiva brasileira,
suas atribuições e competências. Ainda, traz conceitos doutrinários e entendimentos
jurisprudenciais a respeito do tema, elucidando como se posicionam os Tribunais do
Judiciário Brasileiro e, principalmente, as decisões proferidas pela Justiça Desportiva.
Assim, estruturado e devidamente conceituado cada aspecto no que diz respeito à re-
lação entre os jogadores profissionais de futebol e clubes, à luz do Direito Desportivo
Brasileiro e Direito Trabalhista, é possível concluir que os litígios trabalhistas entre
jogadores de futebol e clubes são de competência da Justiça do Trabalho, enquanto
as questões relacionadas à disciplina e às competições esportivas se resolverão pela
Justiça Desportiva. Ainda, percebe-se que somente após o esgotamento das instâncias
Desportivas ou o lapso temporal de 60 dias sem decisão em Tribunais Desportivos é
que será possível o acesso ao Poder Judiciário nas matérias de competência desportiva.
__________________________
*
Graduando em Direito na Universidade do Oeste de Santa Catarina de Joaçaba;
rafael_cechin@hotmail.com
**
Mestre em Relações Internacionais para o Mercosul pela Universidade do Sul de
Santa Catarina; Mestrando em Direito Fundamentais Civis na Universidade do Oeste
de Santa Catarina de Chapecó; Especialista em Direito Civil pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade
do Contestado; Professor e Pesquisador do Curso de Direito da Universidade do Oeste
de Santa Catarina de Joaçaba; Advogado; roni.fabro@unoesc.edu.br.
311
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

Em relação às às ações que não versam sobre a disciplina e as competições esportivas,


têm o livre acesso e são de competência do Poder Judiciário (Justiça Comum ou Justiça
do Trabalho, de acordo com suas competências).
Palavras-chave: Direito Desportivo. Direito do Trabalho. Atleta de futebol. Competência.

Labor relation of sports professionals: analysis of jurisdiction over labor disputes


between soccer players and clubs

Abstract: The issue primarily involves the relationship between professional soccer players
and clubs in all labor-sporting aspects and analyzes the jurisdiction to solve disputes be-
tween the parts, upcoming from the employment relationship. Furthermore, it attempts
to bring the whole evolution and the emergence of football in Brazil, legislative develop-
ments since the first laws until the arrival of the Brazilian Code of Sports Justice. It also
presents the whole structure and composition of the Brazilian Sports Justice, its functions
and powers. Also it brings doctrinal concepts and jurisprudential understandings of the
subject, explaining how to position the Brazilian Judiciary Courts and especially the de-
cisions taken by Sports Justice. Thus, structured and properly respected every aspect with
regard to the relationship between professional soccer players and clubs, in the light of the
Brazilian Sports Law and Labor Law, is possible to conclude that labor disputes between
soccer players and clubs are the responsibility of Justice Labor, while issues relating to the
discipline and sports competitions will be resolved by the Sports Justice. Still, it is noticed
that only after the exhaustion of Sports instances or time lapse of 60 days without a deci-
sion in Sport Courts is that you can access to the Judiciary in matters of sportsmanship.
With regard to actions that do not concern the discipline and competitive sports, has
free access and is within the competence of the Judiciary (Common or the Labour Court
Justice, according to their skills).
Keywords: Sports Law. Labor Law. Football athlete. Competence.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho foi analisar a competência para julgar os


litígios em matéria desportiva e, para isso, é necessário fazer a diferenciação
nas espécies de discussão levadas ao Poder Judiciário. O estudo está
fundamentado na exposição jurídica do futebol em face do Direito Desportivo
e do Direito do Trabalho, buscando também um panorama com as demais
áreas do Direito Brasileiro. Norteado pela Constituição Federal, Consolidação

312
Diálogos sobre direito e justiça

das Leis Trabalhistas e demais leis infraconstitucionais, traçou-se um paralelo


com os dispositivos legais referentes ao tema.
Discorreu-se sobre a competência em litígios trabalhistas entre atletas
de futebol e clubes, debatendo os aspectos trabalhista-desportivos dessa
relação e principalmente a jurisdição adequada para julgar tais demandas.
Ainda, será comparado, mesmo que brevemente, o Direito Desportivo com
as demais áreas do Direito Brasileiro, para que se possa observar a amplitude
do tema.
Para a elaboração do presente trabalho se utilizou o método indutivo,
analítico e explicativo, tendo como base jurídica as Leis Desportivas,
Trabalhistas, normas infraconstitucionais e a Constituição Federal de 1988.
Por meio desses dispositivos, buscou-se a compreensão sobre o tema proposto.
A pesquisa adota conceitos doutrinários dos principais autores
de Direito Desportivo Brasileiro, além de algumas referências do Direito
Trabalhista e do Direito Constitucional. Ainda, traz entendimentos
jurisprudenciais dos Tribunais brasileiros em várias áreas do Direito.

2 COMPETÊNCIA EM LITÍGIOS TRABALHISTAS NO FUTEBOL

2.1 ASPECTOS TRABALHISTA-DESPORTIVOS

O trabalho desportivo tem suporte constitucional, uma vez que a Carta


Magna não delimita quais os tipos de trabalhos que devem ser exercidos. Ao
contrário, ela consagra a valorização social do trabalho e que este faz parte do
desenvolvimento humano da sociedade. Dessa maneira, desde que o labor seja
lícito, de livre anuência e satisfação das partes envolvidas, tuteláveis no plano
jurídico, pode ser exercido de várias maneiras.
Sobre o trabalho desportivo, para Ramos (2013, p. 105), constitui-se
em “[...] uma autêntica modalidade de trabalho que preenche os requisitos
magnos da valorização social laborista e da iniciativa privada, reforçados
pelo primado do labor de forma a viabilizar o bem-estar e a justiça social na
sociedade [...]”
Há, também, o amparo do princípio da liberdade de trabalho, expresso
no art. 5º,1 inciso XIII da Constituição Federal, que afirma a liberdade das
1
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as 313
qualificações profissionais que a lei estabelecer.
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

pessoas em escolherem sua profissão, desde que de acordo com os requisitos


mínimos que a lei exigir para o seu exercício. Dessa forma, sendo o trabalho
um direito social fundamental e com o abrigo Constitucional do art. 2172
dado ao desporto, não deixa de ser trabalho desportivo uma forma de labor
condigna que, ao contrário, para Ramos (2013, p. 107), “[...] trata-se de mais
uma oportunidade de sobrevivência e inserção social para aqueles que não
tiveram muitas oportunidades de educação ou não encontraram nas profissões
tradicionais os seus anseios laborais.”
Com o tardio reconhecimento da ascensão do profissionalismo
desportivo, também de acordo com Ramos (2013, p. 107), em decorrência
da demora em regulamentar o desporto em si, o qual ocorreu somente ao
longo do século XX, inicialmente houve uma rejeição à prática do desporto
como trabalho, ocasionando uma fusão intensa do regime desportivo ao
regime trabalhista na sistemática da atividade trabalhista desportiva. Por
algum tempo houve confusão quanto aos nomes Direito Desportivo e Direito
do Trabalho Desportivo. No entanto, atualmente, há distinção bem definida
em relação ao Direito Desportivo, que compreende a exploração ampla da
atividade desportiva, competições, regras desportivas e instituições, enquanto
o Direito do Trabalho Desportivo engloba apenas o trabalho desportivo, sendo
segmento dentro do Direito Desportivo e, no mesmo passo, do Direito do
Trabalho.
Portanto, com o reconhecimento do Direito do Trabalho Desportivo,
todos aqueles trabalhos desportivos ou indiretamente ligados à atividade
desportiva representam um caráter especial, excepcional, do labor desportivo.
Entre esses profissionais estão os atletas profissionais, os treinadores, os agentes
desportivos, os gandulas, os massagistas e até os médicos e os fisioterapeutas,
além de todos os outros profissionais que, mediante serviços prestados no
desporto, recebem remuneração.
Para Ramos (2013, p. 108), o Direito do Trabalho Desportivo tem
abrangência além dos atletas profissionais, agregando também outros
profissionais que laboram no desporto:
2
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais,
como direito de cada um, observados:
I  - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua
organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto
educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional.
314
Diálogos sobre direito e justiça

O Direito do Trabalho Desportivo é a ramificação do Di-


reito do Trabalho e do Direito Desportivo que estuda a re-
lação de trabalho atrelada à atividade econômica despor-
tiva, esta contém o profissionalismo esportivo. A acepção
da denominação trabalho desportivo é mais abrangente
que normalmente se pensa, na medida em que o Direito
do Trabalho Desportivo não deve envolver apenas o tra-
balho do atleta profissional, mas existem outros trabalhos
genuinamente desportivos relacionados ao desporto.

Assim, de acordo com a Lei Pelé – Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998,


as modalidades desportivas coletivas não estão obstadas a se organizarem como
profissionais. No entanto, mesmo que não se organizem como profissionais,
estão todos assegurados a exercer labor desportivo e se sujeitarem ao regime
específico da própria Lei Pelé e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no
caso de alguns trabalhadores desportivos, ou ainda, na falta de formalidades
contratuais (exemplo dos treinadores e jogadores profissionais), graças ao
devido reconhecimento da atividade desportiva como trabalho.
Dessa forma, importante analisar algumas peculiaridades referentes à
relação trabalhista dos jogadores de futebol e instituições, para seguir com o
tema proposto neste trabalho.

2.1.1 Contrato de trabalho

Segundo Veiga e Sousa (2013, p. 49), “O contrato de trabalho do atleta


profissional de futebol guarda algumas particularidades que o diferem do aplicado
aos demais trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho.”
Cabe notar a singularidade do contrato do jogador profissional de
futebol, que entre outras coisas, pressupõe celebração de forma escrita e com
conteúdo mínimo definido em lei, de acordo com o caput do art. 28,3 da Lei
n. 9615, de 24 de março de 1998 (Lei Pelé). Nesses contratos, é obrigatório
constar as cláusulas indenizatórias e compensatórias, que definem os valores
de titularidade do clube e do atleta nas hipóteses de rescisão antecipada do
contrato de trabalho, respectivamente.
Caracteriza-se o atleta profissional como empregado e a entidade de
prática desportiva, clubes ou instituições como empregador, sendo pessoa de
315
3
Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada
em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática
desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente [...]
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

direito privado, conforme previsão do art. 164 da Lei Pelé, impedindo, portanto,
que uma pessoa física assine contrato de trabalho desportivo na condição de
empregador.
Ainda, segundo Veiga e Sousa (2013, p. 50), existem outros aspectos
referentes à natureza especial do contrato de trabalho desportivo, como a
diferença salarial entre atletas submetidos às mesmas condições de trabalho
e desempenhados para a mesma entidade, justificado pelo fato de que cada
jogador possui habilidades únicas, que o diferencia dos demais. Dessa forma,
seria impossível e até injusto caracterizar a equiparação salarial entre atletas
profissionais. Outro aspecto é o prazo determinado do contrato de trabalho
previsto no art. 305 da Lei n. 9.615, que tem como mínimo três meses e
máximo cinco anos. Ainda, uma característica básica da atividade desportiva
é o período em que o atleta fica recluso em um local determinado pelo clube
antes da disputa de uma partida, prática conhecida como concentração. Em
relação a essa prática, prevalece a regra dos incisos I, II, e III, do § 4º, do art.
286 da Lei Pelé, o qual afirma que é possível a aplicação da concentração sem
ensejar qualquer adicional de horas extras.
O contrato de trabalho desportivo é um contrato especial de trabalho,
uma vez que é necessário tutelar e coordenar o aspecto laboral com o aspecto
desportivo, compatibilizando as duas coisas. Trata-se, então, de um contrato de
trabalho desportivo e também de um contrato de desporto trabalhado, assim

4
Art. 16.  As entidades de prática desportiva e as entidades de administração do
desporto, bem como as ligas de que trata o art. 20, são pessoas jurídicas de direito
privado, com organização e funcionamento autônomo, e terão as competências
definidas em seus estatutos. 
5
Art. 30. O contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com
vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos. 
6
Art. 28. [...]
§ 4º - Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da
Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente
as seguintes: 
I - se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser
superior a três dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer
partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o atleta ficar à disposição
do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha
sua sede;
II - o prazo de concentração poderá ser ampliado, independentemente de qualquer
pagamento adicional, quando o atleta estiver à disposição da entidade de administração
do desporto;
III – acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens,
pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme
previsão contratual.
316
Diálogos sobre direito e justiça

caracterizado em razão das peculiaridades que envolvem a prática desportiva,


tanto nos sujeitos envolvidos quanto no objeto do contrato.

2.1.2 Jornada de trabalho

A jornada de trabalho compreende as horas trabalhadas pelo empregado


ao empregador por dia. Ao jogador profissional caberá cumprir uma jornada
de oito horas diárias e 44 horas semanais, igualmente aos demais trabalhadores
comuns, conforme previsão Constitucional no art. 7º, inciso XIII.7
No entanto, essa matéria tardou a ser pacificada, pois, anteriormente,
a jornada de trabalho dos jogadores profissionais de futebol correspondia a
48 horas semanais com disposição legal no art. 6º,8 da Lei n. 6.354, de 02 de
setembro de 1976 (Lei do Passe). No entanto, esse texto foi revogado pela Lei
Pelé, que deixou em aberto a questão da jornada de trabalho do desportista.
A Lei n. 12.395, de 16 de março de 2011, acrescentou à Lei Pelé o art. 28,
inciso VI,9 que passou a disciplinar a jornada desportiva normal de 44 horas
semanais, adequando-se ao Diploma Constitucional.
No que diz respeito aos jogos e treinos, estes devem ser computados
como jornada de trabalho do atleta, ou seja, o jogador tem o dever de participar
dos jogos e dos treinos ou outras práticas em relação às suas atividades. Assim,
esses períodos são considerados tempo à disposição do empregador, conforme
dispõe o art. 4º,10 da Consolidação das Leis do Trabalho.
As viagens também correspondem às atividades integrantes à jornada
de trabalho e não são passíveis de hora extraordinária, pois integram o contrato
de trabalho, uma vez que se trata de característica peculiar e inerente à profissão.
7
Art. 7º [...]
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro
semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante
acordo ou convenção coletiva de trabalho.
8
Art. 6º O horário normal de trabalho será organizado de maneira a bem servir ao
adestramento e à exibição do atleta, não excedendo, porém, de 48 (quarenta e oito)
horas semanais, tempo em que o empregador poderá exigir que fique o atleta à sua
disposição.
9
Art. 28. [...]
VI - jornada de trabalho desportiva normal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.
10
 Art. 4º Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja
à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição
especial expressamente consignada.

317
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

Com isso, o atleta não pode se recusar a viajar para participar de competições ou
amistosos dentro ou fora do país, com suas despesas pagas pelo clube.

2.1.3 Salário e remuneração

O salário do atleta profissional, de acordo com Belmonte (2013, p.


46), é composto por uma parcela básica, acrescida de gratificações, prêmios
e demais verbas de natureza retributiva, pagas diretamente pelo empregador.
A remuneração do jogador de futebol é composta por uma parte fixa, que
consiste no salário mensal e uma parte variável, composta pelas gratificações,
prêmios e demais parcelas proporcionais ao contrato. Essas parcelas de caráter
retributivo são consideradas para todos os efeitos salariais e remuneratórios e
as parcelas pagas por terceiros em razão do contrato, ainda que indiretamente
pelo empregador, repercutem no FGTS, na gratificação natalina e nas férias, a
exemplo das gorjetas.
As “luvas” e os “bichos” pagos aos jogadores de futebol integram o
salário. Consistem as luvas em valores pagos aos atletas para que estes assinem
ou renovem seus contratos com os clubes. Para Veiga e Sousa (2013, p. 138), o
atleta de futebol também possui características ou habilidades que influenciam
em sua contratação ou renovação, tanto relacionadas à sua personalidade
quanto ao seu desempenho. Já o bicho é uma parcela que se revela como
incentivo ao atleta para que alcance um objetivo, uma condição previamente
estabelecida, como uma vitória ou um campeonato.
Segundo Veiga e Sousa (2013, p. 144):

A profissionalização do futebol não acarretou na extin-


ção do pagamento do “bicho”. Recentemente, na Copa
do Mundo de Futebol de 2014, a Confederação Brasileira
de Futebol declarou reserva de R$ 24.000.000,00 (vinte e
quatro milhões de reais – R$ 1.000.000,00 para cada jo-
gador e para o treinador) para premiação dos atletas na
hipótese de conquista do título.

Dessa forma, ambas as prestações fazem parte da remuneração do


jogador profissional de futebol, ainda que não estejam previstas no contrato de

318
Diálogos sobre direito e justiça

trabalho, podendo ainda os jogadores provarem o seu recebimento por todos


os meios admitidos em Direito, para efeitos legais.
As prestações devidas a título de décimo terceiro salário serão pagas ao
atleta profissional de futebol e também podem ocorrer na forma proporcional.
No que diz respeito às férias, o jogador terá direito a 30 dias de férias, acrescidos
de abonos e será no recesso das atividades desportivas. Diferentemente do
trabalhador comum, as férias do atleta devem coincidir no período de recesso
das atividades desportivas. Além disso, não há exigência de período aquisitivo
para a concessão das férias. Devem estas ser gozadas em dias corridos por 30
dias e ao atleta não é oferecida a opção de vendê-las, não sendo aplicado o que
dispõe a CLT nesse sentido.

2.2 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DESPORTIVA

Conforme Decat (2014, p. 13), o Direito Processual Desportivo tem


como objetivo central resguardar a própria ordem jurídica, uma vez que,
ao resolver as questões, a Justiça Desportiva cumpre uma função pública,
assegurando o império da legislação brasileira do desporto nacional e da paz
social. Com isso, todas as pessoas, entidades nacionais, estaduais ou regionais
de administração do desporto, as ligas nacionais e regionais, as entidades de
prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração do desporto,
os atletas profissionais e os não profissionais, os árbitros, os assistentes e
demais membros da equipe de arbitragem ou os dirigentes, os treinadores, os
médicos, os fisioterapeutas, a comissão técnica ou qualquer pessoa que exerça
direta ou indiretamente cargo ou função na esfera desportiva em território
nacional que estão submetidos às entidades compreendidas pelo Sistema
Nacional do Desporto e todas as pessoas jurídicas que lhes forem direta ou
indiretamente filiadas ou vinculadas, controladas ou coligadas, estão sujeitas a
um procedimento desportivo.
Antes mesmo de analisar a competência da Justiça Desportiva, cabe
elencar como se dispõem estruturalmente e como se organizam os órgãos
judicantes desportivos. Segundo Decat (2014, p. 45), “Na Justiça Desportiva
haverá tantos Superiores Tribunais de Justiça Desportiva quantas forem as
entidades nacionais de administração do desporto e tantos Tribunais de Justiça
quantas forem as entidades estaduais de administração do desporto.” Ou seja,
com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), funciona o Superior Tribunal
319
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

de Justiça Desportiva (STJD), que processa e julga em âmbito nacional as


questões ligadas ao futebol, por exemplo. Com as Federações Estaduais de
cada modalidade desportiva existe um Tribunal de Justiça Desportiva (TJD),
para julgar fatos do respectivo esporte, o que traduz a sua competência
exclusivamente dentro do território daquele estado ou jurisdição.
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva e o Tribunal de Justiça
Desportiva são formados por nove membros, dos quais dois são indicados
pela entidade nacional de administração desportiva, dois indicados pelas
entidades de prática desportiva, dois indicados pelo Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, um indicado pela entidade representativa
dos árbitros e dois indicados pela entidade representativa dos atletas. Já as
Comissões Disciplinares, órgãos que funcionam como primeira instância com
o STJD e o TJD, devem ser compostas por cinco membros indicados pelos
tribunais da respectiva modalidade. Ainda, para Decat (2014, p. 46), os três
órgãos judicantes (Entidade de Administração, TJD e STJD) terão sempre um
presidente e um vice-presidente.
Para a mesma autora, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva e
o Tribunal de Justiça Desportiva, além de terem a competência para julgar
as ações especiais, também são órgãos judicantes que atuam em grau de
recurso em segunda instância, bem como em terceira instância em caso de
esgotamento da matéria no Tribunal de Justiça Desportiva. As Comissões
Disciplinares, salvo hipótese de competência originária do STJD e do TJD,
são órgãos de primeira instância, cabendo-lhes processar e julgar as infrações
disciplinares cometidas por pessoa física ou jurídica que esteja submetida
ao Código Brasileiro de Justiça Desportiva. As competências desses órgãos
estão elencadas no art. 24,11 o qual menciona a delimitação jurisdicional e a
competência dos referidos órgãos da Justiça Desportiva, no art. 25,12 com rol
11
Art. 24. Os órgãos da Justiça Desportiva, nos limites da jurisdição territorial de cada
entidade de administração do desporto e da respectiva modalidade, têm competência
para processar e julgar matérias referentes às competições desportivas disputadas e às
infrações disciplinares cometidas pelas pessoas naturais ou jurídicas mencionadas no
art. 1º, § 1º.
12
Art. 25. Compete ao Tribunal Pleno do STJD:
I - processar e julgar, originariamente:
a) seus auditores, os das Comissões Disciplinares do STJD e os procuradores que
atuam perante o STJD;
b) os litígios entre entidades regionais de administração do desporto;
c) os membros de poderes e órgãos da entidade nacional de administração do desporto;
d) os mandados de garantia contra atos ou omissões de dirigentes ou administradores
das entidades nacionais de administração do desporto, de Presidente de TJD e de outras
autoridades desportivas;
320
Diálogos sobre direito e justiça

taxativo da competência para processar e julgar do Tribunal Pleno do STJD,


no art. 26,13 no que se refere às Comissões Disciplinares do STJD, no art. 27,14
e) a revisão de suas próprias decisões e as de suas Comissões Disciplinares;
f) os pedidos de reabilitação;
g) os conflitos de competência entre Tribunais de Justiça Desportiva;
h) os pedidos de impugnação de partida, prova ou equivalente referentes a competições
que estejam sob sua jurisdição;
i) as medidas inominadas previstas no art. 119, quando a matéria for de competência
do STJD;
j) as ocorrências em partidas ou competições internacionais amistosas disputadas pelas
seleções representantes da entidade nacional de administração do desporto, exceto
se procedimento diverso for previsto em norma internacional aceita pela respectiva
modalidade;
II - julgar, em grau de recurso:
a) as decisões de suas Comissões Disciplinares e dos Tribunais de Justiça Desportiva;
b) os atos e despachos do Presidente do STJD;
c) as penalidades aplicadas pela entidade nacional de administração do desporto, ou
pelas entidades de prática desportiva que lhe sejam filiadas, que imponham sanção
administrativa de suspensão, desfiliação ou desvinculação;
III - declarar os impedimentos e incompatibilidades de seus auditores e dos
procuradores que atuam perante o STJD;
IV - criar Comissões Disciplinares, indicar seus auditores, destituí-los e declarar sua
incompatibilidade;
V - instaurar inquéritos;
VI - uniformizar a interpretação deste Código e da legislação desportiva a ele correlata,
mediante o estabelecimento de súmulas de jurisprudência predominante, vinculantes
ou não, editadas na forma do art. 119-A;
VII - requisitar ou solicitar informações para esclarecimento de matéria submetida à
sua apreciação;
VIII - expedir instruções às Comissões Disciplinares do STJD e aos Tribunais de
Justiça Desportiva;
IX - elaborar e aprovar o seu regimento interno;
X - declarar a vacância do cargo de seus auditores e procuradores;
XI - deliberar sobre casos omissos;
XII - avocar, processar e julgar, de ofício ou a requerimento da Procuradoria, em
situações excepcionais de morosidade injustificada, quaisquer medidas que tramitem
nas instâncias da Justiça Desportiva, para evitar negativa ou descontinuidade de
prestação jurisdicional desportiva.
Parágrafo único – (Revogado pela Resolução CNE n. 29 de 2009).
13
Art. 26. Compete às Comissões Disciplinares do STJD:
I - processar e julgar as ocorrências em competições interestaduais e nacionais
promovidas, organizadas ou autorizadas por entidade nacional de administração
do desporto, e em partidas ou competições internacionais amistosas disputadas por
entidades de prática desportiva;
II - processar e julgar o descumprimento de resoluções, decisões ou deliberações do
STJD ou infrações praticadas contra seus membros, por parte de pessoas naturais ou
jurídicas mencionadas no art. 1º, § 1º, deste Código;
III - declarar os impedimentos de seus auditores.
14
Art. 27. Compete ao Tribunal Pleno de cada TJD:
I - processar e julgar, originariamente:
a) os seus auditores, os das Comissões Disciplinares do TJD e os procuradores que
atuam perante o TJD;
b) os mandados de garantia contra atos ou omissões de dirigentes ou administradores
321
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

quanto ao Tribunal Pleno de cada TJD e no art. 28,15 referindo-se às Comissões


Disciplinares do TJD do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.
De acordo com Decat (2014, p. 64), a competência da Justiça
Desportiva pode ser definida como o poder de exercer a jurisdição nos limites
constituídos na legislação desportiva. Então, é o poder de ação e atuação
atribuído aos órgãos judicantes STJD e TJD, no qual estes poderão dizer o
direito e a extensão dos seus poderes de julgar.
A competência da Justiça Desportiva é dividida em três espécies, quais
sejam: em razão da matéria (ratione materiae), que se limita a processar e julgar
somente infrações disciplinares e as competições desportivas, competência
delegada pela Constituição Federal; em razão da pessoa (ratione persona), em que
os órgãos judicantes desportivos têm competência para julgar nos moldes do art.
1º16 § 1º e incisos I a VII do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, de acordo
dos poderes das entidades regionais de administração do desporto;
c) os dirigentes da entidade regional de administração do desporto;
d) a revisão de suas próprias decisões e as de suas Comissões Disciplinares;
e) os pedidos de reabilitação;
f) os pedidos de impugnação de partida, prova ou equivalente referentes a competições
que estejam
sob sua jurisdição;
g) as medidas inominadas previstas no art. 119, quando a matéria for de competência do TJD;
II - julgar, em grau de recurso:
a) as decisões de suas Comissões Disciplinares;
b) os atos e despachos do Presidente do TJD;
c) as penalidades aplicadas pela entidade regional de administração do desporto, ou
pelas entidades de prática desportiva que lhe sejam filiadas, que imponham sanção
administrativa de suspensão, desfiliação ou desvinculação;
III - declarar os impedimentos e incompatibilidades de seus auditores e dos
procuradores que atuam perante o TJD;
IV - criar Comissões Disciplinares e indicar os auditores, podendo instituí-las para
que funcionem junto às ligas constituídas na forma da legislação em vigor;
V - destituir e declarar a incompatibilidade dos auditores das Comissões Disciplinares;
VI - instaurar inquéritos;
VII - requisitar ou solicitar informações para esclarecimento de matéria submetida a
sua apreciação;
VIII - elaborar e aprovar o seu Regimento Interno;
IX - declarar vacância do cargo de seus auditores e procuradores;
X – deliberar sobre casos omissos.
15
Art. 28. Compete às Comissões Disciplinares de cada TJD:
I - processar e julgar as infrações disciplinares e demais ocorrências havidas em
competições promovidas, organizadas ou autorizadas pela respectiva entidade regional
de administração do desporto;
II - processar e julgar o descumprimento de resoluções, decisões ou deliberações do
TJD ou infrações praticadas contra seus membros, por parte de pessoas naturais ou
jurídicas mencionadas no art. 1º, § 1º, deste Código.
III - declarar os impedimentos de seus auditores.
16
Art. 1º A organização, o funcionamento, as atribuições da Justiça Desportiva
322 brasileira e o processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares
Diálogos sobre direito e justiça

com a nova redação apresentada pela Resolução CNE n. 29, de 10 de dezembro


de 2009; e, por fim, em razão do lugar (ratione loci), é extensiva a todo o território
nacional, sendo necessário observar os limites territoriais de cada entidade de
administração do desporto e respectiva modalidade. Cada modalidade desportiva
possui uma federação e uma confederação. As competências, os campeonatos ou
partidas organizadas pela federação são de âmbito estadual e as organizadas pelas
confederações de âmbito nacional ou interestadual.
Portanto, a Justiça Desportiva tem atribuições para dirimir conflitos
de natureza desportiva e competência limitada ao processo e julgamento de
infrações disciplinares definidas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva.
Assim, todas as infrações cometidas em competições, organizações e entidades
que sejam de caráter puramente desportivo, em qualquer modalidade esportiva
e em território brasileiro, serão processadas e julgadas pela Justiça Desportiva,
nos moldes do CBJD, por meio de seus órgãos judicantes.

2.3 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA TRABALHISTA NAS RELAÇÕES


DESPORTIVAS

Em se tratando de competência, matéria da Justiça do Trabalho, a


Constituição Federal do Brasil de 1988, de acordo com Delbin (2013, p. 278),
depois da Emenda Constitucional n. 45/2004, em seu art. 114,17 determina que
desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática
formal, regulam-se por lei e por este Código.
Parágrafo Único.
§ 1º - Submetem-se a este Código, em todo o território nacional:
I - as entidades nacionais e regionais de administração do desporto;
II - as ligas nacionais e regionais;
III - as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração
mencionadas nos incisos anteriores;
IV - os atletas, profissionais e não profissionais;
V - os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem;
VI - as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos
ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades
mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores,
treinadores, médicos ou membros de comissão técnica;
VII - todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que
não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais
e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou
coligadas.
17
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:  
I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público
externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios;
II - as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III - as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e
323
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

lhe cabe processar e julgar os litígios trabalhistas, bem como as ações oriundas
da relação de trabalho, o direito de greve, as ações sobre representação sindical,
as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação
de trabalho e outras controvérsias que decorram das relações de trabalho. Antes
disso, por meio da publicação do Decreto n. 2574, de 29 de abril de 1998, fazia-
se referência à exclusão da Justiça Desportiva para apreciar questões relativas
a matérias trabalhistas. No entanto, em razão do fato de regulamentar matéria
constitucional, o referido Decreto foi revogado em 01 de março de 2004, pelo
Decreto 5.000.
Não obstante, a competência envolvendo os litígios instaurados entre
atletas profissionais de futebol e os clubes empregadores, há muito causaram
discussões e divergências nos Tribunais brasileiros. Para Delbin (2013, p. 279),
“Antes do advento da Constituição Federal de 1988, existia a discussão acerca
da competência da Justiça do Trabalho para julgar as demandas decorrentes
dos contratos laborais entre atletas e clubes.” Isso ocorreu em razão da Lei n.
6.354 (Lei do Passe), que determinava que somente depois de esgotadas todas
as instâncias da Justiça Desportiva o litígio decorrente da relação laboral entre
clubes e jogadores poderia ser submetido à Justiça do Trabalho.
Para Veiga e Sousa (2013, p. 43), muito já se discutiu quanto ao tema,
considerando a redação contida no parágrafo único do art. 2918 da já revogada
trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV - os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado
envolver matéria sujeita à sua jurisdição; 
V - os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o
disposto no art. 102, I, o;
VI - as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação
de trabalho;
VII - as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores
pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII - a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e
seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX - outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º - Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem,
é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza
econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições
mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. 
§ 3º - Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse
público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo
à Justiça do Trabalho decidir o conflito.
18
Art. 29. Somente serão admitidas reclamações à justiça do trabalho depois de
esgotadas as instâncias da justiça desportiva, a que se refere o item III do art. 42 da Lei
6.251, de 08 de outubro de 1975, que proferirá decisão final no prazo máximo de 60
(sessenta) dias contados da instauração do processo.
324 Parágrafo único. O ajuizamento da reclamação trabalhista, após o prazo a que se refere
este artigo, tornará preclusa a instância disciplinar desportiva, no que se refere ao
Diálogos sobre direito e justiça

Lei n. 6.354, o qual incluía as questões de natureza trabalhista no âmbito de


competência dos Tribunais de Justiça Desportiva.
No entanto, apesar de posicionamentos em sentido contrário, a Carta
Magna de 1988 não recepcionou o dispositivo legal do artigo citado, inclusive
elencando a competência da Justiça Desportiva. Consoante o que dispõe o art.
17,19 §§ 1º e 2º, da Constituição Federal de 1988, a Justiça Desportiva tem o
dever de processar e julgar a disciplina e as competições desportivas, de acordo
com o CBJD e demais leis desportivas, no prazo máximo de 60 dias a contar
da instauração do processo, para somente após esse prazo ser admitido que o
Poder Judiciário conheça a controvérsia.
Para Delbin (2013, p. 279), hoje em dia os assuntos quanto à
competência da Justiça do Trabalho nas relações laborais entre jogadores de
futebol e clubes parecem estar totalmente superados, por força de disposição
constitucional, que pacificou o tema. No entanto, por muitos anos houve a
controvérsia quanto ao assunto e atualmente ainda há julgados nesse sentido.
Portanto, a Justiça Trabalhista analisa e julga ações oriundas da esfera
desportiva, como qualquer outra relação entre empregador e trabalhador.
Para chegar nesse caminho, de acordo com Barbosa (2012), as cláusulas
contratuais entre clubes e atletas profissionais precisaram ser admitidas pela
Justiça Trabalhista. Os sujeitos dos contratos são o empregado/jogador de
futebol e a entidade desportiva, na condição de empregador. Nessas condições,
o empregador/patrão será a associação e o contrato deverá ser revestido das
formalidades legais pertinentes aos órgãos competentes. Sua característica é
ser bilateral, oneroso, tempestivo e formal. Entretanto, os contratos de atletas
profissionais também diferem dos contratos comuns de trabalho no que se
refere à formalidade, sendo regra geral a ausência de solenidade para a sua
formalização. Assim, os contratos profissionais de trabalho devem conter os
requisitos exigidos, como nome e endereço completo das partes contratantes,
prazo de contrato, forma de remuneração, bonificação, premiações,
gratificações, carga horária e regime de concentração, entre outros atributos,
além da data e assinatura de próprio punho pelo atleta ou responsável legal e
dirigente do clube. Isso posto, conforme Ramos (2013, p. 114), a especialidade
e a diferenciação dos contratos de trabalhadores comuns e dos atletas
litígio trabalhista.
19
Art. 217. [...]
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições
desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da
325
instauração do processo, para proferir decisão final.
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

profissionais de futebol estão na inaplicabilidade do disposto no art. 2º,20 §


1º da CLT, por força do art. 28,21 caput, da Lei Pelé, que traz as diferenças e
obrigatoriedades na constituição de um contrato entre entidades e jogadores
de futebol. De acordo com Neto (2010, p. 119):

Após sacramentados todos esses caminhos contratuais, a


esfera do Direito Trabalhista pode atuar com a obrigação,
ainda, do empregador, ao recolhimento do INSS, FGTS,
férias, hora extra, e 13º salário, além disso, deverá ser as-
segurado ao atleta um seguro por acidente de trabalho,
com o objetivo de cobrir os riscos a que estão sujeitos. A
importância segurada deverá garantir direito a uma inde-
nização mínima correspondente ao valor total anual da
remuneração ajustada.

Dessa forma, houve grande avanço do Direito Trabalhista no âmbito


Desportivo pelo advento da Lei Pelé. A jurisprudência trabalhista é pacífica,
garantindo-se como competente para processar e julgar ações oriundas da relação
de trabalho entre jogadores de futebol e clubes, conforme se vertifica, in verbis:

Os Tribunais Esportivos são entidades com competência


para resolver questões de ordem estritamente esportiva.
A matéria em questão envolve direitos de natureza tra-
balhista, sendo, portanto, esta Justiça Especializada com-
petente para dirimi-los. Incabível a alegação de violação
ao art. 217 da CF, por não abranger a hipótese prevista
nos autos. Recurso de Revista não conhecido. (BRASIL,
1999).

Assim, encerrou-se a discussão a respeito da competência para julgar


litígios entre jogadores de futebol e clubes oriundos da relação trabalhista,
restando patente a competência da Justiça do Trabalho.

20
Art. 2º [...]
§ 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego,
os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou
outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.
21
Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada
em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática
desportiva.
326
Diálogos sobre direito e justiça

2.4 (IN)COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM

No que diz respeito ao exaurimento das instâncias da Justiça Desportiva


para o litígio ser apreciado pelo Poder Judiciário previsto na Carta Magna, faz-
se necessária uma análise sucinta, tendo como base diversos ramos do Direito.
É evidente a importância que a Constituinte de 1988 atribuiu à Justiça
Desportiva. Além disso, trouxe mais segurança ao sanar rapidamente quaisquer
conflitos de normas existentes na seara desportiva, como estabelecendo o
limite de atuação às ações relativas às competições e disciplinas esportivas.
Para Schmitt ([entre 1996 e 2003]), a Constituição Federal de 1988 foi
ainda mais longe, reconhecendo um limite formal de conhecimento dos
litígios desportivos perante o Poder Judiciário, interligado ao esgotamento
das instâncias da Justiça Desportiva. Desde uma abordagem imediata é
possível alcançar a importância atribuída pela Constituição Federal à Justiça
Desportiva, configurando-se em mais um movimento de solução alternativa
de controvérsias, evitando os custos e a demora de um processo judicial.
Esse tema demanda bastante polêmica, pois ainda são frequentes em
ações judiciais as teses de defesa serem apresentadas com fundamento na
incompetência do Poder Judiciário em julgar determinada matéria sem o prévio
esgotamento das instâncias desportivas, como no precedente jurisprudencial
a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO TRABALHIS-


TA. ATLETA PROFISSIONAL. PRÉVIO ESGOTAMEN-
TO DAS INSTÂNCIAS DA JUSTIÇA DESPORTIVA.
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 29 DA LEI N. 6.354/76. DIS-
POSITIVO NÃO RECEPCIONADO PELA CONSTI-
TUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NÃO PROVIMENTO. 1.
A Constituição Federal, no seu artigo 217, § 1º, prescreve
que somente as ações relativas à disciplina e às competi-
ções desportivas necessitam do prévio esgotamento das
instâncias da Justiça Desportiva para serem submetidas
ao Poder Judiciário. 2. Desse modo, o artigo 29 da Lei nº
6.354/76, ao estabelecer que as ações na Justiça do Traba-
lho somente serão admitidas depois de esgotadas as ins-
tâncias da Justiça Desportiva, destoa da referida norma
constitucional, havendo, desse modo, que o considerar
como não recepcionado pela Constituição Federal de
1988. Precedentes desta Corte. 3. Agravo de instrumento
327
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

a que se nega provimento. (BRASIL, 2009).


A inconstitucionalidade está estabelecida no art. 5º,22 XXXV, da
Constituição de 1988, o qual veda que o direito ao acesso ao Poder Judiciário
seja obstruído:

JOGADOR DE FUTEBOL – JUSTIÇA DESPORTIVA –


EXAURIMENTO DE INSTÂNCIA – DESNECESSIDA-
DE. O art. 29, da Lei n. 6.354/76 não foi recepcionado
pela Constituição da República de 1988 que não permite
qualquer espécie de obstaculização de acesso ao Judiciá-
rio (art. 5º, XXXV) e estabelece o prévio acionamento da
Justiça Desportiva apenas no que pertine à disciplina e
às competições desportivas (art. 217, § 1º). Dispensável o
exaurimento da instância administrativa para que o atleta
profissional de futebol ingresse com ação trabalhista pe-
rante a Justiça do Trabalho. (MATO GROSSO DO SUL,
1998).

Cabe ressaltar que as matérias de disciplina e competições desportivas,


previstas no art. 5023 da Lei n. 9.615, deverão ser esgotadas nas vias da Justiça
Desportiva, como se deduz do art. 217,24 § 1º, da Constituição Federal. No
entanto, para as demais matérias, como visto, é dispensável o exaurimento. Por
exemplo, uma ação tributária ou penal não poderá ser analisada pela Justiça
Desportiva. Não se trata, portanto, de afronta ao princípio da inafastabilidade
do controle jurisdicional, mas de uma exceção a ele imposta pela própria
Constituição.
A polêmica controvérsia do assunto, de acordo com Schmitt ([entre
1996 e 2003]), quase se tornou algo mais alarmante quando a redação do art.
50 da Lei n. 9.615 foi entregue ao Presidente da República para a sanção, com
a seguinte redação:

Art. 50. A organização, o funcionamento e as atribuições


22
Art. 5º [...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
23
Art. 50.  A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva,
limitados ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições
desportivas, serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas
constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas
competições.
24
Art. 217. [...]
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições
desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
328
Diálogos sobre direito e justiça

da Justiça Desportiva, serão definidas em Códigos de Jus-


tiça Desportiva de cumprimento obrigatório para as filia-
das de cada entidade de administração do desporto, nos
quais excetuar-se-ão as matérias de ordem trabalhista e
de Direito Penal Comum. (BRASIL, 1998).

O conteúdo foi vetado pelo Presidente sob o argumento de que a


exceção das matérias de ordem trabalhista e de direito Penal Comum levaria
à falsa impressão de que outras não poderão ser objeto de exame da Justiça
Comum, sendo totalmente equivocado. O veto objetivou a não se criar nenhum
obstáculo no acesso ao Poder Judiciário.
Passada essa análise de incompatibilidade entre o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional e a Justiça Desportiva, faz-se
necessária uma abordagem referente às matérias analisadas pela Justiça
Desportiva e àquelas que não são do seu crivo, que podem ser apreciadas pelo
Poder Judiciário.
As decisões proferidas na Justiça Desportiva, esgotadas todas as suas
instâncias ou ainda quando decorridos os 60 dias previstos no § 2º, do art.
217,25 da Constituição Federal sem uma decisão final, é possível socorrer-
se no Poder Judiciário a fim de buscar provimento jurisdicional conclusivo.
Para Melo Filho (1998, p. 157), “Ocorrendo qualquer dessas hipóteses é
possível buscar-se a manifestação do Poder Judiciário por força da garantia
constitucional do Art. 5º, inc. XXXV [...]” Não observadas as condições, restará
indeferido o pedido ou extinto o processo no Poder Judiciário, uma vez que
o Poder Judiciário somente poderá conhecer qualquer dessas ações depois de
esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva. Nesse sentido, a jurisprudência
se consolida:

APELAÇÃO CÍVEL.DIREITO PRIVADO NÃO ESPE-


CIFICADO. CAMPEONATO DE FUTEBOL AMA-
DOR. JULGAMENTO PELA JUSTIÇA COMUM. IM-
POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ESGOTAMENTO
DAS INSTÂNCIAS DESPORTIVAS. Os campeonatos
esportivos são atividades eminentemente privadas, tan-
to que os órgãos públicos não podem neles interferir e a
Justiça Desportiva não compõe o Poder Judiciário. Ma-
nutenção da decisão que indeferiu a inicial por ausência
25
Art. 217. [...]
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da
instauração do processo, para proferir decisão final. 329
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

de prévio esgotamento das instâncias desportivas previs-


tas no CBJD. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME. (RIO
GRANDE DO SUL, 2013).

Não se pode negar que existem outras ações que podem ser objeto
de análise pelo Poder Judiciário sem a necessidade de se recorrer à Justiça
Desportiva, como as ações que visam ao resguardo do direito dos espectadores
do evento esportivo, protegido pelo Estatuto do Torcedor e pelo próprio
Código de Defesa do Consumidor ou até mesmo aquelas que serão apreciadas
pelo Poder Judiciário e pela Justiça Desportiva, como na possibilidade de uma
agressão durante a prática de uma partida de futebol, em que o agressor pode
ser processado e julgado civil e criminalmente. Nesse sentido, importante a
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENI-


ZAÇÃO POR DANOS MORAIS. LESÃO CORPORAL.
AGRESSÃO FÍSICA EM PARTIDA DE FUTEBOL, PER-
PETRADA POR JOGADOR VINCULADO AO CLUBE
DEMANDADO. AGRAVO RETIDO. ILEGITIMIDADE
PASSIVA. DESACOLHIMENTO. Reconhecida a legiti-
midade do clube de futebol demandado porquanto o atle-
ta agressor possuía vínculo contratual com o demandado,
bem como estava em campo na condição de preposto e no
exercício do labor. MÉRITO. DEVER DE INDENIZAR
CONFIGURADO. Hipótese em que o conjunto probató-
rio dos autos demonstra que o autor sofreu agressão físi-
ca injustificada por parte de jogador [...] (RIO GRANDE
DO SUL, 2011).

É eminente a possibilidade de ocorrência de lesão ou ameaça a direito


nas práticas esportivas, principalmente no futebol. Dessa forma, as práticas
antidesportivas são processadas e julgadas pela Justiça Desportiva, em que é
aplicada uma sanção disciplinar ligada à prática da atividade esportiva (por
exemplo, uma suspensão por determinadas partidas ou dias). No entanto, a
decisão na esfera da Justiça Desportiva não obsta o acesso ao Judiciário para
o reparo civil, penal ou trabalhista, sem qualquer necessidade de esgotamento
das instâncias ou o decurso de 60 dias previsto no Texto Constitucional, o qual
se limita às controvérsias envolvendo disciplina e competições esportivas.

330
Diálogos sobre direito e justiça

Dessa forma, é possível verificar a necessidade das questões disciplinares


e de competições passarem pela análise e pelo julgamento na Justiça Desportiva,
para poder ser apreciada, eventualmente, e em momento posterior pelo Poder
Judiciário. Além disso, há a possibilidade de se buscar o Poder Judiciário
independentemente do processo desportivo ou cumulativamente com este.
Prenota-se, portanto, que as decisões proferidas pela Justiça Desportiva são
válidas e de cumprimento obrigatório enquanto não levadas ao conhecimento
do Poder Judiciário.
Cabe ainda analisar a possibilidade de impugnação das decisões da
Justiça Desportiva quando conhecidas posteriormente pelo Poder Judiciário e
por ele reformadas ou alteradas. De acordo com os §§ 1º e 2º do art. 5226 da Lei
n. 9.615, existe a possibilidade de discussão no âmbito judicial das controvérsias
desportivas, desde que respeitado o Texto Constitucional. Para Melo Filho
(1998, p. 157), a interpretação do § 1º é de que é possível a impugnação
pelo Poder Judiciário quando o processo desportivo já tramitou em todas
as instâncias cabíveis da Justiça Desportiva ou porque já decorreram os 60
dias da instauração do processo disciplinar sem decisão final. Já o § 2º, apesar
do descuido do legislador no uso da palavra “recurso”, ao qual sobrevieram
muitas interpretações, está inserido no sentido de acesso ao Poder Judiciário.
De acordo com o autor citado, este parágrafo reponta que o simples recurso
ao Poder Judiciário não tem poder de alterar ou desfazer automaticamente e
imediatamente os efeitos validamente produzidos pela decisão desportiva.
No entanto, há os que defendem a autonomia das decisões da Justiça
Desportiva diante do Poder Judiciário. Nessa corrente, encontra-se Schmitt
(2007, p. 46), que afirma que ao dispor o § 2º, do art. 52, da Lei n. 9.615, de
24 de março de 1998, o recurso ao Poder Judiciário não prejudicaria os efeitos
produzidos pela sentença da Justiça Desportiva. Ainda, no que diz respeito
a matérias disciplinares ou de competições, em regra deve restringir-se à
análise da observância dos princípios que orientam a Justiça Desportiva e do
devido processo legal, não quanto ao mérito das demandas julgadas na esfera

26
Art. 52. [...]
§ 1º - Sem prejuízo do disposto neste artigo, as decisões finais dos Tribunais de Justiça
Desportiva são impugnáveis nos termos gerais do direito, respeitados os pressupostos
processuais estabelecidos nos §§ 1º e 2º do art. 217 da Constituição Federal.
§ 2º - O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente
produzidos em conseqüência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça
Desportiva.
331
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

esportiva. Julgar o mérito novamente no Poder Judiciário seria comprometer a


soberania e a independência da Justiça Desportiva.
Assim, norteado pelo princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional, apesar das controvérsias que o cercam, interpretando o dispositivo
constitucional, é possível perceber a admissibilidade e a possibilidade do amplo
controle judicial das questões relativas à disciplina e às competições esportivas,
autorizando, assim, o Poder Judiciário a reapreciar o mérito de questões
decididas na Justiça Desportiva. Na prática, no entanto, percebe-se que os
clubes raramente buscam o Poder Judiciário a fim de encontrar outra decisão
que denegue a proferida pela Justiça Desportiva, uma vez que as entidades
desportivas sofrem grande pressão da Confederação Brasileira de Futebol e
da própria entidade máxima do futebol mundial, a FIFA. Recentemente cinco
clubes foram punidos por entrarem na Justiça Comum com o objetivo de
reverter a decisão da Justiça Desportiva: Icasa, Tiradentes, Botafogo/PB, CSP
e Cianorte, todos enquadrados no artigo 191,27 II ou no art. 231,28 ambos do
Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

3 CONCLUSÃO

O tema despertou interesse em razão da sua diversidade e pouca


abordagem na esfera acadêmica, bem como os grandes questionamentos e a
recente repercussão em face da Justiça Desportiva Brasileira, decorrente dos
atuais julgamentos pelos Tribunais Desportivos.
Abordou-se a Competência em Litígios Trabalhistas no Futebol,
analisando-se diversos aspectos trabalhista-desportivos na relação entre
jogadores profissionais de futebol e clubes, como contrato de trabalho, jornada
de trabalho, salários e remuneração. Nesta seção foi possível demostrar toda
a estrutura da Justiça Desportiva Brasileira, a sua competência em relação aos
litígios de disciplina e competições e a sua incompetência nos demais assuntos.
Foi possível verificar que a Justiça Desportiva tem competência única e
exclusivamente aos temas relacionados à disciplina e competições desportivas
27
Art. 191. Deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento:
II - de deliberação, resolução, determinação, exigência, requisição ou qualquer ato
normativo ou administrativo do CNE ou de entidade de administração do desporto a
que estiver filiado ou vinculado.
28
Art. 231. Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva,
matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-
332 se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro.
Pena: exclusão do campeonato ou torneio que estiver disputando e multa de R$ 100,00
(cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Diálogos sobre direito e justiça

e que somente após exauridas todas as instâncias da Justiça Desportiva ou


decorridos 60 dias a contar da instauração do processo sem decisão final é que
o assunto poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário.
Com a caracterização da incompetência da Justiça Desportiva para
litigar em demandas trabalhistas entre jogadores profissionais e clubes e,
finalmente, delimitadas as áreas de atuação do referido órgão, foi necessário
discorrer sobre o Poder Judicante competente para julgar as demandas
trabalhistas. Dessa forma, fez-se necessário tratar sobre a aptidão da
Justiça Trabalhista em processar e julgar tais ações, além de analisar o quão
controverso foi o tema nos Tribunais Brasileiros, mediante entendimentos
jurisprudenciais, até se chegar a um entendimento pacífico de que o melhor
órgão é o da Justiça do Trabalho. Além disso, coube estudar quais ações que,
assim como as Reclamações Trabalhistas, têm o livre acesso ao Poder Judiciário
no que se refere às atividades desportivas.
Desta feita, percebeu-se que todas as ações que não versem sobre a
disciplina e competições desportivas têm o livre acesso ao Poder Judiciário,
sem a necessidade de esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva. Assim,
por exemplo, ações que discutam sobre danos morais, responsabilidade civil
do empregador, ou até mesmo casos mais graves, como lesões corporais,
homicídios, injúrias raciais, entre outros, podem ser processadas e julgadas
pelo Poder Judiciário, seja pela Justiça Comum, seja pela Justiça do Trabalho,
de acordo com as suas competências. O acesso a tais ações no Poder Judiciário
não impede que a entidade ou o atleta sofram sanções pela Justiça Desportiva
com penas relacionadas à prática do esporte.
Por fim, coube analisar também a eficácia das decisões da Justiça
Desportiva perante o Judiciário Brasileiro, e, conforme o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional previsto constitucionalmente, as
decisões desportivas podem ser revistas e reformadas pelo Poder Judiciário.
Por se tratar de matéria bastante controversa, existir previsão legal de
discussão do mérito e reforma das decisões desportivas no Poder Judiciário,
essa prática não é muito comum pelos clubes brasileiros, pois sofrem sanções
da própria Justiça Desportiva, da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e
da Federação Internacional de Futebol (FIFA).

333
Rafael Guisolfi Cechin, Roni Edson Fabro

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de março de 1998, que institui normas gerais sobre desporto, e 10.891, de 09
de julho de 2004, que institui a Bolsa-Atleta; cria os Programas Atleta Pódio
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